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Direção Editorial: Beatriz Soares


Preparação e revisão: AllBook Editora
Diagramação e produção digital: Saavedra Edições
Capa: Rebecca Barboza

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte
deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou
transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos,
fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Os direitos morais do autor foram
declarados.

Esta obra literária é ficção. Qualquer nome, lugares, personagens e incidentes são
produto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou
mortas, eventos ou estabelecimentos é mera coincidência.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

J91a
Juncken, Hisabelle
Amor, meu fake amor [recurso eletrônico] / Hisabelle Juncken. – 1. ed. – Rio de Janeiro:
Allbook, 2023.
Recurso digital

Modo de acesso: word wide web


ISBN 978-65-80455-86-7 (recurso eletrônico)
1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

23-85203 CDD: 869.3


CDU: 82-31(81)

Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária CRB-7/6643

1ª edição – 2023
DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À ALLBOOK EDITORA
allbookeditora.com | contato@allbookeditora.com
Para os autores de romances que
conseguiram colocar um sorriso nos meus lábios,
mesmo durante uma pandemia.
Espero conseguir colocar um sorriso nos seus.
SUMÁRIO
CAPA
FOLHA DE ROSTO
CRÉDITOS
DEDICATÓRIA
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17

Í
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
EPÍLOGO
ALLBOOK EDITORA
U ma sábia diva da música pop, uma vez, nos questionou se acreditamos em
vida após o amor. A verdade é que não há vida sem amor. Então, quando ele
chega ao seu cruel e insípido fim, não existem mais razões para se viver.
Dramático demais para um primeiro parágrafo? Bom, se você tivesse
acabado de levar um pé na bunda, não estaria aí, com seu ar de superioridade,
me julgando.
Não me entenda mal, não estou dizendo que uma pessoa só pode ser feliz
se tiver quem amar. Claro que se pode ser feliz sozinho. O problema é quando
você não quer estar sozinho. Quando você ama uma pessoa com tanta
intensidade e ela — sem nem ao menos te consultar — decide que está na hora
de acabar tudo. Afinal de contas, quem ela pensa que é para dizer que acabou?
Aquele relacionamento também era seu, não? Por que ela, sozinha, é o juiz, o
júri e o algoz nesse julgamento que definiu a pena de morte para o seu coração?
É verdade que não podemos ter uma relação se uma das partes não quiser.
Mas, se ele deixasse, ao menos, eu preparar a minha defesa, apresentar o caso
para um júri neutro, chamar as testemunhas certas, tenho certeza de que
mudaria de opinião. Já posso ver na bancada, minha mãe com a mão na bíblia.
— E a senhora afirma que essa relação foi a melhor coisa que já aconteceu
na vida da sua filha?
— Sem sombra de dúvida. Preciso de netos e olha só o maxilar desse
homem. Imagina como serão essas crianças! E vamos combinar? Ela não está
ficando mais jovem, né? Essa talvez seja a sua última oportunidade.
É, pensando bem, talvez seja melhor não chamar a minha mãe.
A questão é que não teve julgamento algum. E cá estou eu, sentada neste
carro, olhando para o estacionamento lotado do shopping, sentindo um calor
infernal porque o dito-cujo nem para ligar o ar-condicionado antes de enfiar a
mão no meu peito e arrancar os últimos seis meses da minha vida.
— Por que isso agora, Rafael? O que fiz para você achar que o que nós
temos não vale a pena?
— Você não fez nada, Alice. — Ai, ele é tão gato. Minha mãe imaginária
estava certa; esse maxilar pode acabar com impérios. — Eu estava conversando
na terapia e realmente não acho que estou pronto para namorar.
— O terapeuta te disse isso? — perguntei, em choque.
— Disse.
— Ele está errado, Rafael. A gente está ficando há seis meses, vamos e
voltamos do trabalho juntos todos os dias, gostamos das mesmas coisas nerds,
nosso sexo é maravilhoso. Somos perfeitos um para o outro! Ele está errado!
— Alice, eu pago trezentos reais pela consulta. Não tem como estar errado.
E ele não disse que a gente não combina, só que eu não estou pronto.
— “Não é você, sou eu”, é isso? É sério que esse é o seu discurso?
— Pode ser batido, mas é a realidade. Sinto muito.
Não sente porra nenhuma. Olho para a frente não querendo mais ver a
expressão de alívio que está estampada na cara desse filho da mãe. Quero sair
do carro, bater a porta e não olhar para trás. Mas vim com ele, estamos no
meio do expediente e a hora de almoço já acabou há vinte minutos; não dá
para esperar um Uber.
Ele não me pergunta mais nada. Liga o carro e segue para a GameStart, a
empresa de desenvolvimento de games onde nós dois trabalhamos — e onde
eu posso passar o dia observando Rafael da minha baia. Isso costumava ser uma
das coisas que eu mais gostava de fazer. Sinceramente, não sei como vou
suportar.
A sensação é de sufocamento, como se apenas a visão daquele homem fosse
o suficiente para impedir o ar de passar pela minha garganta. Rafael parece
oficialmente feliz; não chega a sorrir descaradamente, mas também não há um
pingo de tristeza no seu semblante. Eu sei disso porque não tirei os olhos dele.
Ele conversa com todo mundo, brinca com Vanessa, a secretária do escritório, e
ainda tem a pachorra de fazer seu trabalho de maneira concentrada.
O tapa na cara não pode ser maior. Tudo que eu quero é ir para minha
casa.
Faltando cinco minutos para o fim do expediente, eu me levanto e saio na
direção dos elevadores. A voz de Rafael me surpreende.
— Alice!
Será que ele se arrependeu? Será que quer voltar?
Me viro tentando ignorar que meus olhos parecem duas bolas de tênis
depois de ter passado grande parte da tarde chorando no banheiro.
— Sim?
— Eu saio em dez minutos. Você vai querer carona?
Carona. Não, Rafael. Eu não quero carona. Eu quero você. Quero me casar
com você, ter filhos com você e, na velhice, gritar com as crianças chatas da rua
enquanto estamos sentados em cadeiras de balanço na varanda da nossa casa.
Mas isso não vai mais acontecer. E pegar carona só vai aumentar a minha dor.
— Não, obrigada. Boa noite.
— Tem certeza?
O fato de ainda se importar me afeta mais do que eu gostaria de admitir.
Ele sabe dos meus problemas com transporte público lotado; para uma pessoa
com claustrofobia, aquela lata de sardinha pode ser fatal. No entanto, estar em
um Fiat com um amor que não me quer...
— Tenho sim. — minto. — Até amanhã.
O chacoalhar do ônibus me deixa enjoada. Enlatada e chorando baixo
entre a sudorese alheia, só consigo pensar no homem que não me considerou
boa o bastante para tentar ficar comigo. Meus óculos de grau embaçam pelas
lágrimas, enquanto, no meu fone de ouvido bluetooth, Cher tenta me fazer
esquecer onde eu estou. Ela me diz que eu já chorei o que tinha que chorar e
que agora sou forte o suficiente, mas ela está errada.
Eu não sou forte. Desequilibrada, medrosa e sem um pingo de amor-
próprio? Claro! Mas forte? Não.
Essa semana vai ser a mais longa da minha vida.

Como esperado, os dias seguintes foram uma sucessão de humilhações.


Quer um resumo?
Basicamente, eu me agarrei à minha falta de amor-próprio e resolvi rastejar.
Tentei abordar Rafael no estacionamento, antes do trabalho, mas ele fingiu
que o celular estava tocando — ignorando que eu conseguia ver a tela
completamente apagada — e seguiu reto, colocando o aparelho no ouvido.
Tentei mandar mensagens e áudios no WhatsApp, e nunca o check ficou
azulzinho. Tentei falar pelo aplicativo de conversa da empresa, no entanto,
sempre que mandava uma mensagem o status dele virava “ocupado”.
Até que na sexta, não aguentei mais. Resolvi me entregar ao meu lado
stalker e fui esperar Rafael na porta de sua casa. A noite estava um pouco fria e
eu tremia porque tinha colocado uma blusa com um decote gigante e sem
mangas para ver se isso o incitava a olhar na minha direção no trabalho, o que
obviamente não aconteceu.
Recapitulava os acontecimentos dessa semana, tentando imaginar onde foi
que errei, enquanto me esgueirava atrás de uma árvore. Estava com a pele
parecendo a de um frango depenado de tanto frio e tentava me equilibrar na
terra do canteiro com o meu scarpin preto — também colocado na vã tentativa
de atiçar Rafael, claro.
Porém, por mais que a situação estivesse desconfortável, nada me preparou
para o que eu estava vendo.
Rafael chegando em casa de carro.
Acompanhado.
Vanessa, a secretária do escritório, estava no banco do carona, beijando o
pescoço de Rafael enquanto ele embicava o carro na garagem do prédio.
O sorriso no rosto dele, a mão que saía do volante e descia na direção das
pernas dela, os olhos se fechando vagarosamente enquanto ele aproveitava os
beijos e esperava o portão da garagem se abrir.
Aquele sorriso era para ser para mim. Aquela mão era para estar me
tocando. O prazer daquele olhar era para ser meu. Mas não é. É dela. Cinco
dias depois de destruir o meu coração e o nosso futuro, ele estava com ela. Não
conseguia impedir minha mente de pensar sobre os últimos seis meses.
Estávamos juntos, apenas sem chamar o que tínhamos de “namoro”, mas eu era
só dele. Será que ele pensava da mesma forma? Será que faz só cinco dias para
ele, ou será que ele está saindo por aí pegando mulheres desde sempre e eu que
nem uma idiota jurando fidelidade e amor eterno a um homem que nunca se
importou comigo?
Rafael abriu os olhos e se virou para Vanessa, me colocando no fundo do
seu campo de visão. Cheguei mais para trás da árvore para me esconder
melhor. Foi nessa hora que senti algo fofo demais sob a sola do meu scarpin.
Não queria olhar para baixo para não perder os dois de vista, mas, depois que
eles entraram na garagem, encarei meu sapato.
É, como imaginei.
Cocô.
Uma pilha de bosta de cachorro.
Algumas pessoas consideram pisar em merda um sinal de sorte, entretanto,
vendo o homem que eu amo com uma mulher linda dentro do carro, no qual
meu coração foi despedaçado não faz nem uma semana, sortuda era a última
coisa que eu me sentia.
Sabe como eu me sinto?
Como a bosta do cachorro. Me sinto como um monte de merda, que, além
de já ser merda, é pisada.
Aquela cena foi o último prego no caixão da nossa relação.
Existe “ele”. Existe “eu”. Não existe mais “nós”.
Acabou.
D iretamente do começo do filme “O Diário de Bridget Jones”, eu lhes trago:
eu. Sentada na sala do cubículo que eu chamo de apartamento, tomando
sorvete e bebendo tequila direto da garrafa — muito refinada —, eu grito com
a minha voz desafinada todas as músicas mais “sofrência” que eu conheço. Não
há Cher que me salve.
Nesse momento, estou tentando equilibrar a tequila e o sorvete na mesma
colher, lutando contra todas as leis da física. Quando finalmente consigo, viro a
colher de uma só vez, como se fosse um xarope para curar a minha alma. O
calor da tequila esquenta o meu coração, enquanto o gelado do sorvete e o
gostinho de baunilha me trazem conforto.
Hum... Preciso patentear isso. Todo mundo que estiver sofrendo de coração
partido pode se beneficiar. Vou chamar de Tequivete e vender por delivery —
fracassados, como eu, preferem não sair de casa durante a fossa. Ficarei
bilionária e o Rafael vai se arrepender de ter me largado antes do meu
inevitável sucesso. Ele vai me implorar para voltar, mas eu estarei ocupada
demais em um trisal com o Leonardo DiCaprio e o Brad Pitt.
É, é isso que vai acontecer.
A campainha toca e por um segundo um arrepio me empolga, me fazendo
pensar que pode ser Rafael. Viro mais uma colher de Tequivete, amarro o
cabelo em um coque bizarramente grande para tentar esconder os nós causados
pela ausência de um pente desde ontem, abro o primeiro botão do meu pijama
para mostrar um pouco mais de carne, tiro os óculos e coloco o meu melhor
sorriso antes de abrir a porta.
O sorriso some ao me deparar com Heloísa.
— Minha nossa senhora! Controla essa felicidade, querida. Não sei ser
recepcionada com tanta alegria. — ironiza Helô. Me viro de costas ignorando o
comentário e abotoando o pijama. — Se está fechando a camisa por minha
causa, pode parar. Você sabe que para mim não existe isso de “muito decote”.
Helô é minha melhor amiga e entende mesmo de decote. Ela tem menos
curvas do que eu, mas seus peitos são maiores — não que isso seja muito
difícil, já que os meus são dois limões — e ela usa e abusa desse atributo. O
vestido cavado amarelo que está usando hoje é um exemplo disso. O
descaramento do decote contrasta com o ar de inocência que as sardas no seu
fino nariz passam. Seus cabelos loiros platinados com as pontas pintadas de
rosa aumentam ainda mais a dificuldade de colocar Helô em uma caixinha. Ela
não é femme fatale, ela não é menininha ingênua; ela é apenas a Helô. E eu não
queria que fosse diferente.
Nós moramos em Copacabana, a apenas dois quarteirões de distância uma
da outra e, como somos BFFs, isso foi proposital. A gente se conheceu na
faculdade, quando ela estava no último período de psicologia e eu era caloura
de ciências da computação. Helô me colocou debaixo das suas asas protetoras
desde o primeiro dia em que a vi. Estávamos numa festa e ela passou a noite
fazendo as caipirinhas mais espetaculares que eu já provei em toda a minha
vida.
Isso é uma coisa que você precisa saber sobre a Heloísa. Ela sempre, não
importa onde esteja, vai conseguir uma caipirinha. É um dos seus dons. As
caipirinhas e a sua honestidade extrema fazem dessa mulher uma excelente
companhia. Mas hoje, não estou no clima de ser animada. Quero ficar na zona
de conforto da minha fossa, em paz.
Helô se senta ao meu lado no sofá e eu coloco o pote de sorvete entre a
gente. Uso uma das mãos para a colher e a outra vai para o Instagram de Rafael
ver todas as fotos dele desde a criação do seu perfil. De novo.
— Alice, meu amor, pelo Deus pai! Você pode, por favor, parar de ficar
olhando as redes sociais desse traste? Ele não te quer! Acabou! — Lembra da
honestidade extrema de que eu falei? Pois é. — Agora você deleta tudo quanto
é rede social dele e começa a encontrar o cara que você vai usar para tirar esse
ranço de Rafael do seu corpo.
— Usar? Eu não uso as pessoas, Helô.
— Querida, você vai transar com o cara. Te garanto que ele não vai
reclamar de ser usado.
— Transar? Você está louca? Olha para mim. Quem vai querer transar
comigo nesse estado?
Helô se vira para mim no sofá e me encara com atenção, desde o cabelo
tosco até a calça do pijama com mancha de sorvete. Nada foge do seu olhar e
eu me sinto ligeiramente nua.
— É. Ninguém. — Essa droga de honestidade está me enchendo o saco. —
Mas é para isso que eu estou aqui. Vamos dar um tapa nesse “visu”, tomar
umas bebidas e sair para encher a cara!
— A gente vai beber antes de sair para encher a cara?
— Para dar uma amaciada no fígado antes de enfiar o pé na jaca.
— Não acho que a anatomia humana funcione dessa forma.
— Você fez ciências da computação, não sabe do que está falando.
Eu adoraria rir da óbvia piada de Helô, mas não tenho forças para achar
graça de nada nessa vida. Meus olhos não saem da tela do celular. Rafael não
para de postar coisas. Claramente ele está ganhando nisso de seguir em frente,
enquanto eu estou de pijama comendo sorvete direto da embalagem.
— Olha isso, Helô. Ele postou tem duas horas, está em uma churrascaria.
Ninguém vai numa churrascaria sozinho, mas carne é algo pesado demais para
se comer se você quer, você sabe, depois do almoço. Ele não está com ela então,
né? Tentei dar zoom para ver se ela surge nesse reflexo no copo, no canto da
foto, mas não consigo ver direito. O que você acha? É Vanessa ou é um
garçom?
— Eu acho que você precisa ser internada.
— Isso não me ajuda a analisar a foto.
Helô bufa, já irritada pela minha depressão, e pega meu celular.
— Você quer analisar a foto? Então vamos lá. A foto mostra uma picanha
com farofa e um copo de cerveja. O que eu entendo dela é que ele curte
necrofilia, já que está comendo um cadáver, e que não tem bom gosto para
bebida.
— Helô, será que sua militância vegana pode esperar eu melhorar meu
humor, por favor? E o que tem de errado com cerveja?
— A militância pode esperar uma hora no máximo, só porque eu simpatizo
com você e a sua dor. E sobre a cerveja, tanta bebida boa por aí, essa não é nem
artesanal, olha a latinha aqui no canto. Pelo amor de Deus, né? É óbvio que se
trata de um homem sem bom gosto. E você se perguntando o que ele viu nessa
tal de Vanessa. Foi isso que ele viu! Ela é uma marca fuleira e ele te largou
porque você é esse puro malte feito nas colinas do Himalaia por frades
eunucos.
— Por que eles precisam ser eunucos?
— Por que não? Mas não perde o foco. — Eu que estou perdendo o foco? —
A questão é que você é especial, querida. E se ele não vê isso, o problema é ele e
não você.
Recosto a cabeça no sofá, cansada.
— Não me sinto especial.
— Ele que fez você se sentir assim. Alice, só fique com alguém que faça
você se sentir a rainha da porra toda. Qualquer coisa menor que isso, largue o
traste.
— Mas e se eu quiser o traste?
Ela sai da fase bufar e entra na do muxoxo. Sua irritação ainda é palpável,
mas eu consigo sentir uma mudança no seu comportamento.
— Querida, não é saudável você ficar correndo atrás desse homem.
— Eu sei. — afirmo, entendendo sua preocupação. — Mas não estou
pronta para nada, além disso.
Depois de anos de amizade, percebo pelo cair dos seus ombros que Helô
está se rendendo. Ela está a um segundo de parar de tentar me acordar para a
vida e vai embarcar na minha neura comigo.
— Já pensou em fazer um grande gesto de amor? Talvez algo mais indireto,
como uma simpatia? Se bem que hoje é lua minguante, né? A gente teria que
esperar até a cheia para fazer efeito. — reflete Helô, sendo a boa amiga que eu
sei que é e não me decepcionando. Ela acaricia a ametista que tem pendurada
em um colar de prata entre os seios. A outra mão leva um copo de caipirinha
de morango até os lábios e eu me pergunto quando ela fez aquilo.
— Acho que um grande gesto só vai assustar o Rafael. E simpatias são mais
a sua praia. A minha envolve só stalkear nas redes sociais. Não que isso ajude
em nada, mas é mais a minha cara.
Helô se levanta quase empurrando o sofá para trás tamanha é a força que
usa. Ela está com a cara maliciosa que faz sempre que tem uma ideia da qual a
gente, eventualmente, vai se arrepender. Foi essa a cara que ela fez dez minutos
antes de eu permitir que estranhos bebessem tequila do meu umbigo, em um
bar, e também antes de me sugerir usar o meu quase inexistente decote para
conseguir um pão extra no restaurante australiano. No entanto, nesse
momento de desespero, eu aceito qualquer ideia.
— E se as redes sociais te ajudassem?
— Como ficar vendo e revendo todas as fotos do Rafael vai me ajudar a
trazê-lo de volta?
— Isso não vai ajudar em nada. Mas criar um perfil falso pode ajudar sim!
— Tipo catfish?
— Sim e não. Você criaria uma pessoa falsa, mas não seria para interagir
com ele, e sim para interagir com você mesma. Acho que aí é mais socialmente
aceitável que o catfish normal, não?
— E por que eu faria isso?
— Para fazer o Rafael ver o que perdeu! Você não falou que ele está
vivendo a melhor vida nas redes sociais? Então a gente cria um cara para fazer
parecer que você também está. Quando ele vir que tem outro dando em cima
de você, vai voltar a ficar interessado!
— Por que ele ficaria?
— Porque nada deixa homem mais interessado do que uma mulher que
não quer mais nada com ele. Confia em mim, Alice. Eu sou psicóloga, sei do
que estou falando.
Eu duvido de que ela saiba, mesmo assim me permito acreditar que isso é
possível.
Será que um perfil falso teria o poder de fazer o Rafael me querer
novamente? Poderia isso inspirar um desejo primal de marcação de território
que o faria perceber o que perdeu e correr atrás de mim?
— Só acho que você precisa refletir um pouco antes de tomar qualquer
atitude. Você já pisou em bosta de cachorro por esse homem, o que mais você
está disposta a fazer antes de aceitar que precisa seguir em frente?
Não consigo processar uma palavra sequer que Helô acabou de me dizer,
ainda empolgada com a possibilidade de que Rafael volte na sua decisão.
— Não tenho nada a perder. Vamos nessa!
No entanto, ao dar minha resposta para Helô, uma pontada de dúvida me
atinge.
Será que não tenho nada a perder mesmo?

— Não. Esse também não. Muito menos esse! — exclamo enquanto Helô
passa as imagens no celular. — Por que o Google não mostra logo o cara
gostoso que a gente quer?
— A gente pesquisou “homem gostoso” e apareceu um monte de modelo.
Você quer mais gostoso que isso?
— Eles são tão fake. Não quero “modeletes”. Quero um homem, sei lá,
hombre!
— Você quer um homem espanhol?
— Não! Quero um homem gato, mas que tenha traços fortes e esteja com
menos maquiagem do que eu.
— Você não usa maquiagem.
— Exatamente, Helô. Exatamente. — respondo, mordiscando o canudo da
minha caipirinha de limão que ela fez. Eu nem tinha limão em casa, mas,
depois que concordei com essa insanidade, Helô viu que eu só tinha a tequila e
o sorvete e foi até o mercado estocar minha geladeira. Ainda bem por esse anjo
na minha vida! Eu já estava na merda; se ainda tivesse que tolerar uma ida ao
mercado, aí é que me afundaria na depressão de vez.
— Se você quer um homem de verdade, por que a gente não busca um
homem de verdade?
— Como assim?
— Em vez de perdermos nosso precioso tempo no Google, a gente pode ir
direto para o Instagram jogar um nome qualquer e ver o que aparece.
A ideia não me soa ruim.
— Mas que nome jogaríamos?
Helô pondera por alguns instantes antes de responder.
— A gente pode usar algum nome estrangeiro, assim a chance do Rafael
conhecer a pessoa reduz bastante. Vamos colocar Harry? Meu ex-príncipe
favorito. — Helô suspira. — Meghan, sua sortuda.
— Ele não está ficando careca?
— Ele pode ter o corpo coberto de escamas, meu amor, com aquele rosto e
aqueles ombros, eu pegava fácil.
— Ombros?
— Não jogue fora um bom par de ombros, minha querida. Eles dizem
muito sobre um homem.
— Não me entenda mal. Curto ombros também, mas não é a primeira
coisa que me vem à mente.
— Pois deveria. Ombros largos como os do Harry me dizem coisas que
mais nenhuma parte do corpo pode dizer.
— Como o quê?
— Como que ele tem força o suficiente nos membros superiores para me
aguentar com as pernas presas na sua cintura enquanto ele me fode contra uma
parede.
— Helô! — exclamo, horrorizada.
— O quê?
Sacudo a cabeça rindo e não respondo. Esse é um comentário tão Helô que
nem sei o que dizer.
— Está bem, então. Vamos com Harry.
Ela entra no aplicativo e começa a busca.
Foto após foto, vou criando expectativas de que a próxima será perfeita,
mas a verdade é que ninguém me causa o mínimo de interesse. Ai, será que
Rafael me quebrou e agora nenhum homem mais me atrai?
Maldito seja!
Estou pensando pragas para jogar nele e em gerações futuras da sua árvore
genealógica, quando grito para Helô parar.
A imagem de perfil que vejo é simples: o rosto do rapaz com um sorriso, no
entanto, algo naquele sorriso faz um frio percorrer a minha coluna. Ou seria
um calor? Traços fortes, com o queixo ligeiramente quadrado, uma barba por
fazer e olhos escuros em um tom quase chocolate.
— É ele, Helô. É ele.
Ela entra no perfil, que, por sorte, é aberto. Passa por algumas fotos e chega
em uma de corpo inteiro. Ele está encostado numa mureta; ao fundo, o
London Eye revela que ele é realmente inglês.
— Hum... Ombros largos, hein.
O ruído que ela emite me faz instintivamente ficar com ciúmes do meu
namorado falso. Mas logo Helô me cutuca com o cotovelo e o bobo ciúme
desaparece.
— Harry Stewart — ela diz, lendo o nome no topo da tela. —
Congratulations, meu querido! Você dará um excelente perfil falso.
O despertador está quebrado no chão do quarto. Me recuso a levantar. Sei que
tenho trabalho e que preciso sair dessa fossa bizarra; mas sinceramente? Não
quero. O fim de semana foi, mais uma vez, uma maratona de cerveja e de
músicas deprimentes no meu violão. O som enchia o meu flat enquanto a
bebida enchia o meu cérebro. Só Liam, baixista da minha banda e meu amigo
desde os treze anos, me mandou mensagem. Não respondi.
Essa é a minha rotina há dois meses: fins de semana de merda seguidos por
cinco dias de pesquisa para o meu doutorado na Escola de Biologia e Ciências
da Queen Mary Universidade de Londres. Além da minha pesquisa
simplesmente não andar, eu ainda tinha que lidar com os alunos do curso de
Zoologia. Pelo menos, eles entraram de recesso há duas semanas — thank fuck!
Se eu tivesse que continuar fazendo meu papel de professor assistente de
biodiversidade marinha, provavelmente não estaria vivo hoje.
Eu sei que tenho que quebrar esse ciclo vicioso, no entanto, é bem mais
fácil seguir com o status quo da minha vida inútil do que ativamente tentar
mudar. Eu posso sentir o fedor da depressão em volta de mim — basicamente
cerveja e roupas que estão há três dias no meu corpo sem banho —, mas ele já
é conhecido. Qualquer mudança seria novidade e eu não sei se consigo lidar
com novidades.
Meu telefone toca. É Liam. Atendo sem dizer nada.
— Harry? — Faço um barulho que pode ser considerado algo entre um
grunhido e um arroto. — Harry, cadê você? A Dra. Harrison acabou de cruzar
comigo no campus, você tinha uma reunião há quarenta minutos com ela. Cara,
você vai perder sua vaga nesse doutorado se continuar assim. Levanta essa bunda e
vem logo antes que eu vá aí te encher de porrada.
Ele nunca me bateria. Até porque não conseguiria. Eu faço muay thay há
dez anos e ele, apesar de ser forte, é um graveto de gente comparado a mim,
mas tem boa intenção. Em minha defesa, eu tinha me esquecido da reunião.
Contudo, mesmo que ela não existisse, já era para eu estar na universidade há
duas horas, então a verdade é que não tenho uma desculpa boa para dar.
— Vá à merda, Liam.
— Seria uma opção melhor do que ir até a sua casa, que, a propósito, está
fedendo que nem o sovaco do Taylor, mas aparentemente eu vou ter que sair do meu
caminho para salvar a sua vida de novo.
Toda segunda-feira tínhamos a mesma conversa, incluindo a referência ao
sovaco do nosso baterista. Eu odeio o que estou fazendo com ele. Queria
realmente conseguir parar, mas não o suficiente para realmente fazer acontecer.
— Vamos, Harry. Me dá uma ajuda, cara. Eu tenho uma vida também, sabia?
Vim até o campus encontrar a Danny, não me faz ter que cancelar com a minha
garota de novo por você.
Liam conheceu a Danny numa festa em que fomos tocar, perto da
faculdade. Ela é professora do departamento de História... Ou Matemática...
Ou Medicina. Eu não estava prestando atenção quando ele me contou. Liam se
apaixona rápido e fácil, mas os relacionamentos costumam explodir na sua cara
antes que eu tenha tempo de me apegar à garota. Não que eu vá lhe falar isso.
Mesmo que agora esteja fingindo ser casca-grossa para me fazer levantar, é um
cara sensível.
— Okay, Liam. — Desisto. — Já estou indo.
Faço menção de desligar e ele grita um “espera” do outro lado da linha que
quase arrebenta o meu tímpano.
— Que foi?
— Toma um banho antes de sair. Pelo amor de Deus, Harry. Toma um banho.
Faço uma careta e desligo sem me despedir. Liam é um santo. Se a situação
fosse ao contrário, confesso que não sei se o apoiaria por tanto tempo levando
tanta porrada. Não é justo com ele. Sou filho único, assim como Liam, e nossa
amizade é mais um laço de irmãos do que de amigos; tenho muita sorte. Já
Liam podia ter tirado uma mão melhor nesse jogo.
Como uma forma de recompensar seu esforço em me fazer voltar à vida,
resolvo tomar banho. Recompensa de merda, eu sei, mas estou deprimido,
então me deixa.
A água quente é um tapa em cada um dos meus músculos. Ela deveria fazer
com que eu me sentisse melhor, mas só me sinto mais sujo. Tudo que já vivi
nessa casa, nesse banheiro, nesse chuveiro, minhas melhores memórias são
todas com ela.
Melanie.
Por mais que sair seja um suplício, estar aqui, com a minha mente viajando
por tudo que vivemos, é pior.

— Que alegria você nos dignificar com a sua presença, Harry.


A Dra. Harrison não costuma ser muito adepta do sarcasmo, então posso
afirmar, com toda certeza, que ela está puta.
— Desculpe o atraso, doutora. Meu despertador está com algum problema.
Não minto ao dizer isso. Afinal, o fato de eu tê-lo destruído hoje de manhã
qualifica como um problema, não?
— Venha até a minha sala, precisamos conversar.
Então esse é o momento.
Tudo pelo que trabalhei ao longo dos últimos anos — as horas de pesquisa,
estudo e dedicação —, tudo foi por nada. Ela vai me tirar do doutorado.
Destruí mais uma parte da minha vida. Meu relacionamento implodiu, minha
banda não se encontra mais, eu só tenho o doutorado e, agora, nem mais isso.
Parabéns, seu bosta. Você conseguiu.
Afasto o pensamento derrotista da minha cabeça. Vou receber essa notícia
com dignidade. Se é que ainda tenho algum pingo restante em mim.
A sala da Dra. Harrison é pequena e possui apenas uma mesa de trabalho e
duas cadeiras, uma para ela e outra para algum eventual visitante. O
Departamento de Biologia e Ciências recebe um bom investimento da
universidade, mas ela reverte tudo para tecnologia e pesquisa. Essa é a Dra.
Emily Harrison, focada e sem necessidade de luxos supérfluos.
Ela se senta e aponta para a cadeira à sua frente depois que me pede para
fechar a porta. Obedeço enquanto tento controlar a minha respiração e penso
qual será minha reação quando ela me chutar daqui. Tentarei implorar perdão?
Pedir para ficar? Levantar a cabeça e apenas me retirar sem falar nada? Ela não
me dá tempo para tomar uma decisão.
— Harry, eu confesso que estou decepcionada.
Ouch.
Já começou arrancando o band-aid.
— Seus últimos relatórios sobre os impactos do efeito estufa na vida
marinha até 2050 foram superficiais, isso quando você se deu ao trabalho de
entregá-los no prazo. Essa pesquisa precisa ser encerrada em três meses ou você
será reprovado e estará fora do doutorado.
Dra. Harrison faz uma pausa. Acredito que esteja esperando eu dizer
alguma coisa. Sinto meu peito contrair e minhas palmas suarem. Ouvir em voz
alta o que eu já sei torna tudo pior. Não há defesa para mim. Deixei o que
aconteceu com Melanie afetar todos os âmbitos da minha vida e agora tenho
que arcar com as consequências.
— Sinto muito, Dra. Harrison. Sei que não estou fazendo o meu melhor.
— Que bom que sabe! Se você achasse que estava arrasando, o problema
seria pior do que eu imaginava.
É, ela está bem puta.
— Olha, Harry, você conseguiu essa vaga porque me surpreendeu. Seu
estudo sobre a vida marinha nos trópicos foi um divisor de águas para esse
departamento e nos ajudou a conseguir um financiamento maior neste ano.
Quero que você continue conosco, então vou lhe dar mais uma chance.
Sabe os personagens de desenho animado que levam um susto e seus olhos
saltam para fora das órbitas? É assim que eu estou no momento. Com olhos
arregalados e sobrancelhas elevadas; o choque estampado em cada centímetro
do meu rosto.
Mais uma chance?
Sim! Por favor, sim!
Uma onda de energia renovadora passa por mim. Não sei mais onde está o
Harry de hoje de manhã. Ele dá espaço para um Harry com esperanças,
alguém com uma luz no fim do túnel. Sem esse doutorado, não sei o que seria
da minha vida; preciso encontrar forças para seguir. Preciso abraçar essa chance
com unhas e dentes!
Dra. Harrison levanta um papel que estava na mesa esse tempo todo, mas
eu só percebo agora. É o meu currículo.
— Vi aqui que você fala português; é verdade?
Onde ela está querendo chegar com isso?
— Sim, é verdade. Minha mãe é brasileira. Por quê?
— No mês que vem, o Brasil vai sediar um evento para a semana do meio
ambiente. Empresas ao redor do mundo vão se reunir no Rio de Janeiro para
mostrar as últimas novidades sobre o tema. A universidade foi convidada a
participar e, como você tem o domínio do idioma, gostaria que apresentasse a
sua pesquisa nesse evento. Isso vai ajudar na sua nota e lhe dará uma chance de
sobrevida neste doutorado. Posso colocá-lo como nosso representante?
Ir para o Rio de Janeiro?
Penso na minha casa, nas lembranças, na bebida — no ciclo de depreciação
em que eu me encontro. Penso no rico ecossistema marinho do Rio, na chance
de levar a minha pesquisa para ser ouvida por pessoas que podem fazer a
diferença, nas famosas praias que eu já vi em séries e filmes — nos biquínis
ínfimos que não deixam muito para a imaginação. A resposta sai antes que eu
possa frear meus lábios.
— Onde eu assino?
-V ocê fez o quê?!
A cafeteria do shopping perto do meu trabalho está quase vazia, o que faz a
minha voz viajar e chamar a atenção do barista. Gustavo começou a trabalhar
aqui há três meses e sei que já conseguiu se acostumar com a histeria das
minhas conversas com a Helô. Mesmo assim, não quero explanar o que
estamos falando, então lhe mostro um sorriso, fingindo que está tudo bem, e
ele retoma seu trabalho.
Mas a verdade é que não está nada bem.
Helô veio me encontrar para almoçar. Achei que ela podia ter repensado a
ideia do perfil fake, mas acabo de descobrir que ela está fora de controle.
— Ai, Alice, relaxa! — ela diz com a maior calma do mundo. — Eu
precisava dar um trabalho para meus alunos e, com os meus pacientes e a
faculdade, eu não ia ter tempo de criar e manter o perfil, me dedicando como
ele merece, como você merece. A melhor coisa que a gente pode fazer é
terceirizar! Ele precisa de um estilo de fala próprio, de uma mente criativa para
pensar em cantadas modernas e inteligentes e de uma grande lista de
seguidores, caso contrário vai parecer que é falso.
— É falso, Helô!
— Mas a gente não quer que o Rafael descubra isso. — Helô expira fundo
e me puxa, ainda sentada, para um abraço lateral. — Essa é a minha primeira
turma de Psicologia e Modernidade. Dar o Instagram para eles controlarem é o
trabalho perfeito de fim de curso! Eles vão precisar entrar na psiquê de outra
pessoa, expressar a personalidade dela através das postagens. A verdade é que eu
não tinha ideia do que passar para eles fazerem, então no fim das contas quem
está me ajudando é você.
Helô termina seu discurso com um sorriso de orelha a orelha.
Suspiro e me afasto do abraço de Helô, afundando na minha cadeira.
— Está bem. Como fazemos isso?
— Você não precisa fazer nada! Só curtir e responder às investidas do
Fernando Williams no Instagram.
— Fernando Williams? Não era Harry?
— A gente não pode usar o nome real dele, né? Construí todo o
background com os meus alunos já. Colocamos um sobrenome inglês, porque
ele tem muita cara de gringo, então achamos melhor abraçar as origens
britânicas. Williams foi ideia minha. Já que usamos o ex-príncipe Harry para a
busca, achei justo usarmos o nome do irmão dele como inspiração para o
sobrenome. Fernando é um homem culto, forte, formado em Medicina pela
UFRJ e um dos melhores neurocirurgiões do Rio de Janeiro.
— Ele não é meio jovem para ser um dos melhores neurocirurgiões do Rio?
— Ele é um prodígio.
— Claro que é.
— Olha só, eu e meus alunos nos dedicamos muito a esse perfil, então para
com essa atitude e abraça logo a ideia. Quanto antes você se convencer de que
é a melhor solução, mais rápido a gente vai poder começar o plano de
reconquista do Rafael.
— Já estou convencida!
— Então trate de diminuir a ironia e o sarcasmo e aumentar a libido, meu
bem. Porque Fernando Williams vem aí e ele te quer, Alice. Ele te quer muito.
Meu celular vibra na minha mesa. A notificação que Helô me disse que
chegaria finalmente está entre nós.

Solicitação para seguir: Fernando Williams

Entro no aplicativo e aceito. A foto me faz pensar em Harry e cogito entrar


no perfil dele novamente para ver se postou algo, mas desisto dessa ideia. O
mais importante agora é o perfil do Fernando.
Um clique me leva até ele. Minha boca se abre, deixando o meu queixo
literalmente cair. Os alunos da Helô realmente querem um dez. O perfil já tem
327 seguidores, 740 seguindo e várias fotos postadas: Fernando na praia,
Fernando no bar, Fernando usando um jaleco e posando com uma placa do
SUS. Onde que eles arrumaram isso, meu Deus?
Envio uma mensagem para Helô na mesma hora.

Alice:
Me explica como o Harry conhece o SUS?

Ela responde quase imediatamente.

Helô:
Photoshop ;)

Alice:
São alunos de Psicologia ou hackers?

Helô:
São um bando de desesperados pq eu dei um zero para a maioria na primeira prova do
curso.

Alice:
Eles foram tão mal assim?
Helô:
Não, mas eu gosto de começar uma turma nova sempre dando um susto p/ eles
acharem q precisam se esforçar mais.

Alice:
Você tem problemas.

Helô:
E você me ama mesmo assim. o que isso diz sobre você?

Alice:
Touché.

Preciso deixar a troca de mensagens de lado quando percebo que minha


chefe se aproxima da minha baia.
— Alice, você tem um segundo?
— Claro, Raquel.
Ela começa a andar na direção da sala de reuniões que temos no nosso
andar. Essa é uma sala pequena, nada comparada à grande que fica no andar
superior, onde está Paco Schmidt, o CEO da GameStart. Ela possui apenas
uma mesa redonda com seis cadeiras e uma TV grande para conectarmos aos
nossos laptops se precisarmos.
Entro na sala e meus pés travam. Sentado, nos aguardando, está Rafael.
Será que Raquel descobriu que a gente estava em uma relação e quer
chamar nossa atenção por algum motivo? A GameStart não tem nenhuma
política contra a confraternização entre funcionários, o que me faz pensar que
não, mas minha relação com ele está tão delicada no momento que temo mais
algum desafio desnecessário.
— Feche a porta, Alice.
Obedeço e me dirijo à mesa. Raquel aponta para o lugar ao lado de Rafael
e eu me sento na mesma hora. Faz dias que não ficamos tão perto assim um do
outro. Pena que é com a nossa chefe presente.
— Temos um projeto novo e urgente. — Ah, é sobre trabalho... — A
semana do meio ambiente vai acontecer em menos de um mês e a prefeitura do
Rio nos contratou para fazermos um simulador da passagem dos anos e os
impactos na natureza. Precisamos trabalhar em cima de paisagens clássicas
cariocas, tendo como base os estudos que serão encaminhados pelos
palestrantes da conferência.
Fico empolgada com a notícia. Trabalhar em uma empresa de games,
criando skins para jogos pode ser divertido, mas é rara a oportunidade de fazer
algo com impacto social. Participar da conferência me anima quase tanto
quanto saber que o roteirista desenvolvedor que será minha dupla é o Rafael.
— Já recebemos algum desses estudos? — pergunto, querendo começar
logo a trabalhar no projeto.
— Até agora recebemos um estudo sobre a fauna da Mata Atlântica, vindo
da Universidade da Califórnia, e um sobre a vida marinha, da Queen Mary, de
Londres. Acho que com esses dois já dá para ter um norte, entretanto vamos
receber mais ao longo desta semana.
Rafael ainda não olhou para mim. Divide sua atenção entre Raquel e o seu
tablet, onde faz anotações sobre a reunião. A minha vontade é pegá-lo pelas
bochechas e gritar “olha para mim, cacete!”. Contudo, me controlo. Rafael não
tem demonstrado o mínimo de interesse. A última vez que foi atrás de mim
para dizer algo foi quando me ofereceu carona na segunda passada. Desde
então sou eu quem tem se humilhado para buscar um mínimo de atenção.
Ainda não fiz nada do tipo hoje, o que me deixa com um pouco de orgulho de
mim. Por mais que doa vê-lo, estar perto dele e saber que não passei vergonha
me dá uma paz. Minha dignidade acordou intacta e assim permanece. Penso
sobre o plano de reconquista. No fim das contas, ele é uma grande humilhação
da minha parte. Olha tudo que eu fiz – e que a turma da Helô está fazendo!
Quem em sã consciência toma essa atitude? Talvez seja melhor esquecer tudo
isso e sair dessa relação com um tico de amor-próprio.
Rafael faz um movimento de cabeça como se estivesse concordando com
algo. Ele engole e seu pomo de adão se movimenta. Se Helô tem um troço com
ombros, eu sou tarada por um pomo de adão. De repente, em um ritmo lento
e controlado, ele vira a cabeça na minha direção. Finalmente! Que alegria! Ele
está olhando para mim! Ahn, okay... Por que ele está fazendo essa cara como se
eu estivesse louca?
— Alice?
— Sim. — respondo, encantada por como o meu nome soa bem nos seus
lábios.
— Você concorda com o que a nossa chefe acabou de falar?
— Oi?
Quebro o contato visual com ele e me viro para Raquel, que me olha como
se eu tivesse três cabeças. Os dois perceberam que eu não estava prestando a
mínima atenção e estava babando pelo Rafael. Calma, Alice. Dá para você
inventar alguma coisa e se salvar dessa.
— Desculpem, tinha um mosquito voando bem atrás de você, Rafael.
Mosquito de dia tem chance de ser o da dengue, não tem? Ou ele é noturno?
Sempre confundo.
Alô, dignidade! Cadê você, querida?
— Jura? Ai, tenho pavor de mosquito-da-dengue! Era listrado? — pergunta
Raquel, passando a mão nas pernas embaixo da mesa para afastar o mosquito
inexistente.
Respiro aliviada. Jamais imaginei que isso funcionaria! Até Rafael dá uma
olhadinha para trás, procurando o bicho invisível.
A dignidade retornou. Agora eu preciso mantê-la aqui.

Assim que chego em casa, ligo para Helô.


