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FORMAS SIMPLES

André Jolles

Filiando-se à quela orienta çã o dos estudos literá rios a que


chama “ morfol ógica’' e que melhor rotular í amos hoje de “es-

truturar’ orienta ção que, para al é m de quanto seja produto
do tempo ou da inven çã o pessoal, busca determinar e inter -


pretar , na literatura, suas Formas mais gerais de manifesta çã o
, Andr é Jolles estuda , neste livro, as “formas simples” enrai -
zadas na linguagem como “gestos verbais” elementares e que
se originam de “disposições mentais” básicas do Homem em
face do mundo e da vida . Dessas formas simples ( que in -
cluem a legenda, a saga, o mito, a adivinha, o ditado, o caso,
o memor á vel , o conto e o chiste ) analisa Jolles, aqui , a natu - Legenda
reza , as caracter í sticas e as formas hist ó ricas de atualiza ção ,
mostrando que delas derivam as formas literá rias mais com -
plexas: assim , por exemplo, o romance policial é a atualização
Saga
moderna da adivinha. Mito
Nascido na Holanda em 1874, André Jolles optou pela
nacionalidade alem ã no começo da Primeira Guerra Mundial ,
tendo lecionado hist ó ria da arte e literatura geral e comparada
Adivinha
em Leipzig, onde morreu em 1946. A publicação, em 1930,
da edi ção alem ã original de FORMAS SIMPLES teiri sido com - Ditado
parada , pela sua import â ncia, à da publica çã o da Morfologia
do Conto, de Propp. Eis por que este é um livro cuja leitura
se impõe a quantos queiram estar em dia com o que haja de
Caso
realmente fundamental no campo da Teoria da Literatura. Memorável
Conto
Chiste
EDITORA CULTRIX
Cultrix
( Uttras obras de interesse: A LUTA PELA EXPRESS ÃO *
Figueiredo
— Fidelino de
n m i A DA FORMA LITERARIA *
— DICION Á RIO DE TERMOS LITER Á RIOS
Kcnnetb Burke
—Massaud Moisés


juI KODUÇÃO AOS ESTUDOS
INTRODUÇÃO AO ESTUDO CR ÍTICO DA
I ITER Á RIOS Ericb Aucrbacb LITERATURA * —
Danziger c Johnson

11 i ASTELO DE AXEL - Edmund Wilson


NOVOS ENSAIOS CR Í TICOS / O GRAU
ZERO DA ESCRITURA Roland—
\ ll < DA LITERATURA — Ezra Pound Barlhes

ANA IOMIA DA CR Í TICA


— Northrop Frye
INTRODUÇÃO À TEORIA DA
LITERATURA —
Ant ônio Soares Amora


A ITCNICA DA FICÇÃ O * Percy Lubbock
• -
Co cdi çã o com a Editora da USP

' 1 TKMPO
NO ROMANCE
— Jean * Pouillo »

I . / Iaterre
1 1 LÍ
STICA ESTRUTURAL
Ki — Micbaet
Kl loRICA GERAL *
— J. Dubois e outros

I STRUTURA DA LINGUAGEM POÉTICA


*
Jean Coben

.
I INC O ÍSTICA E PO É TICA *
— Jean Coben
I TRUTURALISMO E POÉTICA
I ivetan Todorov — Peça católogo gratuito à

EDITORA CULTRIX


I I RUTURAS LINGU ÍSTICAS EM Rua Conselheiro Furtado , 648 , fone 278481 L
POESIA * Samuel R. Levin 01511 São Paulo, SP
ANDRÉ JOLLES

FORMAS SIMPLES
Legenda , Saga, Mito, Adivinha , Ditado, Caso ,
Memorável , Conto , Chiste
$

Traduçã o de
Á LVARO CABRAL

EDITORA CULTRIX
SAO PAULO
Tí tulo do original alemão:
EINFACHE FORMEN
Legende , Sage , Mythe , Rã tsel , Spruch , Kasus , I
Memorabile, Má rchen , Witz

© Mdx Niemeyer Verlag , Tiibingen, 1930

SUMÁRIO

Pref ácio 11

INTRODUçãO 13
1 . As três direções dos estudos literá rios: beleza , sentido, forma 13
II . Linguagem e literatura 18
III . A Linguagem como trabalho: cultura , produção, interpretação 20
TV . As formas literá rias 28

A LEGENDA 30
I . Os santos dos Acta Sanctorum 30
11 . O processo de canonização 32
III . Virtude ativa e falta condená vel. Objetivação. Milagre. Re-
líquia 34
rv . A disposição mental da Legenda . Imitação e imit á vel 38
V . Pessoa . Objeto. Linguagem . Hagiografia e biografia his-
tórica 42
VI . Exemplo : O gesto verbal: tripla constru ção. Legenda e hagio-
MCMLXXVI grafia : forma potencial e forma atual. A Forma Simples.
A Forma Simples atualizada 44
Direitos de tradução para a l í ngua portuguesa VII . Exemplo desenvolvido: São Jorge 48
I VIII . Antiforma : o anti-santo e a antilegenda 50
adquiridos com exclusividade pela
IX . Outras localizações da atividade de imitação: as odes triun-
EDITORA CULTRIX LTDA. fais de Píndaro; as lendas de fundação 54
X . A legenda em nossos dias 57
Rua Conselheiro Furtado, 648, fone: 278-4811, 01511 São Paulo , SP,
que se reserva a propriedade literá ria desta tradução. A SAGA 60
i
i I . Transição e depreciação no significado dos nomes de Formas 60
Impresso no Brasil II . A saga islandesa 63
III . A disposição mental da Saga. Suas palavras-chave: fam í lia ,
Pritited in Brazil cl ã , vínculo de sangue 67

I
IV . Contra-Exemplo. Exemplo. O gesto verbal na Saga: sua mo- ticos ; linha melódica ; “ imagem ”; sua atualização c sua
bilidade. A saga helé nica. Forma Simples. Saga e disposição mental ; o apotegma ou aforismo; o emblema 136
forma atualizada. Gesta 70
V . Histó ria dos temas c “ Formas pritimitivas". Saga e epopeia . O CASO 145
A Canção dos Nibelungos. 76 I . O sistema das Formas Simples. Novos nomes 145
VI . A Saga no Antigo Testamento. Anti-Saga. O pecado original. II . Exemplo. A medida qualitativa e quantitativa do legal e ile-
Darwinismo e romance da hereditariedade. Objeto e pes- gal. A norma “ parágrafo da lei ”. Exemplo e modelo.
soa na Saga 79 A disposição mental do Caso. Dispersão das normas 146
I I I . Os elementos permutá veis. A passagem à Forma art ística.
O MITO 83 A novela 152
I . Definições . O conceito dc muito em Jacob Grimm 83 IV . Outros exemplos. O espí rito e a letra da lei 154
II . Mito e mitologia. Um exemplo do Gé nese. Pergunta e res- V . O caso indiano 157
posta . O or áculo. Mito e os mitos. Qualidade essen- VI . O Caso no dom í nio do gosto e do sentimento. A lógica .
cial c criação 86 O amor cortesão. A teologia . A recompensa como obje-
III . Mito. Conhecimento. |i, u 0oj: Profecia : sua disposição men- to. Casu ística . Psicologia 161
tal . Palavras-chave: saber , ciê ncia 91
IV . O mito do Etna cm Pí ndaro. Mitologia 93 O MEMOR á VEL 167
V . A forma relativa . Exemplo. Os mitos plató nicos 95 I. Exemplo: um acontecimento cotidiano. Reportagem c recorte
VI . O evento no mito. Singularidade do gesto verbal 99 de imprensa 167
VII . Guilherme Tell . Mitos errantes. Os mitos do Ser Salvador 101 II . Um recorte dc Hist ó ria 170

VIII . O Mito da destruição final. O sí mbolo 107 III . O escalonamento e a coagulação: memorá vel e História 173
IV . A disposição mental relativa à realidade fatual. O concreto.
O documento como objeto 175
A ADIVINHA 109
V . Exemplos. A credibilidade. O universo da História 177
I . Colet â neas e m é todos de investigaçã o respeitantes à Adivinha 109
II . Mito e Adivinha 111 O CONTO 181
III . Exame. Audiê ncia judicial. Enigma da Esfinge. Adivinha de I . Nome. Espécies. O gênero de Grimm. Linguagem e poesia 181
lio. Adivinha crucial 112
II . Grimm. Arnim . Poesia natural c poesia art ística. Forma
IV . Fundamento da cifra . Iniciação c associação 115 simples e forma erudita 183
V . O que é cifrado ? 117 III . A novela toscana. Hist ó ria do conto 188
VI . Como se cifra ? A linguagem especial . O gesto verbal das IV . O Conto como Forma Simples. As leis constitutivas da
adivinhas 119 forma na Novela e no Conto 192
VII . Linguagem especial e forma da adivinha . A dupla solu ção 123 V . Solidez, singularidade, unicidade. Mobilidade , generalidade,
VIII . A disposi çã o mental do Saber . Exemplo. A runa 125 pluralidade. O gesto verbal 194
VI . A disposição mental : moral ingé nua. O universo trágico. Os
O DITADO 128 gestos verbais do conto tr ágico. O maravilhoso como
coisa natural . Os gestos verbais do Conto. O objeto do
I . Definições. A Deutscbcn Sprichwórlerkunde de Seiler 128 Conto 197
II . A disposição mental da experiê ncia. Suas atualizações 132 i

I I I . O universo do empirismo. A senten ça arguta 133 O CHISTE 205


IV . O prové rbio: origem “ popular ” e “ teor pessoal ” ; a natureza I. Espécies. Disposição mental: desfazer e desenlaçar , na lin-
enunciativa ; a linguagem do prov é rbio; recursos cstil ís- guagem , na lógica , na ética 205
II . O Cómico. O Insuficiente. A Zombaria 209
.
III . Sá tira . Ironia . Nas formas art ísticas. O rigor O gracejo 211
IV . Dupla fun ção. Figuras autónomas. O universo do cómico.
A caricatura como objeto 214

PERSPECTIVAS 217
Recapitula ção. Ampliaçã o da esfera , O gesto verbal. Orde-
na ção c orientação ulteriores 217 PREF ÁCIO
Para André Jolles

As informações contidas neste livro só podem alcançar a sua finali-


dade se todas elas, sempre dentro do possível , forem ao encontro da Id éia
pura de Ciê ncia , de modo que a solid ão c a liberdade constituam os prin-
cípios dominantes nessa esfera. Entretanto, n ão devemos esquecer que o
labor espiritual da humanidade só pode frutificar pelo trabalho comum ;
n ão se trata de uma pessoa completar aquilo que falta a outra mas de a
atividade bem sucedida de alguns entusiasmar outros, de forma que a
todos se faça visível a necessidade de um esforço conjunto e ininterrupto,
sempre renovado e sem propósitos egoístas , para que a força convincente
do que é exposto seja bem aproveitada .
WlLHELM VON HUMBOLDT

Atrav és da solid ão e da liberdade , um novo pensamento


sobre os fenô menos do Espirito e uma reflexão sobre os domí -
nios pró prios da Literatura encontraram aqui o caminho da divul-
gaçã o pública. Este livro é a última estação e , simultaneamente ,
o caminho que se alarga pouco a pouco , desde o seu criador e
explorador a um pequeno cí rculo de amigos e discí pulos , logo
à esfera mais ampla dos col é gios acad êmicos e agora , por fim ,
ao grande público cientí fico.
\
FORMAS SIMPLES é um livro f ácil de ler — e , à sua maneira ,
eficaz para ensinar e convencer —mas dif í cil de estudar porque ,
com cada definição , com cada pensamento expresso , e ainda com
cada exemplo , obriga-nos a continuar pensando at é alcançar uma
visão completa. Das duas possibilidades existentes para introdu-
zir uma novidade , sendo a primeira atrav és de um sistema fecha-
do e a segunda por meio de um discurso propedêutico e demons-
trativo , foi escolhida a última, por ser a mais viva e a menos
difundida. Mas também porque, na sequê ncia dos vários tratados

11
individuais , é mais esclarecedor efetuar uma conexã o com cada
problema per se , contrariando o método at é agora consagrado , o
qual tem de ser aperfeiçoado e desbastado em vários aspectos.
Assim acercamo-nos daqueles pontos a partir dos quais a pró pria
continuaçã o do trabalho só se processará com o desenvolvimento
de discussões e debates em outros campos e escolas.
Interna e paralelamente , temos aqui o Pensamento e a Ima-
gem , a sentença e o exemplo , a pergunta que antecede a res- INTRODU ÇÃO
posta, o resultado com fundamento, e a <rrco <jTpocpT) será , peda-
g ó gica e estilisticamente , Condutora e Figura . I
Para finalizar , não deixaremos de sublinhar que o caminho fty
cientifico sé rio , aquele que não se det é m em í nfimos detalhes ,
possui um princí pio irracional que pode , contudo , ser ponderado, A ciê ncia da Literatura est á orientada em três direções. Para
ser levado em consideração , na medida em que supera os domí - empregar uma terminologia algo corriqueira , poder-se-ia dizer que
nios comuns da mente é um modo ideológico de pensar ou um a sua miss ã o é esté tica , histórica e morfológica. Em termos mais
credo. claros : a ciê ncia liter á ria procura interpretar os fenômenos lite-
Por isso , somos de opinião que os que escreveram e ajuda- rá rios segundo a sua beleza , o seu sentido e a sua forma .
ram a divulgar o Verbo falado em dissertação e em livro , com Conquanto essas três tarefas estejam destinadas a constituir
essas palavras indagaram de novo , e foram ensinados, receberam uma trindade , pode-se-lhes aplicar o conhecido ditado: cada um
e deram o Todo como resposta e ensinamento , como exposição , por si e Deus por todos. Em outras palavras: elas empenham -se
interpretação e tratado final —
ÉTcépavaJ , xai TOUTO Tt á pavov .
á XV é TCE íTTEP ye xat TaXXa cm apreender conjuntamente o fen ô meno literá rio em sua totali-
dade , trabalhando cada uma de acordo com o m é todo que lhe
é próprio. Por outro lado, se se atentar para a evolução histó-
7 de agosto de 1929 rica da cr í tica literá ria , fica-se com a impressão de que cada um
DRA. ELISAJJETH KUTZER DR . OTTO Gõ RNER
desses mé todos tende a exercer hegemonia sobre os demais , duran -
te algum tempo .
No século XVIII , toda uma parte da ciência literá ria se
dedicava predominantemente à investigação esté tica ; de Christian
Wolff at é Kant , ela dominou todas as correntes e contracorrentes
que agitavam ent ão a “ doutrina do Belo ” na Europa inteira . Dei-
xemos de lado suas considera ções gerais sobre a essência do Belo
e limitemo- nos à s considerações em torno da invenção e classifi-
ca çã o do Belo e do modo de julgá-lo; ver-se- á ent ã o que essa

I
orientaçã o esté tica ou , melhor dito , essas escolas est é ticas
pois creio que o plural será aqui mais conveniente — deram- nos
a teoria dos gê neros literá rios. Os representantes dessas escolas
realizaram profundas pesquisas sobre as leis e os efeitos esté ticos
das categorias lí rica , é pica , dram á tica e didá tica ; e dentro desses
gêneros principais , procuraram delimitar e determinar , sempre do
ponto de vista esté tico , subgê neros tais como a elegia e a ode ,
a epopéia e o romance, a com édia e a tragédia , o poema didá tico

12 13
c o epigrama etc. Não faltaram as censuras a tal mé todo Uns
afirmavam que ele se desenvolvia por via dedutiva: em vez de
- do gênio. O gê nio é “ um dom natural e inato do espírito que
excede a normalidade em todos os aspectos e n ão pode ser apren-
partir das pró prias obras e de apreci á -las com o intuito de apreen- dido nem adquirido”. O gê nio reú ne a imaginação criadora e a
der-lhes a essê ncia art ística , estabelecia princí pios puramente espe- força original que d á forma às coisas , de tal maneira e a tal
culativos para aplicá-los depois — e de modo apenas fatual .
Outros criticaram o seu aspecto “ iluminista ”, afirmando que as
ponto que a palavra “ criador ” , só por si e em seu mais profundo
sentido, é a ú nica capaz de designar adequ ádamente o labor do
escolas esté ticas ignoraram o elemento irracional da arte ao consi- gê nio . A elaboração dos produtos da intenção criadora exige , sem
derarem a “ criação poé tica ” um dos modos, entre outros, do d ú vida , reflex ão , planificaçã o, adestramento; mas a condição bá-
pensamento e ao fazerem da Raz ão o juiz supremo. sica é uma perfeita disposição mental . A obra adquire significado
Não procuraremos saber em que medida essas censuras atin- pelo ato do gê nio, assim como o universo adquire sentido pelo
gem o próprio mé todo ou se assentam numa inevitá vel incom-
preensão por parte dos defensores de uma outra direçã o , dos
A ato de seu criador .
Não é este o lugar apropriado para acompanhar a evolução
adeptos de um outro mé todo. Será mais frutuoso assinalar que do conceito de “ gê nio ” . Queremos t ãc-só assinalar um ponto que
os teóricos de esté tica do século XVIII realizaram , em conjunto, n ão é de somenos import â ncia para o desenvolvimento metodo-
uma not á vel tentativa ( apesar das polê micas que os dividiram ) lógico da ci ência literá ria c que é o seguinte: na Alemanha , somos
de adaptaçã o ao espí rito moderno de toda a teoria da Arte her- propensos a crer que esse conceito teve seu car á ter mais acen -
-
dada da Antiguidade ; e , ao fazê lo , empenharam -sc em definir tuado durante o per íodo que, bem ou mal , se denominou Sturrn
certas noções de gê neros e estabelecer o significado est é tico und Dratigy quando , de fato , foi na Inglaterra que melhor se
desses gêneros, assim contribuindo para o avanço da ci ê ncia lite- pôde observar seu florescimento homogé neo e ininterrupto , ao
rá ria e da pró pria Literatura . longo de uma linha que vai de Shaftesbury a Shelley. Da Ingla-
Não devemos esquecer uma coisa : todas as escolas est é ticas
setecentistas da ciência literá ria estavam firmemente persuadidas
de que podiam e deviam exercer , graças à sua teoria , uma influ -
ent ão sobre a mentalidade européia do século XIX
conseguinte , sobre a ciê ncia literá ria — —
terra , o conceito de gê nio passou à França , de onde exerceria
e , por
uma influ ê ncia que con -
ê ncia ativa sobre a vida real , isto é , sobre a arte contemporâ nea . tinua ativa no século XX. A frase de Shelley , segundo o qual
Gottsched e a escola su íça , os escoceses e ingleses , Marmontel e o poeta é “ the happieste , the hest , tbe wisest and the most illus-
os enciclopedistas na Fran ça , Johann Adolf e Johann Elias Schle- trious of men ” [ o mais feliz , o melhor , c mais sá bio e o mais
gel , Mcndelssohn , Lessing, Sulzcr e muitos outros na Alemanha , ilustre dos homens ] * perdurou mais tempo que muitas afirma-
procuraram , enfim , cada um por seu lado e a seu modo , fundar ções contemporâ neas do jovem Goethe , afirmações amplamente
uma Poé tica eficaz, um sistema solidamente alicerçado da arte superadas , mais tarde, pelo pró prio Goethe.
poé tica que , embora deduzido , se propunha exercer , em todo o Seja como for , se extrairmos desse conceito de gênio suas
caso , uma ação valiosa sobre a evolu ção da poesia de seu pa ís e consequ ê ncias metodológicas, a primeira tarefa da ciê ncia da Lite-
de seu tempo. ratura consistir á em classificar historicamente , sob todos os aspec-
tos, esses homens dotados de talentos naturais e superiores, simul-
taneamente com suas realizações í mpares, isto é , tedos esses cria-
A par dessa est é tica pragmá tica , vamos encontrar igual- dores com suas criações. Penso ser de conhecimento geral que
mente , j á no século XVIII , uma ciê ncia literá ria que destaca o a histó ria liter á ria do século XIX chegou , realmente, a tal con-
sentido da obra e cuja interpreta ção se radica , como sabemos, clusão. Basta abrir qualquer manual para nele encontrar uma his-
na noção de Gê nio. Sc bem que a origem dessa orientaçã o remon- tó ria dos poetas e de seus poemas, uma sucessão cronológica de
te ao Renascimento , foi necess á rio aguardar o início do Roman- biografias em que as realizações poé ticas são ordenadas , por sua
tismo para assistir a seu completo florescimento . Ela opôs à I vez , de forma cronológica.
ars poética uma ars poetaey à poé tica um poeta . O “ poeta ” é
a representação suprema do gê nio, a poesia é a mais alta criação (*) Em inglês no original. ( N . do T. )

14 15
Esse método escapou do perigo da trivialidade ao conju- da vida espiritual , a ciê ncia da essê ncia do espí rito e de suas
gar-se estreitamente com outras disciplinas hist óricas e com a criações , a ciê ncia dos valores e finalidades espirituais. A inter-
história das culturas, as quais estavam sendo investigadas em pretação procurava dar à inteligê ncia da Poesia a condição de um
profundidade por toda a parte . Mas sua tese fundamental c processo mental e integrar a poesia , como totalidade, na história
original , a saber , que o poeta é o gê nio, isto é, o criador e respon - do espí rito . Entretanto, esse mé todo tampouco resultou numa
sável ú nico pela obra ímpar , diluiu-se simultaneamente nessa con- observação em que a obra estivesse separada do autor por uma
juga çã o. O poeta histórico tornou -se cada vez mais um homem insólita inversão de perspectiva ; deixou -se dc recorrer à vida c
entre outros , e um dos problemas que mais ami ú de inquietou os personalidade do poeta para explicar-lhe as produ ções mas, cm
positivistas foi , justamente , o de determinar a situaçã o e a res- contrapartida , sua personalidade e a sua vida passaram a ser dedu-
ponsabilidade do poeta . É um espet áculo curioso ver essa é poca zidas e explicadas a partir do significado espiritual da sua poesia .
t ão individualista em seu comportamento exterior despojando ao
mesmo tempo o indiv íduo dos elementos essenciais de sua indi - I. Num certo sentido, atingiu-se desse modo um objetivo oposto
à quele a que se visava com o conceito de gê nio ; mas foi alcan -
vidualidade — como se vê na combinaçã o “ Poeta e Homem ” .
Depois da curva ascendente que leva de Shaftcsbury ao Sturrn
çado de tal forma que n ão houve por que modificar o m é todo.
Quer o m é todo, cuja finalidade é interpretar e apontar um sen-
und Drang ou a Shelley , o caminho volta a descer , em maravi- tido, parta do artista e de sua obra ou parta da obra e do seu
lhosas circunvolu ções, de Shelley a Hippolyte Taine. N ão pre- autor , considera ele sempre que o objeto “ histórico ” de suas
tendemos descrever aqui em pormenor tais volutas. Digamos pesquisas assenta nessa dualidade conjugada . Sua outra diferen ça ,
que essa é poca se esforçou por definir uma obra literá ria pela em rela çã o à esté tica pragm á tica , é que o mé todo permanece
história , a sociologia e a psicologia ; convé m todavia acrescentar
que essa definição continuou a passar pelo autor da obra . Como
“ puramente cient ífico ”— na medida em que n ão degenere em
diletantismo ; ao invés dos esteticistas do século XVIII , os repre-
homem , o poeta era um produto da raça , do meio , do tempo , sentantes deste m é todo jamais acreditaram , quaisquer que fossem
da hereditariedade, das circunst â ncias económicas ou de outras as suas divergê ncias, que pudessem influenciar a evolução da
circunstâ ncias . . . Mil correntes do passado e do presente o arte viva ; ali ás , nunca tentaram fazê-lo.
modelavam , influ íam sobre ele, decompunham-no e , portanto, era
necessá rio procurar , no condicionamento de todas as parcelas de
seu ser humano , as condições propiciadoras de tudo o que ele A par dessas duas correntes, uma terceira orienta ção tomou
engendrava. Expliquemos o homem — —
dizia-se , considere-
mo-lo filho de seus pais , neto de seus avós , criatura de sua é poca ,
gradual mente consciê ncia de sua missão e procurou dotar-se de
m é todo próprio.
engendrado por um meio e exposto à influ ê ncia das circunst â n - “ Para designar o complexo da existê ncia de um ser real , o
cias ; decomponhamo-lo ainda em sua psicologia e vejamos como alem ão possui a palavra Gestalt [ forma ] . Nesta palavra est á
esse todo condicionado reage aos acontecimento exteriores
teremos ent ão esclarecido a gé nese de suas obras . Assim , pen -
— abstra ído o aspecto de mobilidade e admite-se que uma conexão
das partes componentes se formou , est á tica , fechada e perma-
sou -se durante algum tempo que essas obras n ã o tinham outro nente, em seu cará ter.”
sentido sen ão ser a expressão, lograda por um talento incomum, Esta frase de Goethe pode servir de base a uma investi -
de todas as condições histórico-culturais que haviam convergido gação morfológica em mat éria de ciência literá ria , tanto quanto
numa individualidade. em outros dom í nios. É verdade , para a totalidade dos fen ô-
Uma convicção recomeçava , pois, a impor-se: a de que uma menos liter á rios e para outros fenômenos , que a forma que se
obra de arte, uma grande Poesia devia representar tudo isso, por trata de criar é “ a manifestação das coisas como fenômenos típi -
certo , mas também outra c maior realidade espiritual . Uma voz cos c morfologicamente determinados , a força que age no seio
lan çara a expressã o “ fenomenologia dc espí rito ” e essa voz n ã o de todo e qualquer acontecimento”.
clamara no deserto. Desse modo , fazia sua aparição , no exame

Se for eliminado tudo o que está condicionado pelo tempo
das obras de arte , a filosofia do espí rito, a ciê ncia dos princ í pios ou tem movimento individual , poderemos , cm Poesia na

16 17
sua acepçã o mais ampla — estabelecer igualmente a forma , cir-
cunscrevê- la e conhecê- la em seu car á ter fixo. Para cada poesia ,
| Se fizéssemos a história do mé todo de interpretação pelas
vy formas, ver íamos que desde o século XVIII se encara a possibi -
| poder-se-á indagar em que medida as forças constitutivas e limi- lidade de construir uma ciê ncia liter á ria a partir da linguagem .
^ tativas da sua forma redundaram numa composição possí vel de
ser conhecida e distinguida das demais ; em que medida uma
A tantas vezes citada frase de Hamman , cm Aestbetica tn nuce,
“ a Poesia é a lí ngua materna do gê nero humano” , já cont é m a
forma se aglutinou e se realizou nessa poesia. Em face da tota - semente de tal ponto dc vista. A obra dupla dos começos de
lidade da Poesia , perguntamo-nes em que medida a soma das • Herder também tem aqui seu lugar: o célebre tratado sobre a
formas reconhecidas e distinguidas constitui um princí pio de origem da linguagem e, de outra parte , os Alten Volksliedern
ordem , de v í nculos de conjunção e de articulações internas
isto é , um Sistema. Determinação e interpretaçã o das Formas ,
— [ Antigas Canções Populares ] , onde ele apresenta exemplos de
uma linguagem que, ainda próxima de sua origem , constitui uma
eis a tarefa desse mé todo. “ coleta de elementos de poesia ” ou um “ lé xico da alma que é,
Os estudos que compõem este livro tem o propósito de reali- ao mesmo tempo , uma mitologia e uma epopé ia maravilhosa das
ações e discursos de todos os seres ”. Finalmente , encontramos
zar tal tarefa , a t í tulo de ensaio para uma determinada parcela
dos fenômenos literá rios. aspectos semelhantes no conceito de “ poesia da natureza ” , de

Jacob Grimm sobre o qual voltaremos a falar em breve.
Esses esforços n ã o lograram, entretanto , dar uma defini ção
decisiva das formas. Se , de nossa parte , quisermos dar sequê n-
cia ao trabalho assim iniciado , deveremos esforçar- nos , em pri -
II meiro lugar , por estabelecer cm pormenor o itinerá rio que vai
da linguagem à literatura , utilizando todos os meios que a ciê n -
cia da linguagem coloca à nossa disposição ou , para usar os termos
A esté tica e a crí tica interpretativa tê m por mé todo, pois, da teoria do espírito objetivo, será necessá rio observar quando,
estudar seu objeto a partir, em primeiro lugar e principalmente,
da obra liter á ria acabada ; de modo geral , só conhecem e reco-
nhecem a “ poesia ” quando esta recebeu acabamento ú nico e
onde e como a linguagem pode converter-se
em “ constru ção”, sem deixar de ser signo.
— e converte-se —
definitivo num “ poema ” . Por outras palavras, o poeta e a poesia Da í resulta teda uma sé rie de problemas metodológicos.
ou a poesia e o poeta é que constituem o verdadeiro objeto de Devemos remontar sistematicamente às mais elevadas obras
semelhantes investigações. de arte, a partir das unidades e das articulações lingu ísticas , tal
como nos são dadas pela gram á tica , pela sintaxe e pela sem â n -
Isso é perfeitamente compreens í vel . Pois como poder íamos tica ; para tanto , utilizaremos as disciplinas da estil ística , da ret ó-
censurar a uma “ teoria do Belo ” captar a beleza onde a encon - rica e da poé tica , sendo as nossas observações realizadas através
tre com o seu cará ter mais acentuado ; como poder íamos aceitar da comparação e repetiçã o de um mesmo fenô meno que se enri-
a influ ê ncia da literatura sobre a vida se n ão a concebêssemos quece ao passar para um ní vel superior e em decorrê ncia do
como “ arte ” ? Por outra parte , a corrente “ histórica ” , que con- fato de a força que constitui e delimita as formas dominar a
sidera sempre os produtos da literatura em relação direta com o totalidade do seu sistema , elevando-se de cada vez a um n í vel
seu autor , tem o mesmo ponto dc partida . superior. Poder-se- ia assim , para dar um exemplo , partir das
Se, pelo contrá rio, tentarmos conhecer e explicar forma figuras sint á ticas da l íngua para chegar à obra composta pelo artis-
do fenômeno literá rio, então a situação mudará de aspecto. Desde ta ou , ainda , definir o sentido dc tropo a partir do significado
que nos esforcemos por “ abstrair a mobilidade ” , a obra acabada , das palavras. Chegaríamos , desse modo , a conhecer o trabalho
a cria çã o í mpar e individual do poeta deixará de ser o princípio que se realiza com crescente firmeza à medida que muda de
e passar á a ser a conclusão das nossas pesquisas. Não apreen- n ível no extenso dom í nio da linguagem e da literatura , at é depa -
demos a “ poesia ” em sua fixa ção artística definitiva , mas onde rar-se- nos como unidade individual e definitiva cm sua realiza ção
ela ganha ra ízes , isto é , na linguagem . final .

19
Convirá , entretanto, debru çar- ncs també m sobre as Formas falamos de camponeses , artesã os e sacerdotes , e que tampouco
que , embora provenham igualmente da linguagem , n ão compor- consideramos esses três termos como n í veis de evolu ção numa
tam essa consolidaçã o final , ao que parece , e acabam por encon - sequ ê ncia cronológica . O que pretendemos designar por esses
trar-se num outro estado de agregação , se nos for permitida tal personagens é a divisã o de trabalho tal como se manifesta clara-
imagem . Penso naquelas Formas que n ão sã o apreendidas nem mente no universo e na linguagem .
pela estil ística , nem pela retó rica , nem pela poé tica , nem mesmo Vejamos como se opera tal divisão.
pela “ escrita ” , talvez ; que n ão se tornam verdadeiramente obras O camponês produz ; seu trabalho consiste em ordenar a
de arte , embora fa çam parte da arte ; que n ão constituem poemas, natureza de modo tal que o homem se converta em centro a
embora sejam poesia ; em suma , aquelas formas a que se d ã o cujo redor as coisas se agrupam . A natureza , essa realidade que
comumente os nomes de Legenda , Saga , Mito , Adivinha , Ditado ,
Caso , Memorável , Conto ou Chiste . *
dura e persiste, é admitida na vida do homem — e como a vida
é renova çã o constante, a natureza renova-se nessa vida , mas sem
Se nos consagramos inicialmente a essa segunda tarefa , sem que o curso dos processos naturais seja embaraçado. Quando o

^ desprezar a primeira , é porque tais formas tê m sido maltratadas


pela cr í tica histórica e pela crí tica est é tica . A história literá ria
compreendeu perfeitamente que as ditas formas existem mais ou
agricultor cultiva a terra , a natureza f é rtil converte-se em cultura
e em gado. O agricultor semeia o gr ão em sulcos bem orde-
nados : brota uma seara ; semeia gr ãos num horto e brota uma
menos nas obras de arte e que, para dar um exemplo concreto, floresta ; conduz a vaca ao touro , a égua ao garanh ão, e nascem
- n ão se poderia falar de um Nikelungenlied sem levar em conta vitelos e potros. Ao criar gado, ele submete a natureza bruta e
uma gesta dos Nibelungos ; mas , no seu m é todo de interpretaçã o indisciplinada a uma ordem . Numa fazenda , h á mais que o est á-
do sentido , negligenciou ela a elucidaçã o do significado dessas bulo, o campo de cultivo, a floresta , o pasto, a horta ou o pomar.
formas, deixando para a etnografia ou outras disciplinas mais ou Os animais vão juntar-se ao fazendeiro. Não só o cão, que talvez
menos estranhas aos estudos liter á rios o cuidado de ocupar-se tenha sua import â ncia no trabalho de cria ção, mas també m o
disso. Existe , pois , um atraso a recuperar , e , que mais n ã o fosse gato , a andorinha que faz ninho no beiral do telhado , a cegonha
para preencher essa lacuna , dedicaremos esta obra , primeiro capí- sobre a chaminé e a aranha que se aloja no celeiro . O vento
tulo de nossa pesquisa liter á ria , à s Formas que se produzem na carrega sementes e plantas — plantas medicinais c de ornamento ,
linguagem e que promanam de um labor da pró pria l íngua , sem mas també m todas aquelas que se agarram ao homem , aparen-
intervenção — por assim dizer — de um poeta .
.
temente sem utilidade alguma , e o seguem onde quer que ele
vá , como a tanchagem e a chicória. Até os parasitas, as ervas
daninhas e os insetos nocivos vê m fazer-lhe companhia , explorar
a nova situação que se produziu , entrar

— num certo sentido
em sua cria ção dom éstica , passando da natureza à vida . Tudo
III o que na natureza se encontra vinculado a um ponto do espaço
ganha mobilidade : as á rvores e os arbustos viajam de um conti-
De que modo imaginar a linguagem como trabalho ? nente a outro e quando se fala do campo alude-se , finalmente ,
Vemos imediatamente a imagem de um grupo humano de à natureza reagrupada em redor de um cultivador, gravitando em
trabalho e , ao mesmo tempo , a imagem daqueles que realizam torno dele e integrada na ordem por ele criada .
diversos labores no seio dessa comunidade: o camponês , o artesã o, O artesão fabrica ; o seu trabalho consiste em mudar a ordem
o sacerdote , o agricultor , o fabricante e o inté rprete. das coisas dadas na natureza , de modo tal que elas deixem de
Cultivar, fabricar e interpretar sã o as três atividades que ser naturais. Os processos naturais são interrompidos e constan -
alicerçam a unidade dc um grupo de trabalho . temente perturbados. O que ele renova torna -se verdadeira -
mente novo . Em primeiro lugar , apossa -se das coisas produzidas.
Seria desnecessá rio dizer que n ão temos em mente uma teo- Os grãos de cereais deixam de servir para germinar novos cereais;
ria etnológica ou uma classificaçã o das formas económicas quando são peneirados, triturados , moídos , molhados , cozidos , e essa

20 21
massa infecunda converte-se em pão. Os troncos que cresceram nhada no beiral da casa , a cegonha empoleirada na chaminé; que
na lloresta s ão derrubados , serrados , transformados em tá buas, d ã o elas aos moradores da casa , que lhes levam ? E a rosa , a
vigas , andaimes — e temos uma casa ou uma carroça . Mas o
artesão vai além das coisas produzidas ; apanha pedras para erguer
murta e o l í rio do jardim , que t ê m a dizer- nos ?
É preciso esperar o trabalho de interpretação do sacerdote
um muro , esfrega um calhau contra outro para que salte a fa ísca para que o labor se complete , em seu todo . Existia no alem ã o
e brote o fogo. Os ossos e as espinhas dos peixes convertem -se antigo uma palavra para designar o conceito de “ completo ”
em punhais , flechas ou grampo de cabelo, o chifre do boi ( vollstàndig ) ou de “ todo ” ( g a t:z ) \ essa palavra , que pouco
transforma -se em trompa ou taça , a tripa de carneiro cm corda mudou de significado no m édio alem ão cl á ssico c só conservou
de arco ou de lira . Ele tritura plantas e metais para obter cores ; seu sentido original no baixo alem ão e no holand ês , é heil . Não
fermenta os alimentos para ter bebidas inebriantes. Não se limita se poderia caracterizar melhor o trabalho do sacerdote dc que
aos objetos dados na natureza , mas apodera-se també m de forças dizendo que é heil , isto é , são , j á que esta palavra indica , ao
invisíveis , deccmpõe- nas , altera-lhes a ordem , subjuga - as e utili - mesmo tempo , o segundo aspecto da sua atividade. Ao inter -
za -as a seu bel- prazer : obriga a água e o ar a lhe entregarem sua pretar o universo , o sacerdote torna -o s ão , isto é, completo , intei-
energia e a converte em movimento e luz. ro , sanus. Mas , ao dar- lhe sa úde, torna-o sagrado , lorna-o santo.
Para que todo esse trabalho de cultura e fabricação seja Para que uma coisa seja coerente e persistente , importa conferir-
-lhe , desde o in ício , um sentido sagrado. O primeiro dia do
^
possí vel , entretanto , é necessá rio , ainda , que um terceiro traba -
0 lho, o de interpretação, o dirija constantemente; que todo o ano novo é sagrado, assim como o reinicio das aulas. O primeiro
trabalho possua um sentido que permita ao homem impor-se ; c
que a compreensão desse sentido conduza o trabalho , como tal ,
sulco rasgado num solo inculto é sagrado — e existem idê nticos
v ínculos entre sa ú de e santidade , entre culto e cultura , entre
à sua plena realizaçã o. Ou , para manter a nossa terminologia : có lera , cultus c Kultur . O primeiro sulco implica a totalidade
é necessá rio adicionar ao trabalho que vincula as coisas a uma dos seguintes, a colheita futura , a fertilidade da coisa produzida .
ordem , bem como àquele que altera a ordem das coisas , um ter- Se o objetivo é construir uma casa , coloca-se a primeira pedra ;
ceiro trabalho , que é a prescrição da ordem . Para que se possa esta ação significa e santifica todas as ações subsequentes , por-
dizer que o conjunto do trabalho foi realizado é mister ter inter- quanto a primeira pedra cont ém e resume todo c significado da
pretado primeiro o modo por que as coisas são cultivadas e fabri - casa . Uma vez colocada , as outras se seguir ão; sua solidez ser á
cadas , assim como o resultado da cultura e da fabricação. a das outras , e a casa , com tudo o que nela est á impl ícito , desde
Ao camponês e ao artesão veio juntar-se o sacerdote. Para o repouso de seus moradores até a autoridade apaziguadora do
que o campon ês pudesse admitir em sua vida a natureza , tomada pai de fam í lia , é edificada sobre essa primeira pedra . Todas as
em seu processo natural ; para que o artesão pudesse interromper prescrições da ordem se alojam nela . Tais ações fazem -se acom -
panhar das solenidades de festa ou jejum , pelos quais se recorda
a natureza e sua ordem a fim de produzir a novidade

necessá rio que o sacerdote interpretasse o trabalho deles , desde
era
a integridade primordial e se interpreta o significado das a ções
os prim ó rdios até suas consequ ê ncias extremas e derradeiras , no até sua consecução final . Todas as forças ativas e todos os atos
mais alto sentido. \
presentes na cultura , tudo o que nela adquire forma , deve ser
Como posso ligar as vigas e as pedras de modo que me consagrado por uma interpretaçã o para que se torne “ são” e
protejam da natureza , a mim , aos meus familiares e aos meus possa , a todo o instante , tornar-se “ sagrado ” , a partir dessa
bens , que sejam o meu abrigo contra as intempé ries e consti- [ interpreta ção ; toda açã o cultural é , finalmente , um ato de culto ;
tuam um forma , um domic ílio, uma casa ? Mais do que isso: | todo objeto de cultura é objeto de culto.
que significa uma casa , um lar , quando alberga uma fam ília , sua Est á claro que n ão fazemos aqui hist ória das culturas na
vida e seus bens , de pais a filhos ? E ainda mais : que significa acepção dc histó ria das evolu ções ; mas convém sublinh á - lo por-
essa casa , quando ela se reflete em pousadas de outra espécie: que as ci ê ncias hodiernas t ê m o costume de se compreenderem em
casa de Deus ou última morada de um defunto , o templo e o sentido contrá rio. Portanto, n ão podemos dizer que o homem
ata ú de ? Ou , para pormenorizar : que significa a andorinha ani- começou por cultivar , continuou fabricando c acabou por inter-

22 23
pretar ; n ão haveria sentido algum em apurar se um povo perma - linguagem. Todo o trabalho feito pelo agricultor , pelo artesao e
neceu no cultivo , persistiu em sua fase agr ícola . Não é nem pelo sacerdote faz parte da vida , passa com ela , rcnova-se nela
poderia ser esse o caso. Sei perfeitamente que a evolu ção da ou sò possui consistê ncia nela . Mas o trabalho da linguagem - ”

economia humana atravessa v á rias fases , mas o que se pretende confere- lhe nova consist ê ncia na pró pria linguagem .
aqui é compreender o trabalho , no pormenor de suas formas e
na sua totalidade ; neste sentido, é possível conhecer o homem Isto ocorre de dois modos. Em primeiro lugar, a lingua -


como agricultor , artesão e sacerdote , em tudo o que ele adquiriu gem atribui um nome a tudo o que foi cultivado, fabricado , inter -
pelo trabalho . pretado . Depois e mais profundamente —
, a própria lingua -
gem é um princí pio de cultura , de fabricação e de interpretaçã o ,
Cumpre igualmente sublinhar isso porque vamos comparar
dc novo essas três esferas. Elas são concê ntricas , \ mas sua peri - no qual se produz , com a maior especificidade , a vinculação a
leria apresenta uma amplitude cada vez maior . J á vimos que a uma determinada ordem.
esfera de trabalho do artesã o supera a do agricultor . Ele n ão lpsen mostrou , em seu “ Coment á rio ” a Scballanalytischeti
fabrica apenas o pão com trigo colhido nos campos; vai muito Versucben [ Ensaios de An á lise Fónica ] ( Heidelberg , 1928 ) , a
além da coisa produzida e inclui , em seu trabalho , tudo o que exist ê ncia de um “ ar ” que engloba , que penetra e envolve tudo ;
acredita poder alcançar e utilizar na natureza . A esfera amplia- o homem respira-o e, com ele, tudo o mesmo ar cerca ; a respi-
-se de novo com o sacerdote , c qual n ão se contenta em inter- ração torna-se sonora na expira ção e esses sons cont ê m o nome
pretar o que é cultivado e fabricado ; seu trabalho de interpre- das coisas. Em seu trabalho de denominação , a linguagem é t ão
tação estende-se a tudo o que n ã o o c - ou n ão pode ser ; ele
constante quanto inspiraçã o c expiração, t ão onipresente quanto
interpreta o Sol , a Lua e as estrelas ; suas interpreta ções exce- esse “ ar ” a que nos referimos.
dem as formas visíveis e sensíveis, até atingir o invisível e o
intangí vel . Mas nometn est omen! A linguagem cria , é uma semente
Eis , pois , diante de nossos olhos , esses três personagens, em que pode germinar e , neste sentido , cultiva . Sabemo-lo e senti -
seus limites espaciais , em seu movimento espacial . O agricultor mo- lo em particular , sob um aspecto ingénuo e instintivo, naque -
faz parte da terra , encontra-se no campo; c , ao deixá - lo , deixa de les instantes em que, temendo ter prolerido uma palavra que
ser agricultor, camponês. O artesão percorre o mundo como produziria efeito indesejá vel , murmuramos “ eu n ão disse nada ”
aprendiz , depois instala -se onde termina o campo , onde muda a e tentamos bloquear, por meio de uma ação qualquer , a força
ordem dc todas as coisas , onde estas são subtraídas â natureza , , geradora da palavra. Dá-se a isso o nome de superstição , mas é

onde se alteram os processos naturais da vida ; ele vai para o preciso entender que essa pretensa superstição esconde uma sabe -
bairro dos artesãos, para a cidade. Em certo sentido, o agricultor doria : a de que as palavras podem cumprir-se. Sc estudarmos
est á só com a lamília; quando se junta a outros é, quase sempre , a evolução sem â ntica das palavras alem ãs lobeti ( louvar ) , geloben
por razões de artesanato; o artesão une-se a outros artes ã os na ( assegurar , prometer ) , glauben ( crer , acreditar ) e erlauben ( per-
corpora ção ou na cooperativa . O sacerdote , finalmente , c ao mitir , consentir ) , as quais derivam todas da raiz * lcubht vere -
mesmo tempo fixo e m ó vel ; n ã o percorre o universo , mas escolhe mos que indicam sempre a possibilidade dc algo ccncrctizar-sc
um ponto donde o seu olhar possa abrangê-lo todo ; est á só na ou produzir-se pela linguagem . Do mesmo modo , a evocação
medida em que n ã o se junta a outros ; simultaneamente , poré m , n ão é meramente indicação ou manifestação de um fato. Signi -
constitui o centro de uma multid ã o , de uma paróquia , reunida fica que se chama ( vocare ) uma coisa de tal modo que ela nasce ;
cm torno dele. E esssas três figuras s ã o evocadas com nitidez é assim , por certo , que se evocam os espí ritos em muitas regiões
e total expressividade pelas três palavras: Fam ília , Corporação e da Alemanha . É exatamente assim que a linguagem permite
Paróquia. unir água e fogo , evocando-os . X ó yoJ aà pZ, è y éveTO sabe -
mos que o verbo pode-sc fazer carnc e habitar entre nós. No
Todo o irabalho que se realiza por interm édio do campon ês , —
) que se costuma designar por magia palavra que o positivismo
do artesã o e do sacerdote é , uma vez mais , realizado através da —
I interpretou mal e usou de m òdcTainda pior , importa compre
ender o trabalho de produ ção da linguagem , a linguagem como
-
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25
produtora. E essa produ çã o consiste, uma vez mais , em vin-
cular as coisas a uma ordem , o que as faz entrar e serem admi -
lho de interpretação da linguagem
“ conhecimento ” e “ pensamento ”.
— , empregamos os termos

tidas na vida do homem sem impedir- lhe o curso natural . O homem encontra-se perante uma diversidade de fenôme-
Se a linguagem cultiva , ela també m fabrica ; se uma pala - nos ; descobre semelhan ças entre eles , procura reconhecer neles
vra pode realizar-se , també m pode gerar o novo , mudando a os elementos comuns . Indiquemos um exemplo, remetendo o
ordem das coisas. A linguagem fabrica formas ao realizar o leitor para os estudos de Porzig ( “ Bedeutungsgeschichtliche Stu -
ato poé tico , no verdadeiro sentido desta palavra . O que a lin - dien ”, Indogermanische Forschungen , Vol. 10 , 2 ) e de Ipsen
guagem fabricou tem uma exist ê ncia t ão sólida quanto , no dom í- ( “ Besinnung der Sprachwisscnschaft ” , h:dogertnanisches Jahrbu-
nio da vida , as fabricações do artesão. Ulisses , D. Quixote , ch , Vol . 11 ) .
Pickwick , todas estas formas da linguagem conhcccmo-las melhor O homem considera as vá rias fases de um corpo celeste que
do que muitas pessoas de nosso cí rculo de relações sociais. Hou- passa de delgado crescente a um grande disco ; vê aí uma forma
ve juristas conhecidos que estudaram o pacto celebrado entre que se preenche , que se realiza , e a realização dessa forma passa
Fausto e Mefist ófcles para determinar sua validade . Esses perso- a ser o crité rio por ele usado para observar a realização do tempo.
nagens c esses fatos recordam demasiado , talvez, certos escritores Existe nele um sentimento que o impele à consecu ção e um esfor-
para que se aceite plenamente terem sido fabricados pela lingua - ço que tende a substanciar todo objeto de pensamento para con -
gem . Citemos ent ão Barba Azul , que n ã o pode ser associado a vertê- lo numa Forma . Ao mesmo tempo , ele sabe, como ser
nenhum nome de escritor , c assinalemos que muita gente conhece vivo , existirem forças que se expandem no decorrer dessa vida .
provavelmente melhor a hist ó ria de Sã o Martinho do que a situa - Mas como apreender numa unidade , e de que ponto de vista , o
ção pol í tica do dia . elemento comum a todas essas diversidades que , para ele , signi-
Quando a linguagem é ato poé tico, fala -se geralmente de ficam um universo de desenvolvimento e de realizaçã o ? É nisso
literatura, o que nos dá a transição que procuramos de in ício. que intervé m a linguagem ; ela interpreta e compreende tudo num
E sabemos que a linguagem , como trabalho que modifica uma signo; e esse signo, que é móvel como os fenômenos , mas con -
t é m , entretanto , o complexo conjunto dos fen ô menos , constitui
ordem , conduz ent ã o diretamente à literatura , mesmo que esta
n ã o provenha de um poeta dado nem esteja fixada cm determi- o centro de uma ordem de onde parte e para onde retorna essa
nada obra . Ao mesmo tempo, vemos a linguagem , ou a lite- -
realização A tal signo damos o nome de raiz.
ratura , apoderar-se de uma coisa , transformá-la e renov á - la , sendo
essa coisa — para empregar uma f ó rmula audaciosa — um dado
A raiz é uma palavra que — como se verá mais adiante
assinala determinada disposição de espí rito c que n ão explica

da natureza . suficientemente a situaçã o central do signo. N ão temos , por é m ,
Quando um homem vivo domina toda a sua é poca , ele existe intenção de mudar a terminologia , pois isso n ão é absolutamente
basicamente de duas maneiras, ao mesmo tempo. Conhecemos necessá rio ; a palavra raiz prova- nos, em todo caso, que a ativi-
dade de interpretação mergulha profundamente na linguagem .

um Mussolini pelas reportagens, pelas crónicas, pelas anedotas
mas ignorando em que medida ele coincide com o Mussolini A raiz que está na base de nosso exemplo, e que nos leva
“ real” o Mussolini in natura. Esses dois Mussolinis, o real e à esfera indo-germ â nica do conhecimento e dc pensamento , é a


-
o literá rio , são um para o outro o que o trigo é para o pão:
2 a linguagem peneirou -o , moeu -o , molhou -o e aqueceu -o : é uma
fabrica çã o poé tica . E aspira a ser interpretado, pois somente a
interpretação permite estabelecer as rela ções entre Mussolini T
raiz * meti . A ordem que ela constitui impôs seu nome às coisas :
mond ( lua ) para o corpo celeste , monat ( mês ) para a duração
que dele deriva , minne ( amor ) para o sentimento , meinen ( que-
rer dizer ) para o esforço de pensar , matin ou mensck ( homem )
c Mussolini II . para o ser animado. Se recorrermos a outras l í nguas indo-ger-
Chegamos , assim , ao terceiro trabalho da linguagem . Depois m ânicas, encontraremos ainda mais exemplos , a começar pelo
latim com mens ( mente, inteligê ncia ) e pelo grego, com

Jn produ ção e fabricação , falamos de um trabalho de realização
inven ção poé tica da linguagem . Neste terceiro caso o traba - |j.a ívop.ai, pá vTtJ e m ê nade. Vê-se , pois , que a raiz * men

% 27
n ã o constitui somente palavras como seu radical , mas capta tam - cida : passares e insetos amigos vieram acudir à jovem , o trabalho
bé m , mediante a forma , elementos distantes, obrigando-os a começou e, ao mesmo tempo em que a pilha , onde era imposs ível
entrar em sua esfera ; desempenha um papel de formação c con -
fere a objetos muito diversos
mentais — — realidades naturais ou instru -
o sentido de coisa que se realiza forçosamente pela
distinguir coisa alguma , ia-se transformando numa porção de
pilhas menores e identificá veis , os gr ãos de cada uma destas novas
pilhas eram valorizados e postos em evid ê ncia . Os elementos
adoção de uma forma ; assim , para citar apenas um exemplo, a imprecisos de uma grande confusão adquiriram ent ão cará ter espe-
palavra latina semeti , que é, quanto à sua etimologia , estranha cífico e tornaram -se eles mesmos , uma vez reunidos aos seus
às palavras que citei acima , adota , pela desin ê ncia rnnt o sentido semelhantes. Quando o sol se levanta e o seu poder m ágico se
de uma das coisas que, como a Lua , se arredondam e cuja força manifesta , o caos torna-se um cosmo .
se expande, ao mesmo tempo em que evoluem para a plenitude.
O homem intervé m na confusão do universo ; aprofunda ,
Recordemos essa primeira pedra , que cont é m e prescreve reduz , congrega ; re ú ne os elementos conexos , separa , divide, de-
cada ação da constru ção , bem como tudo quanto a casa é para compõe e repõe o essencial em pequenas pilhas. As diferen ças
o homem ; compreender -se-á ent ão como a linguagem , ao partir ampliam-se, o equ ívoco é eliminado ou então devolvido à univo-
da raiz , tanto pode sugerir tudo o que dela irradia como fazer cidade. Pelo desenvolvimento da explicação c o cerceamento da
entrar , numa mesma palavra , o que sc apresente de modo dife- classifica çã o , chega -se , pois, às formas fundamentais.
rente , como as tropas num campo de batalha ou as figuras num
tabuleiro de xadrez. O que acontece ent ã o n ã o é um conto, como veremos mais
adiante. Os elementos acumulados na confusão do universo n ão
possuem de in ício, uma forma pró pria , como os grã os da histó-
ria , ervilhas ou feijões ; o que se distingue aqui por diferenciaçã o
só adquire forma própria quando se opera a reuni ão durante a
decomposição. É justamente esse processo que pretendemos
1V
observar. Os semelhantes encontram -se ; só que n ão constituem
O leitor talvez ache que a imagem do universo constru ído conjuntos de pormenores , mas uma diversidade cujos elementos
se interpenetram , se unem , sc fundem para apresentar uma forma
pelo cultivo, pela fabricação e pela interpretaçã o , habitado pelo
agricultor , pelo artesão c pelo sacerdote , e em que a linguagem suscet ível de ser apreendida como objeto e que possui
mos — sua validade e coesão pró prias .
— dir ía -
reproduz o trabalho deles pela segunda vez, assemelha -se demais
a um universo de trabalho e de seus produtos, a um universo de Cada vez que a linguagem participa na constituição de tal
campos c sementeiras , de cercais e moinhos , de pã o e padeiros, forma , cada vez que intervé m nesta para vincul á -la a uma ordem
de vinhedos e pedreiros, de pedras c muros , em suma , a um
de Formas Literá rias.
-
dada ou alterar-lhe a ordem e remodelá la , podemos falar ent ão
universo de objetos, de pormenores.
Se assim e , bastará refletir um momento para perceber que
o universo n ão tem essa aparê ncia aos olhos do homem em geral .
Se este o conceber como um todo, em sua confusa diversidade,
em seu ru ído e turbilh ã o, talvez o veja mais como um deserto e
um pandem ó nio. Para compreender o universo , é necessá rio que
o homem nele mergulhe , que o sonde , que reduza
ou de outro — — de um modo
a infinita quantidade de seus fenômenos, que
intervenha nele para realizar uma seleção. O homem e o uni -
verso lembram - nos a histó ria daquela jovem que recebeu a incum
bê ncia de separar corretamente , durante a noite , uma pilha enor-
-
me de grãos de toda a espécie. A sequ ência da histó ria é conhe
-
28 29
desde os primeiros séculos de Cristianismo. N ão faltaram , duran-


te toda a Idade Média , esses Acta Martyrum ou Acta Sanctorum
e n ão apenas em livros que foram lidos mas també m na extra-
ordin á ria influencia que exerceram sobre as artes plásticas e a
literatura . Um exemplo t ípico foi a colet â nea Legenda Saneto-
rum ou Legenda Aurea ( onde a palavra “ legenda ” aparece pela
primeira vez ) , de autoria do bispo italiano Jacobus de Varazzo;
A LEGENDA essa obra , composta em meados do século X I I I , inaugurou um
tratamento particular da legenda pelas artes e , durante v á rios
1 séculos, exerceu not á vel influ ência sobre a novela italiana .
Foi no século XVII , é poca importante, aliás, para a defi-
ni çã o de santidade, que se elaborou a primeira colet â nea da
A primeira forma por mim escolhida é a Legenda porque vida de todos os santos reconhecidos pela Igreja Católica. Esse
aparece num setor determinado da cultura ocidental e se apre- trabalho, iniciado por um jesu í ta, o Padre Herberto Roswcide ,
,

senta como um todo bem delineado ; refiro- me aqui à legenda da Flandres , foi prosseguido, após a sua morte , por outro jesu í ta ,
crist ã sob a forma que adotou e conservou na Igreja Cat ó lica , o Padre Johannes Bollandus , que deu seu nome à colet â nea .
desde os primeiros séculos da nossa era at é os dias de hoje. Esta ficou geralmente conhecida como Acta Sanctorum ou dos
Não a consideramos, pois , na totalidade dos aspectos que pode Bolandistas; permanece inacabada, de vez que o n ú mero de san-
ter nem na sua generalidade mas , antes , num tipo acabado de tos n ão est á limitado no tempo c novos nomes podem ser adicio-
realizaçã o particular . nados a qualquer momento. Como o culto dos santos se vin -
cula ao ritual cotidiano da Igreja Católica , as Vidas e os Atos
É sempre vantajoso poder captar uma forma em seu verda- dos santos obedecem à ordem do calend á rio cristão. Os dois
deiro ponto de realização ; no nosso caso, existem vantagens, por- tomos dedicados ao mês de janeiro são da autoria de Johannes
tanto , em poder estudar a Legenda num meio c numa época em Bollandus e foram publicados em 1643. Em 1902 , a edição com-
que ela é quase a ú nica leitura existente, onde a sua validade pleta atingia 63 volumes. Após essa data , novos volumes se
constitui elemento essencial e onde ela é um dos pontos cardeais juntaram à lista . O empreendimento é hoje levado a cabo por
do céu vis í vel , melhor dito, o ú nico que nos confere uma orien - uma comissã o que passou també m a publicar , desde 1882 , a
tação . revista Analecta Bollandiana. No total , essa colet â nea contém
É verdade que essa vantagem també m envolve um perigo ; cerca de 25 000 vidas de santos; mas é preciso levar em conta
n ão se deve fazer da legenda medieval um simples paradigma e o fato de que , em muitos casos , a tradição transmitiu - nos diver-
cumpre evitar atribuir à imagem por ela proposta o valor de um sas vidas do mesmo santo, as quais sã o todas editadas pelos bo-
conceito que apreenderia a Legenda em toda a sua virtualidade. landistas.
L dif ícil comparar quando nos fixamos demais num fenô meno Dispomos , assim , de copioso material : a Idade M édia , cuja
particular. Neste caso, poré m , o perigo n ão é muito grande , pois mundivisã o continha , para empregar uma f ó rmula provisória , o
a vida moderna , assim como nossa vida pessoal , distancia - nos o santo e a sua legenda , começou por reunir as vidas dos santos
bastante da legenda católica para que possamos observá -la , preci- mas logo se registrou um esboço de atitude cient ífica ao empre-
samente, de uma certa perspectiva. ender-se a compilação da santidade, em toda a amplitude e diver-
Consideremos primeiro o universo da legenda medieval de sidade, sem deixar de permanecer , evidentemente , no seio da
modo sum á rio, tal como o oferecem nossas fontes. Igreja.
Deparamos compila ções mais ou menos importantes que reú- O santo e a santidade apresentam-se- nos, pois, num universo
nem as hist ó rias c depoimentos sobre a vida e os atos dos santos. particular cm que possuem um sentido mais fechado que o que
30 31
geralinente se lhes atribui ; mais fechado també m que o sentido “ candidato ” , designado desde o in ício do processo como servo
mencionado na Introdu ção, a propósito das palavras beil ( são ) e de Deus ( servus Dei ) *, praticou virtudes heroicas 2 , operou mila -
heilig ( santo ) . gres. O inqu érito é inicial mente conduzido pelo bispo da loca-
lidade onde viveu o “ servo de Deus ” ; depois, é examinado pela
Congregação dos Ritos. Se esse exame for satisfatório, passa -se
ent ão à “ beatificação ” .
Uma vez conclu ída a beatificação, o caso transita para uma
II

O que é um santo ? O que são os santos cujas vidas est ão


instâ ncia superior — mas na condição de que novos milagres se
produzam. Estes são objeto de novo exame; o processo é reini-
representadas de determinado modo nas fontes por n ós citadas ? ciado, recomeça a audição de testemunhas, são opostos argu-
Podemos considerá-los pessoas dotadas de existência pró pria e mentos contraditórios e , completadas todas as fases , o papa pro-
independente, mas eles també m formam uma comunidade baseada clama ex catbedra que o bem -aventurado é santo: Decernimus et
na solidariedade recí proca e no fato de o conjunto deles repre-
definimus N. sanctum esse et sanctorum catalogo adscribendum
sentar o ano litiirgico.
ipsumque catalogo hujusmodi adscribimus statuentes ut ab uni-
versali ecclesia . . . festum ipsius et officium devote et solenniter
A santidade est á , pois, vinculada à instituiçã o eclesi á stica , celebretur.
e a pergunta “ O que é um santo ? ” só faz sentido a partir desse
Acrescente-se que as virtudes atribu ídas ao bem -aventurado
v í nculo, o que nos leva a uma segunda pergunta —a primeira
do ponto de vista metodológico —que nos permitir á avançar : e submetidas a tal investigação promanam do sistema e do apa -
relho conceptual escolásticos ; são as virtudes teologais — f é,
como é que uma pessoa se torna santo ? Neste caso , j á n ã o se
parte do indiv íduo , mas da instituição que proclama a santidade. esperan ça e caridade — e as virtudes morais —
justiça , prud ên-
cia , estoicismo e temperan ça . A noção de milagre , que é o
Essa proclamação efetua -se segundo uma forma institu ída segundo conceito central desse estudo, tem igualmente o sentido
e fixada num dado momento histó rico. Tal forma , a canoniza ção, da definição escol ástica : IIla , quae a Deo fiunt praeter causas
foi regulamentada de maneira definitiva por um papa , Urbano nobis notas miracula dicuntur.
VIII ( 1623- 1637 ) , contempor â neo dos primeiros bollandistas .
Todos os tratados relativos à beatificação e à canonização
A canoniza ção é a declaratio pro saneio ( proclama ção de assinalam expressamente esse aspecto jur ídico do processo. E
santidade ) de um “ bem-aventurado” ( beatus ) . Canonizar é sublinham que é necessá rio aplicar aos candidatos à beatifica çã o
inscrever na “ lista ( cânon ) de santos” c atribuir ao novo santo o e canonizaçã o o mesmo rigor que num processo penal ; que os
culto que lhe compete ; entre outras coisas , esse culto comporta fatos devem ser provados ccm tanta exatid ã o quanto para a con-
a men ção do seu nome pelo sacerdote , durante a consagração denação por um crime. A promotoria de justiça est á igualmente
eucar ística . representada na Congrega ção dos Ritos sob a denominação de
Consideremos agora o procedimento de canoniza ção adotado “ advogado do Diabo ” , que não é oficial , mas habitual.
desde Urbano VIII . Assim decorre, desde Urbano VIII , a criação, a proclamação
Esse procedimento depende da Congregação dos Ritos , na de um santo . Quer isto dizer que antes n ão havia santos ? Claro
qual tem assento certo n ú mero de cardeais e outros dignitá rios que havia . O que ocorreu no século XVII , sob a influ ê ncia da
eclesiásticos ; em geral , o processo é aberto por indicação do Ccntra-Reforma , do Concílio tridentino e da Companhia de Jesus,
clero local , a pedido da gente que deseja ver elevada aos altares foi, t ã o-somente, a codificação final, rigorosa e talvez exterior , de
uma pessoa de cuja santidade est á convencida . O uso prevê um um fen ômeno que , até à Reforma , existia na Igreja crist ã de
prazo substancial ( 50 anos ) entre a morte do canonizá vel e a modo original e espont â neo. A forma estrita e jurídica dada ao
abertura do processo . Tal processo corre v á rias inst â ncias. Pri - processo é o desfecho de um processo cultural. O decreto assim
meiramente , deve ser provado — e por testemunhas — que o promulgado por uma instâ ncia espiritual , em consequ ência do seu

32 33
mandato, é a formulação de uma Forma ; e essa formulaçã o apre- Existe em nosso direito penal uma definição básica que reza
senta-se de tal modo que a forma transparece e é passível de assim : Nullum crimen sitie lege ; a lei escrita é a norma do ato
dedu ção. pun ível , assim como da punição , conforme o diz a continuaçã o
Para começar , pode-sc novamente deduzir dela certas infor- desse mesmo ad ágio : nulla poena sine lege. Mas , na esfera espi-
mações externas . ritual , tampouco existe equivalente para a legislaçã o judicial e ,
por conseguinte , é necessá rio procurar outra norma . Esta nos
é dada de duas maneiras:
Em primeiro lugar , o processo de canonização apóia-se , tal
III como o processo penal , em depoimentos de testemunhas. Entre-
tanto, num processo judicial , as testemunhas só tê m de falar
Num círculo restrito e estreitamente localizado, vive um

sobre fatos objetivos; a constataçã o do crime est á reservada ao
homem cuja conduta peculiar atrai as atenções dos que o cercam .
Seu modo de vida , sua maneira de ser , distinguem - no dos outros
corpo de magistrados seja qual for a sua composiçã o —
passo que no processo de canonização as testemunhas são, de um
, ao
homens ; ele é mais virtuoso que os outros homens e , sobretudo, certo modo , peritos , igualmente , que devem declarar em que
sua virtude difere ainda mais na qualidade que na quantidade. medida, na opiniã o deles, houve “ virtude ativa ” num servo de
O sentido dessa expressão revela-se no fato de o santo ser apre- Deus.
ciado a partir e por intermé dio de uma forma processual , o que


nos permite entrever desde j á todo o significado dessa forma que Em segundo lugar , e isto é muito mais importante, existe
é o processo, e compreender por que a comparam à do direito alé m do mais — uma norma superior. A virtude, em sua
qualidade de virtude ativa , recebe confirmaçã o do Alto, confir-
penal.
mação pelo milagre , por esse fenômeno quod a Deo fit praeter
Um indiv íduo pode ser mais ruim que seu vizinho e o direito causas nobis notas. E, uma vez mais , são as testemunhas que
penal n ão terá motivo algum para ocupar-se dele e de sua “ ruin - declaram sua convicção de que ocorreu verdadeiramente milagre.
dade ” , desde que esta n ão se manifeste num ato determinado, É certo que compete aos ju ízes eclesiásticos decidir , em última
desde que n ão tenha passado aos fatos, isto é, desde que n ão inst ância , se se est á em presença de poderes milagrosos e de
se tenha convertido em ruindade ativa ; só ent ão ele será conde- santidade.
n á vel , por força desse mesmo ato. Chamaremos a tal ato “cri-
me ” e definiremos o crime, em seu sentido mais amplo , como Acompanhamos, assim , a primeira parte do processo de
uma falta conden á vel . No crime, o malfeitor ou criminoso difere um santo , aquela que leva à beatificação. Como j á dissemos ,
qualitativamente dos outros indiv íduos ruins. É o crime que se deve transcorrer prazo substancial entre a morte do servo de
pune , e se condenamos os malfeitores , isso se deve a que nosso Deus e sua beatificaçã o; e, com mais fortes razões , antes da
direito penal identifica o crime com o criminoso. O processo reabertura do processo em segunda instâ ncia , para a canonização.
penal n ão tem de examinar , pois , se o ré u é ruim ou n ão, mas se Durante esse período, de muitos anos , a confirmaçã o divina deve
est á na presença de um delito , de um crime . manifestar-se em nevos milagres , os quais se realizam independen-
temente da pessoa do beatificado.
Invertamos as coisas e teremos o processo de canoniza ção .
Deparar- nos-emos, poré m , com uma dificuldade , dado que n ão Onde e como se produzem esses milagres póstumos, que
dispomos de uma palavra para designar o contrá rio de crime nem serão, uma vez mais , relatados por testemunhas pertencentes ao
círculo imediato do bem-aventurado? No seu t ú mulo, no lugar
da possibilidade de transformar em seu antónimo a expressão
‘‘falta conden á vel ” . Teremos de nos contentar , pois , com expres-
sões como “ virtude ativa ” ou “ virtude atualizada ”. E defini-
onde ele habitava — por meio das roupas que usava , dos objetos
em que tocou em vida , do seu sangue , de partes do seu corpo.
remos a atitude do personagem descrito no início deste capí tulo , Qual é, pois, o significado dele ? Foi dito, n ã o sem certa
essa virtude que difere qualitativamente da virtude habitual , como ingenuidade, que “ os verdadeiros católicos fazem mais caso dos
“ virtude ativa ”. santos mortos que dos vivos ”. São numerosas as narrativas me-

