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Amor, Meu Fake Amor - Juncken, Hisabelle
Amor, Meu Fake Amor - Juncken, Hisabelle
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte
deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou
transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos,
fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Os direitos morais do autor foram
declarados.
Esta obra literária é ficção. Qualquer nome, lugares, personagens e incidentes são
produto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou
mortas, eventos ou estabelecimentos é mera coincidência.
J91a
Juncken, Hisabelle
Amor, meu fake amor [recurso eletrônico] / Hisabelle Juncken. – 1. ed. – Rio de Janeiro:
Allbook, 2023.
Recurso digital
1ª edição – 2023
DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À ALLBOOK EDITORA
allbookeditora.com | contato@allbookeditora.com
Para os autores de romances que
conseguiram colocar um sorriso nos meus lábios,
mesmo durante uma pandemia.
Espero conseguir colocar um sorriso nos seus.
SUMÁRIO
CAPA
FOLHA DE ROSTO
CRÉDITOS
DEDICATÓRIA
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
Í
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
EPÍLOGO
ALLBOOK EDITORA
U ma sábia diva da música pop, uma vez, nos questionou se acreditamos em
vida após o amor. A verdade é que não há vida sem amor. Então, quando ele
chega ao seu cruel e insípido fim, não existem mais razões para se viver.
Dramático demais para um primeiro parágrafo? Bom, se você tivesse
acabado de levar um pé na bunda, não estaria aí, com seu ar de superioridade,
me julgando.
Não me entenda mal, não estou dizendo que uma pessoa só pode ser feliz
se tiver quem amar. Claro que se pode ser feliz sozinho. O problema é quando
você não quer estar sozinho. Quando você ama uma pessoa com tanta
intensidade e ela — sem nem ao menos te consultar — decide que está na hora
de acabar tudo. Afinal de contas, quem ela pensa que é para dizer que acabou?
Aquele relacionamento também era seu, não? Por que ela, sozinha, é o juiz, o
júri e o algoz nesse julgamento que definiu a pena de morte para o seu coração?
É verdade que não podemos ter uma relação se uma das partes não quiser.
Mas, se ele deixasse, ao menos, eu preparar a minha defesa, apresentar o caso
para um júri neutro, chamar as testemunhas certas, tenho certeza de que
mudaria de opinião. Já posso ver na bancada, minha mãe com a mão na bíblia.
— E a senhora afirma que essa relação foi a melhor coisa que já aconteceu
na vida da sua filha?
— Sem sombra de dúvida. Preciso de netos e olha só o maxilar desse
homem. Imagina como serão essas crianças! E vamos combinar? Ela não está
ficando mais jovem, né? Essa talvez seja a sua última oportunidade.
É, pensando bem, talvez seja melhor não chamar a minha mãe.
A questão é que não teve julgamento algum. E cá estou eu, sentada neste
carro, olhando para o estacionamento lotado do shopping, sentindo um calor
infernal porque o dito-cujo nem para ligar o ar-condicionado antes de enfiar a
mão no meu peito e arrancar os últimos seis meses da minha vida.
— Por que isso agora, Rafael? O que fiz para você achar que o que nós
temos não vale a pena?
— Você não fez nada, Alice. — Ai, ele é tão gato. Minha mãe imaginária
estava certa; esse maxilar pode acabar com impérios. — Eu estava conversando
na terapia e realmente não acho que estou pronto para namorar.
— O terapeuta te disse isso? — perguntei, em choque.
— Disse.
— Ele está errado, Rafael. A gente está ficando há seis meses, vamos e
voltamos do trabalho juntos todos os dias, gostamos das mesmas coisas nerds,
nosso sexo é maravilhoso. Somos perfeitos um para o outro! Ele está errado!
— Alice, eu pago trezentos reais pela consulta. Não tem como estar errado.
E ele não disse que a gente não combina, só que eu não estou pronto.
— “Não é você, sou eu”, é isso? É sério que esse é o seu discurso?
— Pode ser batido, mas é a realidade. Sinto muito.
Não sente porra nenhuma. Olho para a frente não querendo mais ver a
expressão de alívio que está estampada na cara desse filho da mãe. Quero sair
do carro, bater a porta e não olhar para trás. Mas vim com ele, estamos no
meio do expediente e a hora de almoço já acabou há vinte minutos; não dá
para esperar um Uber.
Ele não me pergunta mais nada. Liga o carro e segue para a GameStart, a
empresa de desenvolvimento de games onde nós dois trabalhamos — e onde
eu posso passar o dia observando Rafael da minha baia. Isso costumava ser uma
das coisas que eu mais gostava de fazer. Sinceramente, não sei como vou
suportar.
A sensação é de sufocamento, como se apenas a visão daquele homem fosse
o suficiente para impedir o ar de passar pela minha garganta. Rafael parece
oficialmente feliz; não chega a sorrir descaradamente, mas também não há um
pingo de tristeza no seu semblante. Eu sei disso porque não tirei os olhos dele.
Ele conversa com todo mundo, brinca com Vanessa, a secretária do escritório, e
ainda tem a pachorra de fazer seu trabalho de maneira concentrada.
O tapa na cara não pode ser maior. Tudo que eu quero é ir para minha
casa.
Faltando cinco minutos para o fim do expediente, eu me levanto e saio na
direção dos elevadores. A voz de Rafael me surpreende.
— Alice!
Será que ele se arrependeu? Será que quer voltar?
Me viro tentando ignorar que meus olhos parecem duas bolas de tênis
depois de ter passado grande parte da tarde chorando no banheiro.
— Sim?
— Eu saio em dez minutos. Você vai querer carona?
Carona. Não, Rafael. Eu não quero carona. Eu quero você. Quero me casar
com você, ter filhos com você e, na velhice, gritar com as crianças chatas da rua
enquanto estamos sentados em cadeiras de balanço na varanda da nossa casa.
Mas isso não vai mais acontecer. E pegar carona só vai aumentar a minha dor.
— Não, obrigada. Boa noite.
— Tem certeza?
O fato de ainda se importar me afeta mais do que eu gostaria de admitir.
Ele sabe dos meus problemas com transporte público lotado; para uma pessoa
com claustrofobia, aquela lata de sardinha pode ser fatal. No entanto, estar em
um Fiat com um amor que não me quer...
— Tenho sim. — minto. — Até amanhã.
O chacoalhar do ônibus me deixa enjoada. Enlatada e chorando baixo
entre a sudorese alheia, só consigo pensar no homem que não me considerou
boa o bastante para tentar ficar comigo. Meus óculos de grau embaçam pelas
lágrimas, enquanto, no meu fone de ouvido bluetooth, Cher tenta me fazer
esquecer onde eu estou. Ela me diz que eu já chorei o que tinha que chorar e
que agora sou forte o suficiente, mas ela está errada.
Eu não sou forte. Desequilibrada, medrosa e sem um pingo de amor-
próprio? Claro! Mas forte? Não.
Essa semana vai ser a mais longa da minha vida.
— Não. Esse também não. Muito menos esse! — exclamo enquanto Helô
passa as imagens no celular. — Por que o Google não mostra logo o cara
gostoso que a gente quer?
— A gente pesquisou “homem gostoso” e apareceu um monte de modelo.
Você quer mais gostoso que isso?
— Eles são tão fake. Não quero “modeletes”. Quero um homem, sei lá,
hombre!
— Você quer um homem espanhol?
— Não! Quero um homem gato, mas que tenha traços fortes e esteja com
menos maquiagem do que eu.
— Você não usa maquiagem.
— Exatamente, Helô. Exatamente. — respondo, mordiscando o canudo da
minha caipirinha de limão que ela fez. Eu nem tinha limão em casa, mas,
depois que concordei com essa insanidade, Helô viu que eu só tinha a tequila e
o sorvete e foi até o mercado estocar minha geladeira. Ainda bem por esse anjo
na minha vida! Eu já estava na merda; se ainda tivesse que tolerar uma ida ao
mercado, aí é que me afundaria na depressão de vez.
— Se você quer um homem de verdade, por que a gente não busca um
homem de verdade?
— Como assim?
— Em vez de perdermos nosso precioso tempo no Google, a gente pode ir
direto para o Instagram jogar um nome qualquer e ver o que aparece.
A ideia não me soa ruim.
— Mas que nome jogaríamos?
Helô pondera por alguns instantes antes de responder.
— A gente pode usar algum nome estrangeiro, assim a chance do Rafael
conhecer a pessoa reduz bastante. Vamos colocar Harry? Meu ex-príncipe
favorito. — Helô suspira. — Meghan, sua sortuda.
— Ele não está ficando careca?
— Ele pode ter o corpo coberto de escamas, meu amor, com aquele rosto e
aqueles ombros, eu pegava fácil.
— Ombros?
— Não jogue fora um bom par de ombros, minha querida. Eles dizem
muito sobre um homem.
— Não me entenda mal. Curto ombros também, mas não é a primeira
coisa que me vem à mente.
— Pois deveria. Ombros largos como os do Harry me dizem coisas que
mais nenhuma parte do corpo pode dizer.
— Como o quê?
— Como que ele tem força o suficiente nos membros superiores para me
aguentar com as pernas presas na sua cintura enquanto ele me fode contra uma
parede.
— Helô! — exclamo, horrorizada.
— O quê?
Sacudo a cabeça rindo e não respondo. Esse é um comentário tão Helô que
nem sei o que dizer.
— Está bem, então. Vamos com Harry.
Ela entra no aplicativo e começa a busca.
Foto após foto, vou criando expectativas de que a próxima será perfeita,
mas a verdade é que ninguém me causa o mínimo de interesse. Ai, será que
Rafael me quebrou e agora nenhum homem mais me atrai?
Maldito seja!
Estou pensando pragas para jogar nele e em gerações futuras da sua árvore
genealógica, quando grito para Helô parar.
A imagem de perfil que vejo é simples: o rosto do rapaz com um sorriso, no
entanto, algo naquele sorriso faz um frio percorrer a minha coluna. Ou seria
um calor? Traços fortes, com o queixo ligeiramente quadrado, uma barba por
fazer e olhos escuros em um tom quase chocolate.
— É ele, Helô. É ele.
Ela entra no perfil, que, por sorte, é aberto. Passa por algumas fotos e chega
em uma de corpo inteiro. Ele está encostado numa mureta; ao fundo, o
London Eye revela que ele é realmente inglês.
— Hum... Ombros largos, hein.
O ruído que ela emite me faz instintivamente ficar com ciúmes do meu
namorado falso. Mas logo Helô me cutuca com o cotovelo e o bobo ciúme
desaparece.
— Harry Stewart — ela diz, lendo o nome no topo da tela. —
Congratulations, meu querido! Você dará um excelente perfil falso.
O despertador está quebrado no chão do quarto. Me recuso a levantar. Sei que
tenho trabalho e que preciso sair dessa fossa bizarra; mas sinceramente? Não
quero. O fim de semana foi, mais uma vez, uma maratona de cerveja e de
músicas deprimentes no meu violão. O som enchia o meu flat enquanto a
bebida enchia o meu cérebro. Só Liam, baixista da minha banda e meu amigo
desde os treze anos, me mandou mensagem. Não respondi.
Essa é a minha rotina há dois meses: fins de semana de merda seguidos por
cinco dias de pesquisa para o meu doutorado na Escola de Biologia e Ciências
da Queen Mary Universidade de Londres. Além da minha pesquisa
simplesmente não andar, eu ainda tinha que lidar com os alunos do curso de
Zoologia. Pelo menos, eles entraram de recesso há duas semanas — thank fuck!
Se eu tivesse que continuar fazendo meu papel de professor assistente de
biodiversidade marinha, provavelmente não estaria vivo hoje.
Eu sei que tenho que quebrar esse ciclo vicioso, no entanto, é bem mais
fácil seguir com o status quo da minha vida inútil do que ativamente tentar
mudar. Eu posso sentir o fedor da depressão em volta de mim — basicamente
cerveja e roupas que estão há três dias no meu corpo sem banho —, mas ele já
é conhecido. Qualquer mudança seria novidade e eu não sei se consigo lidar
com novidades.
Meu telefone toca. É Liam. Atendo sem dizer nada.
— Harry? — Faço um barulho que pode ser considerado algo entre um
grunhido e um arroto. — Harry, cadê você? A Dra. Harrison acabou de cruzar
comigo no campus, você tinha uma reunião há quarenta minutos com ela. Cara,
você vai perder sua vaga nesse doutorado se continuar assim. Levanta essa bunda e
vem logo antes que eu vá aí te encher de porrada.
Ele nunca me bateria. Até porque não conseguiria. Eu faço muay thay há
dez anos e ele, apesar de ser forte, é um graveto de gente comparado a mim,
mas tem boa intenção. Em minha defesa, eu tinha me esquecido da reunião.
Contudo, mesmo que ela não existisse, já era para eu estar na universidade há
duas horas, então a verdade é que não tenho uma desculpa boa para dar.
— Vá à merda, Liam.
— Seria uma opção melhor do que ir até a sua casa, que, a propósito, está
fedendo que nem o sovaco do Taylor, mas aparentemente eu vou ter que sair do meu
caminho para salvar a sua vida de novo.
Toda segunda-feira tínhamos a mesma conversa, incluindo a referência ao
sovaco do nosso baterista. Eu odeio o que estou fazendo com ele. Queria
realmente conseguir parar, mas não o suficiente para realmente fazer acontecer.
— Vamos, Harry. Me dá uma ajuda, cara. Eu tenho uma vida também, sabia?
Vim até o campus encontrar a Danny, não me faz ter que cancelar com a minha
garota de novo por você.
Liam conheceu a Danny numa festa em que fomos tocar, perto da
faculdade. Ela é professora do departamento de História... Ou Matemática...
Ou Medicina. Eu não estava prestando atenção quando ele me contou. Liam se
apaixona rápido e fácil, mas os relacionamentos costumam explodir na sua cara
antes que eu tenha tempo de me apegar à garota. Não que eu vá lhe falar isso.
Mesmo que agora esteja fingindo ser casca-grossa para me fazer levantar, é um
cara sensível.
— Okay, Liam. — Desisto. — Já estou indo.
Faço menção de desligar e ele grita um “espera” do outro lado da linha que
quase arrebenta o meu tímpano.
— Que foi?
— Toma um banho antes de sair. Pelo amor de Deus, Harry. Toma um banho.
Faço uma careta e desligo sem me despedir. Liam é um santo. Se a situação
fosse ao contrário, confesso que não sei se o apoiaria por tanto tempo levando
tanta porrada. Não é justo com ele. Sou filho único, assim como Liam, e nossa
amizade é mais um laço de irmãos do que de amigos; tenho muita sorte. Já
Liam podia ter tirado uma mão melhor nesse jogo.
Como uma forma de recompensar seu esforço em me fazer voltar à vida,
resolvo tomar banho. Recompensa de merda, eu sei, mas estou deprimido,
então me deixa.
A água quente é um tapa em cada um dos meus músculos. Ela deveria fazer
com que eu me sentisse melhor, mas só me sinto mais sujo. Tudo que já vivi
nessa casa, nesse banheiro, nesse chuveiro, minhas melhores memórias são
todas com ela.
Melanie.
Por mais que sair seja um suplício, estar aqui, com a minha mente viajando
por tudo que vivemos, é pior.
Alice:
Me explica como o Harry conhece o SUS?
Helô:
Photoshop ;)
Alice:
São alunos de Psicologia ou hackers?
Helô:
São um bando de desesperados pq eu dei um zero para a maioria na primeira prova do
curso.
Alice:
Eles foram tão mal assim?