— Cancela tudo!
— De novo com essa palhaçada? A gente já não tinha resolvido isso?
— Tinha, mas agora é por um motivo que vai te convencer.
— Duvido muito, mas tenta aí.
— Cansei de me humilhar.
Helô fica em silêncio por uns instantes.
— Elabore.
— Não passei vergonha hoje, Helô. E me senti tão bem! Um pouco como a
Alice do passado, antes do Rafael. Não me entenda mal, ele continua lindo e
ainda acho que vou morrer sozinha se não estiver com ele, mas essa semana que
passou assassinou a minha dignidade, foi bom recuperar um pouco disso. Se a
gente seguir adiante com o plano de reconquista, acho que vou perdê-la de
novo. Não posso me sabotar dessa forma.
Aguardo o seu parecer, mas ela não diz nada. Se foram segundos, minutos
ou horas, eu não sei, mas quando ela finalmente fala, sinto o ar que não sabia
que estava prendendo voltar para os meus pulmões.
— Puta que pariu, até que enfim! — Rio alto da sua reação. — Era só isso
que eu queria de você! Não precisa dizer mais nada, o plano está acabado! Seu
namorado fake está morto! Aqui jaz Fernando Williams, hashtag luto.
— Isso quer dizer que você vai falar com os seus alunos para eles deletarem
o perfil?
— Acho que só vou pedir para esquecerem a parte de dar em cima de você e
manterem o perfil. Não quero parecer doida de tirar o trabalho no dia seguinte que
foi passado, né?
Concordo com o ponto de Helô, realmente pegaria mal. E, se o perfil não
interagir comigo, eu me mantenho com meu orgulho intacto.
Pelo menos é o que eu espero.
Desligo o telefone e vou até a cozinha preparar o meu jantar. Faz alguns
dias que o desânimo causado pelo término com Rafael me impede de cozinhar,
contudo, hoje quero mudar isso. Confiro rapidamente as compras que Helô fez
para mim quando eu estava deprimida demais para dar ao mercado o prazer da
minha presença e resolvo fazer um macarrão.
Coloco a água no fogo e corto a cebola para o refogado. Pego o extrato de
tomate e começo a fazer o molho. Coloco a massa na água fervente e, enquanto
espero o tempo necessário para ficar al dente, pego o celular e abro o Instagram.
Com a outra mão, seguro uma colher para provar o molho e ver se precisa de
mais sal. Passo por um post de uma conhecida malhando e falando que “tava
pago”; curto. Um post da minha chefe meditando em Teresópolis; curto. Um
post da Helô ensinando a fazer caipirinha de kiwi com morango; curto. Um
post do Rafael...
O post do Rafael. Aquele que assassina de vez qualquer gota de vida no meu
coração.
A colher na minha mão cai dentro do molho, jogando respingos na minha
roupa, no meu fogão e no meu celular.
A imagem mostra Rafael com Vanessa.
E o texto que vai ficar gravado para sempre na minha memória: “minha
namorada <3”.
Leio. Releio. Re-releio.
Namorada.
Como isso pode estar acontecendo?
Namorada.
Ele não queria se amarrar a ninguém! Ele não queria compromisso.
Namorada.
Como já estava namorando? E em menos de DUAS semanas depois do
fatídico dia no carro.
Namorada.
Era tudo mentira? Ele já queria estar com Vanessa? Foi para isso que
terminou comigo?
Namorada.
Passei seis meses amando aquele homem e achando que éramos exclusivos.
Será que era só eu que achava isso e eles já estavam juntos?
NA-MO-RA-DA.
A dor no dedinho mindinho do meu pé direito vem forte. Aparentemente,
no meu devaneio para tentar entender o que está acontecendo, eu comecei a
andar de um lado para o outro, saí da cozinha e entrei na sala, dando uma
topada na perna da mesinha de centro. Começo a pular no melhor estilo saci,
enquanto seguro meu pé com uma mão e o celular com a outra. Me
desequilibro e caio. Tento mirar no sofá, mas passo direto por ele e vou ao chão
me segurando na cortina. Na queda, faço com que a barra de madeira que
prendia a cortina na parede despenque bem em cima da minha cabeça. O
celular continua a salvo na minha mão.
Com dor no pé, dor na cabeça e dor no coração, ligo para Helô.
Dignidade? Desconheço.
Fernando Williams tem que ser ressuscitado.
L iam está recostado na cabeceira da minha cama, tocando displicentemente o
meu violão, enquanto me observa arrumar a mala. Viajo em alguns dias, mas
estou tão animado que resolvi já deixar o máximo possível pronto.
— Eu não acredito que a Dra. Harrison está te mandando para o Rio.
Ganhar uma viagem com tudo pago pela universidade depois da maneira
escrota como você tem se comportado? Ela não pode estar no seu juízo
perfeito.
— Palavras de um homem com inveja.
— Claro que eu estou com inveja! Se eu fizesse metade do que você fez
essas semanas no meu trabalho, seria demitido na certa. E olha que eu trabalho
para o meu tio!
O tio de Liam tem uma empresa de eventos e é o responsável pelo
departamento de marketing. Nepotismo? Claro. Mas Liam é realmente bom
no que faz, ao contrário da maioria dos filhinhos de papai que são empregados
sem nem saberem amarrar o próprio sapato. Por tudo que sofreu na
adolescência, ele dá valor a todas as oportunidades, até mesmo a um emprego
tido como certo.
Continuo dobrando umas mudas de roupa, quando o súbito silêncio do
violão me faz voltar a atenção para Liam.
— Estou feliz de te ver assim, Harry.
— Assim como?
— Em primeiro lugar, de banho tomado. O fedor já estava insuportável.
Levanto meu indicador e meu dedo médio, gesticulando um belo de um
“vai à merda” para o meu amigo. Ele retruca erguendo o dedo do meio,
sinalizando o mesmo.
— Mas sério, Harry. Você está de pé, focado em algo que não é a sua vida
miserável. Tem um ar de esperança e propósito. Senti falta disso.
— Eu também — digo, com sinceridade. Sei que estou longe de estar bem,
contudo o fato da Dra. Harrison acreditar em mim me trouxe um entusiasmo
que eu estava precisando. Não sei se vai durar, mas espero que sim.
— Se uma viagem a trabalho fez isso, imagina se você transar.
— Não vai acontecer tão cedo, então se dê por satisfeito com a viagem.
— Por que não? Você vai estar num país novo, conhecendo gente nova.
Ainda mais considerando que elas vão estar em uma conferência sobre coisas
que te interessam, então você já tem certeza de que vão ter muito em comum.
Daí para a cama é um pulo.
— Eu queria viver no seu mundo, onde uma conferência sobre impactos
ambientais dá tesão — digo, jogando nele o suéter que eu estava dobrando.
— Não estou falando para se casar com a próxima mulher que passar pelo
seu caminho, só uma coisa casual para fazer você esquecer. É aquela máxima:
ficar embaixo de uma pessoa para superar outra.
Ele pisca o olho para mim, e minha vontade é socar aquela cara cínica.
Liam nunca teve uma noite sequer de sexo casual. Pula de uma namorada para
outra, sempre ficando com elas por pelo menos um ano. É quase um namorado
compulsivo. Sinceramente, em mais de vinte anos de amizade, não me lembro
do Liam solteiro. Espero que dê certo com a Danny, porque ele consegue ficar
pior do que eu quando termina. A diferença é que a sua depressão acaba
rápido. Logo vai a uma festa, ou a um piquenique, ou até mesmo à biblioteca,
e sai de lá comprometido com a mulher com quem ele acha que vai ter o seu
“felizes para sempre”.
Já eu demoro mais tempo. Beeem mais tempo. Fiquei em idas e vindas com
a Melanie por quase um ano antes de pedir para ela ser minha namorada.
Achei que estávamos em um caminho bom. Ela queria ser atriz, então eu a
colocava para atuar nos clipes da banda e ela se dava bem com o pessoal. O
sexo era ótimo, e ela não ficava em cima de mim toda carente como algumas
mulheres ficam, sabe? Eu achava que era isso que queria, até desvendar o
porquê. Ela estava me traindo. Quase desde o começo do nosso relacionamento
de dois anos. Descobri que Melanie não acredita em monogamia. Talvez eu até
tivesse concordado com um relacionamento aberto, mas para isso ela precisaria
ter me avisado antes que estávamos começando um. Antes de eu lhe pedir para
se mudar para a minha casa, antes de eu começar a buscar alianças de noivado,
antes de eu ter encontrado minha namorada chupando outro cara em um carro
na esquina da nossa rua.
Tento esquecer a cena e volto para minha conversa com Liam.
— Sério, Liam, depois da Melanie, acho que prefiro ficar um tempo sem
ninguém. Vou focar no doutorado e na banda, e esquecer de mulher um
pouco. Vai fazer bem para mim.
— Owen vai adorar te ouvir falando isso.
Respiro fundo.
— Ele anda reclamando de novo?
— De novo? Ele nunca parou. Acho que desde que você terminou e...—
Liam não completa o raciocínio, mas sei que está se referindo a eu ter ficado na
merda. — Ele entrou em um redemoinho de insatisfação que eu não sei como
o Taylor aguenta.
— Eles são primos. O Taylor tem que aguentar porque é da família.
— Talvez. Mas eu também entendo o lado do Owen.
— É, eu também.
Owen é bem mais jovem do que a gente, tem apenas vinte e quatro anos.
Ele entrou na banda faz um ano para suprir a falta de alguém que cuidasse dos
solos de guitarra e me ajudasse nos vocais; seu talento é surreal. Por mais que
eu quisesse que fosse diferente, nossa banda é mais para curtir e relaxar do que
realmente para fazer sucesso. Ele queria viver de tocar, contudo, eu tenho a
universidade; Liam, sua carreira na empresa do tio; e Taylor é dono de uma
oficina especializada em carros esportivos. Nosso foco nunca foi estourar do dia
para noite e, agora, não temos mais fôlego para tocar em pubs, todos os fins de
semana, na esperança de sermos descobertos, muito menos tempo para ensaiar
com a frequência que isso demandaria.
Se antes de tudo que aconteceu com Melanie, ele já estava insatisfeito,
nessas últimas semanas em que simplesmente desapareci, Liam me relatou que
Owen estava furioso.
— Mas, quando eu contar que você quer voltar a ensaiar, tenho certeza de
que consigo acalmar os ânimos. Então, nem se preocupe com isso. Viaje
tranquilo e com a mente voltada para o que importa: sexo casual.
Ele ainda não se esqueceu dessa história?
— Vamos combinar uma coisa então: quando você começar a fazer sexo
casual, eu também faço. Que tal?
— Eu tenho a Danny, Harry. Por que eu iria querer alguém por uma noite
quando posso estar com ela para sempre? — Não comento. Ele toma meu
silêncio como motivo para continuar. — Além disso, não estamos falando de
mim. Você é quem está na merda, logo, é quem precisa de um belo par de
peitos. Se bem que você vai para o Brasil, né? Ouvi dizer que bundas são o
destaque por lá.
De novo aquela piscada que me irrita.
— Farei o meu melhor para conseguir uma bela bunda, está bem? Fica feliz
assim?
— Eu? Já tenho uma bela bunda, duas se você contar com a da Danny. —
Danny não tem bunda alguma, mas prefiro não falar para ele que eu já olhei.
— O que a gente quer aqui é ver você feliz. Digo mais, vamos fazer uma
aposta! Se você transar com alguém no Brasil, eu te dou o meu Höfner.
Paro de me mover na mesma hora. O aparelho de barbear que estava indo
para a mala cai na cama.
— O Höfner? — consigo perguntar quando o choque passa.
— Isso.
— O Beatle bass?
— Esse mesmo.
— O contrabaixo que tem o autógrafo do Paul McCartney?
— Não lembro de ter outro Höfner.
Percebo que continuo curvado sobre a mala, preso na posição que me
encontrava quando ele falou do Höfner pela primeira vez. Liam ama aquele
baixo. Ele nem ao menos o toca desde que conseguiu o autógrafo do ex-Beatle.
O instrumento fica numa redoma de vidro, no loft dele.
— Olivia?
— Sim, a Olivia.
O nome do Höfner foi dado em homenagem a Olivia Pope do seriado
Scandal. Além da atriz que interpreta a Olivia ser gata, Liam tem uma leve tara
em tudo que a Shonda Rhimes faz. Isso só corrobora que ele deve estar
brincando.
— Por que você faria isso?
Para a minha surpresa, ele assume uma postura séria. Coloca meu violão de
lado, cruza as pernas apoiando os cotovelos nos joelhos, entrelaça as mãos e me
encara.
— Porque você ficou miserável, Harry. Não quero te ver assim de novo.
Sim, eu amo a Olivia, mas eu te amo mais. Você precisa disso. Precisa esquecer.
Esquecer Melanie, esquecer a vida que achava que iam ter. Ela não era para
você, Harry, mas isso não quer dizer que mais ninguém vai ser. Quanto antes
você superar, mais rápido vai estar aberto para a próxima. E eu te garanto, vai
ter uma próxima.
Fico sem palavras com o discurso do meu amigo, do meu irmão.
— Liam, eu...
— E é uma aposta, Harry. — Liam diz, me cortando. Ele sabe que eu não
lido bem com conversas melosas. — Então, eu também vou querer uma coisa
se você perder e não transar com ninguém.
— O quê?
Liam batuca o queixo com um dedo, contemplando o que pedir.
— Se não transar com ninguém, quando voltar, você se muda para o meu
apartamento.
— Você não desiste, né?
Não é a primeira vez que Liam fala disso comigo. Desde que Melanie se
foi, ele diz que as memórias aqui na minha casa são o maior motivo para a
minha fossa. No fim das contas, ele está pensando em mim até quando é para
pedir algo para ele.
Esse é o Liam.
— Se eu desistisse fácil, meus relacionamentos não seriam tão longos
quanto são.
Alguns talvez devessem ter sido mais curtos, ou nem ter acontecido, mas
não menciono isso.
Essa aposta toda é só uma forma de ele me fazer sentir melhor. E agora que
estou com um ar de propósito, graças a essa viagem, vejo que realmente faria
bem eu me mudar. Não vai ser fácil acompanhar de perto ele e Danny sendo
felizes e ouvir a cabeceira da cama batendo contra a parede do quarto de
hóspedes, contudo não acho que consigo ficar nessa casa muito mais tempo.
Além disso, poderei ver a Olivia sempre que quiser. Tocá-la não vai acontecer,
mas ter aquela belezinha por perto já vai ser um bom prêmio de consolação.
Não preciso transar com ninguém para isso. E não pretendo.
Consigo transar sem me relacionar? Claro, já fiz isso inúmeras vezes — não
me julgue. O problema é que minha cabeça não está no lugar certo. Não quero
dar chance para ninguém se aproximar.
Já pensando em que móveis vou levar para a casa do meu amigo e quais
vou deixar, estico a mão.
— Fechado.
Liam aperta com força e pisca para mim.
Ele e essas merdas dessas piscadas.
Alice:
Ela está com o cabelo molhado.

Helô:
Ahn... eu deveria saber o que isso significa? 🤔

Alice:
Rafael e Vanessa saíram para almoçar há mais de duas horas. Eles voltaram agora. Ela
está com o cabelo molhado.

Helô:
Ahhh, sim! O famoso “almoço executivo”. E ele comeu a massa à putanesca.

Alice:
Isso não é muito feminista da sua parte. Ela não tem culpa de ele ser o amor da minha
vida.
Helô:
Vc está certa. Ela comeu o peru assado. Melhorou?

Alice:
Não muito.

Helô:
Esquece isso. O que importa é que eles foram ao motel e ela tomou banho para tirar o
fedor de sexo.

Alice:
Eu queria estar tirando o fedor de sexo do meu corpo agora.

Helô:
Eu queria que o meu paciente atual não tivesse tesão em canetas. Nem sempre a vida é
o que a gente quer.

Alice:
Você está em atendimento? Como está conseguindo me responder?

Helô:
Escondi o celular no caderno onde estou “fazendo anotações” 😉

Alice:
E como você vai ajudar o tarado das canetas se não prestar atenção no que ele falar?
Helô:
Um dos principais problemas dele é que é egocêntrico. Ele não sabe, mas o fato de eu
não estar prestando atenção faz parte do tratamento.

Alice:
...

Helô:
Mas fica tranquila. Meus alunos prepararam umas coisinhas que podem te ajudar. Vou te
mandar por e-mail.

O e-mail da Helô chega alguns segundos depois da última mensagem.


Coitado do tarado.
Abro imediatamente e não consigo conter a surpresa. O corpo do e-mail
não diz nada, mas tem cinco fotos anexadas. Fotos do Fernando... Comigo!

Alice:
Deixa eu adivinhar... Photoshop?

Helô:
Yes!

Alice:
E o que você espera que eu faça com essas fotos?

Helô:
Ué, poste. não tudo de uma vez, claro. E mantenha legendas curtas ou coloque só
emojis. Objetividade é a chave! Ah, e não esquece de marcar o Fernando Williams 💛

Postar e marcar o Fernando; eu posso fazer isso.


Abro o Instagram. Escolho a foto em que estou abraçada com Fernando em
uma cidade da região serrana; acho que é Itaipava, mas nunca fui lá para saber.
E imagino que Harry Stewart também não. Esses alunos são realmente ótimos.
Agora, a legenda curta. Penso um pouco e decido por colocar “Fim de
semana feliz”; afinal, quando mais eu teria tido tempo de ir em Itaipava?
Marco Fernando e posto.
Nesses últimos dias, o máximo de interação que tive com Fernando
Williams foi curtir seus comentários em postagens antigas minhas. Essa é a
primeira grande coisa que faço. Tem um peso maior. Um peso de mentira. Sou
tão patética assim que preciso de um homem falso? O mundo pode não saber
que ele é falso, mas eu sei. E saber que eu não fui para Itaipava de verdade, que
eu não tive um fim de semana feliz, faz de mim uma mentirosa. E uma
mentirosa patética.
Os pensamentos vitimistas têm que esperar um pouco, pois Rafael atravessa
a sala, indo em direção à sua baia. Está com uma garrafa de água na mão que
deve ter ido encher na copa. Quem eu estou querendo enganar? Foi
exatamente isso que ele foi fazer, e eu sei porque eu estou seguindo cada passo
dele desde que voltou do almoço — com a Vanessa de cabelo molhado.
Ele se senta na mesa e o vejo pegando o celular.
Será que vai ser agora? Ele vai ver o post nesse segundo? Vai perceber o erro
que cometeu? Vai se levantar derrubando a cadeira no chão e vir aqui querer
saber quem é esse homem com quem eu estou? Vai me dizer para parar de sair
com outros caras porque eu sou dele? Vai me puxar pela cintura, segurar meu
cabelo com força e me dar um beijo caloroso seguido de sexo em cima da
minha mesa?
Okay, talvez essa última parte não aconteça.
Ele desliza o dedo para baixo e para cima, deixando óbvio que está no
Instagram. É agora. É esse o momento da verdade. Ele está vendo... E está
vendo e... E... E coloca o celular de lado para voltar a trabalhar.
Anticlimático, não?
Pois é, também achei.
Meu telefone do trabalho começa a tocar. Ninguém nunca liga para o
telefone fixo, nem mesmo clientes, então já sei quem é antes de atender.
— Oi, mãe.
Se é porque ela quer ter certeza de onde estou, ou simplesmente porque ela
é de uma época em que telefones fixos faziam sentido, eu não sei. Minha mãe
gosta tanto deles que até me forçou a pegar um plano mais caro na minha
assinatura de TV a cabo só para eu ter um em casa também.
— Quem é Fernando Williams e como você fez uma viagem sem avisar para a
sua mãe onde estava?
Ela pode ser da era do telefone fixo, mas, depois que me fez criar a conta
dela no Instagram, ficou mais stalker de redes sociais do que eu.
— Boa tarde para a senhora também.
— Não vem de “boa tarde” para cima de mim, não. Você viaja com um
homem desconhecido sem avisar a ninguém? Você poderia ter sido assassinada!
Eu vou traduzir o que ela falou para você entender quem é a dona Yolanda
Santana: Você viaja com um homem que EU não conheço sem ME avisar?
Você poderia ter tido finalmente uma experiência de vida legal e eu não estava
incluída; como ousa!
É, o cara das canetas não é o único egocêntrico.
Contudo, agora eu tenho uma decisão a tomar: contar a verdade para a
minha mãe (sendo obrigada a ouvi-la rindo da minha cara e contando essa
história em todas as reuniões de família) ou mentir para a mulher que ficou
nove meses me gerando na sua barriga, passou por um trabalho de parto de
vinte e sete horas e dedicou os melhores anos da sua vida para me criar —
como fez questão de mencionar durante a minha adolescência inteira toda vez
que eu fazia alguma coisa que ela não gostava.
Acho que, no fim das contas, não tem muito o que pensar.
— Foi só um bate e volta, mãe. Nem passei a noite. E o Fernando é amigo
da Helô, ela sabia onde eu estava, pode ficar tranquila.
— Ficar tranquila? Aquela garota é pior do que você. É só sacudir uma
caipirinha na frente dela que um completo desconhecido vira melhor amigo. Como
vou saber se esse cara é bom o suficiente para você?
E é aqui que entram os quase trinta anos conhecendo intimamente essa
mulher e o que ela considera bom o suficiente.
— Ele é um neurocirurgião.
O silêncio do outro lado da linha me mostra que a discussão acabou e que
eu ganhei. Pelo menos acho que ganhei, até que ela finalmente volta a falar e eu
descubro que talvez tivesse sido melhor dizer alguma outra coisa. Uma mentira
da mentira, talvez? Porque agora eu estou lascada.
— E quando eu vou conhecer esse rapaz?
Por essas e outras que eu nunca falei do Rafael para minha mãe. Ela tem
um jeito de querer se entranhar na minha vida que é assustador.
— Está cedo, mãe. Nem sei se tem futuro. Te aviso assim que souber, pode
ficar tranquila.
— E como você vai saber se tem futuro sem ouvir a minha opinião?
Não tenho nem resposta para isso.
— O pai está em casa? — pergunto, tentando mudar o foco da conversa.
— Sabe Deus onde está o Orlando. Mandei ir ao mercado faz horas e até agora
não voltou. Acho que está me traindo.
Minha mãe sempre acha que meu pai a está traindo. Mas eu sei exatamente
onde ele está agora: na garagem do prédio, com as compras na mala, ouvindo
música no rádio do carro enquanto tenta abraçar um segundo de paz antes de
subir para o apartamento deles. Quando morávamos juntos, nós dois fazíamos
o mesmo. Ele chamava, carinhosamente, esse momento de “descanso do
ouvido”, já que ouvia música e não a minha mãe tagarelando. Pode parecer um
relacionamento ruim, mas não é. Esse momento dá a energia necessária para
ele continuar amando a minha mãe. E ele a ama muito. Disso tenho certeza.
Até quando ela está enlouquecendo todo mundo, ele consegue olhar para ela
como se fosse a maior preciosidade que já encontrou na vida. Quero alguém
que me olhe assim. Quero que Rafael me olhe assim.
Como se soubesse que eu estou pensando nele, Rafael se levanta e vem na
direção da minha mesa.
— Mãe, eu tenho certeza de que o pai já está chegando, fica tranquila. Eu
tenho que voltar ao trabalho. Nos falamos mais tarde, está bem? Beijos.
— Você nunca tem tempo para mim.
— É porque você sempre liga quando estou no trabalho. Beijos, até mais.
— Sempre tem que se ter tempo para a mãe. Eu te dei a vida, Alice! Nove
meses para você nascer! Um trabalho de parto de vinte e sete horas! Os melhores
anos da minha vida desperdiçados te educando! E você não pode ficar nem dois
minutos comigo no telefone?
— Beijos para você também, mãe.
Desligo o telefone. Acho que nunca tive uma conversa com a minha mãe
em que ela tenha desligado primeiro. Entretanto, agora não é hora de analisar
isso. Rafael está aqui, na minha baia. Ele quer falar comigo. O post funcionou!
Funcionou!
— Você está com o relatório da Queen Mary?
Trabalho? É sério que é sobre isso que ele veio falar? Solto a respiração que
nem tinha percebido que havia prendido. Sim, estamos no escritório. Sim,
temos um projeto urgente para entregar. Sim, eu estou com o relatório que ele
quer. Mas é errado querer que ele tenha vindo para rasgar a minha roupa e
implorar o meu perdão? Não necessariamente nessa ordem.
— Aqui está — digo, entregando a pasta para ele.
— Obrigado.
Ele começa a andar, contudo, vira nos calcanhares e retorna.
É agora! Agora sim! Ele vai falar que viu o post! Ele vai me querer de volta!
— Sabe se o relatório de Tóquio já chegou?
Você está de sacanagem comigo, né?
— Não chegou, não.
— Vou falar com a Raquel para cobrar o pessoal de lá.
E ele sai.
Não sei por quanto tempo mais vou conseguir aguentar essa indiferença.

No escuro do meu quarto, a única luz que brilha é a da tela do meu celular.
Helô passou aqui mais cedo para me trazer uma caipirinha e umas palavras de
conforto pelo post malsucedido, mas continuo me sentindo estranha.
Estou há cerca de vinte minutos olhando a foto que postei hoje; vou ter
que postar mais, conversar mais com Fernando, fazer mais, fazer o que for
preciso. Porém, não é nisso que estou pensando. Fernando Williams me olha
de volta na foto de Itaipava e imagino em que foto os alunos de Helô pegaram
o rosto usado. Sem entender direito o que estou fazendo, entro no Instagram
de Harry Stewart.
Ele é tão lindo. Seu sorriso é fácil e inspira as laterais da minha boca a se
elevarem instintivamente. Não sei quanto tempo se passa, mas eventualmente
chego na última postagem. De alguma forma, chegar aqui me faz sentir mais
próxima de Harry.
As fotos de paisagens e animais me dizem que ele é ativista. Será que é
vegano que nem a Helô? As poucas imagens de comida que achei não têm
carne alguma.
Descubro que ele faz parte de uma banda chamada Moon Landing. Fico
curiosa com o trecho de um clipe que vejo no IGTV. De lá, sou direcionada ao
YouTube e assisto ao clipe todo. A gravação trêmula e ligeiramente amadora
mostra partes do corpo de uma mulher nua, deitada em uma cama com lençóis
brancos. Nada proibido para menores de dezoito anos aparece, mesmo assim
ela emite uma vibe extremamente sensual. De repente uma mão entra em cena
tentando tocá-la, mas a mulher some em um fade meio malfeito.
Entretanto, nada disso importa. Minha atenção não está mais no clipe,
apenas na música. A melodia é suave e triste. Seus poucos versos falam da dor
de amar e é impossível eu não me identificar. E a voz que a canta...
Entro no meu aplicativo de streaming e fico feliz quando a encontro. Marco
a faixa como favorita e coloco em looping. Essa voz, essas palavras; tenho a
impressão de que nunca vou me cansar de ouvir essa música.
Rafael está esticando a mão para mim, chamando-me para dançar. Ele está
vestido com uma roupa de príncipe da Disney, em tons de azul e branco. A rua
está escura e chove forte, mas, mesmo com o temporal, ele está completamente
seco e com o cabelo perfeito. Olho para baixo. Eu estou de calça jeans e com
um suéter de moletom todo molhado, que gruda no meu corpo.
Ao fundo, uma balada de rock me distrai por um instante, contudo logo
me volto para o homem na minha frente e estico a mão para alcançá-lo. Antes
que eu o toque, um ônibus aparece do nada e o atropela. O motorista abre a
porta e olha para mim. É Fernando Williams. Ou Harry Stewart. Não tenho
como saber.
Assim como eu, ele está de calça jeans, mas na parte superior tem uma
camisa preta coberta por outra de flanela xadrez vermelha e preta. É a vez dele
de esticar a mão; está me convidando para subir no ônibus. Movimento a
cabeça na direção da traseira do veículo, onde imagino que esteja o corpo de
Rafael. Retorno o olhar para Fernando/Harry. Ele parece estar falando, mas a
música está alta agora e não consigo escutá-lo. A chuva se intensifica e quase
não o enxergo mais.
Não sei se subo no ônibus ou se tento socorrer Rafael. Antes de decidir, eu
acordo. Estou ofegante, confusa, com o celular caído na minha cara e uma
enorme vontade de fazer xixi.

Eu e Rafael estamos na pequena sala de reunião do nosso andar. Já passa


das nove da noite e não temos hora para sair. Meu laptop está conectado à TV,
mostrando o que tenho do esqueleto do simulador até agora. Segui as
especificações do roteiro dele e Rafael parece satisfeito. Somos um bom time.
Só queria que fôssemos fora do trabalho também.
— Rafael? Posso falar com você um instante?
Nós levantamos a cabeça na direção da porta, surpresos com a interrupção.
É Vanessa.
— Só um segundo, Alice. — ele diz, se levantando e fechando a porta atrás
deles dois. Fico sozinha olhando meu trabalho na tela e imaginando o que eles
estão falando. Será que ela está com ciúmes? Quer que a gente pare de
trabalhar juntos? Está dando um show lá fora e gritando que ele ainda me ama?
Ele reabre a porta com ela ao seu lado.
— Você está com fome? A Vanessa já vai embora, mas quer pedir algo para
a gente comer antes de ir.
Vaca prestativa.
— Estou com um pouco, sim. — admito. — De onde vocês pensaram em
pedir? — pergunto enquanto bebo um gole de água da minha garrafa.
— No italiano aqui debaixo, você gosta? — responde Vanessa. — Tem um
espaguete à putanesca que o Rafael adora.
Cuspo a água no meu laptop, num misto de engasgo com risada de
desespero. Vanessa entra na mesma hora e dá tapinhas nas minhas costas para
me ajudar a respirar.
— Você está bem? Levanta os braços!
Para de me fazer não conseguir te odiar, vaca solidária!
— Estou bem, obrigada. — digo, finalmente conseguindo respirar de
novo. — Vou querer o penne caprese, pode ser?
— Claro! Vou pedir para vocês e avisar na portaria para deixarem o
entregador subir, assim não precisam parar de trabalhar para receber. Vou
colocar também um tiramisù no pedido para dividirem, um docinho sempre é
bom! Espero que consigam adiantar o projeto.
Ela termina a frase com um sorriso sincero, se despede e sai.
Que ranço!
A comida chegou e, pelas caras e bocas de Rafael, não é que ele gosta
mesmo de uma massa à putanesca? Comemos, ainda falando de trabalho
(afinal, é só do que falamos esses dias), e agora faço anotações no meu tablet
enquanto ele divide os próximos passos que está estruturando com a ajuda das
pesquisas encaminhadas pelos participantes do evento.
Enquanto ele traça o roteiro, debatemos minhas sugestões de layout e digo
como eu quero fazer a animação do simulador. Falar com ele sobre trabalho é
fácil e eu adoro quando temos um brainstorm. Rafael é inteligente, tem ótimas
ideias e uma boa noção de programação para entender as dificuldades que eu
posso enfrentar no lado técnico. Ou seja, seus roteiros trazem uma visão do
todo que realmente facilita o meu trabalho.
A vibração do meu celular, que está entre a gente na mesa, nos tira o foco.
Na tela, o nome “Fernando” surgindo com a foto de Harry me faz perder o ar.
Que porra é essa?
Levanto a cabeça e percebo que Rafael estava olhando para o meu celular
também.
— Eu tenho que atender, já volto.
Saio apertando o celular junto ao peito, sufocando o rosto de Harry
enquanto tento entender que diabos está acontecendo.
— Alô?
— Fala, gata. Beleza?
A voz de mulher, tentando soar masculina, mas parecendo que está com
uma laranja inteira na boca, me faz rir.
— Helô?
— Shhh! — ela diz, pedindo para eu me calar. — É Fernando! Não fala meu
nome aí, sua doida! O Rafael pode escutar.
— Ele está na sala de reunião, eu saí para atender o Fernando. — falo,
enfatizando o nome. — Como você fez isso?
— Ontem, quando você foi ao banheiro, troquei o meu nome pelo dele. Assim
que eu apareci na sua casa, percebi o quanto você estava tristinha que o post não
tinha funcionado. Pensei que isso poderia ajudar.
— Você é um gênio e quem disser o contrário é um idiota.
— Eu sei. — Ela está bem orgulhosa de si mesma, e deveria. — Então,
consegui chamar a atenção do Rafael com essa ligação? Imaginei que vocês estariam
juntos trabalhando naquele projeto de que você me falou.
— Ele olhou para a tela. — abaixo a voz, mesmo sabendo que da sala de
reunião é impossível me ouvir. — Não sei o que significa, mas acho que
precisamos manter isso. Invadir todos os espaços, virtuais e reais.
— Exato! Pode contar comigo. No que depender de mim, Rafael vai ser tão
invadido por Fernando Williams que vai dormir e acordar pensando nele!
— Achava que o propósito disso tudo era ele dormir e acordar pensando
em mim.
— Foi o que eu disse.
— Não, não foi.
— Ah, não enche! Você entendeu.
Quando retorno para sala, Rafael está parado, olhando para a porta. Ele se
remexe, voltando a atenção para o seu tablet.
— Está tudo bem? — fala, sem se virar para mim.
— Sim, era só... — faço uma pausa dramática para deixar claro que vou
mentir a seguir. — um amigo.
— Legal. — responde, ainda de cabeça baixa, e não achando nem um
pouco legal. Tento não sorrir, mas falho miseravelmente. Ainda bem que ele
não está me olhando! — Vamos voltar para o relatório da UCLA?
— Vamos.
Continuamos trabalhando por mais uma hora antes de decidirmos que é
melhor encerrar por hoje e chegarmos cedo amanhã.
— Quer carona? — ele pergunta enquanto guarda suas coisas na mochila.
Desde o dia em que ele arrancou meu coração com a mão, mastigou e
cuspiu no chão do estacionamento do shopping, essa é a primeira vez que ele
me oferece carona. Dessa vez, eu aceito. Estou tão em choque que nem consigo
esperar chegar em casa para contar para Helô e, do elevador, mando uma
mensagem para ela dizendo que vou com ele.
O aperto no meu peito com a visão do carro me pega de surpresa. Na
última vez que vi esse Fiat, Vanessa estava no banco do carona. Ali dentro, ela
tocava e beijava Rafael. Não sei se consigo ficar bem estando sentada no
mesmo lugar que ela.
Seguro o choro e entro no veículo. Rafael dá a partida e saímos do prédio.
— Como você está, Alice?
Seu interesse me faz esquecer, por um instante, onde estou. Ele quer saber
de mim? Essa ligação, realmente, o afetou, só pode ser isso.
— Estou bem. Por que a pergunta?
— Nenhum motivo. A gente se falava todo dia, durante tanto tempo, e já
faz umas semanas que não conversamos. Só queria checar como você tem
passado.
Sério? “Faz umas semanas que não conversamos”? Eu tentei
desesperadamente conversar com ele quase todos os dias e agora ele manda
essa? Engulo o orgulho. Era isso que eu queria, que ele falasse comigo. Não
posso ser exigente agora.
— Eu... — antes que consiga responder, meu telefone toca.
Fernando.
Coloco o sorriso mais alegre do mundo no rosto. Helô, seu gênio!
— Só um segundo. — falo para o Rafael antes de atender. — Oi? — digo
no celular.
— Gata, você já está em casa? — a voz continua forçada, mas Helô fala mais
baixo que o normal, então acho que de onde o Rafael está não deve dar para
perceber.
— Ainda não, mas devo chegar em vinte minutos. Por quê? — falo, dando
corda para a conversa.
— Preciso te ver, estou com tanta saudade de você.
Meu sorriso fica maior e chego a dar uma leve risadinha. Estou rindo de
Helô, contudo imagino que para Rafael, pareça que estou gostando do que um
homem está dizendo para mim. Um homem que não é ele.
— Quer me encontrar lá em uma hora? Preciso só tomar um banho e
posso fazer algo para a gente beliscar.
— Quero beliscar você.
Menos, Helô. Muito menos.
— Então, está bem. Até daqui a pouco.
— Até, gostosa.
Desligo e me viro para Rafael. Seus olhos estão vidrados na rua. Será que
não estava prestando atenção?
— O que estávamos falando mesmo? — pergunto, como se não soubesse.
— Nada de mais.
Ficamos em um silêncio desconfortável até ele me deixar em casa. O fato
de não ter nada para me distrair durante o trajeto me faz pensar novamente em
Vanessa sentada onde estou. Se meu plano der certo e ele me quiser de volta,
será que eu vou conseguir finalmente superar essa memória que está gravada a
ferro quente no meu cérebro? Será que esse carro, no qual minhas esperanças
foram esmagadas não uma, mas duas vezes, vai deixar de ter esse impacto
negativo cada vez que eu o vir?
Rezo para que sim.
Na porta do meu prédio, saio do carro acenando e corro para a portaria. Só
espero que ele acredite que estou correndo para encontrar Fernando e não
suspeite da minha vontade irracional de queimar as minhas roupas só porque
elas encostaram naquele assento.

— Flores para você!


Levanto a cabeça, surpresa com o quase berro que Vanessa deu ao chegar à
minha baia. Nas suas mãos, ela carrega um buquê de flores do campo.
Instintivamente, me viro para Rafael, que está nos observando. Sua fisionomia
está séria e, então, me dou conta de que ele nunca faria a atual namorada
entregar flores para a ex (não que eu tenha tido o status de namorada, não é
mesmo?), seria cruel demais. Rafael pode ser muitas coisas, mas cruel não é
uma delas.
Recebo o buquê e vejo que tem um cartão em cima. Abro imediatamente.
Obrigado por ontem.
Fernando
Controlo ao máximo minhas feições para não me traírem. Vanessa
continua na minha baia, curiosíssima para saber o que está escrito no cartão. Se
fosse de verdade, se Fernando fosse um homem real que tivesse dormido
comigo ontem, eu JAMAIS mostraria esse cartão para alguém. Mas ele é uma
invenção e a ideia toda é causar ciúmes esfregando na cara de Rafael que um
cara lindo e inteligente me quer, por isso eu entrego o cartão para Vanessa ler.
— Ai, meu Deus! Que romântico! Não sabia que você estava namorando!
Faz muito tempo?
A resposta que está na ponta da minha língua é “claro que não pode fazer
muito tempo! Até três semanas atrás eu estava envolvida com o seu namorado!
Você é burra ou sonsa?”.
— Na verdade, estamos saindo há poucas semanas, mas ontem ele disse
que queria estar oficialmente comigo, apenas comigo, e pediu para sermos
exclusivos. Falou que quando o coração tem certeza, o tempo não importa.
Dá para o Rafael nos escutar da baia dele? Por favor, diz que sim!
— Ele está certíssimo! — ela abaixa o tom de voz. — Eu mesma passei por
isso recentemente. Não sei se você já sabe, mas eu e Rafael estamos
namorando. — engulo em seco. Na verdade, engulo molhado mesmo.
Molhado pelo sangue da lateral da minha bochecha que eu nem sabia que
estava mordendo. — Começamos a sair faz pouquíssimo tempo, mas eu não
aguentaria nem um segundo a mais, sem ter a certeza de que estávamos
comprometidos um com o outro. E ele aceitou! Foi tão lindo.
Ele aceitou? Ela que o pediu em namoro então? Parte de mim sente
orgulho dela por fazer o que não consegui. Talvez se, há uns seis meses, eu
tivesse feito a mesma coisa, nós não estaríamos passando por isso hoje. Outra
parte fica feliz por ser recente. Então talvez ele não estivesse saindo e pegando
geral enquanto estávamos juntos. Uma terceira parte quer que ela cale a boca e
pare de falar da sua vida feliz com o meu homem.
Com a visão periférica, tento ver Rafael. Ele não está mais na mesa dele. É,
acho que as flores não serviram de nada.
Passados poucos minutos, “Fernando” me manda uma mensagem.

Fernando:
Recebeu as flores?

Alice:
Recebi, AMOR. Vanessa veio me entregar e eu falei que ontem começamos a namorar.

Fernando:
Depois eu que sou o gênio. Arrasou!

Alice:
Você que arrasou com essa demonstração de carinho em público.

Fernando:
Confesso que acho “flores no escritório” uma coisa bem anos 90, entretanto minha
turma colocou Fernando como um cara das antigas em termos de romance, daqueles
que abre a porta do carro e tals. Mas eu deixei claro que se ele for macho tóxico, todo
mundo vai tirar zero, então pode ficar tranquila que ele só é romântico cafona mesmo.

Alice:
Foi a primeira coisa que eu pensei quando recebi as flores:
será que ele é macho tóxico?

Fernando:
Sério?

Alice:
Não, Helô. Não é sério.
Fernando:
Põe um emoji quando for assim! Não tenho como ler sua ironia. 🙄

Alice:
🖕

Fernando:
Viu como emoji ajuda? Super entendi o que você estava sentindo agora.

Alice:
...

Fernando:
Vamos ao que interessa. Quero ao menos um story dessas flores. E não esquece de
marcar o Fernando!

Alice:
Boa!

Tiro uma foto das flores, coloco um filtro para dar uma melhorada na luz e
uma amenizada nos contornos do buquê, seleciono um GIF de corações rosa
piscando e marco o Fernando. Antes de postar, confiro se o cartão não saiu na
imagem, já que minha mãe me segue e eu não preciso ter ela me ligando para
saber detalhes do que aconteceu ontem, na minha relação amorosa imaginária.
Pronto, agora posso voltar a trabalhar.
Ou não, porque o telefone da minha mesa está tocando.
— O Fernando gosta de carne ou é estranho que nem a Helô?
Respiro fundo.
— Bom dia, mãe. E a Helô não é estranha, ela é vegana.
— Mesma coisa.
— Por que você quer saber?
— Porque vou fazer uma lasanha para a gente no domingo e preciso decidir se
vai ser bolonhesa ou quatro queijos.
Não tenho forças para explicar que, se ele fosse vegano, quatro queijos
também não serviria.
— Como assim “fazer uma lasanha para a gente”?
— Vocês vêm aqui para eu conhecer esse rapaz. Flores são sinal de avanço na
relação. Já está na hora.
— Flores são uma gentileza, não são nada de mais.
— Vi num filme que elas significam sexo. E eu não te criei para sair por aí
abrindo as pernas sem ter um mínimo de compromisso, então está na hora. Se ele se
deita na sua cama, ele se senta à minha mesa. Essa sempre foi a regra.
— Meu Deus, mãe! Não vou falar de sexo com você! E você inventou essa
regra hoje!
— Não vai falar por quê? Sexo é normal, Alice! Você acha que veio de onde?
— Para de me fazer imaginar você fazendo sexo com o meu pai.
— Tenho culpa se a sua imaginação é fértil? Assim como o seu pai, por sinal.
Um dia esquecendo a camisinha e pronto! Vinte e nove anos de você.
Eu sempre detestei ser lembrada de que não fui planejada. De acordo com
meu pai, sou uma surpresa feliz. Segundo a minha mãe, sou o test drive que a
fez ter certeza de que não tinha como ter mais de um filho.
— Não podemos no domingo. Eu estou com um projeto grande aqui no
trabalho e vou ter que virar o fim de semana na empresa.
— Ele não é médico? Deve ganhar bem. Para que você precisa continuar
trabalhando?
— Mãe! — exclamo, horrorizada. — Eu não vou pedir demissão para ficar
dependendo de homem!
— Se o seu trabalho te impede de ter uma relação com o homem perfeito, será
que vale a pena todo esse empoderamento que você fica esbanjando?
Pelo menos ela acha que ele é perfeito, o que me faz pensar que o plano
está dando certo. Contudo, seria tão melhor se fosse o Rafael, e não a minha
mãe, a pessoa a ficar louca e incoerente falando comigo a respeito de Fernando.
— Eu tenho que continuar aqui o trabalho, mãe. Manda um beijo para o
pai.
— Você tem tempo de fazer story no Instagram, mas não tem para mim.
— O story durou cinco segundos, ao contrário dessa ligação. Beijos, mãe.
— Me desculpe por me importar com a minha filha e querer o bem dela.
— Está desculpada. Beijos!
Desligo o telefone, respiro fundo novamente e volto ao trabalho.
A brisa suave da praia de Copacabana me traz um sopro de algo novo.
Observo as ondas do mar enquanto afundo os pés descalços na areia fina e
molhada. Deveria ser o começo do inverno no Brasil, e algumas pessoas até
passam encasacadas pelo calçadão, mas, na areia, famílias e grupos de amigos
abusam das roupas minúsculas, mesmo ficando com a pele arrepiada de frio.
Estou vestindo um jeans cinza, com a bainha dobrada até a metade da
canela, e uma camisa de manga curta preta. A temperatura está boa, mas esse é
um dos privilégios de ser inglês — esse tempo é praticamente alto verão para
mim.
Sigo andando pelas areias de Copacabana. O sol vai começar a se pôr em
breve e meu estômago está fazendo barulhos característicos de fome, mas não
quero voltar para o hotel. Quando retornar, terei que ajustar alguns pontos da
apresentação e trabalhar na pesquisa que preciso entregar para a Dra. Harrison.
Essa vista me faz pensar que tudo isso pode esperar. Na verdade, me faz pensar
que qualquer coisa pode esperar. Essa areia, esse mar, esse sol. Tudo estava aqui
antes de mim. Antes de Melanie. E tudo vai seguir aqui depois que a gente se
for.
Pelo menos por alguns anos — ser filosófico sabendo que o ser humano
está destruindo o planeta é bem difícil.
Eu não importo, Melanie não importa, muito menos meu relatório e o fato
de eu estar aqui, hoje. Nada disso importa. O planeta não está nem aí para a
gente. Isso deveria fazer eu me sentir pequeno, mas a realidade é que faz eu me
sentir gigante. Estou aqui, agora, presenciando isso. Podia ser qualquer pessoa,
entretanto sou eu. Que bom que sou eu!
Paro em um quiosque e peço uma IPA imperial. O sabor amargo se
contrapõe à doce vista. O tempo parece que não se movimenta, mas o sol
descendo no horizonte é a prova de que isso não é verdade. Tudo anda, tudo se
movimenta, tudo passa. E essa dor no meu peito também vai.

Quando saio do chuveiro no dia seguinte de manhã, vejo que perdi uma
videochamada de Liam. Ainda com a toalha na cintura e com gotas pingando
pelas minhas costas e pelo meu peito, apoio o celular na parede onde fica o
espelho do banheiro e retorno a ligação enquanto me preparo para fazer a
barba.
— Oi, Harr... Que merda, cara!
Olho para o visor e vejo que Danny está do lado dele. Liam cobre os olhos
da namorada, que está com um sorriso na boca. Se está rindo da reação de
Liam ao me ver ou se está feliz com o que viu, não tenho como saber. Já eu,
com certeza, estou rindo da reação do meu amigo.
— Queríamos te dar um oi e desejar boa sorte na pegação, mas, se você vai
ficar andando pelado por aí, acho que não preciso te desejar sorte alguma.
Liam está andando pela sua casa sozinho agora. Pela mudança de cenário
ao fundo, está no seu quarto nesse momento.
— Você me liga quando eu estou no banho, eu faço a gentileza de te
retornar assim que saio do chuveiro, sendo que continuo ocupado fazendo a
barba, e você reclama? Que ingrato!
— Em primeiro lugar, eu não tinha como saber que você estava no banho. Em
segundo lugar, eu já não te falei para fazer a barba durante o banho e não depois?
Os poros ficam mais abertos pela da água quente. Aí você pode ficar com essa pele
lisa de bebê que nem a minha.
Se eu tiver mais uma conversa sobre os meus poros com o Liam, acho que
me mato.
— Prefiro que as mulheres não pensem em bebês quando estão passando a
mão no meu rosto.
— E a pergunta que não quer calar é: que mulheres, Harry?
— Vamos trocar o assunto, por favor. — digo, ligando o barbeador e
ignorando seu jab. — Você me ligou só para desejar sorte mesmo?
— Para isso e estávamos com saudade.
— Não faz nem dois dias que a gente se viu. Você, inclusive, me levou até
o aeroporto.
— Eu sei. — O rosto de Liam faz aquela expressão, sobrancelhas retas e
queixo mais travado. Ele vai falar algo sério. — Mas demorei dois meses para ter
o meu irmão de volta e agora você nem está aqui.
Odeio como ele consegue colocar em palavras as coisas que eu sinto, mas
não quero dizer.
— Em duas semanas, eu estarei de volta, pronto para levar a Olivia para
casa.
Ele dá uma gargalhada, mudando a fisionomia em um estalar de dedos.
— Eu duvido muito. Afinal, imagino que você vá andar vestido por aí e não
de toalha.
— Você se esqueceu das praias? Eu poderia até usar uma sunga.
Liam arregala os olhos.
— Porra, eu me esqueci das praias. E desde quando você tem sunga?
— Não tenho. Mas posso comprar uma aqui.
— Por favor, não. Usa bermuda como qualquer cara do hemisfério norte.
Nunca te pedi nada, Harry.
— Você me pede coisas o tempo todo.
— Sim, mas isso não vem ao caso.
Depois que nos despedimos, começo a me arrumar para sair. Vou ao centro
de convenções, onde será feita a conferência, para alinhar alguns pontos com os
organizadores e para ver um simulador que está sendo finalizado e ficará
exposto durante todo o evento.
Preferia ir para a praia, mas as ondas terão que esperar.