34 35
dievais que confirmam tal opiniã o . Pedro Dami ã o, em sua Vida ( ou poder ) , pode significar , no latim medieval e sem indicaçã o
de S ão Romualdo , conta que os habitantes da Catalunha tenta- particular , milagre ; lembremos també m que , em alem ão, Tugend
ram convencer esse monge italiano a permanecer no país deles , ( virtude ) tem a mesma raiz que taugen ( valer ) . O milagre ,
pois ele habitava então entre os catalães e estes já o consideravam após ter sido confirmação da virtude, tornou-se sinal de poder.
santo em vida ; tendo fracassado as solicitações nesse sentido, Sc cra Deus quem , no começo , operava os milagres , para designar
enviaram eles ent ão alguns sicá rios a assassin á -lo, pois na impos- o santo, doravante é este quem age sob o mandato de Deus e
sibilidade de ret ê-lo vivo queriam , ao menos, guardar seus des- de acordo com Ele , em benef ício de uma terceira pessoa ou de
pojos mortais pro patrocí nio terrae ( como padroeiro da terra ) . uma terceira causa . Pode o crente colocar sob a proteção do
Esta história , como todas as narrativas análogas, mostra - nos bem santo, oferecer-lhe bens materiais, invocá -lo, solicitar que realize
o sentido do milagre póstumo. um milagre.
A virtude ativa deve concretizar-se e podemos concebe-la Este poder manifesta -se uma segunda vez e desliga-se da
como desvinculada n ão só da pessoa viva mas també m da própria personalidade do santo, embora n ã o seja totalmente independente
vida ; se o indiv íduo morre, ela torna-se independente, é real- dele.
mente o fundamento de si mesma , atinge então a plenitude de Após a morte do santo, o milagre fica inicialmente vinculado
sua força intrínseca . A virtude ativa se objetiva .
Nosso direito penal conhece a noção de prescrição, isto é ,
a um objeto — roupa , t ú mulo , instrumento de mart í rio
é testemunho para o servo de Deus , tal como o milagre o é
— que

d’Ele. Esse objeto era indispensá vel quando a pessoa f ísica estava

ao termo de certo período de tempo, o criminoso já n ão pode
mais ser punido por seu crime — o que també m é um bom
exemplo de identificação do crime e do criminoso em nossa
morta ; sua virtude ativa , poré m , permanece viva. O objeto
a que vulgarmente se dá o nome de relíquia — está incumbido
época . Mas , em outras é pocas , se um assassino escapava à puni - de representar o santo em sua ausê ncia . Como reconhecer , de
ção cm vida , seu cad á ver era exumado e levado à forca ou à fato , numa esfera qualquer , o detentor de virtudes que um mila -


roda ; pois , subsistindo o crime , podia -se— e , de fato, devia-se
puni-lo mesmo que o culpado já tivesse abandonado o mundo
gre veio confirmar ; como compreender que essa intervençã o
incompreensível se refere a um determinado indiv íduo ? Mas
dos vivos. É assim que se deve representar a virtude do santo tal relíquia , que representava o servo de Deus em sua ausência
após sua morte. Ela continua a existir ou , melhor dizendo , ape- na ocasião do milagre , pode igualmente represent á-lo quando ele
nas começa a existir e a receber sua confirmaçã o

indiv íduo mas cm si mesma. À prescrição do moderno código
nao num
penal corresponde a “ eternização ” no processo de canonização .
est á no cé u e é santo. Todos os caracteres ligados ao santo e à
santidade podem ser tomados pela relíquia que os restituirá em
seguida ; num certo sentido , ela pró pria pode ser santa c deten -
tora desse poder.
Após esse prazo probatório, durante o qual a virtude ativa
Voltemos ao encadeamento de tais noções :
iniciou sua existência própria e se desligou da pessoa do servo
de Deus , uma nova instâ ncia a reata , de outro modo, ao seu
autor pessoal .
É esse reatamento que quer significar o processo
Tudo o que o santo pode significar enquanto pessoa
inicialmente, depois de apresentar-se no meio humano como por
—-
de .
canonização O servo de Deus , que se tornou venerá vel e tador de uma virtude , da qual recebe confirmação pelo milagre ;
depois bem-aventurado, reside num Alé m de felicidade e beati- em seguida , após ele morrer , o cará ter ativo de sua virtude voltar
tude. A virtude, após ter ganho independê ncia e ter-se objeti- a ser conhecido e confirmado, de ferma independente ; e, por ú lti-
vado , vem reunir-se-lhe de novo. O bem -aventurado c sua vir- mo, depois que a nova feição de sua personalidade celeste for
-
tude recebem novo cará ter: torna se santo e a Igreja inteira deve
celebrar-lhe a festa e seu culto devote et solenniter: ele recebeu ,
vinculada à sua virtude e dotada de poder — todos estes signi -
ficados , enfim , podem ser investidos num objeto e restituídos
enfim , sua personalidade celeste. Mas essa reunificação transfor- por uma relíquia , sem qualquer intervenção exterior .
mou -lhe a virtude em poder . Recordemos que virlus, que j á signi-
ficava entre os romanos, de modo particular , virtude e força

36 37
n
os
(

casos, julgados por contum ácia .



la existência e o da canonizaçã o , os santos são, em ambos

Empreguemos uma f órmula algo mais precisa: o santo n ão


IV d á a impressão de existir por si e para si , e sim pela comunidade
c para a comunidade ; isto , verdadeiro na ex ígua esfera em que
Depois de vermos o desenvolvimento formal do processo é observado, é igualmente verdadeiro no seio da ecclesia univer-
de canonizaçã o, que converte um homem em santo, e de termos salis e ainda quando o santo passa a morar no Além , entre os
apreciado a forma que rege essa transformaçã o na terra e no bem -aventurados , ou se ergue nos altares, ornado de todos os
cé u , deparamc- nos agora , inevitavelmente , com algumas inter- seus atributos. Que sentido possui ele , portanto, para essa comu -
rogações. O que é que tudo isso significa ? Quais as razões que nidade ?
impelem o homem a ver outros homens de tal maneira ? Quais A resposta é simples : podemos discernir o Bem e o Mal ,
são as id éias , qual a atitude existencial e a disposição mental mas n ão podemos medi-los. Só se tornam mensur á veis depois
( Geistesbeschà ftigung ) que originam esse universo em que a de adquirir certa forma: no santo, a da virtude ativa ; no mal -
forma converte os indiv íduos em santos , os objetos em relíquias , feitor , a da falta conden á vel . Enquanto assim n ão forem vistos
e se fala de milagre ; essa forma de universo em que se estabe- nos indiv íduos, impossível separ á-los de seus autores ou medi-
leceu um paralelismo hierá rquico entre o processo de canoniza - dos em sua respectiva autonomia . Os santos e os malfeitores
çã o e um dos processos de existência ? são , pois , indiv íduos em que o Bem e o Mal se objetivam de
Observemos como nasce um santo ; impressionar-nos-á , em um modo particular.
primeiro lugar , ver até que ponto ele participa pouco ( para usar- Eis porque a comunidade crist ã pouco se preocupa em saber
mos de novo uma expressã o prudente ) nesse nascimento. quais os sentimentos do santo em sua conduta devota , quando
Nã o nos enganemos : como personalidade real , ele n ão tem age ou quando sofre . Neste sentido, n ão vê nele um homem como
comportamento passivo , de maneira nenhuma . Por vezes, o seu qualquer outro , mas um meio de observar a virtude consubstan -
nascimento é anunciado antecipadamente à m ã e, que enxerga uma ciada ; e é nesse grau superior de substanciação e de objetivaçao
luz deslumbrante ou algum outro fen ô meno parecido. Depois, que reside a pot ência celeste. É por isso que o santo est á ausen-
desde sua chegada ao mundo , a existê ncia do santo passa a cen - te quando de seu processo ; é por isso que somente as teste-
trar-se na açã o. Há santos que sabem , desde o berço , juntar as munhas est ão presentes, como delegados da comunidade , para afir-
m ãos para orar. Ao tornarem -se adolescentes , meninos ou meni- mar a convicçã o de que a objetivaçã o ocorreu e foi confirmada
nas , distinguem -se das crian ças da mesma idade por sua devoção pelo milagre, convicção cuja autenticidade será atestada , por seu
e boas obras. Subsequentemente, o poder deles nunca mais turno , pela autoridade eclesiástica .
deixa de manifestar-se e eles mantê m-se em incessante açã o . Que se ganha com poder medir e apreender a virtude dessa
H á santos corajosos que lutam contra as tentações, centra adver- maneira ? E em que consiste tal maneira particular de a virtude
sá rios diabólicos , contra o dem ó nio , ou que se defrontam com objetivar-se na pessoa do santo ?
um tirano pagão . H á santos laboriosos que escrevem in ú meras Estas perguntas levam - nos a abordar a disposição mental do
obras devotas ou que percorrem infatigavelmente o mundo para santo. Podemos praticar o Bem e o Mal sem saber exatamente
converter os pagã os atrav és da prédica . Há santos que se reju - que valor atribuir-lhe e a direção que tomamos. É necessá rio,
bilam por sofrer as torturas que lhes sã o infligidas e bastante primeiro , poder medir a virtude , apreendê- la e tê-la sob os olhos
heroicos para ambicionar mart í rios ainda maiores. São atuan - na pessoa do santo, sem condições nem limites, para possuir-
tes, sem d ú vida , e, n ão obstante , n ão intervê m no processo de mos um crité rio seguro: o santo permite-nos ver nitidamente o
santificação, o qual se inicia na vida real antes de se refletir no que desejamos fazer , aprender e ser no caminho da virtude ; ele
procedimento empreendido pela Congregação dos Ritos. Pode- pró prio é o caminho que conduz à virtude e podemos ent ã o
mos dizer que, embora sejam protagonistas de dois processos
— segui-lo.
38 39
Para caracterizar a disposição mental de que nasce aquilo a é claro, em que pode fazê- lo quem n ã o seja santo , E se , no
que chamo uma Forma
Lenda — — sendo tal forma , no caso presente, a
, vou ser obrigado a utilizar palavras-chave, isto é ,
final da jornada , o santo concede o que se esperava obter da
peregrinação — por exemplo , a cura de uma doen ça — é porque ,
palavras que n ão d ã o um “ sentido ” c sim uma “direçã o ”. cm certo sentido, o peregrino se identificou com o pró prio santo.
Para começar , recorrerei a uma palavra latina , usual na As Cruzadas tiveram també m esse sentido de peregrinação.
Idade Média , palavra imitatio, pois as palavras alem ã s jolgen Estavam indiscutivelmente vinculadas às grandes migra ções ger-
( seguir ) e 7 ;achahmen ( imitar ) n ão indicam suficientemente essa m â nicas que deram ao Ocidente sua fisionomia ; foram “ grandes
direção. Quanto à etimologia , itnitor tem a mesma raiz de aemu- invasões”, tal como ocorreria , mais tarde , com as grandes explo-
lus ( emular = procurar igualar ou procurar assemelhar-se a ) ra ções ultramarinas , mas distinguem-sc umas das outras por tal
e de imago = imagem , retrato . Mas , a par da etimologia eru - cará ter de imitação , que tanto se manifesta em seus fins como
dita , h á també m a derivaçã o popular e foi assim que a Idade I em seus meios. Quer se dirijam ao Oriente , à Espanha ou à
Média aproximou imitari de immutare: transformar-se, mudar . Palestina , est ã o todas sob o signo da imitação do Cristo ; pois
“ quem n ão aceita a sua cruz para seguir- me n ão é digno de mim ”.
O santo é o indiv íduo em quem a virtude se consubstancia
e objetiva , o personagem que permite aos que o cercam mais
Os cavaleiros ostentam uma cruz na manga e sua peregrinação
ou menos de perto imit á-lo . Ele é a representação efetiva do
grandiosa e guerreira tem por objetivo final a maior de todas as
personagem que podemos tentar igualar e , ao mesmo tempo, a relíquias, ou seja , o sepulcro de Cristo que , por sua vez, signi -
prova de que a virtude ativa se realiza , efetivamente, quando a fica o próprio Cristo.
imitamos. Sendo grau supremo da virtude e , como tal , inaces- Podemos conceber assim os atos mais elevados e as maio-
sível, o santo permanece n ão obstante em nosso dom í nio , graças
à sua natureza de objeto. É a figura cuja forma nos faz perceber ,
res personagens do Cristianismo
Maria , o próprio Jesus — sem
— o sacrif ício lit ú rgico da missa ,
que por isso se esgote o seu
viver e conhecer uma realidade que nos parece desejá vel sob significado religioso.
todos os aspectos ; e essa figura exemplifica , ao mesmo tempo , a Quaisquer que sejam os Seus outros atributos, Jesus Cristo
possibilidade de tal passagem à a ção ; tomado na acepção dessa é também o “ santo supremo ” , de quem os demais santos sã o,
forma , ele é, em resumo, um modelo imit á vel . por sua vez , os emulos. E os acontecimentos da vida do Cristo
Examinada com precisão a gé nese do santo , chegamos agora podem ser concebidos sob o ângulo da imitação ; é possível ver
ao universo que o constitui e lhe conferiu sua natureza peculiar . neles, como no Evangelho Segundo São Mateus , a realização de
Eis o espet áculo que observamos ao longo de toda a Idade Média : um discurso anterior: “ cumprindo assim o an ú ncio feito pelo
h á uma igreja sobre uma colina escarpada e o caminho que a profeta Jeremias , que disse ...” Ou considerar ainda os aconteci -
ela conduz est á dividido em catorze esta ções . Cada esta ção signi - mentos do Novo Testamento a repetição de um evento do Antigo
fica um passo determinado da Paixão do Cristo. O fiel que Testamento, sendo o sacrif ício da cruz , por exemplo, prefigurado
segue esse itinerá rio revive, a cada esta ção, o escá rnio, a flage- pelo sacrif ício de Abra ão.
lação ou o transporte da cruz. Não os vive apenas como recor- Ter íamos dessarte sob nessos olhos uma considerá vel parte
dação de eventos passados, mas no sentido em que, literalmente , do universo medieval se nos aplicássemos a estabelecer , em por-
se transporta a esse passado e participa da via crucis, do escárnio, menor , todos os n í veis dessa disposição mental que é a imitação
da flagela ção e da agonia na cruz. Na medida das forças huma - na vida do homem medievo; pois tal disposição , a do emulo e
nas , ele une-se então ao Inimitá vel , faz -se “ emulo” de Cristo e , das imagens, n ão se restringe à vida religiosa . A situação é
acolhido no alto da colina onde se ergue a igreja , que é igual - sempre a mesma : h á uma pessoa , uma coisa ou uma a ção e nelas
mente “ imagem ” do Cristo , sente-sc acolhido em Cristo. Fazer
consubstancia-se e objetiva -se uma realidade distinta, permitindo
peregrinação ao local onde repousa um santo , ou mesmo ao tal objetivaçã o que outros ingressem nessa realidade e nela sejam
local onde uma rel íquia representa esse santo, significa , simples- admitidos.
mente , refazer todo o trajeto que conduz à santidade ; na medida .
40 41
uma ordem condicionada pelo novo cará ter. Neste sentido , a
legenda ignora completamente a realidade “ histó rica ” , para conhe-
cer e reconhecer apenas a virtude e o milagre. Sempre que o
santo n ão seja o ve ículo que permite enxergar a virtude objeti-
V
vada , sempre que ele n ão se revista do valor de modelo imit á vel ,
n ão será precisamente um santo e a forma de linguagem encar-
Essa forma que se realiza na vida realiza-se igualmcnte na regada de represent á- lo como santo n ão poder á vazá- lo em seu
língua . Temos o santo, as suas rel íquias, a sua legenda ; temos
també m o indiv íduo, a coisa , a l í ngua , É nesta trindade que molde.
se consuma a disposi ção mental e o universo da imitação. Há exemplos de santos que, sem terem naturalmente cons-
A legenda cat ólico-ocidental tem uma configuração bem defi- ciê ncia de sua santidade e permanecendo na ordem humana e
nida , que se deve à segurança com que a autoridade eclesi ástica ! autobiogr á fica , contaram a própria vida . Pensamos nas confis-
sões de Santo Agostinho. Essas Confissões jamais nos fazem
observeu e interpretou de maneira hierá rquica , desde os primór-
dios , o conjunto desse processo. Ela narra a vida de um santo pensar numa legenda e n ão tê m lugar nas Acta Sanctorum. Por
cutro lado, h á biografias de santos que datam de uma é poca em
ou , para empregar uma f órmula superficial , a sua história: é
uma Vita.
que a forma da legenda começava a declinar , de quando a Igreja
impunha à hagiografia exigê ncias históricas. Dessa maneira , pode-
Como forma de linguagem , tal Vida obriga -se a ter um desen - mos observar a luta das duas formas e verificar , ao mesmo tempo ,
volvimento que corresponde, em todos os seus aspectos , à histó- que o menor afrouxamento devido a uma atitude histó rica supri-
ria de uma existê ncia real ; isto é , essa existê ncia deve realizar-se , me a possibilidade de imitação e despeda ça a Forma. Pois a
uma vez mais , na Vida ( vita ) . Não basta que ela seja a cró nica particularidade da biografia histórica consiste , justamente , em
imparcial de acontecimentos e ações; deve també m apresentar-se deixar ao indiv íduo sua personalidade própria , a fim de que,
naquela forma de que ela própria é uma nova realização. Para mesmo podendo servir- nes de exemplo, não possa absorver- nos.
o leitor ou para o ouvinte , tem de ser a representaçã o exata do E quando o desenvolvimento de uma biografia é de tal natureza
que o santo representa na vida real ; tem de ser um modelo imi- que a personagem histórica deixa de formar um todo perfeita -
t á vel . Por isso é que a exist ê ncia real de um ser humano possui mente delimitado e acabado , quando ela reconstrói o indiv íduo
um outro aspecto , nessa Vida , distinto do que se costuma desig- com traços que nes incitam a entrar nele , essa biografia torna -se
nar por biografia “ histórica ”. Em geral , para falar em termos legenda . Observa-se atualmente um fen ô meno an á logo com o
de “ história ” — e para n ão termos de precisar posteriormente
o sentido da palavra no que se refere à nossa Forma — , conce-
personagem Frederico o Grande.
bemos a existência de um ser humano como uma continuidade , A linguagem n ão seria o que é, as formas da língua não
um movimento que se desenrola sem interrupçã o desde um come - seriam o que sao , se n ão fossem o lugar onde se efetua , de

ço a um fim e em que “ o que se segue ” refere-se sempre “ ao que modo autónomo , aquilo que se produz igualmente na exist ê ncia
precede ” . Se a Vita assim concebesse a vida de um santo , faltar- real . A nossa forma de l í ngua é capaz , portanto, de representar
- lhe-ia precisamente aquilo que constitui seu objeto. Ela tem de i a exist ê ncia de um santo, de maneira an á loga , e de constituir
realizar a passagem que torna a virtude atuante e de mostrar a santos.
confirmaçã o , pelo milagre , do cará ter ativo da virtude, Para Depois de observar na vida real e numa certa forma da lí n-
ela, o importante n ão é a continuidade de uma existência huma- gua o processo que é a gé nese de um santo, tentemos agora apro-
na , mas apenas aqueles instantes em que se d á a objetivação fundar e ilustrar com um exemplo o modo por que uma forma
do Bem.
A Vita, como toda legenda , fragmenta a realidade “ histó-
— neste caso a Legenda
como linguagem .
— se torna linguagem e se constitui

rica ” em elementos a que inculca em seguida , por si mesma ,


um valor de imitabilidade , antes de os recompor de acordo com

42 43
ta que se viu em Nicomédia , donde partiram as perseguições ,
um funcion á rio de alta posição, cujo nome omitiu , arrancar da
parede o cartaz com o édito imperial, num gesto de desprezo e
VI revolta. Seguiram-se prisões em todas as prov í ncias do impé rio,
supl ícios e execu ções, os quais prosseguiram com os sucessores
Lemos nos antigos Atos dos M á rtires mais ou menos o se- de Diocleciano, Gal é rio e Maximino Daja ; queimaram-se igrejas,
guinte: confiscaram-se bens eclesiásticos. Milhares de crist ãos abjuraram ;
muitos permaneceram fiéis ao seu credo . Ainda antes da morte
Um homem , nascido numa fam ília cristã e que vive , no final de Diocleciano, que se retira em 305, Constantino intervé m e
do século I I I , numa prov í ncia oriental do império romano, alista-se
no exército romano, notabiliza-se em combate e é guindado aos pos- promulga , em 313, o Édito de Mil ã o; em 325 é permitida a
tos mais elevados. Tendo o imperador decidido perseguir os ens- realização do Concílio de Nicéia. O Cristianismo venceu , as reli-
t *ã os, recebe o apoio de todos os seus conselheiros e somente esse giões de Estado romanas est ã o em vias de desaparecimento.
-
homem se opõe. O imperador enfurece-se, manda o prender e supli-
ciar numa roda armada de l â minas afiadas . O supliciado escuta Prossigamos em nossas observações, para ver de que ma-
ent ão uma voz que lhe chega do cé u e lhe diz: " Não tenhas medo, neira particular a narrativa por nós transcrita é fruto desses acon -
eu estou contigo ” , ao mesmo tempo que uma aparição celeste, ves- tecimentos ; de que maneira particular corresponde a esses acon -
tida de branco , lhe estende a m ão. Muitos se convertem , entre os tecimentos , a esses fen ômenos e a esses fatos ; veremos ent ã o
quais vá rios camaradas dele. Ele sofre novos supl ícios e novos
milagres se produzem . Conduzem - no ent ão ao templo de Apoio -
que a palavra neutra “ relação ” , por n ós empregada , designa efeti
para que ofereça um sacrif ício à divindade. Mas ele interroga a vamente uma Legenda .
est á tua do deus , fazendo o sinal da cruz: "Aceitas que eu te ofereça Todos esses fenômenos que são as perseguições, os encar-
sacrif ícios ? ” E a está tua responde: "Não h á outro deus senão o ceramentos e cs suplícios infligidos aos crist ã os devem resumir-se
Deus que tu proclamas.” E o m á rtir pergunta-lhe: "Como ousas
permanecer na minha presen ça ? Vai e adora o verdadeiro Deus.” numa expressã o e reduzir-se a um denominador comum: uma
A boca do ídolo solta um grito selvá tico e lamentoso, e todos os roda armada de lâminas afiadas; a oposiçã o , comum a todos os
ídolos se pulverizam. Os sacerdotes pagã os recomeçam a espancar e meios e a todas as classes sociais , entre a multiplicidade das
supliciar o cristão, até que o imperador dá , por fim , a ordem de
decapitá-lo.
religiões de Estado romanas e a unicidade da nova religião, expri -
me-se nesta f ó rmula : o mártir é conduzido ao templo de múlti -
É evidente que esta narrativa tem por objeto a virtude ativa ,
plos í dolos; a resistência dos cristãos tem por f órmula: ele diri-
ge-se aos falsos deuses que lhe respondem e se lhe submetem ; a
o milagre e um santo . Variando neste ou naquele pormenor , ela
resume esquematicamente o que se encontra em numerosos Atos
inutilidade das perseguições e a vitória do Cristianismo tê m por
dos Má rtires. Mas vejamos primeiro, em poucas linhas , o con-
f órmula : os í dolos despedaçam-se\ se o crist ão enfrenta com bra -
vura a perseguição e o supl ício, temos a f órmula: uma voz celeste
junto de acontecimentos que lhe s ã o contempor â neos , de que essa
narrativa é um produto e a que corresponde, à sua maneira . -
o chama ou , ainda , uma aparição celeste , vestida de branco , esten
de-lhe a mão . . .
Estamos na época das perseguições de Diocleciano. Vendo I Tudo acontece como se a multiplicidade e a diversidade do
na constante expansão da comunidade cristã um perigo para a evento se cristalizasse e ganhasse uma configuração definida ; como
sua reorganização sistem á tica do impé rio romano , Diocleciano se um certo numero de fen ômenos semelhantes fosse apanhado
decidiu , em 303, sob a pressão de seus conselheiros, decretar num turbilh ão que lhe mudou o sentido para fazer deles um con -
penas severas contra os adeptos do Cristianismo , Mas existem ceito ú nico , a figura çã o de um conceito ú nico. Vejamos a expres-
crist ãos em todos os meios e até entre os mais altos funcion á rios são: uma roda armada de lâ minas afiadas. Não se percebe muito
da corte e do exé rcito. Sabemos, por exemplo, que um Praepo- bem como se pode supliciar um homem com tal instrumento , mas
situs Cubiculi chamado Doroteu foi executado com o seu compa - é impossível apreender o conjunto de torturas f ísicas e morais
nheiro Gorgonius. É evidente que os crist ãos mais corajosos de modo mais incisivo que essa roda armada de lâminas afiadas.
-
opuseram se ao imperador ; Eusébio , o historiador da Igreja , con - E que força de evocação em um deus que se despedaça!
44 45
Mas que acontece durante a transmutação ? Que força é artística . Mas semelhante emprego, que remonta à Poética de

—essa que decompõe os acontecimentos em unidades primordiais


de certa maneira — antes de fecund á - los ? E que realiza em
seguida uma seleçã o dos acontecimentos para fixar-lhes determi-
nados conceitos ? É a linguagem . “ A roda armada de l â minas
Schercr, não é conveniente neste caso. Nietzsche definiu o moti-
vo musical como “o gesto individual do A f f e k t musical ” . De
fato , aquilo a que chamamos até agora “ acontecimento apreen -
dido por conceitos ” ou “ unidades preenchidas ” é um gesto verbal
afiadas ” e “ o deus que se despeda ça ” são produtos da linguagem ,
produ ções lingu ísticas. lemos um processo em que se reuniram
individual. Empregaremos doravante nesse sentido
abreviação — a expressão gesto verbal .
— e por

as duas funções da linguagem : indicar e representar . Temos um Retomando o nosso exemplo , os gestos verbais são : a roda
encontro s ú bito e uma interpenetração total do “ querer dizer ” armada de lâ minas afiadas, a voz celeste , a aparição vestida de
( meinen ) e do “ significar ” ( bedeuten ) .
branco que estende a m ão solícita , os deuses a quem se dirige
Num n ível superior , repete-se destarte um processo que j á a palavra , os deuses que se submetem ao sinal da cruz , as está-
se desenrolara quando da formação da linguagem em si. Agora , a tuas de ídolos que se despedaçam etc. Esses gestos verbais, tal
linguagem consolida -se numa primeira forma literá ria , graças às como se apresentam em seu conjunto , n ão nos entregam ainda
unidades de acontecimento . fi o segundo nascimento de um um santo determinado , mas apenas o fiel em tempo de perse-
princí pio que renascer á , uma vez mais , num terceiro nível , quan-
do essa forma , num processo ú nico e n ã o repet ível , voltar a
cristalizar-se numa obra , na produ ção de um artista , para alcançar
guiçã o e o m á rtir em geral ; é assim que vemos os mesmos ges-
tos verbais reaparecerem — e sempre da mesma maneira
num grande n ú mero de Atos dos m á rtires. Mas eles são colo-

assim plenitude definitiva . cados de modo tal que podem , a todo o instante , ser orientados
Sempre que uma disposição mental leva a multiplicidade e a e combinados de uma certa maneira para atingir importâ ncia atual .
diversidade do ser e dos acontecimentos a cristalizarem para assu - No nosso caso , o que resulta , se assim posso dizer , dos gestos
em que se cristalizou o acontecimento contemporâ neo das perse-
mir uma certa configuraçã o ; sempre que tal diversidade , apreen -
guições de Diocleciano n ão é um santo e mártir mas S ão Jorge ]
dida pela linguagem em seus elementos primordiais e indivisíveis por outras palavras , esses gestos est ão orientados de modo a que
e convertida em produção lingu ística , possa ao mesmo tempo o conjunto se atualize numa pessoa e a atualização crie um deter-
querer dizer e significar o ser e o acontecimento, diremos que se minado santo.
deu o nascimento de uma Forma Simples .
Vemos, pois, que a forma existe de duas maneiras, estando
N ão é l ácil encontrar nome para aquelas produ ções a que a primeira para a segunda como um problema de xadrez para a
chamamos, até agora , unidades de acontecimento e que a lingua- sua solução. O problema oferece e cont é m uma possibilidade
gem apreendeu . Quando, sem compreend ê-los inteiramente , a que realiza , na solu ção , um acontecimento determinado. Aquilo
sua terminologia imprecisa

história literá ria aborda esses temas , refere-se em geral

a motivos. Ocorre , poré m , que
em a que chamamos Legenda é , em primeiro lugar e muito simples-
mente, a disposição bem definida dos gestos no interior de um
emprega a mesma palavra para designar certos fen ô menos da campo. Aquilo a que chamamos a Vida de Sã o Jorge é a reali-
tem á tica histórica ou ainda uma mat é ria “ pré-formada ” para a zação de uma das possibilidades oferecidas e contidas na legenda.
ebra de arte num complexo qualquer. “ Motivo ” é uma palavra Para falar em termos de escolástica , pode-se dizer que a legenda
perigosa . O motivo é , em primeiro lugar , o m ó bil, a raz ão deter- cont é m , de modo virtual , o que existe na Vida de modo atual .
minante, o fato que gera outro fato. A rigor , poder -se-ia empre - Convé m precisar a relação entre essas duas maneiras por que a
gar aqui a palavra nesta ú ltima acepção . É certo que as nossas forma é percebida , transpondo- a , por um momento, para a vida
produ ções geram ou desencadeiam algo na medida em que tornam real: em virtude de certa disposiçã o mental , a ação de Diocle-
o acontecimento histó rico imagin á vel a partir de certa disposição ciano a respeito dos crist ã os devia dar origem , necessariamente,
mental . Mas n ão se trata do seu sentido primordial nem do a uma legenda ; sempre que essa legenda se ligava a uma perso-
seu sentido mais profundo. Termo tomado à m úsica , o “ motivo ” nalidade apropriada da vida real ou criava por si mesma tal perso-
designa “ o elemento característico e primeiro ” de uma produ ção nalidade , convertia-se em Vita desse indiv íduo particular.
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O estudo das outras formas simples mostrar- nos-á até que ciano, a guerra c o Catolicismo se encontram reunidos na França ,
ponto se faz necessá rio distinguir essas duas maneira de ser . assiste-se ao reaparecimento desse jovem batalhador . Depois da
À primeira chamo Forma Simples e à segunda Forma Simples conversã o de Clóvis , Clotilde , católica e borgonhesa , leva o esposo
Atualizada ou Atual . E volto a insistir em que me refiro à I a introduzir o culto desse santo. Ele vem em pessoa , pois as
Forma Simples quando os gestos verbais est ã o dispostos de tal suas rel íquias s ã o transferidas do Oriente para Paris; ali ficou
modo que podem , a qualquer instante, ser orientados de maneira desde então e tem-se a impressão de que as igrejas da Palestina
particular e ter importâ ncia atual — sendo esses gestos verbais
o lugar onde certos fatos vividos se cristalizaram de certo modo ,
e de Bizâ ncio acompanharam tal migraçã o.
Entre o final do primeiro milé nio e o começo do segundo,
sob a ação de certa disposiçã o mental ; tambcm o lugar onde essa a fisionomia de São Jorge muda lentamente , assim como sua
disposição mental produz, cria e significa os fatos vividos. Uma miss ã o e seu cará ter . J á n ã o é a mesma a relação existente entre
vez dotados esses gestos de orientaçã o particular e de importâ ncia dever militar e dever crist ão. Ao guerreiro que se oferecia passi -
atual , teremos ent ão uma Forma Simples atualizada. A Legenda vamente ao carrasco , desde que se tratasse de dar testemunho da
é uma forma simples ; a legenda particular ou , como dizemos , a f é , sucede o paladino, o defensor da f é , que ataca ativamente os
Vida de São Jorge , é uma forma simples atualizada. inimigos e os vence. São Jorge j á n ão é m á rtir ; torna -se matador
de dragões e libertador da Virgem .
Para ser perfeitamente claros , dever íamos adicionar a este
resumo esquem á tico dos Atos dos Má rtires o resto da tradição
VII liter á ria respeitante a São Jorge. Ela é vasta e dispersa ; a mais
recente colet â nea é a de Krumbacher , cujo trabalho póstumo,
Passemos, pois, a esse santo particular que é Sã o Jorge, cuja Der heilige Georg in der griechischen Uberlieferung [ São Jorge
existência “ histórica ” nos é desconhecida . na Tradição Grega ] ( Munique , 1911 ) . Por muito sedutor que
Partindo da disposição mental a que chamamos imitatio, seja o empreendimento, levar- nos-ia longe demais; contentar- nos-
os fatos vividos cristalizam -se em gestos verbais , estando estes -emos, pois , cm citar os pontos principais desse curicsoçosfendoô-
dispostos de modo a que possamos segui-los, penetrar neles e meno. É prov á vel que o santo m á rtir , surgido sob os tra
e ser neles acolhidos. Em seu conjunto , eles estão orientados miles christianus na fronteira da Antiguidade , fruto do dado his-
de tal sorte que, ao vincular-se a uma personalidade , tornam-se tórico da é poca diccleciana , tenha antigos v ínculos com certas
presentes c atuais. Pouco importa , nesse respeito , que queiram
figuras retomadas da Antiguidade por uma nova é poca e à ma -
designar um indiv íduo específico que realmente viveu ou que neira própria desta . Não longe da cidade de Lida ( denominada
criem um determinado indiv íduo. O certo é que o indivíduo em grego Dióspolis da Judeia ) encontra -se a cidade costeira dt
da í resultante quer designar e significa todos os homens que Jope. Desde o começo , Sã o Jorge foi associado à primeira dessas
conheceram a mesma situa ção ; esse indivíduo paradigm á tico dá - cidades , pois a tradição quer que , após seu nascimento na Capa -
-lhes a possibilidade de o seguirem , pois é imit á vel . dócia , ele tenha sido educado pela m ãe em Lida . Quanto a
Jope, é o lugar onde , segundo a tradição grega , Perseu matara um
I

Foi assim que apareceu e se engrandeceu , soldado crist ão e monstro marinho devorador de homens e resgatara a virgem
crist ã o em armas, o cavaleiro de Cristo que é São Jorge. Sem - mais de um ponto
— —
Andrômeda . Ora , o nosso m á rtir parece
pre que as duas noções
deveres —
o guerreiro e o crist ão
a coragem e a f é
— ou os dois
se manifestem juntas, de uma
o indica na tradi ção — ter absorvido , entre outras coisas, o
cará ter de Perseu , tal como se transformou no final da Antigui-
maneira ou outra , esse santo estará presente aos nossos olhos, dade. São Jcrge , realiza ção nova do tempo das perseguições,
figura inimitá vel que propicia a imitação e que responde plena-
mente à necessidade de imitação . Assim foi que passou da Anti-
era simultaneamente o continuador e o representante
e irnago —
— aemulus
de uma figura mais antiga. Como tal , ele já n ão é
guidade em decl í nio ao Ocidente . Constantino é o primeiro a o herói que sofre estoica e passivamente mas o que age e liberta .
edificar- lhe uma igreja e quando, apenas dois séculos após Diocle- Durante muito tempo, n ão fez ele uso , no Ocidente , dessa capa-
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cidade de atividade libertadora , e tem -se de aguardar que o Oci- observando-a na esfera em cujo interior ela se realiza e rege todo
dente necessite de um cavaleiro, de um paladino cristão, para um universo. Para ser completo, esse estudo deve observá-la tam -
que ele manifeste seu poder combativo. A figura mais antiga bé m nas regiões em que seus contornos são menos n í tidos e sua
reaparece ent ã o ; ele representa-a e realiza - a de novo ; mostra essa forma mais ou menos dilu ída . Passaremos , pois , à Legenda em
virtude cavalheiresca que nele se tornou atuante , mata o dragão sua forma mais gen é rica.
e liberta a Virgem — dois gestos verbais que constituem a nova
cristalização de um acontecimento histórico novo , o in ício das
Mas , antes disso, convé m efetuar uma espécie de contra -
prova .
Cruzadas . Tal transforma ção começa pouco depois do ano 1000 Quando comentamos o processo de canoniza ção , vimos que
c já est á consumada na legenda ou na Vita , como nos é oferecida o conceito de virtude ativa era condicionado e completado por
por Jacobus de Voragine. um conceito antagónico. O contrá rio da virtude é a malfeitoria ,
Doravante , veremos Sã o Jorge à testa das Cruzadas c des- a conduta criminosa ; e existe semelhança entre a comprovaçã o
fraldando seu estandarte. Aparece a Ricardo Cora çã o de Leã o da virtude e a dc crime.
ccmo os deuses da Antiguidade apareciam aos heróis no campo Ora , també m vimos que a mentalidade imitativa fazia do
de batalha . É o salvador do cavaleiro, o patrono da guerra santa . santo a forma em que a virtude se torna mensurá vel , apreen -
Invocam- no antes de cada combate e é ele quem assegura a s ível, assinalando- nos claramente o que desejamos fazer e apren -
vitória . No total , treze ordens de cavalaria se colocam sob sua der para nos colocarmos no caminho da virtude, e que é o
proteção e o escolhem como antecessor . As mais conhecidas , modelo objetivo suscet ível de ser per nós seguido. Por conse-
provavelmente, são a ordem bá vara de São Jorge e a ordem da guinte, é forçoso que existam , em face das figuras cm que a
Jarreteira , criada por Eduardo III cm 1350. Foi assim que, virtude se torna mensurá vel e apreens ível , outros seres cm que
durante a Guerra dos Cem Anos , tornou -se ele o patrono dos a maldade , a ruindade pun í vel , objetivam -se da mesma maneira .
belicosos anglo- normandos , cujo grito de guerra passou a ser : l2 necess á rio poder-se confrontar o modelo digno de ser imitado ,
England and St . George! [ Inglaterra e S. Jorge ]. embora inimit á vel , com uma forma tal que n ão deva ser imitada ,
A tudo isto, repetimos, chamaremos Legenda . Trata -se de em caso algum ; forma essa que nos mostre , clara e concreta -
um fen ômeno de linguagem e de literatura . Sob o impulso de mente , o que n ão devemos imitar . Ao santo deve corresponder
uma disposição mental , a lí ngua denomina , produz, cria e signi - o anti-santo, à legenda a antilegenda .
fica uma figura derivada da vida real e que intervé m , a cada Será que existem os ant í podas da santidade ? É claro que
instante , nessa vida real . Ela n ão precisa , para fazê-lo , de uma o malfeitor vulgar n ã o basta para isso: ele n ão é um anti -santo,
obra de arte ; n ão se encontrará , neste caso , o fen ô meno ú nico assim como o homem virtuoso, no sentido vulgar da palavra ,
e irrepet ível de uma forma que se cristaliza de novo na produ çã o n ã o é um santo ; tal como no caso de São Jorge , é- nos preciso ter
de um artista : n ã o existe a epopeia de Sã o Jorge. No entanto , també m esse anti -santo aos nossos olhos.
ele a í est á : podemos desenh á-lo e , vendo esse retrato, em que
o santo figura com a roda , o dragão , o estandarte e o cavalo , Para começar pelo á pice da hierarquia , poder-se- ia citar o
rcccnhecemo-lo e encontramos nele , na medida de nossas neces- Anticristo ; mas , em sua origem , esse Anticristo resulta claramente
sidades, um modele, um personagem que nos mostra , concreta- de uma outra Forma: ele representa o Mal de modo distinto
mente , o que desejamos aprender e o que devemos fazer em daquele que acabamos de ver , na medida em que n ão o repre-
ocasiões particulares da vida real . senta como malevolê ncia pun ível , como exemplo a imitar. Esse
Anticristo só adquire os tra ços do anti -santo na é poca em que
o Cristo se converte no Santo Supremo , o modelo definitivo ;
esses traços ainda se mantê m , contudo , pouco marcados.
VIII
Mas existem cutras figuras. Eis que o Cristo, carregando
Estivemos estudando a gé nese de uma forma que resulta a cruz , quer repousar na soleira da porta de um sapateiro ; este
da disposição neutra de imitação, e a que chamamos Legenda , enxota -O gritando: “ Sai daqui! ” E o Salvador responde-lhe: “ Do-

50 51
ravante , tu errarás sem descanso.” De fato, o sapateiro passou to, o Holand ês Voador , Don Juan , o Conde de Luxemburgo etc.
a errar , de pa ís em pa ís , sem trégua nem repouso, e mesmo o Eles també m est ão diante de nós, como São Jorge diante dos
repouso da morte, mesmo esse requies aeterna que se pede a Cruzados , com a ú nica diferença de que a imitaçã o se tornou
Deus foi-lhe recusado. Aqui temos , em todos os aspectos , a aqui negativa ; todos eles foram testemunhados e todos os seus
contrapartida da Legenda . O fato vivido , a saber, que muitos contramilagres localizados com precis ão .
rejeitaram o ensinamento novo que teriam podido aceitar , crista- Ao lado dos grandes , h á també m os pequenos. Do mesmo
liza-se num gesto verbal: o Salvador acabrunhado ao peso da Cruz modo que o santo começ a por aparecer num cí rculo limitado, o
quer repousar, mas o judeu diz - Lhe: “ Sai daqui / ' E um mila - anti-santo també m pode aparecer e permanecer num cí rculo res-
gre — quid a deo jil praeter causas nobis notas — confirma
que a maldade punível se tornou atuante , que se objetivou nesse
trito. A partir de certo ponto, as proezas do malfeitor podem
objetivar-se em maldade ativa e desprender-se dele , para lhe
sapateiro judeu. N ão teria havido milagre se esse homem , à serem , em seguida , vinculadas de novo. A sua figura cristali -
semelhança de outros pecadores , como o próprio Judas, tivesse za -se , ent ão ; o gesto verbal apossa-se dele e , mesmo depois de
expiado sua falta no inferno. O milagre est á em que ele n ã o ele ter sofrido seu castigo como indiv íduo , mesmo depois de
morre , mas vive eternamente para errar à vista de todo o mundo. sua execu ção, a falta ativa que é o reflexo da sua Maldade lhe
À semelhan ça do processo de canonização , esse milagre é sobreviverá à personagem . Ele j á n ã o est á presente , mas con -
confirmado por testemunhas: o Judeu Errante foi visto em tal e tinua a existir ; assombra os lugares , é um fantasma ; traz consigo
tal lugar , fulano falou com ele, sicrano ouviu falar dele. E o infort ú nio, est á ligado no espaço ao local de suas malfeitorias.
assim como a virtude ativa se torna um poder benéfico na pessoa
do santo, també m a maldade pun í vel se converte cm poder malé-
As pessoas evitam esses lugares assombrados — uma inversão
perfeita dos lugares de peregrinaçã o. Atribuem - lhe rel íquias : o
fico na pessoa do Judeu Errante; esse peder, evidentemente, n ã o rochedo onde matou , a roda que serviu para supliciá-lo, todos os
é para ser invocado nem exaltado , como o do santo ; mas é um instrumentos de sua execu çã o . A pris ã o e a cela ostentam -lhe o
poder , de qualquer modo, e basta que se manifeste para que nome, tal como uma igreja ostenta o nome de um santo.
aconteçam a peste, a guerra e o infort ú nio. Em muitos aspectos , o próprio castigo, na disposição mental
També m h á sá bios , humanistas , cuja sede de conhecimentos da contra-imitação, é um milagre invertido. A forca roda ,
e cujo orgulho de saber procuram penetrar todos os segredos , o machado são outras tantas confirmações de maldade ativa e
cbjetivam -se num anti-santo. É por isso que a execução atinge
pelo que despertam a suspeita de que se afastaram da humil-
dade crist ã e da sujeição aos des ígnios divinos ; a atitude deles menos o malfeitor que a malfeitoria , a qual é concebível
— — e,
cristaliza-se numa figura — a do Doutor Fausto — e atualiza -se
num gesto verbal : eles celebraram uma aliança, um pacto com
no passado , concebida
cometeu .
como desligada do indiv íduo que a

o Diabo . O Diabo é o representante do Mal, o Mal personifi - Devemos ter isso em vista , se quisermos compreender toda
cado , mas n ã o é ele quem objetiva para nós a maldade atuante , a sé rie de castigos ou de sacrif ícios da Idade Média , sempre
n ão é ele quem consubstancia o exemplo que n ão deve ser se- cru é is e mais ou menos simbólicos , assim como a presen ça
guido. Em certo sentido, até lhe damos razãc : ele n ão é, de da multid ão durante as execu ções . Para a sensibilidade atual ,
fato, o tentador , o demónio ? Fausto , pelo contr á rio, é o anti- esses castigos atingem um indiv íduo e julgamo-los como sendo
a ação de um homem sobre seu semelhante. Por isso os consi-
-santo, o portador de desgraças cujos ducados m ágicos se trans - deramos cru é is. No universo da imitação, o autor e a v í tima
formam em lixo ; ele realiza outros contramilagres, dezenas de
pessoas o viram , falaram-lhe; por fim , ele n ão morre como os da punição deixaram de ser “ humanos” , naquele sentido ; a v í ti-


outros homens: é o Diabo em pessoa quem vem buscá - lo . ma do castigo é apenas o lugar onde a maldade se objetivou em
crime e a pena é a confirma çã o dessa objetivação , mediante

-
-
Poder-se ia , assim , elaborar um calend á rio dos grandes anti-
santos , onde figurariam , em tempos mais recuados , Sim ão o
como dizíamos mais acima —
uma inversã o do milagre. Numa
é poca interessada pela noção de pena de morte , n ão é supé r-
Mago , e mais recentemente , Roberto do Diabo , Ashavérus, Faus - fluo assinalar tal ponto.
52 53
São raras as regi ões onde n ão se encontrem vest ígios desses derante e universal , e que o universo da Legenda constitui ape-
anti-santos locais ; eles fazem parte da legenda ; sempre e por nas uma parcela í nfima do nosso pró prio universo. Podemos até
todo o lugar são c fruto dessa disposiçã o mental e mostram -nos dizer em que momento a Legenda perdeu sua vitalidade univer-
claramente o que n ã o devemos fazer , o que desejamos n ão apren- sal ; esse momento coincidiu com o final da Idade Média . A
der num momento dado da nossa exist ê ncia . Legenda perdeu força em todos os fen ômenos a que chamamos
A igreja cat ó lica n ão estabeleceu para os anti -santos, gran - Reforma ( e Reformas ) ao mesmo tempo que uma outra forma
des ou pequenos, um procedimento correspondente ao processo se afirmava. Em seus artigos de Schmalkalde , Lutero inclui os
de canoniza ção. A contracanonizaçã o efetua-se na comunidade , santos no n ú mero dos ‘‘abusos anticrist ãos ” ; para ele, o verda-
fora da autoridade constitu ída ; e o seu instrumento, a linguagem , deiro crist ão j á é um santo e n ão existe qualquer categoria espe-
redundou geralmente na criação de legendas , só raramente de cial para os heróis virtuosos. A virtude ativa , para Lutero , n ão
Vidas . No tocante a algumas Vidas que existem , elas modifica- se objetiva da mesma maneira por que se acreditava antes ; dei-
ram ami ú de as figuras de tal mode que, embora permanecendo xou de ser corroborada por milagres e n ão se reconhece mais
no â mbito da mentalidade de imitação , mudaram de sinal . o poder individual de personalidades celestes . A opini ão de
Lutero engloba a de todo o meio que ele representa: a media-
As Vidas dos Santos n ão ignoram semelhante gê nero de ção reservada ao Cristo e a certeza da salvação pela f é exclusiva
variaçã o e n ão é raro um santo começar a exist ê ncia como contra- em Jesus Cristo significam o fim de um universo em que os
-santo. É esse, inclusive, o sinal mais claro da virtude que se santos , os milagres e as rel íquias tinham seu lugar certo.
tornou atuante por graça de Deus , como no caso de São Gre-
gó ric , que começou por um duplo parricídio e um incesto para A disposição mental da imitatio n ão foi , contudo , inteira -
acabar os dias em cheiro de santidade. Tais santos talvez sejam , mente eliminada ; desloccu-se apenas o centro de gravidade e , o
justamente, os mais próximos para o comum dos mortais . que é de import â ncia fundamental , tornou -se ela secund á ria .
A Vida de um anti-santo produz, às vezes, em sentido algo Isto é igualmente v á lido para os cí rculos exteriores à Reforma ,
como se prova pela atitude do Concílio de Trento a respeito dos
diferente, uma modificação semelhante ; vemos , assim , Rinaldo santos , atitude nova , mais hesitante c mais cautelosa ; e foi essa ,
Rinaldini , Fra Diavolc ou Schinderhannes perder o car á ter malé- justamente, a razão per que se fixou e codificou , ent ão, o pro-
fico c deixar de encarnar uma malfeitoria . A mesma coisa pode cesso de canonizaçã o , como j á mencionamos antes.
acontecer quando esse gê nero de figura recebe novo cará ter numa
obra de arte: Fausto torna-se ent ão Fausto II . Não se tratava de temor em face das contestações refor-
mistas ; no Catolicismo , a disposição mental da \mitat\o també m
Vemos, pois , que a Forma Simples i á perde uma parcela de estava perdendo eficá cia , enquanto que outras formas se torna-
seu car á ter específico ao atualizar -se. O que acarreta , quanto
vam preponderantes . Contudo , a imitação e o seu ant ípoda moral
ao mé todo e para a definição das Formas literá rias , que as apreen -
deremos, tanto quanto possí vel , num dom ínio cm que elas ainda n ã o cessaram a atividade , como bem se demonstra pela persis-
t ê ncia ininterrupta do culto dos santos cm outros cí rculos cató-
n ã o est ã o fixadas e orientadas , mas ainda são Formas Simples
licos e pelo nascimento de todas essas antilegendas que brota -
ram , em grande parte , dos meios reformistas.
Quanto às é pocas em que a imitatio j á n ão reina da mesma
maneira que na Idade Média , é necessá rio procurar ami ú de as
IX Formas Simples extraindo-as das obras de arte ; e, ainda mais
freqiientemente, através de atualizações m ú ltiplas e dilu ídas.
Lamentavelmente, isso nem sempre é poss í vel. Sabemos Ainda n ão chegou o dia da elabora çã o de um quadro com -
que a disposição mental de que resulta a Legenda é vista , em pleto da Legenda em todas as suas é pocas, nem é esse o meu
nossos dias , sob luz inteiramente diversa daquela em que se intuito nesta obra . Limitar- nos-emos aqui a estudar alguns aspec-
manifestava na Idade M édia ; sabemos que deixou de ser prepon - tos suplementares da Legenda , hoje e na Antiguidade.

W
São raras as regi ões onde n ã o se encontrem vest ígios desses derante e universal , e que o universo da Legenda constitui ape-
anti-santos locais ; eles fazem parte da legenda ; sempre e por nas uma parcela í nfima do nosso pró prio universo . Podemos ate
todo o lugar são o fruto dessa disposição mental e mostram-nos dizer em que momento a Legenda perdeu sua vitalidade univer-
claramente o que n ão devemos fazer , o que desejamos n ã o apren- sal ; esse momento coincidiu com o final da Idade Média . A
der num momento dado da nossa existê ncia . Legenda perdeu força em todos os fenômenos a que chamamos
A igreja cat ólica n ão estabeleceu para os anti-santos, gran - Reforma ( e Reformas ) ao mesmo tempo que uma outra forma
des ou pequenos, um procedimento correspondente ao processo se afirmava . Em seus artigos de Schmalkalde, Lutero inclui os
de canonização. A contracanonização efetua-se na comunidade, santos no numero dos “ abusos anticrist ãos ” ; para ele, o verda -
fora da autoridade constituída ; e o seu instrumento, a linguagem , deiro crist ão j á é um santo e n ão existe qualquer categoria espe-
redundou gcralmente na criação de legendas , só raramente de cial para os heróis virtuosos. A virtude ativa , para Lutero , n ã o
Vidas. No tocante a algumas Vidas que existem , elas modifica - se objetiva da mesma maneira por que se acreditava antes ; dei-
ram ami ú de as figuras de tal modo que , embora permanecendo xou de ser corroborada por milagres e n ão se reconhece mais
no â mbito da mentalidade de imitação, mudaram de sinal . o poder individual de personalidades celestes. A opini ão de
Lutero engloba a de todo o meio que ele representa : a media -
As Vidas dos Santos n ão ignoram semelhante gê nero dc ção reservada ao Cristo e a certeza da salvaçã o pela f é exclusiva
variaçã o e n ão é raro um santo começar a exist ê ncia como contra- em Jesus Cristo significam o fim de um universo cm que os
-santo. É esse , inclusive, o sinal mais claro da virtude que se santos , os milagres e as rel íquias tinham seu lugar certo.
tornou atuante por gra ça de Deus , como no caso de São Gre-
góric , que começou por um duplo parric ídio e um incesto para A disposiçã o mental da imitatio n ão foi , contudo, inteira-
acabar os dias em cheiro de santidade . Tais santos talvez sejam , mente eliminada ; desloccu -se apenas o centro de gravidade e , o
justamente, os mais próximos para o comum dos mortais. que é de import â ncia fundamental , tornou -se ela secund á ria .
Isto é igualmente v á lido para os cí rculos exteriores à Reforma ,
A Vida de um anti-santo produz , à s vezes, em sentido algo como se prova pela atitude do Concílio de Trento a respeito dos
diferente, uma modifica çã o semelhante ; vemos, assim , Rinaldo santos , atitude nova , mais hesitante e mais cautelosa ; e foi essa ,
Rinald í ni , Fra Diavolc ou Schindcrhanncs perder o cará ter mal é- justamente , a razão per que se fixou e codificou , ent ã o, o pro-
fico e deixar de encarnar uma malfeitoria. A mesma coisa pode cesso de canonizaçã o , como já mencionamos antes .
acontecer quando esse gê nero de figura recebe novo cará ter numa
obra de arte: Fausto torna-se ent ão Fausto II. Não se tratava de temor em face das contestações refor-
mistas ; no Catolicismo , a disposição mental da imitatio també m
Vemos , pois , que a Forma Simples j á perde uma parcela de estava perdendo eficácia , enquanto que cutras formas se torna-
seu car á ter especí fico ao atualizar-se . O que acarreta , quanto
vam preponderantes. Contudo, a imitação e o seu ant í poda moral
ao m é todo e para a definição das Formas literárias, que as apreen -
n ã o cessaram a atividade , como bem se demonstra pela persis-
deremos, tanto quanto possí vel , num dom ínio em que elas ainda
tê ncia ininterrupta do culto dos santos em outros c í rculos cató-
n ã o est ã o fixadas e orientadas , mas ainda sã o Formas Simples
licos e pelo nascimento de todas essas antilegendas que brota -
ram , em grande parte , dos meios reformistas.
Quanto às épocas em que a imitatio j á n ã o reina da mesma
maneira que na Idade Média , é necessá rio procurar ami ú de as
IX Formas Simples extraindo-as das obras de arte; e, ainda mais
frequentemente, através de atualizações m ú ltiplas e dilu ídas.
Lamentavelmente, isso nem sempre é poss í vel . Sabemos Ainda n ão chegou o dia da elabora ção de um quadro com-
que a disposiçã o mental de que resulta a Legenda é vista , em pleto da Legenda em todas as suas épocas , nem é esse o meu
nossos dias , sob luz inteiramente diversa daquela cm que se intuito nesta obra . Limitar- nos-emos aqui a estudar alguns aspec-
manifestava na Idade Média ; sabemos que deixou de ser prepon- tos suplementares da Legenda , hoje c na Antiguidade.

55
As odes triunfais de Pí ndaro foram todas constru ídas em
torno do mesmo tema : começam pela indicação da vitó ria que

‘íxrco í o carro de ouro e os cavalos alados — n ão sã o gestos
verbais resultantes da cristalização de uma determinada dispo-
lhes serve dc pretexto , desenvolvem depeis um tema mitol ógico siçã o mental ? A figura de Pélops n ã o ocupa , na festa cultual
ou heroico , e retornam , como remate , à vitó ria . A essa narrativa que se segue à vitória , o mesmo lugar do santo diariamente
intercalada dá-se geralmente o nome de Mito . cultuado pelo catolicismo ? Pélops e T â ntalo n ão são um santo
e um contra -santo ? O elemento b ásico desse poema n ã o conté m
Comecemos pela I Ode Ol í mpica , para citar o exemplo mais uma legenda e uma antilegenda ? Assim sendo , n ã o chamaremos
famoso, aquele que o câ none dos poemas pind á ricos coloca antes “ mito” nem “ narra çã o m ítica ” a esse elemento e recolocá-Io-
dos demais como que para servir - lhes de modelo. Essa ode
começa por um elogio dos Jogos Ol ímpicos em geral , depois -emos no universo que lhe pertence: o universo da imitação.
aborda seu verdadeiro assunto, que é a vitó ria do cavalo Phere- Dornseiff viu bem que tal “ elemento básico ” n ão está
nikos, pertencente a Hierão de Siracusa , e , portanto, à vit ó ria reservado aos poemas cultuais gregos e que se encontram ele-
de Hierã o. Nesse momento, o poeta passa imediatamente a con - mentos an á logos nos poemas cultuais eg í pcios, babiló nicos, india -
tar a histó ria de um herói , Pélops, fundador de Ol í mpia e caro nos , germ â nicos e de numerosos povos primitivos.
a Posscidon . Antes de encerrar a narrativa , Píndaro interrompe-a Vejamos , com efeito , o que nos diz a segunda Encantação
para falar de Tâ ntalo, o pai de Pélops , que n ão honrou os deuses de Merseburgo , utilizada para curar os cavalos paral í ticos : Phol
e malbaratou suas oferendas. Descreve o castigo que os deuses e Wotan partem a cavalo para a floresta ; depois , o potro de
lhe infligiram ; depois, volta a Pélops c relata comc, pretendente
da jovem Hipodamia , recebeu de Posseidon um carro dc ouro e
cavalos alados que lhe asseguraram a vitória e a mão da jovem .
curar o animal por meio de um conjuro ; enfim
nossa transi ção— qualquer cavalo , qualquer

Phol fere uma pata e v á rias deusas se juntam a Wotan para
homem
e a í est á a
, pede ser
Assim , o poeta retorna aos Jogcs Ol í mpicos, ao seu significado curado da mesma maneira . Estamos, sem d ú vida , num universo
c à vit ória alcan çada por Hier ã o na corrida de carros . dc imitação ; Phol e Wotan são os santos desse universo e a
Como indicamos antes, este plano é o de todos os Epin ícios história deles é uma legenda . É també m verdade a respeito do
— e reencontramo-lc em outros poemas. Em sua exposi ção dos
Litterariscbe Verwendungen des Beispiels [ Usos Literá rios do
médico eg í pcio que, tendo de curar uma mordida de serpente ,
começa por contar a história do deus Ra, quando foi mordido
Exemplo ] ( Vortr á ge der Bibliothek Warburg , 1924-25 ) , a que por uma serpente . Tem razão os assiriólogos quando chamam
voltaremos a fazer referência , Dornseiff diz que todos “ os poe- lendas explicativas a esses começos de encantação.
mas cultuais entoados pelos coros, quer se chamem pe ãs , diti- E quando Virg í lio inicia a sua epopé ia com Arma virumque
rambos, epin ícics, part ê nios, ou prosódios ” , comportam essa cano para vincular , em seguida , mediante uma ficção poé tica , o
parte narrativa principal ; e chamou a tais poemas cultuais ou herói troiano Enéias à história de Roma , e concluir a sua Intro-
m élicos , “ uma espécie de mistura de cantata e de balada ”. du ção com as palavras tantae tnolis erat romanam condere gen -
lem , é ainda e sempre a legenda que transparece sob um forma
O que significam , pois , nesse conjunto , o Tâ ntalo inimigo eminentemente art ística .
dos deuses e o Pé lops ajudado pelos deuses ? Não ser ão tam-
bé m pesonagens que nos fazem ver claramente o que devemos Só que a História da Legenda ainda est á para ser escrita .
fazer ou evitar ? O que desejamos aprender ou ignorar numa
dada conjuntura da existê ncia ? Personagens que podemos, pois,
seguir e que nos podem aceitar ou vice-versa ? Nã o haverá um
princí pio que se objetiva neles de modo tal que se converte em X
poder , o qual , por outro lado , eles poderã o conferir ? A vitó ria
do carro de Pélops não é o que quer designar c, ao mesmo Em que situação se a Legenda em nossa época ?
encontra
tempo , n ão significa a vit ó ria numa corrida e em todas as vitó- É certo que a disposi o
çã mental para a imitação n ã o é
rias vindouras O S úppoJ xpúcreoj e os TCTepotcRV à xoqiavTeJ muito ativa nem muito viva entre n ós ; as legendas que conhc -
V» 57
cernos são , em geral , res íduos tradicionais de é pocas anteriores. O recorde també m pode transformar-se em objeto , em pré-
Após termos recordado , uma vez mais , as festas triunfais da mio atribu ído quando um novo recorde bata o recorde anterior .
Grécia , reflitamos sobre o modo como apreciamos os vencedores Para o clube do campeão vitorioso, tal objeto é uma relíquia .
de nosso tempo, quer dizer, os vencedores nos esportes. O que Enfim , h á també m a d á diva graciosa , pois o vencedor ofe-
significam para n ós Rademacher e Peltzer , Paavo Nurmi , Suzanne rece sua vitó ria ao clube e ao país a que pertence ; o pa ís que
Lenglen , Tilden , Tunney , Dempsey , Schmeling Vicrkõ tter , deté m o recorde tem sua importâ ncia e, mesmo que se tenha
Ederle . . . ? poucos contatos com o esporte , rcage-sc de modo diferente
Pessoalmente indiferentes , eles representam , contudo, algo segundo o nadador mais rá pido na travessia da Mancha seja
que nos parece digno de ser atingido e imitado. N ão são a inglês ou alem ão.
objetivação de uma virtude, mas o lugar em que se torna atuante O campeão esportivo n ã o possui uma verdadeira hagiografia ,
uma força para a qual transferimos a nossa própria força e que mas a Forma Simples que é a Legenda existe naquelas pá ginas
nos admite em si : s ã o modelos imit á veis . E essa força ativa que os jornalistas reservam aos esportes e que est ão nitidamente
torna -se mensurá vel ao confirmar-se naquilo a que chamamos u m separadas das outras rubricas. O gesto verbal tem a í , com fre-
qu ê ncia , o aspecto de uma linguagem particular e pouco cuidada ,
recorde. Uma palavra estranha , cujo sentido atual remonta ape-
mas nem por isso é menos verdade que knockout é um gesto
nas aos ú ltimos vinte anos do século XIX , pois recordari signi
fica “ lembrar-se ” e o record inglês é a coisa que recorda ou que
- verbal .
se recorda . Records of the Past é o que nos resta registrado do Dissemos , no começo, que é perigoso fixarmo-nos demais
passado , ou o que o passado nos restitui . O record que nos na imagem particular de uma forma . Com efeito, a legenda hagio-
gr á fica do Ocidente cató lico apresenta-se- nos com contornos t ão
interessa é definido no Dicion á rio de Oxford da seguinte ma-
n í tidos e t ão bem delineados que nos é dif ícil aceitar que a
neira : A performance or occurrence remarkable amotig , or going mesma disposiçã o mental se reencontre nas páginas esportivas do
btyond , others of the sarne kind [ Um desempenho ou ocorrência nosso jornal . Entretanto , justamente um aspecto essencial de
extraordinária entre , ou acima de outros da mesma espécie ] * nosso trabalho é redescobrir certas formas em fen ômenos cuja
— defini ção esta que já se orienta quase na direção do milagre . força desapareceu parcialmente e onde elas est ão enterradas , assim
O recorde esportivo n ão é milagroso no sentido medieval , como definir as formas cujo aspecto exterior j á n ão seja “ liter á -
mas é-o na acepção de um desempenho, até ent ão inexistente e rio ” , em absoluto.
aparentemente imposs ível ou inacessí vel , que confirma uma força
atuante. Pede acontecer , est á claro , que um indiv íduo perse -
guido por um touro furioso bata todos os recordes dos 100 me
tros ; mas , ainda que ele tenha , por mero acaso , olhado para o
-
seu relógio, n ã o considerará essa proeza um recorde —
jornais nem falarão dele. Só falamos de recorde quando a força
e os
atuante se tornou um fatc na pessoa do vencedor. Este é o
ú nico que “ det é m ” um recorde. Se os 100 metros sã o percor-
ridos em x segundos, nada se opõe, em teoria , a que um indi -
v íduo os percorra em x menos n segundos ; no sentido esportivo ,
porém , essa possibilidade não será reconhecida enquanto um cam -
peã o n ão tiver coberto os 100 metros em x menos n segundes
— enquanto o milagre n ã o tiver ocorrido.