Helô:
Não, mas eu gosto de começar uma turma nova sempre dando um susto p/ eles
acharem q precisam se esforçar mais.
Alice:
Você tem problemas.
Helô:
E você me ama mesmo assim. o que isso diz sobre você?
Alice:
Touché.
Helô:
Ahn... eu deveria saber o que isso significa? 🤔
Alice:
Rafael e Vanessa saíram para almoçar há mais de duas horas. Eles voltaram agora. Ela
está com o cabelo molhado.
Helô:
Ahhh, sim! O famoso “almoço executivo”. E ele comeu a massa à putanesca.
Alice:
Isso não é muito feminista da sua parte. Ela não tem culpa de ele ser o amor da minha
vida.
Helô:
Vc está certa. Ela comeu o peru assado. Melhorou?
Alice:
Não muito.
Helô:
Esquece isso. O que importa é que eles foram ao motel e ela tomou banho para tirar o
fedor de sexo.
Alice:
Eu queria estar tirando o fedor de sexo do meu corpo agora.
Helô:
Eu queria que o meu paciente atual não tivesse tesão em canetas. Nem sempre a vida é
o que a gente quer.
Alice:
Você está em atendimento? Como está conseguindo me responder?
Helô:
Escondi o celular no caderno onde estou “fazendo anotações” 😉
Alice:
E como você vai ajudar o tarado das canetas se não prestar atenção no que ele falar?
Helô:
Um dos principais problemas dele é que é egocêntrico. Ele não sabe, mas o fato de eu
não estar prestando atenção faz parte do tratamento.
Alice:
...
Helô:
Mas fica tranquila. Meus alunos prepararam umas coisinhas que podem te ajudar. Vou te
mandar por e-mail.
Alice:
Deixa eu adivinhar... Photoshop?
Helô:
Yes!
Alice:
E o que você espera que eu faça com essas fotos?
Helô:
Ué, poste. não tudo de uma vez, claro. E mantenha legendas curtas ou coloque só
emojis. Objetividade é a chave! Ah, e não esquece de marcar o Fernando Williams 💛
No escuro do meu quarto, a única luz que brilha é a da tela do meu celular.
Helô passou aqui mais cedo para me trazer uma caipirinha e umas palavras de
conforto pelo post malsucedido, mas continuo me sentindo estranha.
Estou há cerca de vinte minutos olhando a foto que postei hoje; vou ter
que postar mais, conversar mais com Fernando, fazer mais, fazer o que for
preciso. Porém, não é nisso que estou pensando. Fernando Williams me olha
de volta na foto de Itaipava e imagino em que foto os alunos de Helô pegaram
o rosto usado. Sem entender direito o que estou fazendo, entro no Instagram
de Harry Stewart.
Ele é tão lindo. Seu sorriso é fácil e inspira as laterais da minha boca a se
elevarem instintivamente. Não sei quanto tempo se passa, mas eventualmente
chego na última postagem. De alguma forma, chegar aqui me faz sentir mais
próxima de Harry.
As fotos de paisagens e animais me dizem que ele é ativista. Será que é
vegano que nem a Helô? As poucas imagens de comida que achei não têm
carne alguma.
Descubro que ele faz parte de uma banda chamada Moon Landing. Fico
curiosa com o trecho de um clipe que vejo no IGTV. De lá, sou direcionada ao
YouTube e assisto ao clipe todo. A gravação trêmula e ligeiramente amadora
mostra partes do corpo de uma mulher nua, deitada em uma cama com lençóis
brancos. Nada proibido para menores de dezoito anos aparece, mesmo assim
ela emite uma vibe extremamente sensual. De repente uma mão entra em cena
tentando tocá-la, mas a mulher some em um fade meio malfeito.
Entretanto, nada disso importa. Minha atenção não está mais no clipe,
apenas na música. A melodia é suave e triste. Seus poucos versos falam da dor
de amar e é impossível eu não me identificar. E a voz que a canta...
Entro no meu aplicativo de streaming e fico feliz quando a encontro. Marco
a faixa como favorita e coloco em looping. Essa voz, essas palavras; tenho a
impressão de que nunca vou me cansar de ouvir essa música.
Rafael está esticando a mão para mim, chamando-me para dançar. Ele está
vestido com uma roupa de príncipe da Disney, em tons de azul e branco. A rua
está escura e chove forte, mas, mesmo com o temporal, ele está completamente
seco e com o cabelo perfeito. Olho para baixo. Eu estou de calça jeans e com
um suéter de moletom todo molhado, que gruda no meu corpo.
Ao fundo, uma balada de rock me distrai por um instante, contudo logo
me volto para o homem na minha frente e estico a mão para alcançá-lo. Antes
que eu o toque, um ônibus aparece do nada e o atropela. O motorista abre a
porta e olha para mim. É Fernando Williams. Ou Harry Stewart. Não tenho
como saber.
Assim como eu, ele está de calça jeans, mas na parte superior tem uma
camisa preta coberta por outra de flanela xadrez vermelha e preta. É a vez dele
de esticar a mão; está me convidando para subir no ônibus. Movimento a
cabeça na direção da traseira do veículo, onde imagino que esteja o corpo de
Rafael. Retorno o olhar para Fernando/Harry. Ele parece estar falando, mas a
música está alta agora e não consigo escutá-lo. A chuva se intensifica e quase
não o enxergo mais.
Não sei se subo no ônibus ou se tento socorrer Rafael. Antes de decidir, eu
acordo. Estou ofegante, confusa, com o celular caído na minha cara e uma
enorme vontade de fazer xixi.
Fernando:
Recebeu as flores?
Alice:
Recebi, AMOR. Vanessa veio me entregar e eu falei que ontem começamos a namorar.
Fernando:
Depois eu que sou o gênio. Arrasou!
Alice:
Você que arrasou com essa demonstração de carinho em público.
Fernando:
Confesso que acho “flores no escritório” uma coisa bem anos 90, entretanto minha
turma colocou Fernando como um cara das antigas em termos de romance, daqueles
que abre a porta do carro e tals. Mas eu deixei claro que se ele for macho tóxico, todo
mundo vai tirar zero, então pode ficar tranquila que ele só é romântico cafona mesmo.
Alice:
Foi a primeira coisa que eu pensei quando recebi as flores:
será que ele é macho tóxico?
Fernando:
Sério?
Alice:
Não, Helô. Não é sério.
Fernando:
Põe um emoji quando for assim! Não tenho como ler sua ironia. 🙄
Alice:
🖕
Fernando:
Viu como emoji ajuda? Super entendi o que você estava sentindo agora.
Alice:
...
Fernando:
Vamos ao que interessa. Quero ao menos um story dessas flores. E não esquece de
marcar o Fernando!
Alice:
Boa!
Tiro uma foto das flores, coloco um filtro para dar uma melhorada na luz e
uma amenizada nos contornos do buquê, seleciono um GIF de corações rosa
piscando e marco o Fernando. Antes de postar, confiro se o cartão não saiu na
imagem, já que minha mãe me segue e eu não preciso ter ela me ligando para
saber detalhes do que aconteceu ontem, na minha relação amorosa imaginária.
Pronto, agora posso voltar a trabalhar.
Ou não, porque o telefone da minha mesa está tocando.
— O Fernando gosta de carne ou é estranho que nem a Helô?
Respiro fundo.
— Bom dia, mãe. E a Helô não é estranha, ela é vegana.
— Mesma coisa.
— Por que você quer saber?
— Porque vou fazer uma lasanha para a gente no domingo e preciso decidir se
vai ser bolonhesa ou quatro queijos.
Não tenho forças para explicar que, se ele fosse vegano, quatro queijos
também não serviria.
— Como assim “fazer uma lasanha para a gente”?
— Vocês vêm aqui para eu conhecer esse rapaz. Flores são sinal de avanço na
relação. Já está na hora.
— Flores são uma gentileza, não são nada de mais.
— Vi num filme que elas significam sexo. E eu não te criei para sair por aí
abrindo as pernas sem ter um mínimo de compromisso, então está na hora. Se ele se
deita na sua cama, ele se senta à minha mesa. Essa sempre foi a regra.
— Meu Deus, mãe! Não vou falar de sexo com você! E você inventou essa
regra hoje!
— Não vai falar por quê? Sexo é normal, Alice! Você acha que veio de onde?
— Para de me fazer imaginar você fazendo sexo com o meu pai.
— Tenho culpa se a sua imaginação é fértil? Assim como o seu pai, por sinal.
Um dia esquecendo a camisinha e pronto! Vinte e nove anos de você.
Eu sempre detestei ser lembrada de que não fui planejada. De acordo com
meu pai, sou uma surpresa feliz. Segundo a minha mãe, sou o test drive que a
fez ter certeza de que não tinha como ter mais de um filho.
— Não podemos no domingo. Eu estou com um projeto grande aqui no
trabalho e vou ter que virar o fim de semana na empresa.
— Ele não é médico? Deve ganhar bem. Para que você precisa continuar
trabalhando?
— Mãe! — exclamo, horrorizada. — Eu não vou pedir demissão para ficar
dependendo de homem!
— Se o seu trabalho te impede de ter uma relação com o homem perfeito, será
que vale a pena todo esse empoderamento que você fica esbanjando?
Pelo menos ela acha que ele é perfeito, o que me faz pensar que o plano
está dando certo. Contudo, seria tão melhor se fosse o Rafael, e não a minha
mãe, a pessoa a ficar louca e incoerente falando comigo a respeito de Fernando.
— Eu tenho que continuar aqui o trabalho, mãe. Manda um beijo para o
pai.
— Você tem tempo de fazer story no Instagram, mas não tem para mim.
— O story durou cinco segundos, ao contrário dessa ligação. Beijos, mãe.
— Me desculpe por me importar com a minha filha e querer o bem dela.
— Está desculpada. Beijos!
Desligo o telefone, respiro fundo novamente e volto ao trabalho.
A brisa suave da praia de Copacabana me traz um sopro de algo novo.
Observo as ondas do mar enquanto afundo os pés descalços na areia fina e
molhada. Deveria ser o começo do inverno no Brasil, e algumas pessoas até
passam encasacadas pelo calçadão, mas, na areia, famílias e grupos de amigos
abusam das roupas minúsculas, mesmo ficando com a pele arrepiada de frio.
Estou vestindo um jeans cinza, com a bainha dobrada até a metade da
canela, e uma camisa de manga curta preta. A temperatura está boa, mas esse é
um dos privilégios de ser inglês — esse tempo é praticamente alto verão para
mim.
Sigo andando pelas areias de Copacabana. O sol vai começar a se pôr em
breve e meu estômago está fazendo barulhos característicos de fome, mas não
quero voltar para o hotel. Quando retornar, terei que ajustar alguns pontos da
apresentação e trabalhar na pesquisa que preciso entregar para a Dra. Harrison.
Essa vista me faz pensar que tudo isso pode esperar. Na verdade, me faz pensar
que qualquer coisa pode esperar. Essa areia, esse mar, esse sol. Tudo estava aqui
antes de mim. Antes de Melanie. E tudo vai seguir aqui depois que a gente se
for.
Pelo menos por alguns anos — ser filosófico sabendo que o ser humano
está destruindo o planeta é bem difícil.
Eu não importo, Melanie não importa, muito menos meu relatório e o fato
de eu estar aqui, hoje. Nada disso importa. O planeta não está nem aí para a
gente. Isso deveria fazer eu me sentir pequeno, mas a realidade é que faz eu me
sentir gigante. Estou aqui, agora, presenciando isso. Podia ser qualquer pessoa,
entretanto sou eu. Que bom que sou eu!
Paro em um quiosque e peço uma IPA imperial. O sabor amargo se
contrapõe à doce vista. O tempo parece que não se movimenta, mas o sol
descendo no horizonte é a prova de que isso não é verdade. Tudo anda, tudo se
movimenta, tudo passa. E essa dor no meu peito também vai.
Quando saio do chuveiro no dia seguinte de manhã, vejo que perdi uma
videochamada de Liam. Ainda com a toalha na cintura e com gotas pingando
pelas minhas costas e pelo meu peito, apoio o celular na parede onde fica o
espelho do banheiro e retorno a ligação enquanto me preparo para fazer a
barba.
— Oi, Harr... Que merda, cara!
Olho para o visor e vejo que Danny está do lado dele. Liam cobre os olhos
da namorada, que está com um sorriso na boca. Se está rindo da reação de
Liam ao me ver ou se está feliz com o que viu, não tenho como saber. Já eu,
com certeza, estou rindo da reação do meu amigo.
— Queríamos te dar um oi e desejar boa sorte na pegação, mas, se você vai
ficar andando pelado por aí, acho que não preciso te desejar sorte alguma.
Liam está andando pela sua casa sozinho agora. Pela mudança de cenário
ao fundo, está no seu quarto nesse momento.
— Você me liga quando eu estou no banho, eu faço a gentileza de te
retornar assim que saio do chuveiro, sendo que continuo ocupado fazendo a
barba, e você reclama? Que ingrato!
— Em primeiro lugar, eu não tinha como saber que você estava no banho. Em
segundo lugar, eu já não te falei para fazer a barba durante o banho e não depois?
Os poros ficam mais abertos pela da água quente. Aí você pode ficar com essa pele
lisa de bebê que nem a minha.
Se eu tiver mais uma conversa sobre os meus poros com o Liam, acho que
me mato.
— Prefiro que as mulheres não pensem em bebês quando estão passando a
mão no meu rosto.
— E a pergunta que não quer calar é: que mulheres, Harry?
— Vamos trocar o assunto, por favor. — digo, ligando o barbeador e
ignorando seu jab. — Você me ligou só para desejar sorte mesmo?
— Para isso e estávamos com saudade.
— Não faz nem dois dias que a gente se viu. Você, inclusive, me levou até
o aeroporto.
— Eu sei. — O rosto de Liam faz aquela expressão, sobrancelhas retas e
queixo mais travado. Ele vai falar algo sério. — Mas demorei dois meses para ter
o meu irmão de volta e agora você nem está aqui.
Odeio como ele consegue colocar em palavras as coisas que eu sinto, mas
não quero dizer.
— Em duas semanas, eu estarei de volta, pronto para levar a Olivia para
casa.
Ele dá uma gargalhada, mudando a fisionomia em um estalar de dedos.
— Eu duvido muito. Afinal, imagino que você vá andar vestido por aí e não
de toalha.
— Você se esqueceu das praias? Eu poderia até usar uma sunga.
Liam arregala os olhos.
— Porra, eu me esqueci das praias. E desde quando você tem sunga?
— Não tenho. Mas posso comprar uma aqui.
— Por favor, não. Usa bermuda como qualquer cara do hemisfério norte.
Nunca te pedi nada, Harry.
— Você me pede coisas o tempo todo.
— Sim, mas isso não vem ao caso.
Depois que nos despedimos, começo a me arrumar para sair. Vou ao centro
de convenções, onde será feita a conferência, para alinhar alguns pontos com os
organizadores e para ver um simulador que está sendo finalizado e ficará
exposto durante todo o evento.
Preferia ir para a praia, mas as ondas terão que esperar.
Harry:
Alice?
Alice:
É a segunda bebida mais consumida no país, ficando atrás apenas da água.
Harry:
Okay…
Alice:
E, mesmo sem leite, fica ótimo com canela.
Harry:
Existem estudos comprovando?
Alice:
É conhecimento geral.
Harry:
Claro que é.
Harry:
Você já pensou que lugar do Rio quer me mostrar primeiro?
Alice:
Já sim! O que você vai fazer amanhã, às oito da manhã?
Harry:
Te encontrar?