O vídeo está rodando há cerca de dois minutos. Tenho algumas poucas


observações, mas no geral está ótimo. As imagens são extremamente realistas, o
que me causa um desespero. Esse mundo destruído, com animais mortos,
oceanos transbordando e flora devastada é um futuro certo se não agirmos. Por
que as pessoas não querem ver?
As luzes se acendem e uma mulher sobe na plataforma central para falar ao
microfone. Ela aparenta ter uns quarenta anos, talvez um pouco mais, e está
usando um terninho cinza chumbo com calças compridas. Como são só os
palestrantes aqui presentes e hoje não temos serviço de tradução, ela fala em
inglês com a gente. Não que eu precisasse. Testei meu português no hotel e no
quiosque ontem e, como eu esperava, deu tudo certo. Fui criado em um lar
bilíngue e, por mais que meu único contato recorrente com o idioma tenha
sido através da minha mãe, ela fez um bom trabalho; até Liam sabe falar
português graças a ela.
— Obrigada por terem vindo. Meu nome é Raquel Fernandes e eu sou a
diretora de projetos especiais da GameStart, a empresa responsável pelo vídeo
que acabou de passar. Imagino que vocês tenham considerações a fazer, mas
para não prender ninguém aqui nesse lindo dia de sol, vou deixar o meu e-mail
e o da dupla responsável pelo vídeo para que vocês possam enviar suas
observações. Podem ir para a praia!
Os participantes riem enquanto se levantam para degustar o resto do coffee
break, trocar cartões e se despedir antes de fazer exatamente isso que a tal
Raquel falou — ir para a praia. Termino de anotar os e-mails para mandar
minhas observações e me levanto na direção da garrafa térmica com café no
fundo da sala.
Estou tomando o café quando percebo que a porta da cabine de projeção
está entreaberta. De onde estou, consigo ver uma figura se movimentar. A
cabine está mais escura que o resto do salão, mas forço minha vista e consigo
vê-la melhor.
É uma mulher. Ela está com o cabelo preso em um daqueles coques
impossíveis. Percebo o contorno de um par de óculos com armação escura,
talvez preta. Ela usa uma camiseta que parece branca e uma saia mais escura e
folgada no corpo. Nos pés, um simples par de tênis. Me pego observando-a se
mexer na escuridão da cabine. Ela anda de um computador para outro, e a
fraca luz dos monitores me faz discernir melhor seu rosto.
Olho para os lados, em um reflexo. Me sinto como se estivesse espionando.
E estou mesmo, mas algo nessa mulher me faz esquecer o café nas minhas
mãos e me comportar feito um idiota.
Um homem esbarra em mim de leve e, como estou distraído, acabo
entornando um pouco do café. Ele continua andando sem olhar para trás e
nem ao menos pede desculpas. Acho que não viu o que fez. Percebo que está
focado na cabine também, focado nela.
Ele entra na cabine e fala com a mulher. Ela ri alto, por isso consigo ouvir
de onde estou. O som parece forçado e me pego imaginando se conseguiria
fazer com que ela risse de verdade. Como seria essa risada? O movimento dos
seus lábios? Seus olhos brilhariam junto? Como seria olhar no fundo desses
olhos?
Que pensamento estranho. Por que estou perdendo meu tempo vidrado
nesses dois e imaginando detalhes dessa mulher? Melanie me deixou tão
maluco que agora não consigo nem ver duas pessoas juntas sem delirar?
Melhor parar de olhá-los e voltar a tomar meu café em paz.
Tento focar a atenção no copinho em minhas mãos, mas minha visão
periférica me trai. Ao perceber um movimento perto da porta da cabine, já
estou olhando de novo a desconhecida.
Ela recolhe uma mochila e coloca uma das alças no ombro. Começa a
andar para sair da cabine. O mal-educado que me fez derramar o café vem
atrás, sua mão está apoiada nas costas da mulher e ela não o afasta. Não sei por
que percebo isso, mas me incomoda.
Agora, na luz do salão, vejo melhor os seus traços. Sua pele morena, seu
nariz largo que faz uma bolinha arrebitada na ponta, seus lábios bem
demarcados. O volume dos seus seios quase fica escondido pela camisa, mas me
parecem ser do tamanho ideal. Seus quadris largos possuem um leve balançar
que faz a saia se mover no mesmo ritmo.
Me dou conta de que estão vindo na minha direção e instintivamente me
viro, usando um grupo de participantes do evento como escudo para que não
me vejam. Por que eu me escondo, você pergunta? Queria ter uma resposta
para lhe dar.
Eles passam pela mesa de coffee break e vão embora.
Balanço a cabeça tentando recuperar um pouco da sanidade.
Não basta eu ter me afogado em uísque e autopiedade nos últimos meses,
agora vou virar o cara esquisito que fica encarando mulheres lindas por aí.
E, Deus, como ela é linda!
Mesmo com a visão dessa mulher parecendo acordar algo em mim, sei que
sou um homem destruído. Não estou aqui para encontrar alguém que vai me
ajudar a superar o passado. Por mais que Liam pense que posso sair por aí
transando para esquecer, não funciono dessa forma. Pelo menos não agora.
Mas foi bom poder lembrar por alguns instantes de um Harry menos triste.
Um Harry que conseguia apreciar beleza e se perder em pensamentos não tão
puros assim.
Obrigado por isso, senhorita Estranha da Cabine.
Até nunca mais.
C her e a sua versão da música “Fernando”, do Abba, me fazem companhia no
ônibus, e não consigo parar de sorrir. Minha diva máxima sempre me alegra,
mas hoje, particularmente, estou nas nuvens.
Desde que o volume de posts aumentou e Helô passou a me ligar como se
fosse o Fernando, Rafael tem falado mais comigo. Ele me manda, ao longo do
dia, algumas mensagens com piadinhas bobas sobre coisas como odiar as
segundas-feiras, curte meus posts (curiosamente, nenhum em que eu tenha
marcado Fernando) e, no almoço de despedida do Aroldo da Contabilidade,
até se sentou ao meu lado. Tudo bem que a Vanessa estava do outro lado e ele
mal trocou duas palavras comigo, mas contei como uma vitória.
E ontem... Ah, ontem!
Nós tivemos a primeira demonstração do simulador no centro de
convenções. Rafael e eu ficamos juntos, em uma cabine escura, durante toda a
exibição para controlar o vídeo e resolver qualquer problema que pudesse
surgir. Ele foi tão gentil comigo. Fez questão de deixar a porta entreaberta para
que eu não tivesse uma crise por estar trancada em um ambiente escuro, ficou
se oferecendo para buscar água para mim o tempo todo e no fim até me tocou.
Não de um jeito sexual, foi apenas um leve toque nas costas enquanto
caminhávamos, mas mal consegui me concentrar em colocar um pé diante do
outro.
Chego ao trabalho e vou direto para a sala de reunião para falarmos sobre
as alterações que precisam ser feitas no simulador. Apenas Raquel está presente,
já projetando os e-mails que recebemos dos palestrantes no monitor. Me sento
e preparo meu tablet para possíveis anotações.
O relógio na parede diz que são oito e quarenta, e a reunião começava às
oito e meia. Onde está Rafael?
Meu pensamento parece tê-lo atraído, porque, no mesmo instante, ele abre
a porta. Seus olhos estão marcados por olheiras, seu cabelo está uma bagunça e
a camisa social que usa foi abotoada pulando um dos botões.
— Desculpem o atraso.
— Sem problemas — responde Raquel. Ela está tão concentrada nos e-
mails que não repara nele. Mas eu sempre reparo. — Vamos começar?
Enquanto Raquel foca na tela, eu me viro para Rafael e articulo as palavras
“você está bem?”, sem emitir som. Ele entende o que digo e meneia a cabeça
assentindo. Aponto para a sua camisa, fazendo com perceba o botão pulado.
Rafael se arruma movimentando os lábios em um silencioso “obrigado” e se
volta para a TV.
As próximas três horas são dedicadas às observações dos palestrantes. Não
são muitas, contudo abordamos cada uma com cuidado e estruturamos a
melhor forma de trabalhar as alterações necessárias.
— Falta só mais uma observação do Harry. — diz Raquel, fazendo
referência ao e-mail aberto na tela.
O palestrante é da Queen Mary, de Londres, e, assim que ela fala seu
nome, não posso deixar de pensar no meu Harry.
Meu Harry. Isso soa bem.
Eu entro todos os dias no seu Instagram. Ouço todo dia a sua música de
amor. Se eu o conhecesse, me chamariam de stalker. Mas não conheço, então
acho que podemos classificar apenas como curiosidade.
Estou curiosa para ouvir sua voz quando não está cantando. Saber como
seu corpo se encaixaria no meu abraço. Sentir o seu cheiro e o sabor da sua
boca...
É, talvez eu deva ser classificada como stalker mesmo.
Contudo, desde aquele sonho, eu não consigo pensar em outra coisa. E esse
outro Harry, da universidade de Londres, não está tornando nada fácil a minha
concentração nessa reunião.
— ...e te entregamos, até hoje fim do dia, o outline das alterações.
Concordo com Rafael, mesmo sem ter ideia de quando paramos de falar
sobre o e-mail do tal Harry.
— Ótimo. — responde Raquel enquanto fecha seu laptop. — Aguardo
vocês então. — Ela se levanta e sai da sala.
Rafael se volta para a parede com o monitor, que agora está desligado. Está
perdido em seus pensamentos, entretanto preciso trazê-lo de volta à realidade
para podermos tocar esse projeto.
E eu estou louca para saber o que diabos está acontecendo com ele.
— Fala logo.
Ele sacode a cabeça, virando para mim e saindo de seu transe.
— Falar o quê?
— Obviamente, você não está nada bem, Rafael. Você dormiu na noite
passada?
Rafael dá um sorriso estranhamente triste.
— É impressionante como você sempre soube me ler bem.
— Seu cabelo está um caos e suas olheiras estão quase cavando um buraco
na sua cabeça. Não é muito difícil de ler isso.
— Imagino que não.
Chuto de leve a canela dele por debaixo da mesa.
— Vai, me conta. Ainda somos amigos, não?
Falo as palavras sentindo um gosto amargo ao dizer “amigos”. Mas a
verdade é que, se eu não tiver Rafael como meu namorado, seria bom ao
menos tê-lo por perto de alguma forma. O motivo de eu ter começado a me
interessar por ele é porque era uma pessoa com quem eu dividia muitas coisas:
meu amor por tudo nerd, banhos de sol durante a semana antes do trabalho,
burritos de carne com batata dentro (não fale mal até provar). Quando isso se
transformou em mais do que apenas amizade? Eu não sei dizer. Entretanto,
havia algo ali antes. Talvez pelo menos isso eu consiga trazer de volta.
— Eu terminei com a Vanessa ontem.
Não me movimento. Não respiro. Não sei o que fazer com essa informação.
De algum modo, com alguma força que não tenho ideia de onde vem, consigo
formular apenas duas palavras:
— Por quê?
— Cheguei à conclusão, na terapia, de que não era ela quem eu queria.
Terapia de novo? Será que esse terapeuta quer o Rafael para ele? Já é o
segundo relacionamento que ele estraga!
Espera. O que ele disse?
Que ele terminou, Alice! Foca nisso!
Terminou porque não era ela quem ele queria. Ele está interessado em
outra mulher? Será que ele vai namorar o Rio de Janeiro inteiro antes de querer
voltar para mim?
— Que bom que você finalmente sabe o que quer.
Me levanto e começo a arrumar as minhas coisas. Queria dar uma chance
para a nossa amizade, mas não tenho estrutura para conversar sobre outra
mulher com ele. Preciso pensar na minha sanidade antes de me preocupar com
a dele. Colocar a máscara de oxigênio em mim antes de ajudar a pessoa ao
lado, sabe?
Quando vou pegar a mochila para sair da sala, Rafael segura o meu pulso.
Nossos olhares travam uma conversa que me diz tudo que eu preciso saber.
Sou eu.
Eu sou a mulher que ele quer.

O restaurante mexicano do shopping está lotado. Por ser localizado em um


bairro que possui a sede de muitas empresas, a hora do almoço é sempre uma
disputa louca por mesas. Rafael e eu saímos cedo para almoçar, então
conseguimos nos sentar com facilidade, mas agora a fila na porta já está quase
chegando até a escada rolante do outro lado do andar.
Depois que entendi o que ele estava querendo me dizer na sala de reunião,
Rafael me convidou para almoçar. Não falou mais nada, nem confirmando,
nem discordando do que eu havia compreendido, só pediu para almoçarmos.
Não tínhamos foco para voltar ao trabalho, por isso saímos no mesmo instante.
Agora estamos aqui, sentados e nos observando sem falar. Pedimos os
burritos com frijoles e dois refrigerantes para o garçom, contudo, desde então, o
único barulho é o dos talheres e das conversas nas mesas ao lado. Depois de
tudo que fiz com a ajuda de Helô, imaginei que esse momento seria mais fácil e
que a gente voltaria imediatamente a ser como antes. Está tudo tão estranho.
Ele está estranho. Ou seria eu?
— Me desculpa.
Não esperava que essa fosse a primeira coisa que ele falaria.
— Pelo quê?
— Ah, Alice! Por onde eu começo? Por ter te enrolado por seis meses; por
terminar tudo no estacionamento do shopping, no meio do dia de trabalho;
por começar um relacionamento com outra pessoa que trabalha com a gente
sem me preocupar com como você se sentiria vendo isso; por não oferecer mais
carona; por não retornar as suas mensagens depois, quando você claramente só
queria me mostrar o idiota que eu estava sendo. Eu não fui a melhor pessoa
que poderia ser. Não fui o homem que eu achava que eu era. Me perdoa, por
favor.
O discurso de Rafael chega como um soco no estômago e faz minha
expiração sair pesada. Ele sabe o que fez. Ele me viu nesse processo todo e
entendeu o que eu estava sentindo. Me sinto aliviada.
Não, essa não é a palavra. Me sinto... Legitimada.
— Não espero que você me aceite de volta agora. Mas se você conseguir
encontrar uma forma de me perdoar... Seria tão bom conseguir apagar nosso
último almoço aqui, aquele que terminou comigo cometendo o maior erro da
minha vida, e substituir por esse. — Rafael estica o braço sobre a mesa e toca
meus dedos. — Um almoço com ar de esperança. De uma nova chance. O que
você me diz?
— Eu... — Os dedos de Rafael passam a acariciar a parte de trás da minha
mão, tornando o nosso contato mais íntimo. O alívio que eu senti com o
discurso dele é substituído por alguma outra coisa que eu não consigo nomear.
Lutei tanto por isso nessas últimas semanas, fiz coisas que alguns considerariam
beirar a loucura, e agora, com tudo que eu mais queria acontecendo, estou
travada. — Eu... — gaguejo. Por que não consigo falar? Diz que aceita. Diz
que quer ele de volta, Alice! Fala, mulher! — Eu... — Não consigo, algo me
impede. Não sei o que é. Preciso de ajuda.
Como se estivesse lendo a minha mente, Helô me liga.
Na tela, o rosto de Fernando faz Rafael soltar minha mão. Seguro o
aparelho e me levanto.
— Preciso atender.
Só percebo que saí do restaurante e estou na praça de alimentação quando
atendo o telefone.
— Ele me quer.
— Claro que quer, você é um partidão. Até eu te quero! E olha que eu não
quero mulheres. Bom, pelo mesmo não desde que eu e a Débora tentamos explorar a
teoria de Freud sobre bissexualidade na faculdade. — responde Helô, sem
pestanejar.
Ela age como se estivéssemos no meio da conversa e já tivesse total
conhecimento sobre o que está acontecendo, mas não tem, então eu preciso
dar um passo atrás e explicar a situação.
Conto sobre a reunião na GameStart, o convite para almoço e o discurso
dele validando todos os meus sentimentos.
— Sempre gostei do Rafael.
— Quando ele me largou, você disse que era um traste que não tem bom
gosto e curte necrofilia.
— É, isso parece ser algo que eu diria. — Helô dá uma pausa, antes de
continuar. — Espera um pouco. O almoço está acontecendo agora, não? Posso saber
por que você está gastando saliva comigo e não na boca do Rafael?
— Eu... Eu... — não continuo.
Começo a roer a unha do dedão sem saber o que eu quero dizer. Era só o
que eu precisava! Ficar nisso — que só pode ser considerado um gaguejo
narcisista, já que a única palavra que digo é “eu” — com a Helô também!
— Eu sabia! Ah, adoro como eu sou boa terapeuta.
— Do que você está falando?
— Você não quer o Rafael! Só queria um encerramento decente.
— Oi?
— Você queria um final coerente, no qual ele validasse seus sentimentos. Um
desfecho que te desse a sensação de que essa página podia ser virada. O término veio
do nada, te pegou de surpresa, você não estava pronta. Agora está.
— Você está querendo dizer que tudo que eu fiz foi só para me preparar
para aceitar que acabou?
— Exatamente!
— E você já sabia disso?
— Eu suspeitava.
— E não pensou em me avisar?
— Ao contrário do terapeuta louco do Rafael, eu não ando por aí falando para
as pessoas o que elas querem e o que têm que fazer. Eu espero que cheguem às
conclusões por elas mesmas. E você chegou! Seja bem-vinda! Parabéns!
— Helô, o Rafael está colocando o coração na mesa. Terminou com a
Vanessa ontem, por minha causa. Está com uma cara destruída. Desculpa se
não consigo me sentir feliz no momento.
— Ai, quem se importa com esse homem?
— Eu, Helô!
— Você é uma pessoa melhor do que eu.
Não digo que concordo, mas sim, eu sou.
— Como posso falar para ele que acabou?
— Você sempre pode ficar com ele e ser muito escrota até ele não aguentar mais
e terminar por você.
— Não, não posso! Quem faria isso?
— Eu! Fiz com a Débora. Acho que estraguei Freud para ela.
— Eu não sei nem como começar a te responder.
— Olha, você sabe o que fazer.
— Sei?
— Seja você mesma. Mostre que se importa com os sentimentos dele, mas deixe
claro quais são os seus. Dê o seu ombro para ele chorar e não dê mais nada, se é que
você me entende. — Reviro os olhos, mesmo sabendo que ela não consegue ver
minha reação. — Esteja lá para ele, mas também pense em você. E de noite, me
liga quando chegar em casa que eu vou te encontrar e fazer umas caipirinhas para
a gente.
Helô está certa. Tenho que contar a verdade. Assim, não TODA a verdade.
A parte da loucura do perfil fake eu vou levar para o túmulo, mas ele precisa
saber como eu estou me sentindo. Levanto a cabeça e olho para cima para
tentar ganhar coragem. Quase fico cega quando me deparo com a luz
fosforescente do teto da praça de alimentação. Abaixo a cabeça e entro no
restaurante.
Rafael continua na mesma posição em que eu o deixei. Quando me sento,
ele se movimenta levemente na cadeira e me encara.
— É tarde demais, não é?
Com a barulheira ao nosso redor, quase não escuto suas palavras. Ele parece
tão derrotado. Como dizer a verdade e fazer com que fique bem? Porque é isso
que eu quero — que ele fique bem. Não merece sofrer por mim tanto quanto
eu não merecia sofrer por ele.
Antes que eu possa responder, ele continua.
— Espero que ele seja bom para você. Muito melhor do que eu fui.
Rafael realmente acredita que eu estou com outra pessoa. Talvez seja
melhor assim. Se ele achar que eu já estou em outra, deve ser mais fácil aceitar
o fim do que simplesmente o fato de eu não querer mais. Mas não quero
mentir.
— Você foi ótimo, Rafael. Tivemos bons momentos e eu realmente gostei
de estar com você. O fim não foi lá essas coisas, — digo essa parte com um
sorriso para tentar deixar o clima mais leve. — mas acho que foi o melhor para
nós dois. E isso que estamos fazendo aqui, conversando sobre o que aconteceu,
isso vai nos ajudar a atravessar a dor.
Rafael balança a cabeça, assentindo.
— Você sente falta?
— Todos os dias. — falo com sinceridade. — Mas, neste momento, eu
vejo que não era para ser. No fim das contas, o seu terapeuta estava certo, nós
não estávamos prontos.
— Você estava.
— Não, não estava. Te ver com a Vanessa, apesar de difícil no começo, me
fez enxergar isso. Uns meses atrás, ser sua namorada era o que eu mais queria.
Mas a gente estava empacado. Não seria bom para nenhum de nós continuar
naquela relação.
— Eu errei com ela também. Queria esquecer você e mergulhei em mais
uma relação para qual não estava pronto. Ela entendeu e aceitou minhas
desculpas ontem, mas eu ainda me sinto um crápula.
— Crápula? Meio forte, não?
— É como eu me sinto.
— Perdido, confuso, inseguro, teimoso e influenciável? Sim. Crápula? Não.
— Nossa, — ele responde, rindo pela primeira vez desde que nos vimos
hoje. — os adjetivos rolaram com uma fluidez invejável. Pensou muito neles?
— É… — confesso, rindo também. — Talvez estivessem na ponta da
língua.
O resto do almoço é uma viagem no tempo. Parece que os últimos meses,
desde que começamos a sair, simplesmente não aconteceram. É como quando
nos conhecemos; brincamos, debatemos e comemos nossos burritos em um
clima leve e de paz. Eu perdi tanto tempo sentindo falta do Rafael Mais Ou
Menos Namorado que tinha esquecido de como era bom ter o Rafael Amigo.
Pagamos a conta e vamos para a cafeteria no térreo, a mesma em que venho
sempre com a Helô. Pedimos nossas bebidas para a viagem: ele, um cappuccino;
eu, um latte com um pouco de canela por cima. Quando estamos nos
encaminhando para a saída, percebo que o meu copo está sem a luvinha de
papelão para evitar que eu me queime. Estou tolerando bem o calor agora, mas
em breve, não vou conseguir mais. Peço para Rafael me esperar do lado de fora
e volto na direção do balcão.
Meus pés travam no chão. Um tremor percorre todo o meu corpo. Não
sinto mais o calor do copo nas minhas mãos. Mal sinto as minhas mãos. Não
sinto mais nada. E, ao mesmo tempo, sinto tudo.
Sinto medo.
Sinto alegria.
Sinto enjoo.
Sinto euforia.
Porque ali, no balcão no qual eu estava há menos de trinta segundos, um
rosto familiar entrega seu cartão de crédito para o atendente no caixa.
Fernando Williams está comprando um café.
E eu não sei o que fazer.
N ão. Espera. Não pode ser. Fernando Williams não existe. Então, só pode ser
uma pessoa: Harry Stewart.
Isso é algum tipo de pegadinha? Será que Helô está por trás disso?
Harry é inglês. Pelo seu Instagram, eu tenho certeza de que mora na
Inglaterra. Não mora? Puxo correndo o celular do bolso da minha calça e entro
no perfil dele. Faz cinco meses que publicou seu último post, mas hoje, pela
primeira vez desde que eu comecei a stalkear o seu perfil, tem um story.
Eu clico e quase caio para trás. É uma imagem do mar e um quadrado
transparente com a localização: Praia de Copacabana.
Meus olhos não estão me pregando uma peça. É ele. Harry Stewart está
aqui, no Brasil. No Rio. No shopping. Na minha frente.
Isso é loucura, mas não posso perder essa oportunidade. Preciso falar com
ele. Ouvir a voz com a qual eu tenho sonhado quase todas as noites. Chegar
perto o suficiente para sentir seu cheiro.
Uma mão no meu ombro me faz voltar à realidade. É Rafael.
Não sou de xingar muito, mas PUTA QUE PARIU!
Rafael conhece Harry como Fernando! Eles não podem se encontrar. Mas
eu tenho que conhecer esse homem, preciso falar com ele. E nem sei se fala
português! Como explicaria para o Rafael um gringo que em teoria se chama
Fernando e que não vai me reconhecer, mas com quem eu deveria estar
namorando? Ele vai me achar louca. Vai arrumar uma cena e afugentar Harry
antes mesmo de eu dizer oi.
Tenho que pensar rápido. Preciso de dois planos de ação: um para tirar o
Rafael daqui e outro para me aproximar do Harry antes que ele saia dessa
cafeteria.
— Pegou a luva? — pergunta Rafael.
— Ainda não. — É agora ou nunca. — Rafael, preciso te pedir um favor.
— O que você quiser.
— Preciso que você vá embora.
— Ahn… O quê?
Será que eu pareço tão confusa quanto ele? Porque é exatamente assim que
me sinto.
— O Fernando está aqui.
Lá se foi o meu plano de não mentir para o Rafael. Contudo, momentos de
desespero pedem atitudes desesperadas. E se tem uma palavra que me define
nesse momento é “desesperada”.
Rafael olha para a fila e consigo ver no seu rosto o momento em que
reconhece “Fernando”.
— Você acha que eu não vou saber me comportar se você nos apresentar?
— Claro que não! É só que… O Fernando sabe da nossa história. Eu não
estava bem quando começamos a sair e acho que ele tem um pouco de ciúmes
de você. Outro dia eu apresento vocês um ao outro, mas acho que, se ele nos
vir aqui, pode ter a impressão errada. Me ajuda, por favor?
A boca de Rafael se fecha, travada de tal forma que deixa pequenas rugas
no entorno. Ele não está nem um pouco feliz.
— Claro, Alice. Eu… Eu entendo. Outro dia a gente se conhece, então.
Você quer isso? Que eu continue na sua vida?
— Sim, Rafael. Eu quero muito. Só preciso deixar vocês separados hoje
para evitar uma situação desconfortável. Mas eu quero você na minha vida. —
Sinto a necessidade de acrescentar uma informação para deixar claro em que pé
estamos.— Como amigo.
Ele assente. Abaixa um pouco a cabeça para me dar um beijo na bochecha e
sai.
Me viro para o balcão. Tenho pouco tempo; o barista parece já estar
fazendo a bebida de Harry. Me dou um segundo para absorver esse homem por
inteiro. Helô estava certa, os ombros realmente são ótimos. Ele usa uma camisa
de manga curta branca e um jeans desbotado. Quando se movimenta, a camisa
abraça alguns pontos do seu abdômen e me faz imaginar que tipo de corpo ela
estará escondendo. Pela forma como a manga contorna o bíceps bem definido
e grande, ele é todo malhado. Nas fotos do seu perfil, não consegui ver isso
direito, entretanto na luz da cafeteria fica claro.
Deixo meu olhar descer e observo como o jeans está caindo nos seus
quadris. Não imaginaria que um inglês pudesse ter esses glúteos, mas ele
preenche bem a calça.
Forço, para fora da minha cabeça, os devaneios sobre apertar aquela bunda
e dou um passo.
Hora de tentar a sorte.
E u a ouço antes de vê-la.
No fundo da sua garganta, as notas de uma melodia familiar são projetadas
quase como um sussurro.
Eu conheço essa música.
Eu canto essa música.
Eu fiz essa música.
Viro o rosto e a vejo apoiando os cotovelos no balcão da cafeteria. Ela
segura um copo grande de café com ambas as mãos e parece perdida em
pensamento. Como se minha surpresa por ouvir as notas que cantarolava não
fosse o suficiente, quando descubro que é a mesma mulher da convenção, não
consigo acreditar.
O barista traz o meu latte e pergunta para ela se deseja alguma coisa.
— Eu me esqueci de pegar a luvinha.
Sua voz sai contida ao me notar pela primeira vez.
Acho que eu a estava encarando, mas ela não me recrimina. Apenas
mantém o olhar fixo em mim, e eu não desvio.
Ela recebe do barista a luva de papelão e, sem quebrar o contato visual
comigo, coloca no seu copo.
Essa cena já está ficando estranha demais. Eu preciso falar alguma coisa.
— Oi.
Esse sou eu encarnando Shakespeare.
— Oi. — minha Julieta responde.
— Me desculpe, mas de onde você conhece essa música?
— Música?
— Sim, você estava cantarolando uma música agora há pouco.
— Estava? Não percebi.
Dane-se a música. Já consegui a atenção dela, isso que importa.
Desde que a vi pela primeira vez, no salão da convenção, não consegui
parar de pensar nela. Ela foi a primeira a fazer eu me sentir como homem de
novo, após meses sem ter vontade de estar com uma mulher. E agora eu a
encontro aqui, cantarolando a minha música.
O que quer que seja que essa mulher está fazendo comigo, decido dar uma
chance ao acaso. Tenho que conhecê-la.
— Seu sotaque. Você não é daqui, é?
— Não, — respondo. — sou inglês.
— Eu amo a Inglaterra! Nunca fui, mas sonho em ir. Na verdade, nunca
fui para a Europa, só para dois países aqui da América Latina mesmo.
— América Latina é legal. O café é bom.
O café é bom? Que porra de frase é essa!? O meu latte deve estar batizado,
só pode.
— É excelente mesmo. — Ela aponta para o copo que eu estou segurando.
— Você pediu o quê?
— Um latte.
— Colocou canela?
— Canela? Não, por quê?
— Porque fica ótimo com canela! Espera aí.
Ela estica a mão por cima do balcão e pega um frasco de vidro
transparente.
— Você pode pegar coisas que estão do outro lado do balcão?
— Se ninguém me parar, claro. — Ela levanta uma sobrancelha e sorri. —
Estou brincando. O barista me conhece; ele sempre me deixa fazer isso. Não é,
Gustavo? — ela pergunta, voltando-se para o rapaz que fez a minha bebida.
— Se você continuar deixando dinheiro no pote das gorjetas, eu te deixo
até entrar aqui e preparar o seu próprio café.
— Se eu preparar o meu próprio café, vou dar a gorjeta para mim mesma.
— Ela volta a atenção para mim e aponta novamente para o meu copo. —
Posso?
Entrego meu copo e ela abre a tampa antes de sacudir a canela em cima.
— Prova.
Obedeço sem pestanejar.
A canela dá uma nova vida a uma bebida tão comum para mim. O sabor
do leite e do café fica realçado, sinto a canela durando no meu paladar.
— Então? — ela pergunta.
— É bom. — dou meu veredicto.
— Bom? Só bom?
— Okay, muito bom.
— Eu sei. — Ela sorri de novo e sinto vontade de beijar o canto da sua
boca. Então me dou conta de que seria de bom tom saber o seu nome antes de
atacá-la. Estico a mão que não está segurando o café.
— Harry.
Ela aceita minha mão. Seu toque é suave contra meus dedos calejados pelos
anos tocando guitarra.
— Alice.
Lindo. Como ela.
— Você está ocupada agora, Alice? Quer tomar seu café comigo em uma
das mesas?
— Eu tenho que voltar para o trabalho, minha hora de almoço vai só até…
— Ela olha o relógio redondo na parede atrás do balcão. — Até quinze
minutos atrás, na verdade.
— Ah.
Claro que ela não pode. A conferência é em uma semana e você mesmo mandou
um monte de coisa para ela ajustar. Deve estar sobrecarregada!
Ou… Não está interessada.
— Mas por que você não me dá seu telefone? Eu te mando uma mensagem
e a gente tenta marcar algo. Posso te mostrar um pouco da cidade se você
quiser.
Hum… Então, ela está interessada.
— Perfeito.
Ela me entrega o celular e eu anoto o meu telefone.
— Foi um prazer te conhecer, Harry.
— Digo o mesmo, Alice.
Ela sorri, vira as costas e sai da cafeteria.
Fico olhando na direção da porta até perdê-la na multidão do shopping.
Meu coração aperta no peito. Desde que eu e Melanie terminamos, não me
interessei por mais nenhuma mulher, mas algo em Alice me atrai.
— Ela não vai voltar, cara. Melhor tomar o café antes que esfrie.
É Gustavo, o barista. Rio de mim mesmo. Até ele percebeu minha
fascinação.
— Até mais, Gustavo.
Deixo alguns reais no jarro de gorjetas e saio.
Na porta do shopping, chamo um carro pelo aplicativo para me levar ao
hotel. Tomo mais um gole do café e não posso deixar de pensar em Alice ao
sentir o gosto da canela.
Recosto contra o apoio de cabeça do banco e deixo repetir, em looping, toda
nossa interação na cafeteria. A música que ela cantava, seu interesse pelo meu
sotaque, a canela. Realmente gostei do sabor e tenho certeza de que vou passar
a colocar sempre que pedir um latte. Ela chegou ontem na minha vida e já
mudou como eu tomo o meu café.
O que mais ela poderia mudar se eu desse uma chance?
Número desconhecido: O Brasil é o maior produtor de café do mundo, com áreas de
plantio que juntas são do tamanho de dois milhões de campos de futebol.

Harry:
Alice?

Alice:
É a segunda bebida mais consumida no país, ficando atrás apenas da água.

Harry:
Okay…

Alice:
E, mesmo sem leite, fica ótimo com canela.

Harry:
Existem estudos comprovando?

Alice:
É conhecimento geral.

Harry:
Claro que é.

De todas as formas que eu imaginei que ela entraria em contato, dados


sobre café não estava nem no Top 50 da lista. Alice é engraçada. Engraçada,
bonita e, pelo trabalho que desempenha e pela nossa troca na cafeteria, é
inteligente também.
Quando eu a vi no centro de convenções, me senti, de imediato, atraído
por ela fisicamente. Até mesmo nas sombras da pequena cabine de onde ela
trabalhava, eu já sabia que queria ter aquele corpo perto de mim.
Quero entender o que a motiva, como seu raciocínio funciona, o que ela
gosta e o que ela não gosta. Preciso conhecer essa mulher e tenho menos de
duas semanas para isso.
Pensar que terei que partir me causa um desconforto que eu não esperava.
Contudo, não posso pensar sobre isso agora. Tenho que continuar nossa
conversa e chamar Alice para sair.

Harry:
Você já pensou que lugar do Rio quer me mostrar primeiro?

Coloco a palavra “primeiro” na esperança de que ela perceba que eu quero


vê-la mais vezes.

Alice:
Já sim! O que você vai fazer amanhã, às oito da manhã?

Harry:
Te encontrar?

Alice:
Excelente resposta! 😀

Harry:
Essa hora não vai afetar o seu trabalho?
Alice:
Considerando que continuo aqui na empresa, vou chegar mais tarde amanhã.

Reparo a hora na tela do celular: dez e meia da noite. Me sinto mal


pensando que algum ajuste que pedi possa ter feito ela ficar na empresa até tão
tarde.
Não revelei que sou palestrante da convenção e nem que já a vi antes.
Preciso esclarecer isso logo para ela não achar que eu sou um perseguidor
tarado quando descobrir. Acho melhor fazer isso pessoalmente, no nosso
encontro. Não sei como vai soar por mensagem e eu preciso vê-la de novo.
Mas amanhã parece tão distante.

Harry:
Você já jantou?

Alice:
Ainda não. Por quê?

Harry:
O restaurante do meu hotel é vinte e quatro horas. Quer me encontrar lá?