(*) Em inglês no original. ( N. do T. )

58 59

Observar-se-á o mesmo fen ô meno em duas outras formas
o Mito c o Conto porquanto , do prisma histó rico , també m

elas significam uma narrativa não atestada ou imprová vel , mas
isso é ainda mais verdadeiro no caso da Saga .
Sage significa , segundo o dicion á rio de Grimm : 1. No
sentido lingu ístico , a faculdade de falar , o ato verbal. 2 . O que
se diz em geral : informa çã o , declara çã o etc., e , numa acepção
A SAGA particular, declaração feita perante um tribunal , testemunho
autê ntico , predição etc.
I Em 3 . encontramos : tradição propagada por via oral , relato
de um acontecimento ou de um fato. O artigo subdivide-se ent ão
em ( a ) a Saga pode referir-se a um fato “ quase ” contemporâ neo
Antes de passar a outra Forma Simples , que é a Saga , ( o advé rbio est á no dicion á rio ) ; e o redator ( o volume foi
vamos fazer alguns coment ários sobre o sentido dessa palavra . preparado no semin á rio de Mcritz Heyne ) acrescentou: “ A Saga
Legenda é um neutro plural que significa “ coisas a dizer ” est á freq ú entemente ligada à idéia de incerteza , de incredibili-
e se tornou na Idade M édia um feminino singular da primeira dade, até mesmo de cal ú nia , embora possa ser empregada sem
declinação: legenda, genitivo legendae. Evoca uma atividade este matiz . ” ( b ) A Saga pode referir-se a um acontecimento
quase ritual , pois as Vidas de santos são lidas p ú blica e solene- passado e, neste caso, significa : relato , narrativa referente ao
mente em ocasiões determinadas ou ainda consideradas, de modo passado e, mais particularmente , ao passado remoto, tal como
se transmitiu de gera ção em geração. Indo mais longe , lê-se
muito geral , como literatura de edificaçã o pessoal — e sabemos
agora como essa leitura se orienta no sentido da imitação. Quan -
que , ( tf ) no passado , n ã o havia absolutamente nenhuma oposiçã o
entre o conceito de Saga e o conceito de Histó ria , mas també m
do a palavra se aplica a uma sé rie dc Vidas , assume um pouco
que ( b ) “ o crescente vigor da crí tica acarretou uma evolu ção do
o sentido do latim legere = reunir , escolher. Mas adota igual-
conceito de Saga como relato de acontecimentos passados e n ão
mente o sentido de uma história n ã o atestada pela Histó ria e o
corroborados pela História ”; c, enfim , que esse conceito “ evolui
adjetivo “ legend á rio” mant é m acentuadamente esse aspecto, por- em seguida e passa a designar uma narrativa ou uma tradição de
quanto designa o que n ão é verdadeiro no sentido hist órico . História repletas de ingenuidade e transformadas , em sua passa -
Vê-se, de modo claro, o que acontece nessa transição de sen- gem de uma geração a outra , pela faculdade poé tica da sensibi-
tido. Os elementos que decorrem de uma determinada dispo- lidade popular , criação livre da imaginação popular que vincula
sição mental e da Forma que lhe corresponde só tê m validade suas composições a acontecimentos, a personagens ou lugares
no interior dessa Forma. O universo de uma Forma Simples importantes ; o uso n ão conhece distin çã o rigorosa entre as pala -
só é v á lido e coerente em seu próprio interior ; desde que se vras Sage ( Saga ) , Mythus ( Mito ) e Af àrcbeti ( Conto ) ”.
lhe retire um elemento para transpô-lo a outro universo, tal Devemos assinalar, em primeiro lugar, que esta ú ltima parte
elemento deixa de pertencer à sua esfera original e perde a n ão d á o sentido da palavra , mas apenas uma definição do con -
validade. ceito dc Saga . E tal definição é a de uma determinada escola ,
Vejamos agora , por um instante , o universo da História
para n ão termos que precisar mais adiante o que desejamos desig-
nar por essa palavra : tudo o que era importante no interior de
— que só concebe a Saga em relaçã o a um conceito a que chama
Hist ória. A partir dessa História é que ela interpreta e delimita
a Saga. É muito perigoso, sobretudo para um lexicólogo , con -
uma outra Forma perde o seu sentido na Histó ria e tudo o que fundir Definição e Significação. O resultado da confusão é que
faz parte da Legenda torna -se, pois, do ponto de vista da His- um estrangeiro poderia imaginar , ao ver esse verbete , que o
t ó ria , inacredit á vel , duvidoso e , por fim , inveross í mil . verdadeiro sentido da palavra alem ã Sage fosse negativo e que

60 61
se emprega para indicar “ o que n ão é atestado pela História ”. .
minadas. Mas vejamos a continuação : 2 In incorrect uses
Semelhante ideia é simplesmente falsa. Quando empregamos a ( partly as the equivalent of tbe cognate gertnan sage ) : a story ,
palavra Sage, queremos designar algo perfeitamente positivo
a menos que a oponham implicitamente à História . Pode acon-
— popularly believed to be matter of fact , which has been develo-
ped by gradual aceretions in the course of ages , and has been
tecer que empreguem a palavra erroneamente e num sentido handed down by oral tradition; historical or heroic legend , as
contrá rio ao original ; també m pode ocorrer que a noção associa - distinguished both from authentic history and from inlentional
da à palavra seja um tanto imprecisa ; mas nem por isso é menos fiction [ Em usos incorretos ( em parte como equivalente do cog-
certo que designa uma Forma positiva . Se falo da Saga dos nato alem ã o sage ) : uma narrativa , que popularmente se acredita
Borguinhões , n ão quero com isso designar uma representação de seja baseada em fatos , desenvolvida per graduais acréscimos no
acontecimentos relativos ao reino borgonhês a que faltasse o decorrer dos tempos e transmitida por tradição oral ; lenda his-
aval da Histó ria ; tampouco pretendo designar uma criaçã o livre tó rica ou heroica , que se distingue tanto da Hist ó ria aut ê ntica
da imaginação popular ligada a acontecimentos importantes da como da ficção intencional ]. Portanto, é uma história que as
história borgonhesa ; quero designar , isso sim , aquela compo- pessoas acreditam ser verídica , que evoluiu e se ampliou pouco
sição, a Saga dos Borguinh ões , que tenho diante dos olhos , pro- a pouco no decorrer dos séculos , e que assenta numa tradi çã o
duto acabado c tang í vel , que tem coerência c validade internas.
Não me teria alongado tanto sobre o equ í voco de Heyne
oral ; é uma “ lenda ” histó rica ou heroica — o que nos indica ,
de passagem , que a “ lenda ” ( legend ) se emprega també m em
se ele n ão fosse a confirmação gritante do que dissemos mais inglês para designar uma narrativa que n ão é “ verdadeira ” , isto
acima , a saber , que a Forma por nós provisoriamente denomi - é , que se distingue da Hist ó ria autê ntica e da criação deliberada -
mente fict ícia .
-
nada “ História ” comporta se como inimiga da Saga , ameaça -a ,
persegue- a , calunia- a e falseia-lhe antecipadamente os conceitos. Esta acepçã o aproxima -se do uso alem ã o mas , repita-se,
Se partirmos de uma determinada disposição mental , tudo o que trata-se de um uso erróneo, de um emprego incorreto e impreciso
era positivo numa na outra torna-se negativo; toda verdade se da palavra. E é a esse emprego incorreto e impreciso para o
converte cm mentira . A tirania da Hist ó ria chega ao ponto de inglês que corresponde a palavra alem ã Sage.
afirmar que a Saga n ão possui exist ê ncia real e constitui apenas Remontemos da Inglaterra para o norte e encontraremos ,
uma espécie de t í mido prel ú dio à própria Histó ria. Assim , vemos efetivamente, duas palavras nó rdicas : a primeira é sagn , que cor-
o sentido da palavra Sage enfraquecer pouco a pouco, até que o responde , de modo geral , ao uso assinalado no final do artigo de
seu uso se confunde com o de Mythus e M àrchen ( Mito e Con - Grimm e anotado no Dicion á rio de Oxford como incorrect use
to ) , aos quais o ponto de vista “ histó rico ” també m atribui o [ uso incorreto ] ; a segunda palavra é saga , que designa um gê ne-
sentido de n ão-Histó ria . ro liter á rio islandês.
Compare-se o dicion á rio alem ão com um dicion á rio inglês
e ter-se-á outra perspectiva. O inglês ignora a palavra Sage mas
conhece Saga. Para Saga , encontramos os seguintes significados
no Dicion á rio de Oxford : 1 . Any of the narrative compositions II
in prose that were written in Iceland or Norway during the mid -
dle ages [ Qualquer das composições narrativas em prosa que Encontramo-nos , pois, na situação em que nos colocamos
foram escritas na Isl â ndia ou Noruega durante a Idade Média ] ; ao estudar a Legenda . Tínhamos começado por estud á-la sob a
depois , em 1 b sentido figurado : a narrative having lhe ( real
} forma particular de que se revestia no universo da lenda medie-
or supposed ) characteristics of the Icelandic Sagas [ uma narra- val; agora , começaremos por examinar de perto, a fim de definir
tiva que tem as caracter ísticas ( reais ou supostas ) das sagas a natureza da Saga , esse velho gê nero n ó rdico que é a sç gur.
islandesas ]. Portanto, a palavra inglesa evoca , em primeiro lugar , Trata-se de narrativas em prosa e l íngua vulgar que encon -
um gênero literá rio associado a um pa ís e a uma é poca deter- tramos em manuscritos desde o século XIII ao século XV .

62 6.3
_
Informa ções de natureza muito diversa permitem concluir que
sses relatos cm prosa remontam a tradições orais e que a sua
por iniciativa própria , na descriçã o da casa . Tudo que é objeto
está subordinado à açã o ; jamais os atributos se convertem em
orma se constituiu a partir de relatos orais. epí tetos ornamentais, capazes de destacar o objeto, como tal , da
Em primeiro lugar , diferem , estil ística e sintaticamente , de ação e conferir-lhe perenidade. A paisagem recebe o mesmo tra-
outras obras em prosa , no chamado estilo “ erudito”, e n ã o se tamento. Enfim , tais narrativas em prosa utilizam ami ú de o
vislumbra qualquer influência latina . Depois , reconhecem a verso e sé ries de poemas .
própria origem , dado que nos deparamos ami ú de em expressões O segundo grupo n ã o é formado por relatos familiares , no
como “Conta-se q u e . . . ” Em terceiro lugar , n ão são conside- sentido estrito do termo , mas por relatos reais ou régios , Só
radas obras propriamente literá rias, pois n ã o se atribuem a um que esses relatos régios est ã o longe de ser aquilo a que chamamos
autor , a um determinado poeta , mas constituem tradiçã o anó- hist ó ria pol í tica. Seus reis agem , precisamente, como germ â-
nima . Enfim sabemos , por outro lado , que , dc fato , houve nicos do norte ; s ão v í kings conquistadores e aguerridos ; e todos
“ narrativas ” desse gê nero muitos séculos antes , por ocasião dc os elementos que atribu í mos ao conceito de Estado est ão ausen -
festas ou outros acontecimentos importantes. tes. Tais reis lutam como indiv íduos , como membros de uma
A Histó ria , assim como o conte ú do das sogur , permitem família e, em seu n í vel real , comportam-se como chefes de fam í-
determinar at é onde remonta tal tradição. Ela conduz- nos ao lia do primeiro grupo cm seu dom í nio agrá rio. Quanto ao estilo
final do primeiro terço do século X , isto é , a uma é poca em que e à sintaxe, este segundo grupo n ã o difere do primeiro , exceto
terminara a colonização da Islâ ndia. Pode-se dizer que os manus- na medida em que descreve um objeto diferente c de espécie dis-
critos de sogur constituem a reda ção de uma tradi ção que se tinta .
constituiu mediante relatos orais solidamente estruturados e Os dois grupos t ê m por limite hist ó rico extremo o final da
fechados sobre si mesmos , depois de 930 e durante os séculos primeira metade do século XI . Nã o contê m acontecimentos pos-
seguintes. teriores a essa data . Seu palco é a Islândia, o litoral norueguês,
Se examinarmos essas narrativas do ponto de vista do tema a Groenlâ ndia , as ilhas Feroé e aquelas regiões do mundo que
e do conteú do, poderemos distinguir três grupos . os reis v íkings abordaram em suas expedições . Cessaram após a
O primeiro grupo engloba os relatos respeitantes aos colo- introdu çã o do Cristianismo .
nos islandeses , seus vizinhos , seus contempor â neos, sua origem É preciso adicionar-lhes um terceiro grupo , que vai alé m
e relações recí procas , os fatos naturais e sobrenaturais com que daquilo que encontramos nos dois outros. Em primeiro lugar ,
se depararam . Não se trata da conquista da Isl â ndia pelos norue- est á muito menos localizado no tempo c no espaça, pois engloba
gueses , mas sempre de hist ó rias a respeito dc indiv íduos que , e inclui materiais muito anteriores à colonização da Islâ ndia .
como indiv íduos, fazem parte de uma fam ília . Fica -se conhe- Al é m disse , conhece heróis cuja pá tria de origem certamente
cendo o lugar onde esta ou aquela fam ília construiu a casa ou n ã o é a Isl ândia nem qualquer povo germ â nico do norte. Enfim ,
fundou a granja , c engrandecimento de seu património , os con - esses relatos v ão ainda mais longe , pois contam coisas que classi-
tatos que teve com outras fam ílias do mesmo distrito , as rixas , ficamos entre os gê neros dc que , para falar em termos gerais ,
as reconciliações , as hostilidades e as tréguas, o n ú mero de filhos é imposs ível determinar o tempo e o lugar , gê neros esses que
e filhas, o lugar onde os filhos arranjavam mulher , as fam ílias hoje começam pela f ó rmula : “ H á muitos anos, num pa ís longí n -
em que as jovens entravam pelo casamento. Ora uma fam í lia
é sintetizada num indiv íduo , seu chefe , era se apresenta como
quo . . Entretanto— e a í está o ponto que nos interessa
tratam tais materiais de modo tal que n ão podemos separá - los
— ,

um todo. dos grupos precedentes , e contam suas histórias como se os


Esses relatos seguem vigorosamente seu caminho sem ofere- personagens fossem id ênticos e cs acontecimentos compará veis
cer mais do que uma constante ação ; quando é constru ída uma ao que se desenrolou numa família de colonos islandeses. Tanto
casa , o narrador fornece apenas as indicações necess á rias para no que concerne ao estilo como à sintaxe , são igualmente insepa-
descrever a constru ção como um acontecimento , sem se demorar , rá veis das duas primeiras categorias citadas.

64 65
Ao primeiro grupo dá-se o nome de hlendinga sç gur ( sç gur
de islandês ) ; ao segundo , Koningà s ç gur ( s ç gur de reis ) ; e ao mesmo ao tornar-se Saga real ou Saga Fornaldar — e imprimiu
seu cará ter a novas formas , a partir dessa forma . Heusler mostra ,
ú ltimo grupo, Fornaldar s ç gur ( s ç gur dos tempos de antanho ) .
al é m disso, como indicamos acima , que a dita forma tem origem
Bem entendido , os historiadores de literatura n ão tardaram oral e já possu ía na Isl â ndia solidez e contornos polidos bastantes
em procurar encaixar essas categorias numa ordem cronológica . para poder fixar-se sem dificuldades nem modificações impor-
Seria desnecessá rio acrescentar que uma época debruçada sobre tantes em escritos correspondentes ao seu cará ter .
a histó ria dos temas e prisioneira do evolucionismo teria forço-
samente de considerar mais antiga a categoria que contivesse os Se insisto tanto nestas quest ões é porque Heusler escolheu ,
materiais mais primitivos e de tentar estabelecer uma evolu ção em seguida , um rumo diferente ; sem cair na velha histó ria dos
entre essa categoria e as outras mais recentes. Acreditava -se ser temas , prestou , entretanto , menos atençã o aos aspectos morfo
lógico dos problemas ; a segunda razão de minha insistência de-
-
possível afirmar , assim , que certos temas , presentes desde o
começo da Idade Média entre os povos germ â nicos e islandeses , corre do fato de existirem atualmente numerosas tendências que
teriam sido retomados no século XII pelas Fornaldar s ç gur islan - sentem , precisamente , necessidade de voltar ao primeiro Heusler.
desas . Em seguida , os islandeses teriam contado da mesma ma - Assim , lemos numa cr í tica dedicada por Boor aos estudos sobre
neira a história de seus reis e de seus colonos . os Nibelungos ( Zeitschrift fur Deutsche Pbilologie , 5 2 ) : “ Creio
ser necessá rio abrir també m aqui os horizontes demasiadamente
É aqui que se situa , com a intervenção de André Heusler, limitados aos interesses alem ã es e reconhecer que a saga tem
uma das datas importantes na histó ria do m é todo “ morfológico”. direito a uma problem á tica cient ífica . També m neste caso , esta-
Heusler , que tinha um sentido agudo das formas , publicou em mos operando continuamente com uma equa ção a duas incógni-
1913 um artigo , destinado à Academia de Berlim , com o t í tulo tas. Portanto , interessemo-nos mais pela equação de maior sim -
de Die Antange der islàndischen Saga [ Os Prim órdios da Saga plicidade e formulemos , a respeito da forma da saga , uma ques-
Islandesa ] ( Berlim , 1914 ) ; Heusler demonstra a í que a forma t ão a que seja possível responder por meios positivos. ”
Islendinga sç gur esteve necessariamente na origem das duas
outras categorias e , alé m desse resultado , em minha opiniã o irre-
fut á vel , demonstrou també m que se cai fatalmente em erro se


se procurar tratar os problemas desse tipo pela histó ria dos temas.
Erros compará veis e n ão estou exagerando
— ao que consis-
tiria em situar os romances de Willibald Alexis antes do Wertber , III
cu os de Walter Scctt antes dos de Fielding , a pretexto de que
se encontram temas medievais em Alexis c em Scott , enquanto Quanto a nós , trata-se agora de compreender , em toda a
que Wertber e Tom Jones t ê m temas contempor â neos. sua amplitude c no seu todo, o fen ô meno que Heusler observou
Depois de seu estudo Lied und Epos , que já dava uma com precisã o nesse ponto especí fico que é a Islâ ndia dos séculos
resposta clara e precisa a uma importante quest ão

a saber ,
as relações da poesia épica , como forma erudita , com outras
X e XI.
Eis a nossa primeira verificação : as formas que se encon-

formas art ísticas, incluindo o Lied , Heusler interveio aqui ,
ainda mais violentamente, num dom í nio mais preciso . Estabe-
tram nos manuscritos islandeses entre os séculos XIII e XV
n ã o são Formas mais Simples que as vidas de santos compiladas
leceu que a verdadeira forma específica da saga , tal como foi nos Acta Sanctorum. Quer dizer , o que temos a í é, novamente ,
constitu ída na Isl â ndia numa é poca determinada , é precisamente a atualizaçã o de uma Forma Simples ou , como dissemos ent ão ,
a forma que se encontra nas narrativas familiares do primeiro uma Forma Atual. Mas a tradição oral e constituída , fixada nos
grupo ; estabeleceu também ser nessas narrativas que ela se rea- manuscritos , tampouco é uma Forma Simples; embora n ão seja
liza e só depois de ter alcançado coesão é que se apossa de escrita , essa tradição est á para a forma que procuramos assim
temas diferentes ; que manteve sempre a sua forma primitiva
— como a Vida de um santo est á para a Legenda ; tal tradição é
atual , em certo sentido j á é uma Forma erudita . Para reencon-
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1
trar a Forma Simples , a partir da qual as s ç gur se constitu íram zla n ão é confiada a uma inst â ncia especial , mas à pró pria fam í-
como atualizações escritas ou orais , faz-se mister apurar dc novo lia em quest ão.
a disposiçã o mental e o universo em que essa forma é vá lida .
Numa saga como a Lenda dos Camponeses do Lago, pode-
O que é que temos na lslendinga Saga? J á esbocei uma mos acompanhar a história de um cl ã através de seis ou sete
resposta ao dar algumas indica ções gerais sobre essa categoria ; gerações . Entretanto , a narrativa é constru ída de tal modo que
convirá ser agora mais preciso. Chama -se- lhe geralmente história nela se reflete o poder e a gl ó ria do cl ã , culminando no decurso
familiar , mas a expressã o presta-se a confusões. Tendo verifi- de uma geraçã o e , dentro desta , consubstanciando-se num indi-
cado que o conceito de Histó ria é inimigo de vá rias Formas v íduo determinado . Esse apogeu é Ingimund , o homem chegado
Simples , empregarei essa palavra com cautela . Se pensarmos em da Noruega à Isl â ndia para tomar posse do dom ínio epônimo da
termos dc “ história ” , poder-se-á ter a impress ã o de que as s ç gur Saga . Sc considerá ssemos apenas os personagens , o conjunto
realizam , de fato, o histórico ou a crónica de uma fam í lia ; se > poder-se-ia intitular “ Lenda de Ingimund , de seus pais e de
procurarmos, poré m , entendê- las sem preconceitos , elas mostram
a história existente apenas como evento na história de uma fam í-
sua descend ê ncia ”. Quanto mais uma gera ção — mais velha ou
mais nova — est á próxima do personagem em que se manifesta
lia — e de uma fam ília que escreve a histó ria. Para evitar , de
preferência , todo e qualquer emprego de tal termo , direi simples-
o maior poderio do cl ã , mais c plano geral da lenda se torna
claro e preciso. As figuras mais n í tidas, depois da de Ingimund ,
mente que a construção interna da lslendinga Saga assenta na sã o as de seu pai , Thornsten , c de seus três filhos . O avô e os
noção de família. netos são pá lidos esboços, os bisnetos apenas sombras confusas .
As relações entre os diversos personagens dessa saga sã o, Entre a quinta e a sexta geração , o poderio do cl ã passa a um
cm primeiro lugar , relações entre pai e filho, entre avô e neto , ramo lateral c um filho de Kebs entra na fam ília , que ele encar-
entre irm ãos , entre irm ã o e irm ã , entre marido e mulher . Tais nará da í em diante. Converte-se ao Cristianismo, o cl ã entra em
indiv íduos est ã o vinculados entre si por laços dc sangue e suas nova fase e chega ac fim a hist ó ria que culminou na pessoa de
relações mutuas são produzidas pelo clã , a raça , a origem . Se Ingimund . Ao ler-se esta lenda , depara-se- nos a cada página
a fam ília entra em contato com estranhos , estes são concebidos conceitos que temos hoje o costume de aceitar em sentido histó-
e avaliados a partir do clã ; ou os estranhos formam , por sua vez
uma fam í lia , ou ent ão s ão indiv íduos que a fam í lia admitirá ou —
rico ; e esses conceitos — conquista , derrota , opressão, libertação
j á n ão dizem respeito a um povo , mas sempre a um cl ã , uma
rejeitará. Todo o subalterno ingressa na fam í lia e fica sob sua tribo , uma fam ília. O sentimento nacional chama-se aqui espí-
responsabilidade. rito de fam ília ; os direitos e deveres n ão se regem pelos impe-
rativos da sociedade, da res publica, mas pelos interesses do
Os indivíduos da lslendinga Saga , tal como Heusler a defi- cl ã , pelas exigê ncias do parentesco, e a comunidade burguesa de
niu , n ão são noruegueses expatriados que se estabelecem na Isl â n - interesses tem aqui o nome dc v ínculos de sangue. A base e
dia nem , na verdade , são islandeses ; são gente que habita tal o fundamento desse universo são os v í nculos de sangue , a comu-
colina , ou tal enseada , n ão formando nem um impé rio, nem nidade do sangue, a vingan ça no sangue , o casamento, a pater-
uma nação , nem um Estado , e sua totalidade é como que uma
nidade , a parentela , a herança, o patrimó nio , a hereditariedade .
sema algé brica cujo resultado depende do sinal de cada fator .
Possuem , evidentemente , numerosos traços comuns, mas o adje-
tivo “ comum ” n ã o designa aqui traços pró prios de todos, sem
Partindo de um ponto localizá vel no tempo e no espaço
o conteúdo de uma Forma atual — —
, chegamos assim , pois , aos
exceção alguma . Mesmo quando vários indiv íduos se reú nem no caracteres gerais que procur á vamos. Existe uma disposiçã o men -
Thing para deliberar em conjunto e tomar decisões comuns, é tal em que o universo se constró i como fam ília e se interpreta ,
como chefes de fam ília que se congregam . em seu todo , em termos de clã , de á rvore genealógica , de v í nculo
O primeiro e quase único domínio regulamentado pela sua sangu íneo. Essas disposição mental e esse universo são reencon-
legisla ção diz respeito às violações dos direitos de fam ília e âs trados, dc maneira clara , em outros pontos da Islâ ndia dos
discórdias no seio das família ; quanto à execuçã o de sentenças, séculos X c XI , mas é esse universo que queremos designar

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quando empregamos a palavra saga ; é esse universo e apenas caster e de York , divididas h á muito anos por assassinatos,
ele que designaremos doravante pelo nome de saga . sedições e traições, na chamada “ Guerra das Rosas ”. Após a
Sei muito bem que tal accpção encontrará dificuldades maio- ascensão ao trono da Inglaterra , teve ele duas filhas , Margaret
res do que o emprego da palavra “ lenda ” para designar a forma , c Mary , e um filho , Henrique, que lhe sucede. Esse sucessor ,
tal como a hav íamos tomado . Vimos que o uso é diferente , a Henrique VIII , casou seis vezes. Dois dos casamentos s ão anu -
julgar pelos sentidos e definições dos dicion á rios ; quanto ao lados , duas das esposas são executadas por sua ordem , uma
grande n ú mero de obras correntemente chamadas “ sagas ” nas outra morre ao dar à luz o ú nico filho varão que ele ter á , a
antologias , assim como cm estudos mais ou menos cient íficos , ú ltima esposa sobrevive-lhe. Esse filho , Eduardo VI , tem dez
n ão falaremos de Saga e preferiremos design á-las por “ Gestas ” . anos à data da morte do pai . A regê ncia é sucessivamente
As tradições compiladas por Grimm sob o t í tulo de Deutsche assegurada por dois duques, dos quais o segundo casa seu pró prio
Sagen , tal como as Natursagen de Dã hnhardt , só em parte í nfima filho com uma neta do segundo filho de Henrique VII . Com o
correspondem ao que chamamos saga . Uma das mais importantes desaparecimento de Eduardo, morto aos dezesseis anos , ele tenta
tarefas da Morfologia consiste , justamente, em combater , no colocar esse casal no trono. Mas a tentativa fracassa e os conju -
interesse das formas e para defini- las , as liberdades e negligê ncias rados são mortos . Sobe ent ão ao trono uma filha do primeiro
do uso. Quando falo de Heldensage ( Saga heróica ) , n ão tenho casamento de Henrique VIII , Mary , a Cruel. Esta morre sem
em mente designar a tradição oral relativa a um acontecimento deixar herdeiros e sucede-lhe Elisabeth , irm ã detestada de um
que a História me faria conhecer de modo incompleto ou que segundo leito. Um dos episódios mais conhecidos da vida de
a História n ão atesta ; tampouco me refiro a um personagem his- Elisabeth é o conflito que a opõe a Mary Stuart , neta de Mar-
tó rico transformado pela faculdade poé tica da alma popular ; que- garet e tia de Elisabeth. Mary Stuart é rainha da Escócia pelo
ro designar , sim , o representante heróico de um cl ã determinado , casamento e casou três vezes : com um rei de Fran ça , com um
o detentor heredit á rio das altas virtudes de uma raça . primo c com o assassino de seu segundo marido. Elisabeth man-
da executar Mary Stuart , morre sem filhos e seu sucessor é o
A saga é, pois , para nós, uma Forma Simples que se atua -
lizou , primeiro oralmente , depois por escrito
— — sendo a Islen-
dinga Saga uma realiza ção particular , e que assumiu cará ter
filho de Mary Stuart .
Seria dif ícil imaginar um enredo mais complicado de rela-
t ão marcado que pôde imprimir suas caracter ísticas pró prias a ções familiares. Contudo, n ão diremos que a histó ria da casa
elementos que , na origem , lhe eram estranhos. Essa atualizaçã o Tudor, na Inglaterra do século XVI , contenha acontecimentos
permite- nos decifrar e captar n disposiçã o mental e as id éias que
produziram a forma . Para interpretar a disposição mental da
que realizem , de algum modo, a Saga — sob pena de deixar reen -
trar pela janela aquela histó ria dos temas que hav íamos posto
saga utilizaremos as seguintes chaves : Família , Clã , V í nculos de na porta da rua de nossa cr í tica literá ria . Os participantes n ão
Sangue. vivem essa histó ria como saga , os contemporâ neos n ã o a sentem
como tal . É t ão saga quanto a de Cinderela , a menina boazinha
de um primeiro casamento , a ruim madrasta e as duas irm ã s
orgulhosas.
Por quê? Porque nem Henrique VIII , nem Eduardo VI ,
IV nem Mary, nem Elisabeth , se consideravam , em primeiro lugar ,
descendentes de Henrique VII , membros da sua fam ília e do
Queremos definir agora o que designamos por disposição cl ã Tudor ; porque o sentimento que domina , ante a execu ção de
mental . A forma Saga n ã o se constitui toda a vez que exista , Jane Grcy ou de Mary Stuart , não é o de assistir à morte de um
no acontecimento hist ó rico , uma Fam ília , uma situação familiar , parente consangii í neo e de um membro do clã ; porque , no con -
uma cat ástrofe familiar. flito que opõe Mary Stuart , católica , a Elisabeth , protestante ,
Vejamos um exemplo : Henrique Tudor esposa Elisabeth de o catolicismo e o protestantismo n ão são interpretados como coi-
York , casamento que reconcilia as ambições das casas de Lan- sas que separem duas irmãs a quem os laços de parentesco deve-

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riam unir ; pelo contrá rio, as duas mulheres s ão vistas como disposi ção mental e, assim , a saga é desapossada de seus elemen -
encarnações de duas religiões antagónicas ; porque , enfim , o tos bá sicos.
povo inglês , ao observar esse conflito, ao intervir nele , n ã o Vejamos , a respeito , outro exemplo. No segundo canto da
toma partido por um protagonista numa querela de fam ília , mas
Ilí ada ( versos 100 e segs. ) , deparamos os gregos reunidos numa
interpreta o conjunto na base de convicções religiosas ou nacio- grande assembleia encarregada de tomar decisões da maior impor-
nais. A disposição mental que se realiza na forma de Saga est á t â ncia . Trata-se, de fato , de decidir se a expedição contra Tróia
será mantida ou abandonada . Chefe supremo do exé rcito , Aga -
ausente de semelhante debate .
Inteiramente ausente ? Claro que n ão. O Trono é heredi- menon toma a palavra , ele , o detentor do bast ão de comandan -
tário , eis um gesto verbal que indica o ponto onde um aconte- te , do crxijTtipov ( = cetro ) . Foi Hefaísto quem o modelou
cimento se cristalizou para tornar-se forma e fazer-se linguagem com arte e o remeteu a Zeus Kronion . Zeus encaminhou -o a
na mentalidade do clã e nos v ínculos de sangue. Mas , no caso Hermes , que o remeteu a Pélops , o domador de cavalos ; Pé lops
presente , se o trono é heredit á rio , n ão é heran ça . N ão é o enviu -o a Atreu , o pastor de povos , e este, ao morrer , legou-o
trono que pertence à casa Tudor , mas esta que pertence ao trono. a Tieste, o de incont á veis rebanhos ; e Tieste, por seu turno , dei-
O trono n ão é um objeto que encarne o renome e a dignidade xara -o a Agamenon , para que o empunhasse e reinasse sobre
de uma família , n ão é uma coisa que consubstancie o poder de numerosas ilhas e sobre toda a Argólida .
um clã e se encarregue de objetivar o poder dessa fam ília . Para Vimos mais acima São Jorge elevado aos altares e assina -
a forma da Saga , o treno é o mesmo que a relíquia para a forma lado pela roda do supl ício ou pelo cavalo e lan ça que lhe ser-
da Legenda . Significa a Inglaterra , o reino inglês, o Estado viram para combater o dragã o ; vimos o gesto verbal de sua legen -
inglês, e os Tudor podem ser a fam ília reinante na Inglaterra e da tornar-se atributo de sua figura celeste. Temos aqui um
legat á rios de direito do trono inglês que nem por isso a Ingla - espetá culo an á logo : o do soberano que , num momento decisivo ,
terra passe a ser um bem de fam ília , uma herança , tanto para apóia-se num atributo. O cetro foi fabricado por deuses que o
os Tudor como aos olhos dos ingleses . fizeram passar de m ã o em m ão. Depois , chegou à posse de
Vê-se, pois , que a forma de Saga é mais dif ícil de apreender homens , num cl ã ; e, dentro desse clã , foi passando de novo de
que a forma de Legenda . O que dizemos da forma vale també m pai a filho , de irm ã o a irm ão, de tio a sobrinho. Significa o
para a palavra : uma certa perspectiva diluiu e esvaziou a pala - poder soberano no seio do cl ã e fora dele. Sc Agamenon é aqui
vra e , do mesmo modo , a noção de Estado e o sentimento nacio- o soberano é porque os deuses conferiram -lhe soberania à fam í-
nal repeliram o universo constru ído sobre a disposição mental lia e porque ele pró prio , na fam ília , é o chefe e detentor do
familiar. cetro.
Nao é por acaso , portanto , que a Islendinga Saga desapa- Agamenon fala nesse instante aos outros gregos no conselho
rece quando surge o Cristianismo ou , melhor dizendo , a igreja porque sua família foi lesada , a esposa de seu irm ã o foi raptada .
cristã . A igreja vincula seus fi é is à comunidade e à paróquia , A fam ília do raptor n ão lhe aprovou o ato mas , porque é uma
instaura um novo parentesco — do homem com o homem ; assim fam í lia , o raptor continua sendo membro dela c enquanto ela
fazendo , retoma a linguagem da Saga c apropria -se dos gestos o considerar seu membro , carregar á com toda a responsabilidade
verbais dela , pois seus sacerdotes são “ padres ” , seus membros de seus atos e compartilhará do seu destino . As duas fam ílias
irm ãos e irm ãs, e os indiv íduos que vivem na comunidade espi- est ão , pois, frente a frente , separadas pelo rapto de uma esposa ,
ritual e religiosa sã o igualmente “ fratres ” ( a palavra latina donde pela guerra tribal e pela vingan ça — tudo gestos verbais caracte-
derivam “ irm ã o ” e “frade ” ) ; esta analogia destrói , poré m , a rísticcs da Saga .
verdadeira forma da Saga , a qual só conhece os v í nculos e o Com isto, n ão queremos dizer , poré m , que o conjunto a
parentesco de sangue. Todos os acontecimentos importantes da que chamamos Ilíada seja apenas uma saga . Em primeiro lugar ,
saga c da fam í lia — nascimento , casamento e morte —
portados pela igreja , mediante um sacramento , para uma outra
são trans- estamos diante de uma Forma erudita , que é a Epopé ia e que
possui leis pró prias . Segundo , a mentalidade da saga foi ligei -

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ramente modificada no interior da Epopeia , porquanto ja encon- grcs do santo após a morte, com a diferen ça apenas de que ,
tramos nela certos elementos caracter ísticcs da noçã o de povo, desta vez, a herança se transmite por si mesma de geração a
mais t ípica da gesta que da saga : essa confederação, que no gera çã o.
começo n ão era mais que uma aliança de fam ílias , começa a Vcmos , cm seguida , os irm ãos entrar em conflito por ques-
ganhar coloração nacional e j á surpreendemos na Ilí ada o esboço t ões de soberania , de mulheres c propriedades. A Ilí ada ( Canto
de um confronto entre Tró ia e Grécia , entre Leste c Oeste , e o II , 106 ) fala- nos de Tieste , o de numerosos rebanhos ( TioX ú apvi
pressentimento da Grécia em oposição à Á sia . Nã o obstante , a Ou éovr) ) . Ficamos sabendo, mais tarde , numa transposição
saga ainda é poderosa , preponderante e rege até , em numerosas poé tica , que um dos irm ãos recebera um cordeiro de ouro, ao
passagens , de modo decisivo , o curso das id éias. Apreendemo- la qual estava associada a soberania. O outro irm ão seduz ent ão
num ponto especí fico e é a í que vemos o poder ser transmitido a cunhada e rouba o cordeiro com a ajuda dela . É a entrada ,
nesta fam í lia , do adulté rio.
na casa dos Á tridas , na ra ça de Pé lops , no seio do cl ã , poder t ã o
vinculado ao cetro que veio dos deuses e que os homens deixam Em seguida , Atreu vinga-sc assassinando os filhos de Tieste
em legado de era em era . Cada indiv íduo é herdeiro ; cada coisa , e fazendo com que o pai deles , mandado chamar por um arauto ,
pela sua import â ncia de objeto , pode ser heran ça . Em suma , os coma . Depois desse abomin á vel festim , Atreu apresenta ao
esses nove versos constituem , para n ós, a Forma atual pura de pai os pés e as m ãos de seus filhos. É o assassinato familiar
uma saga — e a í discernimos a Forma simples como tal .
Poder-se-ia seguir em pormenor os vest ígios que foram dei-
levado ao extremo da devoração dos filhos. Finalmente , Tieste
une-se à sua própria filha e gera um filho que matará em seguida
o filho de Atreu , com a ajuda de sua esposa. O incesto implan -
xados no universo grego pela saga consagrada à raça de Pélops , ta-se na fam ília , as relações do cl ã formam uma rede indestrin -
de Atreu e dos Á tridas, saga que a Il í ada nos oferece de modo çá vel . Restaria saber se a ferocidade extrema destes últimos
muito linear ; encontrar-se-á depois toda uma rede de relatos que traços nos levam a uma realiza ção muito antiga ou se , pelo con -
repetidamente se interceptam , feixe intricado de atualizações d ís- trá rio , a um estado muito recente da saga . Deixemos este ponto
pares , infinidade de fenômenos que contê m quase tudo o que de lado : os exemplos citados querem apenas mostrar o universo
a saga pode englobar . Estou persuadido dc que ser á necessá rio da saga levado aos seus limites extremos.
deslindar um dia esse emaranhado , mas n ã o posso dedicar-me Essas histórias que se modificam incessantemente , que dife-
aqui a fazê- lo. Quero apenas puxar alguns fios da meada como rem constantemente nos pormenores , que se apresentam ora sob
ilustração da saga . uma forma cra sob outra , que fontes no- las fazem conhecer ?
Vemos os dois lilhos de Pé lops, Atreu e Tieste , assassinar , Temos, em primeiro lugar , menções breves , notas marginais,
com a ajuda da m ã e , Hipodaméia , um filho natural e morga - glossas e fragmentos; temos també m os historiadores que pro-
n á tico do pai deles e , em seguida , jogar- lhe o cad á ver num poço , curaram , mais tarde, unificar e concatenar , o melhor possível ,
após o que o pai pronuncia uma maldiçã o sobre a sua tribo , cujo tais elementos dispersos, e també m alguns escritores, compa-
efeito se prolongará at é à s gerações mais remotas , É aqui que r á veis aos nossos autores de colet â neas. Temos , por fim , obras
surgem os gestos verbais, essas unidades elementares em que literá rias que, cada uma por seu lado, se apoderam de uma par-
a saga se cristaliza ; assim , temos de um lado o filho natural , o -
cela , de um extrato , e o convertem , tomando o em si e por si ,
bastardo , corpo estranho no seio da fam ília , nascido do pai e numa forma literá ria , numa realizaçã o ú nica . Mas a saga desse
clã em parte nenhuma se apresenta em seu conjunto; e tampouco
parente pelo sangue, ao mesmo tempo que permanece exterior
se possui uma epopeia que represente, globalmente , o destino
à família por ele desagregada ; do outro lado , temos a maldiçã o ,
que é o gesto verbal em que se objetivam o ódio e a execraçã o dos descendentes de Pélops.
gerados por um indiv íduo em seu pró prio cl ã , gesto cujo poder Isto prova , uma vez mais , que a saga foi transmitida oral-
mente , caminhou de boca em boca por todo o universo grego
se exerce, uma vez mais, na fam ília e para alé m da exist ê ncia
dos indiv íduos envolvidos — o que o torna compará vel aos mila - — e antes , sem d ú vida ; que era conhecida por toda a parte ;

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que só se atualizou numa narrativa estruturada na Isl â ndia do nome: de sagas e gestas convertem -se em epopeias ( epos ) . E
século XI ; que n ã o encontrou , para mantermos nossa termi - a épica , forma erudita , dotada de recursos e leis próprios , con-
nologia , a transição da gesta à saga . Por isso ela conservou suas fere a todas as coisas um padrã o de tal modo claro, uma fisio-
feições m ú ltiplas e mudou constantemente de forma exterior ; nomia t ã o precisa , um estado t ão definitivo, que a saga també m
por isso foi contada de maneira diferente segundo o tempo e assume contornos certos; impressionados por essa nova Forma ,
o lugar ; por isso n ão pôde ser fixada por escrito de um modo j á n ã o logramos imaginar que a saga possa ter sido uma Forma
determinado. Somente a sua constru çã o e a sua forma internas simples , simultaneamente ágil , diversa e fluida , capaz de mudar
se conservaram constantes , somente a Forma Simples n ão variou e de se transformar em suas próprias atualizações como gestas.
nela , somente a saga se conservou intata na gesta . Nascida da Não a julgamos capaz de ter sido um dia outra coisa sen ão uma
disposição mental vinculada à fam í lia , ao cl ã , aos laços de sangue, história unit á ria que representa fatos determinados de determi-
ela construiu todo um universo a partir de uma á rvore genea - nada maneira.
l ógica ; e tal universo mant é m-se id ê ntico a si mesmo no tumulto Na Alemanha , essa incredulidade é confirmada pela evolu -
de suas variações — universo da glória ancestral e da maldiçã o
paterna , do patrim ó nio e das rixas entre famílias, das mulheres
çã o que se produziu na Isl â ndia em parte das tribos germ â nicas,
durante os séculos X e XI.
raptadas e do adult é rio, do sangue derramado na vingança e
misturado no incesto , da fidelidade e do ódio familiares , universo A lenda foi ali transmitida oralmcntc e evoluiu de maneira
do pai e do filho, do irm ã o e da irm ã , universo da hereditarie- constante até resultar na Islendinga Saga. Foi ent ão que se deu
dade. Nesse universo, o Bem , o Mal , a coragem e a covardia , a absorçã o de novos materiais e se tornou poss ível pô r a saga
n ão sã o qualidades pessoais , a propriedade j á n ão é posse do por escrito , sem dificuldade. Conclu ímos , pois , que as coisas
indiv íduo: a fonte de todo o significado e de todo o valor é a devem ter acontecido de maneira an á loga entre os outros germa -
fam í lia e o destino do homem recai sempre no clã . nos. Ofuscados pela epopéia , prisioneiros també m da nossa
incredulidade, começamos ent ão a praticar m á ciê ncia com base
na saga , atualizando- a n ós pró prios por meio de uma hipó tese:
partindo da sua conformação interna e de seus elementos persis-
tentes , inferimos dela uma forma atualizada ; esta poderia faltar ,
V ter desaparecido , n ão se encontrar em parte alguma , que isso

Embora as coisas sejam assim , seria arriscado, entretanto,


n ão alteraria a nossa convicção de que ela deve ter existido
c acreditamos em nosso poder ou até em nosso dever de recons-

aplicar aqui o m é todo da histó ria dos temas para tentar salientar titu í- la , digamos mesmo , de fabricá -la. Repetimos: é a í que est á
um “ tipo primitivo” , se assim podemos chamar -lhe, da saga o perigo, pois , ao talhar assim à medida a Forma atual de uma
dos Á tridas ; isso seria querer deduzir ou mesmo reconstituir , a saga artificial , é muito prov á vel que estejamos violentando a
a partir de in ú meras “ variantes ” em que ela se atualiza , uma Forma simples e que essa constru çã o nos barre o caminho do
versão ú nica para , em seguida , afirmar que todas as demais são conceito. O que se precisa saber mio ê o aspecto que possa ter
meras transformações “ ulteriores ” dessa forma ú nica ; ou a id éia tido uma saga mas o sentido que lhe é peculiar e, sobretudo,
poderia ser até que, de tal modo, é poss í vel observar um mesmo cumpre sabê-lo para compreender como a saga exerceu seu efeito
“ relato ” cm diferentes “ fases de sua evolu çã o” . sobre a epopé ia . Para tanto, deixaremos de lado a observação
dos elementos modificá veis e de suas modificações, a fim de
Semelhante perigo n ão é de temer no tocante à saga dos comparar esses elementos modificá veis com os elementos perma -
Á tridas ; mas quando se trata de outras sagas helé nicas ou , sobre- nentes, no intuito de aduzir o significado destes ú ltimos .
tudo , alem ãs , assistimos a repetidas tentativas nesse sentido. O
motivo é que tais sagas, ao invés da de Atreu e Tieste , rece- Admitamos que a Forma Simples, a saga , assim como suas
beram seu cará ter final e definitivo quando uma Forma erudita atualizações em gestas, exerçam efeitos concretos , por vezes, nas
delas se apoderou de maneira ú nica. Elas mudam ent ão de obras dessa forma art ística ou erudita que é a epopéia ; em tal

7Ú 77
caso , a primeira quest ã o n ão consiste em saber que Forma atuali-
zada pode ser encontrada na Ilíada ou no Nibelungenlied , nem lises , os Nibclungos, os Borgundos, são outras tantas famílias.
indagar o aspecto que a saga poderia ter quando foi atualizada c Os Hunos també m são uma fam ília e n ão um povo inimigo; eles
de que a epopeia ainda n ão se apoderara ; impõe-se indagar , pri- constituem o clã de Etzcl. Etzel nada tem de inimigo nacional
dos germanos nem de flagelo de Deus. É um marido, um chefe
meiro , que rela çã o pode existir entre essa Forma Simples
a saga resultante da disposiçã o mental da fam ília , do clã e do
— de fam ília , ligado por sua esposa às querelas de outra família . . .
parentesco de sangue — e uma Forma art ística dotada de leis
próprias ; e que cará ter novo , pró prio e atual , lhe é imprimido
a menos que nao cobice o tesouro em que se consubstancia a
riqueza familiar . Encontramos aí reunidos todos os elementos
da fam ília : a propriedade, a luta tribal , a vingan ça no sangue, o
pela forma artística.
A Legenda permitiu -nos ver antes que uma parte dos gran -
des movimentos que agitaram os povos ocidentais se compreende
entre mulheres , o concubinato

assassinato familiar , a fidelidade fraternal , o ciú me , as rixas
mas tudo ampliado e prestes
a resolver-sc , quando conveniente, quase em comédia.
pela disposição mental de imitação ; assim é que as Cruzadas se A Canção dos Nibelungos apresenta-se, pois , como fruto
colocam sob o signo da legenda . Podemos acrescentar agora de uma saga germ â nica c n ão da forma atualizada de uma gesta ,
que uma outra parte, mais antiga , desse mesmo movimento est á que se poderia determinar ou mesmo reconstituir. Podemos
associada de maneira idêntica à noção de Saga . Uma parte distingui-la , portanto, graças à sua disposição mental , do seu
importante do fenômeno a que chamamos as grandes migrações emulo rom â nico, a Cbanson de Roland , onde todos os traços da
efetua -se no sentido dessa disposição; n ão se trata de um movi - saga est ã o ausentes e substitu ídos pela disposição mental da
mento orientado , em seu todo c em seus pormenores , pela imi - lenda e da gesta heroica. Epopéia das grandes invasões, por
tação mas sim de cl ã s que est ão em migra çã o , que se sentem uma parte ; epopéia das Cruzadas , por outra parte: duas Formas
como cl ãs isolados, fam ílias , sendo cada fam ília , por seu turno , eruditas que se valem mas se enra ízam em duas disposições men-
o que faz a coes ã o do clã . Todo acontecimento hist órico se tais distintas.
torna então Saga : o desaparecimento de um povo chama-se desa -
parecimento de uma fam ília ; a vit ó ria de um povo cristaliza-se
num gesto verbal para tornar-se vit ó ria do chefe da fam ília , do
herói da lenda; o entrechoque de dois povos, quer se trate de
um recontro entre migrantes ou de sua colisão com sedentá rios , VI
jamais pode ser concebido de outra maneira . Vê-se bem o papel
de produção, de criação e de interpretação que a linguagem de- Depois de observarmos a saga nos gregos e nos germanos ,
sempenha nessa experiência vivida ; vê-se, com igual nitidez , que assinalarei brevemente um terceiro ponto em que a saga se
muitos elementos da saga se atualizam ent ão, os quais, na confu- cristalizou de modo particular e em que se volta a encontrar um
s ão e no turbilh ão das coisas , só adquirirã o fisionomia elaborada povo concebido como fam ília e concebendo-se como tal. A tra-
quando a lenta colonização da Isl â ndia , a partir da Noruega , o dição conservada no câ non do Antigo Testamento ensina-nos que
tornar poss í vel .
os israelitas se representavam a si mesmos como Fam ília de
Reencontramos tal impressionante diversidade na epopéia
essa epopéia em que sempre reaparecem aconteci mentes anterio- — Abraão , cuja descendê ncia se multiplicava rapidamente em obe-
diência à ordem de Deus, estando as doze tribos ligadas a outros
res . A diversidade persiste a í como herança direta das formas tantos irm ãos . També m aqui os indiv íduos são todos herdeiros
atualizadas das gestas, mas a disposi ção mental da saga faz-se e a propriedade é a herança. A provaçã o mais dura que se pode
igualmente presente, de modo preponderante . Com efeito, em impor a um pai é o sacrif ício de um filho e , neste , de sua fam í lia.
nenhuma parte as paixões e os destinos de uma família sã o mais A bê n çã o paterna é a tal ponto um objeto e est á imbu ída de tal
inextricá veis e mais expressivos que na Canção dos Nibelungos poder que conserva seu efeito até em gerações a que n ão se
( Nibelungenlied ) . Tudo nela são fam ílias: os Gibiches, os Wa - destinava ; e pode ser roubada como uma coisa tangí vel . Deus
é aqui o Deus dos pais , o Deus de Abra ão , de Isaac e de Jacó.
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Reencontramos, uma vez mais, a fidelidade ao irm ão, a discó rdia com a mesma força , o colorido é pá lido e falta a grandeza do
entre irm ãos, as dissenções familiares , o ci ú me e rodos os traços gesto.
afins que reaparecem , simultaneamente , como gestos verbais e
A mesma coisa em maior escala . Por maior que fosse o vigor
como experiê ncia vivida pelos indiv íduos e pelos heróis em que
com que o Cristianismo combatesse a saga em sua pró pria essê n-
a saga se cristalizou .
cia , pois proclamou a fraternidade entre todos os homens, teve,
Como n ão tenho inten ção de escrever a história da saga , poré m , de adotá - la num ponto : a noção de pecado original. A
tampouco tratarei em pormenor a saga israelita ; remeto simples- grande comunidade crist ã , apesar de tudo, recebeu uma certa
mente o leitor para os fatos relatados pela saga dos patriarcas e , heran ça . Herança que se manifesta nos primeiros pais , nos ances-
por outro lado, para os acontecimentos que tiveram lugar na trais mais antigos ; heran ça que se objetivou e conservou seu
casa de Davi e sã o referidos em Samuel II e em Reis I . A poder de era para era , como a maldição paterna no seio do
mat é ria é novamente compará vel , enquanto que a disposição cl ã ; heran ça que só seria abolida, em certo sentido, pela divin-
mental é inteiramente distinta ; e vemos que a forma de que dade, ao cindir -se, como na saga , em pai e filho. Houve , é
resultam os patriarcas e sua descendê ncia é diferente da forma certo , uma outra disposição mental que se esforçou por unificar
segundo a qual um filho de rei vivia e era visto na época de esse par num terceiro membro, estranho à fam í lia ; houve, tam-
Davi ; nesse momento, a história de uma famí lia e a quest ão bé m , mais tarde , gente que tentou eliminar a mãe , mas a relação
mon á rquica interpretam -se a partir do Estado de Israel . subsistiu e a saga conservou todo o seu efeito. O pecado here-
dit á rio e o filho de Deus redentor cont ê m igualmente gestos
Iodas as vezes que a focalizamos até agora , a Saga estava verbais, lugar de cristalização poé tica c de conservaçã o de formas .
ligada a um movimento de popula çã o. Encontramo- la nos semi-
tas em curso de migração, nos germanos em curso de migração É correto , parece-me , ligar a noção de pecado original à
ou de coloniza ção. É prov á vel que a saga dos Á tridas també m hereditariedade, tal como foi representada no século XIX : trans-
tenha se formado na é poca da invasã o d órica ; parece mesmo miss ã o heredit á ria de caracteres e de enfermidades de toda a
que a saga hel é nica retomou ent ã o um material mais antigo que espécie, peso da hereditariedade em suma , a hereditariedade que
os pró prios invasores e dotado por eles de um modo determi - serviu de ponto de partida para as investigações científicas mais
nado. Os dóricos reinterpretaram a saga , alteraram - na e recon - diversas. Que esforços n ão se fizeram para observar essa here-
duzi ram - n a ao Mal— temos aí um fenômeno id êntico à forma-
çã o da antilenda. Viu -se, por outro lado, que existe um fenô-
ditariedade em seus elementos de pormenor e até para calcula-
da ! A transmissão de caracteres hereditá rios tornou-se a base
meno a que chamarei , de forma gené rica , “ formação do Estado” de todo um sistema , o darwinismo , assim batizado em honra do
ou “ conceito de Estado” , e que se opõe à saga , tal como a seu mais ilustre representante , Darwin . Ele fez da natureza
Reforma ( nome igualmente gené rico de um outro fenômeno ) uma saga , reduziu todos cs fen ô menos vivos a uma á rvore genea-
elimina a legenda . lógica , estudou seus v í nculos de parentesco, interpretou -os em
termos de parentela . A ci ê ncia da natureza converteu -se em ci ê n -
Olhemos agora à nossa volta , em nosso pró prio meio. Nos
pa íses n órdicos , a saga n ão deixou de se formar a partir da men -
cia das origens e da genealogia — -
e dedicou se t ão eficazmente a
tal hipó tese fundamental que chegou à conclusão de que o homem
talidade de família , como foi demonstrado por Knut Liest </> 1 descende do s ímio.
( Norske Aettesò gor , Cristiânia, 1922 ) . Por outro lado , n ã o é
verdade que os nossos camponeses continuem a viver no modo As consequê ncias dessa disposi çã o mental manifestam-se,
de saga , concebendo e avaliando a propriedade , os atos , os direi- uma vez mais, em certas formas artísticas. É a grande narrativa
tos e os acontecimentos segundo os conceitos de fam ília , de clã , em prosa que se apodera dos conceitos de hereditariedade e de
de parentesco pelo sangue ? Os que est ão familiarizados com o origem ; é ela que se apossa da saga . Lembremos, simplesmente ,
campo certamente conhecem tal saga , que continua existindo, em o subtítulo de Rougon- Macquart : Histoire naturelle et sociale
literatura , nas narrativas campesinas. Só que , neste ú ltimo caso , d’une famille sous le Second Empire ; recordemos igualmente o
a cristaliza ção poé tica é menor , a linguagem n ão pode intervir t í tulo que Galsworthy deu ao seu ciclo romanesco: Forsyte Saga ,

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t í tulo este que corresponde ao uso inglês e se associa , sem cair
no “ uso incorreto ” , à Islendinga Saga.
Estamos terminando com a Saga . Vimos que ela é mais
dif ícil de fixar que a Legenda , porquanto se encerra mais estrei-
tamente em sua disposição mental ; porquanto as suas atualiza-
ções , com raras exceções, têm linhas menos seguras e cará ter
menos marcado ; porquanto a saga n ã o está para a gesta exata- O MITO
mente como a Legenda est á para a Vida dos Santos. Alé m
disso, o seu gesto verbal tem um grau m ínimo de cristaliza ção I
poé tica , menos clareza , menos brilho. Sendo mais t í mida por
natureza , tem um modo de expressão mais dif ícil de qualificar.
Seja como for , temos diante dos olhos uma Forma Simples
alojada numa forma de linguagem em que os indiv íduos e os Os estudantes universitá rios encarregados do tomo “ M ” do
objetos significam o herdeiro e a heran ça. Esses objetos são o dicion á rio de Grimm ao chegarem a “ my ” estavam provavel-
dom í nio do cl ã , o tesouro familiar , a espada do pai ; esses indi- mente com pressa de voltar para casa. Escreveram eles:
víduos são os heróis do cl ã , seus parentes e aliados , mas també m “ Mythe , /. Sage, unbeglaubigte Erzàhltwg , aus dem griech
a avó cujo fantasma encarna toda a fam í lia e se mostra quando ( j.O 0 oJ umgebildet , das geschlecht nach sage , geschichte ,
um infort ú nio a ameaça ou as Fylgias dos s ç gur . fabel , erzahlung u . áhtil. geàndert ."
Eis um jovem que foi exposto e criado numa fam í lia estran- [ Mito, f . Saga , narrativa n ão atestada ; derivado do grego
p,O 0oJ com mudança de gê nero por analogia com saga ,

geira. Ele entra , sem ser conhecido , no quarto onde se encontra
o avô e tropeça. O avô ri e diz-lhe: “O que tu n ão viste, hist ória , f á bula , conto etc. ]
eu vi. Quando entraste , um jovem urso branco te precedeu e , Segue-se uma vaga citação de Uhland e é tudo.
ao ver-me , imobilizou -se. Tu , tu vinhas com demasiada pressa e O Vocabulário de Filosofia de Eisler ( 2 .a edição ) é mais
_
tropeçaste nele . Creio , pois , que n ão és o filho de Krumm ,
explícito:
mas de uma raça mais nobre. ”
“ Mito ( de (au0oj = discurso, narrativa transmitida ) : é
A Fylgia é esse jovem urso branco que acompanha as pes- uma concepção da vida e da natureza , uma interpretação
soas , embora permaneça invis í vel , e permite aos pais , de que dã natureza que constitui elemento da religião numa fase

se avizinha , reconhecerem quem pertence ao mesmo clã . Ela determinada da sua evolu çã o e que se funda na imagi-
acompanha , na verdade , cada personagem da Saga . naçã o e no antropomorfismo , numa “ apercepçã o personifi-
cante ” e na “ introjeção ” ( ver estas palavras ) . Produto da
imaginaçã o, o mito possui igualmente uma lógica particular ,
conté m uma cosmologia primitiva e , por assim dizer , é uma
“ protoíilosofia ” ; est á na origem do desenvolvimento da
ciê ncia e da filosofia— em parte graças à oposiçã o entre
o pensamento conceptual , tornado adulto , as personalidades
excepcionais e as concepções imagin á rias e antropomórficas
desse mito . . . ”
A comparação entre os dois verbetes deixa transparecer uma
situaçã o ainda mais complicada que no caso da Saga . De um
lado, Grimm desvaloriza o mito ao falar de historicidade e ao

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estabelecer uma equa ção simples: mito = saga = narrativa n ão cer ; nunca se detém e só pousa por um favor especial que n ão
atestada. Por outro lado, o Voçabulário de Filosofia aborda o concede a todos os povos. Acontecimentos remotos corriam o risco
mito sob outro aspecto e desconhece , por seu turno, uma parte - -
de perder-se na noite dos tempos ; a saga alia se lhes c faz questão
de preservar uma parte deles; o mito enfraquece e ameaça dissipar -
de sua autonomia. O mito , diz- nos a primeira frase , é uma con- -se: a História acode em seu apoio. Mas se o mito e a História
cepção da vida c da natureza , uma interpretação da natureza . sc encontram e unem mais intimamente , ent ão a epopeia levanta seu
Mas o mito constitui apenas um elemento da religi ão, numa fase andaime e tece sua tela . Vós escrevestes [ refere-se a Dahlmann ]
muito acertadamente: se a diligência dos contemporâ neos não tiver
determinada da sua evolu ção , e só assim e poss ível compreen- o cuidado de notá- la , a História expõe-sc a desaparecer da mem ória
dê- lo. A segunda frase ensina- nos que o mito cont ê m uma cos
movisã o “ primitiva ” , sem especificar se devemos entender “ pri
dos homens ou , se a saga se apossar dela , a transformar-se
ainda que se conserve — na mesma proporção em que o fruto

mitivo ” da icepção de “ original , simples , n ã o elaborado” , ou mais duro ou o mais amargo pode , se for acomodado com arte,
convertcr -se— —
-
quase a bel - prazer no mais temo ou no mais
no sentido de “ rudimentar ” , sendo possí veis os dois significados , doce. Essa transformação , essa passagem , eu a aceito, mas não a
segundo Eisler ( ver o verbete “ Primitivo ” cm seu Vocabulá rio ) . acomodação. Pois nã o é justo dizer que foi acomodado o que
De qualquer modo , esse “ primitivo” faz novamente do mito uma transformou c modificou uma virtude que atua silenciosamente e
fase preliminar
— — n ão preliminar da Histó ria mas da Filosofia
, uma “ protofilosofia ” ; mas , ao mesmo tempo , faz do mito a
age inconscientemente. Com efeito, raras são as sagas inventadas e
a fraude n ão resiste indefinidamente aos olhos da cr í tica —
mesmo modo que a Hist ória falsificada n ão pode ceder perante o
do
origem do “ desenvolvimento ” da ciê ncia e da filosofia . poder muito superior da Histó ria verdadeira . . . ”
Alem da “ Histó ria ” , o mito tem , pois , um outro inimigo
que lhe nega todo o cará ter específico para fazer dele , t ã o-so- Estamos longe das trivialidades dos dicioná rios! Eis um
mente, uma fase preliminar , elemento primitivo dentro dc uma excelente exemplo da linguagem de Jacob Grimm , do seu estilo
evolu ção orientada para o alto . Teremos todo o tempo necessá rio e da sua maneira de ver as coisas. A saga e a História estão
para travar conhecimento com esse novo inimigo. Gostaria , diante de nossos olhos, com seu cará ter diferente , a espécie em
poré m , de acrescentar uma terceira citação, que mais n ã o seja que cada uma se apresenta c realça o seu valor pró prio . Entre-
para darmos descanso aos dicion á rios. tanto , foi - nos mostrado com clareza em que consiste verdadeira-
Em 1835 , Jacob Grimra dedicou sua Deutsche Mythologie mente a saga e quais sã o as suas relações com a Histó ria ? Aque-
a um historiador , Friedrich Christoph Dahlmann , que fora o la bela imagem em que a saga é como uma luz ou um perfume
primeiro, na é poca moderna , a estudar de perto uma das fontes que se prende a um objeto, permitir- nos-á compreender melhor
de Grimm , a saber , Saxo Grammaticus. Tal dedicató ria , que é como as coisas se passam ? Ver como a Saga se alia a eventos
igualmente uma primeira introdu ção , fornece sobre todas essas remotos ? Compreendemos o que significa , nesse contexto , o
formas indicações mais profundas que os dicioná rios, pelo que mito ? O mito é o princí pio de toda Saga e designa , por seu
transcreveremos na íntegra o trecho: lado, “ a cren ça numa divindade, crença essa que se enraíza , em
graus infinitamente variáveis , em todos os povos ” . Devemos
“ Saga e História sã o duas potcncias particulares c , sc os seus
respectivos dom í nios se sobrepõem nas fronteiras, ambas possuem concluir que toda a crença numa divindade é um mito ; ou mesmo,
também , cada uma de seu lado , terrenos virgens e distintos. Toda simplesmente , que o mito significa sempre a cren ça numa divin -
saga tem por terreno o mito , isto é, & crença numa divindade , dade ? Alé m disso, há um ponto em que esperá vamos a palavra
crença essa que se enra íza , em graus infinitamente vari á veis , em Saga e em que a palavra Mito toma , de s ú bito , o lugar dela ; um
todos os povos; é um elemento muito mais gen é rico e muito mais ponto em que lemos que o mito acode em apoio da Histó ria.
inst á vel que a coisa histórica , mas ganha em amplitude o que perde
cm consistê ncia e solidez. Sem essa base m ítica , a saga seria t ão Quer isso dizer , então, que mito e saga s ã o conceitos indiscer-
mal apreendida quanto a Histó ria sem os fatos ocorridos. Enquanto n í veis ? Deveremos ler : mito = saga ? O mito e a História
que a História c o produto de atos humanos , a saga é a luz que casam -se e ent ão a epopeia vem levantar seus andaimes e tecer
ilumina e brilha em seus interstícios , o perfume que se lhe prende. a sua tela . Conservemos a imagem : de minha parte , desejo sin -
A História nunca se repete, é sempre fresca e nova ; a saga renasce
incessantemente. A História avan ça com passo firme na terra ; a ccramentc travar conhecimento mais amplo com os dois cônju -
saga , levada por asas , desprende se do solo, ascende e volta a des-
* ges, antes de felicit á-los pelo enlace ; e ardo de impaciê ncia por

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aprender a composição ucsse apareiho de tecer , pois gostaria o elo de liga çã o que nos permitiria discernir o Mito ( Mythe )
imenso de conhecer a natureza dessa trama . ou o Mytbos com nitidez bastante e sob forma suficientemente
Não creiam , sobretudo , que careço de estima pelas ideias de particular para nos levar , de algum modo, a iniciar neste ponto a
Jacob Grimm . Citei essa passagem para provar , pelo contrá rio, nossa investigação.
que n ã o se encontra nele aquelas modificações pretenciosas de Partimos de um conjunto algo confuso, onde é preciso ten -
sentido em proveito da Hist ória ou da Filosofia , e que ele atribui tar impor alguma ordem . Comecemos por dar um exemplo
a cada conceito um poder intr í nseco e , como escreveu , “ um ter- extra ído do Gé nese :
reno virgem e distinto ” . Sei igualmente o que significavam para
esse adepto do Idealismo alem ã o a linguagem e a criação poé- Ent ã o disse Deus : “ Haja luzeiros no firmamento dos cé us para
separar o dia da noite. Sirvam eles de sinais para as estações , os
tica : evento grandioso e coletivo no seio da alma popular ; ainda dias e os anos. Sejam eles no firmamento dos céus os luzeiros que
mais : o acontecimento mais grandioso que jamais se produziu ou iluminem a terra . ” E assim se fez. Fez, então, Deus os dois gran-
pode ser produzido na alma popular. També m sei que, nesse des luzeiros : o luzeiro maior , para dominar o dia , e o luzeiro menor,
pref ácio, ele estava menos preocupado em definir pormenores do para dominar a noite, e as estrelas. Deus os colocou no firmamento
que em apresentar uma totalidade cujos elementos eram apenas dos céus para iluminar a terra , para que presidissem ao dia e à
noite e para que separassem a luz das trevas. E viu Deus que
pressentidos. Nã o se tratava de estabelecer fronteiras n í tidas e assim era bom.
acabadas entre o mito , a saga e a Histó ria ; em seu conjunto,
tinham apenas de representar aquela “ força que atua silenciosa- O que temos aqui diante de nós ? A tradu ção j á nos
mente e age inconscientemente ” , o que , para Jacob Grimm , desig-
ensina que n ão estamos em presen ça de uma simples asserção,
nava precisamente “ algo que vai infinitamente mais longe que que n ãq $e trata de um simples relato ou de uma simples des-
as forças de um poeta tardio, ainda que fosse o maior ”. criçã o. Os per íodos são redigidos de maneira nobremente afir-
Tudo isso é verdade . Mas n ã o é um motivo para se ficar mativa e , ouso dizer , apaziguadora , onde se surpreende como
por aí. Pelo contrá rio : se estamos verdadeiramente persuadidos que o eco de um di á logo . Algo os precedeu e esse algo é uma
de que cada um desses conceitos tem um “ terreno virgem e dis- interrogação ou uma sé rie de interrogações . Contemplou -se o
tinto” , é nosso dever realizar a distinção e limitar os terrenos. cé u fixo , viu -se o sol e a lua iluminando o dia e a noite de
Procuramos fazê-lo no tocante à Legenda e à Saga ; será mais acordo com uma alternaçã o constante e imut á vel . A contempla-
dif ícil , n ão o escondo, para o Mito. Contudo, deve ser possí vel , ção converteu -se cm espanto, e o espanto em interrogação . Que
neste caso como nos anteriores, captar a Forma e definir a natu - significam os luzeiros do dia e da noite ? Qual o seu sentido
reza daquilo que Jacob Grimm definiu por uma imagem . para n ós, no tempo e nos espaços do tempo ? Quem as colocou
onde est ã o ? Como era antes de virem iluminar o universo, antes
da separação do dia e da noite, antes da divisão do tempo ?
Uma resposta chega ent ão ao interrogador ; c essa resposta é de
tal natureza que n ão é poss í vel formular outra pergunta ; a per-
II gunta anula -se no mesmo instante em que é formulada ; a res-
posta é decisiva.
A legenda católica da Idade Média ocidental e a saga islan - Quem faz a pergunta ? O homem . O homem quer com -
desa dos séculos X e XI davam - nos uma possibilidade que n ã o
encontramos no mito. Com efeito , fala -se de mitologia grega
preender o universo , quer cntend ê-lo como um todo, mas tam -
ou de mitologia germ â nica , de mitos hindus ou de mitos primi - bé m em seus pormenores , como a Lua ou o Sol. O que n ão
tivos ; existe uma confusa multid ão de teogonias , de cosmogonias , significa que observe o universo com timidez e vacila çã o ; o que
de histórias de heróis, de metamorfoses, de representações do n ão quer dizer que deseje enveredar por uma investigaçã o tatean-
te e conhecê-lo a partir de si mesmo ; significa , outrossim , que c
Além ou do Fim do Mundo, em suma , tudo o que é costume homem está diante do universo e que o interroga. Recordemos
reunir sob o nome de mitologia ; e em tudo isso não vislumbro