Alice:
Excelente resposta! 😀
Harry:
Essa hora não vai afetar o seu trabalho?
Alice:
Considerando que continuo aqui na empresa, vou chegar mais tarde amanhã.
Harry:
Você já jantou?
Alice:
Ainda não. Por quê?
Harry:
O restaurante do meu hotel é vinte e quatro horas. Quer me encontrar lá?
Meu celular tem mais de trinta mensagens da Helô. Apesar do texto variar
de uma para a outra, o que ela quer que eu faça está claro: tenho que ligar para
ela assim que chegar em casa.
— Eu quero saber tudo, e com riqueza de detalhes. Desembucha.
Ela nem me deixa dizer nada quando atende e isso lembra tanto a minha
mãe que eu dou uma gargalhada. Conto todos os detalhes para Helô; cada
segundo passado com Harry, desde que pisei no seu hotel até nossa despedida
no carro. Ela não interrompe em nenhum momento, o que me faz achar que a
ligação pode ter caído. No entanto, logo ouço alguns barulhos que me dão a
impressão de que Helô está macerando uma fruta para fazer um drinque.
— Você está bebendo?
— Ainda não.
— São quase três da manhã.
— Eu sei.
— Por que você está bebendo agora?
— Porque eu não transo há dois meses e estou vivendo minha vida através de
você.
— Justo.
Ouço ela engolir antes de voltar a falar.
— Você estava certa quando o escolheu para ser seu hombre. Transformar a
confissão louca em uma desculpa para te beijar? Isso é jogada de hombre daqueles
bons.
— Você é psicóloga! Não pode falar que a minha claustrofobia é loucura.
— Não disse que a sua claustrofobia é loucura. Disse que a sua confissão é que
é. Assim como você. E não digo isso como psicóloga, digo isso como alguém que te
conhece mesmo.
— Sua amizade toca o meu coração.
— Eu sei, mas eu quero falar sobre Harry tocando outras partes do seu corpo.
— Não teve outras partes. Ficamos da cintura para cima.
— Posso saber por quê?
— Porque eu conheci ele hoje!
— Ahn, isso é mentira, mas vou deixar passar por agora. — Agradeço
mentalmente por isso. Porque a última coisa de que preciso é ser lembrada que
realmente sou louca como ela diz e que tem toda uma rede de mentiras que
estou escondendo do cara mais perfeito que eu já encontrei. — É óbvio que
você queria ir para a cama com ele. E, como você mesma disse, ele só vai estar aqui
por duas semanas. O que te impediu?
— Não sei. Por mais que a gente tenha falado em aproveitar esse tempo, ele
não pareceu querer correr com nada. E eu estava tão impactada com a
intensidade do nosso beijo que acho que nem aguentaria qualquer outra coisa.
— Se ele não pareceu querer correr, é porque não espera te largar fácil. Será que
está pensando a longo prazo?
— Impossível. Ele mora do outro lado do oceano, Helô. Por mais que as
vozes na minha cabeça estejam gritando que é o que elas mais querem, sei que
não vai durar. Não posso ficar me enganando que vai ser mais do que é. A
minha relação com Rafael já me machucou tanto. Não posso passar por mais
um coração partido.
— E como a senhorita pretende proteger seu coração quando claramente está
caidinha por ele?
Não tenho uma resposta para Helô, até porque eu também queria saber.
— Agora, vamos falar desse tal de Liam que ele quer me apresentar. Como são
os ombros?
Adoro que ela sabe a hora de trazer leveza para a conversa.
— Não tenho ideia!
— Espera um pouco. Vou te colocar no viva-voz e abrir o Instagram.
— O que você está fazendo?
— Quero ver esse Liam. — Ela fica calada alguns instantes. — Oh.
— Que foi?
— Ele é gato, Alice. Tipo, muito gato. É o oposto completo do Harry, mas não
sei como, tão gato quanto. Minto, é mais gato ainda.
Faço o mesmo que ela; coloco a ligação no viva-voz e abro o aplicativo no
perfil de Harry. Logo encontro a foto que Helô achou. Harry está abraçado a
um rapaz em algum pub. Liam Matthews está marcado na imagem.
Ele tem os músculos bem definidos, entretanto com um corpo bem menos
largo que o do Harry. Enquanto Harry lembra um lutador de boxe, Liam está
mais para um nadador. Posso ver o apelo, mas sobre ser mais gato? Não acho
que exista homem nesse mundo que consiga essa proeza.
A saudade de me sentir segura naquele abraço aperta e tenho vontade de
ligar para ele. Preciso me controlar para não afastar o Harry com a minha vibe
Kate Hudson em “Como Perder Um Homem em 10 Dias”. No meu caso, duas
semanas.
— Droga.
— Que foi?
— Entrei no perfil dele. Tem namorada. Por mais que eu queira o corpo dele
apenas por uma noite, não vou ficar me metendo em namoro dos outros.
— Só por uma noite? Nem por um homem que considera mais gato do
que o Harry, você acabaria com a sua aversão a relacionamentos?
— Não tenho aversão, só bom senso mesmo. Essa história de relacionamento
com final feliz foi uma criação da sociedade…
— Para nos controlar, sim, eu sei. — digo, cortando Helô.
Não é a primeira vez que eu escuto esse discurso. Aparentemente, a
“sociedade” quer que a gente passe a vida buscando o amor para nos fazer
esquecer das coisas que realmente importam e nos manter vítimas da estrutura
capitalista. Não entendo por que ela não acredita que amor também possa ser
uma dessas coisas importantes, contudo, depois de todas as loucuras que eu já
fiz por amor (Fernando Williams sendo a prova número um), quem sou eu
para criticar?
— Mas pelo que o Harry me falou, além de gato, esse tal de Liam também
é um amigo maravilhoso; quem sabe não é o pacote completo? Nem por uma
pessoa assim você tentaria?
— Não. Fico feliz em apelidar meu vibrador de Liam e me resolver sozinha
mesmo.
— Helô, você está compartilhando demais, de novo.
— Se você fosse menos pudica e usasse o vibrador que eu te dei de presente, não
ia achar isso.
— Quem disse que não usei? — digo antes de conseguir me controlar
— Ah! Até que enfim a bonitinha resolveu abraçar que é uma mulher
empoderada e que pode ser a responsável pelos seus próprios orgasmos!
— Eu já sabia disso. Só acho mais divertido quando tem um homem junto.
— É, eu também. Mas o meu homem ideal tem namorada e está em Londres,
então vou ter que me virar com o mini Liam. — Ela para um segundo de falar
antes de continuar. — Ahn… Esquece o que eu disse. Acabei de achar uma foto
dele saindo de uma piscina com a bermuda colando no seu corpo. Não vou usar
“mini” e “Liam” numa mesma frase nunca mais.
— Dá para ver nesse nível de detalhe?
— Não, mas tenho conhecimento no assunto, consigo deduzir pelo que dá para
ver.
— Eu acho melhor não falarmos mais sobre seu extenso conhecimento da
genitália masculina.
— Pau, Alice. Conhecimento de pau. Boca suja vai te levar longe, acredita em
mim.
— Durante o sexo pode até ser, Helô, mas falando ao telefone com você é
onde eu traço meu limite.
— Ai, está bem! Que chata. Vai dormir então. Ou usar o mini Harry.
Me despeço de Helô sem revelar que estive tão próxima de Harry que sei
que com ele também não podemos falar que nada é “mini”. A última coisa que
quero é minha amiga pensando no membro do cara com quem estou saindo.
E sim, eu falei “membro”. Sou pudica mesmo. Me julgue!
-O que custa colocar uma camisa antes de me ligar?
A camisa já estava na minha mão, mas eu queria irritar Liam e consegui.
Deixo o telefone na cômoda sobre a qual fica a TV, enquanto termino de
me vestir. Pego o aparelho e aponto a câmera para o meu torso.
— Melhor?
— Muito!
Pela vista ao fundo de Liam, mostrando o Tâmisa, e o fato de ele estar de
gravata e camisa social, sei que está no escritório. No entanto, suas olheiras
fundas, o nó da gravata afrouxado e os dois primeiros botões de sua camisa
abertos me dizem que não está feliz com isso.
— Está tudo bem por aí?
— Ahn? Sim, sim — diz enquanto revira uns papéis em sua mesa. Acho
que, mesmo com o celular mostrando a minha cara, ele se esqueceu de que eu
consigo ver a dele também.
— Liam, você não parece bem.
— Não é nada. — Ele larga os papéis na mesa e se volta para a câmera. —
Só coisas de trabalho. Tem um evento que está me tirando o sono. Hoje cheguei no
raiar do dia, aqui.
Não sei se acredito nele, contudo, se Liam não quer elaborar, prefiro deixar
quieto. Ele pega uma caneta e começa a fazer anotações enquanto continua a
falar.
— Liguei para Mary ontem — diz, usando o nome que só ele usa para
minha mãe.
— É? Está tudo bem?
— Está. Só fui promovido a melhor filho, já que você foi para o Brasil e a
abandonou.
— Quanto drama! Eu mandei mensagem para ela ontem.
— Acho que as palavras exatas foram “a tecnologia atual permite
videochamadas de graça, nas quais eu poderia finalmente ver o rosto que esculpi
com tanto carinho”. Ou seja, suas mensagens e nada são a mesma coisa.
Consigo imaginar com perfeição a minha mãe dizendo isso.
— Vou ligar para ela hoje quando voltar.
— Está indo aonde? No centro de convenções?
— Não. Na verdade, foi por isso que eu liguei.
No dia anterior, sem saber se Alice iria entrar em contato ou não, acabei
não contando para Liam que teríamos um encontro. Quando finalmente a
chamei para jantar, já era madrugada em Londres, então deixei para hoje.
— Eu conheci alguém.
Liam solta a caneta que estava na sua mão. Sua expressão traz uma alegria
contida; ele tenta esconder o sorriso sem sucesso.
— Eu vou precisar de mais detalhes aqui, meu amigo.
— O nome dela é Alice. Eu a vi na convenção, mas me apresentei só
ontem, quando a gente se esbarrou em uma cafeteria. Acabamos trocando
mensagens e jantamos juntos.
— E…?
— E estou saindo para encontrar com ela agora.
— Deixa eu ver se entendi. Você viu essa garota na convenção, saíram ontem e
vão sair hoje de novo.
— No que depender de mim, quero ver Alice todos os dias até eu voltar.
Liam levanta as sobrancelhas e se cala. Uma de suas mãos vai para o seu
queixo e ele dá pequenas batucadas com o indicador nos seus lábios.
— Liam?
— Você saiu com ela ontem e sairá agora — ele repete. Não é uma pergunta,
mas eu trato com se fosse.
— Sim.
— Você sabe que para ganhar a Olivia só precisa de uma noite, né?
Rio alto.
— Você é um idiota, Liam. Um idiota que sabe muito bem que eu estar
saindo para ver a Alice não tem nada a ver com a Olivia.
Ele abre um sorriso sincero. Liam sabe que, se isso fosse apenas uma garota
para sexo casual, eu não teria ligado para ele agora. Teria ligado depois do sexo,
sem falar nada sobre a pessoa com quem transei, apenas para dizer que ganhei.
Falar a respeito, dar nome à pessoa, eu só faço esse tipo de coisa quando
significa algo. Alice está nessa categoria. Eu ainda não sei o que ela significa,
muito menos se estou pronto para alguém como ela, entretanto sei o quão
rápido ela tomou conta de todos os meus pensamentos.
— Me fala sobre ela.
E eu falo. Sou mais genérico na hora de descrevê-la fisicamente; me
incomoda que outro homem pense no seu corpo, por mais que esse homem
seja um irmão para mim. Conto que ela cantarolava a nossa música sem nem
perceber, que é engraçada e inteligente, e que eu acho que eles se dariam bem.
— Também acho — ele responde. — Só pela forma como você fala, por como
está animado depois de tanto tempo… — Ele ia falar do caos que Melanie
deixou, mas fico feliz por parar. Não quero associá-la a nada sobre a Alice. Elas
são água e vinho, Alice sendo o vinho nessa metáfora. — Estou tão feliz por
você, irmão. Mas… E…. Você sabe…
Sei exatamente o que ele quer dizer. E a minha volta? Por que estou
querendo sair com alguém com quem eu estou me envolvendo
emocionalmente quando tenho que ir embora?
— Não sei, Liam. Mas quero isso. E, se eu só tiver duas semanas com ela…
Bom, é melhor do que não ter tido nada, certo?
— Viver é sempre certo, Harry. É isso que você está fazendo, vivendo. Estou
orgulhoso.
— Calma, cara. Só estou indo a um encontro, não é motivo de orgulho.
— O orgulho é meu e eu faço o que quiser com ele.
O alívio por parar de abrir meu coração para ele é imediato. Liam percebe e
mantém a conversa leve até encerrarmos a ligação quando está na minha hora
de sair.
Alice prometeu mostrar o Rio para mim, e eu mal posso esperar.
Mãe:
Que foto linda! Isso que é inverno! Faça uma videochamada ou nem precisa ligar. Liam é
o filho preferido até eu ver o seu rosto. Que os jogos comecem!
Minha mãe é tão parecida com Liam na sua forma de brincar e de ver a
vida, que às vezes eu me pergunto se ele não poderia mesmo ser seu filho
biológico.
Estou me preparando para responder quando sou impactado por um
familiar rebolado vindo na minha direção. Alice está usando uma calça preta de
brim, rasgada nos joelhos e, nos seus pés, um Adidas branco com detalhes em
preto; um suéter não muito comprido cobre o seu torso, deixando à mostra um
cinto preto ornado com pequenas bolinhas de metal; a alça da sua bolsa de
lona está posicionada entre os seus seios, marcando o espaço entre eles. Sua
maneira de se vestir é simples, trazendo uma elegância que eu não sei se ela
percebe que possui. Estou tão perdido no seu corpo que, só depois de alguns
segundos, me toco que ela está me oferecendo um copo gigante com um creme
roxo e bananas cortadas em rodelas.
— Bom dia! — ela diz, feliz demais para essa hora da manhã.
Aceito o copo e me inclino, dando um leve beijo na sua bochecha. Quero
nos lábios, mas não irei deduzir nada sem pedir a sua permissão.
— Bom dia. Isso é açaí?
— Yup! — ela confirma, estalando um lábio no outro para pronunciar o
“p”. — Prometi te apresentar o Rio, e não existe Rio sem açaí. Particularmente,
eu acho que tem gosto de terra, mas com xarope de guaraná e banana até que
fica bom. Além disso, é o prato perfeito para segurar a nossa fome até o
almoço.
— Vamos almoçar juntos também?
— Só se você quiser. — Alice responde olhando para baixo. Seu tom de voz
perdeu a alegria que tinha poucos segundos antes. — E puder, claro. Desculpa,
acho que não falei quanto tempo nosso passeio demoraria.
Ignoro meus pensamentos de cavalheiro e passo o braço que não está
ocupado com o açaí pela sua cintura, puxando-a para perto.
— Eu quero muito. — Ela levanta a cabeça e abre um sorriso. Não resisto.
— Posso te beijar?
— Deve.
Toco minha boca contra a dela, testando a sensação. Ela usa a sua mão livre
para puxar minha nuca, tentando aumentar a intensidade do nosso beijo, mas
eu continuo sem aprofundar. Quero deixá-la com vontade de mais. Alice se
recusa a aceitar a simplicidade desse momento e prende meu lábio inferior
entre seus dentes, mordendo levemente e me fazendo esquecer de que era para
ser apenas um pequeno beijo. Minha língua vai ao encontro da sua, enquanto a
minha mão que está na cintura dela vai para debaixo do suéter e aperta a sua
pele ali. Ela geme contra mim, entretanto se afasta antes que eu esteja
preparado para soltá-la.