No aplicativo de mensagens, embaixo do nome de Alice, aparece que ela


está digitando. E, então, ela para. Começa de novo. E para. Começa de novo. E
para.
Por que está pensando tanto na resposta?
Releio a minha mensagem.
Cacete!
Eu convidei a garota para o meu hotel! Dez e meia da noite! Ela deve estar
pensando que eu só quero transar. Preciso resolver isso. O que posso dizer para
tirar essa impressão?
Começo a escrever algo para tentar salvar minha pele, mas sou
interrompido pela sua resposta.
Alice:
Onde fica o seu hotel?
O que eu estou fazendo? Eu não conheço esse homem e aceitei ir ao hotel
dele, a essa hora da noite?
Não consigo raciocinar direito quando o assunto é Harry. Como eu joguei
Rafael para escanteio, na cafeteria, o fato de ter mentido sobre a música da
Moon Landing — como se eu não tivesse passado as últimas duas semanas
ouvindo-a dia e noite —, e agora ter aceitado esse jantar. Essas atitudes não são
minhas! Quem é essa pessoa que está no meu corpo tomando decisões por
mim sem me consultar?
No entanto, em pé, no saguão do hotel de Harry, estou mais convicta do
que nunca de que fiz o certo. Não sei por que ele está no Rio e tê-lo
encontrado foi pura sorte do destino; não posso jogar isso fora.
Quando eu liguei mais cedo para contar para Helô que eu o havia
encontrado, ainda estava em cima do muro. Mas ela logo colocou minha
cabeça no lugar. Se não me engano, as palavras exatas foram “ou você sai com
esse homem, ou eu saio; a escolha é sua”. Claramente, não havia escolha
alguma a fazer.
No fim das contas, se ele achar que eu sou uma oferecida por vir para cá, a
verdade é que vai ter uma grande surpresa. Eu só vou jantar e irei embora. É
isso. Vou ter minha dose de Harry e ir para casa ficar vendo e revendo esse
nosso encontro rodando, em slowmotion, na minha cabeça.
É só um jantar. É só um jantar. É só um jantar.
Atravesso o saguão e encontro a recepcionista do restaurante.
— Eu vim encontrar Harry Stewart, do quarto 513. Ele me disse que já
estava aqui.
— Está sim. Pode me seguir, por favor.
Caminho atrás dela, tentando ver por cima de seu ombro. O restaurante é
grande, então demoramos o que parecem ser umas setenta e duas horas para
chegar até o outro lado onde ele aguarda. Harry me avista e se levanta. Ele está
vestindo o mesmo que usava no nosso encontro na cafeteria, o que faz com que
eu me sinta melhor por não ter tido tempo de me trocar.
— Aqui, senhora. Tenham um ótimo jantar. — diz a recepcionista, nos
deixando sozinhos. O restaurante tem apenas duas mesas com clientes e eles
estão do lado oposto ao nosso, garantindo nossa privacidade.
Depois que ela sai, eu e Harry permanecemos em silêncio. Ele parece tão
nervoso quanto eu. É a primeira pessoa da Inglaterra que eu conheço, mas
sempre ouvi dizer que os ingleses são mais frios na hora de cumprimentar.
Nada dos dois beijinhos no rosto que os cariocas adoram. No entanto, se esse
encontro for uma porcaria, Harry for uma pessoa horrível e nós descobrirmos
que não temos química alguma, eu quero ter uma memória de como seria
encostar meu rosto no dele. Depois de tantas noites subindo e descendo pelo
seu perfil, eu preciso desse contato.
Apoio minha mão no seu braço e me inclino para dar um leve beijo em sua
bochecha. Quando me afasto, ele está congelado, sem movimentar nenhuma
parte do seu corpo.
Primeiro, aceito vir para o hotel dele a essa hora. Agora, eu o beijo.
Ele acha que eu sou uma puta. Que ótimo.
— Harry? Está tudo bem?
Ele balança a cabeça como se despertasse. Seus lábios se abrem em um
sorriso e eu relaxo.
— Muito bem. Venha, vamos nos sentar.
Depois que estamos acomodados, pego o cardápio no centro da mesa,
decidindo rapidamente o que vou comer para poder voltar minha atenção ao
que interessa.
— Me conta, Harry.
— Contar o quê?
— Tudo.
— Tudo parece muito.
— Então vamos começar com pouco. — digo, sorrindo. — Seu português
é muito bom. Onde você aprendeu?
— Minha mãe é brasileira.
— Que legal! Ela mora na Inglaterra? Foi para lá a trabalho? Seu pai é
inglês? Ele faz o quê? E você? Vim te encontrar e nem sei com o que você
trabalha. — Paro para respirar um segundo quando percebo que Harry ainda
não abriu a boca para me responder. — E lá se foi o “vamos começar com
pouco”, né? Desculpa ter metralhado você com perguntas. Acho… Acho que
estou um pouco nervosa.
— Por que você está nervosa?
— Não sei…
Como falar para ele as minhas inseguranças? Acabamos de nos conhecer,
não quero afugentá-lo.
— Posso tentar adivinhar?
— Isso pode ser um jogo interessante. Arriscado, mas interessante.
— Arriscado? Por quê?
— Porque eu vou ter que te dizer se você está certo ou não, e realmente,
não quero que você acerte.
O garçom chega nessa hora. Peço o supremo de frango e ele, uma salada da
casa.
— Você gosta de vinho? — Harry me pergunta.
— Gosto sim.
— Alguma preferência de uva?
— A que você for tomar.
Não é porque gosto de vinho que entendo alguma coisa sobre tipos de uva.
Ele se volta para o garçom, apontando para a carta de vinhos na sua mão.
— Vamos querer esse Cabernet Sauvignon 2015, por favor.
— O 2015… Excelente ano de colheita. Bem melhor que 2016. Não tão
bom quanto 2014. — Brinco quando o garçom se retira.
Harry recosta na cadeira, sorrindo.
— Sinceramente? Eu não tenho ideia. Mas gosto de números ímpares,
então…
— Ah, a famosa uva dos anos ímpares. Realmente é a melhor.
Sua expressão agora está mais tranquila, o que me causa um alívio
instantâneo.
— Não pense que eu me esqueci do nosso jogo. — E já estou tensa de
novo. — Essa cara que você está fazendo não parece ser de alguém que está
curtindo a ideia.
— Jura? Achei que estava escondendo tão bem.
— Vamos combinar assim: se eu acertar, você não precisa me dizer; se eu
errar, você me corrige.
— Isso não faz nenhum sentido. Você vai saber que acertou se eu não disser
nada.
— Hum. Só tem um jeito de descobrirmos, não é mesmo?
— Não, não é.
— Vamos concordar em discordar.
Balanço a cabeça para os lados, sem acreditar no quão bobo ele está sendo.
E sem acreditar no quanto eu isso me atrai.
— Está bem. Mas eu tenho o direito de tentar adivinhar algo sobre como
você está se sentindo também.
— Fechado.
O vinho chega, o garçom serve Harry primeiro. Ele faz todo um mise-en-
scène, balançando a taça mais do que deveria e quase derramando vinho. Enfia
o nariz dentro da taça e inala durante um tempo muito mais longo do que o
normal. Coloca um gole na boca e bochecha o vinho como se fosse um
enxaguante bucal.
Se eu já estivesse bebendo algo, teria engasgado com certeza.
— Perfeito. — diz para o garçom, que nos serve e se retira sem falar nada.
— Acho que ele não apreciou a piada.
— Não fiz para ele, então não me importa.
Mordo o lábio inferior, sentindo-me estranhamente tímida com seu
comentário. O gesto atrai seu olhar para a minha boca e me pego pensando em
quem foi o idiota que organizou o salão do restaurante e teve a ideia de colocar
as cadeiras de frente uma para outra e não lado a lado.
Ele volta a focar nos meus olhos.
— Vamos começar?
Respiro fundo.
— Faça o seu pior.
Ele arrasta o olhar pelo meu rosto e a parte superior do meu corpo, como
se me analisasse.
— Você se arrepende de vir.
— De jeito nenhum. — falo com propriedade. O sorriso nos seus lábios
me garante que dei a resposta que ele esperava.
— Você não queria que nosso primeiro encontro oficial fosse agora.
Fico em silêncio. Ele se remexe na cadeira, se mostrando angustiado por eu
não dizer nada. Me dou conta de que pode parecer que eu não queria vê-lo,
então, mesmo sabendo que, segundo as regras, posso ficar calada, eu me
apresso para esclarecer as coisas.
— Queria ter podido aceitar ficar na cafeteria com você. Queria que este
fosse nosso segundo encontro oficial.
Ele se inclina para segurar minha mão. Não estava esperando o movimento,
contudo agora não quero que ele solte mais. Sou levada para a hora do almoço,
quando Rafael fez um gesto parecido. Eu não senti nada quando ele me tocou.
Entretanto, quando Harry me toca, o arrepio emana do ponto onde nossas
peles se acariciam e atravessa todo meu corpo. Será que ele sente o mesmo?
— Isso quer dizer que vai haver um segundo encontro?
— Está meio cedo para garantir, mas suas chances são boas. — Deixo o
confortável silêncio entre nós durar alguns segundos antes de continuar. — Se
você não tem mais nenhuma ideia errada para dar, agora é minha vez.
— Me dá mais uma chance? Assim ficam três para mim e você tem três
tentativas também. Pode ser?
— Pode.
Ele solta a minha mão para batucar na mesa enquanto pensa. Me
arrependo imediatamente de ter permitido que tivesse uma nova oportunidade
de adivinhar. Ele está se empenhando muito e eu temo o que vai dizer, além de
odiar que não está mais me tocando.
— Você tem medo do motivo de eu ter te chamado tão tarde para vir ao
meu hotel.
Olho para qualquer lugar, menos para ele, e não digo nada.
Minha visão periférica revela que ele continua me encarando. Desisto de
não encarar de volta e noto seu sorriso.
— Sabe como eu sei?
— Talvez porque você sabe que me chamou para motivos pervertidos?
Ele não consegue controlar sua gargalhada.
— Pervertidos? Não, meu motivo é bem inocente, na verdade. Perversão só
com consentimento.
A última observação dele vai direto para o meio das minhas pernas. É
errado não saber quase nada sobre uma pessoa e já querer consentir todas as
perversões que a linda cabeça dela conseguir imaginar?
— Então, como sabe?
— Assim que te enviei a mensagem, eu me arrependi na mesma hora,
porque achei que você podia imaginar isso. Está sendo motivo de nervosismo
para mim também.
Ele admitir que está nervoso tanto quanto eu, me deixa estranhamente
calma.
— Então qual é o seu motivo “bem inocente” para me chamar aqui? —
pergunto, devolvendo para ele suas palavras.
— Eu precisava te ver.
Ele mantém firme o foco em mim e vejo o quanto aquilo é verdade.
“Eu precisava te ver.”
Essa frase, a voz que a disse, o olhar que me atravessa. Se, quando eu entrei
nesse hotel, só pensava que não podia dormir com Harry, agora tenho certeza
de que estou a um passo de acabar em sua cama, no fim da noite.
— Sua vez. — ele diz, quebrando o sutil véu de tensão entre nós. — Como
eu estou me sentindo?
Finjo pensar um pouco, mas já sei o que vou dizer. Sei desde o segundo em
que ele confessou que precisava me ver. Porque é esse o motivo de eu estar aqui
também.
— Nervoso. — afirmo, sendo recepcionada por silêncio. Então, eu
continuo. — Ansioso. — Silêncio novamente. Apoio os cotovelos na mesa,
colocando o queixo sobre as mãos enquanto tento parecer confiante para falar a
última palavra. — Excitado.
Harry engole em seco, fazendo seu pomo de adão subir e descer — nossa,
eu amo esse pomo de adão! Estou fazendo um péssimo trabalho não querendo
parecer que vim aqui só fazer sexo. Helô teria orgulho.
Ele continua em silêncio.
A comida chega e eu tenho vontade de matar o garçom.
D ou graças a Deus pela chegada do garçom.
Quando propus o jogo, pensei que seria uma boa maneira de quebrar o
gelo e assegurar Alice de que não tinha nada com o que se preocupar. Nunca
imaginei que terminaria arrastando a cadeira mais para baixo da mesa para
esconder melhor a minha ereção e morrendo de vontade de convidá-la para o
meu quarto.
Ou seja, fazendo exatamente aquilo que ela temia que eu queria fazer.
Mas que alternativa eu tenho? Ela é linda, gostosa e atrevida. Quando
“excitado” se formou em seus lábios, foi quase como um truque de mágica.
Meu pau apenas obedeceu, se levantando enfeitiçado, sem esperar a minha
opinião.
Me forço a lembrar que acabamos de começar o encontro. Se a noite se
estender e ela quiser subir, vai ser ótimo, no entanto, não vou esperar por isso.
Ela está brincando, não vou deduzir nada.
Ela está apenas brincando. Não está?
— Você ainda não respondeu a nenhuma das minhas quinze mil perguntas.
— Hã? Ah, sim! — Ela mudou o assunto. Graças a Deus! Coloco azeite e
pimenta na minha salada enquanto respondo, tentando me lembrar de tudo
que ela queria saber. — Minha mãe se chama Maria de Fátima e é geóloga.
Meu pai, Jack, é contador. Ele está prestes a se aposentar e ela atua como
professora na Imperial College.
— Nossa, acho que nunca conheci um geólogo na vida.
— Não deixe o emprego da minha mãe e nem o do meu pai te enganarem.
Eles podem parecer o casal mais chato do mundo, mas a verdade é que são as
pessoas mais impulsivas que eu já vi.
— Jura?
— Para você ter uma ideia, eles se conheceram em Portugal. Ele estava de
férias e ela estava visitando alguns parentes que moravam lá. Seis meses depois,
minha mãe estava se mudando para Londres para ficar com ele, sem nenhuma
perspectiva de trabalho, só porque o amava. Eventualmente deu tudo certo,
mas eu não consigo imaginar isso: largar tudo que se conhece por causa de um
amor incontrolável de verão. Mas acho que quando você sabe, você sabe. Sabe?
Ela ri dos meus “sabes” todos. Ao contrário da risada que ouvi escondido
ontem, quando a observava com aquele cara no centro de convenções, essa
parece sincera. Gosto disso.
— Na verdade, não. Já tive alguns momentos em que achei que sim, que
agora ia dar certo e eu ia cavalgar na direção do pôr do sol com o príncipe
encantado. Mas as coisas nunca saem como a gente imagina.
— É… Eu também não.
Não quero falar de Melanie. Não agora. É a primeira vez que converso com
Alice, não quero manchar isso com pensamentos sobre uma das relações mais
traumáticas da minha vida.
— Mas você disse que eles são super impulsivos, né? — Faço que sim com
a cabeça. — O que mais eles fizeram de impulsivo?
— Tantas coisas.
— Como o quê? — ela pergunta, dando mais uma garfada no seu frango.
— Como me acordar, em uma quarta-feira, dizendo que eles ligaram para a
minha escola e mentiram que eu estava doente. Aí, pediram que eu arrumasse
as malas porque iríamos passar sete dias na Disney de Paris.
— Nem posso imaginar isso! Se eu falasse para minha mãe que estava
doente e não ia à escola, ela era capaz de buscar um professor para me dar aula
deitada na cama.
— Ela parece ser intensa.
— Intensa é um elogio singelo comparado ao que dona Yolanda Santana
realmente é.
— Seu pai também é assim?
— Ah, não! Ele é a pessoa mais calma que eu conheço. Acho que é por isso
que eles dão certo. Os dois se equilibram. É tudo muito turbulento, mas
funciona para eles.
— Já com os meus pais, eu acho que é a loucura que os mantêm no
caminho certo. Eles são parceiros em qualquer ideia maluca que tenham.
— Tem mais algum exemplo da loucura deles?
— Tem o melhor de todos. Liam.
— Liam?
— É, o meu melhor amigo. Os pais dele morreram em um acidente de
carro. Quando aconteceu, ninguém conseguia encontrar o seu tio, que era o
seu único parente vivo, e ele não podia entrar no sistema para ser adotado,
porque já tinha dezoito anos. Só que ele ainda estava terminando a escola e não
tinha onde ficar antes de ir para a faculdade. No segundo em que receberam a
notícia, meus pais foram à casa dele, buscaram as suas coisas e deram um teto
para Liam. Não houve dúvidas.
— Uau. Eles parecem ser pessoas ótimas. E Liam também.
— Ele é. Passou por muita coisa, mas, não sei como, sempre está com um
sorriso e pronto para uma palavra de ironia. É meu irmão.
Me dou conta que, durante todo o meu relacionamento com Melanie,
nunca lhe contei isso. Ela nunca se interessou. Tivemos inúmeros encontros e,
de alguma forma, o assunto era sempre ela e sua triste carreira de atriz. Alice se
importa, quer saber de mim, quer me conhecer.
E eu quero conhecê-la também.
— Você tem alguém assim? Que é tipo irmão?
— A Heloísa. A gente se conheceu na faculdade. Ela é quatro anos mais
velha do que eu, mas se comporta como uma adolescente com idade para
beber. Posso contar com a Helô sempre; suas habilidades de amiga vão desde
um belo choque de realidade até uma caipirinha bem-feita, passando por uma
sessão de terapia gratuita.
— Só vi vantagens!
— Não é?
— Vai ser interessante vê-la conhecendo o Liam. Quem sabe ela não dá um
choque de realidade nele também?
As sobrancelhas dela ganham um ar sério que me lembra de quando Liam
vai tirar o tom de piada do que está prestes a falar. A mudança no seu rosto me
diz que fui longe demais.
Você acabou de conhecer a garota e já está fazendo planos de apresentar os
amigos?
Amigos que moram em cantos diferentes do planeta, que nem nós dois.
Preciso mudar o assunto. E rápido.
— E você? Trabalha com o quê?
Eu sei o que você está pensando. Já sei com o que ela trabalha, mas não
quero parecer um perseguidor doido. E vai me dar a brecha de que eu preciso
para falar o que eu faço e deixar claro que estamos trabalhando no mesmo
evento.
Alice perde o ar sério e eu ganho um aliviado.
— Sou programadora de jogos. Trabalho em uma empresa de videogames.
— Isso parece ser bem divertido!
— E é! Confesso que às vezes sinto que não estou fazendo a diferença, o
que me faz constantemente repensar minhas escolhas de vida. Mas fui
recentemente chamada para participar de um projeto para uma conferência
sobre o meio ambiente e estou no céu! Consigo programar, que é algo que eu
amo fazer, e ainda sinto como se estivesse tendo algum tipo de impacto
positivo, sabe? É o melhor dos dois mundos.
O ponto dela sobre fazer a diferença é algo com que eu posso me
identificar. É a razão de eu trabalhar com o que trabalho, de viver como vivo.
— É por isso que eu estou no Rio, para a Conferência da Semana do Meio
Ambiente.
— Como assim? Você veio assistir às palestras?
— Não, vim dar uma, na verdade. Sou biólogo marinho, doutorando da
Queen Mary. Vou falar sobre as dificuldades enfrentadas pela vida marinha nos
trópicos.
Ela fica em silêncio. Ao contrário de instantes antes, quando momentos
assim estavam sendo excitantes e confortáveis, esse me deixa inquieto. Nem na
comida ela mexe mais. Não a conheço o suficiente para ser capaz de ler as
sutilezas no seu semblante.
Decido continuar mesmo assim. Não gosto de mentiras, principalmente
depois de tudo que passei com Melanie. Preciso ser sincero por mais que isso
possa fazer com que ela desista do que quer que seja que estamos fazendo aqui.
— Inclusive, tenho uma confissão. Quando te vi na cafeteria, aquela não
foi a primeira vez. Te vi ontem, na apresentação do simulador.
— Você o quê?
Esse tom é de surpresa? Indiferença? Pânico?
— Te vi ontem? — Não sei por que minha frase soa como uma pergunta.
— Hum. — O som sai com um movimento de cabeça que a faz se voltar
para algum ponto atrás de mim. Ela fica pensativa e eu continuo odiando o
fato de não saber o que ela está pensando.
— Você está chateada com isso?
Ela se vira como se tivesse levado um susto.
— O quê? Não. Claro que não.
Seu sorriso não chega aos olhos e me pergunto se está falando a verdade.
— Você pode ser sincera. Isso te assustou? Juro que não sou um louco
tarado que está te perseguindo.
— Harry, eu não acho você louco.
— E tarado?
— Sobre essa parte, eu ainda não tenho certeza.
Seus ombros relaxam ao fazer a piada e eu fico um pouco mais tranquilo.
— Você jura que está tudo bem?
— Sim, está tudo bem.
Ela complementa sua frase apoiando a mão sobre a minha. O gesto me
passa segurança. Ainda há algo estranho no clima entre nós, mas decido não
forçar a barra.
— Então, você vai ficar aqui mais duas semanas?
É
— É isso que está te preocupando? O tempo que eu vou ficar aqui?
Alice solta a minha mão e segura novamente seu garfo, focando no resto de
comida que arrasta de um lado para o outro.
— Não estou preocupada, só querendo saber mesmo.
— Sim, duas semanas. A conferência acaba na sexta da semana que vem;
meu voo está marcado para o domingo.
— Entendi.
Ela levanta o olhar para mim, ainda com a cabeça baixa. Um dos lados de
sua boca se curva criando uma covinha na sua bochecha que eu ainda não
tinha notado.
— Então acho melhor a gente fazer esse tempo valer a pena.
Seguro seu olhar no meu.
— Eu não podia concordar mais.
A areia endurecida pela água se molda em volta dos nossos pés enquanto
caminhamos à beira-mar. Já passa da meia-noite, e a voz da minha mãe grita na
minha cabeça que eu vou ser assaltada a qualquer segundo. Fica difícil me
importar com isso quando tenho a lua iluminando nosso caminho e Harry
Stewart ao meu lado.
Harry.
O homem que eu escolhi antes mesmo de saber que íamos nos encontrar.
O homem que encontrei por pura sorte do destino.
O homem que vai ficar aqui por apenas duas semanas.
Quando ele falou da conferência, eu pirei. Vou trabalhar, ativamente, nos
dias do evento, ao lado do Rafael. Eles estão fadados a se encontrarem. E,
então, Harry disse por quanto tempo ficaria aqui e minhas neuras sobre ser
descoberta na minha loucura foram abafadas por um sentimento de perda.
Tenho que dar um jeito de separar os dois para evitar que Harry descubra o
que eu fiz e me ache louca demais para ele. Se fôssemos ter um futuro além
dessas duas semanas, eu teria aproveitado o momento em que revelou que já
me conhecia para dizer a verdade. No entanto, ele vai embora. Vai atravessar o
oceano e seguir com sua vida. Sabe Deus o que o espera quando voltar para
Londres. E eu vou seguir aqui, sabendo que o cara que eu idolatrava antes
mesmo de conhecer me deixou para trás. Passei meses me dedicando ao Rafael,
dando o meu melhor para satisfazer suas vontades e ele me abandonou. Está na
hora de pensar em mim, no que eu preciso.
E, mesmo que seja por pouco tempo, eu preciso estar com o Harry.
— Gosto disso. — digo baixo. Ele não fala nada por alguns segundos e
começo a me perguntar se eu disse mesmo ou se foi só na minha cabeça.
Harry para de caminhar. Eu faço o mesmo e me viro para ele. As ondas
batem nos nossos pés. Deixamos nossos sapatos na recepção do hotel, já que só
precisaríamos atravessar para estar no mar, mas confesso que o contato do meu
pé no asfalto fez minha mente pensar nas inúmeras bactérias com as quais eu
estaria entrando em contato. Acho que, tirando as vezes em que Helô me chuta
para fora da minha zona de conforto com a eventual tequila bebida do meu
umbigo, essa foi uma das coisas mais espontâneas e loucas que fiz na minha
vida, o que me deixa triste. Andar descalça na rua? Sério? Minha vida precisa
de mais emoção.
— Do que exatamente você gosta? Da praia à noite ou da companhia?
— Das duas coisas.
— Eu também.
Não tinha percebido que uma mecha do meu cabelo tinha se soltado até ele
a colocar atrás da minha orelha. Seus dedos roçam contra o meu rosto e tenho
que me controlar para não segurar sua mão ali.
Decido que é melhor continuar a conversa e não me tacar em cima do cara
gato na minha frente.
— Vou te contar uma coisa que eu realmente não deveria confessar no
primeiro encontro, mas temos pouco tempo, então…
Deixo as palavras morrerem no ar quando vejo o rosto de Harry tomar um
tom sóbrio. Será que ele também queria ter mais do que duas semanas comigo?
Não posso deixar a contagem regressiva em que estamos vivendo estragar a
noite, por isso continuo.
— Eu tenho uma leve claustrofobia. E uma leve tendência a crises de
pânico. Então lugares abertos assim me fazem bem.
— Você usou “leve” duas vezes, o que me faz pensar que não é nada leve.
— Para quem acabou de me conhecer, você está sabendo me ler muito
bem.
Harry sorri e dá um passo, ficando tão próximo que se eu inspirar um
pouco mais fundo, meu peito tocará no dele.
— Que bom. É o que eu mais quero; saber te ler por inteiro. — Meus
lábios se partem. Como ele fala “por inteiro” faz minha mente viajar
diretamente para o seu quarto. — Por isso que você nunca foi para a Europa?
Lidar com essa fobia já deve ser ruim normalmente; trancada em um avião por
dez horas, então, deve ser impossível.
— Sim, é por isso. O máximo que aguento é três horas e, mesmo assim,
tomo um remédio para enjoo que sempre me faz dormir. Se tivesse que passar
esse tempo todo acordada, não sei o que faria. Sinceramente, tenho pena da
pessoa que se sentar ao meu lado.
Ele dá mais um passo e nossos corpos finalmente se encostam. Ele é uns
vinte centímetros mais alto do que eu, então tenho que erguer um pouco mais
o queixo para manter o contato visual. Harry acaricia meu rosto e meus olhos
se fecham instintivamente, entregando-me ao seu toque. Abro-os quando ouço
novamente sua voz.
— Eu adoraria estar ao seu lado.
— Você não sabe o que está dizendo. Quando tenho uma crise séria fico
louca, com falta de ar, tremendo, às vezes gritando, às vezes com vontade de
arrancar a roupa e correr pelada. A cena não é bonita.
— Sair correndo pelada, hein? Acho que a cena é mais bonita do que você
imagina.
Eu rio, contudo, ele não me deixa quebrar a tensão do momento.
— Sabe o que eu faria para te acalmar?
— O quê?
— Eu te abraçaria assim, — Ele passa a mão pela minha cintura e me puxa
para mais perto. — deixando seu corpo sentir a segurança do meu. Colaria
nossos rostos assim, — Ele toca a testa dele na minha. — para você focar
apenas em mim. — Meus seios sobem e descem em uma respiração
descontrolada. Ele está vendo o que faz comigo, mas não para. A mão que
estava no meu rosto, desce pelo meu pescoço, causando arrepios pelo meu
braço até chegar na minha mão. Ele a segura e leva até o seu peito. — Faria
você sentir o meu coração e focar nas batidas dele.
Suas palavras, sua proximidade. Me sinto tonta e excitada, apoio em seu
bíceps para não perder o equilíbrio, e porque eu preciso tocá-lo.
— O que… — balbucio. — O que mais você faria?
Ele passa a língua entre os lábios. É a minha ruína.
Sua boca encosta na minha, sem pressa de iniciar o beijo. Nossas mãos, que
estavam contra o seu peito, se soltam para que ele possa segurar meu pescoço,
grudando mais ainda nossos corpos. Então, eu me entrego.
Ele tem gosto de vinho e sal do mar. E eu poderia sentir esse gosto para
sempre.
Abro os lábios e sou invadida pela sua língua. Ele massageia a minha,
fazendo com que minhas pernas cedam. Mas não caio. Seu braço forte na
minha cintura me mantém de pé e colada a ele.
Nossas bocas se afastam e ele toca novamente nossas testas. Sua respiração
está tão errática quanto a minha. Ele não queria parar, assim como eu.
Um vento mais frio bate contra nossos corpos, fazendo-me voltar à
realidade e me dar conta do nosso entorno.
Sua técnica contra a minha claustrofobia funciona mesmo.
— Isso foi… — tento dizer, sem saber como terminar a frase.
— Foi mesmo. — ele responde, abrindo um sorriso.
Caminhamos um pouco mais pela praia antes de voltarmos ao hotel.
Coloco meus sapatos enquanto ele pede um carro no aplicativo para mim.
Quando o motorista chega, Harry abre a porta do carro, mas me para antes
que eu entre.
— Nosso encontro de amanhã de manhã está de pé, não é?
Estava tão bêbada de Harry que tinha até me esquecido disso.
— Sim. Acho bom você se preparar para essas duas semanas, Harry. Você
vai ter overdose de Alice.
— Não sei nem como me preparar para passar esse tempo do seu lado.
Ele traz um ar melancólico que eu não esperava.
— Se você não quiser…
Harry segura meu rosto entre suas mãos e aperta seus lábios contra os
meus.
— Ah, eu quero. — ele diz, ainda com a boca grudada na minha. —
Como eu quero, Alice.
Ele me solta e eu entro no carro, quase caindo contra o banco porque
minhas pernas viraram espaguete. Abro o vidro da minha porta.
— Até amanhã, Harry.
— Até amanhã.

Meu celular tem mais de trinta mensagens da Helô. Apesar do texto variar
de uma para a outra, o que ela quer que eu faça está claro: tenho que ligar para
ela assim que chegar em casa.
— Eu quero saber tudo, e com riqueza de detalhes. Desembucha.
Ela nem me deixa dizer nada quando atende e isso lembra tanto a minha
mãe que eu dou uma gargalhada. Conto todos os detalhes para Helô; cada
segundo passado com Harry, desde que pisei no seu hotel até nossa despedida
no carro. Ela não interrompe em nenhum momento, o que me faz achar que a
ligação pode ter caído. No entanto, logo ouço alguns barulhos que me dão a
impressão de que Helô está macerando uma fruta para fazer um drinque.
— Você está bebendo?
— Ainda não.
— São quase três da manhã.
— Eu sei.
— Por que você está bebendo agora?
— Porque eu não transo há dois meses e estou vivendo minha vida através de
você.
— Justo.
Ouço ela engolir antes de voltar a falar.
— Você estava certa quando o escolheu para ser seu hombre. Transformar a
confissão louca em uma desculpa para te beijar? Isso é jogada de hombre daqueles
bons.
— Você é psicóloga! Não pode falar que a minha claustrofobia é loucura.
— Não disse que a sua claustrofobia é loucura. Disse que a sua confissão é que
é. Assim como você. E não digo isso como psicóloga, digo isso como alguém que te
conhece mesmo.
— Sua amizade toca o meu coração.
— Eu sei, mas eu quero falar sobre Harry tocando outras partes do seu corpo.
— Não teve outras partes. Ficamos da cintura para cima.
— Posso saber por quê?
— Porque eu conheci ele hoje!
— Ahn, isso é mentira, mas vou deixar passar por agora. — Agradeço
mentalmente por isso. Porque a última coisa de que preciso é ser lembrada que
realmente sou louca como ela diz e que tem toda uma rede de mentiras que
estou escondendo do cara mais perfeito que eu já encontrei. — É óbvio que
você queria ir para a cama com ele. E, como você mesma disse, ele só vai estar aqui
por duas semanas. O que te impediu?
— Não sei. Por mais que a gente tenha falado em aproveitar esse tempo, ele
não pareceu querer correr com nada. E eu estava tão impactada com a
intensidade do nosso beijo que acho que nem aguentaria qualquer outra coisa.
— Se ele não pareceu querer correr, é porque não espera te largar fácil. Será que
está pensando a longo prazo?
— Impossível. Ele mora do outro lado do oceano, Helô. Por mais que as
vozes na minha cabeça estejam gritando que é o que elas mais querem, sei que
não vai durar. Não posso ficar me enganando que vai ser mais do que é. A
minha relação com Rafael já me machucou tanto. Não posso passar por mais
um coração partido.
— E como a senhorita pretende proteger seu coração quando claramente está
caidinha por ele?
Não tenho uma resposta para Helô, até porque eu também queria saber.
— Agora, vamos falar desse tal de Liam que ele quer me apresentar. Como são
os ombros?
Adoro que ela sabe a hora de trazer leveza para a conversa.
— Não tenho ideia!
— Espera um pouco. Vou te colocar no viva-voz e abrir o Instagram.
— O que você está fazendo?
— Quero ver esse Liam. — Ela fica calada alguns instantes. — Oh.
— Que foi?
— Ele é gato, Alice. Tipo, muito gato. É o oposto completo do Harry, mas não
sei como, tão gato quanto. Minto, é mais gato ainda.
Faço o mesmo que ela; coloco a ligação no viva-voz e abro o aplicativo no
perfil de Harry. Logo encontro a foto que Helô achou. Harry está abraçado a
um rapaz em algum pub. Liam Matthews está marcado na imagem.
Ele tem os músculos bem definidos, entretanto com um corpo bem menos
largo que o do Harry. Enquanto Harry lembra um lutador de boxe, Liam está
mais para um nadador. Posso ver o apelo, mas sobre ser mais gato? Não acho
que exista homem nesse mundo que consiga essa proeza.
A saudade de me sentir segura naquele abraço aperta e tenho vontade de
ligar para ele. Preciso me controlar para não afastar o Harry com a minha vibe
Kate Hudson em “Como Perder Um Homem em 10 Dias”. No meu caso, duas
semanas.
— Droga.
— Que foi?
— Entrei no perfil dele. Tem namorada. Por mais que eu queira o corpo dele
apenas por uma noite, não vou ficar me metendo em namoro dos outros.
— Só por uma noite? Nem por um homem que considera mais gato do
que o Harry, você acabaria com a sua aversão a relacionamentos?
— Não tenho aversão, só bom senso mesmo. Essa história de relacionamento
com final feliz foi uma criação da sociedade…
— Para nos controlar, sim, eu sei. — digo, cortando Helô.
Não é a primeira vez que eu escuto esse discurso. Aparentemente, a
“sociedade” quer que a gente passe a vida buscando o amor para nos fazer
esquecer das coisas que realmente importam e nos manter vítimas da estrutura
capitalista. Não entendo por que ela não acredita que amor também possa ser
uma dessas coisas importantes, contudo, depois de todas as loucuras que eu já
fiz por amor (Fernando Williams sendo a prova número um), quem sou eu
para criticar?
— Mas pelo que o Harry me falou, além de gato, esse tal de Liam também
é um amigo maravilhoso; quem sabe não é o pacote completo? Nem por uma
pessoa assim você tentaria?
— Não. Fico feliz em apelidar meu vibrador de Liam e me resolver sozinha
mesmo.
— Helô, você está compartilhando demais, de novo.
— Se você fosse menos pudica e usasse o vibrador que eu te dei de presente, não
ia achar isso.
— Quem disse que não usei? — digo antes de conseguir me controlar
— Ah! Até que enfim a bonitinha resolveu abraçar que é uma mulher
empoderada e que pode ser a responsável pelos seus próprios orgasmos!
— Eu já sabia disso. Só acho mais divertido quando tem um homem junto.
— É, eu também. Mas o meu homem ideal tem namorada e está em Londres,
então vou ter que me virar com o mini Liam. — Ela para um segundo de falar
antes de continuar. — Ahn… Esquece o que eu disse. Acabei de achar uma foto
dele saindo de uma piscina com a bermuda colando no seu corpo. Não vou usar
“mini” e “Liam” numa mesma frase nunca mais.
— Dá para ver nesse nível de detalhe?
— Não, mas tenho conhecimento no assunto, consigo deduzir pelo que dá para
ver.
— Eu acho melhor não falarmos mais sobre seu extenso conhecimento da
genitália masculina.
— Pau, Alice. Conhecimento de pau. Boca suja vai te levar longe, acredita em
mim.
— Durante o sexo pode até ser, Helô, mas falando ao telefone com você é
onde eu traço meu limite.
— Ai, está bem! Que chata. Vai dormir então. Ou usar o mini Harry.
Me despeço de Helô sem revelar que estive tão próxima de Harry que sei
que com ele também não podemos falar que nada é “mini”. A última coisa que
quero é minha amiga pensando no membro do cara com quem estou saindo.
E sim, eu falei “membro”. Sou pudica mesmo. Me julgue!
-O que custa colocar uma camisa antes de me ligar?
A camisa já estava na minha mão, mas eu queria irritar Liam e consegui.
Deixo o telefone na cômoda sobre a qual fica a TV, enquanto termino de
me vestir. Pego o aparelho e aponto a câmera para o meu torso.
— Melhor?
— Muito!
Pela vista ao fundo de Liam, mostrando o Tâmisa, e o fato de ele estar de
gravata e camisa social, sei que está no escritório. No entanto, suas olheiras
fundas, o nó da gravata afrouxado e os dois primeiros botões de sua camisa
abertos me dizem que não está feliz com isso.
— Está tudo bem por aí?
— Ahn? Sim, sim — diz enquanto revira uns papéis em sua mesa. Acho
que, mesmo com o celular mostrando a minha cara, ele se esqueceu de que eu
consigo ver a dele também.
— Liam, você não parece bem.
— Não é nada. — Ele larga os papéis na mesa e se volta para a câmera. —
Só coisas de trabalho. Tem um evento que está me tirando o sono. Hoje cheguei no
raiar do dia, aqui.
Não sei se acredito nele, contudo, se Liam não quer elaborar, prefiro deixar
quieto. Ele pega uma caneta e começa a fazer anotações enquanto continua a
falar.
— Liguei para Mary ontem — diz, usando o nome que só ele usa para
minha mãe.
— É? Está tudo bem?
— Está. Só fui promovido a melhor filho, já que você foi para o Brasil e a
abandonou.
— Quanto drama! Eu mandei mensagem para ela ontem.
— Acho que as palavras exatas foram “a tecnologia atual permite
videochamadas de graça, nas quais eu poderia finalmente ver o rosto que esculpi
com tanto carinho”. Ou seja, suas mensagens e nada são a mesma coisa.
Consigo imaginar com perfeição a minha mãe dizendo isso.
— Vou ligar para ela hoje quando voltar.
— Está indo aonde? No centro de convenções?
— Não. Na verdade, foi por isso que eu liguei.
No dia anterior, sem saber se Alice iria entrar em contato ou não, acabei
não contando para Liam que teríamos um encontro. Quando finalmente a
chamei para jantar, já era madrugada em Londres, então deixei para hoje.
— Eu conheci alguém.
Liam solta a caneta que estava na sua mão. Sua expressão traz uma alegria
contida; ele tenta esconder o sorriso sem sucesso.
— Eu vou precisar de mais detalhes aqui, meu amigo.
— O nome dela é Alice. Eu a vi na convenção, mas me apresentei só
ontem, quando a gente se esbarrou em uma cafeteria. Acabamos trocando
mensagens e jantamos juntos.
— E…?
— E estou saindo para encontrar com ela agora.
— Deixa eu ver se entendi. Você viu essa garota na convenção, saíram ontem e
vão sair hoje de novo.
— No que depender de mim, quero ver Alice todos os dias até eu voltar.
Liam levanta as sobrancelhas e se cala. Uma de suas mãos vai para o seu
queixo e ele dá pequenas batucadas com o indicador nos seus lábios.
— Liam?
— Você saiu com ela ontem e sairá agora — ele repete. Não é uma pergunta,
mas eu trato com se fosse.
— Sim.
— Você sabe que para ganhar a Olivia só precisa de uma noite, né?
Rio alto.
— Você é um idiota, Liam. Um idiota que sabe muito bem que eu estar
saindo para ver a Alice não tem nada a ver com a Olivia.
Ele abre um sorriso sincero. Liam sabe que, se isso fosse apenas uma garota
para sexo casual, eu não teria ligado para ele agora. Teria ligado depois do sexo,
sem falar nada sobre a pessoa com quem transei, apenas para dizer que ganhei.
Falar a respeito, dar nome à pessoa, eu só faço esse tipo de coisa quando
significa algo. Alice está nessa categoria. Eu ainda não sei o que ela significa,
muito menos se estou pronto para alguém como ela, entretanto sei o quão
rápido ela tomou conta de todos os meus pensamentos.
— Me fala sobre ela.
E eu falo. Sou mais genérico na hora de descrevê-la fisicamente; me
incomoda que outro homem pense no seu corpo, por mais que esse homem
seja um irmão para mim. Conto que ela cantarolava a nossa música sem nem
perceber, que é engraçada e inteligente, e que eu acho que eles se dariam bem.
— Também acho — ele responde. — Só pela forma como você fala, por como
está animado depois de tanto tempo… — Ele ia falar do caos que Melanie
deixou, mas fico feliz por parar. Não quero associá-la a nada sobre a Alice. Elas
são água e vinho, Alice sendo o vinho nessa metáfora. — Estou tão feliz por
você, irmão. Mas… E…. Você sabe…
Sei exatamente o que ele quer dizer. E a minha volta? Por que estou
querendo sair com alguém com quem eu estou me envolvendo
emocionalmente quando tenho que ir embora?
— Não sei, Liam. Mas quero isso. E, se eu só tiver duas semanas com ela…
Bom, é melhor do que não ter tido nada, certo?
— Viver é sempre certo, Harry. É isso que você está fazendo, vivendo. Estou
orgulhoso.
— Calma, cara. Só estou indo a um encontro, não é motivo de orgulho.
— O orgulho é meu e eu faço o que quiser com ele.
O alívio por parar de abrir meu coração para ele é imediato. Liam percebe e
mantém a conversa leve até encerrarmos a ligação quando está na minha hora
de sair.
Alice prometeu mostrar o Rio para mim, e eu mal posso esperar.

Aguardo Alice na porta do hotel, para aproveitar a vista do Atlântico. São


quase oito da manhã de uma quarta-feira e, ainda assim, a praia está lotada.
Estou vestindo uma calça caqui e uma camisa branca de manga curta, o que
torna o calor suportável. Carrego um suéter porque Alice disse que eu
precisaria, mas agora, vendo um rapaz passar por mim usando calça comprida,
casaco e cachecol nesse calor, penso que talvez ela não tenha considerado que
sou inglês. Estou aqui há poucos dias, mas tem uma coisa que já aprendi sobre
os cariocas: a tolerância para o frio só existe se eles estão na areia.
Antes desta viagem, só tinha vindo ao Brasil quando tinha uns seis anos e,
como minha mãe é de São Paulo, não tive a experiência de sol e mar que estou
tendo agora. Dois anos depois da nossa vinda, minha avó materna morreu e
não tínhamos mais parentes aqui. Minha mãe disse que seria duro demais para
ela retornar sem a mãe presente, então não voltamos mais.
Quando liguei para ela para avisar que viajaria para cá a trabalho, pude
sentir o nó na sua garganta. Ela ficou forte durante a ligação toda, no entanto,
eu a conheço bem. Por trás daquela armadura, tem uma mulher que sente com
toda a sua alma.
Puxo o celular e tiro uma foto da praia, mostrando o sol ao fundo. Envio
para ela, avisando que vou ligar mais tarde. Ela responde quase imediatamente.

Mãe:
Que foto linda! Isso que é inverno! Faça uma videochamada ou nem precisa ligar. Liam é
o filho preferido até eu ver o seu rosto. Que os jogos comecem!
Minha mãe é tão parecida com Liam na sua forma de brincar e de ver a
vida, que às vezes eu me pergunto se ele não poderia mesmo ser seu filho
biológico.
Estou me preparando para responder quando sou impactado por um
familiar rebolado vindo na minha direção. Alice está usando uma calça preta de
brim, rasgada nos joelhos e, nos seus pés, um Adidas branco com detalhes em
preto; um suéter não muito comprido cobre o seu torso, deixando à mostra um
cinto preto ornado com pequenas bolinhas de metal; a alça da sua bolsa de
lona está posicionada entre os seus seios, marcando o espaço entre eles. Sua
maneira de se vestir é simples, trazendo uma elegância que eu não sei se ela
percebe que possui. Estou tão perdido no seu corpo que, só depois de alguns
segundos, me toco que ela está me oferecendo um copo gigante com um creme
roxo e bananas cortadas em rodelas.
— Bom dia! — ela diz, feliz demais para essa hora da manhã.
Aceito o copo e me inclino, dando um leve beijo na sua bochecha. Quero
nos lábios, mas não irei deduzir nada sem pedir a sua permissão.
— Bom dia. Isso é açaí?
— Yup! — ela confirma, estalando um lábio no outro para pronunciar o
“p”. — Prometi te apresentar o Rio, e não existe Rio sem açaí. Particularmente,
eu acho que tem gosto de terra, mas com xarope de guaraná e banana até que
fica bom. Além disso, é o prato perfeito para segurar a nossa fome até o
almoço.
— Vamos almoçar juntos também?
— Só se você quiser. — Alice responde olhando para baixo. Seu tom de voz
perdeu a alegria que tinha poucos segundos antes. — E puder, claro. Desculpa,
acho que não falei quanto tempo nosso passeio demoraria.
Ignoro meus pensamentos de cavalheiro e passo o braço que não está
ocupado com o açaí pela sua cintura, puxando-a para perto.
— Eu quero muito. — Ela levanta a cabeça e abre um sorriso. Não resisto.
— Posso te beijar?
— Deve.
Toco minha boca contra a dela, testando a sensação. Ela usa a sua mão livre
para puxar minha nuca, tentando aumentar a intensidade do nosso beijo, mas
eu continuo sem aprofundar. Quero deixá-la com vontade de mais. Alice se
recusa a aceitar a simplicidade desse momento e prende meu lábio inferior
entre seus dentes, mordendo levemente e me fazendo esquecer de que era para
ser apenas um pequeno beijo. Minha língua vai ao encontro da sua, enquanto a
minha mão que está na cintura dela vai para debaixo do suéter e aperta a sua
pele ali. Ela geme contra mim, entretanto se afasta antes que eu esteja
preparado para soltá-la.
— Estamos nos atrasando — ela diz, sem fôlego.
— Não tenho problema com isso.
— Se essa situação fosse em qualquer outro momento, eu concordaria.
Acredite em mim. Mas a gente tem hora marcada.
— Temos?
Ela confirma com um gesto de cabeça.
— Trabalhe em comer esse açaí enquanto eu peço o carro para a gente. Um
caminho longo nos espera.
— Caminho longo? Eu deveria ficar preocupado? Você pretende me levar
para o meio da mata e me assassinar ou algo do tipo?
— Metade dessa sua suposição está correta. Mas eu não vou te dizer qual.
Se o meu coração continuar batendo do jeito que está agora, é capaz da
parte sobre ela me matar acabar sendo a certa.

Estamos há mais de uma hora seguindo para nosso destino. O açaí acabou
há muito tempo e a conversa segue sem fim. Alice me conta o dia a dia do seu
trabalho como programadora, detalhes sobre Helô e sua paixão por caipirinhas,
os ataques loucos da sua mãe e a sensatez de seu pai. Eu falo do doutorado, de
Liam e da nossa banda. Penso em mencionar que ela cantarolava as melodias
de uma música que escrevi na cafeteria, contudo Alice leva o assunto para os
instrumentos que toco e acabo deixando para outro momento. Não digo nada
sobre Melanie. Ela não falou de nenhum ex, prefiro não estragar nosso passeio
com conversas pesadas.
Depois de alguns quebra-molas em uma estrada cercada de mata verde por
todos os lados, nosso carro faz a curva à esquerda e entra em uma rua com
paralelepípedos, fechada por um portão de grade. Do meu lado, uma placa
marrom diz que o local se chama “Sítio Burle Marx”.
— Estamos em um sítio?
— Melhor do que isso. Estamos em um patrimônio mundial da
humanidade.
O carro nos deixa na entrada e caminhamos um pouco entre plantas altas e
vegetação diversa até nos depararmos com uma casa branca com janelas azuis.
Alice estava certa, estar entre essas plantas reduz consideravelmente a
temperatura e acabo colocando o suéter. Um rapaz de cabeça raspada nos
aguarda nos degraus que levam à varanda da casa.
— Alice Santana?
— Prazer — ela diz, apertando a mão do jovem.
— E você deve ser o Harry. Meu nome é Marcos. Alice me disse ao
telefone que podemos falar em português, mas, se preferir, falo inglês também.
Aceito a mão que agora ele estende para mim e agradeço.
— Podemos falar em português sim.
— Marcos é biólogo e guia aqui do sítio — ela diz.
— Alice me falou que você também é biólogo.
— Sim, sou especialista em biologia marinha.
— O nosso foco aqui são as plantas, mas qualquer amante da natureza,
independentemente da especialização, não tem como não se apaixonar.
Absorvo a paisagem ao nosso redor e tenho que concordar com Marcos. O
verde vivo, mesmo no inverno, as vitórias-régias em um lago próximo, as
rochas e os caminhos de pedra. Esse é um lugar de paz.
— Vocês querem começar pela casa ou pela parte exterior?
Alice se vira para mim, aguardando minha resposta para a pergunta do
nosso guia.
— Você é a dona do nosso passeio; você decide.
— Vamos começar pela casa então, e encerrar em alto estilo aqui fora.
— Perfeito! Podem me seguir.
Marcos nos apresenta os trabalhos de Burle Marx, suas pinturas e
esculturas, nos mostra o piano que tocava, além de diversas coleções de obras
de arte. A casa é aconchegante, e os móveis antigos me tiram do presente. Fico
particularmente encantado pelo piano de cauda preto e pela cadeira de madeira
à sua frente. Imagino o prazer de tocar aquelas teclas enquanto vejo o verde
pela janela. As notas musicais e o barulho dos pássaros sendo o único som que
nos cerca.
Minha mente caminha mais um pouco e consigo ver Alice sentada na
cadeira de balanço ao lado, ouvindo-me tocar enquanto lê um livro. Porque a
coloco na cena, eu não sei. Entretanto, a ideia de tê-la por perto, fazendo algo
tão mundano quanto ler durante o tempo em que faço o que amo, me traz um
aperto no peito.
O passeio interno termina e saímos para ver as belezas da flora que nos
cerca. Sinto Alice passar do meu lado e seguro a sua mão, observando seu
semblante para poder identificar qualquer reação negativa. Logo me acalmo
quando seus dedos se entrelaçam aos meus.
Seguimos o caminho entre edificações simples, lagos calmos e plantas de
uma beleza ímpar. Embaixo de uma enorme figueira, com raízes que criam um
alto-relevo acima da terra, eu puxo Alice para perto e ofereço meu celular para
Marcos, pedindo que tire uma foto nossa.
Sob um céu limpo do inverno tropical, cercados pelas árvores e pelo
silêncio, a impressão de paz poderia ser facilmente substituída por uma de
solidão. Contudo, a mulher encaixada entre meus braços aquece meu corpo e
preenche todos os espaços de mim que estavam vazios.
Depois da visita ao sítio, Alice encerra a nossa manhã com um brunch no
Forte Copacabana. Estamos sentados do lado de fora, cercados pela vista da
orla da praia e do Pão de Açúcar.
Na volta, ela me questionou se eu era vegano. Disse que reparou que tinha
jantado apenas uma salada e, dada a minha profissão, imaginou que eu poderia
não comer nada de procedência animal. Contei que estou no processo para
isso, mas, por enquanto, só não como nenhum tipo de carne.
Ela usou essa informação para decidir onde íamos comer e foi mais uma
prova do quanto me nota. Nenhuma mulher nunca pensou tanto no que era
bom para mim. Melanie só queria saber da sua fracassada carreira e, antes dela,
eu tive apenas duas namoradas que não ficaram na minha vida tempo
suficiente para se importarem, o que torna Alice ainda mais especial. Eu a
conheço há dois dias, e nossa relação, nesse aspecto, já é a mais intensa que
tive.
Ela toma seu café com leite e canela enquanto aproveita a brisa de inverno.
Não se retrai com o frio contra o seu rosto, pelo contrário, ela o recebe com
uma expressão de gratidão.
O tempo em que me pego observando-a é o suficiente para esfriar o meu
waffle. Eu comeria só comidas geladas para o resto da vida se isso significasse
que poderia ficar olhando o perfil de Alice. Reparo no nariz arrebitado que já
tinha chamado minha atenção na primeira vez que a vi; no seu lábio inferior
que é levemente mais cheio que o superior e me faz querer mordê-lo; nos seus
cílios que são longos e escuros, mesmo ela estando com o rosto sem um pingo
de maquiagem. Alice tem uma beleza natural que não tenta esconder atrás de
quilos de tralha testada em animais de laboratório. Mais uma coisa para a
extensa lista de motivos para gostar dessa mulher.
Um assovio de alguém que passa atrás de nós me faz lembrar do que queria
falar quando estávamos indo para o Sítio Burle Marx.
— Quero te mostrar uma coisa.
Ela coloca a xícara na mesa.
— Isso parece sério.
— Nem um pouco, na verdade. Na cafeteria, ontem, você disse que não
tinha percebido que estava cantarolando uma melodia. — Eu pego meu celular
e entro no YouTube. Alice se arruma na cadeira para ver melhor a tela. —
Queria que você escutasse isso para saber se reconhece.
Estou mostrando para ela uma versão voz e violão que fiz da música para
mandar para a banda antes de gravarmos. O clipe oficial que lançamos tem
Melanie como atriz e eu não estou a fim de ver a cara dela, muito menos de
mostrar para Alice.
Ela olha fixamente enquanto a melodia emana do celular. Coloquei o
volume um pouco baixo porque odeio pessoas que veem vídeos no volume
máximo em ambientes públicos, mas, com o aparelho perto dela, sei que
consegue escutar.
Quando o vídeo termina, ela continua voltada para a tela.
— Essa música é linda.
— Obrigado. — Levanto seu queixo para que se vire para mim. — Está
tudo bem?
— Sim, muito bem. Você tem um dom, Harry.
— Obrigado. De novo. — Dou uma pequena risada, mas sinto que a
energia entre nós se alterou. Ainda não sei se é algo positivo ou não. — Essa é a
música que achei que você estava cantarolando. Mas acho que não tinha como
você conhecer mesmo, né? Meu ouvido devia estar tão desnorteado quanto o
resto de mim.
— Você estava desnorteado?
— Qualquer um que tem dois olhos e você no seu campo de visão fica
desnorteado, Alice.
Ela balança a cabeça, desmerecendo meu comentário como se eu estivesse
falando alguma bobagem. Mal sabe ela o quanto eu tenho convicção de cada
palavra.
Nossos olhares ficam presos um no outro até que o celular dela toca na
mesa. Alice vira a tela para baixo e acho que não consigo esconder o
questionamento no meu rosto.
— É do trabalho. Está na minha hora de ir. — Alice inspira fundo. —
Infelizmente.
Nós caminhamos de mãos dadas até a entrada do Forte. Ela pede um Uber
e se oferece para me deixar no hotel antes de seguir para o trabalho. Quero
aproveitar qualquer segundo que possa ter ao seu lado, entretanto ela já está
atrasada por passar a manhã comigo, não quero atrapalhar mais. Além disso, o
dia está lindo, então decido caminhar.
Coloco as mãos no rosto de Alice e mordo aquele lábio que me atiçava,
antes de aprofundar nosso beijo de despedida.
— Quando posso te ver de novo? — pergunto sem afastar meu rosto do
dela.
— Você quer me ver de novo?
Ela tem dúvidas? Eu me distancio o suficiente para poder olhar em seus
olhos.
— Por que não iria querer?
— Não sei…
Algo triste passa pelo seu semblante e eu preciso arrancar rápido isso dali.
Não consigo imaginar por que iria pensar que não gostaria de estar com ela,
mas preciso acabar com qualquer dúvida que tenha.
— Alice, as últimas vinte e quatro horas foram as melhores que tive em
muito tempo. Talvez até que eu já tenha tido na vida. Não é questão de querer
te ver de novo. Eu preciso te ver de novo.
Seu rosto volta a brilhar como antes e eu sorrio satisfeito. Sua boca
acompanha o movimento da minha e nos beijamos mais uma vez.
Nós nos separamos quando uma buzina toca do nosso lado.
— É o meu carro. — Ela me dá um beijo de leve. — Me manda mensagem
se quiser fazer algo amanhã. Uns caras chatos mandaram umas alterações que
eu preciso fazer no simulador, então hoje não vou conseguir, mas acho que até
amanhã já terminei.
O comentário sobre os “chatos” é seguido de uma piscadinha de olho.
Quando Liam faz isso, tenho vontade de socar meu amigo, no entanto, agora
quero fechar a porta do carro e pedir para ela não ir embora.
— Pode apostar.
Alice entra no carro e parte. Eu pego meu celular.
Harry:
Jantar amanhã. A hora que você conseguir terminar os ajustes dos gringos malas. 😉

Ela responde pouquíssimo tempo depois.