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que interrogar també m é pedir e que a palavra alem ã fragen —
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derivada da raiz germ â nica * freh — significa igualmente fors-
cheti ( inquirir, procurar ) e f ordem ( exigir , reclamar ) . O
mais profundo. A profecia é a prediçã o que se verifica , a pre-
dição ver ídica , a “ veridi ção ”. A dist â ncia entre o passado e o
homem pede ao universo e aos seus fen ômenos que se lhe tor- futuro fica , portanto , eliminada ; o passado c o futuro deixam
nem conhecidos ; recebe ent ão uma resposta , recebe-a como res- de se distinguir no universo prof é tico. Depois desta aproximaçã o
ponso , isto é, em palavras que vê m ao encontro das suas. O do mito e do orá culo , recordemos que existe em alem ã o um
universo e seus fen ô menos fazem -se conhecer . parentesco an á logo , pois a raiz de fragen ( pedir ) é reencontrada
em anglo-sax ã o nas palavras jriht c fribtrung , que significam
Quando o universo se cria assim para o homem , por per- “ oráculo ”, assim como em frihtrian, predizer.
gunta e resposta, tem lugar a Forma a que chamamos Mito.
Poder-se-ia també m utilizar uma outra palavra : revelação
Imaginemos um rei que se pergunte se deve empreender ( Offcnbarung ) . Mas o termo revelaçã o é perigoso , porquanto
uma guerra. Pode examinar essa quest ão sob todos os aspectos : os teólogos o empregaram de maneiras muito diversas em dife-
meu exé rcito ser á bastante poderoso e minhas finan ças bastante rentes é pocas. Com frequência , entendem - na como um ato ime-
só lidas ? Meus aliados ser ão fié is ? Ou ainda : Em que situação diato de Deus , no sentido de que a divindade se mostra por si
se encontra o inimigo ? O exé rcito dele n ã o será maior ? As mesma ao homem . Esse modo de revelação n ão é mito nem
suas finan ças n ã o serã o mais sólidas ? Nã o conseguirá comprar orá culo. Quanto ao “ Deus falante ”, que se serve da linguagem
os meus amigos ? Toda uma gama de temores , apreensões , espe- c do pensamento dos homens para dar- lhes testemunho de Si
ran ças e objeções. Mas eis que existe um lugar em que o uni- Mesmo , a fim de que O conheçamos em esp í rito ( I Epístola aos
verso — considerado aqui como evento — faz -se conhecer a si
mesmo , confessa-sc a si mesmo ; um lugar onde a pergunta “ Que
Cor í ntios , 2 : 9/ 10 ) , n ão pertence â mesma ordem de idéias.
vai acontecer ? ” recebe uma resposta . N ão se aprende a í mais Repetimos: a Lua e o Sol , tal como os vemos no Gé nese,
do que em qualquer outro lugar , e sem meios extraordin á rios , foram inicialmente observados como fen ô menos: o Sol aparecia
inacess í veis ao comum dos mortais ; só que a pergunta se resolve a cada dia e iluminava; depois punha -se ; a Lua podia ent ã o
surgir e oferecer sua luz ; de acordo com essa alternação , perma -


ent ão numa resposta e a realidade objetiva cria -se a partir da
pergunta e da resposta . Tal lugar chama -se oráculo - o que nente e duradoura em si mesma , o tempo realizava -se em dias
logo nos recorda o or áculo grego, o oráculo dé Delfos , as his-
~
e em anos. Nasceu da í o desejo de compreender tais fen ô menos
tó rias contadas por Heródoto a respeito de Tera ístocles ou da c a curiosidade expressou-se em interrogação. Um e outro res-
guerra entre Creso e Ciro, os reis de Lídia e da Pé rsia. Examine- ponderam e a resposta era a profecia ver ídica que permitia vê-los ,
mos as coisas da maneira mais gené rica possível ; mesmo para o percebê-los, pois a prolecia est á ligada à visã o.
oráculo de Delfos , n ão se trata de o futuro ser predeterminado Observemos esta Forma : n ão se trata , repetimos, de uma
pela vontade divina ou por um qualquer sistema do universo, e divindade que dissesse a si mesma : “ Eu coloquei esses luzeiros
Delfos n ão é um lugar onde , informado por vias particulares sobre para que eles separassem o dia da noite. ” O que Deus disse n ão
o futuro estado de coisas , algu é m se prontifique, sob certas condi - o disse aos homens ; a sua palavra dirigia-se ao Sol e à Lua.
ções , a esclarecer- nos quanto aos rumos do futuro. O orá culo Aconteceu ent ão que Deus os colocou em seus lugares e que
deve ser concebido de outro modo : num local sagrado, podc-sc, ambos desempenham doravante suas funções, sendo agora intei -
mediante uma pergunta , obrigar o futuro a fazer-se conhecer ou , ramente eles mesmos . E preenchem - nas de modo tal que , num
melhor dizendo , pode-se criar o futuro na pergunta e na resposta . certo sentido , Deus é eliminado ; també m Ele est á diante do Sol
Mito e oráculo fazem parte de um mesmo conjunto, de uma
mesma disposiçã o mental . Ambos predizem . Para nós , a palavra
e da Lua , també m Ele os vê — e vê “ que isso é bom ” . Que
significa essa frase, que se repete como estribilho no prólogo do
— Gé nese ? Duvidaria Deus da bondade de sua criação ? Claro
predição e ainda mais a palavra profecia — est ão orientadas
para o futuro e somos mais tentados a usá-las para a história do que n ão. A frase significa que , a cada fase da criação e pela
rei de Lídia que para a da Lua e do Sol , no começo do Livro
do Génese. Mas é preciso tomar predição e profecia em sentido
criação, todas as coisas — —
seco c o ú mido , a Lua e o Sol
a luz c as trevas , o céu e a terra , o
se converteram num todo coe-

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rente e, por conseguinte, autónomo; a frase é a resposta final ,
para alé m do fen ômeno da criação ; é a profecia sublime dessa e de uma resposta ; por outras palavras: o mito é o lugar onde,
mesma criação , que se faz conhecer ao seu criador como sendo ã partir da sua natureza profunda, um objeto se converte em
"boa ”. criação ( Schò pfung ) .
Aqui , o Mito , enquanto Forma , encerra -se perfeitamente em
si mesmo: faz-se uma pergunta a respeito da Lua e do Sol , a
Lua e o Sol respondem . Poder-se- ia dizer muitas outras coisas
sobre a divindade que pendurou os grandes luzeiros no firma- III
mento do céu , poder-se-ia apreendê- la de outro modo e dot á- la
de atributos diferentes ; mas n ão foi exatamente isso o que se Com isto, permite-sc-nos observar , simultaneamente, os ini -
produziu . A divindade foi quem colocou em seus lugares a Lua migos que se opõem ao mito na definição do nosso Dicionário
e o Sol , e a divindade nada mais é, nesse texto , sen ão quem colo - de Filosofia. O conhecimento c a descoberta como processo,
cou a Lua e o Sol em seus lugares. Um único fen ômeno se faz como vontade de transformar o mundo de si mesmo e pelo tra -
conhecer completamente no mito e , assumindo sua independ ê ncia , balho ativo; como penetraçã o no â mago do universo para escla -
separa -se de todos os outros fenômenos. recer-lhe a natureza ; enfim , como processo em que os objetos
Isto n ã o impede que os outros fenô menos se deem a conhe- n ão se criam , mas são produzidos, est ão em guerra constante
cer da mesma maneira , em mitos da mesma espécie. Como j á com o Mito.
aconteceu no caso da Legenda e da Saga , estabeleço uma dife- Bastar á uma comparação precisa entre IJLOOOJ e XóyoJ ( o
rença entre a Forma Simples , como tal , c suas atualizações . E rnylhos e o logos gregos ) para reconhecer tal oposição entre
faço-o separando o Mito c os mitos. O Mito é a Forma Simples mito e conhecimento. Mas isso é trabalho que devemos recusar.
resultante dessa disposição mental ; a forma em que tal Forma Limitar- nos-emos a citar alguns exemplos extra ídos de Homero,
Simples se apresenta em cada atualização isolada são os mitos para tentar definir o sentido de Logos e sua relação com a forma
a que chamamos Mito.
o LI um mito.
• ^ No Canto II da Odisseia, Telê maco prepara-se para fugir

O trecho bastante extenso que precede o primeiro livro da
B í blia a saber , a introdu ção que vai de G é nese 1:1 a 1: 2 e em segredo . Encarrega Euricl é ia , sua ama e governanta da casa ,
que os exegetas assinalam com P ( de Priesterkodex )
— , trecho
donde extra ímos o mito da Lua e do Sol , mostra-nos , com preci -
de preparar-lhe vinho e farinha , tirados da adega e do celeiro
( verso 339 e segs. ) ; ao cair da noite, ele dirige-se ao barco e
são c nitidez , um grande numero de mitos diferenciados mas ordena aos companheiros que tragam provisões ( verso 410 c
segs. ) . Sua m ãe ignora tais preparativos, assim como a demais
semelhantes. Ao conjunto dá-se o nome de "criação do mundo”
ou “ relato da criação ” , mas ambas as expressões se prestam a
confusão ; nesse texto , o universo é analisado em seus fen ô menos
criadagem , de modo que p.ía 8 O íT) põ Qov 'axoucrev — “ uma
ú nica [ mulher ] sabia o que se passava ” ou , melhor ainda , “ uma
e cs dias que subdividem o trabalho da cria çã o constituem menos ú nica conhecia a profecia ”. Depois , Tel ê maco regressa de Esparta
uma sequ ê ncia cronol ógica do que uma separa ção. Cada fen ô- e de Pilo ( Canto IV ) e os pretendentes decidem armar-lhe uma
meno possui seu mito pró prio , mas a unidade é mantida porque , emboscada e mat á-lo ( verso 663 e segs. ) . Pené lope n ão tarda
de cada vez , o mito se realiza segundo o mesmo gesto. em saber dos planos dos pretendentes , graças ao arauto Medonte ,
e essa informação é , de novo, um nO0oJ, uma profecia ( versos
Essa palavra “ cria ção ” leva-nos alé m do mito isolado. Mito 675-676 ) .
é criaçã o. També m aqui emprego a palavra no seu sentido mais
profundo e recordo que a raiz germâ nica * skap tanto se encontra Finalmente ( Canto XX ) , Odisseu entra incógnito em seu
em schó pfen ( vasar , tirar , encontrar ) como em schaffen ( criar ) palácio e encontra os pretendentes banqueteando-se à sua mesa .
e conserva seu sentido no sufixo -schaft . Já dissemos que o Um deles, um moço atrevido chamado Ctesipo de Samos , zom-
mito é o lugar onde o objeto se cria a partir de uma pergunta bou desse mendigo estrangeiro e disse- lhe: “ Escutai , nobres pre-
tendentes. H á muito que o estrangeiro recebeu uma porção igual
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à dos outros e isso é razoá vel , pois n ão seria decoroso tratar com aprior ísticas , de necessidades rigorosas , de conte ú dos universal-
menos consideração os hóspedes, quaisquer que sejam , que Telê- mente v álidos que condicionam e fundamentam a experiê ncia e
maco recebe nesta casa. També m eu quero brind á-lo com um o conhecimento, que precedem todo o conhecimento; trata-se,
presente de hospitalidade , para que , por sua vez , o ofereça em aqui , do saber absoluto, que só se produz num caso: quando um
recompensa à escrava que lhe preparou o banho ou a alguma objeto se cria a si mesmo numa interrogaçã o e em sua resposta ,
outra que viva no palácio do divino Odisseu . ” Dito isto , jogou para se fazer conhecer e se manifestar na palavra , na profecia.
com m ão forte uma pata de boi , que estava num cesto ao seu
alcance , em direção do rosto de Odisseu , que desvia um pouco
a cabeça para escapar a essa afronta ( versos 292 e segs . ) . Depois
( Canto XXI ) a situaçã o muda : Odisseu estica o arco e , cercado
de amigos, faz frente aos pretendentes apavorados. Todos eles IV
tombam mortos, um após outro. Filoitio, o boieiro de Odisseu ,
mata Ctesipo , dizendo-lhe ( verso 285 e segs. ) : “ Não mais fala- Devo juntar agora ao mito do Génese um segundo exem-
rás com tamanha bazófia , arrastado pela insensatez. Dá agora a plo: o de um mito grego. Busquemo- lo , de novo , em Píndaro
palavra aos deuses , que podem mais do que tu . Em retribui çã o e, mais precisamente , no começo do l .° Epin ício pí tico; n ão
da pata de boi que h á pouco deste ao divino Odisseu ( . . . ) , se trata do trecho que contém a lenda , mas do precedente , aquele
recebe agora esta lan çada como dom de hospitalidade ” [ OEOICJXV que fixa o local da festa , o ato cultual . O poema abre com um

^
pu 0 ov â mipá cu , ETTEI 7} TOXU <p é pTEpo í EíCTLV , isto é , “ deixa
agora aos deuses o põ Oov , que eles podem mais do que tu ” ].
O fato de Ctesipo ter acreditado que o mendigo que se encon -
elogio ao Forminx de Ouro, isto é, um elogio ao canto. O
canto apazigua todas as coisas , at é mesmo o raio de Zeus ; entor-
pece a á guia pousada sobre o cetro dos deuses; enfeitiça o pró prio
trava entre os pretendentes era um mendigo de verdade ; o fato
de ele ter pensado que podia reconhecê-lo como mendigo e assim
JS
Ares , deus da guerra . ó os inimigos da ordem divina temem
o canto das Musas , como é o caso de Tifon , o de cem cabeças ,
o tratar , baseando-se nesse conhecimento , esse erro é ent ão cha- inimigo declarado dos deuses!/ Segue-se uma descri ção porme-
mado temeridade e tolice. A verdade , o mythos, é que tal men- norizada do gigante c de sua punição. O seu corpo gigantesco
digo n ão era mendigo mas Odisseu em pessoa . Partindo do estende-se desde Cumes, na costa italiana da Campâ nia , até à
conhecimento, Ctesipo ignorou a natureza especí fica do men - Sicí lia ; o Etna e suas neves refulgentes repousam como uma
digo , ignorou o mythos conhecido dos deuses. coluna celeste sobre o seu peito e , das profundezas do abismo,
Para os gregos de épocas posteriores , o MO0ov £m*cpá| ele vomita dia e noite o fogo, cm turbilhões de labaredas verme-
— —
i jai
0EOIJ deixar aos deuses a profecia é uma m á xima e talvez lhas. O prodígio de ver ; um prod ígio, també m , só de ouvir
já o fosse na Odisseia. Seja como for , a locução n ã o significa dizer .
seja vedado formular a interroga çã o que conduz ao mito; signi- A montanha a í est á , diante dos nossos olhos, repartida em
fica apenas que todo conhecimento é v ã o ; que toda tentativa três zonas : no sopé , a vinha ; na encosta , à meia altura , a flo-
feita pelo homem de penetrar o universo e compreendê- lo a resta ; e , no alto, o cume escalvado e recoberto , a maior parte
Ipartir de si mesmo corre , a cada instante , o perigo de se perder do ano, de neve e gelo. E essa montanha n ão é como as outras,
no erro e no contra-senso; que sã o os deuses quem conhecem a visto que vomita fogo. É a í que se situa a interroga ção, é a í
profecia ; que os mitos são divinos; e que o saber divino, conhe-
cedor das coisas a partir delas mesmas, é mito.
que ela se resolve numa resposta — e , em P índaro , de duas
maneiras. Tal como no Gé nese, existem dois mitos , mas a sepa-
Não é f ácil encontrar uma palavra-chave para sugerir a dis- raçã o é menos acentuada . Em primeiro lugar, o que é uma mon-
posição mental de que resulta a Forma Simples que é o Mito . tanha , em geral ? Enuncia-se a resposta contida num gesto ver-
Podemos escolher a palavra saber , ou ciência, mas convé m recor- bal : “coluna do cé u ”. Depois , vem a segunda pergunta : Por
dar , no caso , que não se trata do saber que visa , em ú ltima que é que essa montanha vomita fogo ? E a resposta diz-nos :
inst â ncia , à posse total de conhecimentos, nem mesmo de certezas a montanha está em cima do gigante de cem cabeças , inimigo

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heredit á rio dos deuses , e imobiliza-o. Mas tal interpretação ainda percebe a reorientação que acabamos de assinalar. Píndaro reata
o mito mas , ao fazê-lo , afasta-se do mito puro ; ocorre uma “ deri-
está muito longe do texto : a montanha , pilar do cé u , també m
é, de alto a baixo, o gigante, o inimigo. Por duas vezes , sob o vação do mito, no duplo sentido do termo. Para tornar explí-
cito o que P í ndaro se contenta em sugerir, diremos que os dois

——
est ímulo de uma interrogação , o fen ô meno responde e denuncia-
acontecimentos a luta entre Hieronte e seus advers á rios , entre
-se ; por duas vezes se cria , cristaliza -se e escreve-se em gestos Zeus e Tifon podem ser correlacionados e comparados. Mas
verbais. O “ pilar do cé u ” torna-se “ o inimigo dos deuses que
o poeta j á n ão formula de maneira absoluta a pergunta que pode
vomita fogo ” .
resoiver-se numa resposta ú nica.
Seria compreender muito mal esse processo e essa forma , O conhecimento introduziu -se de modo sub- rept ício . Pí n-
como tais, dizer que os gregos sabiam ent ão pouca coisa a res- daro julga os atos de Hieronte a partir de si mesmo , compara -os
peito de montanhas , do céu e dos fenômenos vulcâ nicos; ou falar ao aprisionamento de Tifon , coloca-os em ligação com o mito,
de uma explicação natural , fundamentada numa apercepção per-
sonificante. A natureza , no sentido em que a entendemos, n ão
descobre a exist ê ncia de um v í nculo entre eles — com o que
fracassa , precisamente, na criaçã o de um mito de Hieronte.
é, em absoluto , o objeto da explicaçã o. No universo dessa dis-
Examinando assim , lado a lado, o Mythos e o Logos, pen -

posiçã o mental , a montanha que cospe fogo n ã o faz parte da
natureza nem hoje nem nessa é poca . Al é m disso , n ão existe sar-se-á na estranheza de palavras gregas tais como nuOoXoy éto ,
ligação direta entre o mito em que o Etna se d á a conhecer e o Hu 0 oX <rpnp,a e p.uOoXoy ía , outros tantos vocá bulos que “ casam
conhecimento dos fenômenos geológicos. os contrá rios ” . O melhor , em minha opini ão , seria ainda riscar
a “ mitologia ”, pura e simplesmente, da lista de nossos conceitos;
O que existe, em contrapartida , é uma reorientação mental , se quisermos conservar a palavra , será para sugerir o que Pí ndaro
uma espécie de conversã o em que se opera um desvio da forma fez nesta ode triunfal.
para tentar abordar o fen ômeno a partir de si mesmo , consti-
tuindo-se por si mesmo um julgamento sobre tal fenô meno e
produzindo-se , de si mesmo, o objeto que essas condições propi-
ciaram. A conversão é a passagem do rnythos ao logos.
V
Hieronte, o tirano cuja vitória é cantada por Pí ndaro, fun-
dara na vertente sul do Etna uma cidade igualmente chamada Para tornar esse fenômeno compreensí vel , devemos explicar
Etna e povoara -a , em seguida , de habitantes oriundos de Sira- agora o terceiro modo de uma Forma Simples se manifestar e


cusa e de Cat â nia . Foi nessa cidade , administrada por seu filho aparecer .
Deinomê nides , que se celebrou a vitó ria em honra do pai
mas també m do filho. A í foi cantado o Epin ício. Era esse o Vimos , até aqui , duas espécies : a Forma Simples e a atua-
lugar que P í ndaro tinha de fixar . Uma vez terminado o mito liza ção da Forma Simples. A par da Legenda , encontramos a
do vulcão, reata com a cidade e o mito é reintroduzido. Há uma Vida dos Santos ; a par da Saga , a Gesta . Na mesma ordem de
montanha , uma coluna do céu , e também esta é assento da divin- idéias , distinguimos o Mito e os mitos. Observamos agora uma
dade, local da sua soberania. Assim , o Etna é , simultaneamente, outra possibilidade; com efeito, é poss ível levar em conta um
pilar do cé u , inimigo dos deuses e assento de Zeus soberano. Esse elemento, que n ã o pertence verdadeiramente a uma disposi ção
mito introduz no Epin ício uma oração em que se roga à divin- mental , para colocá -lo em relação com ela desde fora , pela sua
dade que proteja a cidade fundade por Hieronte e lhe conceda figura exterior . Jacob Grimm fala- nos , assim , de uma “ saga
paz e prosperidade. Depois , o poeta dirige-se aos vencedores. inventada ”. De nossa parte , citaremos uma outra forma a que
Sem dizê-lo explicilamente, associa as proezas guerreiras de Hie- reverteremos mais adiante. Todos n ós sabemos que, alé m do
ronte ao que precede e as vitó rias do tirano siciliano sobre os Conto, existe o Conto art ístico, com o que designamos narrati-
etruscos e Cartago são como um eco da vitória de Zeus sobre vas cuja configuração exterior recorda voluntariamente a do
o gigante que vomita fogo. É nesse ponto , justamente , que se Conto, narrativas que imitam o Conto mas n ão podem , intrinse-

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camente , ser consideradas contos. Conhecemos fen ô menos an á - conhecimentos n ão são suficientes para explicar. É a isso, preci-
logos na l í ngua , pois certas palavras podem ser exteriormente samente , que chamamos Análogo ou Mito Relativo: um mito
adaptadas e decalcadas de outras. O verbete lacónico que o que, em lugar de ser verídico, é derivado e, portanto, apenas
Dicion á rio de Grimm dedica à palavra “ Mito” ensina-nos , pelo verossímil..
menos , que a palavra grega {XU0oJ passou do masculino ao femi - Toda a vez que uma Forma Simples, resultante de uma
nino para assumir no alem ão Mythe o mesmo gê nero das palavras disposi çã o mental coerente e concludente, se atualiza , encontra-
Sage ( Saga ) , Gesbichte ( História ) , Fabel ( Fá bula ) etc. e para , mcs- lhe ao lado as formas relativas. , Tais formas, quando se
nisso , adotá- las como modelo. À s formas simples, diretamente sabe discerni-las , sao habitualmente assinaladas adicionando-se-
decorrentes dc uma disposiçã o mental , e às que foram em seguida -lhes o adjetivo ‘'artístico ” ; e, assim , fala-se de “conto art ístico ”
atualizadas, vem juntar-se, portanto, um terceiro modo ; um ele- ou de “ adivinha art ística ”. Pode-se exprimir assim que se viu
mento que n ão pertence diretamente a essa disposiçã o mental perfeitamente n ão se tratar da disposição mental em si, mas
assume, entretanto, a configura çã o da sua forma , e tanto a Forma apenas de um reflexo, de uma projeção que foi proposta . Nem
Simples como a Forma Atual associam -se a um análogo , a uma sempre c f ácil distinguir as formas analógicas das atualizações de
Forma Relativa. uma Forma Simples , sobretudo quando se est á afastado , por
No que se refere ao Mito, vejamos um exemplo sobremodo qualquer razão, da disposição mental de que resulta a Forma
explícito. A Brasa, a Palha e a Fava partem juntos de viagem . Simples. N ão Leremos sempre a oportunidade de estudar em
Encontram um córrego e , para atravessá-lo, a Palha coloca -se pormenor essas formas analógicas , mas era preciso mencion á-las
solicitamente de través na água ; a Fava chega sem percalços à aqui , pois mant é m relações particulares ccm o Mito. O pequeno
outra margem ; a Brasa , poré m , chega at é metade da travessia , episódio entre a Fava , a Palha e a Brasa mostra - nos onde se
depois fica com medo da água , estaca , queima a Palha , cai no encontra P í ndaro quando passa , em seu epin ício , do Mito à mito-


córrego, silva e apaga-se. A Fava acha a cena t ã o có mica que logia ; vamos ainda mais longe: ele fornece-nos uma sí ntese do
se põe a rir e acaba estourando — de riso pela costura das
costas. Felizmente, passava nessa altura um alfaiate que levava
combate tit â nico que o homem deve travar e superar , até ao
instante em que começa a pensar.
com ele uma agulha e fio ; voltou a coser a Fava mas , desgraça -
damente, o fio era preto e, desde ent ão, todas as favas t ê m uma
costura negra nas costas .
í A vontade de conhecer tem por finalidade apreender o Ser
e a natureza das coisas ; o conhecimento orienta-se para o objeto,
procura penetrar os elos entre as coisas , os objetos, assim como
També m aqui temos uma pergunta e uma resposta. Por as relações entre eles. O conhecimento inscreve-se em julgamen -
que é que as favas t êm uma costura preta nas costas ? A res - tos e todo julgamento deve ser universalmente v á lido.
posta d á a essa pergunta uma solu çã o definitiva : a fava tinha Mas a vontade de conhecer associa -se a uma disposição men-
estourado e foi recosida com fio negro . Entretanto, vê-se perfei - tal em que o universo resulta de uma interrogação e da vontade
tamente que isso j á n ão é a mesma coisa ( para n ão falar das de ser interrogado , do desejo de responder e do desejo dc obter
dimensões ) que o mito do Gé nese ou do Etna . Sente-se que os uma resposta . Ao lado do conhecer , existe essa forma em que
dados est ão algo adulterados . A questão n ão é resolvida desde as coisas c suas liga ções se criam , verdadeiramente , a partir da
dentro: a Fava n ão confessa , de si mesma , o traço que a caracte- profecia ver ídica . A par do julgamento que reivindica univer-
riza ; é um curioso quem a interroga e lhe proporciona uma res- salidade , existe c Mito que faz surgir a coerência suficiente .
posta . É certo que o curioso age, no caso , como se a resposta
n ão viesse dele , e como se fosse a fava que lhe respondesse . Repita -se: n ã o h á aqui uma sucessão cronológica ; n ão há
Mas a intenção é evidente : n ão resulta da í o Mito , recorre-sc a um ponto de transiçã o do mito para o conhecimento, por descon-
ele . A história da Fava que estourou e voltou a ser costurada tentamento com o Mito ; n ão há uma evolução que eliminasse
n ã o significa que um fen ômeno se faz conhecer ao homem que um dos termos por insuficiência , para dar lugar ao outro ; eles
o interroga ; esta histó ria parte do homem que tenta explicar o est ã o sempre lado a lado , mas també m est ã o sempre separados ,
* que observou , o que lhe despertou a curiosidade e que seus como os amorosos da can ção popular , por um abismo largo de-

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mais para poder ser superado. As duas partes trocam suspiros
e protestos de amor. Mas n ão renunciamos a fazer a história da Legenda e da
Saga para cair agora na história , infinitamente dif ícil , do Mito.
Como já vimos, o conhecimento procura depreciar o mito
e negá-lo mas , por outro lado , n ão hesita em recorrer ao mito
analógico c em tentar realizar-se num mito relativo , sempre que
tem consciê ncia das próprias limitações. [ í*or sua parte , o mito
aspira freqiientemente , quando começa a perder a força de coe- VI
sã o , a desviar-se no sentido do conhecimento, a apoiar-se em
seus caminhos , de modo a recuperar o f ôlego. ! O conhecimento
sob a m áscara de mito, o mito sob o disfarce dè conhecimento
eis dois atores , poderíamos dizer , que gozam de sucesso na
— esta
Podemos, entretanto, formular estas perguntas: Como opera
Forma ? Como é que a disposição mental para o saber apre-
ende o universo no Mito ? O Sol e a Lua , tal como a montanha
ampla comédia do pensamento humano .
e o vulcã o, mostraram - nos que, no Mito , a quest ão é , em primeiro
Se observarmos a história da filosofia pelo prisma da nossa lugar , um desafio que parte de fen ômenos universais e vai , simul-
história literá ria ; se considerarmos o espet áculo do Mito e do taneamente, na direçã o deles ; fen ô menos ao mesmo tempo m ú lti-
conhecimento que se atraem e se repelem , veremos que á spera plos e constantes que , desse modo, sobressaem na diversidade
tarefa aguarda o nosso estudo morfológico c qual c a despro- din â mica e viva da realidade cotidiana . O universo do mito n ão
porção existente at é hoje entre esse objetivo e nossos recursos . é um universo no qual as coisas se passem ora de um modo , ora
Não faz muito tempo , Karl Reinhardt , um filólogo clássico, de um outro, e o que acontece n ão possa deixar de acontecer :
publicou um livro not á vel sobre os mitos plat ónicos ( Platons é um universo que procura consolidar-se , um universo sólido .
Mythen ) . Nã o encontramos a í apenas a reuni ão e compara ção O Sol do Génese n ão é um Sol que brilhe um dia para ficar
dos mitos atualizados presentes na obra de Plat ão, mas podemos toldado pelas nuvens no dia seguinte; é o luzeiro cravado no
també m observar toda a a çã o dessa Forma em Plat ã o . A partir do firmamento que separa cada dia de cada noite e garante a
instante em que Sócrates, no Prot ágoras, deixa a crit é rio de seus const â ncia do tempo. O mesmo se passa com a montanha : é o
ouvintes — por leviandade, acreditar-se-ia , e como que por grace- elemento sólido que sustenta o cé u . Assim també m com o vul-

jo , a escolha entre o Mito e o Logos, para responder à pergunta
sobre se a virtude pode ser ensinada , vê-se constantemente , e até
cã o, que n ã o é uma montanha vomitando fogo de tempos em
tempos , porém uma montanha constantemente habitada pelo
nos últimos di á logos, que são os mais sé rios, a luta travada entre poder mal éfico e hostil de cuspir fogo. Toda vez que a per-
— gunta se anula na resposta , toda vez que esse universo se torna
-

a mentalidade de que resulta o Mito a forma capaz de criar
objetos a partir de uma pergunta c de uma resposta e , por criação , encontramos sempre um evento ( Geschehen ) .
outro lado , a vontade de conhecer pelo esclarecimento intelectual. O evento é aquilo que advé m , que sobrevé m , que intervé m.
Mas vamos alé m desses mitos , al é m dessas lutas isoladas , para Evenire tem a mesma raiz que ( ad ) venire e cumpre lembrar
indagar: que é a figura de Sócrates , tal como foi criada na obra este parentesco quando se fala de evento. Pois é precisamente
platónica , nos escritos de Plat ão, sen ão essa forma liter á ria que o elemento universal , mas constante em sua multiplicidade , que
procuramos ? Que é Sócrates sen ão o próprio mito platónico, o o Mito apreende na intervenção s úbita do evento , em seu irresis-
oráculo que , interrogando o universo , obriga -o a tornar-se coe- t ível advento ; o evento brota para o dia , irrompe nele. “ Fez
rente, a denunciar seu verdadeiro ser ? então Deus os dois grandes luzeiros: o luzeiro maior para domi -
Se abord ássemos agora essa ancilla theologiae [ serva da nar o dia e o luzeiro menor para dominar a noite e as estrelas’',
teologia ] que é a filosofia escol ástica da Idade Média , ver íamos assim reza o mito do Gé nese. Nesse evento , o Sol , a Lua e as
a forma do Mito opor-se igualmente à vontade de conhecimento estrelas são levados da multiplicidade à unidade. Não existem
e o pensamento incompletamente formulado refugiar-se ami ú de vá rios sóis ; quando o grande luzeiro desaparece e depois reapa-
em mitos relativos. rece , n ão é um novo luzeiro mas sempre o mesmo Sol , porque
esse evento ú nico confirmou-o e dele fez uma criação imutável .
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E se existem m ú ltiplas estrelas, elas permanecem constantes em uma parte , a Legenda e a Saga , por outra , dizendo que estas
sua pluralidade ; foram todas reunidas nessa pluralidade , desde ú ltimas são o lugar onde o movente assume configura çã o est á vel ,
seu ponto de origem at é à unidade. També m existem muitas enquanto que o Mito é o lugar onde as configurações est á veis
montanhas diferentes mas, cada vez que uma montanha dá teste - adquirem movimento .
munho de si mesma , ela é denominada “ pilar do cé u ” , e diz-se Recapitulemos tudo isto , precisando o que chamamos per-
que foi constru ída para sustentar a abó bada celeste ; ou é cha - gunta e resposta. A pergunta tem em vista o ser e a natureza
mada “ assento dos deuses ” , o que significa que ela foi colocada essencial de todos os elementos do universo, cuja const â ncia e
onde est á para servir de resid ência à divindade . Assim , para os multiplicidade são observadas ao mesmo tempo. A resposta
gregos, n ão existe sen ão um Etna , mas o seu poder hostil e apreende todos esses elementos e re úne-os num evento cuja uni-
duradouro de destruiçã o tem por base um evento ú nico , o esma- cidade absoluta leva à unidade a pluralidade e a const â ncia , e
gamento do monstro de cem cabeças. Neste sentido, o evento propicia a tal unidade uma configuração simultaneamente sólida
define o gesto verbal do Mito. e din â mica no seio do evento, que se torna ent ã o destino e
Quando tratamos da Legenda , vimos que uma certa dispo- predestina ção .
sição mental podia levar fen ômenos da mesma espécie a abando - Se revertermos â Forma Relativa , fere a aten ção o fato de
nar a diversidade do evento para se cristalizarem , antes de serem ser justamente o evento o que o mito relativo procura imitar e
arrebatados pelo turbilh ão da linguagem e de encontrarem nela até parodiar , de modo ver ídico , na hist ó ria da Fava , da Palha e
uma nova configuraçã o. No tocante ao Mito , a situaçã o é algo da Brasa . Por que é que todas as favas t ê m uma costura preta ?

^
diferente. É certo que a disposiçã o mental para o saber faz
emergir da diversidade elementos da mesma espécie ; o Mito , tal
Também aqui a resposta quer ser um evento — e at é um
evento terr í vel. Mas percebe-se perfeitamente que esse evento
como o conhecemos at é aqui , era uma forma orientada para ele - é , repetimos , transportado do exterior. Para ter uma costura , é
mentos que , na diferenciaçã o din â mica dos fen ô menos vis íveis , preciso ter sido cosido; cose-se o que estourou ; estoura -se quan - A
são simultaneamente m ú ltiplos e constantes ; para elementos que do se ri demais . São outros tantos julgamentos heurísticos,, se
se repetem com regularidade , como o Sol e a Lua , ou para elemen - quisermos usar palavreado pomposo. Mas tais julgamentos heu -
r ísticos procuram estabelecer-se de fora para dentro num aconte-
tos est á veis , como a montanha e o vulcão . Entretanto , por mais
perigoso que seja querer fundar uma hierarquia das Formas Sim- cimento , para encontrar nele uma configuração e uma solidez
ples , é preciso reconhecer que existem diferen ças: a maté ria que ú nicas — o que vale ao passeio , ao có rrego e ao alfaiate, com
ocupa o espírito no Mito tem , em si mesma , uma coerê ncia , uma seu fio preto, serem implicados numa cat á strofe.
dignidade c uma autonomia maiores que a que ocupa o espí rito
na Legenda ou na Saga ; por conseguinte , o gesto verbal do
Mito també m possui uma solidez, um valor e uma plenipot ê ncia
maiores que o da Legenda ou o da Saga ; em latim , falar-se-ia de V l1
uma diferen ça entre a dignitas e a auctoritas. Por isso n ã o afir-
marei que o gesto verbal do Mito capta fen ô menos da mesma At é agora , todos os exemplos por n ós apresentados se refe -
espécie num turbilh ão para dar- lhes novo sentido e nova confi- riram , sobretudo , a fenômenos visí veis. Compreende-se facil-
guração. O gesto verbal do Mito é mais imperioso e mais restri- mente que a disposiçã o mental para o saber , assim como a Forma
tivo — como o olho de uma agulha . Nesta forma que é o Mito ,
todos os elementos para os quais se oriente a disposiçã o para o
que profetiza mediante pergunta e resposta , se orientassem , em
primeiro lugar , para os fenômenos m ú ltiplos e constantes que
saber, todos os elementos do universo que sejam , ao mesmo parecem ter uma existê ncia autó noma , independente da existên-
tempo , constantes e m últiplos , s ão captados por um gesto verbal
que os acolhe e os converte num evento ú nico , onde eles encon-
cia humana. É a natureza que , em primeiro lugar — e por sua
essência profunda — se torna criaçã o na Forma Simples do Mito
tram o sentido de sua multiplicidade e de sua const â ncia . Nunca e nos mitos que a atualizam. O nosso Vocabulário Filosó fico j á
será demais salientar essa diferença de forma entre o Mito , por se referia à “ interpretaçã o da natureza ” ( Naturdeutung ) e —
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será preciso lembrar ? — existia e ainda existe uma escola de munido da arma mortal , e o alvo insensato e imposto é essa
filólogos , etnó logos , historiadores das religiões e antropólogos pequena esfera que mal se destaca da cabeça da crian ça . Somente
que associa mais ou menos todos os fen ômenos reunidos sob o uma segunda profecia sc liga de imediato à primeira , um segundo
conceito dc mito aos fenômenos naturais, quando n ão a um evento anula tudo o que o precede: no momento exato em que
ú nico fen ômeno da natureza . Os especialistas em mitologias a flecha atravessa a maçã , o universo de injustiça desmorona e
astrais adquiriram , neste particular , certa notoriedade. -
d á se a liberta ção. A pergunta contida na primeira parte do
O Mito que estamos procurando compreender nestas pá gi - mito era : “ Que acontece quando um tirano oprime arbitraria-
nas, entretanto , é uma Forma cuja disposição mental n ã o est á , mente um povo livre ? ” E a resposta: “ O pai é obrigado a
de maneira nenhuma , limitada à Natureza . traspassar uma maçã colocada sobre a cabeça de seu filho.”
Na segunda parte , a nova pergunta , “ Que se passa quando um
Ao tratar do conceito de pergunta e resposta , assinalamos povo é submetido a tal opressão ? ” , recebe logo uma resposta
os profundos v ínculos existentes entre o Mito e o oráculo. É que se expressa assim : “ Tanto no caso de êxito como de fra-
possí vel agora , depois dc conhecer melhor os efeitos que essa casso , a segunda flecha traspassar á o coraçã o do tirano.” Com
forma exerce, separar e distinguir os dois termos . No or áculo , efeito , o fracasso n ão pode ocorrer : o imposs í vel exigido pelo
pergunta e resposta são uma “ profecia ” relativa a um caso parti- arbitrá rio foi coroado de ê xito e , ao acontecer , pulverizou o
ticular, ao passo que, no Mito, est ão orientadas, como já vimos , reino da violência .
para o elemento dc const â ncia. É esse o motivo por que a Poder-se-ia fazer aqui uma objeção. De fato , o mito de
profecia do Mito , uma vez apreendida num gesto verbal , confir- Guilherme Tell n ã o é contemporâ neo, na história su íça , do acon-
ma-se através de uma atualiza çã o duradoura , enquanto que a tecimento ao qual se supõe estar ligado ; só apareceu mais tarde.
profecia do oráculo, sem ter adquirido uma forma geral , se extin - Em segundo lugar, encontramos relatos análogos em outras par-
gue com a solu ção de cada caso individual. Entretanto , o or áculo tes ; h á uma Hist ória de Egilo e Saxo Grammaticus faz descriçã o
prova que a pergunta c sua resposta podem ser orientadas numa id ê ntica a respeito de Harald Dente-de-Ouro, de Toko e seu
direção diversa da dos fenômenos da natureza . A Forma que filho . Não examinaremos em pormenor as rela ções existentes
se efetua e realiza num evento pode orientar -se para todo e qual - entre essas diferentes atualizações do mito, pois tal estudo afas-
quer evento em geral . tar- nos- ia demasiado das nossas considerações gerais , em pro-
Seja o caso o de um tirano que reine sob os seus conci- veito de estudos de detalhe. Nã o podemos , entretanto , deixar
dad ãos e os oprima , que despreze os direitos e privil égios do seu de alinhar algumas observações.
povo , que submeta os indiv íduos a uma crueldade abominá vel , Em primeiro lugar, n ão é absolutamente necessá rio que o
que exija deles o impossí vel , que aniquile as liberdades p ú blicas evento se interprete pelo Mito e se atualize num mito, a partir
e pessoais , a ponto dc todos os aspectos da exist ê ncia depende- do instante em que ocorre ; a lembran ça de uma prova çã o pas-
rem , a qualquer momento , da sua vontade exclusiva e arbitrá ria . sada pode igualmente criar e interpretar um passado no seio
Pode acontecer ent ão que o homem defronte a essê ncia desse dessa forma . Depois, sc encontrarmos uma atualização , um mito,
evento por interroga ção e solicitaçã o ; que receba uma resposta que já esteve alhures , ou que de algum modo o precedeu como
e que o gesto verbal circunscreva a soma dos elementos constan - resposta a uma pergunta , isso apenas provar á que o gesto verbal
tes e m ú ltiplos desse evento a um evento de n í vel mais elevado . apreendeu corretamente o elemento de const â ncia c de repetição
Em tal caso , a f órmula é a seguinte : “ O monstro obriga o pai a regular; que o apreendeu t ão bem , inclusive, que ele continua a
atingir uma maçã colocada sobre a cabeça de seu filho. ” 'Iodos ser considerado a ligação v á lida e coerente entre pergunta e
os atos isolados dessa imposição arbitrá ria , todas as ações come - resposta , ainda que num tempo e num lugar diferentes. Pois
tidas em menosprezo aos v í nculos que unem os homens , sã o antes de se falar de mitos migrat órios, cumpre explicar o conceito
reunidos na relação pai- filho ( que n ão constitui aqui uma saga ) ; de migração . Tanto do ponto de vista lingu ístico como do lite-
e a crueldade tir â nica que exige o impossí vel tem por f ó rmula rá rio , é inconcebível a id éia de uma migra ção que fosse um
“ tf maçã deve ser traspassada\ O pai defronta -se com o filho , errar à s cegas e uma série inexplicá vel de reaparições . Quando
102 10 )
uma Forma ( ou uma de suas atualiza ções ) se manifesta , ela só hetera divina: “Como o rel â mpago, surgiu toda ataviada no
se afirma como esteio de significações. enquadramento da porta celeste. A deusa despojara -se de sua
Vejamos outro exemplo : Pode acontecer que um povo con - t ú nica negra e , num carro puxado por corcéis vermelhos , Ushas
duzido por um chefe justo se veja assediado pelo inimigo , acos- vem despertar os humanos ” ( R . V. , 1 , 92 , 14 ) . Ela també m
sado de todos os lados até ao ú ltimo reduto, sem possibilidade possui um carro puxado a cavalos: “ Em teu carro decorado e
alguma , aparentemente , de encontrar sa ída . Surge então um ben éfico, vem , Ushas, filha do Cé u , socorrer este povo glorioso! ”
salvador. Esse ser é de espécie peculiar e superior. N ã o é ( R . V. , 1, 49 , 2 ) . Sabemcs , por outro lado, que ela est á apa-
homem nem mulher , e podemos concebê- lo de diversas maneiras ,
segundo essas categorias : pode tratar-se de uma virgem , pode
rentada com os gê meos
— — eles pró prios em liga çã o com cavalos
a que os hindus chamam “ Ashwine ” c os gregos chama -
ser uma hetera , duas espécies que n ão são consideradas como ram “ Dioscuros ”: “ Acercai - vos , Ashwine, com o carro, mais céle-
‘‘ mulheres” ; pode tratar -se ainda de uma espécie de divindade re que o de Manos , que Ribbhus vos construiu ; quando vos
andrógina ou , enfim , de um ser que apresente , alternadamente , atrelam , nasce a filha do Cé u ” ( R. V 10, 39 , 12 ) . Existe ,
os traços dessas três categorias. Tem por atributo cavalos atre- poré m , uma diferen ça entre o salvador da Ilí ada e o de Rig -
lados a esse conjunto sólido e duradouro de rodas , eixos c molas -Veda; no primeiro caso , o poder salvador prové m de um evento,
a que chamamos “ carro ”. Tal ser coloca em seu carro o chefe ao passo que, no segundo caso , decorre de um fen ômeno natural.
em apuros, colhe as rédeas e transporta o herói , vitoriosamente Ushas traduz-se per Aurora ou Alvor Matinal e est á fora de
e sem uma beliscadura , através das fileiras do inimigo que o d ú vida que o gesto verbal de Ushas pretende designar e significa
cercava . Uma vez alcan çado o objetivo, uma vez salvos o prí n - o reaparecimento constante e regular da manh ã vitoriosa sobre
cipe e seu povo, o salvador desaparece ou perece ou pode ser as trevas.
at é arrastado à morte pelos pró prios cavalos .
Poderemos falar de transposiçã o ? Vamos tentar traduzir ,
É esse o processo que encontramos no Canto V da Il íada .
de um modo ou de outro, Aten á por Ushas e Ushas por Aten á ?
Os gregos est ã o em dificuldades : Diomedes, que comandava a Parece- me que o problema é bastante simples quando se com -
batalha , tinha sido ferido por uma flechada e os troianos, enca - preendeu a disposição mental do saber e se viu que existe uma
beçados por Ares e Heitor , avançavam impetuosamente , obri -
gando os gregos a recuar para seus navios. É então que inter- Forma Simples na qual um universo se cria a si mesmo pela
profecia , a partir de uma pergunta e de uma resposta: o homem
vé m Aten á : despe o belo vestido bordado que ela fizera com
que pede resposta percebe c apreende os v ínculos profundos e
-
as próprias m ãos , veste cm seguida uma tú nica , aparelha se para
o parentesco que existe entre os alvores da aurora que rasga um
a guerra com a armadura de Zeus , coloca na cabeça o capacete
de ouro, sobe para o carro de guerra e empunha a lan ça pesada , caminho vitorioso através das trevas circundantes e , por outro
grande e sólida — converteu -se em “ mulher- homem ” ( verso 733
e segs . ) . Depois , dirige-se ao herói fatigado para encorajá- lo ,
lado , o salvador que aponta ao povo e ao seu chefe , acossados
de todos os lados pelo inimigo, uma sa ída através das linhas
faz saltar Estê nelo do carro, puxando-o para tr ás com suas pró- contrá rias ; esse homem enfrenta dois fen ômenos que observou
prias m ãos , e sobe ela para a biga , num gesto impaciente, postan -
do-se ao lado de Diomedes ( verso 835 e segs. ) . E foi uma
——
cia
um na natureza , o outro num evento, e ambos em sua const â n-
com uma só pergunta ; e eles d ã o-se a conhecer pela mesma
devastação nas hostes inimigas; a deusa n ão combate em pessoa , resposta .
mas desvia a lança de Ares e Diomedes fere o deus na ilharga . Acrescentemos dois exemplos a esta lista de atualizações
Ares grita com a força de nove ou dez mil homens e vai quei- de Aten á e Ushas .
xar-se a Zeus. Mas os gregos livraram -se do apuro e , depois de Heródoto conta a seguinte história ( I . 60 ) : Pisístrato, exi-
ter posto fim à perniciosa ação de Ares , Atená regressou ao lado de Atenas, aliara -se a Megacles e esposara - lhe a filha ; para
Olimpo. fazer regressar o tirano à cidade, os dois homens imaginaram um
Vamos encontrar o mesmo ser salvador no Rig -Veda hindu . ardil . Apoderaram-se, no demo peâ nico, de uma bela e alta
Chama-se Ushas e també m não é homem nem mulher . É uma mulher — media quatro côvados menos três dedos , ou seja ,
104 105
quase dois metros de altura — chamada Fia ; vestiram - lhe uma
armadura completa , colocaram- na num carro e instru í ram - na
Já n ão somos tentados a pensar em transposições. Pois
se Atená e Ushas se movimentam cm esferas só ating íveis me-
sobre a postura majestosa cm que tedos deveriam vê-la . Pis ís- diante algum esforço intelectual , se Pis ístrato se refere a I lome-
trato pôs-se a caminho com ela , precedido de arautos que grita- ro, Joana d ’Arc mevimenta-se em nossa própria esfera . Como
vam : “ Atenienses, acolhei favoravelmente Pisístrato, a quem disse recentemente um historiador moderno: “ Cremos na don-
Aten á em pessoa honra mais que a qualquer outro homem e que zela de Domré my ” . Entre o evento e a forma em que ele se
veio reconduzi-lo à sua cidade! ” Onde quer que chegassem , os
arautos faziam a mesma proclama ção e n ão tardou a correr pelos

atualiza , j á n ã o existe ao invés de Guilherme Tell — dist â n-
cia temporal . A fronteira , suscet í vel de ser estabelecida por
demos que Aten á reconduzia Pis ístrato ( à casa dele e à cidadela necessidade e para comodidade da explica çã o, entre o evento
da deusa ) . Persuadidos de que a mulher era efetivamente a “ real ” e o evento “ de n ível superior ” do Mito , foi abolida . Em
deusa , os habitantes adoraram- na e acolheram Pisístrato. Heró- seu todo, assim como em cada pormenor , o evento que advé m
doto acha a hist ória idiota e zomba dessa credulidade. Nós dis- na vida parte da multiplicidade para a unidade primordial ; ele
cernimos o mito que Pisístrato, grande admirador de Homero , produz uma Forma , torna-se uma Forma.
emprega em seu proveito , na vida real , que realiza e ao qual Generalizando , pode-se dizer , a t í tulo de resumo : sempre
se associa ; e compreendemos també m o povo que vive esse mito , que o evento vivo absorve todas as coisas e se fundamenta , por
apesar da sua relatividade. assim dizer, em si mesmo ; sempre que , para retomarmos a
Finalmente : em maio de 1429, os exé rcitos ingleses ocupam f órmula de um pensador , “ o evento significa a necessidade ,
toda a França ; o rei da Inglaterra já foi proclamado rei da enquanto liberdade ” , ele se converte em Mito.
França ; o povo francês e o seu Delfim est ão em dificuldades
extremas , e nenhuma sa ída parece possí vel . É ent ão que surge
da Lorena a personagem salvadora . N ã o é homem nem mulher:
é a Pucelle [ Donzela ] , como foi “ devidamente ” constatado de- V111
pois por uma comissã o de especialistas ; e sabemos , per teste-
munhas, que ela n ão d á a impressã o de ser mulher nem desperta Já tenho pouco a acrescentar.
qualquer desejo carnal . Ela é “ filha de Deus ”, como Aten á e Poder-se- á perguntar , em primeiro lugar , se os objetos que ,
Ushas, e assim é proclamada por seu séquito. Abandona as no Mito, tornam -se criaçã o pela sua pró pria natureza , s ão susce-
roupas femininas para envergar trajos masculinos e uma arma - t í veis de deixar de ser criação , pela sua natureza e em virtude
dura ; torna-se mulher- homem e a sua primeira exigência é pedir da mesma disposição mental. Ou , para empregar outra formu -
um cavalo — sabende-se at é que preço ele custou . Em seguida ,
ela parte, com dois companheiros — també m se conhece o nome
lação : poderá acontecer que o Sol e a Lua , a montanha , o pró-
prio universo, tal como se criam no Mito , pereçam ?

de seus Dioscuros , sem ser vista pelo inimigo , a fim de encon -
trar-se com o rei em apuros . Afasta os homens que tinham ser-
Sim , pode acontecer. Eles podem perecer no Mito; ali ás,
n ã o podem perecer sen ão no Mito . Da mesma maneira que
vido até ent ão de guias ao monarca e ela mesmo o orienta . a Legenda se duplica numa Antilegenda , assim també m o mito
Dirige os cercos e as batalhas , mas sem que ela pró pria derrame construtor se faz acompanhar , paralelamente , do mito destrui -
o sangue de um só inimigo. Acompanha o rei através das linhas dor. O evento que restitui a pluralidade à sua unidade primor-
inimigas e liberta o povo. Uma vez alcançado seu objetivo , ela dial pode ser abolido por um evento que volte a projetar essa
é jogada abaixo do cavalo, perece, desaparece. Nã o se trata de unidade na pluralidade caótica do Nada . A criação do Mundo
uma epopéia hom é rica nem de um hino védico ; estamos no é vizinha do fim do Mundo. Eu disse antes que n ão se pode
dom í nio da Histó ria , como se costuma dizer ; e, no entanto, considerar verdadeiramente o Anticristo como ura ccntra -santo;
persuadidos de que estamos em presen ça do mito e n ão da legen- é aqui , no Mito, que podemos situar a representação do Grande
da , reconhecemos o ser prestimoso que j á encontramos no Rig - Destruidor. Pensemos em Ragnarõk ou no Apocalipse e com-
-Veda e na Ilí ada. preenderemos que resposta é dada , num gesto verbal , à pergunta

106 107
sobre o fim derradeiro ou a morte do Sol , da Lua , das estrelas ,
do universo e da vida . Entretanto , a exemplo do contra -santo
que pode transformar-se num santo, o Mito també m pode recons-
truir um universo novo sobre o caos.
Depois de vermos, no que se refere à Legenda e à Saga ,
que a Forma Simples pode transmitir o seu poder a um objeto
e que este passa ent ão a deter uma carga de poder , resta - nos
estabelecer a exist ê ncia de tal objeto no caso do Mito . Para A ADIVINHA
tanto, recorrerei a uma palavra cujo uso é tão frequente quanto
erró neo e chamarei a esse objeto sí mbolo . Não hav íamos conce- I
bido a rel íquia como imagem alegórica , como objeto sensí vel
a consubstanciar um sentido ; pelo contr á rio , t í nhamos observado
que , no santo, as partes do corpo , as roupas , os instrumentos de Existe uma segunda forma constitu ída por pergunta c res-
mart í rio , podem absorver tudo o que lhe está ligado , e à sua


posta : a Adivinha .
santidade , para , em seguida , restabelecer o estado inicial , tornan -
do-se assim eles pró prios “ santos ” e detentores do poder do Sabe-se o que é uma adivinha , o que significa adivinhar
santo; do mesmo modo, o sí mbolo n ã o é, no meu entender , na maior parte do tempo, poré m , derivamos esse saber das For-
imagem , mas objeto dotado de uma carga efetiva de Mito e mas relativas graças às quais a adivinha continua desempenhando
detentor autónomo do poder do Mito. Recordemos que o um papel em nossa vida ; devemos tal conhecimento aos jogos
or áculo , igualmente o lugar onde se cria o futuro mediante uma infantis, cà seção de passatempo de nossos jornais e revistas.
pergunta e uma resposta , n ão se produz em qualquer parte , Sabe-se també m que atividade absorvente a adivinha pode ser
mas exige um local sagrado , ao qual esteja efetivamente vin - para o esp í rito de que ele se aposse; lembremos apenas a paix ão
com que a Europa e a Amé rica se t ê m lançado, h á j á alguns
culado o poder de profecia — um local habitado por esse poder .
anos , a essa variedade de adivinha que sã o as palavras cruzadas.
No capí tulo 28 do Gé nese , Jacó recebe a revelação do futuro
de seu povo . Apreendido no gesto verbal do mito, tal futuro Uma ciência , a Etnografia , també m se ocupou seriamente
é assim formulado: “Viu uma escada cujo cimo tocava os céus da adivinha . Nesse dom í nio, ali ás t ã o f é rtil em fraquezas, existe
e os Anjos do Senhor subindo e descendo por ela . ” Deus fala-
uma obra exemplar : é o volume Rdtsel ( Vol. I de Mecklenbur-
ra- lhe ; Jacó desperta na manh ã seguinte, assustado , e diz: “Qu ão gischeti Volksuberlieferungen ) t de Richard Wossidlo, publicado
cm 1897 ( Wismar ) . Assinalemos igualmente o estudo de Wolf -
tem ível é este lugar ! Não é outra coisa sen ão a casa de Deus!
A porta do Cé u . ” Apanha ent ã o a pedra sobre a qual repou- gang Schultz ( Pauly -Wissowa , Realenzyclopàdie , artigo “ R á tsel ” ,
sara a cabeça , limpa-a e recobre-a de óleo. Essa pedra n ão é cf . W. Schultz, Rátsel aus dem helleniscben Kulturkreis , 1912 ) ,
um monumento que suscitaria a lembran ça do passado , n ão é
excelente colet â nea de adivinhas amigas, reunidas e tratadas sob
um objeto sens í vel que encarnaria a promessa ; tampouco é um
todas as suas formas. Não esqueçamos VergleichendetJ Rátsel-
objeto onde se alojaria unicamente a expressã o do sentido do forsebungen ( F. F. Com . 26, 27 , 28, 1918 / 20 ) , estudos em que
mito: é um objeto a que foi delegado o poder do mito, que o chefe da escola finlandesa , Antti Aarne, reuniu materiais consi-
deté m esse poder e de onde o Mito surgiu , subitamente , como derá veis. Enfim , Robert Petsch dedicou um livro à adivinha
evento efetivo.
alem ã , Das Deutsche Volksrátsel ( Estrasburgo, 1917 ) .
Do mesmo modo , um retalho de pano colorido pode ser As coletâ neas de Wossidlo c de Aarne constituem o ponto
s í mbolo , desde que seja a bandeira que , sob a forma de objeto ,
de partida de nosso estudo , do mesmo modo que partimos das
d ê resposta a estas perguntas : Que partido ? Que corporação ? Acta Sanctorum para estudar a Legenda . Entretanto, devemos
Que regimento ? Que pá tria ? lembrar aqui a diferen ça que existe entre os mé todos da Etno-
grafia e os da história da literatura . O que encontramos nessas

108 109
colet â neas são, evidentemente, as Formas atuais, as atualiza ções .
Uma coletâ nea como a de Wossidlo reúne , sem qualquer julga- promana. Se isso for conseguido, poder-se-á doravante distin
mento pré vio , e , diga-se a palavra certa , em sua integridade guir e classificar os tipos e atualizações fornecidas pela História ,
absoluta , a totalidade de generalizações que tinham curso num e ir mais alé m , comparando ent ã o, com as atualizações “ histó-
ricas”, as atualizações que a disposição mental não pára de gerar.
tempo e espaço determinados — a época c o lugar dessa compi
la ção. Assim , a coletâ nea de Wossidlo oferece- nos o invent á rio
*

objetivo e exaustivo das adivinhas do Mecklemburgo nos come-


ços do século XX .
Uma colet â nea como a que Aarne tentou formar coloca - nos
em presença de outra coisa , como a própria express ão Vcrglei- II
chenden Forschungen ( Estudos Comparados da Adivinha ) do
t í tulo já indica. O ponto de partida já n ão é a totalidade das Se compararmos a pergunta e a resposta da adivinha com
reservas de certa regi ão, mas apenas determinados tipos; já não as do mito, nossa aten ção será imediatamente ferida por uma
é uma á rea e uma é poca delimitadas, mas a totalidade de á reas diferen ça puramente externa : se o mito é a forma que reproduz
e é pocas onde possam ser descobertas Formas atuais que se a resposta, a adivinha é a forma que mostra a pergunta. O

#
liguem ou pareçam estar ligadas — a um ou outro desses
tipos. Tal acumulação de materiais permite que se tente deter-
mito é uma resposta que conté m uma quest ão prévia ; a adivinha
é uma pergunta que pede uma resposta.
minar , na História e na Geografia , o ponto em que um certo
tipo pode ter origem . Dado que, na maioria das vezes , n ã o é À semelhan ça do mito, que cont é m , portanto , sua pergunta
possível estabelecer com exatidão esse ponto original através da alé m de sua resposta , existe uma resposta presente na adivinha
História unicamente, adota-se o procedimento conhecido como e pela adivinha. Pode acontecer que a adivinha seja formulada
“ mé todo comparativo” ; parte-se, portanto, de um grande n ú mero de tal modo que o adivinhador se revele incapaz de a adivinhar ;
de variantes contempor â neas para inferir delas uma forma pri- pode ser até que a solução correta se tenha perdido. Apesar
de tudo, o adivinhador sabe perfeitamente que essa solu çã o exis-
mitiva , que se supõe estar na origem de todas as variantes do
mesmo tipo. Depois , procura-se seguir, sempre pela história e
geografia , o itinerá rio que os tipos descreveram , através das
te— ou deve ter existido— e que algu é m a conhece ( ou conhe-
ceu ) : uma adivinha insol ú vel n ão é uma adivinha . Ainda mais :
é pocas e dos povos, e tenta-se observar as modifica ções que sofre- n ão só o adivinhador sabe que a solu ção é ( ou foi ) conhecida
por outrem , mas essa forma é tal que ele n ão pode deixar de ter
| ram ao passar de uma cultura a outras. Existe o grande risco a certeza de que també m é capaz de encontrar a solu ção. Cer-
\ j/ de se ficar encerrado num cí rculo vicioso, porquanto, dos dado
histórico-geográ fico , infere-se uma forma primitiva para expli- ^ teza que se converte logo em outra convicção: a de que deve
encontrá-la .
car, em seguida , as modificações dessa forma hipoté tica com a
ajuda dos mesmos dados histórico-geográ ficos. Podemos designar semelhante disposição mental empre-
Por outra parte, ainda que se evite tal c í rculo, a forma pri - gando novamente a palavra-chave saber . Mas trata-se de outro
mitiva deduzida de atualizações nunca deixa de ser , na melhor saber c de outra curiosidade. No Mito, o homem interroga o
das hipó teses , uma Forma atualizada e , na pior , uma Forma universo e seus fen ô menos acerca da natureza profunda deles ,
relativa ou Forma artística . Enfim , mesmo que possu íssemos e o universo d á-se a conhecer numa resposta , numa “ profecia ”.
uma colet â nea relativamente completa dessas verdadeiras for- Na Adivinha , o homem j á n ã o está em relação com o universo:
mas chamadas “ primitivas ” , restar- nos-ia ainda a tarefa de extrair h á um hemem que interroga outro homem e de modo tal que
delas a Forma Simples e de esclarecer-lhe o significado . Seja a pergunta obriga o outro a um saber. Um dos dois possui
o saber , é a pessoa que sabe, o sá bio; um interlocutor o enfrenta


qual for o interesse dessas colet â neas para a história liter á ria ,
o mé todo morfológico preferirá , uma vez mais, tentar fixar a e é levado, pela pergunta , a pôr em jogo suas forças, seus recur-
J> essê ncia de uma Forma Simples c a disposi ção mental donde ela sos e sua vida , para chegar a possuir també m o saber e apre-
sentar-se ao outro como sá bio. Tal saber est á presente desde o
-

no
111
momento em que a pergunta foi formulada e n ão existe, como
observada de modo ainda mais acentuado. Em Plat ão, a forma
no Mito, meio de arrancar , a uma pergunta , sua resposta . do di á logo é aquilo de que resulta a sabedoria . O catecismo
Na forma do Mito, somos os indagadores ; na Adivinha ,
somos os indagados
— e de tal modo que devemos responder.
É por isso que o Mito ostenta as cores da liberdade, a Adivinha
també m é uma conversaçã o, um diá logo ; mas o interrogador
conhece antecipadamente as respostas e se o interrogado respon -
de de maneira correta , n ão é a própria sabedoria que lhe resulta
as do constrangimento ; por isso , o Mito c atividade , a Adivinha das respostas mas o saber do candidato. O estado de espírito
passividade. É por isso também que o Mito alivia enquanto do candidato, durante um exame , mostra-o bem : o interrogador ,
a Adivinha oprime. E n ão é por mero acaso que o equivalente que possui o saber e a que chamamos sá bio, pode ser concebido

- em velho-alto alem ão da Adivinha era a palavra tunkal, que signi-


fica “ a coisa tenebrosa ”.
No Mito, tal como na Adivinha , o feixe de significados ata-
como um ser “ demon íaco”; ele é, ao mesmo tempo, um monstro
que nos apavora , que nos oprime e nos sufoca .
Alé m do exame , existe també m , na vida real , um outro
-se na confluência da pergunta e da resposta, ali onde a pergunta
se resolve em resposta. Mas essa confluência , que no Mito
era a verdade de uma profecia , torna-se na Adivinha a deci —
estado , um outro evento — e isso n ã o foi observado por Laistner
em que se pode perceber a adivinha enquanto forma : é a
fração de um enigma . - sessão de tribunal . J á n ã o é apreendida , como no caso da Le-
genda , do ponto de vista do procedimento que verifica a pre-
Sublinho a diferen ça entre as duas formas com tanto mais sen ça de uma virtude ativa ou de uma falta pun ível , mas sim
insistência quanto os cr í ticos que realizaram pesquisas mais por- como relação entre pessoas. Durante uma audiê ncia judicial ,
menorizadas sobre a Adivinha n ão enxergaram o que a separa do o juiz é quem deve saber e o acusado é quem sabe. També m
Mito, embora tenham visto a ligação existente entre as duas aqui existe, para um dos dois, o dever vital , a necessidade vital
formas. É o caso de Wolfgang Schultz , na obra citada no in ício de elucidar o saber do outro. É o réu quem apresenta a Adi-
deste capí tulo , e é també m o caso de Ludwig Laistner, em seu vinha e se o juiz n ã o conseguir adivinhar deixa , hic et nunc,
curioso livro Das Ràtsel der Sphinx ( O Enigma da Esfinge ) , a de ser juiz .
que deu o subtí tulo característico de Grundz úge einer Mythen
geschichte ( Elementos para uma História dos Mitos ) ( Berlim ,
- Conhecem -se alguns exemplos em que a Adivinha se amplia
1889 ) . até converter-se numa narrativa que , de algum modo, c o comen -
t á rio que ela faz de si mesma ; tais exemplos mostram clara -
mente como a Adivinha se nos apresenta enquanto Forma Sim
ples , e como, nessa situação, nos é dada a disposição mental da
-
Adivinha .
III Há , cm primeiro lugar, um grupo a que chamaremos , de
acordo com os especialistas de tipologia , o Grupo de Enigmas
Foi Laistner , entretanto, o primeiro a assinalar o que, na da Esfinge. Os exemplos são muito conhecidos: temos a História
vida real , pode tornar clara Forma da Adivinha : o conceito da Esfinge, Turandot , o Imperador e o Abade , o Companheiro
de exame. De fato, o exame é um estado compará vel à adivinha , de Viagem de Andersen e todas as outras variantes. O exami -
mesmo que se desenrole em outra dimensão e em outro plano. nador é , nestes casos, um ser mais ou menos cruel , ou uma
A í vamos encontrar o sá bio, aquele que formula uma pergunta princesa ou um rei , enfeitiçados e ligados a poderes maléficos .
e obriga outra pessoa a saber e a responder , ou perecer
— isto
é , a “ fracassar ”. Acontece, poré m , que tal pergunta n ão é uma
O mais inofensivo de todos é o imperador , que quer indagar
das capacidades intelectuais de um frade t ã o barrigudo que três
questão socrá tica , n ão é apresentada «de modo a que um universo
homens de m ã os dadas n ão conseguem abraçá - lo. Em todos os
se crie na resposta ; ela j á est á condicionada por um saber e o casos , poré m , a f órmula é sempre a mesma : “ Adivinha ou mor-
impõe como condição sine qua non. Compare-se a forma do re!” Em todos os casos , trata -se de uma prova capital , na acepção
diá logo plat ó nico com a de um catecismo e a diferença será mais profunda do termo.
112
113
portem a obrigaçã o de resolv ê-las . Outrora , segundo parece ,
mente o nome de Enigmas de Ilo , derivado de uma de suas
-
Outro grupo se apresenta em confronto; dá-se lhe usual- nas Ilhas Hava í , o que n ã o descobria a solução de uma adivinha
ia para a panela e os seus ossos eram conservados como trof é u .
mais frequentes atualizações. Eis o que escreveu Wossidlo a Por isso existiriam ainda fam ílias que se recusam a resolver adi-
respeito: “ Este conto-adivinha ( por nossa parte, preferiremos
chamar - lhe apenas adivinha ) espalhou -se por todo o interior
vinhas, porque seus ancestrais morreram desse modo — o que
equivale a dizer que, neste caso , a Adivinha c a Saga se con -
do pa ís. Não encontrei uma aldeia onde n ã o fosse conhecido de jugam . É també m a razão pela qual algumas pessoas dizem ,
algum habitante e , ami ú de, numa ú nica aldeia , encontrei-o sob quando se trata de responder a uma adivinha : “ Jogamos a nossa
três , quatro ou cinco versões diferentes. ” A sua formulação cabeça .” Na verdade , toda a vez que encontramos essa Forma
habitual é a seguinte : Simples , só podemos repetir a f órmula : adivinha do examinador
Auf Ilo geh ich , ou adivinha do acusado, sempre que a adivinha alcança o seu
auf Ilo steb ich, significado mais profundo, é a vida que está em jogo , é nossa
auf Ilo bin ich húbsch und fein , cabeça que se joga .
rat ' tf meine herren, was soll das sein.
[ Sobre Ilo vou ,
sobre Ilo estou ,
sobre Ilo , a bela e gentil. IV
Adivinhem , meus senhores , o que isto quer dizer . ] Começamos por abordar a adivinha principalmente pelo lado
daquele que deve adivinhar . Est á vamos autorizados a isso pelo
Eis uma das explicações: “ Uma jovem fora acusada de ter fato de ela nos ser dada sob a forma de pergunta e de esta
morto uma criança mas, outrora , quando sc era condenado à


nos ser apresentada , na verdade, em cada caso. Dois desses
morte, se se pudesse apresentar aos ju ízes uma adivinha e estes
n ã o soubessem decifrá - la , ent ão o ré u era solto . A jovem tinha
grupos o Enigma da Esfinge e a Adivinha de Ilo — mostra -
ram - nos a import â ncia de quem propõe a adivinha , a impor-
um cã o a que chamava Ilo e com a pele do animal fizera um t â ncia do interrogador .
par de sapatos. No dia seguinte , ela calçou os sapatos , foi at é os
ju ízes e propôs- lhes sua adivinha . Os ju ízes n ão puderam adivi- Sugerimos a atividade do adivinhador pela palavra decifrar .
nhar e a moça foi posta em liberdade .” ( Wossidlo , p. 191. ) Entretanto, só se pode decifrar aquilo que foi cifrado. E esta
Além da adivinha de Ilo, tomada cm seu sentido estrito, entram palavra permite-nos denominar a atividade daquele que propõe
neste grupo in ú meras adivinhas apresentadas e contadas com a adivinha . Quais são , pois, a finalidade e a inten ção da cifra ?
explicações semelhantes , como “ Duas pernas sobre três pernas ” , Vimos que o interrogador é quem sabe, é quem se encontra
-
“ N ã o- nascido “ etc. Portanto , apresenta se aqui uma adivinha que
proporciona a liberdade e a vida se n ã o for adivinhada. A quest ã o
i,
no lugar do saber. Por outro lado , o adivinhador mostra , ao
adivinhar , que é um igual do seu interrogador , que est á em
é posta pelo acusado e equivale a dizer : “ Apresenta uma adivinha igualdade de sabedoria. O fato de se propor uma adivinha é ,
e viverás.” pois , em primeiro lugar, um ato pelo qual se põe à prova o
Tudo se passa como se as duas categorias convergissem a adivinhador , um exame dessa igualdade. Mas a pergunta con -
partir de pólos opostos dc uma só disposição mental . N ão poder t é m , al ém disso, um elemento de pressã o sobre o adivinhador .
resolver uma adivinha é morrer ; apresentar uma adivinha que Considerada cm seu todo, a adivinha é , portanto, do lado do
ningu é m resolve é viver. interrogador , uma inquirição do adivinhador e um modo de pres-
sion á - lo para que se mostre igual a quem o examina ; recorde-se ,
Tais adivinhas cuja solução é uma quest ão de vida ou morte simplesmente, a noção de exame. Que esse pôr à prova e essa
receberam o nome ( justamente por esse motive ) de adivinhas pressã o sejam exercidos n ã o importa quando e a respeito de
cruciais ou ainda adivinhas de soluçã o crucial . Mas , fundamen- n ão importa quem , é uma prova : cumpre que o interrogador
talmente, todas as adivinhas são cruciais na medida em que com -

114 115
tenha um motivo para submeter à prova o interrogado, assim
como o interrogado de sua configuração mais simples, até ao reino dos bem-aventurados,
submeter-se a esse exame . na medida , pelo menos , em que o concebamos como lugar cujo
Da í resulta que a verdadeira e ú nica finalidade da adivinha ú nico acesso seja o caminho da sabedoria.
- n ão é a solução , mas a resolução. Sendo a resposta sobejamente
conhecida do interrogador , n ão h á , de sua parte, grande empe- Tendo afirmado que a Adivinha é uma palavra de passe ,
nho cm voltar a ouvi-la ; o que lhe importa é ver o interrogado podemos acrescentar que ela conduz a uma iniciaçã o , que d á
em situa ção de dar- lhe resposta e pression á -lo para que d ê. acesso a essa iniciação fechada .
Sublinhe-se, uma vez mais, a diferença essencial que separa Do lado do interrogador , a Adivinha tem por finalidade e
o Mito da Adivinha . No Mito, o sentido da resposta est á cxclu - por função indagar se o interrogado está maduro para tal ini-
sivamente nela . Na Adivinha , apresenta-se, pelo contrá rio , uma cia ção e conferir - lhe , ao mesmo tempo , uma possibilidade de
pergunta a fim de apurar se o interrogado possui certa dignidade acesso a esse dom í nio fechado ; do lado do interrogado, trata -se
e, uma vez dada a resposta , a pergunta prova que o interrogado de mostrar que se é digno de ser admitido à iniciação.
tem essa dignidade.