— Estamos nos atrasando — ela diz, sem fôlego.
— Não tenho problema com isso.
— Se essa situação fosse em qualquer outro momento, eu concordaria.
Acredite em mim. Mas a gente tem hora marcada.
— Temos?
Ela confirma com um gesto de cabeça.
— Trabalhe em comer esse açaí enquanto eu peço o carro para a gente. Um
caminho longo nos espera.
— Caminho longo? Eu deveria ficar preocupado? Você pretende me levar
para o meio da mata e me assassinar ou algo do tipo?
— Metade dessa sua suposição está correta. Mas eu não vou te dizer qual.
Se o meu coração continuar batendo do jeito que está agora, é capaz da
parte sobre ela me matar acabar sendo a certa.
Estamos há mais de uma hora seguindo para nosso destino. O açaí acabou
há muito tempo e a conversa segue sem fim. Alice me conta o dia a dia do seu
trabalho como programadora, detalhes sobre Helô e sua paixão por caipirinhas,
os ataques loucos da sua mãe e a sensatez de seu pai. Eu falo do doutorado, de
Liam e da nossa banda. Penso em mencionar que ela cantarolava as melodias
de uma música que escrevi na cafeteria, contudo Alice leva o assunto para os
instrumentos que toco e acabo deixando para outro momento. Não digo nada
sobre Melanie. Ela não falou de nenhum ex, prefiro não estragar nosso passeio
com conversas pesadas.
Depois de alguns quebra-molas em uma estrada cercada de mata verde por
todos os lados, nosso carro faz a curva à esquerda e entra em uma rua com
paralelepípedos, fechada por um portão de grade. Do meu lado, uma placa
marrom diz que o local se chama “Sítio Burle Marx”.
— Estamos em um sítio?
— Melhor do que isso. Estamos em um patrimônio mundial da
humanidade.
O carro nos deixa na entrada e caminhamos um pouco entre plantas altas e
vegetação diversa até nos depararmos com uma casa branca com janelas azuis.
Alice estava certa, estar entre essas plantas reduz consideravelmente a
temperatura e acabo colocando o suéter. Um rapaz de cabeça raspada nos
aguarda nos degraus que levam à varanda da casa.
— Alice Santana?
— Prazer — ela diz, apertando a mão do jovem.
— E você deve ser o Harry. Meu nome é Marcos. Alice me disse ao
telefone que podemos falar em português, mas, se preferir, falo inglês também.
Aceito a mão que agora ele estende para mim e agradeço.
— Podemos falar em português sim.
— Marcos é biólogo e guia aqui do sítio — ela diz.
— Alice me falou que você também é biólogo.
— Sim, sou especialista em biologia marinha.
— O nosso foco aqui são as plantas, mas qualquer amante da natureza,
independentemente da especialização, não tem como não se apaixonar.
Absorvo a paisagem ao nosso redor e tenho que concordar com Marcos. O
verde vivo, mesmo no inverno, as vitórias-régias em um lago próximo, as
rochas e os caminhos de pedra. Esse é um lugar de paz.
— Vocês querem começar pela casa ou pela parte exterior?
Alice se vira para mim, aguardando minha resposta para a pergunta do
nosso guia.
— Você é a dona do nosso passeio; você decide.
— Vamos começar pela casa então, e encerrar em alto estilo aqui fora.
— Perfeito! Podem me seguir.
Marcos nos apresenta os trabalhos de Burle Marx, suas pinturas e
esculturas, nos mostra o piano que tocava, além de diversas coleções de obras
de arte. A casa é aconchegante, e os móveis antigos me tiram do presente. Fico
particularmente encantado pelo piano de cauda preto e pela cadeira de madeira
à sua frente. Imagino o prazer de tocar aquelas teclas enquanto vejo o verde
pela janela. As notas musicais e o barulho dos pássaros sendo o único som que
nos cerca.
Minha mente caminha mais um pouco e consigo ver Alice sentada na
cadeira de balanço ao lado, ouvindo-me tocar enquanto lê um livro. Porque a
coloco na cena, eu não sei. Entretanto, a ideia de tê-la por perto, fazendo algo
tão mundano quanto ler durante o tempo em que faço o que amo, me traz um
aperto no peito.
O passeio interno termina e saímos para ver as belezas da flora que nos
cerca. Sinto Alice passar do meu lado e seguro a sua mão, observando seu
semblante para poder identificar qualquer reação negativa. Logo me acalmo
quando seus dedos se entrelaçam aos meus.
Seguimos o caminho entre edificações simples, lagos calmos e plantas de
uma beleza ímpar. Embaixo de uma enorme figueira, com raízes que criam um
alto-relevo acima da terra, eu puxo Alice para perto e ofereço meu celular para
Marcos, pedindo que tire uma foto nossa.
Sob um céu limpo do inverno tropical, cercados pelas árvores e pelo
silêncio, a impressão de paz poderia ser facilmente substituída por uma de
solidão. Contudo, a mulher encaixada entre meus braços aquece meu corpo e
preenche todos os espaços de mim que estavam vazios.
Depois da visita ao sítio, Alice encerra a nossa manhã com um brunch no
Forte Copacabana. Estamos sentados do lado de fora, cercados pela vista da
orla da praia e do Pão de Açúcar.
Na volta, ela me questionou se eu era vegano. Disse que reparou que tinha
jantado apenas uma salada e, dada a minha profissão, imaginou que eu poderia
não comer nada de procedência animal. Contei que estou no processo para
isso, mas, por enquanto, só não como nenhum tipo de carne.
Ela usou essa informação para decidir onde íamos comer e foi mais uma
prova do quanto me nota. Nenhuma mulher nunca pensou tanto no que era
bom para mim. Melanie só queria saber da sua fracassada carreira e, antes dela,
eu tive apenas duas namoradas que não ficaram na minha vida tempo
suficiente para se importarem, o que torna Alice ainda mais especial. Eu a
conheço há dois dias, e nossa relação, nesse aspecto, já é a mais intensa que
tive.
Ela toma seu café com leite e canela enquanto aproveita a brisa de inverno.
Não se retrai com o frio contra o seu rosto, pelo contrário, ela o recebe com
uma expressão de gratidão.
O tempo em que me pego observando-a é o suficiente para esfriar o meu
waffle. Eu comeria só comidas geladas para o resto da vida se isso significasse
que poderia ficar olhando o perfil de Alice. Reparo no nariz arrebitado que já
tinha chamado minha atenção na primeira vez que a vi; no seu lábio inferior
que é levemente mais cheio que o superior e me faz querer mordê-lo; nos seus
cílios que são longos e escuros, mesmo ela estando com o rosto sem um pingo
de maquiagem. Alice tem uma beleza natural que não tenta esconder atrás de
quilos de tralha testada em animais de laboratório. Mais uma coisa para a
extensa lista de motivos para gostar dessa mulher.
Um assovio de alguém que passa atrás de nós me faz lembrar do que queria
falar quando estávamos indo para o Sítio Burle Marx.
— Quero te mostrar uma coisa.
Ela coloca a xícara na mesa.
— Isso parece sério.
— Nem um pouco, na verdade. Na cafeteria, ontem, você disse que não
tinha percebido que estava cantarolando uma melodia. — Eu pego meu celular
e entro no YouTube. Alice se arruma na cadeira para ver melhor a tela. —
Queria que você escutasse isso para saber se reconhece.
Estou mostrando para ela uma versão voz e violão que fiz da música para
mandar para a banda antes de gravarmos. O clipe oficial que lançamos tem
Melanie como atriz e eu não estou a fim de ver a cara dela, muito menos de
mostrar para Alice.
Ela olha fixamente enquanto a melodia emana do celular. Coloquei o
volume um pouco baixo porque odeio pessoas que veem vídeos no volume
máximo em ambientes públicos, mas, com o aparelho perto dela, sei que
consegue escutar.
Quando o vídeo termina, ela continua voltada para a tela.
— Essa música é linda.
— Obrigado. — Levanto seu queixo para que se vire para mim. — Está
tudo bem?
— Sim, muito bem. Você tem um dom, Harry.
— Obrigado. De novo. — Dou uma pequena risada, mas sinto que a
energia entre nós se alterou. Ainda não sei se é algo positivo ou não. — Essa é a
música que achei que você estava cantarolando. Mas acho que não tinha como
você conhecer mesmo, né? Meu ouvido devia estar tão desnorteado quanto o
resto de mim.
— Você estava desnorteado?
— Qualquer um que tem dois olhos e você no seu campo de visão fica
desnorteado, Alice.
Ela balança a cabeça, desmerecendo meu comentário como se eu estivesse
falando alguma bobagem. Mal sabe ela o quanto eu tenho convicção de cada
palavra.
Nossos olhares ficam presos um no outro até que o celular dela toca na
mesa. Alice vira a tela para baixo e acho que não consigo esconder o
questionamento no meu rosto.
— É do trabalho. Está na minha hora de ir. — Alice inspira fundo. —
Infelizmente.
Nós caminhamos de mãos dadas até a entrada do Forte. Ela pede um Uber
e se oferece para me deixar no hotel antes de seguir para o trabalho. Quero
aproveitar qualquer segundo que possa ter ao seu lado, entretanto ela já está
atrasada por passar a manhã comigo, não quero atrapalhar mais. Além disso, o
dia está lindo, então decido caminhar.
Coloco as mãos no rosto de Alice e mordo aquele lábio que me atiçava,
antes de aprofundar nosso beijo de despedida.
— Quando posso te ver de novo? — pergunto sem afastar meu rosto do
dela.
— Você quer me ver de novo?
Ela tem dúvidas? Eu me distancio o suficiente para poder olhar em seus
olhos.
— Por que não iria querer?
— Não sei…
Algo triste passa pelo seu semblante e eu preciso arrancar rápido isso dali.
Não consigo imaginar por que iria pensar que não gostaria de estar com ela,
mas preciso acabar com qualquer dúvida que tenha.
— Alice, as últimas vinte e quatro horas foram as melhores que tive em
muito tempo. Talvez até que eu já tenha tido na vida. Não é questão de querer
te ver de novo. Eu preciso te ver de novo.
Seu rosto volta a brilhar como antes e eu sorrio satisfeito. Sua boca
acompanha o movimento da minha e nos beijamos mais uma vez.
Nós nos separamos quando uma buzina toca do nosso lado.
— É o meu carro. — Ela me dá um beijo de leve. — Me manda mensagem
se quiser fazer algo amanhã. Uns caras chatos mandaram umas alterações que
eu preciso fazer no simulador, então hoje não vou conseguir, mas acho que até
amanhã já terminei.
O comentário sobre os “chatos” é seguido de uma piscadinha de olho.
Quando Liam faz isso, tenho vontade de socar meu amigo, no entanto, agora
quero fechar a porta do carro e pedir para ela não ir embora.
— Pode apostar.
Alice entra no carro e parte. Eu pego meu celular.
Harry:
Jantar amanhã. A hora que você conseguir terminar os ajustes dos gringos malas. 😉
Alice:
Isso não pareceu uma pergunta. Mas entendo que o ponto de interrogação possa ter
ficado perdido na tradução e vou aceitar.
Harry:
Só não foi pergunta por que eu já sabia qual seria a sua resposta.
Alice:
Que convencido! A sua sorte é que gosto de você, então vou relevar.
Harry:
Sou muito sortudo mesmo.
Releio a sua última mensagem e volto a digitar. Aperto para enviar e sigo
pela orla me sentindo com três metros de altura.
Harry:
Também gosto de você.
E u sou uma péssima pessoa.
Não bastava eu ter criado um perfil falso para causar ciúmes no Rafael.
Não bastava eu ter deixado Helô se passar pelo sósia imaginário de Harry.
Não bastava eu ter permitido que ela mobilizasse toda uma turma de
psicologia para servir à minha loucura.
Eu ainda precisava usar o que aprendi com o perfil do Harry para chamar
sua atenção na cafeteria.
Sou uma mentirosa de marca maior, como diria minha mãe. Se bem que,
tecnicamente, eu não menti agora. Fiz questão de não falar se conhecia ou não
a música, só tecendo elogios para as habilidades musicais de Harry, que são
realmente inquestionáveis.
E, quando eu achava que meu passado de louca não ia mais afetar o nosso
encontro, o meu celular tocou e no visor apareceu o rosto de Harry com o
nome “Fernando” na tela. Nunca me odiei tanto quanto naquela hora. E só
piorou depois da mensagem dele admitindo que gosta de mim.
Harry revelou no jantar que já me conhecia. Ele está se deixando levar pelo
que a gente está vivendo. Enquanto eu fico escondendo a verdade, ao mesmo
tempo em que não consigo fazer meu coração parar de se envolver.
Não posso me deixar levar. Não posso porque não quero que nossa relação
seja baseada em mentiras, e, se eu permitir que a gente se aprofunde, se ele
deixar de ser só o cara que vou pegar durante duas semanas, é exatamente isso
que a gente vai ser: uma mentira.
É isso. Vamos ser só um caso de poucos dias. Ele vai voltar para a
Inglaterra, em breve, não tem como ser mais do que isso. Nesse tempo, eu
preciso fazer o que for necessário para que ele não descubra o que fiz e, depois
disso, cada um vai para o seu canto e eu posso seguir sendo louca sozinha.
Assim que chego na minha baia, pego o celular e troco as informações de
Helô para que volte a ser minha amiga esotérica e deixe de ser Fernando
Williams. Esse é o primeiro passo para o plano que estou chamando de “Nada
Vai Atrapalhar Minha Pegação Com Harry”. O segundo passo, eu vou colocar
em prática na reunião que tenho em dez minutos com Raquel e Rafael.
— Oi. — Eu tiro o foco do meu celular e levanto a cabeça, sendo
surpreendida por Vanessa. Ela está com um braço apoiado na parede da minha
baia e, pela maneira como mexe a boca, acho que está mordendo a bochecha.
— Posso falar com você um segundo?
— Claro.
— Podemos ir para a copa?
Vanessa olha por cima do ombro, na direção da baia de Rafael. Ele está se
levantando para ir para a sala de reunião, mas minha baia fica no meio do
andar, então, mesmo sem ele por perto, não teríamos privacidade.
Eu a sigo pelo pequeno corredor que leva à copa. Ela fecha a porta atrás de
nós. Me pergunto se agora é o momento em que ela surta e me assassina com a
faca que está suja de requeijão na pia.
— Eu queria te pedir desculpas.
Okay… Não estava esperando por isso. Acho que nada de assassinato à la
cream cheese então.
— Desculpas? Pelo quê?
— Eu e Rafael terminamos anteontem e ele me contou que estava com
você pouco tempo antes. Quero que saiba que se eu tivesse alguma ideia disso,
jamais teria falado para você sobre nosso namoro e sobre como estava feliz. Eu
não sou esse tipo de pessoa e passei o dia ontem péssima por não conseguir te
pedir perdão, mas, como você estava tão ocupada, não queria te atrapalhar,
atrasar o seu trabalho e depois ter que pedir desculpas por isso também. Achei
melhor conversar com você hoje, antes do redemoinho de reuniões que te
espera começar.
Deus, essa mulher é uma fofa. Agora que não sou mais uma pessoa
obsessiva, ciumenta e rancorosa, consigo apreciar isso.
— Não imaginei que você estivesse fazendo de propósito.