Alice:
Isso não pareceu uma pergunta. Mas entendo que o ponto de interrogação possa ter
ficado perdido na tradução e vou aceitar.

Harry:
Só não foi pergunta por que eu já sabia qual seria a sua resposta.

Alice:
Que convencido! A sua sorte é que gosto de você, então vou relevar.

Harry:
Sou muito sortudo mesmo.

Releio a sua última mensagem e volto a digitar. Aperto para enviar e sigo
pela orla me sentindo com três metros de altura.

Harry:
Também gosto de você.
E u sou uma péssima pessoa.
Não bastava eu ter criado um perfil falso para causar ciúmes no Rafael.
Não bastava eu ter deixado Helô se passar pelo sósia imaginário de Harry.
Não bastava eu ter permitido que ela mobilizasse toda uma turma de
psicologia para servir à minha loucura.
Eu ainda precisava usar o que aprendi com o perfil do Harry para chamar
sua atenção na cafeteria.
Sou uma mentirosa de marca maior, como diria minha mãe. Se bem que,
tecnicamente, eu não menti agora. Fiz questão de não falar se conhecia ou não
a música, só tecendo elogios para as habilidades musicais de Harry, que são
realmente inquestionáveis.
E, quando eu achava que meu passado de louca não ia mais afetar o nosso
encontro, o meu celular tocou e no visor apareceu o rosto de Harry com o
nome “Fernando” na tela. Nunca me odiei tanto quanto naquela hora. E só
piorou depois da mensagem dele admitindo que gosta de mim.
Harry revelou no jantar que já me conhecia. Ele está se deixando levar pelo
que a gente está vivendo. Enquanto eu fico escondendo a verdade, ao mesmo
tempo em que não consigo fazer meu coração parar de se envolver.
Não posso me deixar levar. Não posso porque não quero que nossa relação
seja baseada em mentiras, e, se eu permitir que a gente se aprofunde, se ele
deixar de ser só o cara que vou pegar durante duas semanas, é exatamente isso
que a gente vai ser: uma mentira.
É isso. Vamos ser só um caso de poucos dias. Ele vai voltar para a
Inglaterra, em breve, não tem como ser mais do que isso. Nesse tempo, eu
preciso fazer o que for necessário para que ele não descubra o que fiz e, depois
disso, cada um vai para o seu canto e eu posso seguir sendo louca sozinha.
Assim que chego na minha baia, pego o celular e troco as informações de
Helô para que volte a ser minha amiga esotérica e deixe de ser Fernando
Williams. Esse é o primeiro passo para o plano que estou chamando de “Nada
Vai Atrapalhar Minha Pegação Com Harry”. O segundo passo, eu vou colocar
em prática na reunião que tenho em dez minutos com Raquel e Rafael.
— Oi. — Eu tiro o foco do meu celular e levanto a cabeça, sendo
surpreendida por Vanessa. Ela está com um braço apoiado na parede da minha
baia e, pela maneira como mexe a boca, acho que está mordendo a bochecha.
— Posso falar com você um segundo?
— Claro.
— Podemos ir para a copa?
Vanessa olha por cima do ombro, na direção da baia de Rafael. Ele está se
levantando para ir para a sala de reunião, mas minha baia fica no meio do
andar, então, mesmo sem ele por perto, não teríamos privacidade.
Eu a sigo pelo pequeno corredor que leva à copa. Ela fecha a porta atrás de
nós. Me pergunto se agora é o momento em que ela surta e me assassina com a
faca que está suja de requeijão na pia.
— Eu queria te pedir desculpas.
Okay… Não estava esperando por isso. Acho que nada de assassinato à la
cream cheese então.
— Desculpas? Pelo quê?
— Eu e Rafael terminamos anteontem e ele me contou que estava com
você pouco tempo antes. Quero que saiba que se eu tivesse alguma ideia disso,
jamais teria falado para você sobre nosso namoro e sobre como estava feliz. Eu
não sou esse tipo de pessoa e passei o dia ontem péssima por não conseguir te
pedir perdão, mas, como você estava tão ocupada, não queria te atrapalhar,
atrasar o seu trabalho e depois ter que pedir desculpas por isso também. Achei
melhor conversar com você hoje, antes do redemoinho de reuniões que te
espera começar.
Deus, essa mulher é uma fofa. Agora que não sou mais uma pessoa
obsessiva, ciumenta e rancorosa, consigo apreciar isso.
— Não imaginei que você estivesse fazendo de propósito.
Ela se apoia na bancada da pia, em sinal de alívio, sem perceber que sua
saia branca está absorvendo a água do mármore molhado. A marca começa a
expandir e é possível ver o contorno da calcinha rosa clara que ela está usando.
— Você não sabe como fico bem ouvindo isso.
Essa cena me faz refletir sobre Vanessa: será que ela é tão humilhada pela
vida quanto eu? Ela pediu um cara que ainda estava ligado em outra em
namoro; o relacionamento dura dias e ele termina falando que quer voltar para
a ex. Ela corre para pedir perdão para a tal da ex porque só quer ser uma pessoa
boa e ainda termina com a saia molhada e a calcinha exposta.
Imediatamente, tiro meu suéter e entrego para ela.
— Aqui. Você molhou a saia, amarra isso na cintura.
Vanessa olha para a transparência antes de aceitar meu suéter.
— Ai, Alice. Muito obrigada! Depois de tudo que eu fiz, ainda me ajuda?
Você é tão legal.
— Não, nem um pouco. Mas você é e não merece andar com a calcinha
aparecendo. A menos que você queira, nesse caso, nenhum julgamento da
minha parte.
Ela dá uma risada sincera.
— Acho que está cedo. Vamos deixar as transparências para de noite.
Gente boa e engraçada. Consigo ver o que Rafael enxergou nela e sinto
uma pontada de pena e culpa por não ter dado certo entre eles.
Saímos da copa e eu passo na minha mesa para pegar o meu tablet antes de
seguir para a sala de reunião. Falar com a Vanessa me fez sentir um pouco pior
sobre o fato de eu não ser uma pessoa boa, mas vou deixar para chorar sobre
isso com a Helô em outro momento. Agora preciso continuar com o meu
plano “Que Esqueci O Nome, Mas Tem No Título Algo Sobre Pegar O Harry”
para fazer com que ele não descubra que sou uma sociopata.
Cumprimento Raquel e Rafael quando abro a porta e me sento ao lado
dele. Raquel está terminando de abrir o simulador na TV.
— Hoje de manhã, já dei uma olhada nos ajustes que vocês fizeram ontem.
Acho que está quase pronto, só vi umas questões de correção de cor nas
transições de cena.
— Eu tinha deixado para fazer esse tipo de ajuste depois que você aprovasse
para não ter que refazer se precisássemos mudar algo.
— Maravilha, Alice. Imaginei que fosse isso mesmo. Nesse caso, está tudo
certo. Falei com a organizadora do evento e ela disse que o telão vai ficar na
entrada do centro de convenções. Vocês vão estar perto, em uma cabine, de lá
conseguirão ver o telão por inteiro para poderem intervir no caso de algum
problema.
O maior problema sendo Rafael e Harry em um mesmo lugar.
— Raquel — interrompe o Rafael. — Eu acabei de começar a estruturação
do jogo de celular do canal infantil, mas estou encontrando alguns problemas.
Não queria atrasar a entrega por causa da semana do meio ambiente. Alguém
pode ficar com isso enquanto estamos lá?
Obrigada pela deixa, Rafael! Se eu não tivesse já superado a nossa relação
tóxica, era capaz de te dar um beijo. Na bochecha, claro.
— Hum, verdade — responde Raquel. — Não podemos atrasar esse de
jeito nenhum. Vou pedir para a Jéssica e o Luiz assumirem suas funções por
aqui nesse período.
— Eu estava pensando — interrompo —, se der algum problema, vai ser
algo técnico. Como já estarei lá acompanhando, o que acham de eu ir sozinha?
Assim o Rafael pode ir tocando o trabalho dele e só o meu precisa ser
encaminhado para alguém. A menos que você queira ir, Rafael.
— Não, concordo com você. Posso ficar se a Raquel não se importar.
— Em eventos, sempre gosto de mandar a dupla responsável caso surja
algum questionamento além dos problemas técnicos. Mas acho que Alice
consegue responder pelo projeto.
— Consegue sim — ele confirma.
— Então não vejo problemas. Ótima ideia, Alice. Faremos assim. Você vai
e Rafael segue por aqui. Luiz pode tocar o jogo do canal nesse estágio inicial
com você, Rafael.
Segundo passo do plano “De Nome Gigante E Impossível De Lembrar”
finalizado. Sem Rafael no evento, as chances de ele encontrar Harry são nulas.
Uma pontada de culpa me atravessa, entretanto, eu a afogo com pensamentos
reconfortantes. Harry vai ficar aqui por pouco tempo, não temos futuro, só
temos o agora. E eu preciso do agora com ele.

Helô colocou uma playlist dos Beatles para me fazer entrar no clima de um
encontro com um inglês. Achei desnecessário na hora, mas, enquanto eu grito
oh, darling! e experimento todo o meu armário, confesso que a trilha sonora
está ajudando.
— Você não é uma péssima pessoa — ela diz, voltando ao meu ataque de
nervos que estava a toda antes de essa música começar. — Equivocada talvez
seja uma palavra melhor.
— Nossa, obrigada.
Assim que Helô chegou aqui em casa, contei para ela tudo que se passou
ontem: desde as desculpas de Vanessa até meu plano para manter Rafael
afastado do Harry. Ela ficou em silêncio durante o meu desabafo, apesar de não
ter conseguido evitar algumas levantadas julgadoras de sobrancelha.
— Você não fez nada contra a Vanessa; pare de se martirizar com isso! Na
verdade, você nem fez nada diretamente para o Rafael também. Se ele estava de
olho nas suas redes e a chegada de Fernando motivou o término com ela, é
porque ele não tinha te esquecido mesmo. O Rafael tem problemas próprios
para lidar e você não é a responsável por eles. Supera esse sentimento de culpa
infundada e foca suas forças onde você realmente tem culpa.
— Harry.
— Bingo.
Me jogo na minha cama e aperto o travesseiro contra o meu rosto para
abafar um grito.
— Essa é a reação correta. — Helô comenta enquanto a ouço movimentar
alguns cabides no armário. Tiro o travesseiro do rosto e me viro para ela.
— Como eu posso seguir saindo com ele sabendo que o nosso começo foi
uma mentira?
Ela expira fundo e se senta na ponta da cama, dobrando um vestido verde
sobre o seu colo.
— No começo de qualquer relacionamento a gente mente. Colocamos
uma persona que consideramos ideal na esperança de mostrar os nossos
melhores ângulos para a câmera do outro. Só com o tempo vamos derrubando
as barreiras em volta do nosso peito e mostrando todo o Photoshop que
estávamos aplicando.
Às vezes eu me esqueço de como Helô pode ser profunda. Ela vive me
mostrando uma faceta cínica, mas, em momentos como este, vejo como minha
amiga tem paredes próprias que só derruba para mim.
— A questão aqui — ela continua —, é que você usou informações
privilegiadas para criar a sua persona. O que você precisa se perguntar é se a
relação de vocês vai durar tempo suficiente para você tirar o Photoshop.
— Não tem como, Helô. Ele mora do outro lado do mundo.
— Ele mora no Japão? — Taco o travesseiro em sua direção e ela o pega no
ar, rindo. — Alice, se quiser, você pode ter um relacionamento à distância. Vai
ser um saco e as chances de término são grandes, mas acho que você está se
antecipando. Vocês se conhecem há três dias! Dá uma chance para vocês sem
ficar pensando tão longe.
Observo o ventilador de teto desligado pensando nas palavras de Helô. Dar
uma chance, mas sem ficar “noiada” com o futuro.
— Eu posso fazer isso.
— Claro que pode!
— Então, eu continuo mentindo.
— Não foi o que eu disse.
— Mas também não foi o que não disse.
— Eu nem sei mais o que você está falando. Só sei que ele vai estar aqui em
vinte minutos e até agora a gente decidiu que você não vai vestir a jaqueta de
couro que usou para ir de Cher dos anos 80 na festa à fantasia do Antoine.
— Antoaim? — tento repetir, assassinando o sotaque francês. — Você quer
dizer a festa do Antônio?
— Não mais.
— Como assim “não mais”?
— Ele passou três semanas na França e ficou com um cara que falava o
nome dele assim. Então, a partir de agora, quer ser chamado de Antoine. — ela
fala o nome abrindo a boca com um floreio.
Antônio, desculpe, Antoine, é amigo de infância da Helô. E toda semana
ele traz uma novidade dessas. A cada novo namorado, vem uma tatuagem
nova, um piercing em um lugar que não dá para ver com roupas, uma cor de
cabelo diferente e, aparentemente, uma nova maneira de pronunciar seu nome.
E, como ele é gato, namorado é o que não falta.
Imagino que, se Rafael não o tivesse conhecido naquela festa, eu podia ter
fingido que Antoine era o meu namorado e nada disso teria acontecido.
— Por falar em Entuany, — Helô contrai o rosto com a minha contínua
vontade de arrasar a pronúncia. — Você falou para ele do nosso projetinho
chamado Fernando?
— Claro.
— E o que ele disse?
Pego o vestido verde que Helô tinha deixado sobre a cama e começo a
trocar de roupa. O tecido é grosso, tem manga três quartos, é justo na cintura e
folgado nos quadris, indo até os joelhos. Com meu tênis de cano alto preto, vai
ficar bom para esse tempo um pouco mais frio.
— Ele riu e depois chorou. Riu porque amou a insanidade da história toda
e chorou por não estar com a gente para ajudar a fazer o perfil. Disse que podia
até sentir o gosto das caipirinhas perdidas.
Como eu pensei, não me ajuda em nada.
Depois de pronta, vejo que Harry me mandou uma mensagem para avisar
que estava esperando no carro, na frente do prédio. Fecho a porta e desço com
Helô. No elevador, me encosto contra o espelho no fundo.
— Talvez seja melhor contar logo para ele. Se eu contar, posso destruir
minhas chances de aproveitar esses dias ao seu lado. Mas, se não contar, não
teremos chance de ter nada além disso. — Aguardo uma resposta, mas Helô
não diz nada. — Você quer conhecer o Harry? — pergunto quando chegamos
na portaria.
— Outro dia.
Nunca duas palavras tiveram tanto significado. Tudo depende desta noite.
Se eu decidir contar e ele não quiser mais me ver depois, não haverá outro dia.
Me despeço de Helô, entro no carro e me dou conta de que não estava
preparada para ver Harry. Seu cabelo ligeiramente molhado; a sombra da barba
de fim de dia; a camisa de botão preta solta na sua cintura, mas agarrada aos
seus bíceps; seu jeans preto folgado nas suas pernas.
Sim, eu estou babando.
No entanto, quando termino de estudar cada centímetro do seu corpo,
percebo que ele estava me analisando também.
— É, você continua linda.
— Posso dizer o mesmo de você.
Ele segura o meu rosto com ambas as mãos — como eu amo quando ele
faz isso! — E me beija de leve.
— Aonde nós vamos? — pergunta o motorista antes que a gente se
empolgue no seu banco de trás.
Dou o nome do restaurante vegano que vou com Helô ocasionalmente. Ele
fica perto e tem um clima mais intimista, que pode ser romântico para esta
noite.
No fundo, sei o que preciso fazer. Porém, isso não quer dizer que não possa
tentar ter uma noite especial antes.
E stamos sentados na área externa do restaurante, onde o toldo que nos cobre e
as tochas espalhadas ao nosso redor mantêm o frio longe e o ambiente
aconchegante. Os dois hambúrgueres veganos que pedimos acabaram de
chegar. É estranho estar em um encontro, de camisa social, e comer
hambúrguer, mas Alice insistiu que o daqui era ótimo e eu precisava
experimentar.
Para acompanhar, pedimos duas cervejas. Outra novidade para mim em
encontros: não pedir vinho ou algum drinque. Melanie sempre queria um
drinque. Quanto mais guarda-chuvas e cores, melhor. Tudo com ela era
extravagante e pomposo, tão diferente de Alice.
Afasto o passado para dar espaço ao presente.
— Como você conhece esse lugar? Não parece ser parte de um roteiro
turístico.
— Minha amiga Helô, lembra? Ela é vegana e a gente fica revirando a
cidade em busca de restaurantes onde ela possa comer algo que vá além de
salada e batata frita.
— Acho que batata é a comida salva-vidas de qualquer vegetariano, não
importa o lugar do mundo. É a minha grande companheira pelos pubs de
Londres.
Alice desvia o olhar e tenta esconder um sorriso.
— Algo errado?
Ela se volta para mim, mordendo o lábio inferior. Abre a boca como se
fosse me responder, mas balança a cabeça, desistindo.
— Não é nada. Esquece.
— É alguma coisa. Me conta — pergunto, dando mais uma mordida no
hambúrguer. É realmente muito bom.
Ela coloca o seu hambúrguer apoiado no prato e passa uma mão na outra,
tirando farelos do pão.
— Promete não rir?
— Não.
Seu sorriso se alarga e ela continua.
— É que você tem um sotaque quando fala português que já é
incrivelmente sexy, mas agora falou pub e eu me dei conta de que é inglês.
Assim, eu sei que você é inglês, mas não estava psicologicamente preparada
para te ouvir falando inglês.
— E você gostou?
— Sim, muito. E pub é uma coisa britânica. Foi uma boa primeira palavra.
— Você quer mais?
— Como assim?
— Quer que eu fale mais? Coisas bem britânicas?
— Está bem… — ela responde com um ar de dúvida.
— This burger is bloody brilliant. — Sua expressão de deleite me instiga a
continuar. — I’m gobsmacked.
— Agora acho que você está inventando palavra.
— I’m chuffed that I met you; chuffed to bits.
— Eu não tenho ideia do que essa expressão significa, mas… Uau!
— Você continua achando meu sotaque sexy então?
— Entre outras coisas — ela responde. Seus olhos continuam em mim,
mas se movimentam na direção da minha boca.
— Que coisas? — pergunto. Quero deixá-la encabulada.
Para minha surpresa, Alice não se cala. Ela se inclina na mesa e abaixa o
tom, deixando sua voz aveludada.
— A cor chocolate do seu olhar. A força do seu queixo. A sensação nos
meus dedos quando toco o seu rosto e sinto a fina camada de barba por fazer.
— Ela estica o braço sobre a mesa para arrastar o seu indicador sobre a minha
mão. — A segurança que sinto quando me envolve com seu abraço. O calor
que a sua mão cria quando segura o meu rosto para me beijar. Um calor que
me faz imaginar essa mão em outras partes do meu corpo.
Minha calça jeans fica imediatamente apertada.
— Gobsmacked indeed.

Passo o resto do jantar tentando me recuperar da confissão de Alice sobre


tudo que acha sexy em mim.
Isso sim foi sexy.
Minha percepção dela até agora me mostrava uma mulher forte, mas às
vezes um pouco insegura. Colocar canela no meu latte e aceitar jantar no meu
hotel foram ações da mulher forte. A forma como ficou apreensiva anteontem,
quando chegou ao restaurante, me revelou um pouco dessa insegurança.
Ontem de manhã, em breves momentos, também fui capaz de vislumbrar isso.
Não sei exatamente o que causa essa apreensão, no entanto, no que depender
de mim, quero fazer com que ela se esqueça do que quer que seja responsável
por essas mudanças.
Gosto quando demonstra confiança, como fez agora.
Ouvir o que pensa de mim tornou impossível me concentrar em qualquer
outra coisa que não fosse ela. O fim do meu hambúrguer passou despercebido
pela minha boca. A cerveja podia estar gelada ou quente. O restaurante podia
estar pegando fogo. Nada disso importaria, ficar sentado aqui com Alice é onde
quero estar.
Eu deveria ter mais medo disso, não?
Saí da Inglaterra com todo um discurso para Liam sobre como não iria me
envolver com ninguém aqui, sobre como só ia focar na banda e no trabalho.
Como cheguei aqui? Como saí de “não quero ninguém agora” para “quero
desesperadamente estar com esta mulher”?
Não sei.
Porém, é algo orgânico e inevitável. Seus contornos naquela cabine foram
como um farol na escuridão, chamando-me para a segurança da terra firme. É
assim que me sinto quando estou com ela: estive em alto-mar a vida toda,
suscetível a qualquer adversidade do oceano, e agora, finalmente, estou pisando
em terra firme.
Uma terra extremamente sensual e com quadris que imploram pelos meus
dedos.
— Você está pensando no quê?
É melhor não revelar os detalhes.
— Só no quanto estou feliz.
A resposta parece satisfazê-la.
— Feliz de estar no Rio?
— Também.
Ela sorri, mas logo muda o foco da conversa.
— Já eu estava pensando no que podemos fazer neste fim de semana. Acho
melhor nos mantermos nos pontos turísticos de dia e de noite podemos sair do
roteiro e explorar lugares que não são para gringo ver.
— Vamos passar todos os dias e as noites juntos? — Ela afasta o olhar e
demonstra a mesma expressão de dúvida que fez ontem de manhã, como se ela
estivesse passando de alguma linha imaginária que está traçada entre a gente.
Preciso acabar com essa insegurança. — Alice. — Estico o braço para levantar
o seu queixo. — Nada me deixaria mais feliz. Só perguntei por dois motivos.
Um é que no domingo eu tenho uma reunião no AquaRio.
— Okay, e qual é o outro?
— O outro é que não consigo acreditar que uma mulher como você iria
perder o seu tempo com alguém como eu.
Ela parece se divertir com a minha resposta. Não foi a reação que esperava,
mas aceito qualquer uma que tire as nuvens do seu rosto.
— Alguém como você? Tem se olhado no espelho recentemente?
— Ah, então você só está interessada no meu corpo?
— Também.
Alice vira o rosto e beija a palma da minha mão, sem tirar os olhos de mim.
Quando encontro a Alice que existe por trás de toda a incerteza, de toda a
dúvida, não consigo me controlar mais.
Precisamos pular a sobremesa.
Faço o sinal universal para pedir a conta com a mão livre, mas ela me solta
assim que a garçonete se afasta.
Eu entendi errado? Ela não quer isso?
— Vou pedir um carro para a gente — responde, lendo a pergunta na
minha cabeça enquanto pega o celular.
Nossa vontade de termos um ao outro não consegue esperar chegarmos ao
nosso destino. Ela me beija com paixão, no banco traseiro do carro. Suas mãos
acariciam minha pele por debaixo da minha camisa, me deixando louco pelo
contato.
Agradeço aos céus pelo restaurante ser perto do meu hotel. Estava sendo
muito difícil não dar ao motorista um show pornô não solicitado.
Saio primeiro do carro e seguro a sua mão, trazendo seu corpo para perto
enquanto tento me controlar para não correr. O elevador panorâmico se
movimenta com a velocidade de uma lesma e minha vontade é tacá-la contra o
vidro e tomá-la ali mesmo.
Finalmente, chegamos no quarto e Alice passa por mim enquanto eu fecho
a porta. Quando me viro, ela está caminhando na direção da janela.
— Que vista incrível!
Me aproximo por trás. Passo uma mão pela sua barriga, puxando-a para
perto. Com a outra, tiro seu cabelo de cima do ombro e beijo seu pescoço.
— Concordo.
Alice vira o rosto para o lado, abrindo espaço para a minha boca. Começo a
traçar um caminho em seu pescoço com a minha língua, até chegar no lóbulo
de sua orelha. Mordo delicadamente, fazendo com que ela arqueje. Aperto
mais seu corpo, colando suas costas no meu peito. Sei o momento exato em
que sente o volume na minha calça pela forma como relaxa em meus braços.
Abaixo a mão, acariciando seu corpo enquanto desço até a barra do seu
vestido. Levanto a saia, passando os dedos pelas suas coxas. Encontro a sua
calcinha. Mal a toquei e ela já está encharcada para mim.
— Você está tão pronta, Alice — falo ao seu ouvido.
Continuo avançando em seu pescoço, enquanto meus dedos passam pelo
topo da calcinha e encontram a sua pele. Ela tem um pouco de pelo cobrindo a
parte de cima do seu sexo, mas seus lábios são lisos e quentes. Toco seu clitóris,
causando um gemido na sua garganta. Fico um pouco ali, massageando
delicadamente antes de caminhar com a mão mais para baixo e deixar um dedo
deslizar para dentro de Alice. Ela joga a cabeça para trás, apoiando no meu
ombro, enquanto eu uso o polegar para estimular o clitóris. Removo e reinsiro,
em movimentos calculados e lentos, o dedo que está nela. Uso minha outra
mão para virar o seu rosto para mim e a beijo; minha língua entra em contato
com a dela quase imediatamente.
Ela afasta a boca, ofegante.
— Quero te sentir.
— Tudo no seu devido tempo. Preciso te ver gozar antes, love.
Chamá-la de love parece ter sido o que ela precisava para se entregar ao seu
prazer. Alice fecha os olhos e joga a cabeça mais para trás. Ela levanta uma das
mãos e puxa o meu cabelo enquanto sons do seu orgasmo escapam dos seus
lábios.
É o som mais encantador que eu já ouvi.
Tenho que ouvir de novo.
A inda estou tonta com o fim do meu orgasmo quando Harry tira sua mão de
mim. Me sinto imediatamente vazia. Ele abre o zíper do meu vestido e o
empurra delicadamente dos meus ombros, fazendo com que crie um círculo ao
redor dos meus pés ao cair no chão.
Era para eu ter contado tudo. Era para o jantar ter se encerrado com ele
sabendo exatamente como eu conhecia sua música e que criei o perfil falso com
a sua foto. Era para agora ele estar me dizendo se aceitava seguir comigo, ou
me chamando de louca e falando que ligaria para a polícia se eu me
aproximasse novamente.
Não era para eu ter falado as coisas que falei no restaurante. Nunca fui tão
direta, tão transparente sobre meu tesão em um homem. Fico até com um
pouco de pena do Rafael, porque, se o nosso sexo era bom, era porque ele fazia
todo o trabalho. Mas com Harry eu tenho vontade de explorar meu desejo, de
ser sincera sobre como ele faz eu me sentir.
Em um segundo, eu estava falando sobre ter a mão dele em outras partes
do meu corpo e em outro estávamos nesse quarto de hotel com ele fazendo
exatamente o que pedi, me tocando de um jeito que me fez querer me entregar
mais. Querer tê-lo mais.
E agora o momento para revelações passou.
Harry acaricia as minhas costas, encontrando o fecho do meu sutiã branco
de renda. Quase nunca estou com lingerie e muito menos um sutiã que
combine com a calcinha; tenho que agradecer a Helô por me lembrar disso
quando escolhíamos a minha roupa. Acho que as palavras exatas dela foram
“não existe chance de você não dar hoje; coloca a lingerie”. Eu não estava tão
certa quanto ela de que hoje seria o dia, ainda mais considerando o que
pretendia contar, mas não seria a primeira vez que estou errada sobre alguma
coisa.
Ele solta o fecho sem demora, fazendo minha mente voltar para o seu
toque ao arrastar as alças até que a peça se junte ao vestido no chão.
Seus beijos tocam as minhas costas, meu ombro e meu pescoço enquanto
ele caminha até parar de frente para mim. Meus peitos cabem perfeitamente
nas suas mãos. Ele toca em um, enquanto desce pelo meu corpo, levando seus
lábios até o outro mamilo, mordendo delicadamente e me deixando louca. Eu
ainda estou de calcinha e tênis, e já tive um orgasmo. Mas ele está
completamente vestido. Tem algo extremamente sensual em estar sendo
despida, enquanto ele permanece com suas roupas. Ele me toca com adoração,
como se estivesse idolatrando o meu corpo. Seus beijos descem pela minha
pele. Suas mãos encontram as laterais da minha calcinha e ele leva o fino tecido
até meus pés. Harry dá um beijo suave na pele que continua sensível do
orgasmo e, sorrindo, olha para mim. Esse gesto me excita muito.
Ajoelhado no chão, ele desfaz os cadarços e tira meu tênis. Sua calma é um
contraste direto para como eu me sinto. Quero jogá-lo na cama, rasgar a sua
roupa, tomar sua ereção na minha boca. No entanto, eu sigo seu ritmo,
permitindo que ele tome as rédeas do nosso prazer.
Harry se levanta, deixando suas mãos tatearem meu corpo, sentindo cada
pedaço meu. Uma para na minha cintura e a outra se entranha nos meus
cabelos; ele puxa um pouco os fios, me fazendo tremer.
— Tão linda… — ele murmura antes de me beijar.
Aproveito o momento para tocar o seu corpo, sentir seus bíceps e suas
costas. Seus músculos se movimentam enquanto ele abaixa as mãos para
apertar minha bunda. Harry me segura por ela, me elevando. Minhas pernas
automaticamente o abraçam e ele me carrega para a cama. Sinto sua ereção na
calça, encaixando perfeitamente em mim e tocando o meu clitóris.
Harry me deita e solta nosso beijo ao levantar o tronco, deixando meus
quadris entre seus joelhos. Leva suas mãos aos botões da camisa e começa a
desfazê-los um a um, sem perder o contato visual.
É a primeira vez que vejo o peito de Harry e ele não me decepciona. Devia
ser ilegal um homem com esse rosto ter esse corpo. Sempre me imaginei como
uma pessoa que não gosta de pelos no peito de um homem, mas não consigo
imaginar Harry sem a fina camada que cobre os seus músculos. Combina com
o ar alfa que ele exala.
Harry leva a mão até o cinto e abre a fivela. Depois o botão da calça e o
zíper. Ele se deita ao meu lado para tirar a calça. Não me lembro de quando ele
tirou os sapatos e, sinceramente, não me importo. Preciso dele em mim quanto
antes.
Ele arrasta a cueca boxer preta e sua ereção salta para fora em um
movimento brusco. Sei que estou deixando que ele guie, mas não consigo me
conter. Preciso tocá-lo, senti-lo com a mão, com a boca, com tudo que ele
quiser de mim.
Viro de lado e toco no seu pau.
— Alice… — ele fala baixo. Sua mão cobre a minha. Por um segundo,
acho que vai me tirar dali, mas me surpreende apertando mais forte. Eu o
aperto como deseja e ele tira a mão, gemendo e aumentando o meu desejo de
tê-lo dentro de mim.
Movimento minha mão para cima e para baixo, enquanto ele observa.
Começo a descer meu corpo, querendo colocá-lo na boca, mas ele me para.
— Se você fizer isso, eu não vou durar.
— Quero sentir seu gosto — digo, ainda com a mão apertando. Nunca
falei nada parecido para ninguém. Nunca quis tanto algo quanto eu o quero.
Isso me assusta e me excita. E pela sua reação, ele gosta.
— Bloody hell. — Se ele continuar com as frases em inglês, eu vou gozar
mesmo sem ele me tocar.
Harry inverte nossa posição e se move sobre mim, segurando meus braços
ao lado da minha cabeça.
— Temos tempo, love.
No fundo da minha mente, penso que não temos. Ele vai embora em
questão de dias. Mas me forço a deixar esse pensamento de lado e a aproveitar
o momento. Não vou ficar ansiosa com algo que ainda não aconteceu. Vou
aproveitar o que posso ver e o que posso sentir agora; vou aproveitar o Harry.
Ele se estica na direção da sua calça e puxa a carteira do bolso traseiro. Pega
uma camisinha e rasga a embalagem com os dentes. Depois de colocá-la, se
deita sobre mim, usando seu joelho para abrir minhas pernas. Com uma das
mãos, ele posiciona a ponta do seu pau contra a minha entrada. Mordo o lábio
na expectativa. Seu olhar desvia para a minha boca e depois volta para meus
olhos, antes de avançar.
Ao contrário de tudo até agora, ele não perde tempo e me preenche o mais
rápido que pode. Assim que entra, Harry fica um momento parado, mantendo
nosso olhar. Ele é tão grosso que consigo senti-lo em cada centímetro do meu
centro.
— Tão apertada… Feita para mim — ele diz, antes de começar a se mover.
Ele entra e sai de mim em movimentos controlados. De repente, ele passa
um dos seus braços por baixo da minha perna esquerda, levantando o meu
joelho. A mudança de posição faz seu pau ir mais fundo. Arqueio as costas,
sentindo quando alcança um novo ponto de prazer.
Seu ritmo se torna mais frenético. Eu toco seu braço e seu peito, me
deliciando com tê-lo ao meu redor e em mim. Meus dedos dos pés se curvam
sentindo a pressão que começa a se criar no meu ventre. Com seu nome em
meus lábios, tremo ao sentir a explosão emanar por todo o meu corpo.
Ele espera o meu orgasmo terminar para ir em busca do seu. As veias no
seu pescoço pulsam enquanto ele geme, se abaixando novamente sobre o meu
corpo e apoiando a testa na minha, esgotado.
Harry se deita na cama, tira a camisinha, dá um nó e a joga no chão ao seu
lado, antes de me puxar para cima do seu peito.
Seus pelos contra o meu rosto e entre meus dedos me fazem sentir segura.
Sua mão acariciando minhas costas faz eu me sentir querida.
Neste espaço, entre essas quatro paredes, não existe perfil falso, não existe
Londres, não existe conferência. Nosso relógio não está em contagem
regressiva. Entre essas paredes, somos apenas nós. É tudo que preciso.
U ma música preenche os meus ouvidos, tentando me tirar do sonho que eu
estou tendo. O sonho tem cabelos escuros, pele macia e desejo nos olhos. Me
remexo na cama, abraçando mais forte o travesseiro entre os meus braços. Ele
tem cheiro de flor do campo, sol e sal. Abro os olhos e sorrio percebendo que
não, não é um travesseiro. E não era um sonho, foi tudo verdade.
Alice está aqui, deitada na minha cama.
Ontem eu fiz sexo com a mulher que tem deixado minha mente confusa e
a minha ereção em constante estado de alerta. Me sinto estranhamente
possessivo, querendo-a para mim. Não tem lógica, eu sei. Vou embora assim
que a conferência acabar. No entanto, só consigo pensar que finalmente estou
onde deveria.
A música volta a tocar e Alice se movimenta em meus braços. Me dou
conta de que é meu celular e corro para atender, tentando não balançar muito
a cama para evitar que ela acorde. Pego o aparelho na minha calça e me tranco
no banheiro.
É uma videochamada de Liam.
— Eu vou te comprar uma camisa de Natal.
Percebo que estou pelado e sorrio.
— Fique feliz que a câmera não está mais afastada, senão você teria que
gastar dinheiro comprando calças também.
Liam contrai o cenho.
— Por que você está falando baixo?
Dou de ombros, mantendo meu semblante feliz. Não preciso dizer mais
nada. Ele sabia que eu tinha o encontro e ele me conhece o suficiente para não
esperar detalhes.
Liam começa a abrir um sorriso, mas muda a expressão para fechar o rosto
de uma maneira claramente forçada.
— Ah, Olivia! O que foi que eu fiz?
Tenho que controlar a risada, pois, realmente, não quero acordar Alice.
— Liam, não sei se mereço Olivia.
— Como assim?
Expiro forte, passando uma mão no rosto.
— A aposta era para sexo casual. Não tem nada de casual no que aconteceu
aqui, ontem.
— Harry…
— Eu sei, Liam. Eu sei.
— Sabe mesmo?
— Eu vou embora; Alice tem uma vida aqui, eu tenho uma vida aí. E sei
que é cedo. Eu estava chorando não tem nem duas semanas por causa da
Melanie. Sei que temos data de expiração definida e que minha cabeça não
estava em um lugar bom quando a conheci, mas não consigo parar. Não quero
parar.
— Fico feliz por você, irmão — ele diz com sinceridade.
— Você também acha que está cedo demais, não é?
Liam morde o lábio antes de me responder.
— Harry, você sabe que sou a última pessoa que pode julgar alguém por
emendar uma relação em outra, e, realmente, não acredito que o tempo entre as
duas seja a questão. Mas acho que você está no calor do momento. Vale refletir um
pouco, antes de tomar alguma atitude da qual você possa se arrepender depois. Não
quero que você se machuque. Nem você, nem Alice.
A ideia de estar equivocado sobre os meus sentimentos me pega
desprevenido. Ela não é um estepe que estou usando para esquecer Melanie. Sei
que Liam só quer meu bem, mas essa ideia me irrita. Alice merece mais do que
isso.
— Você está errado, Liam. Não é calor do momento.
— Pode ser, mas só quero que pense a respeito antes de definir o próximo passo
de vocês, antes de falar algo que você pode achar que está sentindo.
Ouço um barulho no quarto; Alice deve ter acordado.
— Eu tenho que desligar.
— Claro, vai lá. E Harry?
— Diga.
— Eu estou realmente feliz.
— Obrigado, irmão.
Desligo a chamada e abro a porta. Alice está sentada na beirada da cama, já
colocou seu vestido e agora calça o tênis. Ela levanta a cabeça quando eu entro.
Me recosto no batente e cruzo os braços. Ela engole em seco enquanto
movimenta seu olhar pelo meu corpo. Ontem de noite, eu fiquei vestido e ela,
nua. Agora, invertemos a situação e meu pau imediatamente reage a isso.
— Oi — sua voz sai baixa e rouca.
— Oi — digo, mantendo minha posição.
— Eu tenho que estar no trabalho em duas horas e preciso passar em casa
para tomar um banho e trocar de roupa.
— Se você tomar banho aqui, só vai precisar trocar de roupa. E eu ainda
posso te ajudar a se lavar.
Ela balança a cabeça. Seu ar é mais leve e menos tímido do que estava
instantes antes.
— Se você me “ajudar a me lavar” — ela faz aspas com os dedos para frisar
que entendeu o que eu quis dizer —, eu vou me atrasar ainda mais.
Caminho na sua direção e estico a mão.
— Posso tentar ser rápido, mas não farei promessas que não sei se consigo
cumprir.
Alice balança a cabeça antes de aceitar minha mão e se levantar.
Não quero pensar sobre mais nada. Temos uma semana e meia e eu
pretendo passar cada segundo que não estamos trabalhando dentro de Alice.
Ela se afasta de mim para ligar a água do chuveiro. Leva o braço atrás do
seu corpo e abre o vestido.
É. Ela vai se atrasar.

— Duas videochamadas em dois dias? Quem você matou e precisa de ajuda


escondendo o corpo?
— Bom dia para você também, mãe.
Maria de Fátima é uma mulher linda. Seus sessenta e três anos, e as rugas
de expressão que os acompanham, só fizeram com que ela ganhasse um ar mais
charmoso. E não é apenas a minha opinião. Casado há quarenta anos, meu pai
não consegue tirar as mãos dela.
Embrulha o meu estômago, contudo eles não se importam. Como agora.
— Pai, você pode parar de beijar o pescoço da minha mãe enquanto eu falo
com ela, por favor?
Ele levanta um pouco a cabeça, mantendo o olhar fixo na minha mãe e
ignorando a câmera.
— Eu queria te dizer que isso é possível, Harry, mas sua mãe acabou de sair do
banho e colocar aquele perfume que ela sabe que me deixa louco. Então, a culpa é
dela por cheirar tão bem; reclame com ela.
Ele volta com os beijos, fazendo-a rir.
— Isso, culpe a vítima, Jack. Vamos ver se você consegue defender seu caso no
tribunal.
— Eu ainda estou aqui, gente.
Minha mãe empurra o ombro do meu pai de leve, fingindo revolta.
— Seu filho ia nos contar sobre o crime que cometeu, Jack. Foco, por favor.
— Ah, sim. — Ele finalmente se volta para mim. — Você precisa de dinheiro
para a fiança ou ainda não descobriram?
Eu posso ser guitarrista, ter uma banda e um diploma em biologia
marinha, o que praticamente garante que, pelo menos, em algum momento da
minha vida, eu usei maconha. Porém, estou longe de ser o bad boy que esses
comentários irônicos me fazem parecer.
— Não descobriram ainda e já escondi o corpo. Estamos seguros.
Meu pai passa a mão na testa em um gesto teatral para fingir alívio.
— Viu, Maria? Ele está bem. Agora desliga que preciso terminar de arrancar o
seu perfume com a minha boca.
— Você sabe que, até o Liam aceitar vir jantar, você voltou a ser meu
preferido, — ela diz, ignorando meu pai que bufa ao seu lado. — então imagino
que essa ligação tem algum motivo que não é garantir seu posto no meu coração.
— Aceitar jantar? Ontem foi quinta. Ele não foi aí?
— Não. — Minha mãe abaixa a cabeça. — Ele não podia.
Toda quinta-feira nós jantamos juntos. Não importa se temos trabalho
demais ou se estamos sujos e bêbados no chão da sala, chorando por uma ex, a
gente sempre aparece, Liam principalmente. Depois que perdeu os pais, ele dá
um valor absurdo aos jantares de quinta. Foi assim que, mesmo quando eu
estava na merda, ele me convenceu a ir. “Um dia eles podem não estar mais aqui,
e você vai se arrepender de não ter ido”. Então, onde diabos ele estava ontem?
— Como assim “não podia”? Isso não parece o Liam.
Meus pais se entreolham e eu sei que estão escondendo algo de mim.
— Vocês já se falaram essa semana, filho? — meu pai pergunta.
— Quase todo dia.
Sinto um aperto no peito, pensando em quando nos falamos anteontem.
Ele não parecia bem, mas escondeu o melhor que pôde e imediatamente virou
o assunto para mim. Hoje me ligou já falando do que estava acontecendo
comigo. Ele está focando na minha vida para desviar da dele. Como eu não
percebi antes?
Belo amigo que sou.
— Vou ligar para ele.
— Não, Harry. — minha mãe interrompe. — Ele está bem, só precisa de
tempo para refletir um pouco.
Lembro da nossa ligação logo que cheguei ao Rio. E da expressão da
namorada dele ao me ver sem camisa.
— Danny?
Meus pais balançam a cabeça de leve e eu já tenho todas as respostas de que
preciso.
Mais um relacionamento que deu errado. Mais uma dor sabendo que não
foi dessa vez. Meu amigo não lida bem com isso. No entanto, ao contrário das
outras vezes em que terminou relacionamentos, Liam não está abraçando a
fossa. Ele está fingindo estar bem. E isso, de alguma forma, me parece ainda
pior.
Me sinto mal por ter usado nossos telefonemas para falar da Alice e sobre
como eu estou feliz. Ao mesmo tempo, fico muito agradecido por ter um
amigo que consegue colocar sua dor de lado para me dar conselhos, quando ele
próprio estava precisando de um ombro para consolá-lo.
Por mais que me doa, não vou ligar. Minha mãe está certa; ele precisa de
tempo. Já perdeu o controle de um aspecto de sua vida, então, no que diz
respeito a nós, vou deixá-lo guiar e tentar ser um amigo melhor quando ele
finalmente quiser se abrir.
E stou há cerca de dez minutos olhando para as flores na minha mesa. De um
lado, um buquê lindo de flores do campo com tons de amarelo, rosa, lilás e
vermelho. Ele é alegre, feliz, e deveria representar como eu estou me sentindo
nesse momento, só que ao seu lado eu vejo o outro: o buquê de flores do
campo que a Helô mandou quando se fazia passar por Fernando Williams.
Essas flores já estão sem suas cores vibrantes. Um escritório fechado com
janelas que bloqueiam a entrada dos raios UV, realmente, não é o lugar mais
adequado para manter plantas vivas. No entanto, vejo a morte do buquê como
uma irônica e triste metáfora. Fernando Williams está morto, assim como essas
plantas. Só que a verdade é que ele nunca deveria ter existido.
O que Helô falou sobre eu precisar encerrar a relação faz sentido, contudo
sinto que entrei em um looping de loucura que só acabou nos braços do Harry.
E eu não quero perder isso.
Tenho mais uma semana e três dias de Harry no Brasil. Deveria estar
aproveitando, pensando no que vamos fazer hoje à noite, entretanto as flores
que ele mandou riem de mim, como se soubessem que sou uma fraude tão
grande quanto Fernando Williams.

Obrigado por ontem.


Harry
As mesmas três palavras que Helô me mandou, a mesma floricultura. O
destino tem uma mania escrota de esfregar na minha cara que eu não sou boa o
suficiente para ser feliz e, honestamente, eu estou de saco cheio disso.
Pego as flores velhas e as jogo na lixeira. Verifico que não havia mais água
no vaso — provavelmente evaporou há um bom tempo. Eu realmente sou
péssima cuidando de qualquer coisa viva, não me surpreende minha mãe
nunca ter me deixado ter um cachorro. Viro a minha garrafa no vaso,
enchendo-o antes de colocar o novo buquê dentro.
Imediatamente a mesa ganha um ar mais leve e meu mau-humor se esvai,
indo embora com as plantas destruídas na lixeira.
— Quem é Harry?
Rafael está ao meu lado na baia, segurando o cartão. Considerando que
mal faz quatro dias que eu disse que estava com Fernando, realmente… Quem
é Harry, Alice?
Tiro o cartão da sua mão e levo ao peito, tentando esconder a mensagem,
mas tendo total consciência de que isso é uma idiotice, visto que ele já leu.
— Isso não te diz respeito.
Ele franze o cenho e inclina a cabeça, genuinamente confuso.
— Desculpa, eu só vim te pedir a versão final do simulador. Raquel quer
levar para o Paco validar.
Fico imediatamente apreensiva. Paco Schmidt, nosso insuportável CEO, é
conhecido por não estar satisfeito nunca com nada. Rafael percebe meu medo.
— Raquel garantiu que ele já viu as versões anteriores e aprovou, é só uma
formalidade. Vai dar tudo certo.
— Hoje é sexta, Rafael. Se ele quiser alguma mudança, a gente está ferrado.
Vamos ter que virar o fim de semana.
Não posso perder três dias de Harry. Perco o emprego antes de perder o
Harry. Okay, isso foi dramático, mas me sinto dramática no momento.
— Ele não vai mudar nada, você vai ver.
Seu sorriso é reconfortante. Me lembra o Rafael de antes de toda a nossa
história, me passa segurança e confiança.
Só espero que esteja certo.
Entrego para ele o pendrive com a última versão, rezando para os deuses do
videogame — Mario e Sonic? — para que eu consiga sair daqui, em um
horário decente para me encontrar com Harry.