——
As definições mais superficiais do conceito de Adivinha
que dizem geralmente respeito à s suas Formas relativas já
nos ensinam que a adivinha moderna é um meio de pôr à prova V
a perspicá cia do adivinhador. Nas camadas mais profundas ,
onde temos de procurar nessas Formas Simples , a finalidade est á Isto nos leva a uma segunda quest ão: O que é cifrado ?
muito mais definida. Podemos dizer , neste ponto, que o inter-
rogador — a quem chamamos o s á bio — n ão est á só , que n ão Se partirmos das in ú meras adivinhas formuladas todo dia
é independente, que consubstancia um saber , uma sabedoria ou por crianças e adultos , das seções de passatempos , das coleções
ainda um grupo aglutinado pelo saber. O adivinhador , por seu de adivinhas , dos almanaques, tem-se a impressão de que tudo,
lado , n ão é um indiv íduo que responda à pergunta de outrem , sem exceção , pode ser cifrado . É ilimitado o n ú mero de objetos
mas aquele que aspira a ter acesso a essa sabedoria , a ser admi- transformados em adivinhas dos modos mais diversos . Mas é
tido nesse grupo e que, pela sua resposta , prova estar maduro evidente que se trata de Formas relativas , nas quais um certo
para a admissão, A solu ção é , pois, a f órmula , a palavra de modo de cifrar se aplica a qualquer objeto. Tais formas analó-
passe, que dá acesso a um domínio fechado. O interrogado j á gicas podem, na melhor das hipóteses, elucidar-nos sobre a ma-
n ão sc defronta , como na adivinha da esfinge ou em todas as neira como se cifra , mas n ã o são determinantes no que lhes
narrativas-adivinhas atualizadas, com um interrogador, que seria respeita ao objeto profundo.
um monstro sufocante ; no entanto, vislumbra -se sempre a exis
- A Etnografia estabelece uma diferen ça entre as adivinhas
tê ncia de uma pressão: o acesso a esse dom í nio fechado é uma que se oferecem na “ seção de passatempos ” e as que ela cole-
questão de vida ou morte, tanto para o candidato como para ciona e compila , as chamadas “ adivinhas verdadeiras ” ( Petsch ) ,
quem conceda o direito de acesso. A Adivinha é , pois , determi ou ainda as “ adivinhas populares ” ; o motivo da diferenciaçã o
nada dos dois lados ao mesmo tempo: o interrogador deve cuidar
- est á , provavelmente, no fato de as primeiras , uma vez adivinha -
de que, ao decifrar a quest ão cifrada , o adivinhador demonstre das e uma vez publicada a solu ção do n ú mero seguinte, serem
sua dignidade e sua igualdade de valor. esquecidas , ao passe que as outras “ fazem parte do folclore ”
Poder-se-á indagar qual a natureza de um grupo vinculado e “ tê m curso permanente ” , vale dizer, nunca deixam de ser
assim pela sabedoria . Numerosas respostas são poss íveis e pode- apresentadas. Isto n ão significa, evidentemente , que tais cole-
mos resumi-las desta feição: tais grupos s ão de um gênero tal t â neas n ão contenham Formas relativas nem que as adivinhas
que se constituem de iniciados e cumpre passar por uma iniciação que vivem no folclore possam ser sempre concebidas como For-
para ser admitido neles . V ão, pois , desde a sociedade secreta , mas atualizadas , como formas , portanto , em que uma Forma
Simples e sua disposição mental sc realizam ou sejam realizadas .
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Os exemplos de Wossidlo mostram , pelo contr á rio,
que uma
Forma relativa pode passar perfeitamente ao folclore e ter curso
permanente, o que aumenta o n ú mero de ciframentos no
iecia mas sempre uma decifração
cifrado se relacione com o Mito.
— mesmo quando o objeto
próprio
seio da adivinha popular. Mas isso é apenas uma aparê ncia ; As duas disposições pedem ser vizinhas sem que se mistu -
pois
a colet â nea de Wossidlo mostra- nos també m que o n ú mero rem jamais . Voltarei agora ao or áculo . Neste , cria-se um evento
objetos cifrados diminui consideravelmente se adotarmo de
s uma futuro, como Forma Simples, a partir de uma pergunta e da
visã o de conjunto: para um certo modo de ciframento, depara sua resposta ; mas a criação tem lugar no pró prio seio do oráculo.
mo- nos a cada passo com objetos id ê nticos ou semelhantes -
mo quando parecem ser diferentes, percebe-se que os
. Mes - Entretanto, aquele que utiliza , se me permitem dizer, o oráculo,
ser á digno de conhecer o resultado dessa criação ? Isto n ão é
grupos se
estreitam c remetem para um ponto de partida ainda discern certo a priori\ cumpre verificá- lo, prov á- lo. E , para que se
Foi assim que Antti Aarne estabeleceu corretamente ( F. í vel . faça a verificação, o pró prio oráculo cifra sua profecia.
F. C.
27 ) que certo n ú mero de adivinhas oriundas dos horizonte Retomemos a histó ria contada por Heródoto e j á citada a
s
diversos e tendo por solução o gato, o cão , o cavalo, a cabramais , o propósito do Mito: se Creso resolver a adivinha , ter á provado
camelo, o porco, o carneiro ou a lebre, podem ser todas redu sua dignidade , ter á franqueado o círculo fechado, e o oráculo
zidas a um “ tipo” , que é a cifra do boi ou da vaca . -
pertencer-lhe-á ; se n ão a resolver , fracassar á nesse exame de
Se adotarmos o caminho inverso, começando pela disposi iniciação e estará liquidado; ccmo sempre, a adivinha é crucial .
ção mental e pela Forma Simples , teremos de admitir que - Tem ístocles , por seu lado, apresenta -se como um iniciado ( Heró-
as
perguntas em que essa disposição se concretiza , as verdadei
adivinhas atualizadas propostas pelo iniciado ou postulante, n ão
ras -
doto VII , 141 e segs. ) , pois resolve a adivinha do TEIXOJ S ú XIVOV
e capta , assim , o sentido do evento futuro. Enquanto Mito, o
podem ser ilimitadas nem arbitr á rias . Só se pode cifrar o que oráculo cont ém a resposta suficiente e un í voca da profecia ver í-
a iniciação encerra : o segredo de uma sociedade clandesti ,
na o dica ; mas essa verdade é a clandestinidade da associação. Entre
segredo que ela protege c dissimula , ao mesmo tempo . Partindo o oráculo e o interrogador estranho e n ão- iniciado intercala-se,
dessa palavra , poder-se- á até falar de dissimulação e perf ídia na forçosamente, a forma da adivinha , em toda a pluralidade dos
adivinha . Logo, é o sentimento de fechamento que determina o seus sentidos.
que deve ser cifrado. Quer se trate de um mito ou de outro conte údo , uma coisa
Eis-nos de volta aos dom í nios do Mito. É possível e até é certa : o interrogador possui o saber e encarna o grupo ou
frequente que o sentido da sociedade secreta assente na quest ã o associação. Por outras palavras: o sentido da associação e o
da criação e da constituição do universo c seus fen ômenos; a objeto cifrado para o não-iniciado constituem o saber como
sua clandestinidade , por fim , na verdade recebida em comum , posse.
numa revelação, consistindo a atividade dessa sociedade em ações
que reafirmam e repetem o significado da dita revelação. Por
cutras palavras , estamos diante de uma comunidade vinculada
por um sentido que é mito e que executa ações a que chamamos
ritos. Neste caso , a adivinha proposta por tal comunidade estar á VI
ligada ao mito e este é que será cifrado
— mas , sublinhemos, o
que verdadeiramente se cifrará será um mito , pois n ão é a
Forma Simples que se cifra , mas a sua atualiza çã o ; n ã o o Mito ,
Chegamos assim a uma terceira quest ão : Como se faz a
cifra ? E isto conduz-nos à verdadeira forma da Adivinha .
mas um mito. As duas disposições mentais conservam -se bem Como o objeto da cifra é determinado e condicionado pelo
separadas : a final idade da associa çã o é a de reproduzir , em cada sentido de fechamento e pela clandestinidade do grupo, é forço-
oportunidade, o universo numa interrogação e na sua resposta ; samente necessá rio que esse objeto seja redigido na linguagem
a finalidade da adivinha consiste , meramente , em pô r à prova o do grupo. Assim , poder-se-ia dizer que o exame consiste , em
primeiro lugar, em esclarecer se a pessoa de fera entende a
interrogado pelo interrogador , e a pergunta nunca é uma pro
- linguagem do iniciado.
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Os exemplos de Wossidlo mostram , pelo contrá rio , que uma
Forma relativa pode passar perfeitamente ao folclore e ter curso
permanente, o que aumenta o n ú mero de ciframentos no próprio
tecia mas sempre uma decifração
cifrado se relacione com o Mito.
— mesmo quando o objeto

seio da adivinha popular. Mas isso é apenas uma aparê ncia ; pois As duas disposições pedem ser vizinhas sem que se mistu -
a colet â nea de Wossidlo mostra - nos també m que o n ú mero de rem jamais. Voltarei agora ao orá culo. Neste, cria -se um evento
objetos cifrados diminui consideravelmente se adotarmos uma futuro, como Forma Simples, a partir de uma pergunta e da
visão de conjunto: para um certo modo de ciframento, depara - sua resposta ; mas a criação tem lugar no próprio seio do or áculo.
mo- nos a cada passo com objetos id ê nticos ou semelhantes. Mes- Entretanto , aquele que utiliza , se me permitem dizer , o or áculo ,
mo quando parecem ser diferentes , percebe-se que os grupos se será digno de conhecer o resultado dessa criaçã o ? Isto n ã o é
estreitam c remetem para um ponto de partida ainda discern ível. certo a priort; cumpre verificá-lo, prov á -lo. E, para que se
Foi assim que Antti Aarne estabeleceu corretamente ( F. F. C. faça a verificação, o pró prio oráculo cifra sua profecia.
27 ) que certo n ú mero de adivinhas oriundas dos horizontes mais Retomemos a histó ria contada por Heródoto e já citada a
diversos e tendo por solução o gato, o cão, o cavalo, a cabra , o propósito do Mito: se Creso resolver a adivinha , ter á provado
camelo, o porco , o carneiro ou a lebre, podem ser todas redu - sua dignidade, ter á franqueado o cí rculo fechado, e o oráculo
zidas a um “ tipo”, que é a cifra do boi ou da vaca . pertencer-lhe-á ; se não a resolver , fracassará nesse exame de
Se adotarmos o caminho inverso , começando pela disposi - iniciaçã o e estará liquidado; ccmo sempre , a adivinha é crucial .
ção mental e pela Forma Simples, teremos de admitir que as Tem ístoclcs, por seu lado, apresenta-se como um iniciado ( Heró-
perguntas em que essa disposição se concretiza , as verdadeiras doto VII , 141 e segs. ) , pois resolve a adivinha do TEIXOJ Çú Xivov
adivinhas atualizadas propostas pelo iniciado ou postulante , n ão e capta , assim , o sentido do evento futuro. Enquanto Mito , o
podem ser ilimitadas nem arbitrá rias. Só se pode cifrar o que or áculo cont é m a resposta suficiente e un ívoca da profecia verí-
a iniciação encerra : o segredo de uma sociedade clandestina , o dica ; mas essa verdade é a clandestinidade da associação. Entre
segredo que ela protege e dissimula , ao mesmo tempo . Partindo o orá culo e o interrogador estranho e n ão- iniciado intercala-se,
dessa palavra , poder-se-á at é falar de dissimulação e perf ídia na forçosamente , a forma da adivinha , em toda a pluralidade dos
adivinha . Logo, é o sentimento de fechamento que determina o seus sentidos.
que deve ser cifrado. Quer se trate de um mito ou de outro conte ú do , uma coisa
Eis- nos de volta aos dom í nios do Mito . É poss í vel e até é certa : o interrogador possui o saber e encarna o grupo ou
freqíiente que o sentido da sociedade secreta assente na quest ão associação. Por outras palavras : o sentido da associação e o
da cria ção e da constitui ção do universo c seus fenómenos ; a objeto cifrado para o n ão- iniciado constituem o saber como
sua clandestinidade , por fim , na verdade recebida em comum , posse.
numa revela ção, consistindo a atividade dessa sociedade cm ações
que reafirmam e repetem o significado da dita revelação . Por
cutras palavras , estamos diante de uma comunidade vinculada
por um sentido que é mito e que executa a ções a que chamamos VI
ritos. Neste caso, a adivinha proposta por tal comunidade estará
ligada ao mito e este é que será cifrado — mas , sublinhemos , o
que verdadeiramente se cifrará será um mito , pois n ão é a
Chegamos assim a uma terceira quest ão: Como se faz a
cifra ? E isto conduz-nos à verdadeira forma da Adivinha .
Forma Simples que se cifra , mas a sua atualização ; n ão o Mito ,
mas um mito. As duas disposições mentais conservam - se bem Como o objeto da cifra é determinado e condicionado pelo
separadas: a finalidade da associa ção é a de reproduzir , em cada sentido de fechamento c pela clandestinidade do grupo, é forço-
samente necessá rio que esse objeto seja redigido na linguagem
oportunidade , o universo numa interroga çã o e na sua resposta ;
a finalidade da adivinha consiste, meramente, cm pô r à prova o
do grupo. Assim , poder-se-ia dizer que o exame consiste , em
primeiro lugar , em esclarecer se a pessoa de fera entende a
interrogado pelo interrogador , e a pergunta nunca é uma pro-
linguagem do iniciado.
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Estamos pensando de novo no conceito de catecismo. Pala - mina çã o habitual de algo. As palavras em quest ão possuem um
vra derivada do verbo grego fazer compreender , fazer-se significado cuja estrutura diverge fundamentalmente da dos
entender , o catecismo se aparenta com a adivinha mas dela se outros significados da linguagem ; ao passo que as significações
distingue pelo fato de n ão ter a espontaneidade da adivinha . O lingii ísticas designam , habitualmente , uma ú nica realidade fatual ,
catecismo é também o meio que permite ingressar numa comu - as palavras “ á rvore ”, “ ninho ”, “filhotes ” ou ainda “ manh ã ” ,
“ meio- dia ” e “ tarde ” designam aqui realidades correlativas .
nidade e obter a inicia ção , visto que a resposta é aprendida pelo
catecú meno. Reencontramos aqui o saber como posse. J á Ocorre , poré m , que estes exemplos são atualizações flutuan-
vimos que o saber se concretiza no Mito e é produzido no conhe- tes , adivinhas recolhidas no folclore peles investigadores. À me-
cimento. Todavia , enquanto posse , o saber pode ser n ão só dida que nos aproximamos da adivinha como Forma Simples, à
cifrado mas també m apreendido. As narrativas-adivinhas dizem medida que a compreendemos melhor como a palavra de passe
coisas análogas. Na história do Morto Agradecido, o adivinha - que engloba a iniciação numa certa comunidade , observa-se com
dor recebe a solu ção de um outro, sempre diferente: ele uma nitidez cada vez maior que a igualdade a que me referi
apreende -a . mais acima promana de um sentido que, no seio dessa comuni -
O catecismo, entretanto , basta para provar que só se chega dade , implica o sentido do universo.
à iniciação atribuindo um sentido determinado a uma determi- Por/.ig ( Germanica , Festgabe Sievers , Halle , 1925 ) estu -
nada palavra ; que o batismo n ão designa a á gua , pura c simples- dou as adivinhas do Rig -Veda de forma sin óptica , fim de
mente, mas a água vertida por ordem de Deus e vinculada ao apreender a adivinha num ponto em que ela se manteve viva
seu Verbo . . . como Forma Simples. Verificou que as realidades móveis ( o
De modo muito mais acentuado, encontra -se fenô meno seme- Sol , a Lua , o ano , o pé ) a í se convertem em roda ou carro ;
lhante na Adivinha . Quando nos dizem : que as realidades assimiladas ( os dias , os meses ) são irmãos;
s ã o pássaros ; que os elementos donde promanam outros elemen-
Ein Baum stebt in der ganzen Welt , que os fen ô menos situados no ar ( o Sol , a fa ísca , o rel â mpago )
der zweiundfiinfzig Nester hàlt , tos ( as nuvens , a aurora , o fogo ) sã o vaca ; e que a parte inferior
in jedern Nes / e sieben Jungen , chama-se sempre pé , a parte superior cabeça.
docb sdmtlich sind sie ohne Zungen
[ Há uma á rvore sobre o Mundo todo
— Cifrando-se , desde medo, o Sol que refulge através das
nuvens , obt é m -se o texto seguinte :
que alberga vinte e cinco ninhos , “ Aquele que o conhece , que diga aqui o rastro oculto desse
em cada ninho sete filhotes amado pássaro. As vacas chupam leite de sua cabeça e , ocul-
e nenhum deles tem l í ngua ] tando- lhe o rosto, beberam a água com suas patas . ”
Porzig tratou seguidamente em pormenor a natureza dessa
sabemos de antemão que a á rvore , o ninho e os filhotes n ã o linguagem c deu sua contribui ção para o cap í tulo das l í nguas
devem ser tomados aqui ao pé da letra e sim interpretados em especiais. Toda a l íngua cujo conhecimento indica filiaçã o num
sentido diferente do habitual. E se pensarmos na adivinha da c írculo fechado e significa , na clandestinidade desse cí rculo, o
esfinge: Quem anda de quatro patas de manh ã , duas ao meio-
-dia e três patas à tarde ? — també m sabemos que, neste caso,
a manh ã , o meio-dia e a tarde n ão significam obrigatoriamente
sentido do universo, é por nós denominada lí ngua especial .
L íngua especial e l íngua comum constituem um universo que
os momentos do dia ( e sim as fases principais da vida humana ) é o verdadeiro universo da comunidade lingu ística em quest ão. Mas
e que as patas, ou pernas, n ão podem reduzir-se a uma parte do a l íngua comum apresenta as coisas imediatamente , tal qual elas
são e em termos absolutos ; logo, ê estritamente un í voca , ao passo
corpo. que a l í ngua especial restitui o sentido às coisas , suas implicações
Mas pressente-se , igualmente , que esses significados n ão pro- internas c seu significado profundo ; portanto, é t ão plur ívoca
vê m de uma cifra que substituiria por um outro nome a deno- quanto o universo visto do interior . As linhas que estruturam a

120 121
imagem do universo, conforme dada pela l í ngua comum ,
acessíveis após estudo profundo; seus locutores possuem umó são
s
verso mas ignoram- no. Pelo contr á rio, o universo da l í ngua uni-
cial mostra sua construçã o e sua estrutura desde o in ício espe-
; ele
conhecido muito antes de passar ao dom í nio da comunidade. Essasé VII
linhas de força possuem uma carga tal que as coisas tomadas
detalhe se esfumam . ” .. em Quando dizemos que a Adivinha contem , de modo geral ,
a l íngua especial que é pró pria de um determinado grupo, esta -
Porzig ilustra em seguida a oposição l í ngua comum vs l í mos ainda longe de ter- lhe definido a forma . O gesto verbal da
gua especial mediante um exemplo extra ído do dom
n- Adivinha é a l í ngua especial , mas esta n ão adota necessaria -
í nio dos mente a forma de adivinha ; para darmos um exemplo óbvio, a
significados:
l í ngua especial n ão adota essa forma no grupo que a utiliza .
Basta a descrição do car á ter de uma l í ngua especial para mos- Ou , para dar um exemplo na l í ngua real , onde as l í nguas cor-
trar claramente a existê ncia de significados especiais em rente e especial se interceptam : quando falo do pé da montanha,
l í ngua dada. Quando se fala do “ pé de uma montanha ” oucada do
" pé de um candeeiro
” , esta palavra tem um sentido da mesma espé- isto é l í ngua especial , mas n ã o é adivinha ; torna -se poré m adivi-
cie da aurora transportada pelo pé do Sol ou das nuvens que nha quando pergunto: “ O que é que tem um pé e n ã o pode
bebem água pelo pé nas adivinhas do Rig -Veda. E se remontarmos caminhar ? ”
à origem de cada fenômeno, a palavra assume uma significaçã
o
sobremaneira especial. Com efeito, trata -se daquelas mudanças de Falta mencionar um novo aspecto, aquele que nos permi -
sentido que sã o geralmente designadas como “ transposi ções ” ou tirá julgar a relaçã o existente entre o interrogador e o adivi-
"sentidos figurados ” . Na verdade ,
gem , outra espécie de significa ção. Na linguagem coinum , o -
é uma outra espécie de lingua nhador . No caso de o interrogador ter o propósito de verilicar
p
designa uma parte do corpo que possui configuração determinadaé, se o adivinhador é digno de ser admitido, o adivinhador , ao
como coisa existente ; na l í ngua especial , pé significa uma
coisa
encontrar a solu çã o , ingressa num cí rculo fechado . Pouco
cuja natureza tem por finalidade transportar e sustentar.
ta-se sobre a "essência ” do pé humano e ver-se-á ser isso, justa
Refli - importa , nesse particular , se ele tem , por sua vez , intenção de
mente , o que a lí ngua especial pretende designar . Ocorre - usar esse círculo fechado com outras pessoas ; por outras pala -
, porém , vras , se o adivinhador se considera ou se conduz da í em diante
que a l í ngua comum n ão procura designar o pê de acordo com
sua como iniciado. De fato, o hermctismo e a clandestinidade do
essência mas segundo a sua manifestação fenomenal. Os dois sen
tidos continuam coabitando sem choques , no alem ão moderno , e- grupo desaparecem no momento em que ele enuncia a solu ção.
sabemos que, no Rig-Veda, todas as expressões da l íngua das adi As narrativas-adivinhas exprimem tal fato ao dizer que a vida
-
vinhas pertencem igualmcnte à língua comum
— mas com uma outra
espécie de significado. L í ngua especial e l í ngua comum n ão
s ão,
do interrogador está em joge: quando o enigma da esfinge é
portanto , dom í nios lingu ísticos vizinhos que se excluam
mutua - adivinhado , a esfinge precipita -sc do rochedo e morre. Mas
mente, mas camadas de uma mesma l íngua que se sobrep esse aspecto també m condiciona a forma da Adivinha : esta n ã o
õem uma
à outra . . . é apenas uma representação cifrada da clandestinidade do grupo ;
é també m uma defesa e nisso reside aquela perf ídia da Adivinha
estas
Quanto ao resto, remeto o leitor a Porzig mas todas—
observa ções , assim como as respeitantes à sintaxe , reves-
a que me referi acima.
tem -se de import â ncia capital para a noção de Adivinha . Seja Os gregos tinham duas palavras para a Adivinha : alvo
( ainos ) com o correspondente a ívtyiaa ( ainigma ) , e ypí<p .
^

como for , essa situaçã o demonstra bem que , no tocante à Adi


vinha , é possí vel determinar com bastante precisão aquilo a que
-
}
°
( griphos ) . Na primeira , se n ã o me engano , está implícito o fato
chamamos “ gesto verbal ”: o gesto verbal da Adivinha decorre do ciframento , ao passo que na segunda , que significa propria-

——
sempre da sua lí ngua especial . mente “ rede” a rede que nos aprisiona e cujos n ós nos
emaranham exprime-se melhor a perf ídia da cifra .
Uma vez mais, é a língua especial que permite tal perf ídia.
Os significados especiais pressupõem uma noçã o consciente da
totalidade do universo e um sistema de ambiguidade em que se
122
123
devem enquadrar todas as coisas efetivamente un ívocas ; por con- pró pria soluçã o. Ao cifrar a adivinha , o interrogador solta -a .
seguinte, n ão são logo compreensíveis para o estranho. Toda Uma nova adivinha se insinua na adivinha e essa é uma das
e qualquer l í ngua especial torna -se incompreensí vel para as pes- possibilidades oferecidas por aquela espécie de jargão que inter-
soas de fora , como se demonstra bem pelo jargã o, no sentido rompe o universo un ívoco. A resposta volta a fechar a lacuna
mais restrito, que é a linguagem do caçador ou a linguagem do aberta pela pergunta ; ela també m é lí ngua especial , també m é
criminoso, entre muitas outras. Essa propriedade de ambigui- plurívoca. A primeira solução esconde e comporta uma segunda ;
dade , essa aptidão para a incompreensibilidade , é o que a Adi- tampouco entrega o seu segredo mais profundo. Assim se expli-
vinha , como forma , se propõe refletir , por assim dizer , Ela ca um fato frequentemente observado: as adivinhas “ aut ê nticas ”
n ão apenas é redigida na l í ngua especial de um grupo como redi-
gida de modo a dar ao n ão-iniciado a impressã o de ser

nao t ê m solu ção un ívoca
tivas da é poca atual .
o que as distingue das Formas rela -

incompreens í vel . Vimos , h á pouco, que a express ão “ pé da mon - Em certos jogos de sociedade, essa dupla solu ção torna-se
tanha ” pertence à l í ngua especial e que a pergunta “ O que é um jogo. Existem adivinhas que tê mi uma solu çã o in ócua quando
que tem um pé c n ã o pode caminhar ? ” é uma Adivinha . Que a companhia é feminina e menos inocente quando a companhia
é , então, que faz a Adivinha ? Ela reconduz da l í ngua especial é masculina . Mas tal “ companhia masculina ” j á se encontra
à l í ngua comum , do pé cuja ambiguidade pode sustentar vá rias ligada àquelas organizações a que a Etnografia deu o nome de
coisas , ao pé humano, parte do corpo sem ambiguidade ; e torna “ associações masculinas ” . A soluçã o feminina també m cont é m
a l í ngua especial incompreensível a partir da l í ngua comum . um sentido que, ao mesmo tempo , é retido. Com efeito, exis-
A forma da Adivinha abre tudo ao fechar-se ; é cifrada de tem adivinhas que parecem conduzir a uma solu ção escabrosa ,
tal modo que esconde o que comporta , ret é m o que cont é m . ao mesmo tempo que admitem uma solu ção inocente ; a perf ídia
A pergunta e a resposta estão separadas por uma luta . est á , nesse caso, em parecer que se abre uma outra possibilidade
Reencontramos sua expressão nos concursos de adivinhas que alé m daquela que, na realidade, é vedada . A colet â nea de
subsistem em certos lugares ou que se transmitiram na litera - Wossidlo mostra- nos até que ponte essas adivinhas são frequen -
tura , a n ó rdica , por exemplo. Nesses concursos , é prevista uma tes , recordando- nos, pois , a antiguidade e a universalidade da
penalidade, n ão apenas para o que n ã o sabe adivinhar mas tam - l í ngua especial da sexualidade.
bé m para aquele cuja adivinha foi adivinhada , O enigma da
esfinge e a adivinha de Ilo ccnfundem -se , ent ã o ; a iniciação
aborda outra inicia ção, o iniciado defronta-se com outro iniciado.
Sabemos que esse tipo de concursos, nos quais os próprios deu - VIII
ses participavam, termina geralmente com uma adivinha proposta
pelo mais poderoso e pertencente à inicia ção suprema . Odin
propõe uma adivinha que nenhum mortal é capaz de adivinhar Procurei mostrar , pois , todas as implicações da forma Adi -
c esse segredo é um dos meios pelos quais o deus guarda nossa vinha . Quanto à nossa é poca , vimos que a adivinha sobrevive
vida em suas m ãos. em Formas relativas quase tctalmente desligadas da Forma Sim -
ples ; e, por outro lado, nas adivinhas do folclore popular , que
Se o adivinhador franqueou , poré m , um círculo fechado, ao n ão se associa mais à sua finalidade original , embora nos reme-
adivinhar , isso se deve a que o interrogador lhe proporcionou tam para uma significação antiga e desta possamos deduzir e
tal possibilidade com a sua adivinha . Toda a atualiza ção com- reconhecer a Forma Simples. Precisamos remontar às adivinhas
porta , alé m da possibilidade de uma solução , a própria solução. do Rig -Veda para poder observar uma realização viva da Forma
Recordemos , simplesmente, a cé lebre adivinha: “Como se chama Simples, porquanto a “ adivinha art ística ” c a “ adivinha popular ”
o cã o do Rei Carlos ? ” cuja resposta é : “ Assobiando” . Esta for- n ão passam de meros jogos, hoje em dia . Por qu ê ? Ao estudar
ma é apenas um exemplo bastante claro de um fato geral , a a Legenda e a Saga , vimos que , numa dada é poca , em circunst â n -
saber , que toda a atualização cont é m , de um modo ou outro, sua cias determinadas, uma disposiçã o mental pode ser recalcada e

124 125

I
perder toda a sua atividade, ao ponto de suas atualizações se relações e acusam o grupo dc malfeitoria , como se vê atual-
dilu írem e se tornarem dificilmente reconhecíveis. A Adivinha mente no caso da Franco-Maçonaria .
tem uma evolu ção an á loga . Os conceitos de grupo c de clandes
- A clandestinidade do crime e o enigma do criminoso já n ão
tinidade foram praticamente abolidos da nossa sociedade e a são, em nossos dias, Formas Breves; foram ampliadas, conver-
noção de l í ngua especial , em sua acepçã o mais profunda , foi reti- teram-se na grande narrativa do romance policial . Encontramos
rada da linguagem . Porzig fornece, a esse respeito, algumas indi - a í a figura do criminoso que cifra a sua identidade e o seu crime,
cações interessantes : “ Exigimos que os conceitos cient íficos mais mas abre , nesse ciframento, a pró pria possibilidade da descoberta ,
abstratos sejam , ao mesmo tempo , a designação inequ ívoca de e a figura do detetive, do descobridor que resolve a adivinha e
fatos. Os termos cient íficos poderiam e talvez devessem ser franqueia o dom ínio fechado. Sendo esse gê nero de narrativa
algo mais que o nome de realidades efetivas , independente- uma das formas em que atualmentc se dissolve a Forma art ística
mente do que pensem certos meios científicos ditadores de deter- do romance, mereceria um estudo particular.
minadas orientações , tão poderosa é ainda , na cultura ocidental , Para concluir: vimos que existe, no universo da Legenda,
a corrente que se opõe às l í nguas especiais.” O saber como objetos carregados do poder impl ícito nessa forma e que encar-
propriedade universal , como objeto que se deve adquirir, se pos - nam , como objetos , a totalidade dela . Demos o nome de relí-
sí vel , sob todos os seus â ngulos , repeliu o saber cifrado, o quias a tais objetos. Na Saga , o elemento objetai que corres-
saber como poder. No universo do século XIX , a Adivinha n ão ponde à relíquia da Legenda chama-se herança. Quanto ao Mito,
tinha lugar e talvez o mesmo ocorra cm muitos outros dom í nios . falamos de sí mbolo. També m no universo da Adivinha existem
Boas , um dos melhores especialistas cm Etnologia norte-ameri- objetos em que se aloja o poder da adivinha , objetos carregados
cana , ensina - nos que a Adivinha parece faltar na Am é rica e no
noroeste da Sibéria .
de adivinha — isto é, objetos que cont ê m um sentido ao mesmo
tempo que o retêm , que escondem uma solução ao mesmo tem-
Em contrapartida , poré m , onde quer que sobreviva o grupo po que a comportam . Esses objetos , que a clandestinidade ronda ,
clandestino , ainda que como simples vest ígio, reencontramos a pedem muito bem ser designados por rurtas. Conhece-se o sen -
verdadeira Adivinha . Nestes ú ltimos tempos , falou -se muito de tido da palavra alem ã Alraune ( mandrágora ) , assim como do
uma sociedade cujo mito garantiria a coesão, mito no qual o gótico runa e do anglo-saxão run. Quanto ao sentido de tal
universo far-se-ia conhecer como Templo ; percebe-se bem que objeto e de suas vastas relações com a escrita em particular ,
essa associação abre-se e fecha-se na adivinha e o nome de Maço- cabe- nos fix á-lo em ligação com a disposi ção mental da Adivinha .
naria é um bom exemplo de lí ngua especial . Pudemos observar ,
ao mesmo tempo, todos os esforços realizados desde fora para
demolir o fechamento desssa associação , sendo o meio utilizado
para tal efeito “ revelar-lhe ” a adivinha .
As lutas travadas contra a Franco-Maçonaria mostram - nos
um outro aspecto da Adivinha : os v ínculos existentes entre a
clandestinidade do grupo e a clandestinidade do crime. Com
efeito , poder-se- ia acreditar que perdemos de vista a segunda
cifra , aquela que o criminoso emprega para salvar a vida . De
fato, essa cifra é outra : é o inverso da primeira , mas tal inversão
pode explicar-se de maneira idê ntica . O malfeitor també m se
fechou com sua malfeitoria e seu segredo ; e só ele, com os seus ,
foi iniciado. També m se trata aqui de chegar at é e e e a solução
'
é o meio que lhe faculta o acesso ao círculo fechado. Sempre
que as pessoas de fora n ã o reconhecem um grupo segundo seu
sentido pró prio e segundo seu fechamento, elas invertem as

126 127
r Pouco antes da publicação de seu grande Sprichwó rter-
kunde, j á dera ele , numa obra mais limitada , uma definiçã o algo
diferente:
“O prové rbio é uma locu ção corrente na linguagem popu-
lar , dotado de caracter ísticas did á ticas e de uma forma que refle-
te um tom mais elevado que o discurso comum .”
O DITADO Quando se altera uma definição é porque se hesita neste ou
naquele ponto. Ora , vemos que as “ características didá ticas”
I deram lugar a uma “ tend ê ncia ” did á tica , o que significa que
um termo de maior amplitude foi substitu ído por outro mais
cauteloso ; parece, pois, que Seiler vacilou um pouco ao empregar
À Forma Breve que é a Adivinha acrescentarei uma outra a palavra “did á tico ”. Por outro lado, a segunda definição acres-
Forma Breve a que se d á usualmente o nome dc Ditado ou Pro- centa a ideia de “ fechamento ”. Ambas as definições possuem
vé rbio. O nosso estudo estabelecerá at é que ponto essas pala- três elementos em comum : 1. o prov é rbio “ é corrente na lin-
vras designam uma atualiza ção peculiar e em que medida pode- guagem popular ” ; 2 . é “ uma locu çã o” ; 3 . tem uma forma
remos també m deduzir dela uma Forma Simples. Reagrupa - “ elevada ” .
ram -se sob o nome de Ditado o essencial do que é preciso para Examinemos mais de perto o primeiro desses elementos: o
empreender tal estudo. As colet â neas de prové rbios , ditados e “ corrente na linguagem popular ”, ou a popularidade do “ pro-
m á ximas apareceram muito cedo —muito antes de serem mat é-
ria de uma disciplina cient ífica chamada Etnografia — e com
vé rbio ” , para lhe darmos o nome que recebe em seguida . O
pró prio Seiler sentiu bem at é que ponto o termo “ popular ” é
finalidades totalmente diversas. As primeiras colet â neas cient í- embaraçoso. Começa por dizer : “ Faz-se necessá ria uma id é ia de
ficas dessa natureza coincidem , no Ocidente moderno , com o f ácil apreensão e n ã o muito elevada , palavras universalmente
Humanismo e pertencem , em certo sentido, à esfera filológica e conhecidas e populares ” ; e distingue assim do provérbio f ó rmu -
pedagógica . Bastaria mencionar Erasmo , Sebastian Franck , Mar- las como “O amor espiritualiza as mulheres ” ou “ A vida é um

tin Agrícola , I leinrich Bebei e também a compilaçã o de pro-
vérbios que Lutero organizara para seu uso pessoal . O leitor
sonho”. Mas diz logo depois: “ Afirmar que o prové rbio deve
ser uma verdadeira locu ção popular n ã o significa em absoluto
encontrará , a este respeito, informações muito precisas numa que todo o provérbio deva ser usual em toda a população .
obra excelente que vai servir de ponto de partida para as nossas Muitos prové rbios e ditados est ão associados a certos lugares
considerações; refiro-me ao Deutschen Sprichwòrterkunde ( Estu - e aparecem ami úde num dialeto. ” Mais adiante lê-se ainda o
do sobre o Provérbio Alem ão ) , de Friedrich Seiler, publicado na seguinte: “ Alé m disso, numerosos prové rbios originam-se em
coleção de manuais destinados ao ensino superior ( Back’ sche meios profissionais bem definidos : m á ximas militares , anexins
Verlagsbuchhandlung , Munique, 1922 ) . Completa sob todos os do artesanato ou do campesinato, prové rbios estudantis. A for-
aspectos, tal obra poupa - me o trabalho de citar as colet â neas de mação intelectual ou moral també m implica diferenças no uso
prové rbios e os dicion á rios modernos. Entretanto, sejam quais dos prové rbios. Existem os que preponderam nas camadas supe-
forem cs mé ritos dessa obra pioneira , nem por isso deixará de riores de uma população e outros nas suas camadas inferiores .
ser necessá rio alterarmos mais de uma formulaçã o sua . Os primeiros estão próximos do limite a partir do qual o pro-
vé rbio desaparece em proveito da sentença cu pensamento. ”
Seiler definiu o prové rbio ou ditado da seguinte maneira :
“ Uma locução corrente na linguagem popular , fechada sobre si Para falar especificamente, teríamos de imaginar, portanto,
mesma e com uma tendê ncia para o didatismo e a forma ele- três camadas distintas: uma inferior, uma interm édia e uma supe-
vada .” nor. Nas duas primeiras , encontraríamos os prové rbios, os dita-
dos e má ximas; na ú ltima , as sentenças e pensamentos. Só não
128
129
nos foi explicado como essas camadas se situam dentro do con - Parece, portanto, que a literatura n ão faz verdadeiramente parte
junto chamado “ popula ção” , quais as suas relações recí procas, que da “ popula ção”. Os prové rbios literá rios, diz- nos Seiler , “ são
ligações existem , por conseguinte , entre o provérbio inferior e o muito mais numerosos do que comumcnte se julga. São os mais
superior , entre o prové rbio superior e a sentença , entre todos difundidos e os mais substanciais.”
esses provérbios, enfim , e os de “ profissão”, a que nos refe-
rimos mais acima .
Como os provérbios literá rios iriam ser objeto de um livro
%
especial , Seiler resolver dedicar -se exclusivamente aos prové rbios
Poder-se-ia pensar , é certo, que essas sentenças são produtos populares cm seu Sprichtvòrterkunde. Mas quer refutar, logo
da literatura , mas isso n ão é inteiramente exato, viste que lemos de entrada , uma “ id éia româ ntica ”. “ Durante longo tempo,
pouco depois: “ a distinção entre prové rbios superiores e inferio- predominou a opini ão de que o ditado popular teria por ori-
res ocorre, em geral, quando uma língua escrita se desliga da gem , tal como a poesia popular , o conto popular ou a gesta
língua falada.” O provérbio superior já se vincula , pois , à l í ngua popular , as profundezas misteriosas da alma do povo. ” Essa
escrita. opini ão, segundo parece , já se encontrava em Aristó teles e ter-
Essa cisã o entre prové rbios superiores e inferiores n ão tarda -se-ia imposto em seguida , independentemente de Aristóteles,
em ser també m abolida — ou , pelo menos, deixa de ser consi-
derada capital , pois vamos encontrar um terceiro termo plantado
graças a Rousseau e a Herder ; mas n ã o resistiria , diz- nos Seiler,
às investigações mais recentes: os prové rbios c ditados populares
entre os dois: “ Entre ambas as classes, encontra-se uma vasta n ão brotaram misteriosamente das profundezas da alma popular .
camada intermédia , numericamente superior à s outras duas , que “ Como totalidade, o povo nada cria. Toda criação, toda inven -
é a dos prové rbios de que todas as camadas da população se ção, toda descoberta promana sempre de uma personalidade indi-
servem indistintamente. ” Explica -nos , inclusive, quando apare- vidual . É preciso , forçcsamente, que qualquer provérbio, qual-
ceu essa camada intermédia : “ Esses provérbios remontam à época quer ditado tenha sido primeiro enunciado por algué m , num
em que a vida espiritual da população , a sua maneira de sentir certo dia e nalgum lugar . Se agradar aos que o ouviram , será
c de exprimir-se, eram ainda homogé neas c n ão separadas de propagado como locução proverbial; é então provável que o
acordo com as classes e os recursos.” retalhem e retoquem até dar-lhe uma forma prá tica para todo o
Tenho bastante dificuldade em imaginar semelhante época mundo, convertendo-o, dessarte, num prové rbio cu ditado uni-
sem classes nem recursos separados , tanto do ponto de vista lin - versalmente conhecido.”
gu ístico quanto do sociológico. Atrevo-me até a duvidar da Este processo tampouco está muito claro. O autor diz-nos
possibilidade de semelhante id ílio na história das culturas. Feliz- que todo provérbio fei locução proverbial e que o povo, como
mente, os prové rbios da classe intermédia també m remontam ,
por seu lado, a uma outra é poca : “ Eles escorreram , gota a gota ,
totalidade , nada sabe criar ou inventar — embora saiba perfei-
tamente, segundo parece, “ retalhar ” e “ retocar ” um objeto pre-
da camada superior para a inferior.” Seja como for , essa camada viamente existente , até incutir-lhe uma configuração cuja vali-
intermédia “ conta nã o só os prové rbios mais difundidos , mas dade seja universal . Ora , acontece que o prové rbio só se torna
també m os mais numerosos ”. locu çã o proverbial depois de ter recebido, do povo, essa forma
Nada disto nos proporciona a imagem exata do que se dotada de universalidade e assim por diante.
entende aqui pela palavra “ popula çã o ” , nem nos fornece indi - Nã o tenho a inten ção de travar aqui polê mica contra a
cação alguma sobre o local onde o provérbio nasce e se situa
obra de Seiler. O que desejo mostrar neste debate é , t ão-so-
nessa população. O conceito de “ população” acarreta ainda mente , que o conceito de povo n ão nos permite dizer mais do
outras dificuldades quando se chega ao capí tulo segundo , con -
que isto: aquilo a que chamamos prové rbio ou ditado existe , ao
sagrado ao nascimento do provérbio e dedicado a elucidar-nos que parece, em todas as camadas de um povo, em todas as suas
sobre o modo como tal nascimento ocorreu . classes, em todos cs seus meios: nos mais altos, nos mais baixos ,
Os prové rbios são classificados nesse capí tulo de acordo com nas camadas interm édias, entre os camponeses, artesãos , letrados
sua origem e em duas categorias: os liter á rios e os populares . e sá bios.

130 131
universo esbarra e que , por sua parte , o destrói . Vamos reen -
contrar a í a separa çã o e a ligação , a compara ção e o relaciona-
mento , as articula ções e a classificação ; todavia , a separa çã o pro-
II domina nas ligações , a sobreposição subsiste nas correlações e a
distin ção dos termos na classificação. Em poucas palavras, tal
Vejamos agora a segunda caracter ística explicativa do pro- universo n ão é um cosmo e sim a dispersão , o empí rico.
vé rbio: o provérbio c uma locução . Trata-se de uma expressão -
É possível refugiarmo nos num universo assim quando sa í-
gené rica para dizer que o prové rbio n ão é um conceito de base mos de outros universos, pois é nele que se desenrola uma parte
per set mas deve ser reduzido a um conceito de base. Por outras da nossa exist ê ncia e , cada vez que nele nos encontramos , a forma
palavras, segundo o nosso modo de ver, existe uma Forma Sim - resultante da nossa disposição mental e das ideias que lhe est ão
ples que se chama Locução, a qual se atualiza em prové rbios vinculadas é essa Forma Simples a que chamamos Má xima ou ,
ou ditados. Quanto a saber se essa Forma Simples poderá atua-
lizar-se de outra maneira , vê-lo-emos mais adiante.
melhor ainda , Locu çã o — embora sabendo que estamos restrin-
gindo assim a acepção da palavra .
Como existem prové rbios e ditados por toda parte, tanto Em nossa morfologia , a Locu çã o é , pois, a forma liter á ria
no Ocidente como no Oriente, tanto hoje como na Antiguidade , que encerra uma experiê ncia sem que deixe de ser , por isso , o
n ã o é necessá rio procurá-los , como no caso da Adivinha verda- elemento de pormenor no universo do distinto. Ela é o v í nculo
deira , nem traduzi-los, como no caso da Legenda e da Saga. aglutinador desse universo , sem que a coesã o assim obtida o
Encontramo-los a cada instante e essa familiaridade permite-nos arranque ao empí rico .
tentar determinar imediatamente a disposição mental de que O prové rbio é a atualização dessa forma ; entretanto, ao
resultam a Forma Simples , ou seja , a Locução, e a Forma atual , invés das outras formas , cujos modos de atualizaçã o eram indis-
o Prové rbio ou Ditado, sem que i se faça necessá rio procurar um tingu íveis com tanta precisão, verifica-se que é possível distin-
ponto da Hist ória onde se situaria uma realização peculiar e bem guir outras atualizações e que a m á xima , a sentença , o dito pro-
caracterizada. verbial , o ad ágio, o apotegma e o aforismo t ê m , cada qual à
Se concebermos o universo como uma multiplicidade de sua maneira , um lugar nessa forma.
sensações e vivê ncias, estas , uma vez apreendidas , ordenadas e Contentar- nos<* mos , poré m , em estudar uma ú nica atuali-
reunidas, resultam em grande n ú mero de experiências, que con- zação , a do Prové rbio ou Ditado , a qual explica suficientemente
tinuar ão sendo uma multiplicidade de pormenores. Determinada a natureza dessa forma .
experiê ncia é compreendida , de cada vez, independentemente das
demais, e as conclusões das v á rias experiências só podem ser
imperativas e suscet íveis de avaliação nesse universo e dessa ma-
neira , se nos mantivermos nelas e partirmos delas. É um uni-
verso intemporal porque cs instantes , em sua especificidade indi- I 11
vidual , n ão logram transcorrer juntos para constituir um tempo
( e n ão como no universo onde já n ã o existe experiência , porque Comecemos por ver a Locu çã o per se. Suponhamos um fra -
os instantes se fundem numa eternidade ) . É um universo que casso que poderia ter sido um ê xito ; atribu í mos tal fracasso a
carece da quarta dimensão, um universo assintótico , um universo
de elementos isolados, que sabe adicionar mas n ão sabe multi -
um defeito que nos é essencial e que conhecemos por experi ên
cia ; a falta de ‘‘ê xito ” , talvez digamos nessa circunst â ncia , é
-
plicar. obra do acaso. O homem precisa ter sorte.
É impossível pensar em termos conceptuais a totalidade e Suponhamos agora um êxito que poderia n ão ter aconte-
cada pormenor de semelhante universo, uma vez que o pensa -
mento conceptual é justamente o obst áculo contra o qual esse
cido ; se o atribuirmos a uma iniciativa audaciosa , que a expe -
ri ê ncia nos diz ser o germe do sucesso , diremos també m , mas
132 1 )3
num outro tom , que foi obra do acaso: o homem precisa ter
sorte.
é igualmente verdadeiro a respeito das suas atualizações O .
prové rbio ou ditado tampouco é um começo , mas uma conclusão ;
A locu çã o aparece, pois, na vida e na arte, sempre que é a rubrica e o selo visí vel que se apõem a uma id éia e que o
uma experiência é apreendida da maneira indicada acima . Mas cará ter da experi ê ncia lhe impõe.
estes exemplos bastam para mostrar que n ão se trata de um
ju ízo cr í tico a respeito dessa situaçã o , nem de uma reflex ão que
Temes o mais claro exemplo disso quando o provérbio apre -
senta a mesma forma dos modos de ensino ou da injun çã o. Os
correria mais ou menos assim : “ Se eu tivesse agido de outra imperativos “ Honra a teu pai e a tua m ã e ” e “ Conhece- te a
maneira , talvez . . . etc.” Isolamos um fato ou realidade e enfia- ti mesmo ” s ã o distintos dos imperativos “ Não fa ças a outrem
mo- lo no colar da experiência , que tem uma quantidade enorme o que n ão queres que te fa çam a ti ” ou “ Diz- me com quem
de pé rolas semelhantes. Falamos de um universo da experi ê n - andas e dir- te-ei quem és. ” Os dois primeiros imperativos visam
cia , mas é evidente que tal universo, pelo pró prio fato de ser ao futuro ; poder íamos chamar-lhes imperativos categó ricos. Nos
empí rico , divide-se de acordo com os interesses , as ocupações e
-
a experi ê ncia de cada classe e de cada meio
se conjugam e se encerram em universos distintos.— •
expenencias que
A
dois ú ltimos , predomina o passado que levou à s respectivas con
clusões. Pois n ão é intempestivamente que dizemos “ Rir á me
lhor quem rir por ú ltimo ” , mas quando vemos alguém rejubi
-
-
Essas experiê ncias encerram -se com muito maior facilidade lar-se prematuramente com algo sobre que n ão foi dita ainda a
em locuções , ou em m á ximas, uma vez que são adquiridas numa ú ltima palavra ; e quando dizemos “ Não se deve cantar vit ória
esfera social ou profissional espec ífica . O que explica , ali ás , o antes da batalha ” , é porque uma confiança cega , que sabemos ,
fato de podermos distinguir e reconhecer na locu ção os meios por experiê ncia , ser aziaga , j á comprometeu os bons resultados
de que nos fala Seiler : soldados , artesã os, camponeses, estudan - de um empreendimento , a fortuna hujusce dici dos romanos.
tes. Essas locuções avizinham-se das caracter ísticas de outras També m neste caso se associa empiricamente , e por conclusão,

camadas sociais : humanistas, escritores etc. , mas também
daquela classe intermédia da locu ção onde convergem as expen -
um acontecimento passado a acontecimentos atuais da mesma
espécie. A ausência de sentido moral , t ã o frequentemente reco-
ê ncias de numerosos indiv íduos. A experiê ncia que nos convida nhecida e deplorada nos prové rbios e ditados, explica -se pelo
a aproveitar uma ocasi ão quando esta se nos apresente , e a n ão fato de o universo empí rico ignorar a moral . Nos prové rbios ,
perder tempo , converte -se, assim , na experiê ncia do ferreiro e
expressa -se do seguinte modo : “ É preciso malhar o ferro enquan -
existe sempre uma tampa sobre o poço
depois de a crian ça ter-se afogado .
— mas que só é posta

to ele est á quente. ” Ou a experiência do galanteador que se


Disse Wilhelm Grimm : “O verdadeiro prové rbio popular
traduz em “ A fortuna sorri aos audaciosos.” Estas duas f ó r- n ã o nos oferece voluntariamente um ensinamento. N ão é o
mulas sã o igualmente capazes de isolar e classificar uma expe- fruto de meditações solit á rias , mas o lampejo de uma verdade
riê ncia no seio daquela classe interm édia de que nos falou Seiler . pressentida desde longa data e que encontra por si mesma sua
Isto nos leva à palavra “ didatismo”, que Seiler j á atenuara expressão mais elevada.”
por conta própria na sua segunda definição e que, em minha Sebastian Franck aludiu igualmente a esse cará ter conclu -
opini ã o , deveria ter suprimido, pura e simplesmente. A Locu çã o sivo do prové rbio quando o define como uma “ breve sentença
n ão é did á tica , n ã o possui um car á ter did á tico nem mesmo uma arguta ” , soma de toda uma atividade . Sentença arguta é uma


tendência did á tica , Isso n ão significa que n ã o se possa aprender express ão graciosa que , infelizmente , caiu em desuso , para desig-
pela experiência mas , antes , que no universo de que estamos nar a locu çã o e suas atualizações. Mas conserva també m um
falando — n ão cabe conceber a experi ê ncia como algo de que
se deva extrair uma lição. Toda did á tica é um começo, a base
pouco da sabedoria que é uma das propriedades constantes do
prové rbio cm do ditado.
de uma construção mais vasta , enquanto que , na forma em que
a Locu ção a apreende, a experiê ncia é uma conclusã o . Sua ten -
d ência é para a retrospecção , seu car á ter é a resignação. Isso

134
135
2. Devem ser n ão só universalmente conhecidas mas ter
passado també m ao uso corrente e ser universalmente
empregadas;
3. Esse uso e emprego devem ser n ã o apenas provisórios
IV mas duradouros, embora a dura ção n ã o signifique ne-
cessariamente uma eternidade.
Chegamos assim às atualizações da locução. E deparamo-
-nos de novo com a pergunta habitual : Como se produz essa Estamos, pois, diante de autênticas atualizações da Locução ,
atualização, como é que a Forma atual decorre da disposição que provêm de indiv íduos e, sem d ú vida , de indiv íduos armados
mental sugerida pela palavra-chave Empirismo ou Experi ê ncia ? de bom senso e dotados da faculdade de encontrar a palavra
( A bem dizer, j á est á vamos alé m da “ sugest ão” . ) Ou , em ter- exata . Quanto a esses indivíduos, é igualmente certo que a sua
mos mais prá ticos: como a experi ê ncia que extra í mos da vida e identidade pode ser estabelecida , mas sem que seja universal -
se resumiu em “ O homem precisa ter sorte ” se converte num mente conhecida . Quando se diz a respeito de algué m , “ Ele
prové rbio como “ Sorte de uns , azar de outros” , ou “ Feliz no cala -se em sete línguas”, sabemos sempre que a frase é de
jogo, infeliz no amor ” , ou “ É na desgra ça que se conhece o Schleiermacher e se refere a um determinado indivíduo ? É
amigo ” , e assim por diante ? evidente que não. E quando se diz : “ A vida é o momento que
Tomemos esse “como” num sentido mais gen é rico c veja- vivemos ” , quem sabe que isso é um estribilho de Nestroy ? Para
mos de que maneira Seiler representa as coisas . Como j á vimos , Seiler , todos os provérbios tiveram de conhecer a mesma sorte
considera ele que a atualização passa sempre por um indiv íduo. e promanar de uma certa pessoa , de um escritor que depois caiu
Para Seiler, o prové rbio ou ditado parte sempre de um indi- no esquecimento; e da í tirou ele , audaciosamente , a conclusão de
que , em sua origem , todes os prové rbios eram locu ções pro-
v íduo , como toda e qualquer criação, descoberta ou inven ção ;
e descreve esse personagem quando o define como “ um esp í-
verbiais.
rito l ú cido, armado de um sólido senso comum e dotado, além Fa çamos alguns comentá rios a esse respeito. Búchmann
disso, da faculdade de encontrar a palavra exata ”. jamais estabeleceu a existência de um autor para qualquer dos
prov é rbios a que chamaremos aqui “ correntes” ou “ usuais” .
Deixemos de lado essa tend ê ncia da história literá ria a que Ignoro a quantidade, mesmo aproximada , de tais prové rbios, mas
aludimos em nossa introdução e que consiste em partir sempre assinalo apenas que o primeiro volume do Deutschem Sprichw õr -
do poeta como a força que incute forma e estrutura ; o que
levou Seiler e alguns outros a tal convicção foi um fato peculiar. ter- Lexicon , de Wander , contém cerca de 45 000 prové rbios e
É certo possuirmos locu ções atualizadas que provê m de indiv í-
ditados alem ães , e que o conjunto dessa obra totaliza cinco volu-
mes . Mesmo levando em conta algumas repetições ou variantes
duos identificá veis ; como j á dissemos , são as locuções prover- do mesmo provérbio , ainda sobra um par de centenas de milha-
biais. São as “ palavras aladas ” cuja origem remonta a Homero
e que reencontramos em alem ã o na expressã o Geflugelten Worte
usada por Gecrg Bú chmann em 1864 , quando reuniu pela pri -
res — e é estranho que todas as personalidades tenham caído
no esquecimento. Aliás , Búchmann n ão tentou sequer encontrar
os autores desses provérbios “ usuais ” . Ele sabia muito bem
meira vez numa obra as locuções desse tipo e projetou sobre elas
alguma luz esclarecedora ; a escolha da expressã o talvez n ão tenha que uma locu ção proverbial n ã o é um prové rbio, distinguia-os
sido muito feliz , mas aclimatou-se tão bem ao idioma alem ã o à primeira vista e compreendera que se tratava de um outro
que a conservamos . gê nero, de um outro modo de atualização. A fronteira é fluida ,
por vezes ; houve giros de frase empregados primeiro em oca-
Búchmann requer as seguintes condições para as locu ções siões particulares ou numa situação determinada , para serem
proverbiais : depois de uso ou emprego universal ; e pôde-se considerá-los
1 . Devemos poder estabelecer a sua origem literá ria ou locuções proverbiais, embora tenham sua origem em atualiza-
o seu autor histó rico ; ções mais antigas e mais gené ricas. Mas trata-se de uma í nfima

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minoria. Na grande maioria dos casos, o prové rbio e a locução espeito, Seiler efetuou também ura trabalho notá vel ao expor
proverbial n ão correm o perigo de ser confundidos. Uma dessas de maneira exaustiva os fatos da linguagem no prové rbio. Fica
locuções, que remonta a atualizações mais antigas , é a “ tempes- por explicar o sentido desses fatos , o que faremos quando forem
tade num copo de á gua ” , cuja paternidade se atribui comumente apresentados alguns exemplos.
a Montesquieu . Ora , Bú chmann estabeleceu que Montesquicu
foi buscá - la a locu ções do per íodo human ístico, que tiveram ori- De modo geral , a locu ção proverbial designa um estado de
gem , por seu turno, em expressões da Antiguidade. fato sob uma espécie a que se chama enunciado . Est á a í toda
a diferen ça em rela çã o ao Mito e à Adivinha , formas que se rea -
Entrei nestes pormenores para mostrar que a noção de lizam no binómio pergunta -resposta e cuja espécie é , portanto,
“ personalidade ” , de Seiler , n ã o é mais utilizá vel , do ponto de como j á vimos, a conversação ou diálogo. Mas o enunciado da
vista do m é todo, que o seu conceito de “ povo ” . Nã o podendo locu ção n ão progride por ligação cu conclusão de um ju ízo a um
o “ povo” ser reconhecido na qualidade de poder criador , e como outro; refere-se a um estado de fato, de maneira ú nica e abso-
a “ alma popular ” teve de ser jogada no ferro-velho do Roman- luta , e diremos que a sua espécie é a de afirmação ou apodí ctica,
tismo, foi na personalidade armada de um sólido bom senso n ão de desenvolvimento ou discursiva. Est á claro que essa
que se concentrou a força criadora . Mas era ainda necessá rio espécie afirmativa é a ú nica que permite exprimir aquilo a que
que essa personalidade ca ísse , por sua vez , no esquecimento , que chamamos a experiência .
os seus bens fossem “ retalhados” e “ retocados ” para tornarem -se
propriedade coletiva . E n ão se fornece indica çã o alguma de Prossigamos nosso exame da linguagem em que a locu ção
como e onde isso ocorreu . Dizem - nos : “ Fci preciso que cada se atualiza . Vejamos primeiro as palavras e a espécie dessas
prové rbio começasse por ser enunciado algum dia e algures ” ; palavras. Sirva de exemplo: “ Uw ' tens' vale mais que dois ' tu
també m se poderia dizer , naturalmente: “ Foi preciso que cada terás * .” O que é a palavra tens ? Não é certamente um substan-
prové rbio retocado começasse por ser enunciado algum dia e tivo. Tampouco é um adjetivo. Um verbo substantivado ? Não
algures ”. E poder-se-á acrescentar: Foi preciso que cada pala- exatamente. A maneira como esse vocá bulo se apresenta n ão
vra começasse por ser enunciada algum dia e algures. E assim permite enquadrá- lo numa das categorias gramaticais habituais.
sucessivamente , ad itifinitum . Não nego a existê ncia de um cir- Ele tem algo de duas espécies de palavras , mas sem deixar de
cuito entre a personalidade e o povo ; n ão duvido de que esse ser de uma espécie particular que o distancia da definição geral .
circuito se revista de significado e import â ncia para a crí tica Podemos dizer que a palavra opõe-se aqui às generalizações do
literá ria . Afirmo apenas que n ão é possí vel determinar , a partir conceito c , exagerando um pouco, diríamos que ela só pode ser
desse circuito, a natureza e o significado de uma forma , e afir- assim empregada nesse lugar e nesse contexto.
mo-o, sobretudo, porque esse m é todo só nos conduziu , at é hoje , Da palavra e da espécie de palavra , passemos à sintaxe.
a becos sem sa ída. O prové rbio n ã o é uma locução proverbial ; Bastará um exemplo: “ Longe da vista, longe do coração ” . Eis
a locu ção proverbial n ã o é um prové rbio. Aquilo que repre- um esquema muito conhecido , presente em numerosos ditos e pro-
senta o cunho particular de uma personalidade pode perder os vé rbios ( outra forma comum na Alemanha é “ Longe da igreja ,
vínculos que o ligam à pessoa assim caracterizada , mas n ão pode longe de Deus ” ) e favorecido, como se costuma dizer , pela poe-
perder seu car á ter pró prio. O nome do autor pode ter sido sia sentenciosa , por exemplo , nas trovas bá varas . Podemos con-
esquecido, coisa que acontece muitas vezes , até nas Formas art ís- siderar tal esquema um período paratá xico rigorosamente simé-
ticas , mas conservar -se-á a consci ê ncia de uma diferen ça : a exis- trico ; só que nenhuma das duas metades possui sujeito, comple-
t ê ncia de um autor. mento ou predicado , no sentido habitual destes termos. Correndo
O prové rbio e a locu çã o proverbial t ê m um ponto em co- o risco de fazer um simples jogo de palavras, diríamos que se
mum: ambos se enquadram na mesma disposição mental . Se trata menos de um período contrastado que de um per íodo con -
quisermos cotejar concord â ncias e divergê ncias , um só m é todo trariado. Esse esquema , em seu todo, n ão apresenta uma sin -
existe : observar umas e ouiras a partir do instante em que a taxe da unidade , mas uma sintaxe da diversidade, em que o
forma evolui dessa disposição mental para realizar-se. A tal significado resulta de contrá rios aut ó nomos; foi o que Wilhelm
1 )8 1 )9
um milh ã o ] e Wenn die Hoffnung nicht tvàr , ei so lebt ' ich
Grimm quis dizer quando falou de uma verdade que encontra
a sua mais alta expressão num surto fulgurante.
Também é descabido conceber esse esquema como ligação KJ KJ
— KJ KJ
—.
nicht mehr [ A esperança é a ú ltima a morrer ] ( ww —
KJ KJ
) Ocorre , poré m , que o esquema r í tmico
entre uma comparativa e a sua principal , tanto quanto procurar n ão tem a mesma função nas formas art ísticas e no prové rbio ;
descobrir a reuni ão de uma principal e de uma relativa no nas primeiras , é o elo que faz progredir a cria ção verbal , enquan -
esquema igualmente conhecido que começa com “ quem ” : “ Quem to que no prové rbio é o elo que encerra a Forma. A alitera çã o
pode manda , quem não pode aguenta' ’ , por exemplo , nada mais e a sucess ã o de per íodos só agravam a individualização que j á
é que uma hipotaxe. É uma sobreposição clara , onde a subor- observamos na sintaxe ; e tanto a mé trica como a rima lembram
dinação est á fora de causa e o elemento “ quem pede ” exerce menos a onda que flui e reflui do que as barras de uma grade.
a mesma fun ção de “ um tens ” em “ Um ‘ tens ' vale mais que Vejamos, finalmente, a “ Imagem ”, o Tropo. Liigen baben
dois ‘ tu ter á s’ ” . Toda e qualquer modificação , por m í nima que kurze Beine [ A mentira tem pernas curtas ] . Sobre a espécie
seja , que tenha em vista generalizar , destruirá aqui o valor da de palavra que Liigen é n ã o h á d ú vida: um substantivo; alé m
Forma atualizada. Vê-se em seguida que o prov é rbio perde em disso, a frase tem sujeito, complemento de objeto direto e predi-
vigor se dissermos : “ Aquele que n ão tem capacidade de mando -
cado. Mas o que acontece a esse substantivo? Atribui se-lhe um
tem de sujeitar-se a ser mandado.” complemento que n ã o é da mesma ordem , que se situa num
outro plano. As mentiras n ã o sã o corpos , n ão tê m pernas.
O mesmo se verifica quando se analisam os meios estil ís-
ticos empregados por tais per íodos. Podemos dizer que “ Hoje
Reccrde-se o que dissemos, antes , das línguas especiais, a pro -
vivo , amanh ã morto ” , é um ass í ndeto . Mas percebe-se bem que
.
pósito da Adivinha e da palavra “ pé ” As “ pernas” poderia ,
de fato, ter a mesma espécie de significação que o “ pé” na
este exemplo vai al é m do que geralmente se designa pelo recurso
linguagem da Adivinha e haveria v á rias realidades da mesma espé-
estil ístico do assí ndeto. O assí ndeto , que suprime a ligação entre cie que se reencontrariam na ambiguidade de uma palavra . Mas
os membros da frase ( exemplo: Cheguei, Vi , Venci ) , deixa de n ã o é esse o caso. O que nos é dito, rigerosamente , n ão é que
sê-lo a partir do momento em que já n ão se pode falar de liga- as mentiras tem pernas , mas que as mentiras tê m pernas curtas.
ção. No prové rbio, ainda que possua a forma assindé tica , a
noção de ass í ndeto perde todo o sentido. Vista superficial -
Isto n ão significa —
como na linguagem da Adivinha , em que
o pé designava tudo quanto tenha por natureza e função susten -
mente , a express ã o “ Cada amigo , cada tolo” , pode passar por
uma an áfora. Se a examinarmos mais atentamente, poré m , perce-
tar — que a perna assinale aqui todo órgão de locomoção ; duas
palavras sem qualquer liga ção entre si — mentira e pernas curtas
ber-se-á que n ão podemos considerar “ cada ” o centro em torno
— sã o aqui reunidas sem transi ção e de modo tal que o signifi-
do qual se reagruparam as partes do discurso ( como na an áfora ) ;
apesar da repetição, as outras palavras conservam uma liberdade
cado de uma — mentira —
resulta dessa reunião e, ao mesmo
tempo , é arrancada ao seu emprego geral e perde a exist ê ncia
igual em relaçã o à quela . como experiência . A um singular indeterminado, que poderia
A linha melódica do prové rbio permite observações an á- passar por abstraçã o , aplica -se uma qualidade incompat ível , o
logas. Já vimos que um certo esquema retórico pode ser comum que elimina a possibilidade de abstração e retira a palavra do
a prové rbios ou ad ágios diferentes. Mas també m caberia falar dom ínio conceptual , repondo-a no das coisas acabadas.
de um esquema rí tmico e este foi outro ponto estudado meticulo- O mesmo acontece quando o prové rbio todo parece ser
samente por Seiler. Três prové rbios t ão diferentes quanto Allzu uma ú nica imagem e se diz “ É preciso malhar o ferro enquanto
klug ist dumm [ O que julga saber tudo é tolo ] , Selber ist der est á quente\ em vez de “ É preciso aproveitar a oportunidade
Mann [ Se vccê é homem , seja homem ], Wie mans macht , ists
1
quando esta se apresenta ” . Não se compara a oportunidade com
falsch [ O que você fizer errado est á ] , t êm o mesmo esquema um peda ço de ferro nem a pessoa que aproveita com o martelo
sil á bico ( KJ — — KJ ) . O mesmo pode ser dito a respeito de
expressões mais complexas : Wer den Heller nicht ehrt , ist des
que malha; não se substitui um conceito por outro; é a forma
que brota como um relâ mpago —
para usar de novo os termos
Talers nicht wert [ Quem n ão d á valor a um tost ão, n ã o vale de Wilhelm Grimm —
a partir de uma verdade conhecida de