Ela se apoia na bancada da pia, em sinal de alívio, sem perceber que sua
saia branca está absorvendo a água do mármore molhado. A marca começa a
expandir e é possível ver o contorno da calcinha rosa clara que ela está usando.
— Você não sabe como fico bem ouvindo isso.
Essa cena me faz refletir sobre Vanessa: será que ela é tão humilhada pela
vida quanto eu? Ela pediu um cara que ainda estava ligado em outra em
namoro; o relacionamento dura dias e ele termina falando que quer voltar para
a ex. Ela corre para pedir perdão para a tal da ex porque só quer ser uma pessoa
boa e ainda termina com a saia molhada e a calcinha exposta.
Imediatamente, tiro meu suéter e entrego para ela.
— Aqui. Você molhou a saia, amarra isso na cintura.
Vanessa olha para a transparência antes de aceitar meu suéter.
— Ai, Alice. Muito obrigada! Depois de tudo que eu fiz, ainda me ajuda?
Você é tão legal.
— Não, nem um pouco. Mas você é e não merece andar com a calcinha
aparecendo. A menos que você queira, nesse caso, nenhum julgamento da
minha parte.
Ela dá uma risada sincera.
— Acho que está cedo. Vamos deixar as transparências para de noite.
Gente boa e engraçada. Consigo ver o que Rafael enxergou nela e sinto
uma pontada de pena e culpa por não ter dado certo entre eles.
Saímos da copa e eu passo na minha mesa para pegar o meu tablet antes de
seguir para a sala de reunião. Falar com a Vanessa me fez sentir um pouco pior
sobre o fato de eu não ser uma pessoa boa, mas vou deixar para chorar sobre
isso com a Helô em outro momento. Agora preciso continuar com o meu
plano “Que Esqueci O Nome, Mas Tem No Título Algo Sobre Pegar O Harry”
para fazer com que ele não descubra que sou uma sociopata.
Cumprimento Raquel e Rafael quando abro a porta e me sento ao lado
dele. Raquel está terminando de abrir o simulador na TV.
— Hoje de manhã, já dei uma olhada nos ajustes que vocês fizeram ontem.
Acho que está quase pronto, só vi umas questões de correção de cor nas
transições de cena.
— Eu tinha deixado para fazer esse tipo de ajuste depois que você aprovasse
para não ter que refazer se precisássemos mudar algo.
— Maravilha, Alice. Imaginei que fosse isso mesmo. Nesse caso, está tudo
certo. Falei com a organizadora do evento e ela disse que o telão vai ficar na
entrada do centro de convenções. Vocês vão estar perto, em uma cabine, de lá
conseguirão ver o telão por inteiro para poderem intervir no caso de algum
problema.
O maior problema sendo Rafael e Harry em um mesmo lugar.
— Raquel — interrompe o Rafael. — Eu acabei de começar a estruturação
do jogo de celular do canal infantil, mas estou encontrando alguns problemas.
Não queria atrasar a entrega por causa da semana do meio ambiente. Alguém
pode ficar com isso enquanto estamos lá?
Obrigada pela deixa, Rafael! Se eu não tivesse já superado a nossa relação
tóxica, era capaz de te dar um beijo. Na bochecha, claro.
— Hum, verdade — responde Raquel. — Não podemos atrasar esse de
jeito nenhum. Vou pedir para a Jéssica e o Luiz assumirem suas funções por
aqui nesse período.
— Eu estava pensando — interrompo —, se der algum problema, vai ser
algo técnico. Como já estarei lá acompanhando, o que acham de eu ir sozinha?
Assim o Rafael pode ir tocando o trabalho dele e só o meu precisa ser
encaminhado para alguém. A menos que você queira ir, Rafael.
— Não, concordo com você. Posso ficar se a Raquel não se importar.
— Em eventos, sempre gosto de mandar a dupla responsável caso surja
algum questionamento além dos problemas técnicos. Mas acho que Alice
consegue responder pelo projeto.
— Consegue sim — ele confirma.
— Então não vejo problemas. Ótima ideia, Alice. Faremos assim. Você vai
e Rafael segue por aqui. Luiz pode tocar o jogo do canal nesse estágio inicial
com você, Rafael.
Segundo passo do plano “De Nome Gigante E Impossível De Lembrar”
finalizado. Sem Rafael no evento, as chances de ele encontrar Harry são nulas.
Uma pontada de culpa me atravessa, entretanto, eu a afogo com pensamentos
reconfortantes. Harry vai ficar aqui por pouco tempo, não temos futuro, só
temos o agora. E eu preciso do agora com ele.
Helô colocou uma playlist dos Beatles para me fazer entrar no clima de um
encontro com um inglês. Achei desnecessário na hora, mas, enquanto eu grito
oh, darling! e experimento todo o meu armário, confesso que a trilha sonora
está ajudando.
— Você não é uma péssima pessoa — ela diz, voltando ao meu ataque de
nervos que estava a toda antes de essa música começar. — Equivocada talvez
seja uma palavra melhor.
— Nossa, obrigada.
Assim que Helô chegou aqui em casa, contei para ela tudo que se passou
ontem: desde as desculpas de Vanessa até meu plano para manter Rafael
afastado do Harry. Ela ficou em silêncio durante o meu desabafo, apesar de não
ter conseguido evitar algumas levantadas julgadoras de sobrancelha.
— Você não fez nada contra a Vanessa; pare de se martirizar com isso! Na
verdade, você nem fez nada diretamente para o Rafael também. Se ele estava de
olho nas suas redes e a chegada de Fernando motivou o término com ela, é
porque ele não tinha te esquecido mesmo. O Rafael tem problemas próprios
para lidar e você não é a responsável por eles. Supera esse sentimento de culpa
infundada e foca suas forças onde você realmente tem culpa.
— Harry.
— Bingo.
Me jogo na minha cama e aperto o travesseiro contra o meu rosto para
abafar um grito.
— Essa é a reação correta. — Helô comenta enquanto a ouço movimentar
alguns cabides no armário. Tiro o travesseiro do rosto e me viro para ela.
— Como eu posso seguir saindo com ele sabendo que o nosso começo foi
uma mentira?
Ela expira fundo e se senta na ponta da cama, dobrando um vestido verde
sobre o seu colo.
— No começo de qualquer relacionamento a gente mente. Colocamos
uma persona que consideramos ideal na esperança de mostrar os nossos
melhores ângulos para a câmera do outro. Só com o tempo vamos derrubando
as barreiras em volta do nosso peito e mostrando todo o Photoshop que
estávamos aplicando.
Às vezes eu me esqueço de como Helô pode ser profunda. Ela vive me
mostrando uma faceta cínica, mas, em momentos como este, vejo como minha
amiga tem paredes próprias que só derruba para mim.
— A questão aqui — ela continua —, é que você usou informações
privilegiadas para criar a sua persona. O que você precisa se perguntar é se a
relação de vocês vai durar tempo suficiente para você tirar o Photoshop.
— Não tem como, Helô. Ele mora do outro lado do mundo.
— Ele mora no Japão? — Taco o travesseiro em sua direção e ela o pega no
ar, rindo. — Alice, se quiser, você pode ter um relacionamento à distância. Vai
ser um saco e as chances de término são grandes, mas acho que você está se
antecipando. Vocês se conhecem há três dias! Dá uma chance para vocês sem
ficar pensando tão longe.
Observo o ventilador de teto desligado pensando nas palavras de Helô. Dar
uma chance, mas sem ficar “noiada” com o futuro.
— Eu posso fazer isso.
— Claro que pode!
— Então, eu continuo mentindo.
— Não foi o que eu disse.
— Mas também não foi o que não disse.
— Eu nem sei mais o que você está falando. Só sei que ele vai estar aqui em
vinte minutos e até agora a gente decidiu que você não vai vestir a jaqueta de
couro que usou para ir de Cher dos anos 80 na festa à fantasia do Antoine.
— Antoaim? — tento repetir, assassinando o sotaque francês. — Você quer
dizer a festa do Antônio?
— Não mais.
— Como assim “não mais”?
— Ele passou três semanas na França e ficou com um cara que falava o
nome dele assim. Então, a partir de agora, quer ser chamado de Antoine. — ela
fala o nome abrindo a boca com um floreio.
Antônio, desculpe, Antoine, é amigo de infância da Helô. E toda semana
ele traz uma novidade dessas. A cada novo namorado, vem uma tatuagem
nova, um piercing em um lugar que não dá para ver com roupas, uma cor de
cabelo diferente e, aparentemente, uma nova maneira de pronunciar seu nome.
E, como ele é gato, namorado é o que não falta.
Imagino que, se Rafael não o tivesse conhecido naquela festa, eu podia ter
fingido que Antoine era o meu namorado e nada disso teria acontecido.
— Por falar em Entuany, — Helô contrai o rosto com a minha contínua
vontade de arrasar a pronúncia. — Você falou para ele do nosso projetinho
chamado Fernando?
— Claro.
— E o que ele disse?
Pego o vestido verde que Helô tinha deixado sobre a cama e começo a
trocar de roupa. O tecido é grosso, tem manga três quartos, é justo na cintura e
folgado nos quadris, indo até os joelhos. Com meu tênis de cano alto preto, vai
ficar bom para esse tempo um pouco mais frio.
— Ele riu e depois chorou. Riu porque amou a insanidade da história toda
e chorou por não estar com a gente para ajudar a fazer o perfil. Disse que podia
até sentir o gosto das caipirinhas perdidas.
Como eu pensei, não me ajuda em nada.
Depois de pronta, vejo que Harry me mandou uma mensagem para avisar
que estava esperando no carro, na frente do prédio. Fecho a porta e desço com
Helô. No elevador, me encosto contra o espelho no fundo.
— Talvez seja melhor contar logo para ele. Se eu contar, posso destruir
minhas chances de aproveitar esses dias ao seu lado. Mas, se não contar, não
teremos chance de ter nada além disso. — Aguardo uma resposta, mas Helô
não diz nada. — Você quer conhecer o Harry? — pergunto quando chegamos
na portaria.
— Outro dia.
Nunca duas palavras tiveram tanto significado. Tudo depende desta noite.
Se eu decidir contar e ele não quiser mais me ver depois, não haverá outro dia.
Me despeço de Helô, entro no carro e me dou conta de que não estava
preparada para ver Harry. Seu cabelo ligeiramente molhado; a sombra da barba
de fim de dia; a camisa de botão preta solta na sua cintura, mas agarrada aos
seus bíceps; seu jeans preto folgado nas suas pernas.
Sim, eu estou babando.
No entanto, quando termino de estudar cada centímetro do seu corpo,
percebo que ele estava me analisando também.
— É, você continua linda.
— Posso dizer o mesmo de você.
Ele segura o meu rosto com ambas as mãos — como eu amo quando ele
faz isso! — E me beija de leve.
— Aonde nós vamos? — pergunta o motorista antes que a gente se
empolgue no seu banco de trás.
Dou o nome do restaurante vegano que vou com Helô ocasionalmente. Ele
fica perto e tem um clima mais intimista, que pode ser romântico para esta
noite.
No fundo, sei o que preciso fazer. Porém, isso não quer dizer que não possa
tentar ter uma noite especial antes.
E stamos sentados na área externa do restaurante, onde o toldo que nos cobre e
as tochas espalhadas ao nosso redor mantêm o frio longe e o ambiente
aconchegante. Os dois hambúrgueres veganos que pedimos acabaram de
chegar. É estranho estar em um encontro, de camisa social, e comer
hambúrguer, mas Alice insistiu que o daqui era ótimo e eu precisava
experimentar.
Para acompanhar, pedimos duas cervejas. Outra novidade para mim em
encontros: não pedir vinho ou algum drinque. Melanie sempre queria um
drinque. Quanto mais guarda-chuvas e cores, melhor. Tudo com ela era
extravagante e pomposo, tão diferente de Alice.
Afasto o passado para dar espaço ao presente.
— Como você conhece esse lugar? Não parece ser parte de um roteiro
turístico.
— Minha amiga Helô, lembra? Ela é vegana e a gente fica revirando a
cidade em busca de restaurantes onde ela possa comer algo que vá além de
salada e batata frita.
— Acho que batata é a comida salva-vidas de qualquer vegetariano, não
importa o lugar do mundo. É a minha grande companheira pelos pubs de
Londres.
Alice desvia o olhar e tenta esconder um sorriso.
— Algo errado?
Ela se volta para mim, mordendo o lábio inferior. Abre a boca como se
fosse me responder, mas balança a cabeça, desistindo.
— Não é nada. Esquece.
— É alguma coisa. Me conta — pergunto, dando mais uma mordida no
hambúrguer. É realmente muito bom.
Ela coloca o seu hambúrguer apoiado no prato e passa uma mão na outra,
tirando farelos do pão.
— Promete não rir?
— Não.
Seu sorriso se alarga e ela continua.
— É que você tem um sotaque quando fala português que já é
incrivelmente sexy, mas agora falou pub e eu me dei conta de que é inglês.
Assim, eu sei que você é inglês, mas não estava psicologicamente preparada
para te ouvir falando inglês.
— E você gostou?
— Sim, muito. E pub é uma coisa britânica. Foi uma boa primeira palavra.
— Você quer mais?
— Como assim?
— Quer que eu fale mais? Coisas bem britânicas?
— Está bem… — ela responde com um ar de dúvida.
— This burger is bloody brilliant. — Sua expressão de deleite me instiga a
continuar. — I’m gobsmacked.
— Agora acho que você está inventando palavra.
— I’m chuffed that I met you; chuffed to bits.
— Eu não tenho ideia do que essa expressão significa, mas… Uau!
— Você continua achando meu sotaque sexy então?
— Entre outras coisas — ela responde. Seus olhos continuam em mim,
mas se movimentam na direção da minha boca.
— Que coisas? — pergunto. Quero deixá-la encabulada.
Para minha surpresa, Alice não se cala. Ela se inclina na mesa e abaixa o
tom, deixando sua voz aveludada.
— A cor chocolate do seu olhar. A força do seu queixo. A sensação nos
meus dedos quando toco o seu rosto e sinto a fina camada de barba por fazer.
— Ela estica o braço sobre a mesa para arrastar o seu indicador sobre a minha
mão. — A segurança que sinto quando me envolve com seu abraço. O calor
que a sua mão cria quando segura o meu rosto para me beijar. Um calor que
me faz imaginar essa mão em outras partes do meu corpo.
Minha calça jeans fica imediatamente apertada.
— Gobsmacked indeed.
Harry:
Okay, eu entendo. Se mudar de ideia, estou aqui.
Demorou tanto para responder isso? Será que ele acha que eu não gostei de
ontem e por isso desisti de encontrá-lo hoje? O dia foi tão corrido que nem
agradeci as flores. É óbvio que ele acha isso.
Alice:
Eu amei as flores. E amei ontem…
Reticências são uma forma de pontuação que não ganha o crédito devido.
Três pontinhos que dizem tanto. Por exemplo, você pode usar para interromper
um pensamento (“Eu não sei…”), para dizer que a outra pessoa é idiota (“Eu
te avisei…”), ou para mostrar que, mesmo no meio do trabalho, você está
pensando sobre um cara metendo em você (exemplo na mensagem acima).
Harry:
Jura? Amou… Tudo?
Alice:
Sim. Quero repetir, Harry. Se eu conseguir acabar rápido, te aviso. Mas pelo volume de
trabalho, não vou ter tempo livre até o início do evento.
Harry:
Também quero, Alice. Mais do que tudo.
Eu estava exausta até dois segundos atrás, mas agora tudo que mais quero é
ouvir a voz do Harry e aquele sotaque que me derruba.
Alice:
Sim. Você não consegue dormir?