Mario e Sonic estavam de folga e não ouviram as minhas preces.


Raquel surge na minha baia, quinze minutos antes do fim do expediente,
avisando que o chefe APENAS quer outro simulador feito do zero,
basicamente invertendo tudo que a gente fez: outra cronologia, outra ordem de
biomas, movimentos diferentes dos animais, paleta de cores renovada para as
plantas. O pior é que todos nós sabemos que no fim ele vai com o original,
contudo, como ele é tão metódico, precisa ver o oposto para ter certeza de que
fizemos o que era melhor mesmo.
Depois de uma noite de tanto prazer, tenho que cancelar com Harry. A
vontade de ser uma daquelas pessoas que é herdeira milionária e trabalha
porque é excêntrica é grande. Infelizmente, tirando nascer de novo, não tem
nada que eu possa fazer para mudar isso.
Mando mensagem para Harry avisando. Na mesma hora, o aplicativo
mostra que ele está digitando. E digitando… E digitando… O que ele tanto
digita, meu pai?

Harry:
Okay, eu entendo. Se mudar de ideia, estou aqui.

Demorou tanto para responder isso? Será que ele acha que eu não gostei de
ontem e por isso desisti de encontrá-lo hoje? O dia foi tão corrido que nem
agradeci as flores. É óbvio que ele acha isso.
Alice:
Eu amei as flores. E amei ontem…

Reticências são uma forma de pontuação que não ganha o crédito devido.
Três pontinhos que dizem tanto. Por exemplo, você pode usar para interromper
um pensamento (“Eu não sei…”), para dizer que a outra pessoa é idiota (“Eu
te avisei…”), ou para mostrar que, mesmo no meio do trabalho, você está
pensando sobre um cara metendo em você (exemplo na mensagem acima).

Harry:
Jura? Amou… Tudo?

Olha as reticências aí de novo. Assim ele me mata.

Alice:
Sim. Quero repetir, Harry. Se eu conseguir acabar rápido, te aviso. Mas pelo volume de
trabalho, não vou ter tempo livre até o início do evento.

Harry:
Também quero, Alice. Mais do que tudo.

Enquanto leio a sua última mensagem, imagens da gente no hotel passam


pela minha cabeça. Eu em pé e ele me tocando, seu beijo no meu clitóris
depois do orgasmo, a sensação de estar cheia com ele em mim, o sexo contra os
azulejos do boxe hoje de manhã, seu nome nos meus lábios, todas as vezes que
me fez atingir o prazer.
Estar com Harry foi tão bom. Ele conseguiu ser gentil e forte ao mesmo
tempo, sempre se preocupando em me dar prazer antes de ter o seu e sem
medo de me segurar, de me apertar. Tinha quase um desespero no seu toque.
Uma vontade de estar comigo que fugia de seu controle. E do meu também.
Claro que quero repetir. No entanto, as flores que ainda estão na minha
lixeira me lembram de que não é tão simples assim. Agora que transamos, a
verdade parece uma traição. Como me deixar levar por Harry quando sei que
as mentiras vão doer tanto quanto a verdade?
Entretanto, as mentiras doem só em mim.
Por que contar a verdade quando a única coisa que ela vai fazer é trazer dor
para ele também?

Depois de quase virar a noite na sexta, só me permito uma hora em casa no


sábado para tomar um banho e voltar para a GameStart. O dia é corrido, mas
Rafael concordou comigo que era melhor a gente se matar na sexta e no sábado
para, quem sabe, ter ao menos o domingo. Ele está com um projeto novo e a
semana da conferência começa na segunda; ambos precisamos do descanso. Só
que não conseguimos terminar. Falta pouco, porém ainda vamos precisar usar
boa parte do domingo.
Chego em casa, depois das duas da manhã e só consigo pensar que o Paco
destruiu o meu fim de semana com Harry. Ia levá-lo para fazer todos os
passeios clássicos: Cristo Redentor, Teatro Municipal, Arcos da Lapa,
Maracanã, Jardim Botânico e Museu do Amanhã.
E assim, num piscar de olhos, depois de amanhã começa a conferência e eu
não fiz nada do que tinha planejado.
Tão pouco tempo e tudo jogado no lixo por causa de um CEO que está
precisando de sexo com urgência!
Nossa… Isso daria uma boa comédia romântica.
Balanço a cabeça, afastando qualquer pensamento que una o Paco com
transar para evitar uma ânsia de vômito. Não que ele não seja gato, mas
antipatia e escrotidão não me excitam em nada.
Entro no meu quarto e me sento na poltrona que fica aos pés da cama para
tirar os sapatos. Escuto o meu telefone vibrar na minha bolsa que está no chão,
perto de mim.
A mensagem faz eu me esquecer completamente da minha vontade de
assassinar o meu chefe.
Harry:
Está acordada?

Eu estava exausta até dois segundos atrás, mas agora tudo que mais quero é
ouvir a voz do Harry e aquele sotaque que me derruba.

Alice:
Sim. Você não consegue dormir?

O celular toca na minha mão e atendo na mesma hora.


— Não — ele diz, respondendo a minha mensagem. — Só consigo pensar
em você.
— Alguém já caiu nessa sua lábia?
— Não é lábia. Não te vejo desde sexta de manhã. Só uma palavra no seu
idioma consegue expressar o que estou sentindo, é saudade.
— Saudade… Ou tesão?
Quem diria que a Alice de duas da manhã é uma assanhada?
— Pode ser as duas coisas?
— Pode sim.
Ele dá uma risadinha de leve.
— O que você está fazendo ainda acordada?
— Cheguei agora. Estou trocando de roupa para dormir.
Ele expira forte.
— Não fala isso, Alice…
— Por quê? Você está me imaginando trocando de roupa?
— Não, estou te imaginando sem roupa.
Ainda estou vestida mas, sua frase faz eu me sentir nua. Minhas bochechas
ficam quentes, com uma mistura de vergonha e desejo.
— E você? Já está na cama?
— Estou. E antes que pergunte, estou só de boxer preta.
Me abano com uma mão enquanto a outra aperta o celular mais forte.
Quando ficou quente assim?
— Estou me sentindo vestida demais.
— Então, por que você não resolve isso?
Até agora eu estava imaginando nossa conversa como um flerte forte que
iria fazer eu me tocar assim que acabasse a ligação. Não esperava que ele fosse
querer fazer algo enquanto a gente se fala.
— Eu… Nunca fiz sexo por telefone.
— Eu também não. Mas não quero passar essa noite sem gozar ouvindo a sua
voz.
Se ele já exala sensualidade só de entrar em qualquer ambiente, quando diz
coisas assim…
— Não sei se posso ter prazer sem ser pelas suas mãos. Não tem dedo ou
vibrador no mundo que concorra com ter você dentro de mim.
— Serei eu, Alice. Deixa a minha voz te guiar.
Faço que sim com a cabeça, mas me dou conta de que ele não consegue me
ver e me forço a dizer a palavra.
— Sim.
— Para isso funcionar, você precisa fazer exatamente o que eu falar. Tudo bem?
— Tudo.
— Você mencionou um vibrador… Tem mesmo um?
— Tenho.
— Qual é o tipo?
— É um rosa, com um coelhinho na parte de cima para as orelhas dele
estimularem o clitóris. Sabe qual é?
— Sei exatamente qual é.— Tento ignorar as mil perguntas na minha
mente sobre como ele conhece o vibrador. — Pega ele para mim, Alice.
Corro no armário e reviro a gaveta das calcinhas. Desde que Helô me deu,
eu usei um total de uma vez. Não me atraiu muito fazer sexo com um pedaço
de borracha e o coelho me fez gozar em dois segundos, assim como a caixa
prometia, foi um orgasmo tão rápido que até me brochou. Foi fácil demais,
sabe? No entanto, a ideia de usar com Harry, com sua voz me comandando,
me faz querer finalmente dar um nome para o coelhinho.
— Pronto.
— Coloca ele na cama. — Obedeço. — Você continua de roupa?
— Sim.
— Tira tudo devagar, descrevendo para mim exatamente o que você está
fazendo.
Fico imediatamente envergonhada. Descrever? Não era ele que ia falar?
— Harry, não sei se consigo.
— Você me prometeu que faria o que eu te dissesse.
— Eu sei…
— Deita na cama e deixa o seu celular no viva voz, no travesseiro do seu lado.
— Isso consigo fazer. — Agora fecha os olhos. Estão fechados?
— Estão.
— Somos só eu e você, Alice. Não tem mais ninguém aqui além da gente. Eu
estou aí, te olhando. Você está tão gostosa. Mas eu quero te ver sem roupa, Alice.
Você pode tirar para mim?
Imagino Harry sentado na poltrona no canto do quarto. Ele está com a
boxer preta, tocando no seu pau por cima do tecido enquanto me olha. Quero
excitá-lo, quero vê-lo gozar. Nesse momento, entendo o que ele fez e sinto que
a vergonha passou. Só somos nós dois. E eu quero isso tanto quanto ele.
— Estou desabotoando minha camisa — digo, mexendo nos botões. —
Passo o dedo entre meus seios, abrindo a camisa e expondo meu sutiã.
— Como é seu sutiã, Alice?
— Ele é preto, com um bojo que eleva os meus peitos.
— Queria minha boca bem aí, nessa saliência que o bojo cria. Antes de usar
meus dedos para puxar o tecido para o lado e te lamber. Consegue me sentir?
— Sim — falo, sem fôlego.
— Solta o sutiã, Alice.
Tiro a camisa e faço o que ele me pede. Meus olhos permanecem fechados.
— Você está usando jeans?
— Estou; como você sabia?
— Porque eu conheço você. Tira a calça.
Ele não precisa me falar para descrever dessa vez.
— Estou abrindo o botão e o zíper. Vou arrastando suavemente, sentindo o
atrito do tecido com a minha pele. Agora, vou tirar a calcinha.
— Isso — ele diz entre dentes.
— Estou arrastando a calcinha até meus pés. O tecido é mais suave que o
jeans e o contato arrepia a minha pele.
— Você está nua agora?
— Estou.
— Eu quero que você se toque exatamente como eu vou te falar. — Ele não
espera que eu confirme para continuar. — Estou te vendo agora. Suas mãos estão
indo para os seus seios e você está apertando os dois. — Faço exatamente o que me
pede, imaginando que está me observando. — Passe os polegares nos mamilos
delicadamente, Alice. — Um gemido sai dos meus lábios e o ouço grunhir. —
Puxe um dos mamilos entre seus dedos e desça uma das mãos. Leve até o seu centro
e se toque, love.
Encontro meus grandes lábios na mesma hora.
— Estou tão molhada, Harry.
— Fuck — ele diz, baixo. — Para mim, Alice? Está molhada para mim?
— Sim, Harry. Só para você.
— Pega o vibrador.
Tateio a cama em busca do coelhinho.
— Pronto.
— Eu quero que você coloque dentro de você, mas sem ligar ainda.
Obedeço, arfando.
— Isso, querida. Esse sou eu, dentro de você. Te completando. Puxa ele para
fora e coloca dentro de você de novo. Mais uma vez, Alice.
— Harry…
— Está gostoso?
— Está.
— Liga a parte que está dentro de você.
Uso o polegar para localizar o botão. Imediatamente, a ponta do vibrador
começa a se movimentar, fazendo círculos no meu ventre.
— Me descreve o que você está sentindo.
— As voltas que está dando dentro de mim… Estão me deixando louca…
Sinto uma pressão no meu abdômen, uma dormência e uma excitação. Quero
sentir mais, preciso sentir mais, Harry.
— Liga o coelho, Alice.
Aperto outro botão e a explosão é imediata. A pressão se espalha para as
minhas pernas, me fazendo tremer enquanto grito o nome de Harry e o ouço
do outro lado da linha.
— Isso, isso. Goza para mim, Alice. Ah… — Ele geme alto; meu nome
entalado na sua garganta enquanto seu orgasmo pulsa.
Ficamos um segundo em silêncio antes que eu comece a rir. Harry me
segue logo depois. As endorfinas nos deixaram bobos e alegres, e qualquer
vergonha que eu pensei em sentir agora, quando o prazer começa a querer se
acalmar, é substituída por um sentimento diferente. Estou segura aqui.
— Você acha que já consegue dormir? — pergunto.
— Acho que as chances melhoraram. Mas seriam maiores se eu pudesse sentir
seu corpo quente perto de mim.
— Queria sentir o seu também. — Viro para o lado e pego o celular. —
São três da manhã e eu tenho que acordar em três horas para trabalhar, mas
tudo que mais queria era ir para o seu hotel, agora.
— Em breve, love. — Ele respira fundo. — Boa noite, Alice.
— Boa noite, Harry.
Não me levanto para colocar o pijama, apenas puxo o edredom que está no
pé da cama para me cobrir. Estou exausta e confortável. Deixo o sono me levar
para um mundo de sonhos cheio de areia, flores, orgasmos e Harry.

— Ela está viva!


Helô empurra a porta do meu apartamento e quase me molha com o latte
que enfia na minha mão. Ela entra na minha casa, sem cerimônia e se senta no
sofá. Seus braços estão abertos e apoiados no encosto, e ela cruza as pernas nos
tornozelos em cima da mesinha de centro. Se seu olhar fosse capaz de fuzilar
alguém, eu já estaria toda esburacada e morta no chão.
— Agora é assim então? Você dá e esquece que tem amiga?
— Não esqueci nada, Helô. Estou com um volume de trabalho absurdo,
inclusive preciso ir para a GameStart agora.
— São sete da manhã de um domingo.
— Eu sei! Eu e Rafael tentamos loucamente acabar até ontem, mas não
deu. Espero conseguir terminar até a hora do almoço, porque, se o meu chefe
quiser mudar mais alguma coisa, não vamos ter muito tempo se formos até o
fim do dia.
Me sento do seu lado, bufando enquanto bebo o latte.
— Se você tem que sair em breve, vou precisar da versão resumida dos
últimos dias. — Ela abre o cronômetro no celular e aperta o iniciar. — Vai!
Os segundos correndo realmente me fazem querer falar rápido.
— Não contei nada, dei para ele, e foi maravilhoso. Ele queria de novo,
mas meu chefe foi um filho da mãe e eu estou até o pescoço com um projeto
que já tinha dado por encerrado. Isso não impediu o Harry de me ligar hoje de
madrugada e a gente usar o vibrador que você me deu para fazer sexo por
telefone. E eu decidi que não vou falar nada, porque isso só vai fazer com que
ele se sinta mal e já me sinto mal por nós dois.
Helô aperta o parar.
— Quatorze segundos ponto cinquenta e dois… Cinquenta e dois o quê?
O que vem antes de segundo?
— Milissegundo? Mas não sei por que isso importa.
— Importa porque você podia ter ligado para me contar e não gastar nem
quinze segundos para me manter atualizada!
— Você sabe que eu teria que entrar em mais detalhes. E o problema não é
o que te diria, e sim o tempo que eu ia perder com você me julgando!
— Moi? — a dissimulada pergunta em francês.
— Você tem passado muito tempo com o Antônio.
— Antoine!
— Tanto faz! Helô, preciso ir embora. — Pego o celular das suas mãos e
zero o cronômetro. — Me julga rápido. — Aperto para iniciar a contagem do
tempo. — Vai!
— Você não ter contado não tem nada a ver com ele se machucar, tem com
não querer perder o cara gato no meio das suas pernas. E apoio completamente
um cara no meio das pernas, então sem julgamentos aqui.
— Hum… Sete segundos e sessenta e quatro. Amei isso! A partir de hoje,
todas as nossas conversas vão ser assim.
Helô puxa seu celular da minha mão e o guarda na bolsa.
— Porém, entretanto, contudo…
— Lá vem.
— Se você quiser que ele continue no meio das suas pernas depois desses
sete dias, você tem que contar agora.
— Qual é a diferença de agora ou depois? Vou ter feito merda do mesmo
jeito.
— Se você não percebe a diferença, eu, realmente, não tenho como te
ajudar.
— Não vou magoar o Harry à toa, Helô. Se ele quiser continuar, eu conto.
— E por que a decisão de continuar está nas mãos dele? Você não tem
opinião própria?
— Eu o conheci na terça! Não, não tenho opinião alguma.
Helô se levanta e anda na direção da porta.
— Se você vai ficar esperando ele decidir o futuro de vocês, acho que não
aprendeu nada com o seu relacionamento com o Rafael.
Mais uma vez, a sua sinceridade me deixa sem palavras.
— Não sei o que fazer, Helô.
Ela volta para perto de mim e segura forte nos meus braços.
— Vai para o trabalho e foca cem por cento nisso. Quando terminar, volta
para a casa, ataca aquela sua maravilhosa criação que mistura tequila com
sorvete e pensa. Pensa com cuidado e com carinho.
Ela me dá um beijo na testa e sai.
S aio do AquaRio estranhamente satisfeito. Sempre odiei ver animais presos,
mas o trabalho de pesquisa feito aqui é impressionante.
A conferência ainda nem começou e já consigo entender por que a Dra.
Harrison me indicou para essa viagem. Eu estava estagnado. Tudo que
aconteceu com Melanie impactou todos os aspectos da minha vida e isso
incluiu o meu trabalho. Eu precisava disso, desse sopro de ar renovado.
Precisava me lembrar de por que me interessei por biologia marinha e por que
não posso parar.
Com a vontade de fazer a minha parte revigorada, caminho até o ponto de
táxi para voltar ao hotel. São quatro da tarde agora e sei que Alice ainda deve
estar no trabalho, mas preciso tentar encontrá-la.
Nunca detestei tanto o mundo corporativo quanto quando ela me falou
que precisava fazer mais uma versão do simulador e não poderia me ver.
Escutá-la gemer no meu ouvido enquanto eu me tocava me acalmou
momentaneamente, contudo, não chegou nem perto de me satisfazer.
Envio uma mensagem para perguntar que horas ela acha que estará
disponível, porém ainda não tenho resposta quando entro no meu quarto.
Abro o laptop ao me deitar na cama, e aproveito para checar minhas anotações
para a primeira palestra que vou dar amanhã sobre as especificidades regionais
da contaminação por compostos orgânicos e inorgânicos nos trópicos.
Quando vejo o nome de Liam na tela do celular que está do meu lado, sei
que chegou o momento que eu estava esperando.
— Harry… Me desculpa…
Liam está bêbado. Bêbado, na verdade, seria um elogio; ele está em algum
estágio entre completamente chapado e coma alcoólico. O carpete verde-escuro
da sua sala serve de pano de fundo para a chamada, em outras palavras, ele está
deitado no chão. Três latas de Guinness compõe o backdrop, assim como um
cinzeiro com o resto do que eu deduzo ser um baseado.
— Por que você está pedindo desculpas?
Liam começa a abrir e a fechar a boca de uma maneira exagerada antes de
responder. Quando finalmente fala, cada palavra sai com uma dificuldade que
parece que ele está em trabalho de parto.
— Por essa ligação. Eu tentei, Harry. Juro que tentei. Queria só ficar feliz por
você e te apoiar, mas não consigo mais. — Ele para um segundo, voltando-se
para um ponto imaginário atrás da tela, antes de começar a chorar
copiosamente. — Eu vou morrer sozinho!
Queria dizer que consolei o meu amigo imediatamente, assim como ele fez
comigo durante noites a fio, depois de Melanie. Porém, o seu queixo tremendo
e a frase desesperada que ele repete afirmando ser o fim da sua vida acabam
tornando a cena cômica, e eu rio.
Quando nós éramos adolescentes, viajamos para o interior para passar o
Natal com os meus avós paternos. A propriedade deles tem um lago que
sempre congela no inverno e onde a gente costuma patinar. Liam nunca foi
bom nisso, então sempre se recusava a participar, mas ia junto para ficar com a
gente. Um dia, eu o convenci a tentar patinar. Ele caiu. Eu ri. Ele tinha
quebrado o braço e eu não sabia. Não preciso dizer que não ficou feliz com a
minha reação. Assim como não está agora.
Como eu já mencionei, eu podia ser um amigo melhor.
Seu cenho franze daquele jeito que ele só faz quando é para eu levar a sério
o que vai falar. Entretanto, perde a concentração para articular as palavras e elas
saem embaralhadas, o que torna muito difícil esse trabalho para mim.
— Você… acha graçado? Eu merda… e você graçado?
Acho que entendo a ideia por trás do que ele quer dizer o suficiente para
responder.
— Liam, a sua dor não é engraçada. Mas achar que, porque as coisas não
deram certo com a Danny, você está fadado a ficar sozinho é meio desesperado
demais até para você.
— NãoésóDan.
— Como assim não é só a Danny? Você estava namorando mais gente e
não me contou?
Ele levanta a mão que não está segurando o celular na frente da câmera e
estica o indicador, começando uma contagem.
— Steph.
— Steph? A menina para quem você deu um cartão no Dia de São
Valentim quando vocês tinham quatro anos?
Eu conheci Liam quando já éramos adolescentes, mas acho que posso
escrever um livro só com o histórico romântico dele desde seu nascimento.
— Isso. Primeira. — Ele deve ter percebido que não está conseguindo falar
bem frases, agora só solta palavras para eu pegar no ar o que quer dizer.
— Sua primeira decepção amorosa, porque ela deu um cartão para o Peter
e não retornou o seu. Okay, prossiga.
Ele mostra mais um dedo.
— Giselle.
— Aceitou sua bicicleta emprestada, mas depois largou no chão, para sair
com o Billy na dele, que tinha dois assentos.
Mais um dedo.
— Beatrice.
— Terminou com você porque não queria ver Matrix no cinema. Em
1999. — Eu reforço o ano na esperança de que ele perceba que é loucura
basear sua falta de sorte no amor em relacionamentos que aconteceram antes
de ele começar a se masturbar. Ainda mais com um término sem nenhum
cabimento como esse. Não tenho sorte.
— Isso. — Quarto dedo. — Gabby.
— Não queria te chupar.
— Quê? Nãofoisso motivo.
— Não ter sido esse o motivo não torna isso menos verdade. Sinceramente,
acho que você escapou de uma. Imagina ficar amarrado com uma mulher que
não quer pagar um boquete para você? Que tipo de vida é essa, Liam?
Ele levanta o quinto dedo, ignorando meu comentário.
— Sophie.
— Não aceitava que você a chupasse.
Mesmo deitado no chão, consigo ver os ombros do Liam desinflarem.
Minhas piadas sobre boquete estão sendo desperdiçadas nessa plateia. Mas,
ainda que o meu objetivo ao falar essas coisas seja fazer com que ele perceba
que está sendo ridículo, eu realmente acho que esses relacionamentos não
tinham futuro. Compatibilidade sexual é importante, como a minha com a
Alice.
E, por mais que a gente nunca discuta isso enquanto estamos namorando,
nos momentos pós-término em que o Liam fica, bem, exatamente como está
agora, ele costuma falar tudo que não dava certo entre quatro paredes. As
senhoras “Não Dou” e “Não Recebo” são apenas algumas das pérolas que eu já
fui obrigado a ouvir.
— Inferno!
Pelo grito de Liam e pela movimentação da câmera que me mostrou seu
olho e agora me mostra o teto, diria que ele tentou levantar o polegar da mão
que estava segurando o celular para continuar sua contagem e acabou com o
aparelho na cara.
— Eu já entendi seu ponto, Liam. Você teve experiências de merda. Isso
não significa que tudo está acabado. Você tem trinta e quatro anos. O período
fértil dos homens dura até uns sessenta, logo ainda tem muito tempo para
achar alguém.
— EU NÃO QUERO TER FILHOS COM SESSENTA ANOS, HARRY!
Okay. Eu o deixei tão puto que até ficou sóbrio.
— Cansei, Harry. A partir de hoje, acabou isso de namoro para mim. Só vou
viver de sexo casual. Se uma camisinha estourar e eu ganhar um filho nesse
processo, ótimo. — Eu assinto, tendo certeza de que nenhum homem na história
da humanidade jamais falou essa frase. — Se não, eu sempre posso adotar. — Ele
olha para mim com o queixo tremendo de novo. — Você me ajuda?
— A criar o filho adotado ou a fazer sexo casual? E se for a segunda opção,
de que tipo de ajuda exatamente nós estamos falando? Posso te ajudar a chegar
em mulheres, mas, se você quiser o sexo casual comigo, acho que pode acabar
estragando a amizade.
Ele sabe que eu não funciono bem com conversas profundas. Por que ainda
tenta? Eu não sei, mas, quando ele não responde nada, sei que preciso ignorar
esse aperto que sinto sempre que a coisa fica séria e ao menos tentar.
— Claro que ajudo, Liam. Com o que você precisar.
Ele finalmente sorri.
— Agora que você esclareceu como boquetes são importantes para você, se a
ajuda acabar sendo com a parte do sexo casual, acho que consigo te deixar satisfeito.
Dou uma gargalhada. Ele está de volta.
— Não esperava menos de você.

Já são oito da noite, e Alice ainda não respondeu à minha mensagem. Às


minhas mensagens, na verdade. Mandei mais duas depois. Exagerei? Também
acho. Não me lembro de ter ficado correndo atrás de mulher desde que eu
tinha quatorze anos e queria pegar uma garota de dezessete.
Alerta de spoiler: perdi a virgindade com ela.
Fico me lembrando de que Alice está no trabalho, não é como se não
quisesse me ver. Minha vontade é ir naquele lugar, arrancá-la do computador e
me perder dentro dela. Talvez na mesa dela? Jogar tudo no chão e tomá-la ali
mesmo, na frente de quem quiser ver. Não sou fã de exibicionismo, mas
fantasia é o lugar para explorar esse tipo de coisa.
E agora eu estou duro.
Ó
Ótimo.
Meu telefone apita com o som de mensagem recebida. Até que enfim!

Alice:
Desculpa, estava em reunião e só vi agora. Consegui terminar! \o/ Mas estou exausta.
Nos vemos amanhã no evento, tudo bem? Boa noite, Harry.

Ahn… Isso não era nem um pouco o que eu esperava. Claro que ela está
cansada. Trabalhou o fim de semana inteiro. Queria ser o cara que entende
isso, manda uma mensagem respondendo “até amanhã” e depois vai bater uma
no chuveiro para se acalmar. Mas eu estou trabalhando fora do meu juízo
perfeito aqui, então preciso vê-la.

Harry:
Já te disse que dou uma excelente massagem nos pés? Ouvi dizer que tenho mãos
mágicas… Posso te ajudar a relaxar.

Achei que era um bom momento para lembrá-la do que meus dedos são
capazes.

Alice:
As habilidades mágicas das suas mãos nunca foram questionadas. 😉

Harry:
Me dá seu endereço. Elas sabem exatamente como fazer você relaxar.

Alice:
Melhor não, Harry. Realmente preciso descansar.

Eu estou implorando? Parece que eu estou implorando, não é? Não sabia


que o garoto de quatorze anos, desesperado para deixar de ser virgem, ainda
vivia em mim. Mas dane-se. Vou implorar mesmo.

Harry:
Prometo me comportar. Guardo as mãos nos bolsos, o tempo todo. Só preciso te ter.
Merda de ato falho.

Harry:
Ver! Só preciso te ver! Isso que eu quis dizer. Minhas mãos estão fora de controle
digitando a mensagem, mas juro que consigo mantê-las na linha pessoalmente.