140 141
longa data e, no momento em que se converte em experiê ncia , do Mito conté m a mais alta liberdade do universo, a de se
-
essa forma separa- a de toda generalidade , anula lhe a possibili- criar a si mesmo ; e até quando lemos um mito que n ão é dos
dade de tornar-se abstra ção e remete-a ao universo empí rico . nossos respiramos melhor. Também no Ditado ou Prové rbio
Para resumir as observações que fizemos a respeito dos fatos \ vivo tem-se essa sensaçã o e empregamo- los sempre que classifi-
camos uma experiência , que a arquivamos, por assim dizer , sem
lingu ísticos do provérbio, podemos dizer que a l í ngua do pro
vé rbio é de natureza tal que rodos os seus elementos possuem
- por isso elimin á -la ; e , quando outros enunciam um prové rbio,
uma exist ê ncia individualizada e opõem -se a toda generaliza ção sentimos igualmente que eles nos poupam o trabalho de elaborar
e a toda abstra ção, tanto no que se refere ao sentido e à s vivê ncias e percepções. Tudo est á bem quando termina bem!
liga ções sint á ticas e estilísticas como no tocante à linha meló-
dica.
Quer no pormenor como no todo , a l í ngua do prové rbio

lizaçã o da locu çã o alé m do prové rbio e do ditado

Como j á assinalamos , existem muitos outros modos de atua-
graças
à capacidade dessa disposi çã o mental para isolar e individualizar ;
no interior da Forma Simples , tais atualizações constituem um
obedece à disposi çã o mental que conduz à locu ção. Nesse uni- todo, mas separam-se no momento cm que se atualizam e, inclu -
verso, a diversidade dc vivê ncias e sensa ções pode conjugar-se sive, cada uma delas recebe um neme distinto.
debalde em experiê ncias , pois a soma destas continuará sendo Iremos analisá- las mais de perto; gostaria , poré m , de adu -
uma diversidade dc elementos de pormenores e as palavras só
t ê m valor emp í rico em seus significados e conexões, A separa -
zir algumas considerações antes de abordar a locu ção proverbial .
ção prevalece na liga çã o, a sobreposiçã o na relaçã o , a distin ção
De modo geral , podemos dividir os materiais compilados por
des elementos nas classifica ções Todas as palavras, todos os Biichmann em duas categorias: a das locu ções proverbiais de
autores , ou citaçõ es que se tornaram proverbiais ; e, por outro
componentes de frases, todos os elementos do discurso conti-
nuam sendo sempre c exclusivamente um hic et nunc em vizi- lado, as locuções proferidas por uma pessoa qualquer numa deter-
nhan ça recíproca. Nesse universo , as realidades de fato são enfia - minada situação e a que Biichmann chamou locuções hist óricas
das como pé rolas de um colar e é isso o que constitui seu gesto quando, em nossa opini ão, seria prefer í vel falar de apotegmas
verbal. ou aforismos. Ambas as formas pertencem à disposição da
locu çã o. A locu çã o proverbial “ Est ú pido como uma pedra ” n ão
No começo deste cap í tulo, dissemos que uma parte de pretende dar uma definição; é uma situação determinada que a
nossa existência se passa no interior desse universo e que ele locu ção isola completamente e individualiza sob o modo de expe-
é mais corrente na vida cotidiana que no da Saga ou da Legenda riência. A situação é id êntica no caso das locuções de autor,
e, sobretudo, no universo verdadeiro da Adivinha . Comprecnde - que derivam de uma obra liter á ria e desta se desligaram , de
-se facilmente por que temos necessidade dele : nesse universo , algum modo. As obras de arte també m cont êm situações bem
podemos rechaçar todas as consequê ncias e conclusões exaustivas estabelecidas que pedem para ser apreendidas sob a espécie dc
que a experiê ncia nos impõe , sempre que nos instiga a pensar locu ção. É esse precisamente o caso, muitas vezes, no final de
por conceitos e pretende tornar-se conhecimento; e nele descan - um cap í tulo. Como tais experiê ncias ocorreram numa situação
samos sempre que as ligações internas de uma ordem moral do determinada , a locu ção apreende-as também no terreno empí rico
universo nos aborrecem ; é o nosso universo da sobriedade. a fim de, por sua vez , individualizar-se; justamente pelo fato de
É esse universo que cada prové rbio evoca na vida . J á ter-se convertido em locu ção é que a experiê ncia é individualizá-
assinalamos, de passagem , que n ão só é possí vel deduzir as vel. Dessarte, a locu çã o pode abandonar a obra literá ria , des-
Formas da disposiçã o mental delas como também podemos, com- prender-se dela , manter-se fora dela e ser independente , como,
preensível mente, remontar-lhes à sua disposição todas as vezes no prové rbio , as palavras da frase que abandonaram suas liga-
que elas se apresentam numa atualização. A forma Saga resulta ções sint á ticas. Se o fen ô meno for assim visto, chega-se à locu ção
da disposição pertinente ao universo do cl ã e dos v ínculos de proverbial cujo autor se tornou desconhecido.
sangue ; e, por nossa parte, quando lemos uma saga , é impos-
s í vel entender o universo de qualquer outra maneira . A forma
\ O emblema era , entre os Antigos, “ um pequeno objeto
geralmente de outro material — colocado sobre um objeto

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maior ”. O enxerto aposto a uma á rvore de fruto, a estaca que
fixa em sua haste o ferro do pilum romano, a palmilha intro-
duzida num sapato, são outros tantos “emblemas”, Cada um
desses pequenos objetos pode indicar que o todo em que ele
foi introduzido, no qual o “ lan çaram ” , é constitu ído pela diver-
sidade dos elementos de pormenor. Mas cada ladrilho de um
mosaico també m é um emblema ; neste caso , os elementos n ã o
são distintos, mas semelhantes e , por conseguinte , cada ladrilho
indica que o conjunto se compõe de unidades distintas. Final- O CASO
mente, os motives torêuticos no fundo de uma taça de beber
també m são emblemas , porquanto mostram que estamos na pre- I
sen ça de uma dualidade, a da obra de arte e a do utensílio de
uso comum , dualidade que difere da obra homogénea que a
taça pode vir a ser em virtude da perfeição de sua forma. Até agora , dediquei-me a tratar da Legenda , da Saga , do
Mas o emblema pode n ão apenas assinalar que um todo se Mito, da Adivinha e do Ditado, e a apresentar suas respectivas
compõe de uma variedade de elementos de pormenor como signi- definições. De todas estas formas conhecemos , pelo menos , o
ficar també m , por si mesmo , essa variedade , na medida em que nome e a exist ê ncia . Mesmo que nos empenh ássemos em n ão
é uma montagem distinta ; logo , é para n ós o objeto que, inves- associar tais nomes a conceitos bem circunscritos e em n ão defi-
tido de uma disposição mental , a consubstancia no universo dos nir com precisão o que é uma saga ou uma legenda , n ão se
objetos. duvidaria da sua existê ncia. Partindo desses nomes e dessa
Tal como o s í mbolo , o emblema passou a ter o sentido geral convicçã o, tentamos esclarecer idéias vagamente vislumbradas,
de Alegoria . Primeiro , n ão é para n ós uma imagem mas um separar o que n ão se coaduna , definir noções : enfim , apreender
objeto ; depois , n ão encarna o sentido de um todo de modo tal a natureza e o sentido de cada uma dessas formas.
que nele se manifeste o significado desse todo como totalidade , Restam duas outras formas que conhecemos també m de
mas destaca o fato de o sentido de um todo n ão se entender nome, o Conto e o Chiste. Entretanto, antes de passar a estu-
sen ão como combinação de unidades distintas. dá-las, devo apresentar uma pergunta : esses nomes , que são
nossos conhecidos, esgotarã o a lista de todas as formas ? Não
haverá outros termos que conhecemos e ligamos , ainda que de
modo impreciso, é certo, a noções gerais , quando eles queiram ,
de fato, designar formas que cabem em nossa lista ? Seria
desnecessá rio dizer que , quando falamos de listat pensamos num
sistema fechado, numa série finita ; dessarte, o conceito dc Forma
Simples permitiria apenas um n ú mero limitado de possibilidades ,
sendo tal a sua natureza que cada forma é o lugar onde o uni -
verso pode realizar-se de maneira determinada .
Talvez as Formas Simples constituam a base da teoria lite-
rária e abranjam a parcela dessa crí tica que se situa entre a
l íngua como tal e as produções em que uma disposição mental
encontra , como Forma artística , a sua realização ú nica e final ;
sendo assim , é preciso que a lista seja completa , que a totalidade
dela esgote o universo realizado por essas formas , assim como
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as categorias da gram á tica e da sintaxe constituem , em sua tota - Este caso remete-nos a dois par á grafos do GSdigo Penal
lidade , o universo que se realiza na linguagem . alem ã o:
Um estudo minucioso permite distinguir duas formas desse § 242 assim reza: “ Todo indiv íduo que tenha subtra ído a
gê nero , nas quais se descobre a disposiçã o mental e cujo itine- outrem um bem m ó vel , na inten ção de apropriar-sc ilegalmente
rá rio e a ção podem ser seguidos num terceiro n ível , o das formas do mesmo, será acusado de roubo c punido com prisão . .
art ísticas ; em resumo , existem duas formas que se enquadram ,
sem d ú vida , no nosso sistema fechado das Formas Simples ; como § 259 : “ Todo indiv íduo que tenha dissimulado , comprado,
n ão existem , na verdade , nomes correntes para design á-las , tere- recebido em penhor ou tomado para si de qualquer modo, ou
mos , de certa maneira , de invent á - los. ainda ajudado a revender a um terceiro , para da í tirar proveito,
bens que sabe ou deve supor , segundo as circunst â ncias , terem
Demonstrarei , nos cap í tulos seguintes, o que resulta dessas sido obtidos por um ato puní vel , será acusado de receptaçao e
formas, tal como das outras Formas Simples ; que elas se reali- punido com prisã o . . . ”
zam na vida e na linguagem sob o domí nio de uma disposiçã o
mental ; que elas se encontram , mutalis mulandis, no mesmo O que vemos aqui ? Comecemos por circunscrever nossas
estado indiferenciado da Legenda ou do ditado ; enfim , que observações à primeira das duas partes que constituem visivel-


devem ser admitidas em nossa lista , se quisermos que o sistema mente esta historieta .
seja completo. Vemos uma regra — um parágrafo legal transformar-se
em acontecimento , assumir a configuração de acontecimento , pelo
Também neste caso procurarei n ã o seguir uma linha pura -
mente teó rica , mas , de modo direto , mostrar onde e como essas fato de a linguagem ter-se apoderado dele. Examinemos o fato
Formas Simples — que n ão s ão geralmente reconhecidas como mais de perto e veremos que se trata de uma malfeitoria .
tais—
banal
são eficientes . Assim , começarei por um exemplo tão
quanto poss í vel .
O conceito de malfeitoria já desempenhou certo papel quan -
do estudamos a forma da legenda c antilegenda ; desejaria agora
mostrar, nas linhas que se seguem , como as Formas Simples se
situam em suas relações recí procas , sem se misturarem , num
mesmo fato da exist ê ncia e na mesma esfera vital .
O leitor lembrar-sc-á do que dissemos dessa disposição men -
TI tal para a imitaçã o de que resulta a Legenda : â malfeitoria pude-
mos chamar ent ã o um crime pun í vel , na medida em que o Mal
No N.° 3 do ano de 1928 do Berliner Ulustrierten Zeitung , se objetivava e se convertia cm crime aut ó nomo. J á assinalei
l ê-se um pequeno texto de divulgação que o seu autor
nome Balder —
de
intitulou “ Groteske und Tragik im Strafrecht ”
— també m , nessa ocasi ã o , este ad á gio fundamental do nosso Direito
Penal : nullum crimen sine lege , nulla poena sitte lege. Disse
ainda que a lei é , neste sentido , a norma do crime a punir , assim
( Farsa e Tragédia no Direito Penal ) . Nele, conta alguns casos
ligados à legisla çã o penal e per ele compilados. Vejamos logo como a norma da puniçã o.
o primeiro deles : Vemos agera que a malfeitoria , o delito , pode ter dois sen -
tidos muito diferentes , segundo se tome como objeto autónomo ,
Um gatuno rouba a minha carteira na multidão de uma metró-
pole. Encontra cem marcos cm notas pequenas e reparte-os com na antilegenda , ou como infraçã o a uma legisla çã o , como ato ile-
sua amiga , a quem conta o excelente golpe. Se forem apanhados , gal , no sentido jur í dico.
a amiga ser á punida na qualidade de receptadora de furto. Supo- Recordemos em primeiro lugar a figura de Don Juan . Nin-
nhamos agora que ele tivesse encontrado na carteira apenas uma
nota de cem marcos ; se a trocar e der cinquenta marcos à mulher ,
gu é m julga os seus atos em virtude de tudo o que se possa encon -
esta não ser á processada. A receptaçao , de fato , só é poss í vel se trar na Seção 13 da 2 .a Parte do nosso Código Penal , no tocante
disser respeito às coisas obtidas diretamente por um ato culposo aos crimes e delitos centra a moralidade; vemos em seus proce-
e n ão pelo valor monet á rio dessas notas. dimentos uma malfeitoria ativa , uma ação inteiramente pun í vel ,
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independente dos par ágrafos do código e fora do alcance desses capaz , alé m disso , de sair da sua generalidade, de manifestar-se:
parágrafos. Do mesmo modo, Ashavérus , o Judeu Errante , nao e
um indiv íduo que infrinja o mandamento da caridade ( “ Ama o
-
em suma , de realizar se de maneira determinada num gesto
verbal.
teu próximo ” ) , mas o lugar em que se consubstancia a falta n ão
É o que acontece na primeira parte do nosso episódio. A
condicionada por uma norma , o crime absoluto. Mesmo que se
tenha examinado a validade jur ídica do pacto assinado entre propriedade alheia foi atacada por gatunos ; os c ú mplices apossa-
Fausto e o Diabo, vê-se logo que tal exame dissolve a forma ram-se desses bens adquiridos por meio de um ato pun í vel ,
da antilegenda e que n ão é poss í vel julgar a validade desse pacto embora lhes conhecessem a proced ência ; receberam - nos , sone-
segundo as regras que regem os acordos entre duas partes con- garam - nos , esconderam - nos em seu armazé m ou porã o : são recep-
tratantes ; també m aqui a coesão apresenta , uma vez mais , e de tadores. A natureza pun ível do ato est á fixada numa norma
um modo que lhe é intrínseco, natureza de objeto. jur ídica e o artigo da lei é o peso com que os atos dessa espécie
s ão pesados. No caso presente , a norma est á na origem de
Isso foi por nós observado ainda mais claramente na pró- um novo ladrão e de um novo reccptador , que n ã o existem no
pria Legenda , onde n ão existe lei nem norma a que se possa ser mas na consciência; ladrão e reccptador que existem na lin -
remeter a virtude ativa ; existem apenas testemunhas e uma con - guagem , consubstanciam a norma e são o lugar de sua realiza çã o.
vicção , apenas h á milagres que confirmam , de maneira absoluta ,
Quatro pontos assumem aqui importâ ncia essencial :
a virtude objetivada.
Para voltar ao nosso caso, n ã o estamos aqui diante de uma 1 . Um homem subtrai a outrem um bem móvel com a
legenda ou anti legenda ; o delito ou o crime s ã o remetidos a uma intenção de apropriar-se ilegalmente dele ;
prescrição cuja validade e extensã o n ão podem nem devem ser 2 . Esse bem móvel é constitu ído aqui por uma espécie
postas em d ú vida numa esfera determinada . O crime ou delito monet á ria que , por sua natureza , pode ser dividida ;
significam infração de uma prescrição , contravenção de uma nor- 3 . O homem conta sua ação a um terceiro, que fica sa-
ma institu ída . Já não é a virtude ou a falta que se torna ato bendo assim terem sido os ditos objetos obtidos me-
e objeto ; tornam -se ato e objeto , neste caso , a lei e a norma a diante um ato pun í vel ;
que são remetidos os atos de toda e qualquer espécie e a partir 4 . Essa terceira pessoa apodera -se do objeto para dele
das quais se estabelece o julgamento que decidirá se tais atos tirar proveito pró prio.
são , por sua natureza , pass íveis ou n ã o de puni ção.
Já dissemos que a disposição mental da legenda e da anti- Se reunirmos os quatro dados acima e os exprimirmos à
legenda estabelecia uma diferen ça qualitativa entre o santo c o maneira da norma chamada artigo da lei , teremos: após ter
homem bom , de uma parte , e entre o anti-santo e o malfeitor subtra ído uma soma divisí vel de dinheiro com a inten ção de
contumaz , de outra parte. Na disposiçã o mental em que nos apoderar-sc ilegalmente dela , um indiv íduo comunica o fato a
encontramos agora , só existem diferen ças quantitativas condicio- uma terceira pessoa e, embora sabendo que a quantia foi obtida
nadas pelo fato de se afastarem ou de se acercarem mais ou por meio de um ato pun í vel , essa terceira pessoa toma para si
menos da norma. A mentalidade da Legenda mede qualidades; uma parte dela. Aqui temos um belo exemplo de jargão jur í-
esta mede ou , melhor ainda , pesa quantidades . dico, mas n ão de forma. Suponhamos que , em contrapartida ,
as palavras que designem e manifestem tais ações tomem seus
Pode-se recorrer aqui à imagem da balança . Pesar deriva respectivos lugares e que as unidades elementares e indivisí veis
da mesma raiz de ponderar. Num dos pratos da balan ça , a lei da norma passem a ser , pois , gestos verbais ; na primeira parte
pesa com todo o seu peso , pondera ; no outro prato , a causa do caso presente , os par ágrafos atualizam -se ent ão de modo tal
procura contrabalançar o peso da lei . que , mesmo se o caso parecer ú nico em seu gê nero , o peso da lei
Observe-se agora , entretanto , que n ão só os atos de toda e o poder de avaliaçã o da norma serão perfeitamente expressos
espécie, sejam bons ou maus , podem ser pesados de acordo com e interpretados nessa unicidade.
uma lei e avaliados segundo uma norma ; a pró pria norma é Teremos , pois :
14X 149
1. Um ladrão, que trata de notas, mas de uma nota. A partir desse instante , a
2. rouba uma carteira contendo muitas notas, amiga deixa de ser receptadora e, portanto, já n ão é pass ível de
3. conta o cometido à sua amiga , reparte com ela e
punição. Seus atos c sua atitude n ão mudaram ; a maneira ,
poré m , como est á redigido o parágrafo 259 é tal que os atos
4. torna -a uma receptadora. dela j á n ão podem ser avaliados da mesma maneira: o que ela
Neste conjunto, tudo é avaliado segundo a norma que lhe tomou para si , segundo a letra da lei , n ão é a mesma coisa que
diz respeito ; do conjunto, resultam a exist ê ncia , a extensã o e a foi roubada , embora ela saiba que o objeto foi adquirido me-
validade da prescri ção. diante um ato pun í vel .
Até aqui , limitamo- nos apenas à primeira parte do caso, O que se manifesta na segunda parte já n ão é o aspecto
deixando provisoriamente de lado a segunda, para que se pudesse positivo do § 259 , mas seu aspecto negativo; o que existia na
observar melhor como a norma se manifesta e realiza nele. primeira parte foi eliminado na segunda . Vistas em conjunto ,
Ocorre, poré m , que as duas partes sc conjugam c constituem um essas duas partes n ão mostram a lei e sim as lacunas da lei.
todo , no sentido da forma que estamos estudando. Se existisse O que se realiza nessa totalidade é o fato de um peso n ão indicar
apenas essa primeira parte, haveria motivos de perguntar por o peso certo, de um metro n ão dar a medida exata . Todavia ,
que razã o o autor incluiria o caso numa colet â nea intitulada acontece ainda outra coisa . Tanto quanto nos apercebemos da
Grcteske und Tragi.k im Strafrecht . Em si , tal parte pode ser insuficiê ncia do § 259 , també m nos damos conta da exist ê ncia
concebida como um exemplo ou modelo. de uma norma superior: a amiga que j á n ão é puní vel nos ter-
Vejamos , agora , duas coisas que nã o são Formas Simples, a mos do § 259 nem por isso é menos culpada. É culpada se a
fim de mostrar bem onde fica o limite que as separa . Para julgarmos de acordo com a norma superior , da qual a norma
explicar essas palavras — exemplo ou modelo
— a melhor defi-
nição ainda é a de Kant , j á citada por Grimm : “ Modelo e exem -
plo n ã o tê m o mesmo significado . Propor um modelo e fornecer
insuficiente decorre necessariamente ; c seria desejá vel que o
risco de punição també m fosse avaliado segundo sua culpabili -
dade. Nessa totalidade das duas partes , j á n ão é a amiga que
um exemplo para compreensã o de uma express ã o constituem se julga segundo uma norma ; é a norma que se avalia de acordo
dois conceitos inteiramente distintos. O modelo é um caso com uma outra norma . Na prá tica , a finalidade da ligação das
específico baseado numa regra prá tica , na medida em que esta duas partes consiste em mostrar que o parágrafo 259 , como me-
apresente a viabilidade ou inviabilidade de determinada açã o. dida baseada na norma do nosso sentimento moral e jurídico,
O exemplo, em contrapartida , é apenas o particular apresentado n ão vai muito longe , e que a lei é um instrumento inadequado
como conte ú do , segundo os conceitos gerais , e como representa - de medi ção — finalidade que est á na pró pria origem da Forma .
çã o puramente teórica do conceito.'’ Darei de bom grado a tal forma o neme que a jurisprud ê n -
Repito; considerados em si , o ladr ã o , a carteira cheia de cia e a moral , entre outras , atribuem às suas atualizações ; assim ,
dinheiro e a amiga podem ser concebidos , ou como um caso chamar- lhe-ei Caso. Estamos aqui na presen ça de um conjunto
particular da regra prá tica consignada nos pará grafos da lei rela - de partes que se contradizem , mostrando- nos o verdadeiro sen -
tivos ao roubo e à rcceptação, ou como a representaçã o teórica tido do Caso ; existe uma disposi ção mental que representa o
dos conceitos de roubo e recepta ção. Mas , se reunirmos a pri - universo como um objeto suscet ível de ser avaliado e julgado
meira c a segunda partes , apreendê- las-emos como um todo e segundo normas; nessa disposição mental , n ão se tem por limite
-
ver se-á — como quer o autor
falar de exemplo ou de modelo.
— que já n ão é mais possível medir ações segundo normas, porquanto se chega ao ponto de
julgar as normas entre si , numa ordem ascendente. Sempre
Nesta segunda parte , poucas coisas mudaram . O gatuno, que resulta uma Forma Simples dessa disposição , realiza -se um
o roubo , a carteira , o relato e a amiga foram conservados. A processo que consiste em aferir os metros entre si. Retomando
ú nica coisa que se transformou foi o bem m óvel de que o gatuno a imagem da balan ça , podemos dizer , enfim , que existe um
se apropriou ilegalmente ; tal objeto já n ão é divis í vel : n ã o se peso em cada prato e que os dois pesos se pesam um ao outro.

150 151
Dessa maneira , separamos nitidamente o Caso do exemplo Um elemento como o gatuno deve resultar , necessariamente,
e do modelo . Se houvesse apenas a primeira parte deste caso ,
ela teria sido mera ilustraçã o do caso particular de uma regra da pró pria forma ; só essa palavra e esse gesto verbal permitem
prá tica ou da representaçã o teórica de um conceito, Mas a a atualizaçã o dos conceitos contidos na norma : “ subtrair a
outrem um bem m óvel na intenção de apropriar-se ilegalmente
ilustra çã o n ão leva à forma ; a forma é realiza çã o , Por isso
é que todos os pormenores foram orientados , desde a primeira dele”. Um elemento como “ na multid ã o da metró pole ” n ã o
resulta , de maneira alguma , da forma ; ate certo ponto, manté m-
parte, de modo a que qualquer coisa pudesse realizar-se a partir
da totalidade formada pela conjuga ção das duas partes ; ao que -sc livre ou , melhor dizendo, fica entregue , cm determinado grau ,
à opçã o pessoal .
se realizou podemos chamar divergê ncia ou , como prefiro , dis-
persã o das normas . No prové rbio ou ditado n ã o existem elementos permutá veis.
Em “ Ver , ouvir , calar ” , por exemplo, nada pode ser acrescen-
Antes de citar outros casos, a fim de esclarecer o significado tado cu mudado sem que o prové rbio deixe de ser ele mesmo,
do Caso, reverto ao precedente para mostrar agora as rela ções deixe de ser prové rbio, de corresponder à disposiçã o mental que
existentes entre Forma Simples, Forma Simples atualizada e For- leva à Locução. Como disse Seiler , o prové rbio “ fecha -se em si
ma art ística , tanto no que se refere ao Caso quanto às outras mesmo” ou , como disse Grimm , “ ele encontra em si mesmo sua
Fcrmas Simples aqui tratadas. expressão mais alta ” . Esse cará ter fechado do prové rbio n ão
se apresenta no Caso ; para exprimir -se , o Caso pode receber
ajuda exterior .

11 r Formas Simples. O que acontece aqui —


Encontramo- nos , pois, numa das fronteiras do universo das
ou pode acontecer —
significa que existe no Caso , embora seja ele , per se , uma Forma
Simples , um caminho parcialmente tra çado que leva alé m da
O caso citado em Groteske uud Tragik im Strajrecbt con - Forma atualizada , at é a Forma artística . Com efeito , esses ele-
tém alguns elementos que ultrapassam os quatro dados ilustrati- mentos permut á veis , eventualmente deixados ao crit é rio de cada
vos da norma . Vimos que o roubo aconteceu “ na multid ão de um e permitindo a intervençã o pessoal , podem conduzir às for-
uma metró pole ” e que n ão se tratava de uma carteira qualquer , mas que chamamos de art ísticas . Entendemos por Formas art í s-
mas da “ minha carteira ” . Para aquilo que a forma est á encar- ticas as formas literá rias que sejam precisamente condicionadas
regada de transmitir-nos, esses aditamentos s ã o exteriores, aces- pelas opções e interven ções de um indiv íduo , formas que pres-
só rios , e n ão pertencem à essê ncia do caso. Mas podemos vis- supõem uma fixação definitiva na linguagem , que j á n ão são
lumbrar- lhe o propósito: tratava-se de interpretar o peso da lei o lugar onde algo se cristaliza e se cria na linguagem mas o
numa ocasi ã o ú nica e tais aditamentos, supé rfluos em si mesmos , lugar onde a coesã o interna se realiza ao m á ximo numa atividade
servem para aumentar o sentimento dessa unicidade, na medida art ística n ã o repet í vel .
cm que aumentam a força de impacto do caso. Em termos prá ticos, em virtude dos aditamentos que lhe
Poderíamos acrescentar ainda que os aditamentos sao per- aumentam a força de impacto, o nosso Caso j á se avizinha bas-
mut á veis. Em vez de se dizer : “ Um gatuno rouba- me a carteira tante de uma certa forma art ística a que chamamos Novela , a
na multid ão de uma metró pole , ” poder-se- ia dizer : “ Um gatuno qual mostra o acontecimento impressionante em sua unicidade ,
rouba a carteira de um viajante sentado no mesmo comparti- mas per se e sem querer fazer dele um Caso , justamente porque
mento, que dormia nessa ocasião” , sem que por isso o caso a Novela é uma Forma art ística. Ladrão e reccptadora , amiga e
mude. A força de impacto do caso é simplesmente aumentada roubo, os aditamentos m í nimos a todos estes termos , decorren-
de uma outra maneira . Que é que distingue, então, do ponto tes , como Forma Simples , da norma que realizam , incutem um
de vista literá rio , os aditamentos dos verdadeiros elementos do aspecto já t ão individual que a cena que se desenrola aqui deixa
Caso ? quase de consubstanciar a norma ou os par ágrafos da lei. Alguns
aditamentos m í nimos para ligar a primeira à segunda parte deste
/
153
Caso f á-lo- iam perder completamcnte suas características de For- de vida” ( Código Penal , Parte II , Seção 16 ) , tal como se expli-
ma Simples. cita no § 218:
Deixemos de lado tais aditamentos permut á veis e nao essen - A mulher grá vida que tenha feito abortar voluntariamente ou
ciais , para retornar aos elementos cuja necessidade é certa e matado antes do nascimento o fruto da concepção será punida com
essencial, visto que, reunidos em Forma Simples, correspondem trabalhos forçados até ao prazo máximo de cinco anos . No caso
dc circunst â ncias atenuantes , ela ser á punida com prisão durante seis
aos quatro dados fatuais dos par á grafos da lei . Verifica -se, pois, meses , no mí nimo . . . "
que eles n ão são de solidez absoluta , apesar da sua necessidade.
O ladrão deve continuar como tal , ladr ão ; a rcceptadora , poré m , Não estamos aqui , entretanto, na presença de um crime
poderia n ã o ser “ uma amiga ” , poderia ser um receptador profis- ou delito , mas de uma Lentativa de crime ou delito , conforme
sional , um camarada do ladrão ou um irmão seu ; poder-se-ia previsto pelo § 43 ( Código Penal , Parte I , Seção 2 ) :
tratar de cinquenta marcos e n ão de cem ; a carteira poderia ser
Se um indiv íduo decidir cometer um crime ou delito e recorrer
um porta- moedas contendo apenas alguns trocados e assim por a atos que contenham um começo de execução desse crime ou delito,
diante. Estes elementos n ão são permut á veis entre si no mesmo e se o crime ou delito não for perpetrado, esse indiv íduo será punido
sentido em que o são os aditamentos ; são a expressã o do essen - pela tentativa . . .
ciai e percebe-se bem que carteira, a nota de cem marcos e a
amiga esforçam -se por assinalar , o rnais claramente possí vel , esse Eis uma quest ão que é tema de acaloradas contrové rsias
essencial ; contudo, o gesto verbal n ão é t ão concludente, nao nos meios jur ídicos , como sublinha o autor do nosso artigo, pois
se apossa das coisas com tanta seguran ça quanto nas outras For- trata-se de saber se a tentativa criminosa é poss í vel no caso de
mas Simples. Os gestos verbais do nosso Caso tê m um aspecto “ meios inadequados aplicados a um objeto inadequado ”. Para
atenuado e impreciso, quando os comparamos com os da Legenda , a legislação processual trata-se , evidentemente , dc uma quest ão
que captam e lundem o acontecimento num turbilh ã o irresis- bastante espinhosa de destrinçar . Leva a conceitos muito dif íceis
t í vel ( roda armada de lâminas afiadas , deuses que se despeda- de delimitar , como os de “ inadequaçã o absoluta ” ( tentativa dc
çam ) , ou mesmo com os do Mito ( a montanha , gigante que assassinato sobre um cad á ver , tentativa de envenenamento com
vomita fogo ) . Falta examinar se , apesar de tudo, n ão existirã o á gua açucarada ) e “ inadequação relativa ” ( tentativa de assas-
casos em que o gesto verbal é mais rigoroso. sinato com uma tesoura de unhas , tentativa de envenenamento
com uma dose insuficiente ) . Poder-se-ia enfatizar o “ risco ”
incorrido, logo as probabilidades de êxito do ato cometido ; mas
a Suprema Corte Imperial emitiu em sess ão plen á ria um acó rd ão
que insiste sobre a intenção criminosa e declara pun í vel toda
IV “ tentativa que use meios inadequados contra um objeto inade-
quado” ( 24 de maio de 1880 ) . Convertida em norma jurispru-
Abordemos primeiro a disposição mental do Caso ; para que dente , essa concepção d á origem a um novo Caso: fabricou uma
se possa observar ainda melhor a diferente situaçã o dos crité rios , parturiente imaginária , tal como o par ágrafo 242 fabricava um
eis dois outros casos extra ídos de Groteske un 1' ragik im Stra- batedor de carteiras.
frecht .
Não se pode falar aqui de lacuna da lei , muito pelo con -
Coniinua sendo pun í vel , hoje em dia , a tentativa exercida sobre trá rio. No caso da amiga que recebera efetivamente o dinheiro
um ohjeto inadequado com meios inadequados : se u’a mulher ima-
ginar estar grá vida , quando não está , e tomar um chá perfeitamente
roubado e fora informada do delito , a prescriçã o foi redigida de
inócuo para eliminar o feto, que só existe em sua imaginação, será modo que ela n ã o podia ser indiciada como receptadora , segundo
declarada culpada de tentativa de aborto. a lei , e era impossí vel , portanto , puni - la , ainda que toda a gente
tivesse consci ê ncia da sua culpabilidade . Quanto ao acó rdão
Estamos, aqui , diante, em primeiro lugar, de um crime ou da Suprema Corte Imperial , a situação é a seguinte : ainda que
delito contra a vida e , mais precisamente, contra a “ promessa o ato da “ parturiente ” fosse n ã o só inteiramente isento de con -

154 155
sequ ê ncias, mas estivesse també m longe de ser sequer um ato
eficaz, na acepçã o pró pria do termo , deveria ser avaliado , entre -
tanto , de acordo com uma norma superior que é a inten ção e
punido nessa conformidade, lambem aqui a norma é aferida V
por uma outra superior.
Em ambos os casos, procede-se à pesagem do Caso. Na Depois de termos reduzido a Forma Simples do Caso e a
segunda parte do nosso primeiro exemplo , o Caso mostra que disposição mental donde ela promana, com base em exemplos
tomados aos nossos dias , vamos agora passar em revista um pano-
a validade e a extens ã o de uma prescriçã o vigente
nesse caso o § 259 — — que era
são insuficientes se as medirmos de acordo rama mais vasto , a fim de ver onde é possí vel ainda encontrá-la
ccm a norma de culpabilidade ; por outro lado, o segundo Caso e examiná-la em pormenor .
mostra uma prescrição vigente
— o fato de avaliar , como no
acórdão da Suprema Corte Imperial , o conceito de “ tentativa
Comecemos por um exemplo que nos é fornecido pela lite-
ratura indiana . Na segunda metade do século XI , houve um

segundo o conceito de “ intenção”
excedem os limites de toda a realidade eficaz.— cuja extensão e validade indiano , Somadeva , que reuniu grande número de relatos que
circulavam em Cachemira e em outras regiões ; deu- lhes um novo
Citarei um terceiro Caso extra ído do mesmo artigo : arranjo e à sua coletâ nea intitulou Kathãsaritsã gara [ O Oceano
(Jma atriz caba de visitar, com
Torrencial das Narrativas ]. Essa compilação pode ser comparada
seu sorriso mais encantador, uma às que nos foram legadas por outras épocas e outras regiões:
colega que deve decorar o mais depressa poss í vel um novo papel
para o dia seguinte. Tendo ficado só por alguns instantes , apro as Gesta Romanorum , as Mil e Urna Noites , o Decameron . No
veita habilmente a ocasi ão para esconder o manuscrito atrás de um- seio desse Oceano encontramos relatos conexos , cuja reuni ão
arm á rio. A colega busca-o , desesperada , n ão encontra o seu texto, constitui o que se chama usualmente uma narrativa-moldura, no-
n ã o pode estud á- lo, portanto ; tem um estrondoso fracasso e perde ção esta que , a rigor , poderia aplicar-se ao Oceano todo .
seu contrato. A sua rival n ão est á sujeita a qualquer lei penal.
Uma de tais narrativas-molduras assim inseridas no contexto
O autor faz um coment á rio explicativo a t í tulo de apre- geral é o VetalapancavirhSãtika, formado pelos “ vinte e cinco
sentação deste Caso: “ Em certas circunst â ncias , baixezas e vila- relatos de Vetãla ”:
nias inomin á veis ficam e ficarã o impunes , pelo fato de nao vio-
Havia um rei famoso chamado Trivikramasena que recebia dia-
larem qualquer lei ” . riamente a visita de um mendigo e este lhe oferecia , de cada vez ,
Este caso vai ainda um pouco mais longe que os prece- um fruto em preito de homenagem . Ao cabo dc dez anos, tendo
dentes . A primeira parte do primeiro Caso era o lugar onde um macaco apanhado um dos frutos para brincar , o rei descobriu
que esses frutos escondiam joias inestim á veis que haviam sido acumu-
se realizava uma norma ; o segundo Caso e a segunda parte do ladas na cava dos tesouros ; o guarda do tesouro tinha , de fato , o
primeiro eram o lugar onde se realizava a luta entre duas nor- hábito de lançar essas jóias pela janela do porão. Tendo o rei per-
mas no seio da lei ou , como se costuma dizer , a luta entre a guntado ao mendigo por que o honrava com homenagem tão dispen-
letra e o espí rito da lei . No caso da receptadora , a letra matava diosa , este confessou- lhe , em sigilo , que tinha necessidade da ajuda
dc um herói para cumprir uma bruxaria ( e o rei indiano é um he-
o esp í rito ; no da gravidez imagin á ria , o espí rito dava à letra um rói ) . Diante das oferendas e suplicas do mendigo , o rei vê-se obri-
efeito imprevisto. No ú ltimo caso , finalmente , vemos a insufi- gado a conceder-lhe ajuda — pois , no sentido indiano , o rei deve
ciência da lei em extensão e em validade: uma a çao que acarreta auxiliar aquele que o procura e honra — e o mendigo pede-lhe que
venha ao cemitério quando a lua esteja em quarto minguante. O
grave preju ízo a outrem n ão pode , embora cometida com preme-
rei apresenta-se no lugar combinado , em meio a fogueiras e fantas-
dita çã o e após madura reflex ã o, ser entendida como tal , segundo mas assustadores ; o mendigo pede-lhe ent ão que vá buscar o cadáver
as normas inscritas no Código Penal . Toda a gente sabe que de um homem enforcado numa figueira distante. O rei vai e corta
foi cometido um delito , no pró prio sentido do Código, e esse o baraço; porém , assim que o cadá ver cai por terra , põe-se a gritar
ato, entretanto , não é pun ível. e a gemer . Trivikramasena acredita primeiro estar na presença de
um homem vivo e começa a friccionar-lhe o corpo ; o cadáver solta
gargalhadas sonoras e o rei compreende que o corpo está habitado
por um espírito, um Vetala . Dirige-lhe corajosamente a palavra mas

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157
o cadá ver volta logo a ficar pendurado da árvore. O rei compreende como brâ mane. Tem -se que decidir, portanto, quem deva
então que deve calar-se, volta a subir na á rvore, baixa o
cadáver,
carrega-o nos ombros e parte em silêncio. De sú bito, o Vetãla diz-
amante e
casar com a donzela —
. “ E agora , rei , —
diz o Vctãla resolve este
debate." Que deve fazer o rei ? Pesa todos os atos , interpreta-os.
<

-lhe que vai contar uma história , para que o caminho se faça mais
curto. Conta a sua história e percebe se que ela contém uma
Aquele que devolveu a jovem à vida é seu pai; aquele que lhe levou
-
pergunta , que se trata , portanto, de um Caso: trata -se de estabelecer
os ossos até ao Ganges fez o que a tradição indiana manda que os
filhos façam aos pais e, portanto, é seu filho ; enfim , aquele que
quem é o responsá vel pela morte de dois homens . No final da permaneceu junto dela , que repousou a seu lado, que fielmente a
narrativa , o Vetãla intima o rei a dar sua opinião, ameaçandoo de serviu e manteve sua casa junto dela , esse é o seu esposo. O rei
maldição se não o fizer : que sua cabeça estoure se ele, conhecendo
embora a sentença, ficar calado. Essa maldição confirma uma obri
gação e ratifica um dever a que o rei est á sujeito como rei: o -
falou , o cadá ver retorna à árvore, tudo pode recomeçar
Caso.
— um novo

monarca indiano c, com efeito, um sá bio; deve arbitrar os lit ígios e,


portanto, resolver a questão proposta pelo Vctãla. O rei submete se
- Já assinalei que a compilação de Somadeva retomou e deu
a esse dever e rompe, assim , o silêncio imposto; c o cadá ver logo novo arranjo a histórias mais antigas . Assim , há na í ndia nume-
se vê pendurado de novo na figueira.
rosas versões deste ultimo caso , umas mais antigas , outras mais
Vinte e três vezes seguidas se repete a cena ; na vigésima quarta recentes . Reencontramo- lo na Europa e vemo-lo reaparecer na
vez , o Espírito expõe um caso que o rei n ã o sabe resolver ; incapaz
de decidir , nã o cumpre sua obrigação e mantém-se silencioso. O Itá lia desde os alvores da novela . As variantes deste Caso foram
Vetãla está tão convencido da coragem c sabedoria do rei que o reunidas por W. H. Farnham em sua obra The Contending Lo-
aconselha a matar o mendigo que queria sacrificá-lo para reinar sobre vers [ Os Amantes Rivais ] ( Publications of the Modem Lan-
os espíritos e até sobre os espíritos celestes , Assim acontece e a guage Association of America , XXXV , 1920 ) . Dele encontra-
narrativa-quadro termina da seguinte maneira : o rei deseja que as
histórias do Vetãla sejam célebres por toda a parte c o Vetã la con- mos ainda um reflexo atenuado no poema de Uhland , Es zogen
cede-lhe que os espíritos maus n ão tenham acesso aos lugares onde drei Burschen wohl uher den Rhein .
as histórias sejam lidas ou escutadas, mesmo que apenas em parte.
Não pretendemos acompanhar as transformações de tal nar-
rativa nas histórias da literatura e sim compreender-lhe o cará-
O desejo do rei foi parcialmente cumprido, visto que gran- ter como Caso.
de número desses Casos é conhecido no mundo inteiro. Para
dar um exemplo demonstrativo de um Caso, escolho a segunda Em primeiro lugar, esse Caso mostra-nos um aspecto que
história . não podia ser observado com tanta nitidez em nossa coletânea
de casos jurídicos , embora também estivesse presente nela ; refe-
Um brâ mane tem uma bela filha. Mal saíra ela da inf â ncia , rimo-nos ao fato de o Caso estar vinculado à pergunta. No Mito,
apresentam-se três pretendentes à sua mão, todos iguais em nasci-
mento e perfeição. Cada um deles preferia morrer a vê-la casada o universo dá-se a conhecer em seus fenômenos por pergunta e
com qualquer dos rivais. Quanto ao pai , teme ofender os outros resposta , e torna-se criação a partir da sua natureza Na Adi- ,

dois pretendentes se a der a um deles ; e a filha permanece solteira vinha , a pergunta e a resposta verificam e proclamam a pertença
por algum tempo. De s ú bito, a donzela cai doente c morre. É a uma iniciação. No Caso, a forma resulta de um padrão usado
incinerada e o primeiro pretendente constrói sobre suas cinzas uma
cabana onde passa a morar. O segundo reú ne-lhe os ossos e leva -os para avaliar ações , mas a questão contida em sua realização influi
ao Ganges , o rio sagrado. O terceiro parte em peregrinação pelo sobre essa norma . Pesa-se a existência , a validade e a extensã o
mundo todo. Certa tarde , chega à casa de um brâ mane, À mesa de diversas normas e essa pesagem contém uma pergunta : onde
está uma criança mal comportada que chora. A m ãe enfurece se e
joga a criança ao fogo, onde ela arde sob os olhares apavorados - estão o peso e a norma necessárias à avaliação?
do peregrino. O pai tranquiliza-o, vai buscar um livro dc magia, No Caso dos “ rivais no amor”, a pergunta é formulada
declama uma f órmula de encantamento e a criança regressa à mesa com todas as letras. Na narrativa atualizada , é o rei quem tem
como antes. O terceiro pretendente rouba o livro durante a noite , o dever de solucionar ; seu dever , porém , está inscrito de modo
volta ao seu país c ressuscita a donzela. Tendo passado pelo fogo,
ela está ainda mais bela e pura. Os três rivais voltam a disput á-la mais profundo e mais geral no Caso como tal . Desde o primeiro
mas, entre esta disputa e a anterior, quando todos os três eram caso jurídico , já se pressente esse dever de decisão e a história
iguais, ocorreu uma transformação, uma ação: cada um deles reali da amiga receptadora sem o ser levava-nos a ponderar os argu-
zou , segundo determinada norma , o que acreditava dever fazer como-
mentos dessa questão, os quais não foram formulados como tal :
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— Que fazer ? Deve ser punida ou n ão deve ser punida ?
Deve-se conservar o Código Penal como está ou mud á-lo? Deve
e ponderava a pergunta do Vetãla sem encontrar resposta . E
continuava mergulhado num silêncio profundo. ” Aqui , tudo se
prevalecer o espírito ou a letra da lei ? equilibra , e conhecem-se poucos exemplos, na história das lite-
A forma do Caso tem a particularidade de formular a per- raturas, de uma forma que se realize assim em todos os seus
gunta sem poder da*r-lhe resposta ; de nos impor a obrigação de pormenores.
decidir sem conter ela mesma a decisão: é o lugar onde se faz Um terceiro ponto nos é ainda mostrado pelas narrativas do
a pesagem , mas não se indica o resultado. O instrumento com Vetãla: elas indicam-nos onde procurar o Caso e em qye mo-
dois pratos é a ,bãanx latina , a bilancia, a balança, donde os mento nos encontramos no universo da balança .
alem ães derivaram o verbo balancieren, que significa “ caminhar Mais ainda que os outros povos, o indiano tem necessidade
em equilíbrio”, “ tentar manter o equilíbrio” , Existem no Caso de viver de acordo com normas. Em nenhuma parte a noção de
todos os atrativos e todos os perigos desse equilibrismo e, para “ guia ” , entendido como colet â nea de regras orientadoras , é t ão
empregar uma expressão alem ã , dir íamos que tal forma é o lugar viva quando na índia . Existem guias que ensinam a alcançar e
onde se realizam o balan ço e a oscilação da disposição mental a conjugar os três grandes objetivos da exist ê ncia , mas també m
que pesa e pondera. os há para coisas totalmente diferentes e todos esses Sutras,
O Caso tem , portanto, uma segunda característica peculiar , todos esses Sctstras, procedem a avaliações de acordo com certas
a saber, que deixa de ser ele mesmo quando uma decisão posi- normas . Um célebre drama indiano , o Mrcchakatika, mostra-nos
tiva anula o dever de decis ão. É esse o segundo ponto obser- um ladr ão que efetua um roubo em cena . Em nossa cultura ,
vá vel nas histórias do Vetãla e expresso na narrativa-moldura . poderíamos determinar os artigos do código que esse homem
Em ligação com o primeiro Caso ( o do batedor de carteiras infringe. Aqui , as coisas v ão bem mais longe; o ladr ão obedece
e da receptadora ) , verificamos que o Caso tem a propensão de às regras de um Manual do Perfeito Gatuno, que ele vai citando
ampliar-se para redundar numa forma artística que é a Novela. enquanto efetua seu trabalho de arrombamento ( o roubo era ,
Foi o que aconteceu com as narrativas de Vetãla . Mas , assim para ele, um trabalho ) ; respeita um regulamento, obedece a
fazendo, a forma art ística destruiu , por força de suas leis pró- prescrições. Lamentavelmente , já n ão dispomos desse manual
prias, a Forma Simples de que nasceu . Tomada essa decisão, o da ilegalidade e pode-se até duvidar de que tivesse alguma vez
Caso deixa de ser Caso. Todavia , a narrativa- moldura prossegue existido. Mas um universo em que a exist ência se desenrola
seu caminho e, mal um Caso é resolvido, já outro surge, como como realidade que pode ser julgada e avaliada segundo normas
ocorre usualmente quando se vive no universo das normas ; me- deve, forçosamente, a cada momento, prodiizir Casos , E , de
lhor dizendo, o desaparecimento de um Caso acarreta o apare- fato, uma grande parte dos Casos que ainda hoje circulam e
cimento de outro, o que o “ Oceano” exprime bem quando diz continuam sendo parcialmente reconhecíveis, apesar do seu cará -
que “o cadá ver encontra -se de novo pendurado na á rvore” e o ter fechado, s ã o de origem indiana .
rei é forçado a recomeçar. O universo do Caso foi aí apreen -
dido com argúcia surpreendente, visto que as ações do rei, na
narrativa- moldura , també m são determinadas a partir dessa for-
ma : que cie responda ou n ão ao Vet ã la constitui sempre um
Caso, pois responder é cumprir a obrigação de rei e n ão res- VI
ponder é respeitar a lei do sil ê ncio; enfim , ele desprende o cad á-
ver cada vez , porque se encarregou de uma tarefa ,que lhe foi No Ocidente, nossa vida é preenchida de modo muito dife-
solicitada pelo mendigo. A sequência , como um todo, só poderá rente; mas vamos nela encontrar a forma do Caso, sempre que
ter fim se um Caso n ão for resolvido, se continuar sendo um se trate de ponderar as coisas dessa maneira.
Caso que n ão se converteu em autê ntica Novela
— o que só
icontecerá na vigésima quarta narrativa , aquela em que o rei
n ão soube resolver o Caso. A f ó rmula é então : “ O rei pesava
Seria uma bela tarefa a de reconstituir a história do Caso
e as migrações e modificações de cada Caso. Renunciemos a
essa tarefa e limitemo-nos a assinalar que certos Casos tiveram

160 161
extraordiná ria difusão. Recordo a história da princesa e da ervi- lher que lhe é inferior nesses aspectos ? Ou : Qual o m áximo
lha , ou a dos glutões intimados a julgar a qualidade de um tonel prazer para um amante: Ver a mulher amada ou pensar nela ?
de vinho antiqu íssimo ; um deles encontra -lhe leve sabor a ferro, Depois, vemos a pergunta tomar-se gradativamente uma forma:
o outro, gosto , também muito leve , a couro; de fato, quando o Dois moços amam a mesma donzela ; ela toma a coroa de um
conteú do do tonel chegou ao fim , cncontrou -se no fundo uma e coloca -a na cabeça , entregando ao outro sua própria coroa .
chave min úscula , atada a uma fita de couro , e que deveria ter Qual dos dois jovens recebeu a maior prova da inclinação efetiva
ca ído no recipiente durante os trabalhos de lagar. Ambos os da donzela ? Pouco a pouco, a forma vai ganhando contornos
casos , com suas in ú meras variantes , mostram - nos um domínio mais precisos, mais definidos , e o Caso começa a consubstan -
em que a avaliaçã o é dif ícil c em que , no entanto, se refletem ciar-se: Um jovem ama uma jovem . Uma alcoviteira velha e
certas normas: o dom ínio das sensa ções , do sentimento e do feia ajuda-o a entrevistar-se com a eleita de seu coração, mas
gosto. os dois amantes são surpreendidos pelos irm ãos da jovem . Estes
As normas da Lógica també m geram o Caso, desde a Anti- poupam a vida ao ofensor , com a condição de que ele viva um
guidade. É o Caso que realiza o sofisma trágico chamado do ano com a jovem e um ano com a alcoviteira velha e feia . A
crocodilo. Tendo um crocodilo arrebatado uma criança , pro- pergunta que todos esperaríamos ent ã o seria : Aceitará o moço
mete devolvê-la à m ã e se esta lhe disser verdadeiramente o que tais condições ? Mas a fonte que estou citando aqui formula
ele pretende fazer. A m ãe diz : “ Tu n ão me entregará s o meu outra pergunta bem distinta: Com quem deve o jovem passar
filho.” E o crocodilo responde: “ N ão terás a criança em qual- o primeiro ano ? Ou ainda : Dois moços amam a mesma donzela ;
quar dos casos, ou por causa das tuas palavras, se falaste ver- circunst â ncias infelizes fazem com que ela seja condenada à fo-
dade, ou por causa do nosso acordo , se mentiste.” E a mulher gueira , a menos que um cavaleiro prove pelas armas a inocência
replica : “ Devo ter de volta o meu filho em ambos os casos: ou da jovem ; o primeiro moço est á disposto a bater-se por ela ;
por causa do nosso acordo, se falei verdade , ou por causa das o segundo, que só tardiamente teve conhecimento do duelo ,
minhas palavras , se me enganei ”. As variantes são aqui evi- apresenta -se para o combate e deixa -se vencer. Qual dos dois
dentes. deu maior prova de amor ?
Existem outros dom í nios onde vemos igualmente os Casos Uma parte destes Casos de Amor é tão complicada e arti-
acumularem-se e proliferar como cogumelos em determinadas ficial que poderíamos suspeitar a presença de Formas relativas ;
épocas da cultura ocidental . mas o fato é que dificilmente se pode abarcar todas as conse-
qu ê ncias e normas resultantes de uma vida modelada pelo amor
Penso na é poca da grande cultura palaciana , quando a vida cortesão. Seja como for, os ú ltimos casos, sobretudo o citado
era condicionada por certa espécie de amor e em que quase em ú ltimo lugar , assim como os nossos primeiros casos jurí-
toda açã o estava relacionada com esse amor cortesã o, dele extra- dicos, mostram- nos que o Caso tende para a Novela , mas também
indo seu peso e força . Quando se faz uma avaliação do amor que a Novela anula o Caso , na medida em que deve encontrar
cortesão, resultam normas amorosas , suas regras , seu código, uma solução. Com efeito, a Forma art ística a que chamamos ,
os artigos desse código e encontramos a Corte de Amor, que em particular , a “ novela toscana ”, é oriunda em grande parte
julga os delitos cometidos contra o amor e examina c soluciona , da Corte de Amor ou do Caso de Amor. Mas n ão tem lugar
se possível, as questões de amor . A tensã o amorosa ressoa aqui.
nos poemas e canções de trovadores e poetas palacianos ; as
maneiras de amar s ão ilustradas pelo exemplo e pelo modelo, e Falamos de “ Corte de Amor ” , de “delito contra o amor ” ,
a avaliação desse amor que pesa e pondera realiza-se no Caso. de “ julgamento”. São outras tantas expressões que se aplicam
à avaliação do Amor ; designam també m , por outra parte, noções
Os Casos de Amor chegaram assim até nós em diversas espé- resultantes de uma avaliação jur ídica. Vemos um mesmo modo
cies de tradição. Temo- los em seus primórdios , quando eram de expressão reunir diversos dom í nios em que se instala a dispo-
ainda apenas questões teóricas como: Deve um homem amar a sição mental que pesa e mede a norma e a métrica . N ão se
mulher que lhe é superior pela riqueza e pelo estado , ou a mu - trata aqui , uma vez mais , de transposições ou de expressões

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figuradas ; estamos em presença da l í ngua peculiar ao universo Ela passa por ser o instrumento de medição por excelê ncia da
da avaliaçã o. Essa língua especial n ão é a mesma da Adivinha , moral cat ólica e, quando se fala de casu ística , entendemo-la como
mas n ã o podemos deixar de reconhecer nela uma ambiguidade sinónimo de restrição intelectual e de jesuitismo , no pio sentido
an á loga . Se examinarmos mais de perto as expressões da lingua- do termo .
gem trovadoresca do Amor , perceberemos que ela pode incluir
ainda um outro dom í nio, al ém dos do amor ou da justiça ; refe Não posso, naturalmente, tratar aqui cm pormenor dessa
casu ística ; gostaria apenas de mostrar rapidamente de que modo
rimo- nos ao dom í nio da religi ão, melhor dito, ao da Teologia .
Todas essas palavras — —
clemência , serviço , recompensa , que
encontramos a cada passo, també m pertencem , com efeito, à
a forma do Caso nela se realiza — tal como, anteriormente , no
amor cortesão. J á n ão se trata da moral com normas absolutas ,
linguagem teológica. Poder íamos aproximar a Corte de Justi ça como nos Mandamentos, nem de uma moral que consubstanciaria
da Corte de Amor : nas duas , o rei ou a rainha tê m o dever de o livre impulso moral da f é ; trata-se, antes , de uma moral que
sentenciar , na qualidade de juiz supremo . E também pode- pesa as diferentes normas, de uma moral na escala móvel da ava -
r íamos aproximar o serviço amoroso do serviço divino. Reca-
pitulando: a linguagem casu ística tem como particularidade englo-
liação, de uma moral equilibrista — termo que utilizamos em
sentido perfeitamente sé rio. Parece- me ser clara a oposição entre
bar todos os dom í nios em que h á uma avaliação de acordo com essa moral e uma escol ástica que procurava , tanto quanto pos-
normas estabelecidas, e um dos atrativos da linguagem do amor sível , apreender as virtudes c os vícios como objetos; e també m
é que se vislumbra nela um eco, um reflexo, da linguagem da me parece evidente que tal avaliação tinha finalidades essencial-
justiça e da Teologia. mente humanas , n ão se limitava a proteger o penitente das con -
Comparada com a m úsica , a lí ngua comum é a que nos d á cepções pessoais e dos humores do seu confessor ; protegia-o tam-
os sons e a l í ngua especial a que nos fornece os acordes: eis a í bé m do desespero em face do pecado absoluto , que é o pecado
toda a harmonia das cantigas de amor dos menestréis . mortal , e facilitava-lhe , portanto, o caminho do céu .
Devemos insistir numa dessas expressões, num dos gestos A casu ística , entretanto, era compelida , por natureza , a tra-
verbais do Caso : a recompensa . Esta pode ser um objeto e , var numerosas querelas. Um panorama bastante preciso dessas
como tal , estar carregada do poder do Caso, imbuída do signi- contrové rsias é encontrado no livro de I . von Dollinger , Ges-
ficado total do Caso. Nesse sentido, a recompensa representa chichte der Moralstreitigkeiten in der rõmisch -katholischen Kirche
tanto o equilíbrio e a oscilação como a decisão inscritos no Caso. THistória das Querelas Morais na Igreja Católico- Romana ] ( Nõr-
A recompensa , que é o salário do amor e da f é, est á para o Caso, dlingen , 1889 ) . Entre os numerosos conceitos que o autor utili-
enquanto objeto, assim como a rel íquia est á para a Lenda e o za para seu trabalho, citarei um que considero de suma impor-
sí mbolo para o Mito. tâ ncia para o nosso assunto: o de probabilismo.
Eis-nos agora num dom í nio em que o Caso desempenhou
importante papel na vida e na literatura ocidentais; refiro-me ao
Diz ele:
dom ínio da Teologia e, em particular , ao da Teologia moral ou Em numerosos casos, n ão se pode esperar a certeza absoluta
doutrina dos deveres. no que se refere ao cará ter de obrigação, permissão ou proibição.
Estamos em presença de duas opiniões, uma e outra fundamentadas
É nesse dom ínio que os Casos se apresentam em grande cm argumentos , nenhuma delas certa, cada uma delas probabilis .
abundâ ncia e as obras que os re ú nem encheriam uma biblioteca . Neste caso, ou se apóiam ambas em n ú mero igual de argumentos e
Em sua acepção geral e corrente , a palavra casuí stica significa , são aeque probabiles [ igualmente prov á veis ] ou ent ão uma tem mais
argumentos a seu favor e é probabilior [ mais prová vel ], sendo a
precisamente , a atividade da Teologia moral , tal como floresceu outra minus probabilis ; se os argumentos de uma opinião têm muito
na Igreja católica , sobretudo a partir dos fins do século XVI. mais peso que os da outra , a primeira é probabilissima e a outra
Essa casu ística foi freq úentemente desacreditada e , depois de Pas- tenuiter probabilis [ tenuemente prov á vel ] , A probabilidade pode
cal , todos os que pretenderam atacar a Igreja , de dentro ou de basear-se, enfim , em argumentos internos , probabilitas intrí nseca , ou
argumentos externos, isto c , os que se baseiam na autoridade de
fora dela , utilizaram ami úde a casuística como alvo predileto . pessoas tidas por competentes , probabilitas extrí nseca ( I, 3 ) .

164 165
E assim sucessivamente ; repetimos n ão ser nossa intençã o
acompanhar aqui as consequê ncias prá ticas dessa maneira de ver ;
a citação basta para mostrar- nos , uma vez mais , a disposição
mental de que partimos num dom ínio particular , em toda a sua
extens ã o e nitidez. Quase nada existe a acrescentar. Semelhante
disposição mental deve , na vida e na literatura , gerar necessaria -
mente o Caso como tal e o universo moral que temos assim diante
dos olhos só pode realizar-se nessa forma. O MEMOR Á VEL
Os Casos que resultavam das controv é rsias morais conser-
varam-se num c í rculo exíguo , tanto mais que n ão houve adversá- I
rio em condições de usar e abusar deles . Creio , entretanto , que k
exerceram grande influ ê ncia sobre a literatura em geral . Talvez
fosse mais apropriado dizer que a mentalidade que se manifestou Existe uma outra forma que, em minha opiniã o, deve ser
no seio da Igreja cató lica c no dom í nio restrito da teologia moral indicada na sé rie de nossas Formas Simples. Gostaria de dedu -
influi igualmcnte na literatura , em seu todo. Com efeito, a zir també m essa forma diretamente das observações cotidianas.
literatura dos séculos XVIII e XIX pesa e mede os motivos de
uma ação de acordo com normas internas e externas , às quais Tenho sobre minha escrivaninha um velho jornal que serviu
se deu geralmentc o nome de psicologia ; esse crité rio fluido no de envoltório para proteger um livro e , ao alisar as dobras , li o
julgamento dos personagens de uma obra art ística como tal pare- seguinte :
ce-me estar muito próximo do crit é rio que vemos aplicado na “ O Suicídio do Conselheiro Comercial S
casu ística . Mas tais considerações tampouco t êm lugar numa O motivo para o suicídio do Conselheiro Comercial Heinrich S., que
ontem à noite pôs fim à vida em seu apartamento da Kaiserallee ,
obra dedicada à Morfologia das Formas Simples. 203 , foi , provavelmente , uma série de dificuldades financeiras. S., de
origem turquestanesa , é o antigo propriet á rio dc uma f ábrica de
vodka por ele j á trespassada. Com 62 anos de idade, o desesperado
vinha manifestando há algum tempo intenção de pôr fim a seus dias
e esperou a noite passada , quando a esposa estava num concerto,
para executar seu plano. A detonação do revólver foi ouvida pela
Sra . Asta Nielsen , que reside no apartamento vizinho. A Sra. Niel-
sen foi a primeira a chamar o médico e a polícia .

Esta comunicação tem , obviamente, as seguintes finalidades :


( l . Fornecer uma breve biografia do defunto conselheiro S.; , 2 .
Esclarecer por que motivo um homem idoso e de reconhecida res-
peitabilidade optou pelo suicídio; 3 . Prestar informações sobre
a natureza do suicídio.
Para cumprir a primeira dessas finalidades, somos informa-
dos do lugar onde nasceu Heirinch S., da sua idade , de como
adquirira sua fortuna e do local onde residia. Ao segundo ponto
estão ligados : “ uma série de dificuldades financeiras ” e “ a inten -
ção de pôr fim aos seus dias ”. Quanto ao ponto 3, são prestadas
1 as informações seguintes: utilização de uma arma de fogo , esco-
lha da noite em que sua esposa estava ausente, pol ícia chamada
por uma vizinha que fora alertada pela detonação do revólver .