Alice:
Desculpa, estava em reunião e só vi agora. Consegui terminar! \o/ Mas estou exausta.
Nos vemos amanhã no evento, tudo bem? Boa noite, Harry.
Ahn… Isso não era nem um pouco o que eu esperava. Claro que ela está
cansada. Trabalhou o fim de semana inteiro. Queria ser o cara que entende
isso, manda uma mensagem respondendo “até amanhã” e depois vai bater uma
no chuveiro para se acalmar. Mas eu estou trabalhando fora do meu juízo
perfeito aqui, então preciso vê-la.
Harry:
Já te disse que dou uma excelente massagem nos pés? Ouvi dizer que tenho mãos
mágicas… Posso te ajudar a relaxar.
Achei que era um bom momento para lembrá-la do que meus dedos são
capazes.
Alice:
As habilidades mágicas das suas mãos nunca foram questionadas. 😉
Harry:
Me dá seu endereço. Elas sabem exatamente como fazer você relaxar.
Alice:
Melhor não, Harry. Realmente preciso descansar.
Harry:
Prometo me comportar. Guardo as mãos nos bolsos, o tempo todo. Só preciso te ter.
Merda de ato falho.
Harry:
Ver! Só preciso te ver! Isso que eu quis dizer. Minhas mãos estão fora de controle
digitando a mensagem, mas juro que consigo mantê-las na linha pessoalmente.
São cinco dias, mas parece que não durou nem uma hora. O telão foi um
sucesso e não me deu nenhum trabalho. As palestras do Harry também foram
ótimas e lotaram todos os dias. Consegui escapar durante alguns minutos, no
terceiro dia, para assistir a uma e fiquei impressionada com a sua capacidade de
dominar o ambiente.
A paixão pelo que faz está em cada palavra, em cada gesto. Não tinha uma
pessoa olhando o celular, pois todas estavam hipnotizadas pelo que ele falava.
E, mesmo abordando temas tão sérios, conseguia trazer leveza e até contava
algumas piadas que faziam todos rirem de quase chorar. Me lembrei de que ele
comentou algo sobre ser professor assistente quando estávamos no trajeto para
o Sítio Burle Marx e, observando-o naquela sala, notei que ele sabe trabalhar
um auditório quase tão bem quanto sabe trabalhar o meu corpo. Nunca fui de
me excitar com fantasias não-realistas, contudo, ao vê-lo naquele palanque,
admito que fui dominada por imagens do professor Harry, preso em uma sala
de aula comigo, a aluna que precisa de disciplina.
Agora é sexta-feira, último dia do evento. E penúltimo dia do Harry no
Brasil.
As portas do centro de convenções ainda não foram abertas para o público
e sei que Harry não chegou — sua palestra é só às onze da manhã e, depois de
uma noite acordado na minha cama, ele precisava das horinhas a mais de sono
— então coloco meus fones bluetooth e deixo Cher me dizer que encontrou
alguém para tirar a sua dor e sua solidão.
O cubículo onde estou continua sendo apertado, mas, agora, cada
centímetro está com lembranças de nós dois juntos.
Harry na cadeira e eu em cima dele, de frente; Harry na cadeira e eu de
costas; Harry ajoelhado no chão e eu de quatro; Harry atrás de mim, contra a
parede; Harry deitado e eu cavalgando o seu corpo; Harry em pé e eu sentada
no único espaço da bancada sem um equipamento. Resumindo, foram bons
quatro dias. Mal posso esperar para ver o que conseguimos fazer hoje.
Particularmente, queria explorar mais a cadeira, acho que ainda tem potencial.
Deus, como amo a pessoa que inventou espelhos unidirecionais! Fazer tudo
o que já fizemos aqui dentro, sem ninguém saber o que está acontecendo, mas
conseguindo ver o outro lado, é tão excitante.
Nossos dias têm sido assim: mergulhos de manhã, promiscuidade durante
o dia e mais um pouquinho de promiscuidade à noite. Me enfiar debaixo do
edredom com Harry, no seu hotel ou no meu apartamento, só nós dois, depois
de um longo dia, tem sido a experiência mais gostosa que eu já tive. Esse
homem todo é a experiência mais gostosa que eu já tive.
Estou cantando e pensando em todo o potencial da cadeira quando sinto
uma mão no meu ombro. Fiquei tão entretida assim que já deu tempo de
Harry chegar? Me viro e o sorriso que estava se formando é arrancado do meu
rosto e jogado na lama. Depois, ele é pisoteado por uma manada de elefantes,
engolido por um jacaré, excretado e pisoteado pela mesma manada que está
fazendo o caminho de volta.
— O que você está fazendo aqui, Rafael? — digo, removendo o meu fone.
— Nossa, que recepção calorosa!
Balanço a cabeça, tentando manter a compostura.
— Desculpa, só levei um susto. — Mostro o fone nas minhas mãos. —
Estava perdida no mágico mundo de Cher.
— Então eu que peço desculpas por ter te tirado esse pequeno prazer.
Rafael puxa a cadeira do meu lado e se senta, entrelaçando os dedos sobre
sua barriga tanquinho e cruzando os calcanhares.
ELE. SE. SENTA.
Sua postura tranquila e relaxada me mostra que não só se senta, mas que
pretende ficar um tempo.
Sinto que o prazer de ouvir a Cher não vai ser o único que ele vai me tirar
hoje.
— O canal do jogo infantil teve uma mudança na diretoria e o cliente vai
precisar refazer o briefing para agradar o novo chefe. Enquanto não mandam,
estou de mãos atadas, por isso a Raquel pediu para eu vir hoje te ajudar. Achei
que ela ia te avisar.
— Não, não avisou — falo, tentando segurar a ânsia de vômito.
Rafael aqui. Rafael e Harry aqui. No mesmo lugar. Eu não tenho estrutura
emocional para isso, meu pai!
As paredes parecem estar menores, não parecem? Menores não, estão se
movimentando. Estão vindo na minha direção. Todas ao mesmo tempo.
Minhas mãos tremem e deixo meu fone cair no chão.
Rafael se abaixa e o pega, fazendo sua cadeira ranger.
Ela não estava rangendo na segunda-feira. Ela está rangendo agora, por
causa do peso de dois corpos transando em cima dela.
Duas vezes.
Sinto um aperto no meu peito. Está tão forte que não dá para respirar.
— Alice, você está bem?
Não consigo esconder o ataque de pânico. Rafael me conhece, sabe das
minhas fobias e crises. Ele se levanta correndo e escancara a porta.
— Vamos lá para fora, Alice. A claustrofobia vai melhorar quando você vir
o salão.
Quero me levantar, porém minhas pernas não obedecem. Tento responder,
mas as palavras não saem. Ele percebe e empurra a minha cadeira, levando-me
arrastada para fora. Ver Rafael sendo carinhoso e cuidando de mim torna tudo
pior. Eu menti para ele também. Inventei um perfil falso para manipular seus
sentimentos e fazê-lo perceber o que tinha perdido. E, depois de mexer com a
sua cabeça, eu ainda tive a cara de pau de dizer que não o queria mais.
O inferno vai ter um tipo especial de tortura para mim. Vou receber
convite para o salão VIP do Demo, com acesso aos bastidores e tudo. Vou
poder ver show da banda do Hitler e tomar drinks com Calígula; e os drinks
serão uma mistura de fígado com estrume de vaca e um toque de xixi de gato.
— Respira comigo, Alice. — Rafael está agachado aos meus pés,
inspirando e expirando com calma.
Queria ter a sua calma, Rafael!
Tento focar na sua respiração. Preciso sair da crise quanto antes para
conseguir pensar no que vou fazer, se é que existe algo que eu possa fazer.
— Helô — pronuncio entre dentes.
— Você quer que eu ligue para Helô?
Faço que sim com a cabeça. Ele pega meu celular e o aponta para o meu
rosto, para que o reconhecimento facial destrave o aparelho.
Ele está tão perto das mensagens com Harry e com Helô, mensagens que
revelariam a verdade. Minha respiração piora.
Entretanto, sei que ele está focado em ligar para minha amiga.
— Helô? É o Rafael — ele diz, observando-me. Não consigo ouvir o que
ela responde, mas imagino que esteja tão confusa quanto eu me sinto. — A
Alice está tendo uma crise de pânico aqui, na conferência. Achei que era
claustrofobia e a tirei da cabine, mas não está passando. … Sim, eu estou na
conferência. … Não, acho que ela não sabia. Por que isso importa? … Não
sabia que isso era importante para você pensar qual é o melhor tratamento. …
Não, eu não tenho um diploma de Psicologia. … O que tem a ver se eu como
carne ou não?
Ela claramente está se perdendo.
Estico o braço, pedindo o aparelho.
— Ela quer falar com você, Helô.
Rafael segura o celular contra o meu ouvido.
— He.. lô… — Mal consigo formar a palavra.
— PUTA QUE PARIU, ALICE! O QUE ESSE HOMEM ESTÁ
FAZENDO AÍ?
Rafael me olha apreensivo, mas parece não ter escutado o berro do outro
lado da linha. Dou graças a Deus pelo centro de convenções já estar
movimentado o suficiente para abafar a histeria da Helô. Confesso que,
inclusive, fico um pouco irritada. O momento de histeria é meu, e ela está
querendo roubá-lo de mim!
Não consigo responder. O peso no meu peito aumenta, e só balbucio
vogais e consoantes, sem uma ordem ou um sentido.
— Acho melhor resolvermos sua crise antes de a gente discutir isso, né?
Você acha?
— Passa o celular de volta para o Rafael.
Me afasto do aparelho e olho para o Rafael, sinalizando para ele pegar.
— Oi. … Okay, pode deixar. — Ele pega o seu próprio celular, mexe em
algo nele e volta a falar com Helô. — Pronto, coloquei o cronômetro. Vou
devolver o aparelho para ela agora.
Ele volta com o celular para minha orelha e me mostra o seu, com a tela do
cronômetro aberta.
— Querida, eu preciso que você foque na minha voz e na tela à sua frente.
Está vendo os números passando? Os segundos virando? Você conhece isso. Sabe
como o tempo passa. Sabe que número vai vir depois e qual ficou para trás. Esses
números são seguros, Alice, não vão mudar. Tenta pensar no próximo e, assim que
virar, pensa no seguinte. O tempo é seguro. Você está segura.
O tempo é seguro. Eu estou segura.
A calma e a firmeza no tom que Helô assume ao vestir o seu chapéu de
psicóloga me trazem para o presente e, aos poucos, sinto como se estivesse
voltando ao controle.
— Continua vendo os números, Alice. Não tira os olhos deles, mas agora foca
também na sua respiração. Vamos contar quatro segundos para a sua inspiração e
quatro para a expiração, tudo bem? Eu conto para você. Inspira; um, dois, três,
quatro. Isso, Alice. Agora, expira; um, dois, três, quatro.
Helô repete a contagem durante exatos cinco minutos. Eu sei porque estou
acompanhando de perto um cronômetro.
— Como você está se sentindo?
— Melhor.
Só o fato de conseguir falar alguma coisa já mostra isso. Rafael ajoelha ao
meu lado, com um sorriso de alívio no rosto. Dou um de volta para confortá-
lo.
— Você consegue se levantar?
— Acho que sim.
Coloco os pés no chão e Rafael segura o meu braço, ajudando-me. Pego o
meu celular na sua mão e continuo falando com Helô.
— Obrigada. Eu achei que ia ter um troço.
— Você teve um troço, Alice. — Verdade. — Imagino que com Rafael aí você
não possa elaborar muito, mas já sabe o que vai fazer para manter esses dois longe
um do outro? Como você não me ligou essa semana, nem respondeu minhas
mensagens, tenho certeza de que não falou para o Harry ainda, estou errada?
Meus batimentos cardíacos dão uma leve acelerada.
— Não, não está.
— Tenho uma ideia. Desmaia.
— Oi?
— O Rafael já te viu passando mal, então não vai estranhar se você desmaiar.
Se os dois forem se encontrar, desmaia.
— Helô, eu preciso voltar ao trabalho. Obrigada pela ajuda com a minha
crise, e não com esse conselho idiota de agora.
— Eu salvo a vida dela e ainda sou chamada de idiota.
— O seu conselho foi idiota, você é maravilhosa.
— Sou mesmo, e você faz bem em se lembrar disso. Beijos, querida.
— Beijos.
Desligo e noto Rafael, que não tirou os olhos de mim.
— Se a Helô te deu um conselho sobre como lidar com o seu pânico, acho
que deveria seguir. Ela resolveu por telefone a sua crise, sabe do que está
falando.
— Era um conselho sobre cuidados com a pele — minto —, ela emenda
um assunto no outro, sabe como é.
Rafael assente.
— Acha que consegue voltar lá para dentro? Podemos deixar a porta
aberta…
— Não! — grito, antes de conseguir me controlar. Se a porta estiver aberta,
Harry pode ver como um convite para entrar aqui. Preciso dar um jeito de
superar a minha claustrofobia e manter essa porta fechada. — Helô me deu as
ferramentas de que eu preciso para lidar com isso. Acho melhor colocá-las em
prática.
— Se você prefere assim. Posso te ajudar com alguma coisa?
— Só me distrair. — Não como o Harry me distrai, claro. — Conversa
comigo, brinca, tira a minha cabeça daqui.
— Posso fazer isso. Vamos voltar lá para dentro então?
— Vai entrando. Me lembrei de que tenho que responder a um e-mail.
Rafael obedece. Espero ele desaparecer dentro da cabine e eu abro o
aplicativo de mensagem. Quando começo a digitar, ainda não sei o que vou
dizer, mas no fim decido por me manter o mais próxima possível da verdade.
Alice:
Um colega de trabalho foi enviado para me ajudar hoje. Acho melhor deixarmos para
nos ver de noite, tudo bem?
Harry:
Claro, não quero atrapalhar. Quer fazer alguma coisa ou prefere ficar em casa? 😘
Alice:
Prefiro ficar em casa…
Harry:
Eu também. 😉 Te vejo às oito!
Alice:
😗
— Braaaaaaaaaaaa.
— Pronto, pronto, querida. Coloca para fora.
— A senhora é tão boa para mim, Dona Clô.
— Tive que ser, não é, querida? A outra opção seria você se vomitar toda,
sozinha e algemada na frente do avião. E por mais que eu seja fã de algemas,
acho que vomitar usando um par não seria agradável.
— Eu culpo o Viagra que a senhora me deu. Braaaaaaaaa.
— O que a sua consciência achar melhor.
— Senhoras e senhores, sejam bem-vindos ao aeroporto de Heathrow. São
oito e trinta e sete da manhã, hora local de Londres. O céu está limpo, sem
sinal de chuva e com temperatura de vinte graus Celsius. Dentro de instantes,
vamos iniciar o desembarque, mas permaneçam em seus assentos até que o
aviso luminoso de apertar o cinto esteja desligado. Obrigada por escolherem a
Fly British e tenham todos um bom dia.
A piloto repete o discurso em inglês e lágrimas começam a escorrer do meu
rosto. Estamos no chão. Chegamos. Eu cheguei. Peguei quase doze horas de
voo sozinha. Mesmo com a montanha-russa de emoções que vivi — e
entretenimento de qualidade que ofereci aos outros passageiros —, agora o ar
que me cerca traz um quê de realização pessoal. Nunca achei que seria possível
cruzar o oceano com todas as minhas fobias e os meus ataques de pânico,
porém eu consegui!
Posso ter entrado nesse avião pelo Harry, mas saio por essa porta me
sentindo melhor comigo mesma. O medo existe e sempre vai existir. No
entanto, eu ter feito isso, ainda que desesperada, provou coragem. Me sinto
corajosa. Me sinto bem. Me sinto leve.