Depois de uma eternidade — que, na verdade, são cerca de dois minutos


—, ela responde. E eu tenho o seu endereço.
V ocê viu, né? Você viu que eu tentei? Disse que queria descansar. O que era
uma mentira gigantesca; afinal quem consegue descansar quando está com a
corda no pescoço? A arma na cabeça? A guilhotina prestes a despencar? Eu
poderia continuar com as metáforas para “estou ferrada”, porém vou parar por
aqui. A questão é: eu precisava não ver o Harry para conseguir pensar
objetivamente. Mas aí ele tinha que mencionar as mãos mágicas, não tinha? E
cadê a força de vontade? Se você achar, me avisa porque meu estoque acabou e
ainda preciso encontrar alguma para fechar as pernas.
Se eu der para ele de novo, não sei se vou conseguir manter a distância
depois. Não que seja isso que vou escolher fazer. Mas ainda estou confusa —
como você pode claramente identificar pelo meu discurso inteiro até aqui — e
preciso não ser sufocada pelo meu tesão. E é só isso, não é? É só isso. Tesão. Eu
sinto tesão pelo Harry e nada mais. Se eu passar uma noite com ele sem nada
sexual, isso vai se confirmar. Ele prometeu manter as mãos longe, então vamos
ter uma noite agradável, apenas conversando e nos conhecendo melhor, e, com
isso, eu vou ter certeza do que fazer.
Foi o plano que eu tracei com a Helô? Não. É uma boa ideia? Sei lá. Eu,
por acaso, pareço ser uma pessoa que sabe o que está fazendo?
Meu monólogo interno é interrompido pela campainha. Antes de abrir,
dou uma última olhada no espelho que fica ao lado da porta. Não tive tempo
de tomar banho ainda. Cheguei em casa, troquei mensagens com o Harry e
depois fiquei analisando todos os erros que me trouxeram até aqui. Respiro
fundo e tento refazer rapidamente o meu coque frouxo para dar a impressão de
que a ideia era mesmo um penteado desconstruído. Solto uma baforada na
mão e cheiro para dar aquela conferida no hálito — odor de menta do chiclete
que Rafael me deu quando estávamos na reunião — e respiro de novo.
Abro a porta e agradeço por cada um daqueles erros que eu cometi. Harry
está uma delícia. Sim, delícia. É essa a palavra. A camisa branca de manga curta
que realça os músculos do seu braço, a munhequeira de couro no pulso
esquerdo, a calça jeans preta desbotada.
Deus, eu quero dar. Deus, não posso dar. Deus, preciso pensar. Deus, não
dá para pensar. Deus, eu quero dar.
Ele levanta os braços como se estivesse se entregando para a polícia.
— Mãos para dentro do carrinho durante todo o passeio. — diz, abaixando
as duas e colocando-as nos bolsos da calça.
Seguro a gola da sua camisa e trago sua boca para a minha. Suas mãos
permanecem no bolso enquanto as minhas vão para o seu pescoço. Em
seguida, permito que uma suba e puxe seus cabelos. Tento segurar minha
língua, mas sem sucesso. Ele responde com tanto ímpeto quanto eu, porém
afasta a cabeça logo depois de se entregar.
— Vai ser muito difícil manter as mãos paradas assim, Alice.
Chego para o lado, deixando que entre no meu apartamento enquanto
tento me controlar.
— Esse lugar combina com você.
— Não acha pequeno demais?
— Acho estiloso, colorido e sexy. Como você. — Não sei como responder
aos elogios, mas Harry não me dá tempo de pensar em algo. — Pensei que a
gente podia pedir uma pizza e ver um filme. Tirar sua mente do trabalho.
Topa?
— Perfeito — digo caminhando para o meio da sala e pegando o celular
para abrir o aplicativo de entregas. — Algum sabor de preferência?
— Qualquer um sem carne. Mas podemos fazer meio a meio se você quiser
muito uma linguiça.
Paro de digitar o nome da pizzaria e levanto minha cabeça. Um dos lados
da boca de Harry se curva.
— Não acredito que você acabou de fazer essa piada. Acho que foi a pior
cantada de todos os tempos.
— Alice, você precisa entender uma coisa. Algumas vezes a gente não pode
fugir de uma piada ruim. Depois que ela surge na sua cabeça, você só tem uma
alternativa: falar e deixar que o universo te julgue. Porque não fui eu quem
escolheu fazer uma piada ruim. Foi a piada ruim que me escolheu.
Começo a gargalhar e Harry sorri. Seus olhos brilham com orgulho por ter
sido o responsável por me fazer feliz. E essa é a mais pura verdade. Estar com
esse homem me deixa feliz. E tarada, mas essa parte vou tentar conter.
No final, decidimos por uma pizza margherita. Helô nunca me deixa pedir
essa. Diz que é uma salada disfarçada de pizza e ela já é obrigada a comer salada
na maioria dos restaurantes que não estão preparados para atender veganos,
então não suporta a ideia de comer uma que está camuflada.
— Você costuma ficar em casa de tênis?
— Não, ainda não tive tempo de me trocar depois que cheguei.
Normalmente é chinelo. Mas o sonho é pantufas.
— O sonho é pantufas?
— Isso.
— Pantufas são o sonho da sua vida?
— Não diria que são o sonho principal da vida, mas estão no top dez, com
certeza.
— E por que você ainda não tem pantufas? Desculpa a ignorância, mas me
parece ser um sonho relativamente simples de se alcançar.
— Você pensaria que sim. Mas esquece que eu moro no Rio de Janeiro.
Então a maior parte do tempo está tão quente que eu nem penso em comprar,
aí tem aquele um dia em que está realmente frio e eu estou em casa debaixo das
cobertas, olhando para as meias nos meus pés e me arrependendo de todas as
vezes em que não comprei. Aí penso, amanhã eu compro. E acordo para um
dia lindo de sol e me esqueço de novo.
— Então, o que você está dizendo é que o clima atrapalha o seu sonho?
— Isso! Viu? Você me entende.
— Eu acho que te entendo, sim. — Ele me encara com um ar que pode ser
tanto maravilhado quanto em estado de choque. — O que você acha então de
ir tomar um banho quente e colocar uma roupa bem confortável, enquanto eu
escolho o filme?
— Não posso fazer isso.
— Por que não? — Suas sobrancelhas arqueiam.
— Não sei se posso confiar no seu gosto para filmes.
— Justo — ele responde, sem pestanejar. — Me dá algumas diretrizes e
deixa que eu tente te surpreender.
— Gosto dessa ideia! — Batuco com o dedo nos lábios antes de listar
minhas premissas. — Precisa ser um clássico, de preferência anos oitenta, mas
eu aceito até sessenta. Diálogo inteligente e engraçado. O que mais? Ah, tem
que ter romance. E não, um beijo em alguém de aparelho no escuro não torna
Os Goonies um romance.
— Velho, verborrágico e sem Sloth querendo chocolate. Acho que consigo
trabalhar com isso.
— É o que vamos ver.
Entro no meu quarto e tranco a porta. Não porque acredite que ele vá
entrar enquanto eu uso o banheiro da suíte, mas porque preciso de mais uma
barreira separando os nossos corpos. Vou estar nua a duas paredes de distância
de Harry. Não tenho maturidade emocional para lidar com isso.
Corro para o chuveiro e tento relaxar. Deixo a água cair no meu pescoço,
aliviando um pouco o estresse acumulado ali. Entre fazer um perfil falso, me
atracar com Harry e trabalhar no simulador, essas últimas semanas parecem ter
criado nós em todos os pontos do meu corpo.
Faço algumas técnicas de respiração que Helô me ensinou enquanto lavo o
cabelo. Não deveria lavar de noite porque me conheço e não existe chance de
eu usar o secador, portanto, vou dormir com ele molhado. Consigo ouvir
minha mãe na minha cabeça falando algo sobre friagem e pneumonia, mas ela
é abafada pela imagem de Harry no chuveiro do seu hotel…
Fecho a água quente e logo sou impactada pelo gelo da água fria aberta.
Essa sou eu tentando apagar meu fogo antes de voltar para a sala.
Enrolada na toalha, fico observando o meu armário e pensando em como
parecer sexy e confortável ao mesmo tempo. Decido que é impossível e pego
uma calça de moletom quadriculada vermelha e preta e uma camisa de manga
comprida branca. Uso isso como pijama em noites mais frias e é a coisa mais
apresentável que eu tenho na seção “Ficar Em Casa” do meu armário. Essa
seção consiste em uma gaveta com todas as roupas que já estavam velhas
demais para usar na rua, entretanto novas demais para jogar fora.
Cogito colocar um sutiã e desisto no mesmo segundo. Qualquer pessoa que
vista esse item de tortura pode te dizer que conforto e sutiã são antônimos.
Penteio o cabelo que nem a minha cara e uso as mãos para amassar as
pontas e deixar as ondas mais proeminentes. Coloco o chinelo e volto para sala.
A pizza já está na mesa de centro — quanto tempo eu demorei, meu Deus?
— e, ao seu lado, foram postos dois pratos com talheres em cima. Harry está
enroscando um abridor na rolha de uma garrafa de vinho, mas para seu
movimento quando me vê.
— Prontinho. Confortável e fresquinha — eu digo, numa tentativa de
quebrar o silêncio que se instaurou.
Seu pomo de adão sobe e desce daquele jeito que me deixa louca. Seus
olhos me engolem inteira e me sinto nua. Eles param na altura dos meus seios
e instintivamente eu olho para baixo. Meu cabelo molhou a camisa branca e
parte do meu mamilo direito está aparecendo.
E eu achando que não dava para ser confortável e sexy ao mesmo tempo.
Decido fingir que não percebi o que aconteceu, contudo, jogo mais cabelo
sobre o molhado, tapando o mamilo. Eu já estou quase me tacando em cima
de Harry, não preciso tê-lo me comendo com os olhos como incentivo.
Me sento no sofá, colocando as pernas dobradas embaixo de mim e me
volto para a TV enquanto ele termina de servir o vinho. Meu queixo quase cai
da minha mandíbula.
— Feitiço da Lua?
— Sim. Segue tudo que você pediu, não? Errei na escolha?
— Harry… Esse é o meu filme favorito! Na vida. Toda. Tipo, para sempre.
— Jura? — ele pergunta, satisfeito consigo mesmo.
— Juro. Eu idolatro a Cher! Ela é a trilha sonora da minha vida! Qualquer
coisa que ela faça, eu amo imediatamente.
— Até o Mamma Mia 2? — Ele contorce o rosto ao falar o nome.
— Você a viu cantando Fernando nesse filme? Depois que você escuta isso,
a vontade é de nomear todos os seus filhos Fernando. Fernando 1, Fernando 2,
Fernando 3, Fernando 4. — E talvez nomear um ou outro perfil falso também,
mas guardo essa parte para mim.
— Quantos filhos você quer ter, meu Deus?
— Acho que três para começar está bom.
— Para começar?
Harry arregala os olhos e me pego pensando que talvez esteja imaginando
filhos comigo.
Não, Alice. Não faz nem uma semana que vocês se conhecem. Se controla!
— O importante aqui é que ela é maravilhosa. Dá logo o play!
Ele ri colocando a taça de vinho na mesinha, diante de mim.
— Pizza no prato ou na mão?
Seguro uma fatia e a balanço um pouco no ar.
— A estrutura parece se manter íntegra sem muito apoio. Vamos de mão.
Harry me entrega uma folha de papel toalha.
— Excelente escolha.
Ele se senta na outra ponta com o seu pedaço. Não gosto de que esteja
longe, mas logo ele gesticula com a mão livre na direção das minhas pernas e
eu percebo a sua intenção. Tiro os pés debaixo de mim e os apoio no seu colo.
Ele inicia o filme, coloca o controle no braço do sofá e faz carinho na minha
perna com uma mão enquanto come a pizza com a outra.
O Paraíso vai precisar trabalhar muito para superar esse momento. Não que
eu vá para lá, quando morrer. Talvez precise de uns dez anos no purgatório, só
para dar uma limpada nos pensamentos da última hora.
Tento ignorar a música de abertura, que descreve com perfeição
basicamente tudo o que eu estou sentindo quando estou com Harry, afirmando
que se trata de amor.
Tirando as nossas risadas, estamos quietos vendo o filme. No entanto, logo
depois da cena de pedido de casamento de Johnny para Loretta, Harry quebra
o silêncio.
— E é assim que a gente sabe que ela não vai acabar com o Johnny.
— Como assim? Você consegue dizer isso só por essa cena?
— Ela está analisando demais o pedido.
— Essa é a graça da personagem.
— Mas isso só quando está com o Johnny. Quando está com o Ronny, ela
mal sabe o que está fazendo, se deixa levar mais. Até tenta analisar a situação,
mas não consegue raciocinar direito. Isso é amor de verdade. — Ele vira o rosto
para mim, apoiando a cabeça no sofá. — Discorda?
Sua barba rente ao rosto contorna seus lábios e, por um segundo, eu me
esqueço de que ele perguntou alguma coisa. Quando me recupero da visão da
sua boca e do desejo de que ele estivesse com ela colada na minha, falo a
primeira coisa que me vem à cabeça.
— Analisar tudo não é necessariamente falta de amor. Às vezes, fazemos
isso quando estamos lutando contra o que sentimos também, numa vã
tentativa de controlar o incontrolável.
Tipo eu agora.
— É… Às vezes.
Ficamos assim, com o filme rodando alguns minutos antes de voltarmos a
nossa atenção para a TV.
Depois que acabamos com a pizza, Harry se levanta e apaga a luz da sala.
Ele se senta no mesmo lugar de antes, tira os sapatos e coloca uma perna
dobrada em cima do assento. Ele abre os braços, gesticulando para mim.
— Vem cá.
Não penso duas vezes. Me ajoelho no sofá e vou na sua direção. Me deito,
encaixando as costas no seu peito; sua virilha fica em contato com a minha
bunda. Ele puxa a manta que fica nas costas do sofá e nos cobre.
Gosto de estar nessa posição. O calor que emana do seu peito me faz sentir
protegida. Seus braços estão entrelaçados nos meus, sobre a minha barriga.
Suas pernas se fecham em torno de mim e a manta completa o nosso casulo.
Por cima do meu ombro, consigo ver os reflexos azuis da TV no rosto de
Harry. O contorno do seu nariz, do seu queixo, da sua boca. Lembro-me da
maciez dos seus lábios e automaticamente minha língua umedece os meus.
Harry se vira para mim, percebendo que estou encarando.
— Obrigada por essa noite. Eu estava precisando.
Ele leva uma mão até uma mecha molhada do meu cabelo e a coloca atrás
da minha orelha.
— Eu também estava precisando.
A forma como fala me faz pensar que ele não se refere a uma noite
tranquila em casa, e sim a mim. Ele precisava de mim. E eu preciso dele
também.
Harry abaixa a cabeça e toca suavemente a minha boca com a sua. Ele
expira se afastando.
— Essa semana vai exigir muito de você, tem que descansar. Vamos ver o
filme.
Ele se preocupa comigo, me quer bem e respeita as minhas necessidades.
Eu achava que Harry era perfeito quando vi sua foto no Instagram, mas
aqui, presa no seu abraço e me sentindo cuidada, eu tenho certeza.
Me aninho mais contra o seu corpo, a tempo de ver Nicolas Cage dizer
para Cher que ele a ama. Eles se conhecem há um dia, e ele a ama.
Ela dá dois tapas na cara dele e o manda superar.
M inhas narinas são invadidas por um cheiro familiar, algo cítrico misturado
com um aroma de flores. É o cheiro dela. Estou com o rosto enfiado entre os
fios do seu cabelo. A TV está parada no menu do aplicativo que usamos para
ver o filme; o brilho que emana dela e a fraca luz de um poste na rua são as
únicas coisas que iluminam a sala, fazendo-me crer que ainda esteja de
madrugada.
Nos movimentamos enquanto dormíamos e agora eu estou na beirada do
sofá, prendendo o corpo de Alice contra o encosto. Uma de suas pernas está
entre as minhas e suas mãos repousam embaixo do seu rosto, unidas como
ficariam se estivesse rezando. Alice parece tão pequena e indefesa nesse
momento que não consigo lutar contra o instinto de cuidar dela. Liam
chamaria isso de masculinidade tóxica, algo como “mim, homem, protege
você, mulher”, mas eu não me importo. A vontade de estar aqui para ela é
maior do que eu posso controlar.
Observo seu sono por alguns instantes. Ela parece estar confortável, no
entanto não quero que seu pescoço fique doendo amanhã. Prometi que essa
noite seria tranquila para que ela pudesse estar cem por cento para o evento
depois de um fim de semana de trabalho puxado. Deixá-la dormir no sofá vai
contra a minha promessa, e contra a minha recém-descoberta masculinidade
tóxica também.
Afasto um pouco meu corpo, apoiando os pés no chão. Uso o braço que
está embaixo do seu corpo para girá-la e coloco o outro atrás de seus joelhos.
Alice vira com facilidade, sem acordar. Me levanto e caminho na direção da
porta de onde Alice saiu mais cedo, com sua camisa branca estrategicamente
molhada.
Ainda não sei como eu consegui me controlar depois que vi seu mamilo na
transparência do tecido. Minha vontade era usar todo o conhecimento de rugby
que meu pai tentou — sem sucesso — incutir em mim, dar um tackle nela e
tomá-la ali mesmo, no chão. No entanto, ao longo da noite, esse pensamento
foi substituído por uma inexplicável calma trazida pela intimidade fácil que se
instalou entre nós. Mas confesso que eu ainda queria o sexo no chão. E em
todas as outras superfícies desse apartamento.
Passo pelo batente e inspiro fundo, ao entrar no seu quarto. O cheiro dela
está mais forte aqui. Atravesso o pequeno cômodo, chegando, rapidamente, na
cama queen. Coloco Alice do lado esquerdo, onde seu celular está carregando
na mesinha de cabeceira, imaginando que seja o lado que ela prefere. Sorrio ao
lembrar que foi desse lado também que ela dormiu na minha cama, no hotel.
Dou um beijo de leve, na sua testa. Alice está deitada sobre o edredom que
cobre a cama. Eu pego a lateral que não está presa pelo seu corpo para cobri-la
e caminho para sair do quarto.
Queria me deitar com ela. Seria uma verdadeira benção estar aqui, nos seus
braços. Por alguns momentos dessa noite, me permiti pensar que eu não sou
apenas um turista de passagem, que ela poderia querer algo a mais dessa relação
do que só os próximos sete dias, e a ideia de estar na sua casa, na sua cama, tem
exatamente esse efeito em mim. No entanto, é mais do que eu posso fazer sem
seu consentimento.
Estou chegando na porta, quando a ouço.
— Harry?
Me agacho ao seu lado, na cama e passo minhas mãos nos seus cabelos.
— Durma, Alice. Amanhã vai ser um longo dia.
— Você não vai dormir comigo?
Os cantos da minha boca se erguem. Ela me quer aqui.
— Não tinha certeza se você concordaria.
Ela toca o meu rosto. O simples gesto tem tanto carinho, tanta reverência,
que me pego não querendo deixar de sentir isso nunca mais.
— Vem. — Ela empurra o edredom que a cobria e entra embaixo, ainda
deixando a ponta direita dobrada para que eu me deite do seu lado.
Contorno a cama e, quando estou me sentando, ela me interrompe.
— Você vai dormir de calça jeans?
— Pensei nisso.
— Hora de uma informação cultural. Quando se fala aqui, no Brasil, que o
parceiro de alguém dormiu de calça jeans, isso nunca é uma coisa boa. Nessa
cama, só vai entrar pijama, cueca ou nada. Você escolhe.
— Bom, se é uma questão cultural… — ironizo. — Pijama eu não tenho,
nem aqui, nem na Inglaterra. Se eu não colocar nada, sinto que todos os nossos
esforços para deixar você descansar terão sido em vão. Acho que vou ficar com
a opção dois então.
— Cueca? Não teria sido a minha escolha, mas vou aceitar.
Balanço a cabeça, sabendo exatamente o que ela teria escolhido.
Mantenho o olhar fixo em Alice, enquanto levo uma mão até as minhas
costas para tirar a camisa. O ar de brincadeira é massacrado pela tensão que ela
demonstra. Sua mandíbula se movimenta, como se estivesse usando todas as
suas forças para se conter. Eu consigo identificar isso com facilidade; estar com
ela é um constante exercício de autocontrole.
Abro o botão e o zíper e tiro a calça, deixando a cueca. Coloco um joelho
na cama e engatinho até Alice, parando com meu rosto a poucos centímetros
do seu.
— Agora minha vestimenta está do seu agrado?
Ela movimenta a cabeça, assentindo.
Me deito do seu lado, fazendo com que ela expire forte, soltando toda a sua
frustração.
— A gente só vai dormir mesmo?
— Te fiz uma promessa, Alice. — Ela faz uma careta emburrada,
colocando o lábio inferior para fora, em um biquinho. Me aproximo
novamente e mordo seu lábio, provocando um suspiro. Levanto o seu queixo
com o indicador e o polegar, forçando que olhe para mim. — Vamos dormir
hoje. Mas amanhã? Amanhã você é minha.
Os primeiros raios de sol fazem com que eu acorde. Por um instante, eu me
recrimino por não ter fechado as cortinas, mas logo me lembro de que
precisamos ir cedo para o centro de convenções e não programei o alarme do
celular antes de me deitar, então o despertador natural é bem-vindo.
Alice está deliciosamente encaixada contra o meu corpo. Ela havia apoiado
a cabeça no meu peito, quando fomos dormir, contudo, em algum momento
da noite, acabamos em uma conchinha, com as suas costas pressionando meu
peito — e sua bunda, a minha ereção.
Luto contra o desejo de me movimentar, de apertar sua cintura e de buscar
alívio para essa pressão na minha boxer. Lembro-me de que não sou um tarado
para ficar roçando em uma mulher desacordada e me afasto. Alice merece ser
mimada e cuidada, e é exatamente isso que pretendo fazer.
Me levanto devagar para que ela não acorde. A vontade de ficar na cama,
curtindo esse momento como se não tivéssemos um fim no horizonte, é
enorme. No entanto, agora sou um homem com uma missão. Pego meu celular
no bolso do meu jeans. São seis e trinta e dois, vou ter que correr.
A cozinha americana de Alice é bem-organizada, o que torna meu trabalho
mais fácil do que eu esperava. Encontro uma bandeja de madeira dentro do
armário perto da geladeira. Ligo a cafeteira e coloco duas fatias de pão na
torradeira. Enquanto aguardo o café e as torradas, coloco uma leiteira no fogão
e pego uma frigideira para preparar os ovos. O tempo só permite mexidos, o
que não me abala, já que essa é a minha especialidade.
Eu a sinto atrás de mim, antes mesmo de vê-la. Imagino o que está
passando na sua cabeça, observando-me enquanto me movimento de boxer pela
sua cozinha.
— Bom dia — digo, sem me virar.
Ela demora alguns segundos para responder.
— Bom dia. O que você está fazendo?
Ouço o barulho de um dos bancos que ficam enfiados embaixo da bancada
que separa a cozinha da sala sendo arrastado.
— Café da manhã — falo, virando a cabeça na sua direção.
Não estava preparado para a visão de Alice pela manhã. Ela está
ligeiramente descabelada e com o rosto ainda marcado do travesseiro. Me sinto
estranhamente honrado por estar sendo o único a vê-la assim.
— O que foi? — ela diz, percebendo que estou encarando.
— Você é linda.
— Você insiste em dizer isso.
— Falar a verdade é algo importante para mim, então te garanto que não
estou mentindo — digo, voltando-me para o fogão e desligando as bocas que
estou usando.
Como ela já saiu da cama, a bandeja vai ter que ser usada em outra ocasião
— espero que tenhamos a chance de mais uma manhã assim. Coloco dois
pratos na bancada, divido os ovos entre eles. As torradas já pularam,
sinalizando que estão prontas. Seguro as duas pelas pontas, queimando um
pouco os dedos, e coloco-as rapidamente nos nossos pratos. Pego duas canecas,
jogo o leite que aqueci em cada uma até um pouco além da metade. Completo
com o café.
— E agora, o mais importante.
Alice me olha com curiosidade enquanto vou até os vidrinhos que ela
mantém perto do fogão e levanto o da canela como se fosse o Simba sendo
apresentado aos outros animais na abertura de O Rei Leão.
Sua risada aquece meu peito enquanto eu salpico a especiaria nas nossas
canecas.
— Olha só como eu sou uma boa influência para você.
— A melhor. — Dou um beijo na sua bochecha, antes de me sentar do seu
lado. — A que horas você precisa chegar no centro de convenções?
— Às oito. — Ela pega um pouco dos ovos com o garfo e coloca na boca.
— Harry, isso está maravilhoso! O que você colocou aqui?
— Você tem a canela como seu ingrediente secreto, eu tenho o óleo de
coco.
— Tinha óleo de coco na minha cozinha?
— Você não sabe o que tem na sua cozinha?
— Sinceramente? Não. — Ela morde os lábios e desvia o olhar. — Helô fez
as minhas últimas compras.
Quero perguntar o porquê, mas pressinto que é o motivo de ela ter ficado
encabulada e não quero estragar a nossa manhã.
— Pode agradecer a ela. Esse é o meu segredo. Uso óleo de coco para tudo
na vida.
— Para tudo?
— É bom para cozinhar, para o cabelo, e… Ahn… Para outras coisas.
— Outras coisas?
Dou de ombros e mordo a torrada.
— É um excelente lubrificante natural.
Alice começa a tossir e bater contra o próprio peito. Corro para pegar um
copo d’água e lhe entrego, batendo, de leve, nas suas costas.
— Você está bem?
— Sim. — Seus olhos estão lacrimejando, então não sei se acredito. — Só
fui pega de surpresa com o quão sexual a Helô tornou a minha cozinha.
— Fala a verdade, você adorou meus ovos com lubrificante na sua boca.
Ela começa a rir e me dá um tapinha de leve no ombro. Eu seguro a sua
mão e a puxo para mim, colando nossos lábios e segurando seu cabelo.
Alice se entrega ao meu beijo, imediatamente relaxando nos meus braços.
Sei que preciso passar no hotel para me arrumar antes de ir e que Alice tem
que chegar ainda mais cedo do que eu no evento, mas, nesse momento, não
estou pensando com o cérebro.
Minha mão corre pelas suas costas e encontra a bainha da sua camisa. Passo
os dedos para baixo do tecido, tocando a sua pele. Ela geme, e sei que quer que
eu continue. Tateio seu corpo até chegar no seu seio.
— Esse mamilo está me provocando desde ontem à noite — digo, sem
separar nossas bocas.
— Ele não teve a intenção.
— Teve sim, ele sabe o que fez. Agora é a minha vez de provocar.
Minha boca encontra seu queixo, seu pescoço e desce, ainda por cima da
sua camisa. Roço meus dentes no meliante que agora está aceso e alerta sob o
meu toque.
Passo a boca para o outro peito e Alice gira levemente no banco para
conseguir me abraçar com suas pernas. O calor que emana do seu centro me
desconcentra por um segundo e eu só consigo pensar que preciso satisfazê-la
quanto antes. O som dos seus orgasmos tem sido um participante frequente
dos meus sonhos, e eu tenho que ouvi-los agora.
Alice se apoia na bancada atrás de si, para elevar seu quadril, deixando-me
remover sua calça com facilidade. Abro mais as suas pernas e me ajoelho aos
seus pés. A altura do banco permite o acesso perfeito da minha boca. Seguro
nas suas nádegas e a puxo contra o meu rosto. Olho para cima e encontro Alice
me encarando. Abaixo a cabeça, mantendo o contato visual e passo minha
língua, desde o seu períneo até o seu clitóris.
— Deliciosa.
Os lábios de Alice se separam e seu peito sobe e desce rapidamente, com a
sua respiração ficando mais superficial.
Levo a língua para os grandes lábios, ainda longe dos pontos que sei que ela
quer que eu toque, brincando com a sua expectativa. Minhas mãos, que
estavam na sua bunda, vão para a frente e eu a abro para mim. Se ela sente
vergonha de estar exposta, não demonstra. Minha língua agora passa de leve
pelo clitóris, instigando, mas sem dar a ela o que deseja. Desço mais e enfio a
língua dentro de Alice, fazendo com que seus olhos se fechem por um segundo.
Eu a penetro algumas vezes com a língua, antes de lambê-la de novo até o
clitóris. Agora paro ali e a chupo forte, inserindo um dedo dentro dela. Suas
costas se curvam, expondo mais seu peito para mim. Suas mãos apertam a
bancada, deixando suas juntas brancas de tanta força.
Coloco mais um dedo, aumentando o ritmo das minhas investidas.
Intercalo a sucção do seu clitóris com lambidas potentes, me alimentando dos
seus gemidos. Meu pau já está saindo pela parte de cima da minha boxer de tão
duro, no entanto, eu quero vê-la gozar assim. Quero relaxá-la, quero excitá-la;
e quero ver no seu rosto tudo que existe entre essas duas sensações.
Sinto as paredes do seu sexo contraírem em torno dos meus dedos. Alice
joga sua cabeça para trás.
— Harry… — Meu nome é abafado pelos gritos de prazer que saem
roucos de sua garganta.
Diminuo a velocidade, mas continuo meus movimentos, mantendo o
prazer dela pelo máximo de tempo possível. Ela treme sob meu toque, se
contorcendo, e sei que não aguenta mais. Beijo de leve seu clitóris e subo pelo
seu corpo até encontrar seus lábios. Eu a trago para mais perto de mim
enquanto nos beijamos; minha ereção esfrega contra o seu centro e ela quebra
o nosso beijo ao tocá-la.
— Preciso retribuir o favor.
— Não foi favor algum, o prazer foi todo meu. E não temos tempo para
mais nada.
Isso parece despertá-la.
— Ai, meu Deus! Que horas são?
Olho para o relógio que fica em cima do fogão.
— Sete e meia.
— Merda!
Ela se levanta correndo, pegando a calça no chão enquanto corre para o
quarto. Na metade do caminho, ela volta e me surpreende ao pular em cima de
mim, cruzando as pernas na minha cintura.
— O “merda” foi porque não temos mais tempo e estou atrasada. Mas eu
amei cada segundo. E prometo te satisfazer também depois.
Acaricio o seu rosto, segurando-a no meu colo, com apenas um braço.
— Você já me satisfaz, Alice. Não preciso gozar para isso. Acredite, vou
adorar gozar, de preferência dentro de você, na próxima vez. Mas nada me
deixa mais satisfeito do que ver você perdendo a razão e gritando o meu nome
enquanto eu te dou prazer.
Ela me observa por alguns instantes. Ainda com os olhos abertos, morde
meu lábio inferior e geme apoiando a testa contra a minha.
— O que você faz comigo não pode ser chamado de prazer, Harry. É algo
muito maior. Vai além de tudo que eu já senti na vida.
Sua sinceridade me cala. Será que ela também sente que o que temos não
cabe nos poucos dias que nos restam? Será que ela sente o que eu sinto? Queria
ser mais como o Liam e elaborar essa conversa, mas não sou. Em vez de
palavras, dou o que consigo. Dou minha boca, meu abraço, meu calor. A
verdade é que ela está recebendo bem mais do que o meu corpo. Cada toque,
cada gesto, tudo que faço vai com uma parte da minha alma junto.
T rabalhar nesse projeto foi realmente gratificante. Me senti parte de algo
grandioso, como se todo o meu conhecimento técnico tivesse servido a um
propósito maior. Foi difícil, principalmente depois que o Paco resolveu ser o
Paco e acabou com mais um fim de semana meu, mas o resultado ficou
realmente bom. Agora, vendo o mural de telas na entrada do evento, com o
meu suor brilhando nos monitores, sou tomada pela sensação de dever
cumprido.
Dever cumprido, ou seja, para mim acabou. Já fiz; foi! Na minha cabeça,
depois da aprovação final do Paco no domingo, o projeto estava encerrado.
Mas minha chefe pensa diferente de mim, e agora tenho que ser babá de
simulador por cinco dias: ficar sentada em uma cabine minúscula, com quatro
metros quadrados e pouquíssima luz, olhando o telão e torcendo para nada dar
errado.
Não deveria fazer isso por causa dos equipamentos de alto valor que tem
aqui dentro, mas deixo a porta entreaberta; minha claustrofobia não me
permite fechá-la. Se eu não tivesse dado a ideia de o Rafael não vir, ele poderia
estar aqui, conversando comigo e me distraindo, porém, nesse momento, eu só
tenho a visão da entrada da conferência e os pensamentos sobre o Harry para
me entreter.
E como esses pensamentos me entretêm!
O que ele fez comigo hoje de manhã, na bancada da cozinha, está em
looping na minha mente, desde o instante em que ele tirou a boca de mim.
Aquele homem está na profissão errada. Do jeito que ele consegue ler meu
corpo, devia ser michê profissional. Estaria rico! Eu já teria vendido meu
PlayStation 5, um rim e a minha mãe para bancar o meu vício nele. E, como é
um trabalho autônomo, poderia fazer de qualquer lugar, portanto não
precisaria voltar para a Inglaterra.
O que eu estou dizendo? Se ser michê fosse o trabalho dele, outras
mulheres colocariam as mãos no seu corpo, e eu jamais ficaria bem com isso.
Esquece o papo de michê. Deixa o Harry como biólogo marinho de dia e
músico à noite mesmo.
Até porque, quem disse que, se o trabalho dele permitisse, ele iria querer
ficar aqui? Nós dois sabíamos que nosso relacionamento não ia durar, foi assim
que entramos nessa.
Além disso, enquanto eu não contar que já o conhecia e que menti, nem
adianta ter sonhos de continuarmos juntos. Quando falou, hoje de manhã,
sobre como a verdade é algo importante para ele, dei graças a Deus por Harry
estar de costas, vendo o fogão. Tenho certeza de que a minha cara estava
mostrando uma careta deformada que misturava horror com medo e espanto.
Helô me mandou mensagem hoje mais cedo para saber se a minha noite de
Tequivete tinha me trazido alguma epifania sobre o que fazer. Não respondi.
Preferi ficar calada a dizer que estava ocupada demais, fazendo conchinha no
sofá, para pensar em qualquer coisa além do calor do Harry contra a minha
pele.
No entanto, tenho cinco dias paparicando TVs para refletir. Quer dizer,
considerando que eu consiga refletir com a constante companhia do meu medo
de ser massacrada por essas paredes escuras com isolamento acústico.
Se Harry não tivesse me ajudado a liberar endorfinas antes de a gente vir,
era capaz de eu estar sentada no chão, em posição fetal, abraçando-me e
murmurando para mim mesma sobre como o meu medo é irracional.
Uma coisa que Helô disse para fazer nessas horas é tentar me imaginar em
um lugar que me traga calma. A boca de Harry no meu clitóris não me traz
nem um pouco de calma, mas, considerando que ainda não aderi à posição
fetal, acho que imaginar um lugar que me dê orgasmos também funciona.
Estou perdida nesse estado de excitação, quando ouço a porta bater. Dou
um pulo, já me preparando para o meu surto iminente. Eu tinha colocado o pé
da outra cadeira entre a porta e o batente, para evitar que ela fechasse sozinha,
mesmo sabendo que o peso de uma porta com isolamento acústico torna
impossível isso acontecer — ou, pelo menos, era nisso que eu acreditava.
Já estou suando frio, quando me viro.
— Harry?
A visão dele arranca qualquer medo de mim e o mundo todo desaparece ao
meu redor. Só consigo enxergar o que está na minha frente: a sua camisa social
preta, com as mangas dobradas até um pouco antes dos cotovelos, expondo
seus antebraços; o seu cabelo ainda molhado do banho que ele deve ter tomado
no seu hotel, depois que saiu do meu apartamento; e a calça escura de brim
que envolve as pernas que eu queria que estivessem entre as minhas.
— Acabei de sair da minha palestra e te vi pela fresta da porta. Desculpa,
mas precisava te tocar.
E ele me toca.
Harry cruza o ambiente minúsculo com um passo, segura meu rosto entre
as mãos e abre meus lábios com sua língua. Não sei quanto tempo se passa até
que se afaste, mas a sensação de perda, causada pela ausência da sua boca na
minha, deixa claro que não foi o suficiente.
— É errado eu ter invadido o seu espaço de trabalho para te beijar?
— É errado se você parar só no beijo. — Ele sorri, avançando para me
tomar novamente, mas eu o impeço, colocando o indicador contra os seus
lábios. — Se não me engano, estou te devendo um orgasmo.
— Eu já disse que não me deve nada.
— Harry, já te contei que sou um gênio da matemática? E você é músico e
biólogo marinho. Nós vamos pela minha conta, okay?
Começo a beijar o lóbulo da sua orelha, seu maxilar, seu pescoço. Saio do
seu abraço para pegar o meu suéter, que estava pendurado na parte de trás da
cadeira. Dobro-o ao meio e o jogo no chão.
— O que você está fazen…?
Ele para de falar assim que me ajoelho aos seus pés.
Estive com o Rafael durante seis meses e nunca fizemos nada no escritório.
Conheço Harry há sete dias e, na primeira oportunidade que encontro de
colocar a boca no seu pau, eu me taco contra o chão no meio de uma
conferência.
Esse homem me tira qualquer grama de sanidade que eu ainda achava que
tinha.
Abro o botão da sua calça e o seu zíper, sentindo que a sua ereção já está
pronta para mim.
— Alice…
Eu queria uma distração para não pensar na claustrofobia e, no instante em
que sinto seu pau contra o fundo da minha garganta, sei que consegui a melhor
de todas.

São cinco dias, mas parece que não durou nem uma hora. O telão foi um
sucesso e não me deu nenhum trabalho. As palestras do Harry também foram
ótimas e lotaram todos os dias. Consegui escapar durante alguns minutos, no
terceiro dia, para assistir a uma e fiquei impressionada com a sua capacidade de
dominar o ambiente.
A paixão pelo que faz está em cada palavra, em cada gesto. Não tinha uma
pessoa olhando o celular, pois todas estavam hipnotizadas pelo que ele falava.
E, mesmo abordando temas tão sérios, conseguia trazer leveza e até contava
algumas piadas que faziam todos rirem de quase chorar. Me lembrei de que ele
comentou algo sobre ser professor assistente quando estávamos no trajeto para
o Sítio Burle Marx e, observando-o naquela sala, notei que ele sabe trabalhar
um auditório quase tão bem quanto sabe trabalhar o meu corpo. Nunca fui de
me excitar com fantasias não-realistas, contudo, ao vê-lo naquele palanque,
admito que fui dominada por imagens do professor Harry, preso em uma sala
de aula comigo, a aluna que precisa de disciplina.
Agora é sexta-feira, último dia do evento. E penúltimo dia do Harry no
Brasil.
As portas do centro de convenções ainda não foram abertas para o público
e sei que Harry não chegou — sua palestra é só às onze da manhã e, depois de
uma noite acordado na minha cama, ele precisava das horinhas a mais de sono
— então coloco meus fones bluetooth e deixo Cher me dizer que encontrou
alguém para tirar a sua dor e sua solidão.
O cubículo onde estou continua sendo apertado, mas, agora, cada
centímetro está com lembranças de nós dois juntos.
Harry na cadeira e eu em cima dele, de frente; Harry na cadeira e eu de
costas; Harry ajoelhado no chão e eu de quatro; Harry atrás de mim, contra a
parede; Harry deitado e eu cavalgando o seu corpo; Harry em pé e eu sentada
no único espaço da bancada sem um equipamento. Resumindo, foram bons
quatro dias. Mal posso esperar para ver o que conseguimos fazer hoje.
Particularmente, queria explorar mais a cadeira, acho que ainda tem potencial.
Deus, como amo a pessoa que inventou espelhos unidirecionais! Fazer tudo
o que já fizemos aqui dentro, sem ninguém saber o que está acontecendo, mas
conseguindo ver o outro lado, é tão excitante.
Nossos dias têm sido assim: mergulhos de manhã, promiscuidade durante
o dia e mais um pouquinho de promiscuidade à noite. Me enfiar debaixo do
edredom com Harry, no seu hotel ou no meu apartamento, só nós dois, depois
de um longo dia, tem sido a experiência mais gostosa que eu já tive. Esse
homem todo é a experiência mais gostosa que eu já tive.
Estou cantando e pensando em todo o potencial da cadeira quando sinto
uma mão no meu ombro. Fiquei tão entretida assim que já deu tempo de
Harry chegar? Me viro e o sorriso que estava se formando é arrancado do meu
rosto e jogado na lama. Depois, ele é pisoteado por uma manada de elefantes,
engolido por um jacaré, excretado e pisoteado pela mesma manada que está
fazendo o caminho de volta.
— O que você está fazendo aqui, Rafael? — digo, removendo o meu fone.
— Nossa, que recepção calorosa!
Balanço a cabeça, tentando manter a compostura.
— Desculpa, só levei um susto. — Mostro o fone nas minhas mãos. —
Estava perdida no mágico mundo de Cher.
— Então eu que peço desculpas por ter te tirado esse pequeno prazer.
Rafael puxa a cadeira do meu lado e se senta, entrelaçando os dedos sobre
sua barriga tanquinho e cruzando os calcanhares.
ELE. SE. SENTA.
Sua postura tranquila e relaxada me mostra que não só se senta, mas que
pretende ficar um tempo.
Sinto que o prazer de ouvir a Cher não vai ser o único que ele vai me tirar
hoje.
— O canal do jogo infantil teve uma mudança na diretoria e o cliente vai
precisar refazer o briefing para agradar o novo chefe. Enquanto não mandam,
estou de mãos atadas, por isso a Raquel pediu para eu vir hoje te ajudar. Achei
que ela ia te avisar.
— Não, não avisou — falo, tentando segurar a ânsia de vômito.
Rafael aqui. Rafael e Harry aqui. No mesmo lugar. Eu não tenho estrutura
emocional para isso, meu pai!
As paredes parecem estar menores, não parecem? Menores não, estão se
movimentando. Estão vindo na minha direção. Todas ao mesmo tempo.
Minhas mãos tremem e deixo meu fone cair no chão.
Rafael se abaixa e o pega, fazendo sua cadeira ranger.
Ela não estava rangendo na segunda-feira. Ela está rangendo agora, por
causa do peso de dois corpos transando em cima dela.
Duas vezes.
Sinto um aperto no meu peito. Está tão forte que não dá para respirar.
— Alice, você está bem?
Não consigo esconder o ataque de pânico. Rafael me conhece, sabe das
minhas fobias e crises. Ele se levanta correndo e escancara a porta.
— Vamos lá para fora, Alice. A claustrofobia vai melhorar quando você vir
o salão.
Quero me levantar, porém minhas pernas não obedecem. Tento responder,
mas as palavras não saem. Ele percebe e empurra a minha cadeira, levando-me
arrastada para fora. Ver Rafael sendo carinhoso e cuidando de mim torna tudo
pior. Eu menti para ele também. Inventei um perfil falso para manipular seus
sentimentos e fazê-lo perceber o que tinha perdido. E, depois de mexer com a
sua cabeça, eu ainda tive a cara de pau de dizer que não o queria mais.
O inferno vai ter um tipo especial de tortura para mim. Vou receber
convite para o salão VIP do Demo, com acesso aos bastidores e tudo. Vou
poder ver show da banda do Hitler e tomar drinks com Calígula; e os drinks
serão uma mistura de fígado com estrume de vaca e um toque de xixi de gato.
— Respira comigo, Alice. — Rafael está agachado aos meus pés,
inspirando e expirando com calma.
Queria ter a sua calma, Rafael!
Tento focar na sua respiração. Preciso sair da crise quanto antes para
conseguir pensar no que vou fazer, se é que existe algo que eu possa fazer.
— Helô — pronuncio entre dentes.
— Você quer que eu ligue para Helô?
Faço que sim com a cabeça. Ele pega meu celular e o aponta para o meu
rosto, para que o reconhecimento facial destrave o aparelho.
Ele está tão perto das mensagens com Harry e com Helô, mensagens que
revelariam a verdade. Minha respiração piora.
Entretanto, sei que ele está focado em ligar para minha amiga.
— Helô? É o Rafael — ele diz, observando-me. Não consigo ouvir o que
ela responde, mas imagino que esteja tão confusa quanto eu me sinto. — A
Alice está tendo uma crise de pânico aqui, na conferência. Achei que era
claustrofobia e a tirei da cabine, mas não está passando. … Sim, eu estou na
conferência. … Não, acho que ela não sabia. Por que isso importa? … Não
sabia que isso era importante para você pensar qual é o melhor tratamento. …
Não, eu não tenho um diploma de Psicologia. … O que tem a ver se eu como
carne ou não?
Ela claramente está se perdendo.
Estico o braço, pedindo o aparelho.
— Ela quer falar com você, Helô.
Rafael segura o celular contra o meu ouvido.
— He.. lô… — Mal consigo formar a palavra.
— PUTA QUE PARIU, ALICE! O QUE ESSE HOMEM ESTÁ
FAZENDO AÍ?
Rafael me olha apreensivo, mas parece não ter escutado o berro do outro
lado da linha. Dou graças a Deus pelo centro de convenções já estar
movimentado o suficiente para abafar a histeria da Helô. Confesso que,
inclusive, fico um pouco irritada. O momento de histeria é meu, e ela está
querendo roubá-lo de mim!
Não consigo responder. O peso no meu peito aumenta, e só balbucio
vogais e consoantes, sem uma ordem ou um sentido.
— Acho melhor resolvermos sua crise antes de a gente discutir isso, né?
Você acha?
— Passa o celular de volta para o Rafael.
Me afasto do aparelho e olho para o Rafael, sinalizando para ele pegar.
— Oi. … Okay, pode deixar. — Ele pega o seu próprio celular, mexe em
algo nele e volta a falar com Helô. — Pronto, coloquei o cronômetro. Vou
devolver o aparelho para ela agora.
Ele volta com o celular para minha orelha e me mostra o seu, com a tela do
cronômetro aberta.
— Querida, eu preciso que você foque na minha voz e na tela à sua frente.
Está vendo os números passando? Os segundos virando? Você conhece isso. Sabe
como o tempo passa. Sabe que número vai vir depois e qual ficou para trás. Esses
números são seguros, Alice, não vão mudar. Tenta pensar no próximo e, assim que
virar, pensa no seguinte. O tempo é seguro. Você está segura.
O tempo é seguro. Eu estou segura.
A calma e a firmeza no tom que Helô assume ao vestir o seu chapéu de
psicóloga me trazem para o presente e, aos poucos, sinto como se estivesse
voltando ao controle.
— Continua vendo os números, Alice. Não tira os olhos deles, mas agora foca
também na sua respiração. Vamos contar quatro segundos para a sua inspiração e
quatro para a expiração, tudo bem? Eu conto para você. Inspira; um, dois, três,
quatro. Isso, Alice. Agora, expira; um, dois, três, quatro.
Helô repete a contagem durante exatos cinco minutos. Eu sei porque estou
acompanhando de perto um cronômetro.
— Como você está se sentindo?
— Melhor.
Só o fato de conseguir falar alguma coisa já mostra isso. Rafael ajoelha ao
meu lado, com um sorriso de alívio no rosto. Dou um de volta para confortá-
lo.
— Você consegue se levantar?
— Acho que sim.
Coloco os pés no chão e Rafael segura o meu braço, ajudando-me. Pego o
meu celular na sua mão e continuo falando com Helô.
— Obrigada. Eu achei que ia ter um troço.
— Você teve um troço, Alice. — Verdade. — Imagino que com Rafael aí você
não possa elaborar muito, mas já sabe o que vai fazer para manter esses dois longe
um do outro? Como você não me ligou essa semana, nem respondeu minhas
mensagens, tenho certeza de que não falou para o Harry ainda, estou errada?
Meus batimentos cardíacos dão uma leve acelerada.
— Não, não está.
— Tenho uma ideia. Desmaia.
— Oi?
— O Rafael já te viu passando mal, então não vai estranhar se você desmaiar.
Se os dois forem se encontrar, desmaia.
— Helô, eu preciso voltar ao trabalho. Obrigada pela ajuda com a minha
crise, e não com esse conselho idiota de agora.
— Eu salvo a vida dela e ainda sou chamada de idiota.
— O seu conselho foi idiota, você é maravilhosa.
— Sou mesmo, e você faz bem em se lembrar disso. Beijos, querida.
— Beijos.
Desligo e noto Rafael, que não tirou os olhos de mim.
— Se a Helô te deu um conselho sobre como lidar com o seu pânico, acho
que deveria seguir. Ela resolveu por telefone a sua crise, sabe do que está
falando.
— Era um conselho sobre cuidados com a pele — minto —, ela emenda
um assunto no outro, sabe como é.
Rafael assente.
— Acha que consegue voltar lá para dentro? Podemos deixar a porta
aberta…
— Não! — grito, antes de conseguir me controlar. Se a porta estiver aberta,
Harry pode ver como um convite para entrar aqui. Preciso dar um jeito de
superar a minha claustrofobia e manter essa porta fechada. — Helô me deu as
ferramentas de que eu preciso para lidar com isso. Acho melhor colocá-las em
prática.
— Se você prefere assim. Posso te ajudar com alguma coisa?
— Só me distrair. — Não como o Harry me distrai, claro. — Conversa
comigo, brinca, tira a minha cabeça daqui.
— Posso fazer isso. Vamos voltar lá para dentro então?
— Vai entrando. Me lembrei de que tenho que responder a um e-mail.
Rafael obedece. Espero ele desaparecer dentro da cabine e eu abro o
aplicativo de mensagem. Quando começo a digitar, ainda não sei o que vou
dizer, mas no fim decido por me manter o mais próxima possível da verdade.

Alice:
Um colega de trabalho foi enviado para me ajudar hoje. Acho melhor deixarmos para
nos ver de noite, tudo bem?

Estou realmente cansada de esconder as coisas das pessoas de quem gosto.


Pior do que o ataque de pânico é esse aperto constante no peito. Harry me faz
esquecer desse incômodo sempre que está comigo, mas em breve ele vai partir e
eu vou ter que lidar com a minha loucura sozinha.
Não preciso pensar se quero tentar uma relação com ele ou não, isso é
óbvio. Somos perfeitos juntos. Mas a realidade é que nosso namoro acabaria
dependendo de ele vir para cá ou de eu me dopar muito para conseguir pegar
um avião, sem ter um ataque pior do que esse que aconteceu agora. Além
disso, nenhum de nós dois é tão abastado assim para ficar comprando
passagem o tempo todo.
Estamos fadados ao fim, o que é um pensamento assustador e libertador ao
mesmo tempo. Eu achei que não precisava falar nada porque ele já ia embora,
logo tudo ia acabar. No entanto, exatamente porque ele vai embora é que posso
falar. Independentemente do que eu disser, nós vamos terminar. Então, por
que não colocar tudo às claras?
Vou magoá-lo? Provavelmente. Mas quero que ele saia daqui sabendo que
eu respeito o que nós temos o suficiente para ser sincera. Contudo, o centro de
convenções não é o lugar para essa conversa. Vou deixar para contar hoje à
noite.

Harry:
Claro, não quero atrapalhar. Quer fazer alguma coisa ou prefere ficar em casa? 😘

Alice:
Prefiro ficar em casa…

Harry:
Eu também. 😉 Te vejo às oito!

Alice:
😗

Agora é só ficar olhando para um cronômetro até o fim do evento e depois


ir para casa destruir a minha vida.
A lice está com o cabelo preso naquele coque alto e despretensioso que sempre
me dá vontade de soltar. Usa uma camisa branca folgada que vai até a metade
do seu quadril, uma legging preta que contorna as pernas até os calcanhares e
um par de chinelos azuis nos pés. E tudo que eu consigo pensar é em nossas
roupas no chão do seu quarto.
O último dia do evento não foi o que eu esperava. Pensei que teríamos
mais tempo juntos, porém, a presença de alguém do seu trabalho nos impediu
de explorarmos, novamente, aquela minúscula cabine. Me resta compensar o
máximo possível agora.
Domingo eu vou embora e, no que depender de mim, ficarei do seu lado
— tocando-a, ouvindo-a, e sentindo-a — até que a voz nos alto-falantes do
aeroporto me diga que preciso embarcar. A verdade é que não estou nem um
pouco preparado para me despedir de Alice. Se a conferência me inspirou a
colocar nos eixos a minha carreira, estar com a Alice trouxe vida de volta para
todo o resto. Nós nos conhecemos há onze dias, e ela já é mais importante para
mim do que qualquer outra mulher jamais foi, incluindo Melanie. E isso me
assusta.
Tudo que eu mais queria é continuar o que temos. Fico maquinando
maneiras de fazer isso acontecer e torcendo para Alice estar fazendo a mesma
coisa. Quando estou com ela, sinto que estamos na mesma página, no entanto,
algumas vezes, principalmente quando Alice cancela algo comigo, uma
insegurança surge e eu me pego pensando que isso que nós estamos vivendo é
mais importante para mim do que para ela.
Paro de tentar racionalizar o nosso futuro e foco no agora, quando uma
mulher linda está me convidando para entrar no seu apartamento.
Assim que ela se vira, depois de fechar a porta, eu lhe ofereço o embrulho
que estava escondendo atrás das costas.
— O que é isso? — ela pergunta. Seu sorriso me garante que,
independentemente do que seja, ela vai amar. Só o fato de eu ter pensado nela
já faz com que fique feliz, o que me deixa mais feliz ainda.
— Um mimo.
— Um mimo? — ela gargalha. — Parece algo que uma blogueira diria de
um presente que ganhou de alguma marca. Vou ter que fazer um story dos
meus recebidos?
— Não costumo seguir blogueiras brasileiras, então não tenho a menor
ideia do que você está falando, mas claro! Por que não?
Ela balança a cabeça e começa a abrir o presente. Remove o papel que o
envolve e levanta a tampa da caixa de sapatos. Seu sorriso some por um
instante e me pergunto se eu errei lhe dando isso. Contudo, ela pega o
presente, tacando a caixa no chão, e pula em cima de mim, gritando e
envolvendo suas pernas na minha cintura. Não estou preparado e quase
caímos, porém me recomponho rápido, segurando as suas coxas.
— Pantufas! Eu não acredito! — Ela dá beijos curtos por todo o meu rosto.
— Você realizou o meu sonho!
Alice escorrega pelo meu corpo, chuta os chinelos para longe e coloca as
pantufas nos pés.
— Quis realizar seu sonho, mas também fui um pouco egoísta.
— Como assim?
— Queria te dar algo para você se lembrar de mim depois que eu for
embora. Achei que golfinhos seriam uma boa escolha para a sua primeira
pantufa. Eles são animais marinhos, que são o motivo de eu ter vindo para cá
e, apesar de não serem os botos-cinza que estão na bandeira do Rio, eles são da
mesma família, então representam também a cidade.
Alice está séria novamente, mas dessa vez não acho que vai gargalhar de
felicidade quando voltar a falar. Ela cruza os braços atrás do meu pescoço e
acaricia o meu cabelo. Eu amo quando ela faz isso.
— Você me deu isso para eu me lembrar de você? Harry, não existe a
menor chance de eu me esquecer de você. Esses dias que passamos juntos… —
Ela abaixa o rosto. — Foram os melhores da minha vida.
Seguro seu queixo com o polegar e o indicador, fazendo com que se volte
novamente para mim. Desde que começamos a sair, ainda não tínhamos falado
sobre nossos sentimentos, e ela está sem graça de estar abordando o assunto
agora. Por mais desconfortáveis que conversas sérias sejam, se eu quero ter
alguma chance de manter nossa relação, preciso deixar de frescura para
conseguir passar a segurança que eu sei que ela precisa.
Tenho que acessar meu Liam interior, se é que eu tenho um.
— Da minha também. — Seguro sua mão e a levo até o sofá. — Duas
semanas atrás, eu estava vivendo meu pior momento. Eu estava bebendo
demais, triste demais, sem saco demais. — Omito o motivo porque acho que
não é a melhor hora para falar de outra mulher. — Vim para cá, com o meu
doutorado por um fio e com minha vida pessoal em frangalhos. Mas aí eu te vi.
Depois, te ouvi. E, então, te senti. — Coloco uma mecha que se soltou do
coque atrás da sua orelha e deixo minha mão acariciar seu rosto. — Cada vez
que eu te encontro, é como se eu estivesse vivendo uma mistura de dia de
aniversário com manhã de Natal. É um frio na barriga misturado com a certeza
de que vai ser o melhor dia de todos. Não quero nomear o que eu sinto,
porque acho que nenhuma palavra faria jus, mas, se tivesse que fazer isso, a
única que poderia usar seria amor.
Alice fica imóvel. Seus olhos são a única parte do seu corpo que se
movimenta. Eles vão de um lado para o outro, travados em mim, tentando
assimilar o que eu acabei de dizer. Confesso que estou fazendo o mesmo. Eu a
conheço há onze dias e disse que a amo. Mas, bloody hell, como isso é verdade!
Eu amo essa mulher. Ela precisa aceitar isso logo para eu arrancar a sua roupa,
senão vou explodir.
No entanto, ela não parece estar aceitando. Continua em silêncio. Será que
entendi tudo errado? Será que ela não estava tão investida nisso quanto eu?
Será que esse é o nosso fim? Preciso saber o que ela está pensando.
— Se você não sentir o mesmo…
Sou interrompido por seus lábios nos meus. Alice me toca, me beija e me
morde. Sua boca se afasta apenas alguns milímetros para falar e volta a explorar
a minha a cada palavra dita.
— Eu sinto… Eu sinto o mesmo… Eu estava perdida… Você me deu
esperança… Me deu propósito… — Ela abre um sorriso ainda com os lábios
contra os meus. — Me deu orgasmos. — Não consigo controlar minha risada,
mas ela insiste em pontuar seu discurso com mais beijos rápidos. — Eu não
sei… Não sei o que vamos fazer… Mas eu quero você… Como eu quero você.
Essa declaração é o suficiente para me fazer parar de aceitar seus curtos
beijos e começar a apertá-la contra mim para, finalmente, prolongá-los.
— Eu preciso te ter.
— Sim…
Levo minhas mãos até seus cabelos e faço o meu melhor para soltá-los, sem
puxar nenhum fio. As mechas caem emoldurando o seu rosto e passando dos
seus ombros. Massageio seu couro cabeludo, fazendo com que jogue a cabeça
para trás, com o prazer da simples carícia. Seu movimento abre o pescoço que
eu tanto desejo para mim. Chupo a pele embaixo da sua orelha e ela dá um
curto gemido. Quero fazê-la gemer mais.
Me levanto do sofá, segurando-a pela cintura com uma mão e usando a
outra para incentivar suas pernas a contornar o meu corpo. Entro no seu
quarto e a coloco na cama, deitando-me sobre ela.
Seu cabelo escuro contrasta com o edredom branco e eu me pego parado,
apenas absorvendo a sua beleza.
— Tudo bem, Harry?
— Não. — Ela franze o cenho. — Só vai ficar bem quando eu estiver
dentro de você.
Alice sorri e sua expressão me mostra que ela sabe exatamente o que eu
quero dizer com isso. Preciso ser um com ela, estar enterrado dentro do seu
corpo para reivindicá-la como minha. Ela estava certa. Não sabemos o que vai
acontecer, no entanto temos o hoje e eu pretendo aproveitar cada segundo.
— O que você está esperando então?
Apoio os joelhos na cama, levantando o meu tronco para ajudá-la a tirar a
camisa. Ela não está usando sutiã hoje e eu agradeço a qualquer entidade
cósmica que a inspirou a não colocar mais uma camada de roupa me separando
do seu corpo. Tiro a minha camisa também, antes de explorar sua barriga com
as minhas mãos, levando meus dedos até os seus peitos. Seus mamilos
endurecem sob o meu toque, impulsionando-me para baixo para que eu
coloque um deles na boca.
Alice se remexe sob o peso do meu corpo. Sons de prazer emanam da sua
garganta, e tenho certeza de que ela poderia gozar apenas com o que estou
fazendo. Normalmente eu garantiria o seu orgasmo primeiro, mas hoje eu
preciso estar dentro dela quando isso acontecer.
Desço minha boca pela sua pele, levando minhas mãos até as laterais da sua
legging. Continuo traçando seu corpo com os meus lábios enquanto arrasto a
calça e sua calcinha para baixo. Propositalmente, ignoro o seu centro e desço
contornando-o. Quando chego nos tornozelos, estou na beirada da cama e me
levanto. Tiro as pantufas de seus pés e depois faço o mesmo com a legging.
A visão de Alice nua me afeta demais e corro para terminar de me despir o
mais rapidamente possível.
— Abre as pernas para mim.
Ela obedece, dobrando os joelhos e colocando os pés sobre o edredom. Se
minha ereção já estava incontrolável com a imagem de seu corpo nu, observar
seu sexo nessa posição me deixa prestes a ejacular.
— Você está tão molhada, Alice. Consigo ver daqui.
— Para de ver e vem sentir.
Ao longo dessas duas semanas, Alice tem ficado cada vez mais vocal sobre o
que ela precisa de mim na cama, e isso me deixa louco.
Pego a camisinha na carteira e me deito sobre ela, apoiando um braço ao
lado da sua cabeça. Levo o outro até minha ereção e acaricio sua pele quente e
molhada com a cabeça do meu pau. Alice fecha os olhos e abre mais as pernas
para mim.
Não posso esperar, preciso dela agora.
Me ajoelho na cama e coloco a camisinha, segurando o seu olhar com o
meu. Vou até ela e levo meu quadril adiante, abrindo seus grandes lábios com o
meu pau. Alice fecha os olhos por um segundo, mas logo os abre para
continuar fixada em mim.
Meus movimentos são lentos e possessivos. Passo um braço por debaixo das
suas costas, mantendo o outro na posição de apoio, ao lado do seu rosto, e
grudo mais nossos corpos.
— Eu te amo, Harry.
Se eu achava que estar dentro dela era prazeroso, estar assim e ainda ouvi-la
confessar seus sentimentos é decididamente sublime.
— Te amo, Alice.
A minha confissão quase é abafada pelo seu orgasmo. Seu sexo aperta o
meu pau e não consigo segurar mais. O prazer se estende por uma eternidade
enquanto mantemos nossos olhares um no outro e nosso amor entre essas
paredes.
Neste instante, eu tenho a certeza de que não existe nada que me faça largar
essa mulher.