16 Ó 167
Redigidas em forma de relatório, essas informações dariam representado o suicídio num filme ; quantas vezes n ão a vimos
mais ou menos isto : em primeiro plano tapando os ouvidos , arrancando os cabelos e
“Com 62 anos de idade , o Sr . Heinrich S. , conselheiro comer- arregalando os olhos ao escutar o estampido de um revólver ?
cial , suicidou -se ontem em seu apartamento da Kaiserallec , n .° Eis que, nessa noite , tudo é realidade, logo do outro lado da
203. Nascido no Turquest ão, foi outrora proprietá rio de uma parede! É evidente que n ão perguntamos se a Sra . Nielsen ficou
f á brica de vodka , trespassada h á algum tempo. Estava passando feliz por ver o seu nome estampado, uma vez mais , nos jornais.
A pergunta é simplesmente esta: que é que sucede nessa infor-

——
ultimamente por dificuldades financeiras c expressara por diver-
sas vezes o intuito de pôr fim à vida . Escolheu para executar mação ? E patenteia -se que, de novo , dois fatos a detonação
seu plano uma noite em que a esposa estava ausente. Alertada de um revólver e uma famosa atriz do cinema foram coorde-
pela detona ção do revólver , uma vizinha chamou a pol ícia c o nados num acontecimento, malgrado a ausência de qualquer v í n-
m édico” . culo causal ou explicativo entre eles, para valorizar por contraste
um fato de ordem superior e para dar- lhe uma configura ção tal
Ora , a nossa informa ção tem aspecto bem diferente : con- que se nos apresente como se fosse um fato autónomo.
té m mais pormenores , inclui outros detalhes. N ã o se trata , em
absoluto , de pormenores de natureza literá ria nem foram esco- No relat ório que redigimos a partir das informa ções que
lhidos arbitrariamente pelo redator da not ícia, como em nosso importava fornecer , o acontecimento é comunicado como tal , isto
primeiro Caso judiciá rio. Esses pormenores tampouco são idéias ; é, nada contém que n ão esteja diretamente ligado ao Conselheiro
foram captados do desenrolar concreto do acontecimento, são S. e ao seu suicídio. Os fatos históricos foram dispostos numa
histó ricos. ordem tal que os vemos em suas relações recíprocas , mas sem
que dessa reciprocidade resulte o sentido do acontecimento de
Examinemo- los mais de perto. A Sra . S. n ão estava apenas ordem superior.
ausente, ela estava num concerto. Tal fato n ão se liga direta-
mente à s informaçõ es que o relato se incumbiu de nos transmitir . O nosso recorte de jornal , pelo contrá rio, cita fatos que ,
Por motivos sentimentais e dc bom gosto, f áceis de compreender , embora t ã o hist óricos quanto os do relat ório, n ão tê m qualquer
o Sr. S. desejou escolher um momento em que a esposa estivesse liga ção direta com o Conselheiro S. e o seu suicídio ; est ão orde-
ausente. Mas a Sra . S. poderia muito bem ter saído para fazer nados entre si e no conjunto de maneira a que o acontecimento
uma visita de pêsames a parentes seus ou ir a casa de uma amiga de ordem superior ganhe validade pró pria e possa destacar-se o
que a convidara. Mas o fato histórico do concerto é explicita- sentido global da not ícia.
mente assinalado. Por qu ê? Porque no concerto h á um aspecto O leitor dirá : trata-se de um suid ídio. De acordo. Mas o
de diversã o, de prazer art ístico, de alegria ; ora , tais sentimentos significado do suicídio n ão ressalta do fato de um indiv íduo ter
de alegria e fruição art ística est ã o em violento contraste com a nascido no Turquest ão, ter possu ído uma f á brica de vodka ou
amargura de um homem que ficou s ó em casa , diante de uma residir na Kaiserallee, 203 ; pelo contr á rio, destaca -se muito bem
decisão dif ícil ; é que a mulher no concerto e o homem solit á rio de certas circunst â ncias: o homem solit á rio enquanto sua esposa
sublinham , de certa maneira , o ponto capital : o suicí dio. est á num concerto, ou a atriz que vive ao lado , que representou

Esses dois fatos histó ricos mulher no concerto, homem essa cena tantas vezes mas que a mera detonação de um revólver
em casa — n ão tê m qualquer v í nculo causal nem explicativo entre
si ; foram coordenados para valorizar o fato do suic ídio, incutir-lhe
envolve num acontecimento real . Finalmente , a Forma procura
transmitir ainda um segundo sentido: o suicí dio de um conse-
autonomia e subordinar o resto ao desenrolar dos acontecimentos.
Continuemos as nossas observações. Se o vizinho fosse um
lheiro comercial — um homem outrora rico e que n ão é capaz de
sair de dificuldades financeiras . Assim est ão os tempos! Nesse
celibatá rio qualquer ou a Sra . X., Y . ou Z ., é muito prová vel acontecimento ú nico , destacado do resto, é toda a é poca que se
que tivesse igualmente chamado a pol ícia e o m édico. Mas foi retrata .
expressamente assinalado que esssa vizinha era Asta Nielsen. Recapitulemos: O artigo esforça-se por extrair de um acon-
Quantas vezes a nossa excelente atriz n ão terá visto ou mesmo tecimento geral a unicidade de um elemento que significa , em

168 169
seu todo , o sentido desse acontecimento ; dentro desse todo , os Estados Gerais na Fran ça e regressa aos Pa íses- Baixos com not í-
pormenores est ão dispostos numa ordem tal que, tomados isola - cias que ele mesmo leva ao pr í ncipe . Quando se encontra com
damente, em suas relações m ú tuas e em sua totalidade, subli - Guilherme da primeira vez, não porta armas consigo.
nham o sentido do evento por explica ção, por discussã o , por Para a sequ ê ncia ulterior dos acontecimentos, citarei a obra
comparação e por confronto. de P. J. Blok , Gesbicbí e der Niederlande [ História dos Pa íses-
Baixos ] ( Gotha 1907 , Vol . III , pág. 356 ) :
Em 8 de julho. [ Gérard ] apresenta-se na corte do pr íncipe , em
Delft , para um reconhecimento das saídas e verificação das oportu
nidades de fuga . Surpreendem - no e ele justifica sua presen ça expli-
-
II cando que não se atrevera a entrar com suas roupas surradas na
igreja fronteira aos aposentos do pr íncipe. Ao ter conhecimento do
Esse recorte de jornal ser á agora seguido de um outro , caso, o pr íncipe manda entregar-lhe dinheiro para que possa equi -
par-se mais condignamente. Com esse dinheiro , compra uma pistola
extra ído da História . Escolhi um acontecimento da hist ória holan- c balas a um dos soldados da própria guarda pessoal do pr íncipe ;
desa: o assassinato do Pr í ncipe de Orange , Guilherme I o Taci-
turno.
-
em 10 de julho, uma ter ça -feira , dirige-se à corte e solicita um passa
porte ao pr í ncipe , que entrava com a fam í lia na sala de jantar . A
princesa inquieta-se, ao ver o aspecto pouco atraente desse desco-
Bastará recordar sucintamente o curso dos acontecimentos. nhecido, mas seu esposo presta pouca atenção ao caso e ordena
Guilherme de Orange nasceu em 1533 no castelo de Dillenburgo , que lhe deem o que ele pede. Após a refeição, o príncipe aban -
tendo sido criado na corte de Carlos V. Era um dos favoritos dona a sala de jantar, onde tivera uma animada conversa com seu
do imperador , que , ao abdicar , recomendara-o a seu filho Fili- anfitrião , o burgomestre Ulenburgh de Leeuwarden , a respeito dos
negócios da Fr ísia ; envergando seus trajos de gala , dirige-se lenta e
pe II . Foi nomeado governador da Holanda , Zelâ ndia e Utrecht , meditativamente para a escadaria do andar superior , passando por
e membro do conselho da cidade de Bruxelas , Mas as diver- um pequeno vest í bulo e no meio do seu séquito. De sú bito, o
gências foram surgindo pouco a pouco e a secessão dos Pa í scs- assassino surge de um recanto escuro que leva a um corredor estreito
-Baixos é preparada por volta de 1560 ; a partir de 1568 , o e descarrega a pistola no pr í ncipe, que é varado por duas balas
movimento é considerado rebeli ão aberta. Conhece-se o papel cm pleno peito, na região do estômago e dos pulm ões. Os feri
mentos são mortais . O pr í ncipe grita: " Meu Deus , tende piedade
-
destacado que Guilherme nela desempenhou como homem de de minha alma! Meu Deus, tende piedade deste povo infeliz! ” ;
guerra e como pol í tico. No fim da década seguinte, o fulcro da perguntam-lhe se entrega sua alma nas mãos de Jesus Cristo, ele
rebeliã o deslocara -se mais para o norte e, como a intervenção de responde que sim cm voz débil e entrega a alma ao Criador instan
tes depois . ..
-
Alexandre Farnese favorecera no sul a recuperaçã o do dom í nio
espanhol , as prov í ncias setentrionais uniram-se a Utrecht na defe-
sa da casa de Orange, criando assim as bases de uma rep ú blica No trecho acima , relatam -se apenas tatos históricos ; as infor-
federada dos Pa íses-Baixos. Em 1580 , Filipe II decreta o bani- mações provieram de testemunhas oculares , do próprio assassino
mento de Guilherme do impé rio, dcclara-o fora de lei e promete e das atas do julgamento . Mas novamente sc vê que n ão se trata
de um simples relatório , de um mero protocolo burocr á tico .
a impunidade e a elevaçã o à nobreza — no caso de ainda n ão
ser nobre — daquele que o assassinar, alé m da recompensa de
25 000 ducados de ouro. Em 1582 d á-se o primeiro atentado
Gérard , embora tivesse planejado seu cometimento de longa
data , n ã o pôde seguir à risca um plano em que todos os porme-
que fracassa ; gravemente ferido no rosto , o pr í ncipe recupera -se nores estivessem previstos ; ele dependia de v á rias circunst â ncias.
dos ferimentos. O assassino , um tal Gé rard , preparara meticulo- Quando o surpreenderam , em 8 de julho , a fazer um reconheci-
samente seu plano durante v á rios anos e recebera incitamentos mento das saídas , foi o temor , provavelmente , que lhe ditou a
de diversos lados. Em maio de 1584 , consegue aproximar-se do mentira . Por outro lado , se n ão tivesse recebido o dinheiro do
pregador calvinista da corte do pr í ncipe , um certo Villiers , fazen- pr íncipe , certamente obteria a arma de alguma outra maneira ,
do-se passar por uma v í tima das perseguições católicas ; é enviado visto que , como ele pró prio declarou no processo , tinha a firme
com uma pequena missão ao legado plenipotenci á rio junto dos intenção de matar o pr íncipe “ quer quando fosse ouvir um ser-

170 171
m ão na igreja vizinha , quer quando descesse para as suas refeições, Semelhantes detalhes histó ricos são despidos de import â ncia
quer quando voltasse delas ”. Faz-sc necess á rio , entretanto, men - intrínseca . Podemos ir até mais longe: são de tal maneira aces-
cionar essa mentira , pois serviu -lhe , efetivamente, para obter a só rios que poderiam ser muito diferentes e até contrá rios. Imagi-
arma do crime. Mentira c atentado est ão ligados per uma rela çã o nemos a cena: vestindo um gibão colorido, o príncipe abandonara
de causa e efeito mas, sobretudo, a evocação da mentira põe em a sala de jantar num passo vivo e desenvolto , depois de ter taga-
destaque, de uma outra maneira , o fato do homicídio. A bon - relado alegremente com sua jovem esposa , Louise de Coligny,
dade do pr í ncipe contrasta com a malevolê ncia desse assassino quando foi , de s ú bito, assassinado à traição. A imagem é outra ,
que não hesita em aceitar o dinheiro de sua v í tima e até compra a mas pensamo-la de maneira idêntica. Vemos novamente o prín-
arma com tal dinheiro. cipe mas sente-se , desta vez, o contraste entre o movimento da
Alé m desses pormenores, encontramos outros que tampouco vida e a morte repentina , entre a alegria e o assassinato. Estes
t ê m ligação com o assassinato propriamente dito: a princesa fica pormenores estariam , sem d ú vida , em discordâ ncia com o tempe-
inquieta com o aspecto sinistro do indiv íduo ; o pr í ncipe já vira ramento e o car á ter de um homem que recebera o cognome de
Gé rard diversas vezes, assim como o viram vá rios membros de Taciturno ; pertencem , justamente , a uma Forma relativa . Tal
seu séquito e, primeiro que todos, seu amigo Villiers, pregador da como nas outras formas, é f ácil vermos todos os pormenores
corte. Seriam eles menos sens í veis que a princesa à fisionomia ordenados e coordenados , que se concatenam e interpenetram da
de celerados ? Pensariam que n ã o se deve julgar as pessoas pelas mesma maneira , a fim de valorizar o elemento de ordem superior.

— ali ás devidamente atestado



feições ? Nã o se sabe, mas uma coisa é certa: esse fato histórico
foi inserido no relato porque
també m ajuda a destacar, de determinado modo, o evento capital
do assassinato. Ele constitui o que , numa Forma art ística , chama -
r íamos de elemento de retardamento, de suspense : por um breve III
instante, pergunta -se se o julgamento — talvez temerá rio
perspicaz princesa n ão irá afastar o perigo que lhe ameaça o — da
Façamos uma recapitulação dos fatos, em seu conjunto , O
esposo.
evento pode ser resumido da seguinte maneira : Eis um complexo
Finalmente: O príncipe abandona a sala de jantar, onde teve territorial cuja unidade é assegurada , desde fins do século XV,
uma animada conversa com seu anfitri ão, o burgomestre Ulen - pelos Habsburgos e que atinge o m áximo de extensão e poderio
burgh de Leeuwarden , a respeito dos assuntos frísios, e caminha no reinado de Carlos V ; no final do século XVI , uma parcela
solene e meditativo, em trajos de gala , no meio do seu séquito. desliga-se desse complexo por não se sentir mais vinculada a ele
Este ponto també m é relatado por testemunhas oculares, os pela religião, devido ao despertar do sentimento nacional etc.
pró prios personagens que rodeavam o pr í ncipe nesse instante trá- Uma personalidade , Guilherme de Orange , assume papel impor-
gico ; aqui , todavia, sa ímos completamente das ligações causais ou tante no acontecimento, a ponto de se lhe atribuir a responsabi-
explicativas . Gé rard teria renunciado ao seu plano se o príncipe lidade desse acesso à independê ncia , considerada um resultado de
estivesse vestido de outra maneira ? Se tivesse abandonado a sala suas açoes: descobrimo-lo no acontecimento e o acontecimento
de jantar de bom humor e n ão meditativo ? Se tivesse falado nele. Então, tal personagem morre assassinada por instigação de
de outros assuntos com o burgomestre de Fr ísia ? Contudo, esses seus inimigos. É evidente que a história continua e a nossa
fatos são mencionados e desempenham seu papel no conjunto, tarefa consiste , de modo não menos evidente , em continuar obser-
pois també m explicam e comentam o acontecimento, sublinhando, vando os acontecimentos posteriores e os Países-Baixos, que se
por comparação c confronte, uma realidade de ordem superior. desligaram do complexo austríaco-espanhol . Todavia , a partir
Vemos o prí ncipe , nesse instante, cm sua indument á ria de ceri- do momento em que esse indivíduo sai da História , a partir do
monia, o porte solene e o semblante meditativo, a conversar instante em que a História deve prosseguir sem ele, algo se des-
negócios de Estado, e tudo isso se associa à morte sú bita da prende do evento hist órico , algo se separa dele, assume autonomia
grande personalidade, do homem indispensá vel. e passa a um ordem superior. Os v í nculos entre o aconteci-
172 173
mento e a História n ão se romperam mas , desde ent ão, aquele antes, um elemento que se separa de si mesmo no evento tempo-
será apreendido de modo diferente - ral , que se toma independente do jornal e assume forma própria.
-

O acontecimento escalona se, progride passo a passo . A Foi nesse sentido que també m nos referimos ao assassinato de
partir de um acontecimento a secessão holandesa
um indiv íduo , a quem atribu ímos o acontecimento , a quem o — ergue-se Guilherme de Orangc como um “ recorte de História ”. Foi como
se també m tivéssemos recortado um elemento num quadro de
subordinamos, através de quem vemos ocorrer tal secessã o. No conjunto; de fato, apoderamo- nos de um elemento que se desta -
momento decisivo em que esse indiv íduo abandona a Histó ria , cara a si mesmo na História e em que um acontecimento hist órico
fica , por sua vez, subordinado a uma realidade superior : o homi- se cristalizou , imobilizou e adquiriu forma própria .
cí dio , o assassinato polí tico. Vemos ent ã o um assassino matar , Denominei essa forma Memorabile , Memor á vel , tradução
sob o acicate do fanatismo e da cupidez , um desconhecido que latina de um termo grego de uso incómodo, a palavra àitop.vTHJ.o-
lhe prestou serviços e favores , no instante em que este , rodeado
VEUJJUX . O que os gregos entendiam por isso parece-me estar
de seus familiares e conselheiros, ocupa-se seriamente na reali- muito perto do sentido que dou a essa forma. Morto Sócrates,
zação da obra de sua vida . Platão e Antístenes travam um debate sobre a personalidade
O sentido do acontecimento desloca-se a cada n ível . Que- socrá tica ; Xenofonte, que reside em Corinto, escreve ent ão os
remos conhecer a história da secessão dos Pa íses-Baixos c e seus Apomnemoneumata , termo que ele talvez tenha sido o pri-
Guilherme de Orange que lhe encarna o sentido ; acompanha -se meiro a usar como t í tulo de uma obra . Seu intuito foi descrever
essa história em Guilherme de Orange e , no instante em que ele a personalidade de Sócrates n ã o de acordo com suas concepções
sai dela , é o assassinato que encarna o sentido do todo. pessoais, como procuravam fazer os dois adversá rios , mas dei-
Não se trata , neste caso, de Histó ria científica nem de filo- xando que ela se desprendesse e destacasse do acontecimento , tal
sofia da História , mas de observar um fato da l í ngua e da litera- como o conservara na memória . O mesmo aconteceu com os
tura ; e vê-se o acontecimento progredir indefinida e irresistivel- apologetas crist ãos do século II , que chamaram Apomnemoneu-
mente , cristalizar-se em seguida em pontos determinados e endu - mata aos apontamentos tomados pelos Evangelistas, em contraste
recer ; o acontecimento deixa de fluir para imobilizar-sc e a lí n- com os relatos mentirosos dos pagãos. Também para eles a
gua apossa-se dele para dar- lhe uma forma liter á ria nesse mesmo maneira de descrever uma personalidade consistia , ao que parece ,
plano em que ele se cristalizou , se imobilizou . em levá-la a fixar-se , a desprender-se do acontecimento real e ,
progressivamente , conduzi-la a uma ordem superior.
Vemos, alé m disso — n ão na perspectiva histó rico- filosófica ,
repita -se, mas na da l í ngua e da literatura
— que essa forma se Enquanto que para Xenofonte , entretanto , o importante era
a personalidade de Sócrates , para os Evangelistas — na opini ão

produz por escalonamento . Todos os pormenores do aconteci-
mento , que fazem parte integrante dele , que são coagidos a acom - dos apologetas era a pessoa de Jesus . Por nossa parte , segui-
panhar-Ihe o curso e o avan ço , mudam subitamente de direçã o e mos o itinerá rio inverso e , começando pela forma , tentamos expli-
-
passam a orientar se no sentido de uma finalidade de ordem supe- car de que maneira uma realidade móvel se imobiliza nessa
rior e imóvel : isolada e coletivamente, tais elementos ordenados forma .
e coordenados destacam essa finalidade de ordem supenor por
explica ção, discussã o, comparação e confronto. Como os porme-
nores coordenados preenchem essa realidade de ordem superior ,
ao mesmo tempo que , por sua parte , são impregnados dela , o
IV
conjunto torna-se uma forma que tem na imobilidade o sentido
do acontecimento em progresso.
O que dissemos até aqui j á permite definir a disposição men-
Falamos de “ recorte de jornal ” a propósito do suicídio do tal de que resulta o Memorável. Se uma palavra puder suge-
Conselheiro S. O que realmente entendemos por isso não é o ri-lo, atrever- nos- íamos a design á-lo como a disposição mental do
peda ço de papel que se recorta da pá gina de um jornal mas , efetivo . Os dois Memorá veis — suicídio do conselheiro comer-
174 175
ciai S. e assassinato de Guilherme de Orange — nada admitem
que n ão esteja efetivamente no acontecimento ; mas percebe-se,
Se o Príncipe de Orange fosse um modelo c sua história uma
Lenda , esses objetos seriam rel íquias. Tais roupas e tal buraco
ao mesmo tempo, um efetivo de ordem superior que se destaca numa parede , conforme os vemos, são o meio que nos permite
da sé rie de fatos da mesma ordem e todos os pormenores se dar à pessea e ao fato sua atualiza ção mais concreta ; s ão documen-
ligam a essa ordem superior , numa relação ú nica e cheia de sen - tos do acontecimento, situados no local onde semelhantes ele-
tido; a partir de fatos livres, realiza -se uma efetividade vinculada. mentos de pormenor se aglomeraram com maior efetividade .
Se pensarmos nes elementos que est ão em curso de engran- Esta forma tem uma atividade tal que todo o seu significado pode
decimento e que acabam por se conjugar e crescer juntos ; se os alojar-se num objeto.
observarmos no ponto em que se d á essa conjugaçã o , em seus
pormenores e no seu todo, diremos que houve concreção, da
forma verbal latina concresco. É neste sentido que podemos
chamar ao Memorá vel a forma em que o concreto se realiza . V
É o lugar onde tudo se torna concreto, n ão só o efetivo de ordem
superior, a que os fatos isolados se ligam numa relaçã o cheia de Falamos , at é aqui , de Memorá veis distintos e gostar íamos
significado, mas todo o elemento tomado em suas relações e pela de dar agora um exemplo demonstrativo de como a forma “ Me-
sua relatividade. Recorde-se o vestu á rio de gala e o andar solene morá vel ” resulta espontaneamente de um acontecimento, numa
e comedido do prí ncipe , para n ão sairmos de nosso ú ltimo Memo-
sequência verbal. Esse exemplo orientar- nos-á , ao mesmo tempo,
rá vel. Serviram para valorizar o fato do assassinato , destacá - lo
para a direção em que se deve procurar o Memorá vel .
do resto , torn á- lo acessí vel a uma observa çã o distinta ; enfim , con -
Já verificamos que uma parte das narrativas reunidas por

cretizaram-no. Entretanto, impregnados de uma ordem superior ,
esses fatos isolados — e intrinsecamente sem import â ncia
vêem-se , por sua vez, valorizados. Todos os dias o príncipe se
Grimm em suas Deutscben Sagen n ão correspondem à nossa For-
ma Simples , a Saga ; nas narrativas do início da segunda parte,
apresentava vestido e caminhava de modo bem determinado ; no publicada em 1818 , é possível reconhecer grande quantidade de
fluir do acontecimento, porém , que nele se discernia , esses fatos Memorá veis. Vou escolher uma delas ( a N.° 373, relativa à
cotidianos n ã o se tornavam especialmente notados. Foi preciso Morte de Ataulfo ) :
esperar que o acontecimento se imobilizasse , foi necessá rio aguar- A morte do Rei Ataulfo, que conquistara a Espanha com seus
dar aquela forma em que todos os fatos de pormenor preenchem visigodos, recebeu duas versões na gesta . Segundo alguns , ele foi
um efetivo de ordem superior e s ão por ele preenchidos para ferido por Wernulfo, de cuja estatura ridícula zombara . Segundo
outros, Ataulfo estava na estrebaria olhando os cavalos quando foi
se ver então no príncipe, n ão a encarnação do acontecimento ( a
secess ão dos Pa íses-Baixos ) mas o homem — como ele se veste,
assassinado por um de seus servidores, de nome Dobius, que esti
vera antes ao serviço de um outro rei visigodo expulso por Ataulfo
-
como caminha , suas idas e vindas , o estilo de sua própria indu - e ingressara depois no serviço deste.
mentá ria , sua personalidade dimensionada ; em suma , para vê-lo Dobius vingou assim o seu primeiro senhor no segundo.
concretamente.
Esta narrativa contém duas versões da tradição, dois Memo-
Quanto ao trajo de gala , há outro detalhe que merece ser rá veis que se referem a um só acontecimento. Deixemos de lado
assinalado : esse trajo talar encontra -se num museu de Haia com a segunda e reexaminemos a primeira , segundo a fonte onde
as demais peças do vestu á rio que o prí ncipe envergava no dia Grimm a recolheu : as Jordanis Getica ( ed. Mommsen , 1882 ,
de seu assassinato ; quanto à bala que o atingiu , seu impacto pode XXXI , 163 ) :
ser visto numa parede do “ Prinzcnhof ”, o paço do príncipe em
Delft. “Confirmato ergo Gothus regno in Gallis Spanorum casu
Temos, pois , um objeto diante dos olhos e elementos de
.
coe pit dolere, eosque deliberans a Var dalorum incursibus eripere ,
objetos que est ão novamente impregnados do poder da Forma .
suas opes Barcilona cum certis fidelibus derelictas plebeque inbel -
le, interiores Spanias introibit , ubi saepe cum Vandalis decertans
176 177
tertio armo , postquam Gallias Spaniasque domuisset , occubuit Dissemos antes que teríamos diante dos olhos uma grandc
gladio ilia perforata Euervulfi , de cuius solitus erat ridere sta- parte do universo medieval se fosse possí vel estabelecer em pof '

tura ” menor todos os pontos em que a disposição mental da imitaçí 0


[ Uma vez consolidado seu reino na Gá lia , o godo começou se manifesta na vida do homem individual. De modo an á loga
a intercssar-se pela sorte da Espanha e deliberou protegê-la das podemos verificar aqui que teríamos diante dos olhos uma b0a
incursões dos vâ ndalos ; instalou suas tropas em Barcelona , sob parte do universo moderno se cheg á ssemos a estabelecer em pof '

um comando fiel c no meio de uma populaçã o pací fica , e invadiu menor todos os pontos em que a disposição mental do efetivo
o interior da Espanha , onde travou numerosos combates com os manifesta na vida do homem moderno. Em todo o caso, o Mem0“
v â ndalos ; após três anos de dominação na Gália c na Espanha , rá vel é a forma mais familiar na é poca moderna : desde que °
morreu traspassado no ventre pela espada de Everwulfo, de cuja universo seja apreendido como uma coleção ou um sistema de
estatura costumava troçar . ] realidades efetivas , o Memor á vel é o meio que permite fragmeí1’
O todo constitui no texto original uma ú nica frase ou , me- tar esse universo indiferenciado , estabelecer diferen ças, torn á -lo
lhor dizendo , um per íodo. Na primeira parte , o acontecimento concreto .
est á em curso e o personagem em quem o observamos , o rei Tal forma , entretanto, é t ão familiar e t ão comum em nos$a
visogodo Ataulfo, só é visí vel nesse acontecimento : estabeleceu - época que , justamente por isso, talvez sejamos menos propens0s
-se na Gá lia com os seus visigodos, depois desvia suas atenções a reconhecê- la como forma . Quando uma forma se destaca de
para a Espanha , utiliza Barcelona como base de opera ções e con - todas as demais, quando se converte na forma por excelê nci *1»
tinua sua penetra ção ibé rica batalhando incansavelmente contra Xai’ è£oxT]v , quando é a “ Forma ”, deixa-se de compará- la coí11


os v â ndalos , então assassinado c , no mesmo per íodo , vemos outras e de classificá-la na lista de outras formas. Assim é qUe
certos fatos isolados virem subitamente à tona ; esses fatos, que
n ão têm qualquer liga çã o direta com o acontecimento — as cam -
se supôs e , por vezes, ainda se supõe — ser imposs í vel apr£
ender o acontecimento de qualquer outro modo que n ão seja
"

panhas militares dos visigodos — sã o o ponto donde se destacam


e onde se aglomeram a personalidade e o assassinato do rei .
no Memorá vel ou nos Memor á veis . Uma filosofia da Hist ór » 3
que n ã o hesita em declarar : “Só existe História na medida eín
Vemos que Ataulfo tinha o costume de zombar de um que exista uma sequ ê ncia temporal ordenada segundo crit é ri0s
homem por sua pequena estatura ; e embora este indiv íduo n ão de valor e onde o acontecimento histórico assume o cará ter ile
intervenha em pessea no acontecimento geral , ele influenciará , fato ” , semelhante filosofia transporta diretamente o conceito de
poré m , o curso desse acontecimento , em virtude de um ato que História para a Forma Simples do Memor á vel. Uma filosof í 3
se manifesta pessoalmente: é Everwulfo, aquele cuja espada ma- da História que nos conceitos gerais só quer ver processos int£ ‘

tou Ataulfo. Nesse momento , os pormenores tornam concreta a lectuais, instrumentos c artefatos do esp í rito, ficções cômoda ^ »
espécie da morte: Everwulfo é baixote , treçam da sua pequena uma filosofia que tal atravessou , por seu lado, a fronteira d°
estatura , mas é justamente essa pequenez que vai decidir o modo Memorá vel.
por que ele se vinga ; em vez de fender o cr â nio de Ataulfo, como Em todo o caso, essa invasão da Forma explica a qualidade
ocorreria num combate , Everwulfo tem um gesto inesperado : que geralmente se associa ao Memor á vel no universo da efetiv1-
enfia -lhe a espada no baixo ventre. É um assassinato , é a ma- dade: ao tornar-se concreto , o efetivo torna fidedigno.
neira de um pequeno matar um grande ; mas també m é o modo ,
para a História , de se proceder a um escalonamento e de se fixar , Reencontramos , assim , aquele deslizamento de sentido qUe
de adquirir forma ; forma essa em que todos os pormenores reais assinalamos na introdu çã o à Saga. Empregamos ent ã o a palav í 3 *

s ão relacionados entre si e a uma ordem superior , numa relação “ História ” c falamos de um universo da Hist ória, reservand 0
significativa , mesmo quando n ão possuam ligação direta com o para mais tarde a definição desse universo. O Memorá vel co\0 '

acontecimento; forma que comporta o sentido do acontecimento ca- nos esse universo diante dos olhos . Quanto à disposição meí1 "

e onde o todo e os pormenores deste se concretizam numa seq úê n tal em que o efetivo se torna concreto, o importante é a credih* ~
cia encadeada . lidade, mas tal disposiçã o só encontra credibilidade em sua forir> a

178 179
própria e só é atestada pelo acontecimento que assume a torma
de Memorá vel. Demos a isso o nome dc “ tirania da História”;
podemos agora fazer justiça à História c a Clio, e exprimir-nos
com maior exatid ão: quando essa disposição mental se torna pre-
ponderante , d á -se , nas suas relações com as outras formas, um
fenô meno compará vel ao que ocorre nos próprios Memorá veis,
uma espécie de escalonamento em que a Saga, a Legenda ou o
Mito só se apresentam como formas relativas ao conte ú do que O CONTO
essa disposi ção mental tem por costume chamar Histó ria , concre-
tizada , conhecida e reconhecida como fidedigna e atestada . Na I
disposição mental e no uso da forma de Memorá vel , a forma rela -
tiva , ou Gesta , torna-se , pois , uma “ fase preliminar ” , e a palavra
Gesta perde sua força original , servindo agora para designar o
que n ão é digno de crédito, o que n ão é atestado. O emprego da palavra Conto para designar uma forma lite-
Talvez convenha assinalar ainda outro ponto , embora saia-
do dom í nio das Formas Simples : quando as Formas artísticas
rá ria está— por muito estranho que pareça — bem limitado.
As palavras Sage ( Saga ) , Ràtsel ( Adivinha ) c Spricbwort ( Dita -
mos
se empenham — por qualquer motivo — em representar um
elemento de ficção como se fosse uma realidade efetiva e, por
do ) são encontradas em numerosos dialetos germ â nicos , ao passo
que M àrcben ( Conto ) só existe em alto-alem ã o ; até os holandeses
que , de modo geral , d ão às formas nomes vizinhos dos alem ã es,
conseguinte , de maneira concreta e digna de crédito, elas recor- utilizam nesse caso uma outra palavra : sprookje. Os franceses
rem ami úde aos processos caracter ísticos dos Memorá veis. J á empregam uma variante particular de narrativa a que chamam
vimos , com referê ncia às roupas do Príncipe Guilherme de Oran- conte e mesmo, com maior precisã o , conte de f ées ( conto de
ge, todos os pormenores efetivos ligados entre si e com o ele- fadas ) ; e os ingleses t ê m fairy-tale.
mento de ordem superior , numa relação plena de sentido . Vimos
( e veremos sempre que o acontecimento assumir a forma de Me- O Conto só adotou verdadeiramente o sentido de forma
morá vel ) a alegria anterior ao incidente produzir a oposiçã o literá ria determinada no momento em que os irm ãos Grimm
graça -desgraça , a seriedade anterior ao incidente produzir o pres-
sentimento de infort ú nio, o incidente gerar um novo contraste
-
deram a uma colet â nea de narrativas o t í tulo de Kinder und Haus-
màrchen [ Contos para Crianças e Fam ílias ]. Assim fazendo, con-
se ocorre numa bela manh ã de primavera , ou uma certa harmonia tentaram -se em aplicar às narrativas por eles compiladas uma
se , pelo contrá rio , acontece numa noite tempestuosa de inverno; palavra que já vinha sendo usada há muito tempo. Desde o
e veremos , de cada vez , o incidente converter-se no ( e pelo ) século XVIII que se conheciam , efetivamente, os Yeentnàrchen
conjunto desses elementos, num fato concreto em que acredita- ( Contos de Fadas ) , os Zauber- und Geisterrnàrchen ( Contos de
mos e que se nos grava na memória . Suponhamos agora que , Magia e Fantasmagoria ) , M àrcben und Erzàhlungen fur Kinder
no Memor á vel , n ã o se trate de um acontecimento ; que esteja fora und Nichtkinder ( Contos e Narrativas para Pequenos e Gran -
de questão um incidente destinado a tornar-se concreto ; que se des ) , Sagen , M àrcben und Anekdoten ( Histórias, Contos e Ane-
trate , antes , de um incidente imagin á rio ; neste caso, para tornar o dotas ) . Musá us publica os seus Volksmàrchen der Deutschen
incidente digno de crédito, ele é representado de maneira idêntica [ Contos Populares Alem ães ] , Wieland , Goethe, Tieck e Novalis
à que lhe permite resultar do memor á vel ; é cercado de indicações empregam a palavra , cada um deles com seu matiz particular , mas
pormenorizadas, an á logas e adaptadas entre si , assim como na de um modo que concorda , entretanto, no tocante ao essencial .
rela ção com o pró prio acontecimento — rela çã o plena de sentido.
Isso pode ir t ão longe que deixar á de sentir-se a diferença entre
Contudo , foi a colet â nea dos irm ãos Grimm que reuniu toda essa
diversidade num conceito unificado e passou a ser , como tal , a
a Forma relativa do Memorá vel e a Forma art ística da Novela, base de todas as colet â neas ulteriores do século XIX ; finalmente ,
algo que acontece freq ú entemente na literatura moderna . sublinhe-se ser sempre à maneira dos irm ãos Grimm que as

ISO 1S 1
verdadeiras pesquisas sobre o Conto continuam sendo realizadas, vam nem sobre a poesia em geral . A oposição revestiu -se de
apesar da diversidade de concepções científicas. tal importâ ncia que devemos considerá-la mais de perto se preten -
Ainda que eu corra o risco, evidentemente , de dar uma defi- dermos examinar essa Forma c lançar as bases de uma definição
niçã o circular , poderia dizer que o Conto é uma narrativa da
do Conto. Foi a partir de tal oposição, essencial para o Roman-
tismo , que definimos as relações entre l íngua e poesia ; seme-
mesma espécie das que os irm ã os Grimm reuniram cm seus Kin-
der- und Hausmàrcben. Desde sua publica ção , os Contos de lhante definição é o lugar a que nos conduz , necessariamente ,
Grimm tornaram -se o crité rio de fen ô menos semelhantes , tanto toda e qualquer oposiçã o do mesmo gê nero da que existia entre
1
na Alemanha como em outros países , É costume atribuir -se a
Grimm e Arnim . O Conto ê , precisamente , a Forma que requer
um estudo prévio , que introduz um debate de princ í pios básicos
uma produ ção literá ria a qualidade de Conto sempre que ela
concorde mais ou menos ( para usar deliberadamente uma expres- sobre a l íngua e a poesia , e que propicia , simultaneamente, a con-
são vaga ) com o que se pode encontrar nos contos de Grimm .
clusão e a introdução a todas as Formas Simples.
Antes de definir pelo nosso mé todo a noçã o de Conto, começa-
remos , pois , por um coment á rio de ordem geral sobre o conto
de Grimm .
O importante na palavra Marchei: n ão é o seu sentido eti- II
mológico , que se encontra no alto-alem ã o mâri ( lenda , f á bula )
ou no gó tico mê rs ( conhecido, célebre ) ; tampouco é o fato de Na correspond ê ncia entre Jacob Grimm e Arnim ( Achim
M àrchen ser um diminutivo depreciativo de Mure ( narrativa , von Arnim und Jacob und Wilhelm Grimm, Introdu çã o de Rei-
tradi ção ) c designar , pois , uma histó ria curta , at é um simples nhold Steig ) , publicada cm 1811, patenteiam -se as peripécias de
boato que se propaga sem que se saiba se é exato ou ver ídico. um duelo de opiniões que devemos apresentar sucintamente e
O que nos interessa é uma forma que tem nomes diferentes, que gravita em torno de dois termos-chaves : poesia da natureza
segundo as l í nguas , mas em que todos concordam em atribuir à c poesia art í stica. Arnim n ão via oposiçã o entre esses dois con-
colet â nea de Grimm a sua expressã o essencial . ceitos ; a “ distin ção favorita ” de Jacob Grimm inexistia para ele.
Os Kinder- und Hausmàrcben foram publicados em 1812. Escreve Arnim ( pág. 110 ) : “ Dada essa minha convicção, com-
Possuem v ínculos sobremodo estreitos com uma outra colet â nea , preenderás que me recuso a aceitar , de um modo absoluto e
publicada alguns anos antes por Arnim e Brentano: Des Knaben gen é rico, tanto na poesia como na História ou na vida , todas as
Wunderhorn [ A Trompa Maravilhosa ]. Essa colet â nea , da qual oposições que a filosofia atual se compraz em criar e, por conse-
os Contos de Grimm n ã o foram uma continuação , respeitou as guinte , n ão vejo oposição alguma entre a poesia popular e a
correntes dominantes do século passado , aquelas correntes vitais
poesia erudita . . . ” Jacob Grimm respondeu para definir a sua
do Romantismo que foram o testemunho da “ fome e sede de
posição em termos precisos : “ A poesia é aquilo que passa em
forças vivas e de beleza interior da realidade popular nacional ”
que devorava os criadores art ísticos e pensadores da é poca e que , estado de pureza e sem alterações do coraçã o para as palavras ;
embora tivessem ultrapassado largamente as fronteiras alem ã s, por conseguinte, é algo que brota incessantemente de um impulso
foram encarnadas c personificadas na Alemanha por Johann Gott- natural e é captado por uma faculdade inata ; a poesia popular sai
fried Herder . A exemplo dc Arnim e Brentano, recolhendo o do coração do Todo ; o que entendo por poesia art ística sai da
lirismo e a musica que viviam no povo , Jacob e Wilhelm Grimm alma individual . Por isso é que a poesia moderna assinala os
empenharam -se em redigir as narrativas populares nas múltiplas seus autores , ao passo que a antiga n ão sabe nome algum ; ela
formas em que elas se apresentavam . n ão é produzida por um , dois ou três, é a soma do Todo ; já disse
Houve , contudo, uma oposição consider á vel entre Achim que n ão sei explicar como essas coisas foram arranjadas e feitas
von Arnim e Jacob Grimm , pois esses dióscuros n ão tinham as mas , para mim , n ão é mais misterioso do que as águas que con -
mesmas concepções fundamentais sobre as coisas que organiza- fluem num rio para correr juntas. Não seria capaz de conceber

Í 82 18 )
a existê ncia de Homero nem que os Nibelungenlied tivessem um bastar para que creias e sintas que a poesia antiga e suas formas,
autor ” ( pág. 116 ) . que a fonte da rima e da aliteração , fazem també m parte de um
Assinale-se , a propósito, que Jacob Grimm inclui na poesia todo — um todo que n ão pode ser obra da oficina ou das medi -
tações de poetas individuais ” ( pá g. 139 ) .
natural ou popular formas a que chamamos Formas art ísticas.
N ão é esse , poré m , o ponto que nos interessa aqui ; o importante , Lembro que Seiler falava , em seu S pricbwòrterkunde, de
para nós , é a posição assumida pelos dois homens em resultado uma “ visão rom â ntica ” que atribu ía ao poema popular , ao conto
dessa oposição. popular etc., uma origem nas profundezas insond á veis e misterio-
Acrcsccnte-se que , cm virtude dela , gerou -se toda uma série sas da alma popular. Essa correspondência mostra que se pode -
de contrastes conceptuais no decorrer desse duelo epistolar. ria aplicar igualmente bem o adjetivo “ rom â ntico ” à idéia que
apresenta o poeta , pelo contr á rio , como a força criadora , pois
Para Jacob Grimm , a poesia art ística é uma “ elaboração” ,
ta! opinião foi consubstanciada em Arnim , cujo romantismo n ão
a poesia natural “ uma criaçã o espont â nea ” ( pá g . 118 ) , sendo a
“ poesia nova radicalmente distinta da poesia antiga ” ; n ão se padece discussão. “ Poesia art ística ” , “ poesia natural ” e todos os
deve mudar uma v írgula sequer na “ poesia antiga ”, quando a des- conceitos que da í decorrem s ão uma tradu ção, em termos rom â n-
cobrimos ; por isso é que toda e qualquer modifica ção, seja qual ticos , da oposiçã o que se manifesta aqui e assinala uma realidade
for o seu intuito, é ruim ; por isso é que as tradu ções e mesmo muito mais profunda.
as transposições em l í ngua moderna carecem totalmente de valor! A polê mica cessou durante algum tempo. Em 1811, Arnim
Nã o se trata de um filólogo que adira respeitosamente aos seus vai a Kasscl com sua jovem esposa , Bettina , e visita os irm ãos
textos e à letra dos seus textos ; trata -se , sim , de um pensador Grimm . Mostram -lhe uma nova coletâ nea e ele fica entusias -
convencido de que deve recusar toda e qualquer mescla de espé- mado. Comunica a novidade a Brentano , insiste para que a
cies de t ã o diferente natureza . publicação se faça o mais depressa possível e encarrega-se , em
Por outro lado , temos Arnim , que se sente um tanto visado seguida , de encaminhar as negociações com o editor em Berlim .
pessoalmcntc pela argumentação de Grimm , pois sabe muito bem Depois da morte de Arnim , Wilhelm Grimm dedica a Bettina os
que mudou bastantes v írgulas em Des Knaben Wunderhorn e Kinder- und Hausmárchen e escreve estas linhas: “ Foi ele
efetuou n ão poucos aditamentos sem lugar na “ poesia antiga ” . [ Arnim ] quem nos instigou . . . a publicá -los . . . De todas as
Mas també m ele est á seguro do que fez : n ão existe poesia popu - nossas colet â neas, estes contos são os que mais lhe agradaram . . . ”
lar no sentido em que Grimm a entende ; só existem poetas : Mas a oposição mantinha -se intata , Em 1812 , reacende-se
“ quanto menos um povo tiver vivido acontecimentos, mais homo- o debate , a partir do conto, entre poesia antiga e poesia moderna .
géneo será em suas características e em suas idéias; todo poeta Jacob Grimm está feliz por saber que Arnim prefere. os;Saber seus
reconhecido como tal é um poeta popular . . . ” ( pág. 134 ) . Os Kinder- und Hausmárchen às transposições de Brentano “
nomes dos autores caem no esquecimento e perdem -se. A tarefa que a transposiçã o de Clemens [ von Brentano ] n ão te satisfaz
do poeta consiste , evidentemente, em escrever partindo do povo deu - me grande prazer e apenas lamento o esforço e o esp í rito
ou em levar ao povo o que escreve : ( pág . 135 ) “ Eu conside- que ele lhes dedicou ; por mais que embeleze c ornamente tudo
raria uma bê n çã o do Senhor ter a honra de dar ao mundo , graças isso , as narrativas simples que reunimos fielmente decerto enver-
ao meu cé rebro , um poema de que o povo se apoderasse ; mas gonhar ã o as dele ” ( pá g. 219 ) . E deixa -se empolgar : “ O meu
a ele compete decidir e já me contentarei com o que fiz na vida respeito pela é poca aumenta dia a dia ; creio que n ão se pode
se apenas alguns homens encontrarem nos meus trabalhos algo invent á- la e acabarei por tornar - me parcial e n ã o gostar de outra
que haviam pressentido ou procurado, sem poder exprimi- lo . . . ” coisa . Eis essa nova e pura inocê ncia , que ali est á em toda a sua
Grimm é contr á rio a essa opini ão e replica logo : “Se acre- espontaneidade. Vós, os poetas modernos, por muito que vos
ditas , como eu , que a religião é parte de uma revelaçã o divina e esforceis , n ã o inventais nenhuma cor nova e limitai-vos a mistu-
que a l í ngua tem uma origem igualmente admir á vel , n ão sendo rá - las , que direi eu ! , nem sabeis sequer aplicá-las sem mistura . .
simples produto de uma invenção humana , ent ão isso dever á Arnim n ão apreciou grande coisa as indiretas e retorquiu a

184 185
Grimm censurando-o por desconhecer os poetas modernos. Não foi perdido o Para íso també m se fecharam os Jardins da antiga
quer dizer que Grimm n ão os tenha lido mas que n ão os enten- poesia , ainda que cada homem continue levando cm seu coração
de. E toma Brentano sob sua proteção, embora reconheça -lhe um pequeno para íso . . ( pág. 235 ) .
perfeitamente os defeitos : os contos de Brentano n ão s ã o histó-
rias “ vividas na esfera da inf â ncia e que possam , portanto, ser Este debate , repito, é idê ntico à s distinções que fazemos
passadas às crianças sem qualquer preparação prévia ; é um livro entre conceitos ; a quest ão que ocupava , h á mais de um século,
que instiga em pessoas de mais idade a faculdade de invenção e os dois rom â nticos que s ã o Arnim e Jacob Grimm , continuou
mostra a todas as m ães , se necessá rio ( excetuando-se , talvez , as
sendo da mais alta import â ncia , pois é a quest ão da linguagem
mulheres muito cultas ) , como fazer de uma circunstâ ncia , cujo e da poesia. Ao definir as formas , procurei descobrir uma nova
atrativo elas descobriram , o divertimento duradouro de uma nar- formula ção para essas duas oposições e definir , por intermédio
rativa bastante extensa 11 ( pág . 223 ) . É nesse incentivo à inven- da morfologia , noções que se chamavam ent ão poesia natural e
ção que Arnim v ê o significado do conto : se n ão nos instiga a poesia artificial mas hoje se apresentam como Formas Simples e
contá - lo de novo , se não nos mostra como volt á-lo a contar em Formas Art í sticas , o que acercaria o problema de uma solução.
termos atuais , o conto antigo perde todo seu valor e poder de Essa correspondê ncia chega ent ão a uma observação deveras
atra çã o . Arnim insiste vigorosamente neste ponto: “ O conto estranha que nos reconduz ao conto. Arnim responde a Grimm ,
fixado acabaria por ser a morte de todo o universo do conto" defende o seu poeta e at é, de certa maneira , inverte a situação :
( pág. 223 ) . O valor das coisas antigas consistiria , essencial- ao recolherem os contos , os irm ãos Grimm fizeram , nem mais
mente , em incitar e fazer progredir as coisas novas. “ A poesia nem menos , obra de poetas: “ a ú nica coisa que alegra o erudito
n ão é velha nem nova , ela n ã o tem histó ria alguma ; podemos é a ú ltima de quantas ele pode esperar da História : o verdadeiro
apenas indicar certas sé ries de relações a partir de suas caracte- ouvinte do poeta , o seu contemporâ neo sem erudição, nada mais
r ísticas anteriores” ( pág. 225 ) . Portanto , o poeta moderno dá entende a n ão ser essa atualização de um princ í pio geral . N ão
continuidade, fora do tempo, à obra iniciada pelo poeta antigo. desejaria magoar-te, mas n ão posso evitar fazer-te esta observa -
Vemos aqui , pela primeira vez , o ponto de vista de Arnim defi- ção : jamais acreditarei , mesmo que tu próprio o creias , que os
nir-se de modo perfeitamente claro , ponto de vista a partir do Kindcrmàrchen [ Contos Infantis ] foram transcritos tal qual os
qual ele j á reunira os materiais de Des Knaben Wunderhorn. As recebestes ; a tend ência para constituir e continuar uma obra é
coisas novas existem , são o essencial , é necessá rio empregar todos mais forte no homem que todos os seus projetos e simplesmente
os meios para anim á-las e aperfeiçoá-las
— sobretudo por meio
da tradição, das coisas antigas, do fundo popular , Não é por
impossí vel de erradicar. Deus cria e o homem , criado à sua
imagem , trabalha para ccntinuar-lhe a obra . O fio jamais se
amor às coisas antigas que as reunimos , mas apenas com essa quebra ; é, necessariamente, uma outra textura que transpa-
finalidade exclusiva . rece. . ( Pág . 248 ) .
É f á cil perceber que Grimm se sentisse por sua vez visado . Desta vez , Arnim atingira o alvo em cheio , pois Jacob
Resumindo o pensamento de Arnim em sua própria linguagem , Grimm era filó logo demasiado sé rio e homem demasiado sincero
escreveu : “ Portanto , n ã o haveria hist ó ria da poesia e a distin ção para n ã o perceber o que havia de verdade nisso, mesmo que ,
entre poesia da natureza e poesia de arte seria um simples gra - em ú ltima an á lise , essa verdade n ão lhe ferisse a verdadeira inten-
cejo. O que tu dizes desfere um ataque direto ao que me é
mais caro , pois todo o meu trabalho consiste , sinto-o bem , em
ção nem as convicções mais íntimas. Eis sua resposta —
minha ú ltima citação dessa Correspondê ncia: “ Eis- nos chegados
e a

aprender e em mostrar que uma grande poesia é pica viveu e à fidelidade. Uma fidelidade matem á tica é absolutamente impos-
reinou na Terra , que foi gradualmente perdida e esquecida pelos s ível c n ã o existe nem mesmo na histó ria mais verdadeira e
homens ou até , de modo algo diferente , que continuam a alimen - mais rigorosa ; mas isso carece de import â ncia , pois sentimos que
tar-se dela ” ( pá g. 234 ) . Segue-se o credo poé tico de Grimm , a fidelidade é coisa verdadeira c n ão ilus ão ; ela opõe-se , portanto ,
cujos seis parágrafos seguintes principiam por um “ eu creio . . à infidelidade. N ão podes escrever uma narrativa perfeitamente
prenhe de austeridade e cuja primeria frase diz: “ Assim como fiel e conforme, assim como n ão podes quebrar um ovo sem que
186 187
nj

uma parte da clara adira à casca ; é a consequ ê ncia inevit á vel de Pouco depois, a novela passou a ser produzida em duas varie-
todo o labor humano e é a façon que muda constantemente. Para dades: em coletâ neas ou isolada. As coletâ neas de novelas tê m ,
mim , a verdadeira fidelidade , nessa imagem , seria n ão quebrar a em geral , uma forma herdada do Decamerort , sua grande precur-
gema do ovo . Se duvidas da fidelidade dos nossos Contos , n ã o sora. As narrativas est ão todas ligadas entre si por um quadro
podes duvidar dessa outra fidelidade, pois ela existe. Quanto que assinala , entre outras coisas , onde, em que ocasi ão e por
à outra e imposs ível fidelidade , n ós pró prios e outros que no- los quem essas novelas são contadas. Nã o seria necessá rio acrescen-
narraram outrora , com palavras em grande parte diferentes , nem tar que tal forma de narrativa- moldura é anterior à novela
por isso fomos menos fiéis : nada de fundamental foi acresccn- toscana.
tado ou mudado ” ( pág . 255 ) . Colet â neas e novelas isoladas propagaram -se por todos os
Sublinhemos e conservemos na memória que Jacob Grimm pa íses do ocidente literá rio a partir da Toscana; sofreram certas
percebeu no Conto um “ fundo ” que pode manter-se perfeita - modificações e resultaram aqui e ali em outras formas artísticas,
mente id ê ntico a si mesmo, at é quando é narrado por outras embora mantivessem caracter ísticas nitidamente reconhecíveis.
palavras . Antes de apreender esse “ fundo” como a Forma Sim - Sem entrar em pormenores , eu diria que a novela toscana pro-
ples do Conto e de definir a disposição mental nele subenten - cura , de modo geral , contar um fato ou um incidente impressio-
dida , façamos uma panor â mica para averiguar onde ser á ainda nante de maneira tal que se tenha a impressão dum aconteci -
possível encontrar o “ Conto de Grimm ” no universo ocidental . mento efetivo e, mais exatamente , a impressão de que esse inci-
dente é mais importante do que as personagens que o vivem .
Na história da novela toscana, encontramos diferentes reali-
zações desde os começos do século XVI. Devemos sublinhar que,
III no conjunto da forma , esse tipo de realização est á intimamente
ligado ao primeiro exemplo de novela toscana que foi o Deca-
Dediquei- mc numa outra obra a expor , em sua totalidade, meron , de Bocaccio. Em 1550 , Giovanni Francesco Straparola
a história do conto na literatura ocidental ; como se trata aqui publica em Veneza uma colet â nea , Piacevoli Notti , que se man-
da Forma , podemos contentar-nos com um simples extrato. Se tém rigorosamente fiel ao seu modelo no tocante à moldura . A í
ainda é muito cedo para pensar em escrever a histó ria das outras reencontramos as damas e os cavalheiros reunidos por circuns-
Formas Simples, o Conto oferece- nos , entretanto, dados suficien- t â ncias particulares e que fazem literalmente passar o tempo con -
tes para que possamos observar uma parte, pelo menos , de sua tando histórias uns aos outros. Mas existe uma diferen ça em
história . Mas o motivo fundamental dessa hist ória est á no cncon- rela ção à narrativa- moldura toscana , pois uma parte das narrati-
tro do Conto com uma forma art ística . O que nos devolve , vas enquadradas n ão pode ser considerada novclesca no sentido
por outro caminho, à nossa oposição Linguagem -Poesia , Forma que acabamos de definir ; s ã o , antes , narrativas do tipo que conhe-
Simples-Forma Art ística . cemos através dos contos de Grimm , narrativas que de maneira
A partir do século XIV, aparece na Europa uma forma de nenhuma nos d ão a impressão de um acontecimento efetivo. De -
narrativa curta a que se d á usualmente o nome de Novela e que -
paramo nos, inclusive, com uma quantidade de temas que iremos
reencontrar depois nos Kinder- und Haustnárchen ou em compi-
é uma Forma art ística . Segundo parece, teria sua origem na
Toscana e , de qualquer modo , todo o desenvolvimento da Novela lações mais recentes , como Der gestiefelte Kater fO Gato de
foi decidido pela maneira como se apresentou pela primeira vez Botas ] , Die dankbaren Tiere [ Os Animais Agradecidos ] , Der
em Bocaccio. Deu-se-lhe então o nome de novela toscana. É Mcisterdieb [ O Mestre -Ladr ão ] etc.
escrita na l í ngua própria de cada pa ís , o vern áculo; e, com exce- O fenômeno permanece isolado e a novela prossegue em seu
ção de alguns exemplos de novelas escritas em latim , pode-se caminho. Mas d á-se uma repetiçã o nos começos do século XVII .
afirmar sem hesitação que o latim era língua exclusiva dos huma- Em 1634-1636 vem a lume uma narrativa -moldura póstuma , da
nistas. autoria de Giambattista Basile , intitulada Cunto de li Cunti\ foi

188 189
escrita em dialeto napolitano e passou depois a ser conhecida dc Rotk à ppchen [ Chapeuzinho Vermelho ] , Dornrôschen [ A Bela
como Pentameron. O autor ainda seguiu de perto o modelo do Adormecida ] e Frau Holle [ A Fada Má ] .
Decameron . A ú nica diferença é que o quadro n ão nos d á a Pouco depois da publicação dos Contos de Perrault , narrati -
impressão de um acontecimento efetivo , mas entra mais no gênero vas do mesmo gê nero inundaram a França e o resto da Europa.
do conto de Grimm e todas as narrativas enquadradas fazem Podemos dizer sem temor que o gênero vai dominar toda a lite-
igualmcnte parte desse gê nero. Tudo se passa como se Basile , ratura do começo do século XVIII e substituir , por um lado, a
que parodia Bocaccio em sua narrativa- moldura e , ao mesmo tem - grande narrativa do século XVII , o romance , e , por outro lado,
po , esforça -se por anotar o maior n ú mero possível de expressões tudo o que ainda restava da novela toscana. A quantidade dessas
populares e descrever o m á ximo de costumes populares do seu narrativas é incalculá vel e, entre 1704 e 1708, a narrativa orien-
tempo, opusesse deliberadamente essa espécie narrativa à novela tal veio juntar-se-lhes com a primeira tradução das Mil e Uma
toscana , ca ída em desuso; semelhante impressão é t ão n í tida que Noites por Galland , embora toda a literatura setecentista esteja
algumas obras escritas no século XIX a respeito do Conto n ão salpicada de narrativas desse tipo. Basta percorrer as obras de
hesitam em afirmar que Cunto de li Cunti foi a primeira cole- Wieland para fazer uma id éia , sob esse prisma , da importâ ncia e
t â nea de contos , Acrescente-se que também vamos encontrar diversidade da influência exercida pelo gê nero.
em Basile algumas narrativas que conhecemos através dos Con - Foi justamente Wieland quem nos forneceu uma imagem
tos de Grimm , como : Aschenbródel [ Cinderela ] , Die sieben Ra- exata da maneira como o século XVIII concebia tal gê nero, em


ben fOs Sete Corvos ], Dornrôschen [ A Bela Adormecida ] . virtude das numerosas observa ções que ele lhe dedicou : o Conto
Para os irm ãos Grimm , como eles pró prios nos dizem no
terceiro volume de Kinder- und Hausmàrchen , “ as verdadeiras

em
Wieland també m emprega a palavra
que se re ú nem e podem ser satisfeitas
é uma forma de arte
cm conjunto duas ten -
colet â neas de contos começaram no final do século XVII com dências opostas da natureza humana , que são a tendê ncia para o
Charles Perrault ”. Salta -se , pois, por cima de La Fontaine, que maravilhoso e o amor ao verdadeiro e ao natural. Sendo ambas
em sua Histoire de Psyché nos deu uma nova configuraçã o de as tendê ncias inatas na humanidade, encontramos por toda a parte
uma narrativa da Antiguidade , compará vel aos Kinder -und Fí aus- os contos , alguns deles muito antigos. Entretanto , nessa Forma
mârchen, para se chegar aos Contes de ma mè re 1’ Oye , de Char- art ística , o que importa é levá-los a uma justa relação recíproca ;
les Perrault . Antes da publica çã o dessas narrativas em prosa ,
' se esta faltar , o conto perde em atrativo e valor. Quanto ao
Perrault já escrevera , entre 1691 e 1694 , três histórias em verso: estabelecimento da relação recí proca , é quest ão de gosto, é ques-
Grisélidis [ Grisclida ] , Peau d ' Â ne [ Pele de Asno ] e Les Trois tã o do artista . Wieland exprime-o em termos incisivos : “ As pro-
Souhaits ridicules [ Os Três Desejos Rid ículos ] , No tocante à duções desta espécie devem ser obras de gosto ou n ã o valem
sua forma exterior , essas três narrativas assemelhavam -se aos céle- nada . Os contos da velha ama , contados em linguagem de ama ,
bres Contes de La Fontaine . Estes , poré m , eram principalmente podem propagar-se pela tradição oral ; n ão precisam ser im-
uma transposição versificada dc novelas da escola toscana , ao
passo que em Peau d ' À ne encontramos o gê nero dos Contos de
pressos ”.
Grimm . Em 1697 , os Contes de ma mère VOye [ Contos da M ãe Chegamos até ao Romantismo. Seria desnecessá rio lembrar
Pata ] sã o publicados com o t í tulo de Histoires ou Contes du que , para Novalis , esse gênero tem um sentido diferente e mais
Temps Passé avec des Moralit és. Essa pequena colet â nea já n ão elevado que para Wieland ; mas , por diferentes que sejam as suas
concepções , e por muito profundo que seja o sentido do poeta
parecendo o reflexo dc uma moldura ; Perrault apresenta os seus
-
é , na realidade , uma narrativa - moldura , mas continua ainda trans
e da poesia em Novalis , o conto continua sendo para ela uma
contos como se tivessem sido contados por uma velha ama a seu Forma artística e “o contador de histórias autêntico é um pro-
filho , o qual os teria, por sua vez, voltado a contar. De qualquer feta do futuro ”.
modo , os Contes du Temps Passé entram na categoria dos Kin-
-
der und Hausmàrchen , de Grimm , e a í reencontramos a hist ó ria
190 191
apenas um autor , j á se encontravam em outras obras literárias;
sabemos , alé m disso , que ele n ão as leu , em sua maior parte,
IV nos originais indianos , á rabes ou latinos, mas ouviu-as contadas
de viva voz e conheceu-as por “ ouvir dizer ” .
Após esta breve panorâ mica , põe-se a seguinte quest ã o: O Pode-se, contudo, n ão compartilhar da opiniã o de Weiland ,
Conto ser á uma Forma Simples ? quando afirma que tanto a Novela como o Conto são formas artís-
Temos , por um lado, uma forma a cujo respeito se afirmou
que ela se esforça por narrar um fato ou um incidente impressio-

ticas literá rias a primeira , expressão de uma ú nica tendência
humana , a que busca o verdadeiro e o natural; e o segundo, um
nante , de tal modo que se julgue estar na presença de um aconte- am álgama de duas tend ê ncias humanas , aquela que busca o verda-
cimento real e ser esse incidente mais importante, aparentemente , deiro e o natural e a que corresponde ao anseio de maravilhoso;
do que os personagens que o vivem . continua-se, pois, afirmando que existe uma diferen ça formal
Vemos, por outro lado, no decurso da história liter á ria , uma bá sica e fica por estabelecer a natureza dessa diferença , a partir
nova forma impor-se diante da primeira , timidamente no começo , da própria forma e independentemente das circunst â ncias histó-
depois com firmeza crescente . Embora começasse por ligar-se à rico-literá rias.
primeira , a segunda forma , entretanto, manifesta desde o in ício Se se observar o dom í nio da novela , em seu conjunto, per-
uma tend ê ncia diversa . Em primeiro lugar , para falarmos em ter- ceber-se-á uma infinita variedade de fatos das mais diversas espé-
mos negativos , ela n ã o se empenha mais em narrar um incidente cies , ligados entre si pelo modo como são apresentados. Vcr-
impressionante, pois salta de incidente cm incidente para descre- -se-á , além disso, que outros fatos, por pouco que respondam às
ver todo um acontecimento que n ão se encerra em si mesmo de exigê ncias da novela , por pouco que possuam certo car á ter impres-
maneira determinada , o que só ocorre no remate final ou des- sionante, podem ser representados dessa maneira para se tradu -
fecho da narrativa ; em segundo lugar , tampouco se empenha mais zirem em novela . Bocaccio ia buscar fatos e incidentes de tal
em representar tal acontecimento de modo a dar-nos a impressão espécie a uma tradição literá ria mais antiga , mas sabemos que
de um acontecimento real , preferindo trabalhar constantemente també m é possível escolhê-los livremente ; a Forma “ Novela ”
no plano do maravilhoso . pode ser aplicada a uma parcela do universo e de cada vez essa
À primeira forma chamamos Novela e classificamo-la entre parcela far-se-á representar como novela . Iremos ainda mais lon-
as formas art ísticas ; à segunda demos o nome de Conto e afir- ge: a nossa liberdade de escolha é t ã o grande que podemos, pela
mamos ser uma Forma Simples . Ou , para usar a terminologia força da imaginação, produzir uma construção literá ria que con -
de Jacob Grimm , diremos que a primeira forma é poesia art ística , substancie , sob essa forma , de maneira autónoma c fora de todo
“ elaboraçã o ” , c a segunda é poesia da Natureza , “ criação espon - e qualquer quadro, semelhante parcela do universo.
tâ nea ”. Se examinarmos em seu todo o domínio do Conto , a í encon -
É claro que n ã o se pode verificar a diferen ça na maneira traremos també m uma infinidade de fatos das mais diversas espé-
como ambas as Formas se nos apresentam na situação histórico- cies , todos eles ligados , ao que parece , por certa maneira de
-literá ria que o Ocidente conhece desde o século XVI. Tal como representar as coisas . Mas desde que se procure aplicar igual-
o Conto , a Novela també m est á ligada aos nomes de autores: mente essa forma ao universo, sente-se que é impossível : n ão
Bocaccio , Sachetti ou Bandello , para a Novela ; Straparola , Basile, é que os fatos tenham de ser forçosamente maravilhosos no Con-
Perrault , Madame d’Aulnoy, Wieland , para o Conto. to, ao passo que n ã o o s ão no universo; trata-se, antes , de que
Tampouco se pode dizer que a diferen ça assente no fato bem os fatos, tal como os encontramos no Conto , só podem ser conce-
estabelecido de que os contos circulam no povo antes de passar bidos no Conto. Numa palavra: pode aplicar-se o universo ao
da tradição popular à literatura , ao passo que as novelas teriam conto e n ão o conto ao universo.
sido livremente imaginadas por seus autores. Com efeito , sabe- Se analisarmos a atividade da novela , vemo-la exercer-se no
mos que noventa por cento das novelas de Bocaccio, para citar universo , dar-lhe sua configuraçã o, fixar uma parte desse uni-
192 193
verso, liga-la de modo tal cjue a parte só recebe da forma sua abertamente o universo e o absorve , o universo conserva , pelo
representação final e absoluta. Ora , se falarmos da atividade do contrá rio , apesar dessa transforma ção, sua mobilidade, sua gene -
conto, veremos que ele trata de compor , primeiro, sua pró pria
fisionomia , antes dc se dispor a refletir o universo nela.
ralidade e
vez — — o que lhe d á a característica de ser novo de cada
sua pluralidade.
Tudo isto pode ser resumido da seguinte maneira: A Novela
e o Conto são iguale ente Formas ; entretanto, as leis formativas Esta proposição é n ão só aplicá vel ao Conto e à Novela
da novela sã o tais que ela pode dar uma fisionomia coerente a mas a todas as Formas Simples e a todas as Formas art ísticas ;
todo o incidente narrado, seja real ou inventado, porque tem c, a tal respeito, poderíamos remeter o leitor para as observações
como caracter ística específica ser impressionante ; as leis de for- que fizemos sobre as relações entre o Caso e a Forma art ística .
mação do conto s ão tais que, sempre que ele é transportado para Comecemos pela linguagem : na Forma art ística , ela esfor-
o universo , este transforma -se de acordo com um princí pio que ça-se a tal ponto por ser só lida , peculiar e ú nica , que é impos-
só rege esta Forma e só é determinante para ela. sível imagin á-la , por fim , a n ão ser como linguagem própria de
um indivíduo bafejado pelo dom excelente de poder alcan çar ,

V
numa obra definitivamente fechada , a coesão suprema —
que apenas “ aqui e assim ” ; acresce que tal linguagem pró pria
ainda
confere a essa obra fechada o cunho sólido, peculiar e único da
personalidade do seu autor. Por outras palavras, a Forma art ís-
O que dizemos aqui a respeito do Conto e da Novela pode tica só pode, enfim , encontrar a sua realizaçã o definitiva mediante
ser generalizado ; com efeito, trata -se da pró pria diferença que a a ção de um poeta , entendendo-se o “ poeta ” , evidentemente,
existe entre Forma Simples e Forma Artística , e é també m a n ã o como a força criadora mas como a força realizadora.
diferença que Jacob Grimm queria assinalar . Quando se aborda
o universo com uma forma para nele intervir , para lhe dar deter- Na Forma Simples, pelo contrá rio , a linguagem permanece
minada configuração, para tornar coerente uma parcela desse uni - fluida , aberta , dotada de mobilidade e de capacidade de reno
va çã o constante. Costuma -se dizer que qualquer um pode con-
-
verso cuja unidade elementar é assinalada por uma característica
comum , Grimm fala de elaboração ; quando, pelo contrá rio, se tar um conto, uma saga ou uma legenda “ com as suas próprias
faz entrar o universo numa forma estabelecida de acordo com palavras ” . Os limites dessas “ próprias palavras ” podem , no
um princí pio que rege e determina exclusivamente essa forma e caso presente , ser extremamente apertados, como se viu no caso
só é determinante para ela , Grimm fala de criação espontânea. da Locu çã o c do Ditado, assim como na Adivinha . A forma
Estamos de acordo com ele quanto à noçã o de uma diferença perderia igualmente sua validade na Legenda , na Saga e no
radical nas leis de formação ; n ão acreditamos, poré m , que a pri- Conto se a modificássemos cu deixássemos de lado aquilo a que
meira forma perten ça ao presente e a segunda ao passado . Se chamamos “ gesto verbal ” . Entretanto, a ideia de contar com
assim fosse , só poderíamos observar uma delas e ter íamos de “ suas pró prias palavras” contém uma certa verdade: n ão se trata ,
limitar- nos a recolher vestígios da outra . Foi essa, ali ás , a con - de qualquer modo, das palavras de um indiv íduo em que a forma
clusão a que o pró prio Grimm chegou . De nossa parte , entre- se realizaria , nem de um indiv íduo que seria a força executora
tanto, pensamos que as duas formas est ão sempre ativas em e daria à forma uma realização í mpar , conferindo-lhe seu cunho
todo lugar e que uma das tarefas primordiais da crí tica é obser- pessoal ; a verdadeira força de execu ção é aqui a linguagem , na
vá- las, quer em suas diferenças como em suas relações m ú tuas. qual a forma recebe realizações sucessivas e sempre renovadas.
Forma art ística ou Forma Simples , poder-se-á sempre falar de
Se levarmos um pouco mais adiante o exame da direçã o “ palavra pró prias” ; nas Formas art ísticas , todavia , trata-se das
tomada pelo Conto e a Novela , verificaremos o seguinte: o impor - palavras pró prias do poeta, que são a execução ú nica e definitiva
tante para a Novela , que encerra uma parcela do universo , é da forma , ao passo que , na Forma Simples, trata-se das palavras
inculcar em todas as coisas, nesse terreno fechado e coeso , uma pró prias da forma, que de cada vez e da mesma maneira se dá
configuração sólida, peculiar e única; no Conto , que enfrenta a si mesma uma nova execuçã o.