Também, depois de ter vomitado até a alma, não tinha como me sentir
pesada. Obrigada pela escova de dentes de cortesia, Fly British!
O tempo do voo permitiu que eu conseguisse me recuperar da bebedeira
com um toque de remédio de enjoo a tempo da aterrissagem, então já estou
sóbria quando chego ao guichê da Imigração. Se não fosse Dona Clô
conversando com os comissários de bordo, explicando a minha situação e
afirmando que tomaria conta de mim, eu, provavelmente, estaria agora sendo
deportada. No entanto, graças aos deuses da diplomacia entre países que
tornam desnecessário precisar de visto para entrar na Inglaterra, passo pelo
guichê, sem problemas.
Ignoro as esteiras com bagagem e sigo para a saída. Preciso achar o Harry
quanto antes. Foi para isso que vim até aqui.
Então, me dou conta de uma leve falha no meu plano: eu não sei como
encontrá-lo.
Eu não tenho ideia do seu endereço, meu celular está sem bateria e nada
garante que ele me atenderia se eu ligasse. O que foi que eu fiz? Atravessei o
globo para ficar andando por esse aeroporto, sem destino? Tenho que conseguir
falar com o Harry. Preciso falar com ele antes que eu me torne o Tom Hanks
em O Terminal e tenha que tomar banho de gato na pia do banheiro.
— Com licença, senhor. — falo para o segurança que está perto de uma
pilastra, usando o meu melhor inglês. Ele se vira sorrindo para mim. Agradeço
mentalmente as horas de vida perdidas vendo Friends, que me trouxeram essa
fluidez. Viu, mãe? Serviu para alguma coisa aquele tempo todo diante da TV.
— Preciso carregar meu celular, existe algum lugar onde possa fazer isso?
Depois de fitar um tempo meu vestuário inusitado, ele me responde. No
entanto, seu sotaque, bem mais carregado que o do Harry, faz com que eu me
arrependa de ter passado tanto tempo vendo Friends e não o The Office
original.
Peço para ele repetir e entendo que está me direcionando para um café que
eu não tinha visto, do outro lado de onde estamos. Existem uns totens para
carregamento de celular na área onde ficam algumas mesas. Agradeço o
segurança e corro para lá.
Me sento em uma das mesas e coloco o aparelho para carregar. Tenho que
esperar alguns minutos para que ele ligue, já que a bateria estava zerada. Uso
esse tempo para tentar controlar minha perna, que balança para cima e para
baixo.
Vai, celular!
Cinco minutos depois, consigo ligá-lo. Tenho que me contorcer um pouco
na cadeira, que é daquelas presas ao chão, para ser capaz de mexer no aparelho
ainda sentada. Não sei se você já teve a experiência de passar um dia correndo
de pantufas por aí, mas meus pés estão implorando repouso — além de uma
bacia com água quente e uma almofada acolchoada. Logo, ficar sentada toda
torta é o que temos para hoje.
Enquanto estou tentando ficar confortável numa posição digna do Cirque
du Soleil, um SMS apocalíptico chega jogando mais um balde de água fria na
minha busca por Harry.
Bem-vindo ao Roaming Internacional!
A partir de agora, por apenas sete dólares o minuto,
você será capaz de fazer ligações internacionais e navegar na internet.
Cacete… Precisava ser em dólar?
Seis mil e quinhentos reais da passagem aqui, sete dólares por minuto para
chamadas ali. Esse deve ser o ato de amor mais caro da história. Respiro fundo
e ligo para o Harry aceitando o destino falido que me aguarda quando voltar
ao Brasil.
Porém, a chamada cai direto na caixa postal. O celular está desligado.
Ou… Ou ele me bloqueou.
Não, Harry…
Não posso pensar no que essa possibilidade significa agora. Tenho que ser
prática!
Posso deixar mensagem de voz, mas, se ele me bloqueou, a chance de
querer me ouvir é bem baixa. Preciso de algo que atice a sua curiosidade e que
ele seja notificado. Preciso do Instagram.
Isso se ele não tiver me bloqueado por lá também.
Nesse momento, já estou com as costas arqueadas na cadeira, jogando a
cabeça para trás e segurando o celular no alto, afastado do meu rosto. Meus
óculos ficaram no Brasil, então tudo de perto é um grande borrão.
Entro no aplicativo e abro o nome do Harry para mandar uma mensagem
privada. Começo a digitar, mas paro na hora.
Com toda a confusão com o perfil de Fernando e minhas tentativas de
esconder Harry de Rafael, acabei tornando a nossa relação quase secreta. Está
mais do que na hora de mostrar ao mundo o homem maravilhoso que
encontrei.
Pego a foto que tiramos no Sítio Burle Marx, no pé da figueira, e uma que
os alunos da Helô fizeram de montagem onde eu e Fernando estamos na Serra.
Marco Harry na primeira, Fernando na segunda, e escrevo meu post.
Você me disse, uma vez, que falar a verdade era algo importante para você.
Então, aqui vai. Eu errei. Errei por omitir a verdade sobre o Fernando e o
Rafael. Errei criando um perfil falso para causar ciúmes no meu ex. Errei não te
confessando que já conhecia a sua música e errei ao usá-la para chamar a sua
atenção. Mas está aí uma coisa da qual eu não me arrependo: ter tentado
chamar a sua atenção. O momento em que você olhou nos meus olhos, com
uma mistura de fascinação e dúvida, não vai sair nunca mais da minha
memória. Mesmo que eu esqueça o resto da minha vida, você me descobrindo
do seu lado naquela cafeteria será a única lembrança à qual vou me apegar com
unhas e dentes. Me senti querida, me senti segura. Seu rosto me mostrou que
casa pode ser uma pessoa e, agora, eu preciso que veja o mesmo em mim. Olhe
as duas fotos desse post. Olhe meu rosto, Harry. Eu não sei quem é essa mulher
da primeira foto, mas eu sei que quero ser ela. Ela está tão feliz. Minto; ela está
aliviada. Depois de uma vida buscando do lado de fora algo que a completasse,
essa mulher finalmente achou alguém que a fizesse se sentir tão bem a seu
próprio respeito que não precisa mais buscar nada externo, ela sabe que já é
completa. Eu estava quebrada e sei que você também estava. Então, a única
coisa que eu espero é ter feito você sentir o mesmo e que, nós dois, completos,
possamos estar juntos. Por isso que eu estou aqui. Estou em Londres, Harry.
Vim atrás de você e agora estou em uma cafeteria, no aeroporto de Heathrow,
me lembrando da primeira vez que te vi em um lugar assim e torcendo para
você me ligar e querer me encontrar. Porque eu te amo, Harry. E essa é a única
verdade que importa.
Uso um dos guardanapos que ficam na mesa para secar meu rosto. Abri
meu coração e agora tenho que esperar. Consegui marcá-lo na foto, então não
acho que tenha me bloqueado no aplicativo, mas, ainda assim, ele pode decidir
não ler. O alerta em seu celular pode fazer apenas com que se lembre que não
me bloqueou e ele acabe fazendo isso. Contudo, eu tentei. Tentei de verdade.
Não corri atrás do Harry porque não posso viver sem ele, fiz isso porque não
quero. Mas, se tudo der errado e eu tiver que voltar para o Brasil com o rabo
entre as pernas, saber que fiz meu melhor para consegui-lo de volta me acalma.
Uma sábia diva da música pop, uma vez, nos questionou se acreditamos em
vida após o amor. A resposta é que sim, existe; mas eu não quero essa vida para
mim. Quero uma vida com o Harry. No Brasil, na Inglaterra, no quinto dos
infernos, não interessa. Só quero estar com ele.
Os minutos passam e meu coração aperta. Uma atendente da cafeteria vem
me informar que não posso ficar sentada à mesa se não consumir algo e eu digo
que já vou entrar na fila, daqui a pouco. Ela parece não acreditar muito, e não
deveria mesmo, mas eu não tenho tempo para pensar nisso. Atualizo o post de
novo.
Não há resposta. Na realidade, não há resposta dele. Já estou com diversas
curtidas e comentários de pessoas que não estão entendendo nada, porém
gostaram da minha declaração. Tirando a minha mãe. Ela não gostou muito do
fato de eu estar em Londres e não ter avisado ninguém e muito menos que o
tal médico não existe. Não é de madrugada no Brasil? Aparentemente, me
vigiar nas redes sociais é um trabalho que não tem hora para acabar. Depois do
seu último comentário — porque ela é dessas que faz cada frase ser um
comentário novo — perguntando se Harry se oporia a fazer uma faculdade de
medicina, eu saio do app e vou jogar Sudoku. Quando acabar essa partida eu
tento abrir de novo, mas a expectativa a cada comentário novo está me
matando. Queria tanto saber se ele já leu! Se sente o mesmo! O que será que
está pensando? Será que quer me dizer algo…
PUTA QUE PARIU!
A MENSAGEM DE VOZ!
Meu celular acabou a bateria e não consegui ouvir antes do voo! E, com
tantas drogas lícitas na cabeça e focada em descobrir onde ele estava, acabei me
esquecendo de ouvir.
Digito o código para ouvir minhas mensagens. A voz de Harry entra como
uma agulha afiada no meu peito, cortando-me de saudade e de nervosismo.
Por favor, não me odeie. Por favor, não me odeie.
— Alice, eu… Eu não queria fazer isso por telefone, mas meu voo sai em breve
e não vou te encontrar mais… Nossa… Só de pensar que não vou te encontrar,
love… — Sua voz falha, e as lágrimas que eu estava tentando conter escorrem.
— A aposta foi uma brincadeira, e eu deixei claro para o Liam que perdi, Alice.
Eu perdi porque nunca poderia ter você por apenas uma noite. No segundo em que
vi o contorno do seu corpo nas sombras de uma cabine escura no centro de
convenções, eu já sabia que algo espetacular estava prestes a acontecer. E, quando eu
pude te conhecer, conversar com você… Deus! Eu nunca soube que era possível se
apaixonar tão rápido. Você nunca foi um estepe. Nunca poderia substituir
ninguém, porque não existe alguém como você. Eu não entendo direito o que estava
na sua cabeça para fazer o que fez, mas acho que sei o que estava no seu coração.
Pelo menos, espero que essa parte tenha sido verdade. Eu… Eu continuo sentindo o
mesmo, Alice. Pode colocar quantos oceanos você queira entre a gente, isso não vai
mudar. — Ele fica em silêncio, alguns instantes e ouço um fungar alto. Ele está
chorando? — Falar sobre o que eu sinto sempre foi difícil, principalmente depois
do fim turbulento com a Melanie. Eu me fechei tanto que não tinha ideia do
quanto estava sufocado. Até que consegui voltar a respirar. Pode ser clichê e piegas,
mas é isso que sinto com você. Eu posso respirar de novo. — Ele dá uma risadinha
sem vontade. — Não muito agora, porque meu nariz entupiu de tanto chorar
feito um idiota no portão de embarque, mas você me entendeu. — Eu rio
também. Que vontade de abraçar seu corpo e de beijar suas lágrimas. — É isso.
Só queria me despedir. Te amo, Alice. Não se esquece de mim, por favor. Eu não
vou conseguir suportar se você se esquecer de mim.
— Nunca — sussurro.
O apito mostra que a mensagem se encerrou. Ele me ama também. Eu
preciso encontrá-lo! Preciso dele agora!
Meu pescoço está doendo, então me levanto para ficar mais perto do totem
de carregamento sem ganhar um torcicolo, ficando de costas para a cafeteria.
Levantar me faz lembrar da dor nos pés, mas alguma parte do meu corpo vai
ter que sofrer aqui, então são eles que eu sacrifico.
A Helô tinha me falado que esse Liam que ele menciona na mensagem
tinha Instagram também, talvez ele me responda. Dou uma conferida rápida
nos novos comentários que surgiram no meu post e, quando percebo que ainda
não tive resposta do Harry, sigo com meu plano. Entro no perfil dele, encontro
uma foto com o tal do Liam e clico no nome do amigo na marcação.
Sinto alguém batendo no meu ombro e estico o dedo pedindo um
segundo. Eu já me levantei da mesa, logo a atendente não tem motivo para me
encher agora; estou numa missão!
Começo a digitar e ela bate no meu ombro de novo.
— Por favor, senhora. Eu já saí da mesa. — Eu falei em português ou
inglês? Sei lá, mas não me importo. Tenho que conseguir convencer o amigo de
Harry a dar o seu endereço para uma mulher que está fazendo o seu melhor
cosplay de louca perseguidora aqui.
A atendente estica um café em um copo de papelão do meu lado.
— Eu não pedi nada.
— Coloquei canela, Alice. Como você gosta.
Essa voz. Olho para a mão que segura o copo. Os dedos grandes, a
munhequeira no pulso.
— Harry?
Me viro correndo e quase derrubo o café, mas ele tira o copo do caminho a
tempo. Suas olheiras e seu rosto pálido me mostram que ele dormiu tão mal
quanto eu. O canto levantado dos seus lábios me mostra que sua dor está no
passado. Ele está feliz agora, feliz por me ver.
Ele está aqui.
— Você não me atendeu. Achei que tinha me bloqueado.
— Esqueci o celular desligado depois do voo, acabei de ligar. E
aparentemente eu tenho que fazer medicina?
— Só se você quiser agradar a minha mãe.
— Prefiro agradar você.
Ele segura minha cintura e me puxa para perto. Meu peito contra o seu,
meu coração contra o seu.
— Eu fui uma idiota.
— Eu também fui.
— Eu fui mais. Nem deixei você explicar direito a história da aposta, já fui
deduzindo…
Seu indicador vai para os meus lábios, pedindo-me silêncio.
— Eu já li as suas desculpas. Agora quero trabalhar na parte de fazer as
pazes.
— Você quer fazer as pazes?
— Se você quiser.
— Eu cruzei o planeta de pantufas, Harry. Acho que fazer as pazes está
implícito.
— Só queria ter certeza antes.
— Antes?
— Antes disso.
Ele coloca o café que estava segurando na mesa ao nosso lado e puxa meu
rosto para perto do seu.
Seu beijo — nosso beijo — é quente e forte, com um toque de café e
canela. Continuo grudada contra o seu corpo, sentindo suas mãos nas minhas
costas e na minha nuca, suas pernas contra as minhas, seu calor contra o meu.
Quero ficar perdida na sua boca para sempre, mas sei que ainda precisamos
conversar, então me afasto.
Pelos seus olhos fechados e seu cenho franzido, ele discorda de que esse é o
momento ideal para isso.
— Preciso saber o que você quer. Quer tentar uma relação comigo? Mesmo
estando na Inglaterra e eu no Brasil? Eu quero um futuro com você, mas não
sei como ter isso, Harry. Te perdi por dois dias e foi demais para mim. Não
posso mais ficar longe. Como a gente vai fazer?
— Não tenho ideia.
— Temos que conversar.
— Temos. E vamos. Logo depois de eu te levar para minha casa e
compensar cada uma dessas quarenta e oito horas.
— Como você pretende fazer isso?
— Te amando pelos próximos dois dias. Talvez três. Melhor trabalharmos
com uma margem de erro.
— Você não tem que trabalhar? O que eu estou dizendo! EU tenho que
trabalhar! Eu tenho que trabalhar e estou na Inglaterra. Ai, vou ser demitida.
— Você está pensando demais.
— E você está pensando de menos!
— Eu passei o fim de semana inteiro pensando. Agora só quero sentir. Só
quero te sentir.