194 195
O que acabamos de mostrar a propósito da linguagem pode tiva que se observa , finalmente , na Forma art ística ; sempre que
ser estendido a tudo o que se encontre em ambas as formas : per- envereda por esse caminho , ganha em solidez , peculiaridade e uni -
sonagens , lugares, incidentes. Basta dizer , sem entrar em porme- cidade, mas perde, por conseguinte, grande parte da sua mobili-
nores, que todos esses elementos conservam na Forma Simples dade, generalidade e pluralidade . Já vimos isso quando mencio-
seu car á ter fluido, gen é rico , sempre renovado ; compare-se uma namos as relações existentes entre o Mito e cs mitos. É esse o
princesa de conto com uma princesa de novela e sentir-se-á ime- ponto visado por Arnim quando critica Grimm : “ Jamais acredi-
diatamente a diferença. tarei que os Kindermãrchen foram transcritos tal qual os rece-
Empregamos ami ú de a palavra atualizaçã o, que se aplica por bestes ” . À nossa maneira , a coisa expressa-se assim : toda e qual-
quer atualização se devia da finalidade que a Forma Simples
igual a ambas as formas. De fato , c admiss ível que a mesma se esforç a por alcançar. Grimm respondeu ent ã o: “ Eis-nos che-
parcela do universo seja encerrada por um outro poeta numa for- gados à fidelidade ” e usa a met á fora do ovo que se quebra em
ma art ística . Simplesmente, vê-se que tal obra fechada se empe-
dois ; transposto para a nossa terminologia, isso significa: n ão se
nha de novo em ser sólida , peculiar e ú nica , enquanto que a poupa a atualiza ção, mas esta deve ser tal que remeta sempre, o
atualização de uma Forma Simples se apoia sempre na mobili-
mais diretamente poss í vel , à Forma Simples qua Forma Simples
dade, generalidade e pluralidade da pró pria forma . e se oriente o menos poss ível para a solidez , peculiaridade e a
Com este ú ltimo ponto , somos levados à situação histórico- unicidade da Forma art ística .
-literá ria provocada pelo aparecimento do Conto na literatura oci - Por isso é que Jacob Grimm deixou de ocupar-se do conto,
dental , situação essa que se pode assim descrever : uma corpo- tal como se apresentava na literatura , e foi diretamente ao povo.
ra çã o de poetas e escritores especializados há muitos séculos cm Seria necessá rio um estudo especial para estabelecer até que ponto
Formas art ísticas crê ser seu dever e estar ao alcance de suas os Kinder- und Hausmã rchen são “ fiéis ” e em que medida foram
possibilidades atualizar uma Forma Simples, tal como atualiza influenciados pelos fen ômenos liter á rios do século XVIII. O
suas Formas art ísticas ; uma sé rie de novelistas procura tratar o que é certo , seja qual for a configuraçã o finalmente adotada
Conto como uma novela , “ encerr á- lo ” da mesma maneira , incutir- pelos Kinder - und Hausmãrchen , é que Jacob Grimm descobriu
- Ihe uma configuração sólida , peculiar e ú nica. Haveria todo um o verdadeiro conto como Forma Simples.
estudo a fazer, e da mais alta import â ncia para a teoria literá ria ,
sobre o que pode ocorrer em geral e o que ocorre em particular
sempre que determinada Forma Simples se encontra com uma
Forma art ística ; mas esse estudo, que verificaria o que pode resul-
tar de tais cruzamentos , n ão pode ser levado a cabo neste volume. VI
Podemos apenas dizer aqui que, em tal caso, a Forma Simples
rejeita semelhante espécie de acasalamento, opõe-se a que a mo- Dissemos que o universo transforma -se no Conto de acordo
delem nesse sentido e pretende manter-se ela pró pria . Repugna - com um princí pio que somente rege e determina essa Forma .
-Ihe de tal modo esse encontro, quer ser t ão decididamente ela Chamamos a tal princípio a “disposição mental ” , presente em
pró pria que , apesar de todas as transforma ções e todas as reorga- todas as Formas Simples. Procederemos agora de maneira idê n-
nizações , os espí ritos l ú cidos e capazes de discernir as formas , tica para tentar definir a disposição mental própria do Conto.
como Herder ou Grimm , descobrem a natureza h íbrida e d íspar
dessas misturas , apreendem a Forma Simples como tal e acabam O Conto tem esta peculiaridade: durante o período em que
o vimos opor-se à Novela ou coexistir com ela , seu cará ter de
por destrinçar as diferentes “ vozes do povo ” , a “ poesia da natu -
reza ” ou a “ poesia art ística ”.
narrativa moral foi sublinhado com certa predileção. Não é
necess á rio entrar em detalhes e ser á bastante recordar que Per-
Com isto, chegamos à última parte da polêmica entre Jacob rault deu ao seu livro o t í tulo de Contes du lemps passé avec
Grimm e Arnim . Sempre que uma Forma Simples é atualizada , des Moralit âs [ Contos do Passado com Moralidades ] ; de fato ,
ela avança numa direção que pode levá-la até à fixação defini- cada um dos seus contos rematava com uma “ moral da história ”

196 197
tm verso e, na Introdu çã o , ele pró prio disse: ‘‘Em todos eles a valor : o gato . Este estado de coisas, estes dados iniciais, n ão
virtude c recompensada e o v ício punido. Tendem todos a mos- s ão imorais em si mesmos ; criam , entretanto, um sentimento de
trar a vantagem que existe em sermos honestos , pacientes , refle-
tidos, trabalhadores, obedientes, e o mal que recai sobre todos —
injustiça injustiça que deve ser reparada . Essa satisfaçã o nos
será dada ao longo da narrativa e da seguinte maneira: é justa-
os que n ã o o são . . . Por muito fr ívolas e estranhas que estas mente o gato , a heran ça sem valor, que se torna o ve ículo da
f á bulas sejam em suas aventuras, é certo que estimulam nas reparaçã o e a felicidade do moço desfavorecido acaba por suplan -
crianças o desejo de se assemelharem aos que elas veem tornar-se tar a dos dois irm ãos , quando no começo lhes era inferior . Não
felizes e , ao mesmo tempo, o temor de que lhe ocorram os infor- se trata , é claro, de uma é tica no sentido filosófico do termo ;
t ú nios com que os perversos foram punidos por suas maldades . . . cm nenhum momento nos é dito quem é virtuoso e quem n ã o é,
São estas as sementes que se lançam , que no começo apenas o que é virtuoso e o que n ão é ; nem mesmo nos é dito se
produzem movimentos de alegria c de tristeza mas n ão tardarão o moleiro , que tratou os dois irm ãos mais velhos com maior
muito a frutificar em inclinações para o Bem ” . generosidade que o caçula , é homem ruim ou n ão; no conto, os
Para começar , deparamo-nes aí com uma contradiçã o: se as dois irm ãos n ã o são piores que o terceiro ; tudo o que c conto
histórias sã o frívolas, como poder ã o semear o bom gr ão na alma significa , simplesmente, c que o nosso sentimento de justi ça foi
da juventude? Sc são estranhas ou exóticas, como poderão ser- perturbado por um estado de coisas ou por incidentes, e que
vir de prova a uma regra de vida solidamente estabelecida ? Est á uma cutra sé rie de incidentes e um acontecimento de natureza
claro que, num exame mais atente , observa -se que certas perso- peculiar satisfizeram em seguida esse sentimento, voltando tudo
nagens se tornam felizes ; mas , quanto a ver que a virtude é ao equil í brio. De um modo mais brutal , a mesma situação foi
premiada e o v ício punido , tenho minhas d ú vidas. Examinemos tratada em Aschenbrõdel [ A Cinderela ] , onde uma pobre menina
Der Gestiefelte Kater [ O Gato de Botas ]. Quem nos diz que tem de arrostar a perversidade de uma madrasta e de suas duas
o filho do moleiro é decente , refletido , paciente ou trabalhador ? filhas; mas , uma vez mais, o conto insiste menos sobre a verda-
É obediente, de fatc , pois faz tudo o que o gato lhe ordena . deira ruindade da fam ília do que sobre a injustiça ; e a satisfaçã o
E o gato ? Do começo ao fim , ele mente, engana toda a gente e que se sente no final decorre menos do fato de a jovem receber
obriga as pessoas a mentirem , pela persuasão ou pela amea ça ; a recompensa que merece por seu trabalho, sua paciê ncia e sua
e acaba devorando um bruxo que n ão lhe fizera mal algum ou obediência do que do fato de o acontecimento nos dar o que espe-
muito pouco . E a Bela Adormecida , será assim t ão virtuosa ? ramos e exigimos de um universo justo.
E esse pr í ncipe que sem mais nem menos rouba um beijo à jovem A id éia de que tudo deva passar-se no universo de acordo
adormecida ? Quanto ao Chapeuzinho Vermelho c ao Pequeno com nossa expectativa é fundamental, em nossa opini ã o, para a
Polegar , tampouco os considero heróis imaculados da virtude. forma do conto ; ela é a disposição mental específica do conto.
Reconheça -se, por outro lado , que a malícia do gato ou a frivo- Perrault viu muito bem , como tantos outros , que se trata de
lidade do príncipe n ão dão qualquer ideia de imoralidade . uma disposição moral , mas n ão no sentido de uma é tica filosófica .
As personagens e as aventuras dc Conto n ã o nos propiciam , Se pensarmos com Kant que a é tica responde à pergunta “ Que
pois , a impressão de serem verdadeiramente morais; mas é ine- devo fazer ? ” e que o nosso julgamento é tico inclui , portanto ,
gá vel que nos proporcionam certa satisfação . Por qu ê ? Porque uma determinação axiológica des atos humanos, o conto n ão tem
sausfazem , ao mesmo tempo , o nosso pendor para o maravilhoso lugar a í. Mas podemos admitir que , para alé m dessa é tica , existe
e o nosso amor ao natural c ao verdadeiro mas, sobretudo, por- uma outra que responde à pergunta : “ Como devem as coisas
que as coisas se passam nessas hist ó rias como gostar íamos que acontecer no universo? ” e existe um ju ízo axiológico orientado
acontecessem no universo , como deveriam acontecer. para o acontecimento e n ão para o ajuste de contas\ e verifica -se
ser este o julgamento é tico que a linguagem inculca na forma do
Em Der Gestiefelte Kater h á um filho de moleiro ; h á dois conto.
irm ã os que recebem do moleiro uma heran ça preciosa : o burro Ao invés da é tica filosófica , que é uma é tica de açã o , cha-
e o moinho; ao passo que o moço recebeu apenas um objeto sem marei a esta a ética do acontecimento ou moral ing énua, usando
m m
a palavra ing énuo ( naiv ) na mesma acepçã o em que Schiller nuamente imoral do trágico ; em poucas palavras , deverá existir
falou de uma poesia ingé nua ( naiver Dichtung ) O nosso julga-
> um anticonto . E ele existe , de fato. Tomemos , por exemplo ,
mento de é tica ingé nua é de ordem afetiva ; n ão é est é tico, dado a história do príncipe e da princesa que n ão podem juntar-se
que nos fala categoricamente ; n ão é militarista nem hedonista , porque os separa um rio demasiado profundo , ou a hist ória de
porquanto seu crit é rio n ão é o mil nem o agrad á vel ; é exterior Pí ramo, Tisbé e o leão, e teremos diante de nós a atualização
à religião , visto n ão ser dogm á tico nem depender de um guia clara dessa Forma Simples. Tais histórias correspondem ao uni -
divino ; é um julgamento puramente é tico, quer dizer , absoluto. verso do tr ágico e o curso trágico das coisas nelas se sintetiza
Se partirmos desse julgamento para determinar a Forma do Con- num gesto verbal que é “ um rio demasiado profundo ” ou “ o
to , poderemos dizer que existe no Conto uma forma em que o leão” , gesto verbal que comporta em si mesmo a separa ção e a
acontecimento c o curso das coisas obedecem a uma ordem tal morte. Seria f ácil encontrar grande n ú mero desses anticontos
que satisfazem completamente as exigências da moral ingé nua e ou , se quisermos empregar uma contradictio in adjccto, esses
que, portanto, ser ã o “ bons ” e “ justos” segundo nosso ju ízo senti- “ contos trágicos ”. Tenho a impressão de que eles são muito
mental absoluto. frequentes na Antiguidade c abundam em céltico. Essa forma
n ão foi reconhecida como tal e, por conseguinte , n ão tem nome;
Neste aspecto , o Conto opõe-se radicalmente ao aconteci- com efeito, ela misturou -se em geral às Formas artísticas, na
mento real como é observado de h á bito no universo . É muito época moderna ( como já se vê nos nossos dois exemplos ) e só
raro que o curso das coisas satisfa ça às exigê ncias da moral ingé- a conhecemos em suas atualizações ; por seu lado, a outra forma ,
nua , é muito raro que seja “ justo ” ; logo , o Conto opõe-se ao aquela que resulta da disposição da moral ingé nua e realiza igual-
universo da “ realidade ” . Entretanto , esse universo da realidade mente todo o seu efeito, com sua dupla orientaçã o, rechaçou a
n ã o é aquele onde se reconhece nas coisas um valor essencial forma que agia numa só direção. Quando chegarmos à s Formas
universalmente v á lido ; é, antes, o universo em que o aconteci- artísticas , veremos toda a import â ncia de que se reveste distin -
mento contraria as exigê ncias da moral ingénua , o universo que guirmos també m o conto trágico como Forma Simples.
experimentamos ingenuamente como imoral . Pode-sc dizer que
a disposição mental do Conte exerce a í a sua a çã o em dois sen- A forma do Conto é justamente aquela em que a dispo-
tidos: por uma parte , toma e compreende o universo como uma sição mental em quest ã o se produz com seus deis efeitos: a
realidade que ela recusa e que n ão corresponde à sua é tica do forma em que o trágico é, ao mesmo tempo , proposto e abolido.
acontecimento; por outra parte , prepõe e adota um outro uni - Isto j á se percebe na combinação dos incidentes e dos dados.
verso que satisfaz a todas as exigências da moral ingé nua . O Conto escolhe , de preferê ncia , os estados e os incidentes que
contrariem o nosso sentimento de acontecimento justo ; um moço
Esse universo contr á rio à moralidade ingé nua , esse universo recebe menos em heran ça que seus irm ãos, é menor ou mais
“ real ” e rechaçado , recebe aqui o nome de trá gico, o que n ã o tolo que os que o cercam ; crianças são abandonadas por seus pais
implica , de modo algum , um ju ízo esté tico , mas o julgamento ou maltratadas por uma madrasta ; o noivo é separado da sua
sentimental que nos fala em termos categó ricos e apodí ticos . O verdadeira noiva ; homens ficam sujeitos a espí ritos malfazejos ,
trá gico acontece, de acordo com uma f órmula sucinta mas intei- sã o forçados a executar tarefas sobre- humanas , sofrem perse-
ramente correta , quando o que deve ser n ã o pede ser ou quando gui ção e tê m de fugir ; eis outras tantas injustiças que s ão invaria -
o que n ã o pode ser deve ser . Segundo a nossa f ó rmula , o tr ágico velmente abolidas no decurso dos acontecimentos e cujo desfecho
é a resistência de um universo sentido como contrá rio às exigên- satisfaz nosso sentimento de acontecimento justo. Sev ícias, des-
cias da nossa é tica ingé nua em face do acontecimento. prezo, pecado , arbitrariedades , todas estas coisas só aparecem no
Podemos esperar , agora , que dessa dupla tendência em curso Conto para que possam ser , pouco a pouco , definitivamente elimi-
nesta disposição mental resultem duas formas : a par de uma for - nadas e para que haja um desfecho em concordâ ncia com a moral
ma em que o curso das coisas obedece a uma ordem tal que elas ingé nua . Todas as mocinhas pobres acabam por casar com o
satisfazem inteiramente à s exigê ncias da moral ingénua , devere- prí ncipe que devem desposar , todos os jovens pobres tê m sua
mos encontrar outra forma em que se cristalize o universo inge princesa ; e a morte , que significa , em certo sentido , o auge da

200 201
imoralidade ingé nua , é abolida no Conto: “Sc eles n ão estão “ Que acontece ent ão ao pr í ncipe ? ” mas “ Que fez c príncipe ? ”
mortos , ainda vivem . ” Esta construçã o interna do Conto é que e começar-se-ia a duvidar da necessidade das coisas. N ão é outra
suscitar á a satisfação de que falamos h á pouco: ao ingressar-se a situa çã o daquelas personagens que desempenham papel t ã o
nc universo do Conto , aniquila-se o universo de uma realidade importante que se lhes deve o nome que o Conto recebeu na
tida por imoral. Fran ça e na Inglaterra , por exemplo ; refiro- me à s fadas e tam -
bé m aos monstros, ogres e bruxas que sã o sua contrapartida .
Tal aniquilamento realiza-se em todos os pormenores. Em Todos esses seres sã o o produto bem claro da disposiçã o mental
primeiro lugar, explica o maravilhoso em que os escritores inte- cujas duas direções encarnam . Monstros , espí ritos malignos, ogres
ressados pelo conto j á lhe viam como caracter ística dominante. e bruxas encarnam a direçã o trá gica ; graças aos seus poderes
Quando a realidade , numa disposiçã o mental , é contrá ria à mora -
m ágicos , as boas fadas e tudo o que a elas se associa são o
lidade ingé nua , nenhuma aventura poder á assemelhar-se à reali - meio mais seguro de escapar à realidade. Todos esses seres são
dade, o que d á lugar a um paradoxo que constitui a verdadeira maravilhosos , nenhum deles é , na verdade , um personagem atuan-
base do Conto: nesta / orma , o maravilhoso nã o c maravilhoso , te ; s ão todos os executores do acontecimento é tico que uma
mas natural . O Conto e a Legenda podem ser comparados nesse das duas espécies pode impedir , enquante que a outra o orienta
aspecto. Na Legenda , o prod ígio do milagre era a ú nica confir- na direção do nosso julgamento sentimental . Portanto, o Gato
maçã o poss í vel de uma virtude que se tornou atuante e obje- de Botas n ão est á diante de um ser que n ã o lhe fez mal algum
tivada ; no Conto , o prod ígio do maravilhoso é a ú nica possibi-
lidade que se tem dc estarmos seguros de que deixou de existir — ou só um pouco — e que ele mata mediante um ardil ; é,
antes, o ve ículo necessá rio para que a injustiça seja reparada , o
a imoralidade da realidade. Assim como a Legenda só é com - animal sem valor que permite ao filho pobre do moleiro receber
preensí vel como tal no milagre e este é- lhe elemento necessá rio mais do que aquilo dc que o destino o privara , o vencedor de
e natural , assim também o Conto é incompreens í vel sem o mara - um ser que, por sua natureza , é um obst áculo ao acontecimento
vilhoso. Que os andrajos da Cindercla se convertam em roupas justo e à felicidade; n ã o é a ele que pertencem os tesouros do
opulentas ou que os sete cabritos saiam do ventre do lobo nada m á gico perverso, mas à quele que começara por receber muito
tem de maravilhoso ; é isso o que se espera aconteça e que se pouco.
exige dessa forma ; o que seria maravilhoso, nc contexto dessa
forma e, portanto, despido de sentido , seria que tais coisas n ã o Examinemos , finalmente , o gesto verbal do Conto . Este
acontecessem ; o conto e seu universo peculiar perderiam então a gesto manifesta -se de modo t ão acentuado, o acontecimento orde-
validade. na-sc nele de maneira t ão determinada , que se quis ver nele o
verdadeiro “conte ú do ” do Conto. Os especialistas do Conto
Lima segunda e conhecida propriedade do Cento pode ser t ê m extraordin á ria predileçã o pelo “ motivo ” ( termo que evita-
explicada do mesmo modo. A açã o localiza -se sempre “ num pa ís mos pelas razões antes mencionadas ) e o h á bito de classilicar os
distante, longe , muito longe daqui ”, passa-se “ há muito , muito contos segundo os respectivos “ motivos ” . Chegaram at é a afir-
tempo ” , ou ent ã o o lugar é em toda e nenhuma parte, a é poca mar que o Conto seria , meramente , uma montagem bastante arbi-
sempre e nunca . Quando o Conto adquire os traços da Histó ria
—— o que acontece à s vezes , quando se encontra com a Novela
, perde uma parte de sua força . A localiza çã o histórica e o
tr á ria de motivos dessa ordem e que era possí vel decompô- lo cm
seus motivos para o reconstituir a partir dc outros motivos ;
enfim , que era poss í vel fabricar contos usando cs motivos como
tempo histórico avizinham - no da realidade imoral e quebram o peças de um mosaico . N ã o perderemos nosso tempo discutindo
fasc í nio do maravilhoso natural e imprescindí vel. tais id é ias. O conto é acontecimento, no sentido da moral ing é-
O mesmo ocorre com as personagens , que també m devem nua ; se descartarmos esse acontecimento com o seu princípio
ter essa seguran ç a indeterminada contra a qual se desfaz a reali- trá gico , o progresso no sentido da justiça, os obst áculos trágicos
dade imoral . Se o prí ncipe do Conto tivesse o nome de um e o desfecho é tico , restar á t ão-só um esqueleto despojado de
pr í ncipe da História , ser íamos logo transportados da é tica do sentido, o qual n ão poder á proporcionar-nos satisfa ção moral de
acontecimento para a é tica da ação. Já n ão perguntar íamos , espécie alguma e servir á , no m á ximo , como ve ículo mnemot écnico

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para reconstruir a Forma . Podemos muito bem dizer , em contra -
partida , que esse acontecimento, cuja totalidade constitui a forma
se divide , por sua vez, em unidades indivisíveis , e que tais
unidades, impregnadas e fecundadas pelo todo , sã o apreendidas
como edif ícios verbais. Os gestos verbais da Legenda estavam
impregnados de virtude e de milagre ; os da Saga , de anccstra -
lidade , de parentesco e de tudo o que da í decorre ; os do Conto
est ã o prenhes de trágico e de justiça , 11a acepção da moral ingé- O CHISTE
nua . Nesse sentido, a injustiça tem por f ó rmula : S ê tolo, veste-te
de andrajos ; o tr á gico: Separa numa noite escura um monte dos
cereais tnais diversos, faz uma viagem sem fim , combate um mons- I
tro\ e a justiça : receber um tesouro , esposar um prí ncipe. Mas ,
simultaneamente , semelhante gesto verbal est á sempre impreg-
nado do poder que aniquila a realidade imoral e, de um modo Para a última Forma que nos falta tratar é in ú til indagar
ou de outro , significa sempre o maravilhoso , assim como o se e como ela permanece viva nos tempos atuais: n ão existe época
tempo , o lugar e as personagens . nem lugar , provavelmente , onde o chiste ( Witz ) n ão se encontre
Haverá no Conto um objeto ou um objetivo investido do na existê ncia e na consciê ncia , na vida e na literatura .
poder da Forma ? Uma vez que o Conto se encontra em oposi- Não quero dizer , com isso, que se atribua sempre e em
ção ao acontecimento real que habitualmcnte se observa no uni- todos os lugares o mesmo valor ao chiste , ao dito de espírito.
verso , seu universo próprio est á separado do da realidade de / Em certas é pocas, o chiste ganha formas e gê neros artísticos de
modo muito mais radical que em qualquer outra forma ; logo, n ível mais elevado, ao passo que , em outras é pocas, tem de con -
é bem mais dif ícil encontrar nele objetos que , investidos do tentar-se em ser popular , na acepção mais lata do termo. Mas
poder do Conto, possam representá - lo no universo concebido sempre que o chiste é popular , a sua espécie e a sua maneira
como real ( e , portanto, reprovado ) da mesma maneira que a caracterizam a raça , o povo, o grupo e o tempo donde procede ;
relíquia representa a Legenda e a rum representa a Adivinha . assim é que podemos distinguir o humor americano do humor


inglês, o humor inglês do irland ês e , no que se refere à Alema-
Creio, entretanto , que existe algo de an álogo em certos objetos
que o Conto vai buscar à realidade e cuja configuração modifica nha , o chiste berlinense do de Munique ou ainda o chiste
de acordo com as leis do maravilhoso. A grande abóbora que judeu . Do mesmo modo, é impossível confundir o dito de espí-
Cinderela , no conto de Perrault , vai buscar ao jardim e se con- rito da Antiguidade com o da Idade Média ou o do Renasci-
*

verte num coche , ou cs ratos que ela retira da ratoeira e se mento , e o do caçador com o do criminoso. Talvez seja essa a
transformam em cavalos, ou ainda , em outros contos, a casca de razao pela qual a forma tem tantas denominações e, a par do
noz que , em vez de uma noz , encerra um magn ífico vestido 011 termo geral , conta com tantas subdivisões. Witz é um vocá bulo
uma galinha de ouro com seus pintos — nenhuma destas coisas
c por mim classificada entre cs gestos verbais e prefiro dizer
derivado do alto-alem ão e , alé m de gracejo, piada , chiste, dito
de espí rito, tem ainda outro significado ; mas em baixo-alem ão
que a abó bora , os ratos ou a noz continuam sendo objetos reais , e holandês é grap, de etimologia incerta ; em inglês temos o
embora de tal modo impregnados de maravilhoso e amoldados joket em francês o bon mot , em italiano o scherzo. Contudo,
à s necessidades da moral ingénua que a pró pria realidade deixa o alem ão possui termos específicos para designar as variedades
de reconhecê- lcs como coisa sua . de Witz , como Kalauer , proveniente do francês calembourg ( tro-
Devo confessar , poré m , que n ão encontrei nome para os cadilho ) , Zote, provavelmente derivada do francês sotie ( sá ti-
objetos dessa espécie. ra ) ; em inglês h á o pun, em irlandês o buli e assim por diante.
O chiste é , por conseguinte , a forma que melhor permite enten-
der como, para uma dada disposição mental , uma Forma se

204 205
atualiza de modos diferentes, segundo os povos , as é pocas e os “ compreenderem ” , Mas també m aqui o desenlace vai mais lon-
estilos ,, ge: o que se verifica , em primeiro lugar , é o fato de uma defor-
i O que nos interessa aqui , poré m , n ão é a diferença , mas a ma ção dialetal levar duas pessoas que falam a mesma língua a
f disposição mental em sua totalidade. Começaremos assim por l compreender duas coisas diferentes com os mesmos sons ; em
dizer que o Chiste , onde quer que se encontre , é a forma que segundo lugar , a convicção do vendedor de nas prateleiras da
desata coisas , que desfaz nós . seçã o de jardinagem existir o artigo procurado pelo freguês .
Vamos ilustrá- lo com alguns exemplos. Se começarmos pela Vê-se que um simples chiste j á envolve uma constru ção com -
linguagem , encontraremos a í um modo de gracejar que est á muito plicada . Mas cada elemento dessa constru çã o tende sempre para
difundido e a que se d á o nome de jogo de palavras ( Wortspiel ) . o mesmo fim : desatar os laços , desfazer os nós.
Na medida em que a linguagem é um modo dc comunicar Os recursos de que a linguagem dispõe para desatar sã o
ou de fazer compreender , torna -se evidente, de antem ão , que t ão numerosos quantos os que existem para atar . Cada maneira
qualquer parte dela deve ser compreens í vel . Desde que ela de apreender um conteú do material na linguagem e toda forma
tenha em vista esse resultado, cada forma de linguagem só deve lingu ística dele decorrente possuem seu ant ípoda có mico no chis-
ser empregada , portanto , no seu sentido compreensível . Supo- te. Basta tirar partido do concreto , quando se utilize uma abstra-
nhamos agora que , permanecendo sempre nessa atividade, eu ção , ou retornar ao sentido literal , quando se trate de sentido
empregue uma palavra em outro sentido, ou que , aparentemente, figurado , para que se obtenha esse desenlace espirituoso.
a empregue num determinado sentido quando, na verdade , a O que é poss í vel para a linguagem em si també m se aplica
entendo em outro ou , ainda , que eu substitua uma palavra com - à lógica . Todo o processo intelectual , todas as condições , prin -
preensível por outra que tenha o mesmo som mas outro sentido ; cí pios , leis e normas do pensamento exato podem sofrer um
n ão é a ambiguidade que se obterá ent ão, como vimos no caso desenlace espont â neo. Bastará , para tanto, interromper uma su-
da linguagem especial da Adivinha , mas o duplo sentido , isto é, cessão , substituir um membro por outro , saltar de uma lógica
abole-se a inten çã o de comunicação lingu ística , a inteligibilidade para outra , e obter-se-á um resultado que adquire a forma espiri-
da linguagem desenlaça -se, a ligação entre o locutor e o seu tuosa em virtude do seu cará ter dc contra -senso, de contradi ção,
ouvinte é momentaneamente desfeita . Esse desenlace é precisa- de imprevisto.
mente c que o jogo de palavras pretende alcan çar .
Um grego sonha ter passado a noite com uma célebre cor-
Por ocasi ão de uma epidemia , pediram a um francês que tesã e vai contar seu sonho na praça pú blica. A cortesã ouve-o
fizesse um jogo de palavras e e ele respondeu : “ Je ne fais pas e exige ser paga . O caso chega à justiça . O juiz ordena ao
I ttn jeu de mauxSubstituindo mots% “ palavras ” , por maux, um
hom ónimo de sentido diferente , ele aboliu uma condição neces-
homem que coloque o dinheiro sobre uma mesa , manda vir um
espelho e autoriza a cortesã a apanhar o reflexo do dinheiro em
sá ria a toda c qualquer conversaçã o: que a pergunta e a resposta pagamento dos prazeres imaginados em sonho. Esta lógica possui
se refiram , necessariamente, à mesma realidade fatual . E assim o seu equivalente na histó ria do viajante que trouxe do Egito
ocorreu o duplo sentido. Mas ele fez ainda mais: ao assinalar um mangusto empalhado para exterminar as serpentes que seu
ao seu interlocutor que n ão se deve brincar com coisas sé rias , irm ã o de Berlim acreditava ver durante suas crises de delirium
desenvolveu numa frase todo o conceito do jeu de mots, o jogo tremtns. “ Mas isso n ã o é um mangusto de verdade! ” objetaram .
de palavras.
Um alem ão do norte entra num grande armazé m saxô nio,
“ Exato,— respondeu o nosso homem ,
bé m n ão são” .
— mas as serpentes tam-
num dia de inverno em que fazia muito frio , e pede ao vendedor O mesmo se passa no terreno da ética . Vejamos a história
um gorro de l ã ( Ohrwdrmer ) ; após um instante de reflexão, moralista que todos conhecem : Um homem est á sentado sob um
o vendedor ( que entendera Wiirmer, verme da terra ) respondeu : frondoso carvalho e reflete profundamente sobre esta pergunta :
“ Seção de Jardinagem ” . Trata-se novamente do duplo sentido ,
Por que o carvalho d á frutos t ão min úsculos , ao passo que as
provocado pelo fato de o saxônio e o alem ã o do norte n ã o se grandes e belas abó boras de minha horta crescem em pés tã o
206 207
mesquinhos ? E conclui que a natureza e a criação n ão sabem as Formas Simples e veríamos que o dito de espí rito pode sempre
o que fazem . Mas, nesse instante , cai-lhe uma bolota na cabeça ; desfazê-las.
faz-se luz em sua mente, as d úvidas e reflexões dissipam-se e
o homem regozija -se com o fato de n ã o crescerem abóboras nos O chiste cncontra -se em todos os dom í nios, com seus exa -
carvalhos. Em minha opini ão, esta hist ória possui , inegavelmente , geros para cima e para baixo, suas transposições , sua capacidade
um aspecto sé rio ; mas també m é indiscut ível que se vislumbra de inverter o sentido das coisas. Os processos que emprega são
nela algumas falhas , algo que destoa do conjunto. E é motivo in ú meros porque , repita -se , s ão t ão numerosos quanto os recur-
de satisfação ver o aspecto zombeteiro apossar-se da história a sos que a linguagem , a lógica , a é tica ou as Formas Simples empre -
partir de suas falhas, utilizando o que destoa para aniquilar o gam para atingir seus objetivos e dar às coisas uma ligação coe -
elemento é tico do episódio ou a satisfaçã o moral que nos poderia rente. Todas as ligações que elas pretendem estabelecer podem
proporcionar. Eis, de fato, como o chiste se apresenta : Numa ser desfeitas, em certas condições e em certos pontos, e adotar a
bela tarde de verão, um padre passeia pelo campo , de cabeça forma do Chiste.
descoberta , absorvido em meditações devotas sobre as maravilhas
da criação. Nisto um pardal suja-lhe a careca . O padre junta as
m ãos e ergue-as ao cé u , dizendo : “ Rendo- te graças , Senhor , por
n ã o teres dado asas às vacas ” . Aqui , todos os laços são desa-
tados. As d ú vidas de um coração profano sã o substitu ídas pelas II


certezas de uma alma sacerdotal. Em vez de dois frutos compa-
rá veis a bolota e a abó bora
sível comparação — — temos dois animais de impos-
a vaca e o pardal . O chiste recorre igual-
À disposição mental que gera o Chiste d á-se habitualmente
um nome derivado do grego : o cómico. Farei aqui a mesma
mente à inconveniência ; se o absurdo significa que a lógica filo -
sófica é desfeita , a inconveniê ncia significa o desenlace das regras
coisa , mas com uma restriçã o: existe um est é tica filosófica decor-
rente, primordialmentc, de Formas art ísticas e que sc interessou
prescritas pela moral prá tica , pelos bons costumes e pelas conve- tanto pelo conceito de tr á gico como pelo de có mico ; chegou ,
ni ê ncias sociais. assim , a certos resultados e a certas definições , e proclamou até
Se desenvolvermos esta an á lise , observaremos que o chiste que o có mico é “ um valor estranho à Est é tica ” . Em relação a
não desfaz apenas os nós da linguagem , da lógica , da ética e das esses trabalhos, a nossa tarefa é e continuará a ser morfológica ;
coisas semelhantes , mas també m tudo aquilo a que chamamos, mantivemo- nos constantemente distanciados da Est é tica e pre -
ao longo deste livro, Forma Simples . Vejamos esta adivinha : tendemos manter aqui esse distanciamento ; n ão nos interessam
“ Debaixo de uma ameixeira vê -se algo azul com um caroço den - as relações que possam ter na Esté tica ou nas Formas art ísticas
o cómico e o trágico, o sublime , o característico ou o belo.

^
tro. O que é? ” Se nos responderem “ Uma ameixa ” dizemos :
Entendemos aqui o cómico da mesma maneira que entendemos o
“ É um marinheiro todo de azul que engoliu um caroço ” ; mas trágico no Conto, isto é , como uma disposição mental de que
se o interlocutor conhece a solu ção do marinheiro , responderemos: resulta uma Forma Simples /
“ Nada disso, é apenas uma ameixa ”. Desfazemos desse modo a
forma Adivinha , a qual assenta no fato de que uma adivinha Se, entretanto, empregamos a palavra cómico para designar
pode ser adivinha , o que deixou de acontecer no caso. Se tudo o que apreciamos até agora , trata -se já de algo negativo ,
transformarmos a locu çã o “ Aprende a sofrer sem gemer ” em segundo nos parece. Rcfcrimo- nos constantemente a n ós que se
“ Aprende a gemer sem sofrer ” , desfaz-se a experi ê ncia que se desfazem ; vimos existir uma linguagem , uma l ógica , uma é tica ,
uma Forma Simples que se desfaz. J á n ão é como no Conto ,
cristalizou nessa locu ção. E na histó ria da Palha , da Brasa e da
onde um universo tido por imoral era recriado para ser depois
Fava , em que o universo era abordado com uma pseudoquest ão, destru ído em seu plano trágico ; era preciso ainda que existisse
vimos que a forma do Mito se desenlaçava e corria o perigo de algo , que houvesse alguma coisa para ser em seguida arrebatada
transformar-se em gracejo. Poderíamos passar cm revista todas e desfeita pelo Chiste.
208 20 )
destoasse, que contivesse em si o começo ou o n ú cleo de um
Põe-se ent ã o a quest ão de saber se e em que medida essa desenlace, e a que chamaremos uma insuficiência, condição neces-
mentalidade que desfaz será capaz de criar uma nova Forma ou , sá ria para que se possa desfazer , pelo cómico , o objeto repreen-
ainda , se e em que medida o que é desfeito permanece idê ntico sí vel ou toda e qualquer construçã o ; portanto , a insuficiê ncia
a si mesmo , apesar dessa abdicação. Quest ã o que pode ser desse objeto e dessa constru çã o. Acrescente-se ainda que as noções
formulada de outra maneira : O cómico constituirá , à semelhança de repreensível e de insuficiência não se confundem necessaria -
das outras Formas Simples , um universo fechado que lhe é mente , ainda que possam muito bem confundir-se em algumas
pró prio , ou limitar-se- á a fornecer o avesso de um outro universo ocasiões, de modo tal que a insuficiê ncia acabe por satisfazer às
desfeito por essa inversão ? necessidades de um desenlace có mico.
Alguns exemplos elucidar ão o significado morfológico da Na medida em que se esforce por desfazer o repreensí vel a
questão; recorde-se o que dissemos na introdução a respeito de partir de sua insuficiência , ou a insuficiê ncia a partir dela mesma ,
criação e de elaboraçã o. o chiste recebe o nome de zombaria .
Eis um recipiente que n ão tem fundo ; portanto , n ão satis-
faz ao conceito de recipiente nem , como objeto, ao que se exige
de um recipiente. Entretanto, é ó bvio que n ão deixa de ser um
recipiente quanto à Forma. Poder íamos chamar- lhe um “ recipiente
precedido do sinal menos ” . Ainda que se conclu ísse ser possí vel III
utilizar tal recipiente sem fundo, por exemplo , para quebrar a
cabeça de um inimigo , e ainda que , nesse estado particular , lhe Segundo a dist â ncia seja maior ou menor entre o objeto
fosse dada semelhante finalidade , como a dc um canecao bá varo , repreens ível desfeito pela zombaria e o zombador que o desfaz ,
seria preciso dizer que o recipiente continuava a ser um reci- distinguimos entre duas formas , a saber , a sátira e a ironia.
piente , embora tivesse servido de arma . Tomemos , em contra- A sá tira é uma zombaria dirigida ao objeto que se repreende
partida , uma tripa de gato ou de carneiro, preparemo- la e esti - ou se reprova e que nos é estranho. Recusamo- nos a ter algo
quemo- la num arco para arremessar flechas ou , numa caixa de cm comum com o objeto dessa reprovação ; opomo- nos a ele rude-
mente e , por conseguinte , desfazemo- lo sem simpatia nem com-
resson â ncia , para emitir sons ; neste caso , j á n ã o se pode ligar
a tripa assim transformada à noção ou ao objeto ‘ tripa ” ; ela con- paixão.
verteu-se em corda e é impossível conceber a corda como uma
tripa precedida do sinal menos. A ironia , por sua vez , troça do que repreende , mas sem opor-
- , manifestando antes simpatia
se - lhe , compreensão e espírito de
Em relação ao cómico , a nossa questã o pode, de momento, participação. Por isso é que ela se caracteriza pelo sentido de
ser formulada da seguinte maneira : aquilo que o desenlace trans- O comum com o objeto de sua
forma em Chiste é um recipiente sem fundo ou uma corda ? E solidariedade. trocista tem cm
troça o fato dc ser afetado por aquilo dc que zomba ; ele pró prio
'
l ainda: o que se torna cómico é a coisa precedida do sinal nega-
uivo ou uma outra coisa criada pelo có mico ?
o conhece , mas reconhecendo a sua insuficiê ncia , e mostra -o a
quem n ão parece conhecê-lo. É essa a razão por que a solida -
Para poder chegar a uma decis ão, devemos falar primeiro da riedade tem aqui significado mais profundo. Sente-se, na ironia ,
intenção do cómico c do chiste. um pouco da intimidade e da familiaridade entre o superior e o
Como temos no Chiste um meio de desenlaçar as coisas , é inferior. É justamente nessa solidariedade que reside o imenso
óbvio que nos empenhamos em empregar esse recurso sempre valor pedagógico da ironia.
que deparamos algo que é lamentado, condenado , reprovado ou , A s á tira destró i , a ironia ensina .
para empregar um termo gen é rico, algo repreensível . Contudo, o Como, entretanto, tem-se consciência de conhecer o objeto
Chiste n ã o sabe transformar ou desenlaçar tudo o que seja repre- de que se zomba e de scr-se , em parte , formado por ele , é possí-
ens ível . Vimos , na hist ó ria do padre e no jogo de palavras “ mot- vel , na ironia , ligar ao có mico todos os matizes que v ão da melan -
-maux ” , que tinha de haver no objeto a desenlaçar algo que
211
2W
colia ao sofrimento e à dor . O azedume da sá tira visa o seu que tenha o propósito de descarregar uma tensão , o cómico n ão
objeto; o azedume da ironia resume-se em encontrar em n ós o se opõe ao repreensí vel ou ao insuficiente, mas ao severo, ao
que censuramos em outrem . austero . E o que é a severidade, a austeridade , sen ã o uma rigi-
Por outro lado, a afinidade entre o zombador e o objeto dc dez, uma firmeza , algo extremamente rigoroso ? Sublinhe-se que
sua zombaria pode lev á - los a uma identificação m ú tua cada vez o adjetivo alem ão streng [ severo , r ígido ] tem a mesma raiz do
maior . Como a ironia a si mesma se atinge e se desenlaça , acon - substantivo Strang [ corda ] e do verbo ( sich ) anstrengen [ fazer
tece que ela també m se satisfaz consigo ou se consolida em si . um esforço , ficar tenso ] ; é uma fam ília etimol ógica que compre-
’ As espiriais e sinuosidades da ironia são , pois, um dos á pices ende, além de outras , a palavra latina stringo , a palavra grega
que a Forma do cómico pode atingir. Temos um exemplo desses
(JTpaYy á
Xri [ ca palavra portuguesa “ estrangular ” , por exem-
caminhos sedutores, mas penosos para quem os quer percorrer plo ] Podemos deduzir o significado de todos estes vocá bulos
*

na primeira parte , no Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão; da corda que se torce e que se distende , ganhando em resistê ncia
a segunda parte , muito menos profunda , d á- nos um bom exemplo e rigidez . O rigor n ão é repreensí vel nem insuficiente per se\
de sá tira . pelo contrá rio, como já dissemos, é at é uma das condições neces-
s á rias à vida e ao pensamento. Entretanto, cumpre que possamos
O uso comum confunde ami ú de sá tira e ironia . Isso nada abolir a severidade ou livrarmo-nos dela , nem que seja para poder
tem dc surpreendente , pois algumas obras- primas art ísticas prin - us á-la onde fizer mais falta. Certos escritores do Renascimento
cipiam como sá tira para acabar na ironia ; depois de julgar-se pri- que se interessaram pelo gracejo e a facécia falam - nos , a esse
meiro diante do objetivo de sua zombaria , depois de ter alimen - respeito, de relaxatio animi , de relaxamento do espírito. De
tado a esperan ça de o desfazer sem compaix ão , o poeta acaba por fato , o gracejo fornece ao esp í rito um meio de libcrtar-sc momen -
perceber até que ponto est á pró ximo do objeto de sua zombaria , taneamente de si mesmo , quando o deseje.
até que ponto com seus golpes se atinge a si mesmo . Pense-se
em Cervantes e no Don Quixote. Em outras obras de arte , Na medida em que o cómico e o chiste pretendam desanu -
as duas formas est ã o em vizinhança constante e tem-se a impres- viar uma tensão na vida e no pensamento , libertar o espí rito, já
s ã o de que o desenlace da ironia e o da sá tira se perseguem n ão se lhes pode dar o nome de zombaria e é preferível falar de
muLuamentc ; penso em Ariosto , cm Rabclais c em tantos dos gracejo. O gracejo substitui a zombaria quando o cómico j á n ão
grandes rom â nticos alem ães. se refere a um caso particular , mas a um estado geral. A razão
Esses autores levam - nos, poré m , para fora do domí nio das fundamental dessa substitui ção é que o aspecto negativo — por
Formas Simples da literatura e fazem - nos ingressar no das For-
mas artísticas , o que n ão est á em nossa intenção .
n ós inicialmente associado á zombaria — deixa de existir no
gracejo. Ora , a libertação do espí rito provocada pelo relaxamento
Foi - nos permitido observar, pelo menos , que a ironia , que ou pela supressão de uma tensão , de modo nenhum significa
produz a zombaria partindo dos elementos que o zombador tem negar um estado de tensão ou de aprisionamento; significa , antes,
em comum com o objeto insuficiente, aponta - nos uma outra dire- a liberdade em sentido positivo . Sentimos até que ponto a liber-
çao. Vê-se agora que a intenção do chiste ou do có mico pode tação pode assinalar uma liberdade toda vez que o có mico nos
ser mais profunda que o simples desenlace daquilo que se repre- livra das tensões mais rigorosas da fadiga ou do dilema .
ende ou reprova ; e que essa Forma nem sempre significa uma Separadas as duas intenções do cómico, a de zombaria e a
simples zombaria . de gracejo , devemos acrescentar de imediato que a forma do
A vida c o pensamento desenrolam-se numa tensão constan - Chiste significa uma unidade dualista em que se incluem , simul-
te. Tensão que est á dentro de n ós e fora de nós . Cada vez taneamente , a comunicaçã o e a reuni ão . Cada chiste , sem exce-
que essa tensão e conten ção ameaçam converter-se em hiperten - çã o , efetua ao mesmo tempo uma dupla tarefa : desfaz um edif ício
s ão , procuramos diminu í- la , descarregá - la . Um dos meios
vezes o ú nico , freqiientemente o melhor — dc passar da tensã o
— às insuficiente e desafoga uma tensão. Mesmo quando um chiste
tenha a finalidade de desfazer uma realidade repreensível nun
à distin çã o, ao relaxamento, ainda é o chiste . Na medida em caso individual, a consequê ncia disso é libertar- nos de uma ten

212 213
colia ao sofrimento e à dor . O azedume da sá tira visa o seu que tenha o propósito de descarregar uma t ç nsao 0 cómico n ão
objeto ; o azedume da ironia resume-se em encontrar em n ós o se opõe ao repreens ível ou ao insuficiente > mas ao sever0 ao |

que censuramos em outrem . austero. E o que é a severidade , a austericlacje sen ão uma rigi-
Por outro lado , a afinidade entre o zombador e o objeto de dez , uma firmeza , algo extremamente rigoro ^0 p Sublinhe-se que
o adjetivo alem ão streng [ severo , r ígido ] t ^ m a mcsma rajz do
sua zombaria pode lev á -los a uma identificação m ú tua cada vez ,
maior. Como a ironia a si mesma se atinge e se desenlaça , acon -
substantivo Strang [ corda ] e do verbo ( í/C/ ) anstrengen [ fazer
um esforço, ficar tenso ] ; é uma fam í lia etirrj0|ógica que compre-
tece que ela també m se satisfaz consigo ou se consolida em si.
As espiriais e sinuosidades da ironia sã o, pois , um dos á pices
ende , alé m de outras , a palavra latina strij1gQ a palavra grega _
crTparr á Vr] [ e a palavra portuguesa “ estranguiar
^ por exem
«

que a Forma do có mico pode atingir . Temos um exemplo desses -


pio ] Podemos deduzir o significado de t0( jos cstes vocá bulos
caminhos sedutores, mas penosos para quem os quer percorrer da corda que se torce e que se distende , ganhando em resistência
na primeira parte , no Elogio da Loucura , de Erasmo de Roterd ão; c rigidez. O rigor n ã o é repreens ível nem insuficiente per se\
a segunda parte, muito menos profunda , d á - nos um bom exemplo pelo contrá rio, como já dissemos , é até uma jas condições neces-
de sá tira . sá rias à vida e ao pensamento. Entretanto, çumpre que possamos
O uso comum confunde ami ú de sá tira e ironia. Isso nada abolir a severidade ou livrarmo- nos dela , ner qUC seja para poder
^
tem de surpreendente , pois algumas obras- primas art ísticas prin - usá-la onde fizer mais falta. Certos escritorcs j0 Renascimento
cipiam como sá tira para acabar na ironia ; depois de julgar-se pri- que se interessaram pelo gracejo c a facé a fa|am.nos , a esse
meiro diante do objetivo de sua zombaria , depois de ter alimen- ^
respeito , de relaxatio animi, de relaxamento do espí rito. De
tado a esperança de o desfazer sem compaix ão, o poeta acaba por fato , o gracejo fornece ao espí rito um meio < je |jbertar-se momen -
perceber até que ponto est á próximo do objeto de sua zombaria , taneamente de si mesmo, quando o deseje.
até que ponto com seus golpes se atinge a si mesmo . Pense-se Na medida em que o cómico e o chiste pretendam desanu -
em Cervantes e no Don Quixote. Em outras obras de arte , tensão na vida c no pensamento, libertar o espírito , já
viar uma
as duas formas estão em vizinhan ça constante e tem-se a impres-
pode dar o nome de zombaria ç prefer í vel falar de
são de que o desenlace da ironia e o da sá tira se perseguem
mutuamente; penso em Ariosto, em Rabclais e em tantos dos
n ã o se lhes
^
gracejo. O gracejo substitui a zombaria quanj0 0 cô mico já n ã o
grandes rom â nticos alem ães . se refere a um caso particular , mas a um e$ tac|0 geral . A razao
Esses autores levam - nos, poré m , para fora do domínio das
Formas Simples da literatura e fazem - nos ingressar no das For-
mas artísticas, o que n ã o est á em nossa intenção.
nós inicialmente associado à zombaria
gracejo. Ora , a libertaçã o do espí rito

fundamental dessa substituição é que o aspecto negativo — por

provoCacja
Jcixa Je existir no
pe]Q relaxamento
ou pela supress o ã de uma tensã o , de mojQ nenhum significa
Foi - nos permitido observar , pelo menos , que a ironia , que negar um estado de tens ã o ou de aprisionan ) ento ; sigriifica > antes ,
produz a zombaria partindo dos elementos que o zombador tem sentido positivo . Sentimos que p0nto a liber-
a liberdade em
cm comum com o objeto insuficiente , aponta-nos uma outra dire-
çao. Vê-se agora que a intenção do chiste ou do cô mico pode ta çã o pode assinalar uma liberdade toda vez que 0 có mico nos

ser mais profunda que o simples desenlace daquilo que se repre- livra das tensões mais rigorosas da fadiga ou j0 dilema.
ende ou reprova ; e que essa Forma nem sempre significa uma Separadas as duas intenções do cô mic0 a jc zombaria e a
simples zombaria . de gracejo , devemos acrescentar de imediato qUC a forrna do
A vida c o pensamento desenrolam -se numa tensão constan - Chiste significa uma unidade dualista em qUe se inclUemf simul-
te. Tensão que est á dentro de n ós e fora de n ós. Cada vez taneamente , a comunicaçã o e a reuni ão. (;aja c]-, iste , sem exce-
que essa tensão e contenção ameaçam converter-se em hiperten - ção , efetua ao mesmo tempo uma dupla tarçfa ; Jesfaz um edif ício
s ão , procuramos diminu í-la , descarregá- la . Um dos meios — insuficiente e desafoga uma tens ão. Mes 0 quando um chiste
^

às
vezes o ú nico , freqiientemente o melhor de passar da tens ã o tenha a finalidade de desfazer uma realicla( je repreensível nun
à distin çã o , ao relaxamento , ainda é o chiste. Na medida em caso individual , a consequê ncia disso é libertar-nos de uma ten

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são geral . A sá tira mais mordente c a ironia mais amarga con - outra forma , mudado seu sinal , ser á també m , ao mesmo tempo
tinuam desempenhando essas duas tarefas ; por muito graves que e sempre , uma forma que cria de maneira autónoma , em virtude
sejam as feridas ou a afronta que se inflige a um inimigo ( na da sua dupla fun ção.
sá tira ) ou a si mesmo ( na ironia ) , ambas liberam o espí rito , por
outro lado , de uma tensão interior. E , inversamente: mesmo Esse fenômeno é observado de modo particularmente claro
quando se tem a intençã o primordial de desfazer uma tensão pelo nos chistes espont â neos que s ão produzidos por personagens e
cómico , o chiste mais inocente parte sempre de um objeto e de figuras aut ó nomas , de contornos bem definidos, a partir dos de-
um caso particular cuja insuficiê ncia se desata. feitos e fraquezas de certos meios ou de um tipo de homem
Pode-se dizer , sem receio , que o centro de gravidade de determinado ; penso nos chistes dedicados ao caçador , ao janota ,
cada Chiste oscila mais ou menos para um lado ou para outro. à cozinheira , ao sargento, ao boa -vida , ao pr í ncipe de opereta ,
ao novo- rico , ao avarento , ao ébrio, ao mestre-escola , ao calouro
Mas caso falte uma das duas inten ções do có mico, o humor perde etc. e a que as modernas revistas humorísticas são t ã o afeiçoadas
sua forma . Perde sua mordacidade ou redunda em insulto . quanto as farsas do passado. A sua comicidade nasce manifes-
Com tudo isto em vista , poderemos reverter agora à nossa tamente da zombaria . Partindo de uma insuficiê ncia , trata de
questão : Terá o cómico um universo pró prio ? Que faz o Chiste desfazer o elemento mais ou menos repreens í vel que se prende
daquilo que desfaz ? Quais s ã o as rela ções entre a primeira forma a cada uma das personagens. Mas tal comicidade é , ao mesmo
e a segunda ? tempo, gracejo e, neste aspecto, consegue transformar c at é resu -
mir as mesmas personagens em formas elementares acentuada -
mente individualizadas . Zombava -se do caçador , o gracejo fez
dele o Bar ã o dc Munchhausen ; as insuficiê ncias do pr í ncipe de
IV opereta proporcionaram ao espí rito que se distende os contornos
bem delineados do Serenissimus; enfim , Madame Sans-Gê ne con-
Se partirmos do conceito de zombaria , poder-se-á ficar com sola-nos dos defeitos que nos irritam nos novos ricos.
a impressão dc que o chiste se contenta em restituir o que repre- Essas individualidades novas, divertidas e inteiramente aut ó-
ende, mudando simplesmente de sinal . Certas formas de zom- nomas tê m tamanha força que s ão capazes de atrair para elas
baria — penso na paródia — oferecem uma certa semelhan ça com
a imitação. Elas repetem aquilo de que zombam , mas subli-
todas as zombarias e todos os chistes que tiveram , no passado ,
a mesma inten ção e apontaram na mesma direção, referindo-se-
nhando, pelo có mico , o que continha os germes de um desen - -lhes todos de uma nova maneira. Converteram-se, pois, cm pólos
lace ; repetem - no de uma maneira que o desfaz como um todo. magné ticos , at é que uma nova é poca os desfaça c substitua .
Havia repeti ção no gracejo do francês , no juiz grego , no padre Cada chiste faz a mesma coisa em menor escala: começa
e , se buscarmos em outras direções , n ão será dif ícil fazer piadas por desfazer o que é repreensí vel ; parte , pois , do negativo , para
an á logas. Assim , na medida cm que o Chiste desate um caso tornar-se em seguida aquilo que , por sua vez , ata todos os fios ,
individual na linguagem , na l ógica , na é tica ou em qualquer outro graças à liberdade concedida ao nosso espí rito para o desenlace
lado , partindo de uma insufici ê ncia ; na medida cm que se man - de uma tensão, e cria , finalmente , um universo positivo que lhe
tenha nos limites da zombaria , podcmo- lo definir como uma repe- é próprio. Esse universo do Chiste só pode ser entendido como
tição com mudan ça de sinal . um todo na unidade dualista da zombaria e do gracejo . Para
Também vimos , todavia , que o Chiste acarreta um outro defini-lo, uma vez mais, diremos que o universo do cómico é um
efeito ; que alé m da sua inten ção particular existe uma intenção universo em que todas as coisas se atamt ao desfazerem- se ou ao
geral — a de libertar o esp í rito pela descarga de uma tensão.
E ainda que a liberdade de esp í rito n ão seja a negação do seu
desatarem-se.
A comparação com o recipiente sem fundo n ã o foi boa ; mas
aprisionamento , mas um estado intrinsecamente positivo; ainda a da tripa e da corda seria melhor ? Talvez possamos juntar- lhes
que o Chiste n ã o seja apenas uma forma de repetiçã o de uma uma terceira . Existem subst â ncias cuja composição é tal que

214 215
sofrem transformações qu í micas e, por um processo de fermen-
tação extremamente complexo, assumem uma forma que lhes
muda por completo o efeito ; assim é que o suco de uva , o leite,
o mel , o arroz ou as batatas d ão origem , pela fermenta çã o, a
subst â ncias que excitam e embriagam ; do mesmo modo , vemos
a fermentação de subst â ncias espirituosas no cómico criar elemen -
tos novos e uma Forma nova que se apresenta com sua natureza
própria e uma nova fun ção. PERSPECT1 VAS
Existem objetos que efetuam um desenlace no sentido da
disposiçã o mental própria do Chiste e que , investidos dessa dis-
posição, consubstanciam -lhe a forma como objeto . Quando Hauff Eis , pois , diante de n ós, todas aquelas Formas que , como
introduziu um macaco vestido de homem numa sociedade huma- dissemos no começo deste livro, encontram-se “ num estado de
na, desfez de maneira literá ria e numa direção determinada a agregação diferente ” do da literatura propriamente dita ; Formas
“ humanidade ” dessa sociedade. Mas um macaco real n ão faz
que n ão sã o abrangidas pelas disciplinas que descrevem a cons-
a mesma coisa quando, sob o chicote do seu domesticador , se tru ção de uma obra desde as unidades e as articulações lingu ís-
apresenta vestido, bebe por um copo , come num prato , pedala ,
ticas até à composi ção art ística definitiva ; e que est ão enraizadas
fuma , em resumo, realiza gestos humanos sob os olhares atónitos
da multid ã o de papalvos ? E o retrato do ancestral aristocr á tico
que o novo- rico pendura na sala , no meio de um amontoado de
t ão profundamente na linguagem
importanLe insistir — — um ponto em que nos parece
que chegam , aparentemente , a repugnar
també m a essa eterna consciê ncia da l í ngua que é a escrita .
estilos e de épocas, n ã o é a ilustra ção que desenlaça toda a ati-
tude do arrivista e do novo- rico ? Vimos que todas essas Formas se realizam tanto na vida
como na l í ngua e sã o percebidas quer no plano da existência
Chamarei caricaturas a esses objetos em que o desenlace se quer no da consci ência ;
faz num ú nico ponto . A caricatura designa , habitualmente , um
retrato que ataca um car á ter mediante uma reprodu çã o jocosa vimos que é sempre poss ível deduzi-las de uma determinada
( caricato ) , sublinhando c exagerando certos traços ( carica ) para disposiçã o mental;
tentar deslindar a compleição f ísica e mental do visado. No Chis- vimos que é poss ível conhecê-las como Puras Formas Sim-
te , h á um objeto que ataca da mesma maneira um car á ter , uma ples e como Formas Simples atualizadas, das quais uma Forma
compleiçã o, uma situaçã o ; investido da disposição mental própria Relativa acabará por dcstacar-se ;
do Chiste , caricatura-os e desintegra -os . vimos, finalmente, que cada Forma Simples pode transmitir
seu poder a um objeto e que esse objeto c ent ão investido do
poder de sua Forma .
Talvez pudéssemos ter apresentado tudo isso de modo mais
sistem á tico , destacado mais nitidamente os elementos comuns a
todas as Formas Simples e sua conjunção interna . Mas prefe-
rimos destacá -las uma a uma de si mesmas, por assim dizer ;
deixar cada uma dessas Formas em seu universo próprio, e só
assinalar as características gerais que as vinculam entre si quando
falam de si mesmas, no decorrer de cada estudo de pormenor.
Num trabalho de an á lise , o perigo consiste em ser levado a uma
avaliação falsa das relações existentes entre os termos e a sua
totalidade. Realizado o trabalho anal í tico, é fatal encontrarmo-
216 217
- nos sempre diante dos escombros da nossa “ bela imagem
verso”. Entretanto, se escolhemos este caminho foi porquedo uni - no sentido pró prio ; antes de poder entender uma disposiçã o em
t ínha- sua universalidade, o que é o sentido e a essê ncia da sua forma
mos de lutar contra as negligê ncias de um uso que
os dicion á rios o demonstram
— —
como
j á mã o conseguia estabelecer dis-
tinções rigorosas entre palavras de significados
—— apesar da diferença , em geral , das atualizações de que se parte
, cumpre , antes de mais , ampliar consideravelmente o â mbito
preciso lutar contra um tipo de pensamento em que
diferentes ; era dc nossas observações no tempo e no espaço.
os conceitos
tinham começado a empalidecer e a definhar. A primeira Nã o duvidamos das dificuldades que nos esperam nessa oca-
pensamos n ós , era separar e delimitar ; quanto tarefa , sião; ela reside na diversidade do cará ter das atualizações que
a compor de
acordo com um esquema devidamente ponderado, acabamos de mencionar -
esta era apenas
uma preocupação posterior . Para chegar a descobrir e a distinguir cada forma , era pre-
A nossa tarefa seguinte seria , pois, comparar ciso passar primeiro pela Forma atualizada . Começamos por
Simples entre si , num sentido mais profundo , o que as Formas encontrar a Forma em sua atualização ; da í chegamos à Forma
exige nume- Simples como tal ; foi nessa íorrna que apreendemos a disposição
rosas condições.
mental . Jacob Grimm tinha provado que isso era possí vel ;
Assinalei frequentemente , no decurso destes ensaios enquanto que toda a sua é poca se tornara incapaz de conhecer
seria preciso atentar para numerosos pontos de , que
e aprofundar os exames de pormenor . Teria
desenvolvimento a Forma Simples do Conto nas suas atualizações, que se tinham
podido fazê-lo mais distanciado da forma bá sica e vinculado a Formas art ísticas ,
ami úde e , sem d ú vida , deveria t ê- lo feito , Em trabalho Grimm destacou com firmeza essa “ produ ção espont â nea ” que é
o nosso , sente-se a cada instante o que falta
s como
; as lacunas e carê n - específica da Forma Simples. Procuramos seguir o seu exemplo,
cias mostram -se a cada passo c, quando se toma uma mas não se deve esquecer que a “ descoberta do conto” também
desta ou daquela parte , n ão h á outro rem édio sen perspectiva
ão suspirar e principiou num â mbito restrito e inteiramente familiar ao inves-
dizer : Isto é apenas um começo ; o verdadeiro tigador .
onde nós paramos. trabalho começa
Cogitemos agora de épocas mais recuadas ou povos mais dis-
Para a determinação de nossas Formas , mantivemo tantes, digamos, os egípcios , chineses e amer índios; aí se cole-
cí rculo relativamente restrito. Falamos da - nos num tam atualizações de toda a espécie , observando-as para apurar se
Antiguidade, da Idade
Média e da é poca contempor â nea . Empenhamo nos confirmam as descobertas feitas em nosso â mbito. A quest ão
lecer que os fenômenos apresentados numa parcela- em estabe -
consiste , pois, em saber se será sempre possível reconhecer as
possivelmente em seu cará ter mais acentuado , desse per íodo ,
eram v á lidos para Formas Simples nessas atualizações tão diferentes das nossas pelas
todo o per íodo , ainda que o seu cará ter esteja freq ú suas caracter ísticas.
entemente
menos acentuado alhures ; em estabelecer també m Recordemos , por exemplo, o lugar onde encontramos a atua-
sição mental de que resulta uma Forma est á que a dispo-
presente em todo lização da Forma Simples que é a Legenda : na Vida de Santo
o per íodo considerado, ainda que sua ação medieval , numa parte dos epinícios da Antiguidade , na cró nica
nem sempre seja t ão
eficaz . Por outro lado , falamos dos povos da Antigui dade clás- esportiva da é poca moderna . Se as atualizações da Forma Simples
sica , dos germanos , dos romanos , dos semitas Legenda , na Am érica do Norte e na China , diferir tanto de todas
e indianos , e dos
povos primitivos, embora mais raramente destes as nossas atualizações quanto a reportagem esportiva difere da
. Assim fazendo,
procur á vamos igualmente mostrar que as Vida do Santo, será certamente desaconselh á vel verificar a sua
mesmas disposições
mentais reinam em toda a parte , da í resultan identidade.
do sempre a mesma
lorma , cujas realizações só assumem car á ter
com o lugar. Mas a História Universal tem
definitivo de acordo Se n ão nos contentarmos com informações superficiais e qui-
uma duração muito sermos chegar a resultados v á lidos , só nos restará um meio.
mais vasta c os povos que participam dessa
por espa ços muito maiores que o c í rculo que
História estendem-se Convém repetir: sob o dom ínio de uma disposição mental
poder íamos abran - determinada , fen ô menos da mesma espécie abandonam a diver-
ger. Antes de poder falar de presença
ininterrupta e universal , sidade do ser e do acontecimento para se cristalizarem ; a lingua -
218
219
gem arrebata-os em seu turbilh ão, combina-os , funde-os e d á-lhes tam , essencialmente , da mobilidade relativa desses elementos.
nova configuração ; essas unidades indecomponíveis , fecundadas No Ditado ou Prové rbio , o gesto verbal englobava , pelo contr á -
e investidas por uma disposiçã o mental , que existem na lingua - rio , toda a forma ; ligava -se tã o sólida e consistentcmcntc que nem


gem , receberam o nome de gestos verbais elementares e , inversa - uma só palavra podia ser mudada nela e a constru çã o toda dava
mente , são esses gestos elementares que nos permitem como quase a impressã o de ostentar “ o cunho de um cará ter indivi-
unidades verbais investidas do poder de uma disposição mental dual ” , É precisamente isso o que permite conhecer facilmente
e , por conseguinte, conhecidas da morfologia — separar c dis- a locu çã o proverbial .
tinguir entre si as Formas Simples. Será correto ampliar tais observações à nossa Legenda ?
Al é m da compara ção de todas as Formas Simples como tais , Será admiss í vel pensar que essas diferen ças na atividade do gesto
resta- nos uma tarefa , portanto: estudar a atividade, o trabalho e verbal sã o caracter ísticas das formas como tais ? Haverá sempre
a estrutura dos gestos verbais em cada Forma Simples e comparar , e em toda a parte elementos dc ligação e de transição, na Legen-
por seu lado , os gestos verbais das diferentes Formas Simples. da , entre os gestos verbais , enquanto que o gesto verbal , como
Fixados os gestos verbais nas l í nguas de nossa esfera de obser- tal , apreenderia sempre e em toda a parte a locu ção proverbial
vaçã o e conhecida a estrutura verbal interna e externa de outras como um todo ? Só um estudo ampliado e profundo da ativi -

esferas , falta observar se e em que medida — o gesto verbal
funciona nas outras l í nguas em que acreditamos ter descoberto
dade , do trabalho e da estrutura do gesto verbal pode fornecer
respostas a estas perguntas. Talvez se apure que certas formas
a sua disposi ção mental , com modifica ções e deslocamentos , é s ão de natureza tal que os gestos verbais constituem , nelas , o
certo , mas de modo compará vel , pelo menos , no que tange a essa fio condutor do sentido que determina sem ambiguidade e ergue
disposição. um edif ício bastante importante , sob a égide de uma disposição
No presente livro , pude apenas referir- me por alto a essa mental , ao passo que outras formas teriam por propriedade só
indagação. Um estudo consequente dos gestos verbais traria , poderem realizar-se , como um todo, no pró prio gesto verbal.
por seu turno , esclarecimentos novos para as relações m ú tuas das Mas també m é possível que todas as Formas Simples só se reali -
Formas Simples. Acabamos de dizer que talvez seja dif ícil discer- zem verdadeira e originariamente no gesto verbal e que os ele-
nir uma lenda chinesa ou ameríndia como tal , mas pode-se supor mentos de ligação e de transição tenham vindo juntar-se-lhe , no
que seria possível, em contrapartida , verificar a existê ncia do tocante a algumas dessas formas , durante uma evolu ção que
ditado em chinês ou em algonquim , mesmo conhecendo-se rela - culmina na Forma artística . No primeiro caso, os elementos de
tivamente pouco da estrutura interna e externa dessas l í nguas. transiçã o e de ligaçã o fazem parte da disposição mental e da
Isto explica -se facilmente. Em linhas gerais, o gesto verbal cons- Forma Simples; no outro caso, seriam apenas um meio de sua
titui apenas uma parte da Forma em nossa Legenda . É verdade atualização.
que essa parte é a que lhe determina a forma , a que lhe encarna
a disposiçã o mental e a que nos permite conhecer a legenda como Seja como for , a observação das diversas atividades do gesto
legenda . Mas ocorre , enfim , que em cada gesto verbal existem verbal permitiu - nos , pelo menos, classificar as nossas formas. Se-
outras partes que garantem a transição e a ligação sem preen - gundo os elementos de liga ção e de transição existam ou n ão, e
cherem a disposição mental e sem serem por esta investidas do segundo as relações entre esses elementos e os gestos verbais,
mesmo grau de poder que os gestos verbais verdadeiros . Reali- podemos dividir as formas em : Grandes Formas e Pequenas For-
zamos observa ções an á logas para todas as formas que consistem mas, quanto à dimensão ; Formas continuas e Formas fixas, quan-
em narrativas longas e seguidas , como a Saga ou o Conto . Assi - to ao movimento ; Formas abertas e Formas fechadas , quanto à
nalamos, inclusive , a respeito do Caso, que era poss í vel levar a sua orientaçã o para o exterior ou o interior . Suponhamos que
Forma Simples até uma Forma art ística , com a ajuda de elemen- os elementos de ligação e de transição façam parte da pró pria
tos “ permutá veis ” de ligação . As diferenças de cará ter que Forma Simples , à semelhan ça dos gestos verbais; ter íamos ent ão
percebemos nas diversas atualizações de uma Forma Simples resul- uma nova classificação fundamental e, no caso de só participarem

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da atualização , esssa classifica çã o teria , na pior das hipóteses , a
!
sua import â ncia para tal atualização.
O nosso estudo deve ser reiniciado, pois , ao n í vel do gesto
verbal. E sc dele n ão efetuamos uma enumera ção e um reagrupa -
mento superficiais c ineficazes por falta de suficientes conheci-
mentos lingu ísticos
— o que n ão poucas vezes aconteceu nas
investigações sobre motivos ; se o interpretamos , pelo contrá rio,
no mais profundo sentido lingu ístico, como unidades primordiais
em que se manifesta uma disposiçã o mental que d á forma à s
coisas, ent ã o o gesto verbal permitir- nos- á reproduzir , uma vez
mais , desde o interior , a estrutura que produzimos do exterior.

Este livro foi composto e


impresso pela ED 1 PE Artes
Gr á ficas ,
Rua Domingos
Paiva , 60 S ão Paulo .

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