Sua boca volta para a minha.
— Eu sempre posso dizer que estou doente — falo, sem desgrudar a boca
da dele.
Ignoro que acabei de fazer um post dizendo que estava na Inglaterra e que
todo mundo do meu trabalho me segue. É na boca do Harry que quero focar
agora. E é aqui que eu vou ficar.
A lice não perdeu o emprego e nem eu, o doutorado. Ela conversou com a
chefe, quando o relógio bateu um horário que seria decente no Rio, e
negociaram de ela usar alguns dias das suas férias agora. Já a Dra. Harrison
decidiu me dar essa semana livre para compensar a viagem a trabalho e eu
resolvi dedicar o meu tempo da melhor forma possível: dentro de Alice.
Tinha passado o voo todo remoendo a mensagem que deixei no seu
telefone e, quando finalmente liguei meu aparelho enquanto estava na fila da
cafeteria, confesso que não esperava um retorno. No entanto, ela fez muito
mais do que retornar a ligação. Ela me assumiu para todo mundo, incluindo o
tal do Rafael. Alice explanou seus sentimentos e eu li sinceridade em suas
palavras. Ela realmente me amava, portanto, não dar uma chance para nós seria
idiotice.
E quando eu a vi do lado daquele totem de celular? Não havia como
questionar mais o que eu sentia. Caminhei na sua direção e lhe entreguei o
meu café e a minha alma, que ela aceitou, sem pestanejar.
Agora, com Alice em meus braços, sei que foi a melhor decisão que já
tomei na vida.
Minha campainha toca e ela se revira na cama. Saí dessa casa não
conseguindo deixar de pensar em Melanie, mas, vendo Alice nua entre os meus
lençóis, não consigo me lembrar de um tempo em que qualquer outra mulher
esteve aqui. A campainha toca de novo e corro para atender antes que ela
acorde.
— Liam, o que você está fazendo aqui?
— Você não vê o celular? — me pergunta já entrando na sala e
empurrando um saco gordurento contra o meu peito.
— O que é isso?
— Nosso brunch. Tive que inventar uma diarreia para o meu tio me liberar
de uma reunião, então é melhor não me expulsar! Você está sofrendo e é meu
irmão; eu preciso estar com você.
— Ahn…
Ele arranca o saco da minha mão e leva até a bancada no centro da minha
cozinha.
— Black pudding e bacon para mim, ovo frito e torradas para você — ele
narra enquanto expõe as comidas.
— Liam.
— Café dos campeões para absorver toda a cerveja que você já deve estar
tomando desde o voo.
— Liam.
— Nem pense nisso, Harry. Eu não vou embora. Você está mal.
— Liam.
— Eu não me importo com o meu trabalho! Vou te ajudar a superar desde
o começo. Não vou deixar você se afundar que nem aconteceu com a Melanie.
— Liam.
— Vamos encarar isso agora. Quero você bem quanto antes.
— LIAM!
— Ai, que foi? Não precisa gritar!
— Claro que preciso; você não cala a porra da boca um segundo.
— Não calo porque eu já conheço o seu discurso quando fica mal. Você vai
esconder seus sentimentos de mim até eu ter que começar a usar um guindaste
para tirar você do seu coma alcoólico todo dia de manhã para conseguir ir para
o trabalho. Não dessa vez, queridinho!
— Liam, não tem sentimento para esconder.
— Claro que tem.
— Não tem. Não tem porque estão todos expostos. Eu estou amando.
Liam franze o rosto inteiro em uma careta que eu nunca vi.
— Okay… E o que isso significa?
— Significa que a Alice está na minha cama, nesse momento e eu preciso
que você vá embora.
— Oh! — ele exclama, arregalando os olhos. — O que ela está fazendo
aqui?
— Ela veio atrás de mim.
— Ela veio do Brasil até aqui para falar com você?
— Sim.
— Então, está tudo bem entre vocês? Você não está mal?
— Nem um pouco.
— Harry! — Ele contorna a bancada e me abraça. — Que alegria, irmão!
Não posso acreditar que ela fez isso.
— Ela me ama, Liam. De verdade. Não achei que algum dia ia sentir isso,
mas esse tipo de amor é diferente de tudo que eu já vivi.
Liam se afasta e dá um tapinha carinhoso no meu rosto.
— Aproveita muito, Harry. Não é todo mundo que tem isso.
Suas palavras me causam uma dor no peito. Aqui estou eu, falando pelos
cotovelos sobre como estou feliz, e me esquecendo de que faz dias que Liam
terminou mais um namoro.
— Você vai encontrar também, Liam.
— É… Quem sabe… — Ele não acredita nas minhas palavras. Eu, que
estava tentando ignorar que o amor existe, tenho agora a melhor mulher do
mundo me esperando no meu quarto. Enquanto isso, esse homem que sempre
buscou o amor, nunca consegue encontrar. — Vou deixar vocês curtirem seu
dia. Aproveitem o brunch.
— Pode deixar.
— Espero ser o padrinho do casamento, hein.
Casamento? A ideia não me assusta tanto quanto eu pensei que assustaria.
Acho que, quando se está com a pessoa certa, não tem por que se assustar.
— Acho que vou chamar o Taylor para ser padrinho.
— Se você acha que o sovaco dele fede depois de um show, é porque ainda
não viu o cara no calor de um terno. Você não vai aguentar aquilo do seu lado,
durante a cerimônia.
— Okay. Por motivos de odor, você será meu padrinho.
— É melhor mesmo.
Liam dá um sorriso sincero e sai. Coloco as comidas que ele trouxe em um
prato e volto para Alice.
Ela está recostada em dois travesseiros, mexendo no celular, mas percebe
quando eu entro e se vira, imediatamente notando o que trago nas mãos.
— Isso é comida? E eu achando que não tinha como te amar mais!
— Liam que trouxe. Você vai ter que me ajudar com as carnes.
— Ele ainda está aí? Não vai me apresentar?
— Ele já foi. Não quero dividir você com o mundo ainda; vocês vão ter
muitas oportunidades para se conhecerem.
— Mal posso esperar!
— Mas agora eu não quero falar disso.
— Você quer falar do quê, então?
Arranco o prato da sua mão antes que ela pegue o bacon.
— Não quero falar.
— Mas e a comida?
— Ainda vai estar aqui em quarenta minutos.
— Quarenta minutos? E o que você quer fazer durante esse tempo?
Abraço seu corpo e rolo com ela na cama, colocando-a em cima de mim.
— Tudo que eu conseguir.
— Então acho melhor começarmos.
E é exatamente isso que fazemos: hoje começamos algo.
Não temos os detalhes de como vamos seguir adiante, contudo, temos a
certeza de que vamos. Seguiremos completos e juntos, como ela disse em seu
post e como estamos agora. Não tenho ideia de que tipo de caminho nos
espera; mas o começo? Ah, o começo é doce demais.
-P rende o cabelo.
— Não.
— Mas eu usei o cabelo preso no meu casamento.
— Eu não sou você, mãe.
— Pois deveria.
— Eu nem sei o que isso quer dizer.
— Quer dizer que eu sou uma pessoa com bom gosto e você não. — Diz a
mulher que está usando um vestido com ombreiras para o casamento da sua
única filha.
Meu pai e Antônio — que agora aceita ser chamado de Antônio
novamente, com a graça de Deus — estão conversando no sofá que fica nos
fundos da sala, enquanto minha mãe me enche os ouvidos. Ela está em pé do
meu lado e eu estou sentada na penteadeira com a maquiadora finalizando os
últimos toques no meu rosto. Se eu achava que a dona Yolanda Santana era
insuportável, não tinha ideia da loucura que seria no dia em que eu finalmente
fosse dizer sim.
Depois de um ano morando cada um em seu país, nos falando — e
fazendo outras “cositchas” também — todos os dias por videochamada, não
aguentei mais e pedi Harry em casamento.
Sim, EU pedi Harry em casamento.
Ele tirou férias no fim do ano que nos conhecemos e ficou comigo durante
um mês, no Brasil. Em abril deste ano, eu fiz a mesma coisa, mas fui para
Londres uma semana antes da data que eu tinha combinado com ele (pegando
avião sozinha novamente porque agora sou dessas). Me encontrei com Liam —
que é um fofo, por sinal — e pedi sua ajuda. Ensaiei com ele, o baterista da
Moon Landing, Taylor, e o outro guitarrista da banda, Owen, durante seis dias
e surpreendi Harry com um show privado no seu flat. Cantei “I Got You Babe”
(você não achou que a Cher ia estar de fora de um momento tão importante
assim, né?), com Owen cantando as partes do Sonny, até o Harry sair do seu
estado de choque e se juntar a mim. No fim, me ajoelhei, abri uma caixa de
sapatos com um par de pantufas de tubarões e pedi para ele me deixar
esquentar seus pés em noites frias. Harry aceitou e expulsamos os rapazes para
fazer sexo em cima da ilha da cozinha.
Voltei para o Brasil disposta a pedir demissão e a buscar um emprego por
aqui depois do nosso casamento. Me lembrei de Maria, mãe de Harry, que
largou tudo para ir atrás do seu amor. No entanto, não precisei largar nada.
Conversando com Raquel sobre meus planos, ela me revelou que a GameStart
vai abrir uma filial em Londres e que conseguiria a minha transferência.
Não foi fácil me dar conta de que não estaria mais a apenas quadras de
distância de Helô, contudo minha amiga logo viu vantagens. Entre as
principais estão ter um lugar para se hospedar de graça em outro continente e
mais oportunidades de sexo casual com estrangeiros. Depois que eu lhe contei
sobre Dona Clô e sua opinião sobre a vida sexual dos ingleses, esse assunto tem
sido uma constante nas nossas conversas.
Oito meses depois do pedido, estamos aqui. O pequeno sítio onde os avós
paternos de Harry moram é um lugar encantador. Pinheiros altos cercam todo
o terreno, fazendo-me sentir como se o mundo não soubesse onde estamos. A
neve de fim de ano e o lago congelado fazem com que o clima romântico da
paisagem seja exacerbado. Desde que Harry me mostrou fotos do lugar pela
primeira vez, eu sabia que nossa união seria feita aqui. Não tinha outro lugar
possível.
— E o batom?
A voz da minha mãe me traz de volta para o pequeno cômodo no segundo
andar da propriedade, onde eu estou me arrumando. Harry está em um quarto
no térreo, esperando o aval da cerimonialista para a gente começar.
Mas não podemos começar sem a madrinha.
— O que tem o meu batom?
— Você já colocou?
— Não está vendo?
— Não.
— É nude.
— Ou seja, imperceptível. Você não quer passar despercebida, né?
— Acho meio difícil considerando o vestido branco, o véu e… Ahn… O
que mais que eu estou esquecendo? Ah, sim. Que é o MEU casamento!
Se Helô não voltar logo, quando ela chegar vai ter acontecido um
matricídio.
Onde diabos ela está?
Como se tivesse sido atraída pelos meus pensamentos, Helô entra correndo
e ofegante. Ela apoia as costas contra a porta, seu olhar perdido, sem fixar em
nenhum lugar, e nem percebe que existem outras pessoas na sala. Seu coque
está desfeito e tem uma margarida amassada, presa na lateral do seu cabelo. O
sorriso na sua boca é a única coisa que me diz que eu não deveria me preocupar
muito com o seu estado.
— Helô? — Ela levanta a cabeça se dando conta da minha presença pela
primeira vez. — Está tudo bem?
— Sim, sim, sim.
— Isso são dois “sins” a mais do que eu estava esperando. Onde você
estava?
— Ahn… Banheiro.
— Deixa eu adivinhar, arrumando o cabelo?
— É.
Ela, claramente, não está bem.
— Você quer me contar alguma coisa, Helô?
— Não.
— Então você está monossilábica porque está tudo bem?
— Isso.
Nunca vi Helô falar tão pouco na vida.
Ela chacoalha a cabeça em um movimento divertidamente exagerado.
— Vamos falar sobre o que interessa: você! Nossa, esse vestido está tão
lindo. Esses ombros expostos… Você sabe que eu sou louca por ombros, né?
— Ombros largos que podem segurar você quando transa contra uma
parede? É, eu me lembro.
Ela fica estranhamente encabulada. É porque a minha mãe está aqui? Dona
Yolanda está azucrinando Antônio sobre a cor bordô da sua gravata — que, de
acordo com ela, vai fazer com que ele chame mais atenção do que eu —, então
ela não está prestando atenção. E, mesmo que estivesse, isso nunca foi um
empecilho para Helô.
Antes que eu tenha tempo de tentar conversar melhor com minha amiga, a
cerimonialista entra.
— Estão todos aqui já?
— Sim — responde minha mãe. — Melhor já começar antes que o Harry
desista.
Meu pai chega ao seu lado e beija sua têmpora. Imediatamente os ombros
dela se abaixam como se pudesse finalmente relaxar.
— Vamos casar nossa menina, Yoyo.
— Vamos, meu amor.
Como não amar esse homem e a sua habilidade de desarmar essa bomba-
relógio que eu chamo de mãe?
A estufa do sítio é um lugar aquecido, mas cercado por paredes e teto de
vidro, o que permite vermos todo o esplendor à nossa volta, sem sermos
impactados pelo frio. Os poucos convidados que chamamos estão ocupando
cadeiras brancas posicionadas nas laterais do tapete verde, que eu vou cruzar
para chegar na cena que está tirando o meu fôlego: Harry.
Ele veste um terno preto, camisa preta e uma gravata cinza ligeiramente
folgada no pescoço. Harry consegue dar um ar rock para uma vestimenta que
deveria ser clássica e, não sei como é possível, mas, nesse momento, eu o amo
mais ainda. Seus olhos brilham com emoções que eu não sou capaz de nomear
enquanto analisa cada passo que dou na sua direção. Sua boca está entreaberta
e tudo que eu mais quero é beijá-la. Saber que vou ter que aguardar até o fim
da cerimônia para isso é um tipo de tortura que não desejaria ao meu pior
inimigo.
Fico tão presa à visão de Harry que quase não percebo Liam do seu lado,
ocupando seu espaço de padrinho e Helô me esperando do outro, onde eu vou
ficar. Meu pai segura meu braço direito e minha mãe o esquerdo — claro que
dona Yolanda não ficaria de fora desse momento. E eu não queria que fosse
diferente.
Eles me dão beijos nas bochechas e cumprimentam Harry antes de se
sentarem.
Em sintonia com meus pensamentos de não querer aguardar, Harry me
puxa pela cintura.
— A cerimônia que espere — ele diz, avançando com a sua boca contra a
minha.
Seus lábios me tiram completamente do momento presente. Não estamos
entre nossos amigos e familiares, não estamos nesse sítio, não estamos na
Inglaterra. Só existe eu e Harry aqui. Ele me domina e eu me entrego. Sua
língua, suas mãos, seu peito contra o meu.
Cadê a lua de mel quando se precisa dela?
— Aham. — Pigarreia alguém perto de nós. — Vamos tentar manter a
classificação livre do evento, por favor. Vovô Milton e vovó Grace agradecem.
Harry separa nossas bocas, reagindo ao pedido de Liam, e se vira para os
convidados que estão divididos entre suspiros e gargalhadas.
— Alguém aqui se controlaria no meu lugar? Olhem para ela, pelo amor de
Deus!
— Deduzo que você gostou do vestido? — pergunto.
— Adorei, love. — Ele se abaixa para sussurrar no meu ouvido. — Mas sei
que você também está louca para a gente correr com isso e eu poder te tirar de
dentro dele.
Gato, romântico e ainda lê mentes?
Eu tirei a sorte grande.
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