Alice está deitada de bruços. O edredom só começa a encostar sua pele


pouco depois do começo da curva da sua bunda, o que deixa as suas costas
expostas. Ela dorme um sono tranquilo, o resultado de termos transado mais
duas vezes. Um dos seus braços está sobre o meu peito e o seu rosto, que está
voltado para mim, tem uma serenidade que me acalma, ainda assim não
consigo dormir.
Eu vou embora no domingo. Só temos as próximas vinte e quatro horas
juntos, antes que eu precise partir.
Como posso deixá-la? Como entrar naquele avião sabendo que a melhor
coisa da minha vida está bem aqui? Preciso de um plano.
São duas e meia da manhã, então já passa das seis em Londres. Apesar de
ser sábado e Liam não precisar acordar cedo, acho um horário aceitável para
ligar pedindo ajuda àquele que é como se fosse meu irmão.
Levanto o braço de Alice com cuidado para sair da cama. Pego minha calça
no chão e fecho a porta para ela não acordar com a minha ligação.
Encontro meu celular no bolso e coloco a calça antes de ligar para Liam.
Ele atende depois do quinto toque. A tela mostra seu rosto de lado sobre um
travesseiro e o que parece ser o começo de uma camisa cinza no seu pescoço.
— Se você não estiver em uma vala, sangrando até a morte, eu vou desligar.
— Por que você e a minha mãe sempre atendem achando que eu morri ou
que matei alguém?
— Isso fala mais sobre quem você é do que sobre a gente.
Mesmo mal-humorado e com sono, Liam consegue tirar um sorriso de
mim. No entanto, sinto que, ainda que tenha tido uma noite maravilhosa com
Alice, eu estou em um estado de espírito bem parecido com o dele.
— Preciso de ajuda.
Isso faz com que ele acorde, se sentando encostado contra a cabeceira macia
da sua cama.
— Estou ouvindo.
Não sei se ela vai acordar em breve, preciso correr com essa conversa, então
vou direto ao ponto.
— Eu a amo.
Liam passa a mão livre pelos seus cabelos e seu rosto. Ou ele não sabe o que
dizer, ou sua empatia o deixa tão desesperado quanto eu.
Talvez seja um pouco das duas coisas.
— O que você vai fazer?
— É aí que eu preciso de ajuda.
Ele coça o começo de barba que só existe porque eu o peguei ainda na
cama. Mais duas horas e ele estaria com a pele lisa de bebê que tanto ama.
— Ela sente o mesmo?
— Sim.
—Tem certeza?
Antes de ontem à noite, a minha resposta teria sido não, mas agora eu sei,
sem sombra de dúvida, que ela me ama. Não dá para mentir a conexão que a
gente tem. Então eu assinto.
— Namoro à distância até vocês não aguentarem mais e um dos dois ir para o
país do outro. Minha preferência seria vocês virem para cá, porque não sei se minha
cútis lidaria bem com o calor de quarenta graus Celsius, mas eu faço dar certo se for
importante para você.
Eu amo o meu amigo por dizer isso. Me pergunto como ele consegue ser
tão calmo e objetivo quando o assunto é o coração dos outros, e tão
desesperado e sensível quando o assunto é o dele?
— Não é tão simples, Liam. Meu doutorado e o trabalho como professor
assistente pagam o que preciso para viver bem, não para ficar comprando
passagens internacionais. A gente vai se ver no máximo uma vez por ano.
Como alguém consegue seguir em um relacionamento assim?
— Posso ajudar com as passagens.
— Obrigado, irmão. Mas ela tem claustrofobia; nunca foi para a Europa
porque não consegue lidar com o avião. E eu não tenho tantos dias de férias
para vir mais de uma vez para cá. Se ela não pode viajar, não importa se você
quer pagar um milhão de passagens. Continuaremos com o mesmo impasse.
Ele inspira fundo. Conheço cada expressão que o seu rosto é capaz de fazer
e, quando suas sobrancelhas assumem aquela posição séria que só ele consegue
expressar, sei que está ponderando como falar o que precisa me dizer.
— Danny, Beatrice, Steph e todas as outras. Você sabe o porquê de não ter dado
certo?
— Porque elas são burras e não te deram o valor que você merecia?
Um dos cantos de sua boca sobe em um sorriso falso, que agradece as
minhas palavras, apesar de não concordar com elas. Ele nunca se achou bom o
suficiente. Algo que eu realmente não consigo entender.
— Não deu certo porque eu as amava mais. Talvez elas tenham me amado em
algum momento, mas nunca foi o suficiente. Eu lutei mais do que elas para fazer
dar certo. Se você tem alguém que acha que vai lutar por você e por quem faria o
mesmo, não entendo o que tem para pensar. Vocês se devem tentar fazer dar certo.
Na verdade, não, retiro o que eu disse. Vocês ME devem tentar fazer dar certo. Eu
nunca tive ninguém para me amar de volta e vocês não podem jogar o que têm fora
por causa do primeiro empecilho que surge.
— É um grande empecilho, Liam. Alguns diriam que é um empecilho do
tamanho de um oceano.
— E qual é o tamanho do que vocês sentem?
Fico sem palavras. Ou Liam é muito sábio, ou é a pessoa mais ingênua que
eu conheço. De qualquer maneira, concordo com o que diz.
— E se não der certo?
— Vocês vão fazer dar certo. Tenho certeza.
Sua confiança me emociona, mesmo sabendo que eu ainda estou tremendo
por dentro. Quero acreditar que é possível e pretendo fazer Alice acreditar
também. No entanto, não posso deixar de pensar em como vou ficar
despedaçado se tudo acabar em chamas.
— Você ainda nem me mostrou uma foto da mulher que fez você tomar a
Olivia de mim.
— É que eu não quero você babando em cima do que é meu.
— Ela não é sua, Harry. É uma mulher independente que está disposta a
caminhar ao seu lado, em pé de igualdade.
— Ahn… Okay… — A falta de masculinidade tóxica de Liam, às vezes,
tira um pouco da paixão das coisas.
— Qual é o nome completo dela?
— Alice Santana. Por quê?
— Vou procurar por ela no Instagram. — ele diz, movimentando seus dedos
na tela do celular.
— Acho que deve ter algumas centenas de Alices Santanas por aí. Eu amo a
mulher e a acho única, mas isso não quer dizer que o seu nome seja.
— Aposto que, só de ver o rosto na foto, eu consigo descobrir qual é.
— A última aposta que fez comigo você perdeu.
— Você mesmo disse que eu não perdi! A aposta era para sexo casual. Colocou
amor na história, Olivia fica exatamente onde ela está.
Bufo para fingir que estou chateado.
— Okay. Tenta descobrir e me manda o perfil para eu ver se acertou. Mas
vai rápido que eu quero voltar para cama.
Ele abre um sorriso de orelha a orelha.
— Achei.
— Duvido.
— Te mandei aí.
Abro o chat do aplicativo que estamos usando e clico no link que ele me
passou. Na minha tela, vejo o perfil privado de Alice. Não é que o filho da puta
acertou?
— Como é que você fez isso?
— Eu te conheço, Harry…— Ainda estou chocado com a habilidade de
Liam quando ele continua. — E você me disse que ela trabalha com games. Essa
mulher da foto está com uma camisa do Super Mario Bros.
Rio percebendo que ele está certo. Minha geek está mais linda e geek do que
nunca nessa imagem. Queria que o perfil dela fosse aberto para que eu pudesse
ver mais. Faço a solicitação de amizade, temendo o tempo que eu vou passar
vendo essas fotos e sofrendo com a saudade quando estiver em outro
continente.
Pensar sobre nossa separação me faz refletir sobre nossa aproximação esta
noite. Acabo contando para Liam os detalhes de como nos declaramos um para
o outro.
— Pantufas, hein? — ele pergunta, rindo. — Quem poderia imaginar que o
caminho para o coração de uma mulher começaria pelos seus pés?
— Eu também não tinha ideia.
— Fico feliz que sua noite tenha ido tão bem, mas não pense que eu me esqueci
da nossa aposta. Você duvidou que eu encontraria o perfil da Alice e eu achei. A
vitória é minha!
— Okay, você ganhou essa. Agora pode me dar a vitória da outra e ficamos
quites. — Brinco, fazendo uma das suas famosas piscadas de olho.
— Quites? A gente nem abordou o que eu ia ganhar se vencesse. Não vou sair
de mãos abanando enquanto você sai com o meu Höfner.
— Eu quero a Olivia, Liam.
— A Olivia é minha, Harry. Vamos fazer assim: você ganha a Alice, eu fico
com a Olivia e todo mundo fica feliz.
— Eu quero as duas.
— Para de ser guloso e deixa uma para o seu irmão! — Ele fica em silêncio,
durante uns instantes antes de completar seu raciocínio e eu desejo que ele
tivesse permanecido de boca fechada. — Mas você pode ficar com a Olivia se me
der a Alice.
— Você não tem muito apreço pelos seus dentes, não é? Porque eu vou
quebrar cada um deles se você não parar de falar merda.
Nenhum de nós dois diz nada. Ficamos nos encarando, fazendo nossas
melhores caras de mau, até não conseguirmos mais nos controlar e
começarmos a rir.
Ouço um clique na porta e me viro para ver se Alice está na sala, mas não a
vejo. Deve ter ido ao banheiro. E se está acordada, é hora de aproveitar um
pouco mais nosso tempo juntos.
— Tenho que ir, Liam. Vai embrulhando a Olivia para mim. Usa muito
plástico bolha porque eu não quero um arranhão sequer. — Ele me mostra o
dedo do meio e eu retorno com o meu indicador e o dedo médio como de
costume. — Boa noite, irmão.
— Bom dia, Harry.
Desligo o telefone e volto correndo para o quarto. Abro a porta devagar
para não acordar Alice se ela ainda estiver deitada, mas a cama está vazia. A luz
que sai da fresta debaixo da porta do banheiro confirma as minhas suspeitas.
Me deito na cama para esperá-la, rezando para que não esteja com muito
sono. Quero tê-la quanto antes. Depois de hoje, não sei quando vamos
conseguir nos ver de novo, por isso preciso aproveitar cada segundo.
No entanto, a campainha toca. E as chamas, que eu temia que fossem nos
destruir ao longo de meses por causa da distância, nos engolfam e acabam com
tudo antes mesmo de a gente começar.
-H arry?
O espaço vazio do meu lado me traz um medo súbito. Ele foi embora? Já
mudou de ideia sobre me amar? Ainda temos o sábado todo; por que ele se foi?
Parecem devaneios que duraram horas, mas tudo passa pela minha cabeça
em questão de segundos, até que um barulho na sala me acalma.
Ele ainda está aqui.
Me levanto e abro a porta, mas interrompo minha saída do quarto quando
o ouço falar em inglês.
— Why do you and mum always answer the phone thinking I died or that I
killed someone?
— That says more about you than about us.
Encosto a porta devagar para ele não achar que eu estava escutando sua
conversa — que eu estava, mas não foi de propósito. Pela voz da outra pessoa,
imagino que deva ser o tal de Liam que ele sempre fala. Acharia estranho ele
estar no telefone de madrugada se o amigo não estivesse em um fuso horário
diferente.
Volto para a cama e pego o celular. Não quero dormir de novo, não queria
ter dormido antes. Nosso relógio está em contagem regressiva! Quando ele
terminar a ligação, vou fazer um bule de café do tamanho do Big Ben para que
a gente consiga ficar acordado se curtindo; nem que eu precise colar fita crepe
nas minhas pálpebras!
Vejo um story de Helô com Antônio — desculpe, Antuoiny —, eles estão
em algum bar, brindando com caipirinhas. Sinto uma pontinha de ciúmes. Faz
um tempo que não saio com eles. Na verdade, faz um tempo que não saio para
bares, sem contar as poucas saídas forçadas com Helô para esquecer o Rafael.
Preciso mudar isso. Eles são os melhores amigos que uma garota pode querer,
eu preciso me esforçar mais. Prometo para mim mesma que vamos voltar a sair
depois que Harry for embora. Até porque sinto que vou precisar da distração.
Uma notificação surge na tela enquanto eu estou vendo os stories.

Solicitação para seguir: Harry Stewart

Me sento em um pulo na cama.


A mesma foto de Fernando Williams, o mesmo olhar, o mesmo sorriso, e
um problema que não tinha imaginado. Ainda que Helô e seus alunos tenham
parado de alimentar o Instagram, eu não deletei as fotos de Harry como
Fernando. Ele ainda está lá, photoshopado em diversas situações das quais
nunca participou, em eventos aos quais nunca foi, celebrando coisas que nunca
viveu.
Por que diabos eu não apaguei essas fotos antes?
Fiquei tão entorpecida no nosso universo que nem pensei nisso. Mal pensei
no Instagram como um todo até agora, quando precisei matar um tempinho.
Talvez meu inconsciente também não quisesse lidar com essa situação, como se
deletar as fotos pudesse significar assumir, de alguma forma, o que eu fiz. Ou
porque elas me lembram de uma fantasia que me resgatou durante um
momento emocionalmente complicado. Ou porque eu queria que cada uma
daquelas coisas tivesse acontecido de verdade. Ou talvez seja tudo isso.
A questão é que agora está acontecendo. Harry está na minha vida.
Será que Rafael é stalker — tipo eu — e vai saber se eu deletar as fotos? E se
Harry começar a interagir comigo pela rede social? Será que Rafael vai
descobrir que tudo foi uma farsa? E Harry? Será que, mesmo se eu deletar
tudo, ele pode acabar esbarrando com o perfil do Fernando?
Eu queria ter contado. Ia fazer isso assim que abri a porta essa noite.
Contudo, no instante em que as pantufas foram reveladas e ele se declarou, não
consegui. Como responder a um “eu te amo” com um “sou uma louca
desvairada e menti para você”?
Agora estou de lábios selados. Não posso estragar o que temos e não vou.
Preciso da Helô.
— OI! — ela berra no meu ouvido, tentando competir com a música
eletrônica no fundo.
— Helô — sussurro para Harry não me ouvir. — Preciso que você acabe
com o perfil do Fernando.
— QUÊ?
— Preciso que você acabe com o perfil do Fernando — articulo mais,
porém o som fica no mesmo volume.
— VOCÊ QUER QUE EU LAMBA O CACHORRO NANANDO?
— Não…
— MAS EU PRECISO ESTAR DORMINDO E LAMBENDO, OU É O
CACHORRO QUE ESTÁ NANANDO NESSE CENÁRIO? VOCÊ ADOTOU
UM CACHORRO?
Vou dar na cara dela.
— A-ca-be com o per-fil do Fer-nan-do! — sussurro pausadamente.
— ESPERA UM POUCO QUE EU VOU LÁ PARA FORA.
Até que enfim!
— VOU LÁ FORA. — Helô fala com alguém ao seu lado.
— POR QUÊ? — responde a voz grave de Antuanne, também gritando
por causa da música.
— ALICE ADOTOU UM CACHORRO.
Meu Deus…
— FALA QUE A GENTE VAI TER QUE TER COPARENTALIDADE.
QUERO SER PAI DE CACHORRO TAMBÉM.
— ISSO É ÓBVIO.
A música abaixa o volume aos poucos, mas ainda consigo ouvi-la ao fundo.
Sinceramente, eu acho que vou ter que acabar adotando um cachorro. Não
quero tirar essa alegria deles.
— Pronto! — Helô fala com sua voz normal. — Pode falar do doguinho.
— Não tem doguinho nenhum!
— Você já devolveu para o canil? Que horrível, Alice. Não se brinca com os
sentimentos de um animalzinho assim.
— Nunca teve cachorro nenhum! Eu falei que preciso que você acabe com
o perfil do Fernando.
— Ah! É, isso faz mais sentido. Por que você está falando baixo?
— Harry está na sala. E, Helô, ele acabou de pedir para me seguir no
Instagram. Preciso acabar com qualquer traço da existência do Fernando.
— Ah, acho que agora a turma já teve tempo razoável de trabalho com o perfil.
Amanhã de manhã mando e-mail pedindo isso, mas só devem ver na segunda.
— Você não pode deletar hoje?
— Não tenho a senha.
— Como você pode não ter a senha?
— Alice, ver a senha do perfil de uma pessoa é errado. Você nunca viu aquelas
mensagens nos caixas eletrônicos de bancos sobre o assunto?
— Não tenho tempo para isso. Vou deletar as fotos dele que eu tenho aqui
e rezar para nada dar errado até segunda. Tenho que desligar.
— Vai lá. Bom sexo para você.
— Para você também.
— Estou em um bar gay, Alice. Qualquer sexo aqui presumiria uma mudança
fundamental do meu ser, já que a minha época de experimentações acabou na
faculdade.
— Tchau.
Sem tempo, irmã.
Deleto correndo as fotos, checo se esqueci algum story nos meus destaques
e aceito a solicitação.
Olho a porta. Olho o teto. Volto a olhar para a porta.
Sinceramente, não aguento mais. Vou lá acabar com essa conversa e atacar
o Harry.
Decidida, seguro a maçaneta, mas, antes de abrir, escuto algo que me faz
parar.
— I want Olivia, Liam.
Um frio gelado percorre a minha espinha. Harry quer uma garota chamada
Olivia? Quem é essazinha? E como ele pode querer outra mulher depois de ter
se declarado para mim?
Eu devo ter ouvido errado. A porta está abafando a conversa. Ele deve ter
falado outra coisa e, assim como aconteceu com a Helô, eu entendi palavras
que não fazem sentido algum. Abro delicadamente uma fresta para conseguir
ouvir melhor e não revelar que estou fofocando atrás da porta.
— Olivia is mine, Harry. Let’s compromise: you get Alice, I get Olivia and
everybody is happy.
Existe uma Olivia mesmo! Eu não ouvi errado! Como assim o Liam fica
com ela e o Harry comigo?
— I want them both.
— Stop trying to bite off more than you can chew and leave one for your
brother here. But you can have Olivia if you give me Alice.
Me dar para ele? Harry está me dividindo com Liam? Ele não me ama de
verdade? Isso é só um jogo para ele?
Fecho a porta devagar. Pego o celular e minha roupa que estava no chão,
antes de me trancar no banheiro.
Eu não estou acreditando no que ouvi. Mesmo com o sotaque que parece
que eles estão com três ovos na boca, meu inglês é bom, sei que não ouvi
errado. Eles estavam negociando quem fica com a tal da Olivia e quem fica
comigo, como se nós duas fôssemos coisas que eles possuem.
Olivia, minha mais nova amiga, desculpa ter te chamado de “essazinha”. Você
é um peão também.
Não consigo entender. Preciso da Helô mais uma vez.
— OI!
Isso de novo não.
— Sai logo de perto desse DJ que eu preciso de você. — Estou sussurrando
novamente, mas, quando a música começa a diminuir, percebo que ela
entendeu e está indo para um local mais tranquilo.
— Alice, eu realmente estou tentando ficar bêbada e você não está me
ajudando.
— Ele é um louco pervertido, Helô.
— Os melhores são, querida. Acho que você tem que experimentar o que ele
está propondo. Anal é ótimo, te juro. Só precisa de uma preparação antes, um dedo,
depois outro, quilos de lubrificante. Mas você vai gostar! Ainda tem óleo de coco aí,
não tem?
Impressionante como ela nem precisa estar com música eletrônica berrando
para entender tudo errado.
— Helô, eu acabei de ouvir ele falando com o tal do Liam que existe uma
outra mulher chamada Olivia e eles estão decidindo quem fica com quem.
Harry quer nós duas e Liam quer dividir.
— Mas isso só sexualmente ou na vida?
— E que diferença isso faz?
— Se você curtir um swing pode ser interessante, mas, se quiser um
relacionamento monogâmico, concordo que pode ser ruim mesmo.
— Pode ser? É péssimo, Helô! Ele me disse essa noite que me ama! E eu
disse o mesmo para ele! E agora ele está fazendo planos de colocar essa tal de
Olivia na história e tratando nós duas como objetos. Quem ele pensa que é?
— Então você estaria aberta ao swing?
— Não! Helô, você pode prestar atenção no que eu estou dizendo, por
favor? O Harry tem outra mulher e mentiu sobre me amar! Foi tudo um jogo
pervertido dele com o amiguinho, e eu caí feito uma idiota.
— Desculpa, Alice. Acho que, no fim das contas, eu consegui ficar bêbada e
nem percebi. — Ela expira tentando colocar a cabeça no lugar. — Você precisa ir
confrontar o Harry. Não deixa nada por dizer. E, se for o caso, expulsa ele da sua
casa, veste um tubinho revelador e vem me encontrar. Nada é tão ruim que umas
doses de tequila tomadas do abdômen tanquinho do Antoine não possam melhorar.
A campainha tocando me tira da conversa antes que eu possa brigar com
Helô sobre o comentário da tequila.
— Tem alguém na porta, tenho que desligar.
— A essa hora? Vocês pediram comida?
— Eu não, mas talvez o Harry tenha pedido.
— Okay, vai lá e qualquer coisa já sabe: meu tanquinho é seu tanquinho.
O tanquinho não é de nenhuma de nós duas, mas já desisti dessa conversa,
portanto não falo nada.
Quando eu saio, Harry não está no quarto e a porta está aberta. Estou me
encaminhando para a sala, quando ouço uma voz que não esperava.
— Cadê a Alice? Cadê a Alice, Fernando?
Rafael?
H arry e Rafael.
Rafael e Harry.
O momento que eu mais temia está acontecendo nesse instante, na minha
sala.
Rafael ainda veste a mesma roupa do evento, mas agora sua camisa social
verde musgo está completamente amassada. Seus olhos estão com círculos
escuros; seu cabelo curto parece que passou as últimas horas com alguém
passando a mão nele, deixando-o com um aspecto descabelado e desesperado;
obviamente ele não dormiu.
Harry está sem camisa nem sapatos, segurando a porta aberta, de costas
para mim. O que ele está pensando do cara, fora do seu juízo perfeito, que
acabou de chegar? Não consigo imaginar nem o que eu estou pensando!
A cena me faz esquecer de Olivia por um segundo. Estava pronta para
brigar com Harry, mas, pela aparência transtornada de Rafael, vou precisar
brigar com ele antes.
— O que você está fazendo aqui, Rafael?
Me arrependo de ter feito a pergunta no segundo que ela sai da minha
boca. Rafael não está olhando para mim. Ele encara Harry sem piscar. Nesse
momento, sei exatamente o que está fazendo aqui. Rafael chamou Harry de
Fernando, mas não fez isso porque achava que estava falando o nome certo. Ele
fez com ironia, pois já sabe de tudo.
— Pede para o Fernando — ele diz, pausadamente. — Chegar para o lado e
me deixar entrar, Alice. Precisamos conversar.
— Meu nome é Harry e está bem tarde para uma visita, não acha?
Nunca ouvi Harry com esse tom. Ele está puto. Aparentemente, ele pode
ter duas mulheres, mas eu não posso ter dois homens. Hipócrita!
Tudo bem. Preciso focar em um estrangulamento de cada vez. Primeiro,
Rafael.
— Harry. — Rafael já sabe de tudo, então não omito seu nome. — Você
pode me esperar no quarto, por favor?
Ele se vira para mim pela primeira vez desde que entrei na sala. Seu rosto
está contraído e acho que quer me estrangular também. Entra na fila,
queridinho!
— Não vou te deixar sozinha com esse bêbado.
Bêbado? Me volto para Rafael e percebo que está segurando no batente da
porta. É para não cair? Ele está alcoolizado?
— Está tudo bem. Eu o conheço. Me espera no quarto.
— Alice…
— Me. Espera. No. Quarto. — Minha calma evaporou. Se eu já queria dar
na cara dele antes, agora, com esse seu showzinho de que quer me proteger, a
vontade foi elevada a uma potência infinita!
Harry anda na minha direção, deixando o caminho livre para que Rafael
possa entrar. Ele para do meu lado antes de seguir para o quarto.
— Eu estou bem atrás da porta. É só gritar que eu apareço.
Se eu não quisesse espancá-lo nesse momento, teria ficado feliz por estar
preocupado comigo. Não é o caso.
Assinto com um gesto de cabeça. Não tenho forças para interagir com ele
agora.
Depois que Harry se fecha no quarto, Rafael cambaleia para dentro da
minha sala e se joga no sofá. Tranco a porta antes de me juntar a ele. Já basta
ter dois confrontos essa noite, não preciso que os vizinhos peguem suas pipocas
para assistir aos barracos.
— O que você quer, Rafael?
Ele não me responde, apenas tira o celular do bolso. Clica algumas vezes e
me entrega o aparelho.
Na tela, está o perfil do Fernando Williams. Vou matar a Helô por não ter
fechado esse perfil!
— Eu não tinha percebido que o seu novo interesse amoroso tinha só
algumas semanas de vida no Instagram. Mas percebi isso hoje, logo depois de
ver isso.
Rafael tira o aparelho das minhas mãos e me devolve com um vídeo no
IGTV do perfil da Semana do Meio Ambiente.
É uma entrevista sobre a contaminação dos oceanos, que foi realizada com
Harry. Seu nome aparece na legenda da imagem, assim como sua profissão e o
fato de que trabalha na Queen Mary, em Londres.
De todas as maneiras que eu pensei que seria descoberta, ter Rafael no meu
apartamento, fedendo a cerveja e jogando toda a merda no ventilador, na sala
ao lado de onde Harry está, — com certeza, com o ouvido contra a porta —
nunca foi uma delas. Ele já sabe. ELES já sabem.
— Por que você está aqui, Rafael? — É a terceira vez que pergunto algo
similar. Já entendi que descobriu tudo, mas não compreendo por que está desse
jeito e o que esperava conseguir aparecendo no meu apartamento, a essa hora
da noite e nesse estado.
— Você fez isso por mim? Criou o perfil do Fernando Williams para me
fazer ter ciúmes e querer voltar?
Então é isso. Ele entendeu quando o perfil foi criado e o que motivou tudo.
Cansei de mentiras, mas preciso tomar cuidado com a forma como falo a
verdade. Tenho certeza de que eu e Rafael temos plateia e, por mais que não
queira ver a cara de Harry no momento, o estrangulamento é a única maneira
com que quero machucá-lo.
— Eu criei esse perfil porque estava com a cabeça em um lugar ruim. Helô
quis me ver fora da fossa que você me deixou e resolveu me ajudar com esse
projeto. Não sabia que ia funcionar e que você realmente ia ficar com ciúmes
desse cara.
— Então era para eu te querer de novo? Mas eu tentei voltar com você! E
você disse que não.
— Desculpe, Rafael. Eu sei que é confuso para você. Mas entendi que, na
verdade, só precisava encerrar melhor as coisas entre a gente. Você estava certo,
a gente não ia dar certo.
— Não foi por isso que eu terminei. Terminei porque não estava pronto
para uma relação séria.
— Não, você terminou porque o seu terapeuta te disse que não estava
pronto. E, se você me amasse, teria mandado ele ir à merda e ficado comigo.
Você não me ama, só se acostumou comigo. A ideia de que outro homem
estaria tendo o que você teve e jogou fora te deixou com ciúmes, não o fato de
que eu estava entregando o meu coração para outra pessoa.
— Como você pode saber o que eu estou sentindo? Como sabe se eu te
amo ou não?
— Porque agora eu entendo como é um homem quando ele ama. — Ou
pelo menos achei que entendia, até ele arrancar meu coração fora. Luto contra
as lágrimas que querem se formar com esse pensamento. — Ele vai atrás de
você, te diz que você é importante, quer realizar seus sonhos, por mais
insignificantes que possam parecer, faz a vida dele encaixar na sua e não tenta
forçar o contrário.
— Esse homem… É o Harry?
O nó na minha garganta impede que o “sim” saia. Me sinto machucada,
usada, mas ainda acho que ele me ama. Só tem uma explicação para eu
continuar querendo que toda a ilusão que ele criou seja verdade: síndrome de
Estocolmo.
Contudo, me pego confessando o meu desejo em vez do que acreditava até
uma hora atrás.
— Eu espero que seja.
Rafael observa um ponto qualquer no chão, perdido em pensamentos.
— Você já o conhecia? Por isso a foto dele no perfil? Ou foi coincidência?
— Coincidência.
— Se ele não tivesse aparecido… — Ele se volta para mim. — Acha que
teríamos tido uma nova chance?
Fecho os olhos por um instante. Não quero ferir os seus sentimentos.
Rafael, por mais confuso que estivesse, sempre foi honesto comigo. Não tem
culpa se o seu terapeuta é um charlatão. Entretanto, preciso ser sincera.
— Não, Rafael. Nós já tivemos a nossa chance. Foi lindo, não posso negar,
mas acabou. Se lembra do dia do nosso almoço? Quando você quis voltar e eu
neguei?
— Como posso esquecer?
— Foi nesse dia que eu conheci o Harry.
— Na cafeteria?
— Isso.
— Então… Então, você terminou comigo antes de saber que ele estaria
aqui, no Rio?
— Sim.
Rafael se levanta. Um pé vai para trás, antes que ele consiga firmar o seu
corpo.
— Você está dirigindo?
— Não.
Respiro aliviada.
— Quer que eu chame um carro para você?
— Eu chamo. Mas vou fazer isso da portaria, se você não se importar.
— Não me importo, mas pode pedir daqui se quiser.
— Eu não quero atrapalhar mais a sua noite. — Seguro o seu braço para
ajudá-lo a chegar no elevador e aperto o botão. — Pede desculpas ao Harry por
mim. Eu… Eu… Eu só queria… Não sei o que eu queria.
Sorrio com essa frase. Esse é o grande problema da vida do Rafael: ele não
sabe o que quer.
— Me manda mensagem quando chegar em casa? Quero saber se chegou
bem.
— Obrigado por se preocupar comigo.
Toco o seu rosto, fixando nossos olhares.
— Eu sempre vou me preocupar com você. Antes de tudo que aconteceu, a
gente era amigo, Rafael. E eu quero isso de volta.
— Eu também.
A porta do elevador se fecha e expiro, aliviada. Até que isso saiu melhor do
que eu imaginava. Contudo, logo sou invadida pela lembrança de que Harry
me espera. Ele vai querer explicações, sei que vai. E eu também preciso de
respostas. A ideia de que não tenho noção de quem é o homem que está dentro
da minha casa é assustadora. Eu achei que finalmente tinha encontrado a
pessoa certa para mim. Por que isso continua acontecendo comigo? Quando
não é alguém com medo de relacionamento e altamente influenciável, é o
roqueiro de sorriso fácil que fica dividindo mulheres com seus amigos.
Adotar gatos está cada vez mais parecendo ser a melhor opção.
Respiro fundo, preparando-me para o que vou encontrar quando me virar.
Agora é a hora da verdade.
De toda a verdade.
F ernando Williams me encara. Tem meu rosto, mas aparentemente é
brasileiro, médico e namora Alice há semanas. Eles já foram a bares, festas e
viagens. Estão claramente apaixonados.
WHAT THE FUCK!?
Depois que ouvi o tal Rafael falar do perfil desse Fernando, entrei no
Instagram na mesma hora. Ela que criou isso? Usou o meu rosto para criar um
perfil falso e tentar causar ciúmes em outra pessoa? Eu a amo e ela me usou?
Por que não estou surpreso? Indignado? Sim. Puto? Claro. Mas surpreso? Não.
Eu já vivi isso antes. Melanie também me usou. Queria aumentar seu portfólio
de atriz enquanto transava com outros caras pelas minhas costas. E Alice usou
o meu rosto para voltar com o ex.
Não sei o que pensar. Só sei que, em vez de ter uma madrugada de sexo que
daria inveja ao criador do Kama Sutra, vou ter uma conversa dolorosa que não
tem como acabar bem.
Preciso estar vestido para isso. Coloco a camisa e estou calçando os sapatos
quando ouço a porta da sala abrir. Saio do quarto e a vejo no corredor. Sua
mão está no rosto do bêbado. Ela está tocando o cara, sorrindo para ele,
enquanto o palhaço aqui está esperando.
Se eu já não estivesse com raiva, agora ela, com certeza, teria chegado.
Alice se vira para entrar no apartamento. Não sei o que vê no meu rosto,
mas é o suficiente para fazer com que pare de andar. Dor? Arrependimento?
Angústia? Ira? Qualquer opção dessas parece certa.
Ela termina de dar os passos necessários para cruzar o batente e fecha a
porta atrás de si. Estou de pé, encostado na porta do quarto. A distância entre
os nossos corpos é sufocante e indispensável. Não consigo estar mais perto que
isso agora e, pela forma como a sua mão segura com força a maçaneta, ela
também não.
— O quanto você ouviu da minha conversa com o Rafael?
— Por quê? Você quer saber o que pode editar? — Sua fisionomia me
garante que essa foi a coisa errada a se dizer. Quem é ela para ficar chateada
comigo? Eu que fui enganado aqui!
— Não, quero saber o que não vou precisar repetir. Está tarde e quero
acabar logo com isso.
Ahn… Isso não era o que eu estava esperando. Cadê ela implorando
perdão? Me dizendo que eu entendi tudo errado? Por que ela está tão fria? Nem
parece que é a culpada pela briga que está prestes a eclodir! Eu perdi alguma
coisa? Será que ela acha que não fez nada errado? Agora eu estou oficialmente
puto.
— Você usou fotos minhas para criar um perfil falso e causar ciúmes no
cara que acabou de sair daqui. — Puxo o celular do bolso. — E você fez um
excelente trabalho, tenho que confessar. Não sabia que era tão boa no
Photoshop.
— Sou razoável, porém não fui eu quem fez as montagens. Foram os
alunos da Helô.
— Como assim?
— Ela deu a manutenção do perfil para eles como um trabalho de
Psicologia.
— Foi por isso que você criou o perfil então? E não para conseguir esse tal
Rafael de volta?
Uma pontada de esperança surge em mim. Ela estava só ajudando uma
amiga com o trabalho dela. Era isso! Só podia ser isso!
— Não. Ela teve a ideia de criarmos o perfil falso para eu conseguir que ele
percebesse como sente a minha falta. Os alunos entraram na história quando
entendemos que não conseguiríamos dar conta de administrar o perfil.
— Vocês mobilizaram uma turma de Psicologia para isso?
Okay. Elas são loucas.
— Eu estava mal, ela quis me ajudar. Já acabou com as perguntas?
O que está acontecendo? Ela me conta essa história fantástica da forma
mais blasé que existe e ainda age como se eu estivesse sendo um estorvo?
— Desculpa, a faca que você enfiou nas minhas costas está atrapalhando o
seu sono? Que merda, Alice! Confessei que te amo essa noite e agora descubro
que você usou o meu rosto para conseguir outro homem! Como você quer que
eu me sinta?
— Eu teria pena de você, se não tivesse descoberto a verdade sobre essa sua
cara de bom moço.
— Verdade? Que verdade?
— Eu sei da outra mulher.
Oi?
— Quem? A Melanie?
Ela sabe do meu término? É isso? O que isso tem a ver com o que ela fez?
— Melanie? Tem mais de uma então?
— Alice, você não está fazendo sentindo algum.
— Ah, eu estou te irritando? Então me dá para o Liam e fica com a Olivia.
Ou você prefere a Melanie? Faz o seguinte, fica com as duas e me deixa em paz!
Ela sai correndo e me empurra para conseguir entrar no quarto. Alice é
muito pequena comparada a mim, então mal me movimenta. Ela, ainda assim,
consegue passar e eu coloco minha mão na porta, para impedir que ela a feche
na minha cara.
— Eu terminei com a Melanie. E a Olivia foi só uma aposta. — Mais uma
vez, seu rosto me diz que falei merda. — Olivia é um contrabaixo.
Ela parece mais confusa do que com raiva agora. Acho bom! Você não vai
roubar o meu direito de ter raiva!
— Você quer transar com um contrabaixo?
— O quê? Você está doida? Olivia é o baixo do Liam, que ele tinha me
prometido se eu transasse nessa viagem.
Sua boca se abre em um “o” de surpresa, mostrando que eu meti os pés
pelas mãos de novo.
— Então, é só isso que fui? Alguém que você precisava comer para ganhar
uma porcaria de um baixo?
Não digo que um Höfner autografado pelo Paul McCartney não pode ser
considerado “uma porcaria de um baixo”, porque já estou em uma sequência
de frases estúpidas que só complicam o meu lado. Essa conversa, realmente,
não está indo como eu imaginei.
— Depois de tudo o que eu te disse esta noite, acredita mesmo nisso?
— Eu não te conheço o suficiente para saber! Aparentemente, você é o tipo
de cara que topa comer alguém em troca de um baixo. E quem é essa tal de
Melanie? Você é um estranho, Harry. Não sei onde eu estava com a cabeça
quando me envolvi com você.
— Não sabe onde estava com a cabeça? Você me usou para pegar outro
cara! — Empurro a porta e me afasto, girando trezentos e sessenta graus antes
de parar na sua frente de novo. De súbito, uma memória, que eu realmente
não queria que fosse mentira, me golpeia. — A música.
— O quê?
— A música que cantarolou na cafeteria, quando a gente se conheceu. Você
mentiu para mim. Disse que não sabia do que eu estava falando. Eu te
apresentei a música depois e você continuou sem admitir que já conhecia! O
quanto usou do meu perfil para atrair o Rafael? Foi por isso que você tentou
chamar minha atenção na cafeteria também? Você só queria a pessoa de carne e
osso para poder dar uma diminuída no volume de trabalho do pessoal do
Photoshop?
— Eu me senti péssima por isso, Harry. Mas era exatamente esse momento
agora que queria evitar. Você me achando maluca, quando tudo que eu fiz foi
pegar a foto de um estranho online para lidar com uma dor impossível. Ao
contrário de você, que fica fazendo apostas sobre comer mulheres por diversão.
— Você acha que essa aposta foi por diversão? Eu também estava com dor!
Melanie tinha me traído, eu estava destruído. A aposta foi uma piada do Liam.
E depois do que você fez por causa da sua dor, por que se acha no direito de
julgar a minha?
— Quer saber? Você está completamente certo, Harry. — Eu estou? —
Nenhum de nós pode julgar o que o outro fez. Nós dois estávamos em um
lugar ruim quando nos conhecemos. Por que a gente achava que tinha como
dar certo? Não tinha! Não tem! A gente provavelmente nem se ama. Foi coisa
do momento; cada um na sua dor procurando um estepe para superar.
Parabéns, acho que você superou! Pode voltar para a Inglaterra e pegar o seu
prêmio. Olivia está te esperando.
Como uma boca que me deu tanto prazer pode ser tão cruel? Uma parte de
mim quer chacoalhá-la e dizer que a gente se ama, para ela não desistir; já
outra, com mais orgulho e uma pitada de dignidade, quer virar as costas e ir
embora, esquecer que ela existe e que os últimos dias foram os mais felizes da
minha vida.
Ouço a parte com orgulho.
— Espero que você encontre o que está procurando, porque, claramente,
não sou eu.
Viro de costas e saio do seu apartamento.
No corredor, no elevador, na portaria, até na hora em que entro no carro,
eu fico esperando que ela vá aparecer a qualquer momento, correndo atrás de
mim. Quero que diga que eu sou o homem certo para ela, que me quer, que
nem pensa mais no cara que estava acariciando agora há pouco. Mesmo depois
de tudo que dissemos um para o outro, quero que ela me queira.
Alice não aparece. Nem correndo atrás de mim agora, nem quando eu
entro no avião e volto para Inglaterra, no domingo.
Acabou.
E stou há três horas sentada no chão da sala, com as costas contra a parede ao
lado da entrada do meu quarto. O contato com a tábua corrida já está fazendo
a minha bunda doer, contudo não me movo.
Eu mereço a dor na bunda. Inclusive, acho que a estaria sentindo
independentemente da tábua corrida, afinal o contorno do pé do Harry está
bem ali, não tem como não doer.
Sim, tecnicamente quem terminou fui eu. Mas, vamos ser sinceros? Mais
duas frases e ele teria chegado à essa conclusão também. Quem a gente queria
enganar?
Espera. Eu sei a resposta disso: nós mesmos.
Nosso relacionamento todo foi só isso, nós dois tentando nos enganar de
que conseguiríamos ser felizes. Enquanto eu tentava superar Rafael, ele tentava
superar essa tal de Melanie. Eu criando perfil falso, ele fazendo apostas.
Minha campainha toca e eu dou um pulo para ficar de pé. Quer dizer,
minha cabeça pede para o meu corpo dar um pulo, entretanto minha bunda
passou do estágio da dor e agora se encontra dormente, então tenho certa
dificuldade para fazer com que ela entenda que precisa se movimentar.
Estou rolando no chão, quase me rastejando até a porta, na expectativa de
que ele tenha voltado, quando Helô e Antutu entram. Em simbiose com o
chão, acabei esquecendo de trancá-la depois que Harry saiu. Desisto de tentar
me levantar e me deito de costas. Os dois param, cada um de um lado da
minha cabeça, observando-me com uma expressão de pena com uma dose de
horror.
— Essa não é a cara de alguém que está feliz porque é a mais nova mãe de
um cachorro — diz Antondá.
— Antoine, ela não adotou, eu te disse. — Helô responde.
— Ainda não, mas temos um sábado inteiro para achar uma feira de
adoção.
— Quando você está certo, você está certo.
— E eu já estive errado?
— Não que eu lembre.
— Gente… — eu corto. — Vocês estão me vendo aqui embaixo, né?
— É meio difícil de não ver — responde Helô.
— Você está estatelada no chão, flor — complementa Tutu. Depois se vira
para Helô. — Você estava certa. Ela realmente precisava da gente.
— E eu já estive errada? — ela diz, devolvendo as palavras de Toton para
ele.
— Umas nove vezes só essa noite.
— Eu tinha contado oito.
— Você se esqueceu da sua interação com o motorista do carro que trouxe
a gente? Você ficou ameaçando o coitado com nota baixa no aplicativo, se ele
não seguisse o caminho que você jurava ser o correto. Eu até gosto da Barra da
Tijuca, mas a gente não precisava ter passado por lá, para ir de Botafogo para
Copacabana.
— Isso não foi erro. Eu queria passar por ruas mais amplas. Tenho culpa se
não tinha nenhuma no “caminho certo”? — ela responde, fazendo o
movimento de aspas com os dedos.
— Entendo seu ponto. Retiro um erro se você me reembolsar pela uma
hora adicional do trajeto.
— Feito.
— Alguém pode me ajudar a levantar? — Ou me dar o mínimo de atenção?
Helô e Antônio — é Antônio mesmo, cansei! — me seguram, cada um em
um braço, e me ajudam a chegar ao sofá.
— Você recebeu a minha mensagem, né? — pergunto para minha amiga.
Helô tira o celular da clutch e lê em voz alta.
— “Harry é um babaca. Rafael é um babaca bêbado. Eu sou uma babaca
sóbria e com insônia. Resolva isso”. Devidamente recebida. Toma, querida. —
Ela me entrega uma caipirinha de morango que eu não tenho ideia de onde ela
tirou, mas bebo de bom grado. — A insônia deve resolver depois de mais três
dessas — ela completa. — Quer nos contar o que aconteceu?
Helô se senta do meu lado e Antônio tira os sapatos antes de colocar os pés
no assento do canto e se sentar no braço do sofá. Falo para os dois tudo que se
passou, desde as declarações de amor — pulando as partes más calientes —,
passando pela chegada de Rafael, a descoberta da aposta e do término de
Harry, até a sua saída da minha vida.
— Nossa… — exclama Antônio.
— Eu sei, foi horrível.
— Não, na verdade estou chocado com como vocês dois são idiotas.
— É o quê?
— Você foi ligeiramente louca? Foi. Mas não matou ninguém, ele está
exagerando. E ele foi atirado demais para quem estava procurando um estepe?
Foi. Mas agora vocês se apaixonaram e os dois têm que superar.
— Não é tão simples, Antônio.
— Desculpa, quem é esse?
Meus olhos chegam a doer de tanto que eu os viro dentro das órbitas.
— Não é tão simples… amigo. — Me recuso a assassinar o francês a essa
hora da madrugada. — Ele só queria saber daquele baixo e de esquecer a ex. Eu
não signifiquei nada.
— Ele falou isso para você?
— Não… Mas ficou bem claro pelo que ouvi da conversa dele com o
Liam.
— Chérie, você sabe que eu te adoro, mas você tem uma leve tendência de
dar uma aumentada nas coisas.
— Não tenho, não! Helô, me defende.
Ela desvia o rosto enquanto toma a sua caipirinha. Quando ela fez uma
para ela?
— A Helô não vai te salvar agora. Antoine chegou para colocar os pingos
nos is.
— Você sabe que eu não suporto quando fala de si mesmo na terceira
pessoa.
— Antoine não se importa com a sua opinião. — Balanço a cabeça
querendo apenas que essa conversa termine logo. — Esquece a aposta por um
segundo. Pensa só nos outros parâmetros que estavam delineando a relação de
vocês. Ele ia embora e você sabia disso. Você se envolveu achando que estava
fadado a não durar mais do que alguns dias. Qual é a diferença disso para ele
querer apenas transar com você e ir embora? Não dá no mesmo? Então vocês
entraram com o mesmo pensamento, mas ele ia ganhar um baixo quando
acabasse e você, a memória de uns bons orgasmos. Foram bons pelo menos,
né?
Antutan tem razão. Eu sei que tem. Contudo, não consigo deixar de pensar
na minha esperança de que ele quisesse algo a mais.
— E, querida. — Helô finalmente abre a boca. — Da mesma forma que
você mudou de ideia e queria fazer durar mesmo depois que ele fosse embora,
ele pode realmente ter sentido o mesmo.
— Mas como eu posso confiar que isso é verdade se ele escondeu a aposta
de mim?
— E você escondeu o perfil dele. Ô telhado de vidro, para de tacar pedra
nos outros! — Expiro recostando no sofá. Helô substitui meu copo vazio por
um cheio. Sério, como ela faz isso? — Sinceramente, Alice? Acho que está se
autossabotando. Ele ia embora e você não podia controlar a situação, então
resolveu criar quizumba para retomar o controle de alguma forma. Rafael
terminou e você não pôde fazer nada a respeito. Dessa vez, você se adiantou
para dizer que as rédeas estavam nas suas mãos.
Fico de boca aberta, sem saber o que falar. Antônio quebra o silêncio.
— Cacete! Você é boa, mon amie!
— Eu vivo dizendo isso, mas Alice não me dá o crédito devido.
— Mesmo que eu não acreditasse que sua motivação foi só a aposta e
achasse que ele realmente me amava — interrompo, ignorando a troca dos
dois. — Estraguei tudo com a parada do perfil, Helô. Você não viu a cara dele
quando o Rafael saiu e ficamos sozinhos. Ele estava com uma mistura de raiva
e dor que… Se eu não terminasse, ele ia terminar.
— Meu amor, agora você nunca vai saber se isso é verdade.
O que foi que eu fiz?
— Não interessa — digo, tentando fingir que não acabei de cometer o pior
erro da minha vida. — Eu não preciso dele. Não preciso dele, nem do Rafael,
nem de homem nenhum. Ele quer ir embora? Então que vá. Não preciso do
Harry. Eu vou ficar bem.
— Você não precisa dele mesmo. E tenho certeza absoluta de que vai ficar
bem. Você só precisa de ar nos pulmões, uma caipirinha nas mãos e um cartão
de crédito com um bom limite. Bom, talvez só eu precise dessas duas últimas
coisas especificamente, mas a questão é que não tem que precisar de uma
pessoa para querer estar com ela. Inclusive, esse é o ideal. E está tudo bem você
querer o Harry. — Ela segura meu queixo. — O que você quer, Alice?
Respiro fundo. Minha cabeça está confusa, meu coração está doendo e uma
combinação de sono e raiva anuviam mais ainda meus pensamentos.
— Tequila. Eu quero tequila.
08 horas
— Helô. — Cutuco seu nariz. — Helô. — Cutuco seu nariz. — Helôôô.
— Bufo, desapontada por ela continuar dormindo sentada no sofá. Tunitu está
deitado no chão, com uma almofada na cabeça. Ele parece macio. Rolo do sofá
e caio em cima dele.
— Puta que pariu!
— Que grito engraçado. Eu me lembrava da sua voz ser mais grossa.
— Você deu uma joelhada no meu saco, Alice!
Cutuco seu nariz.
13 horas
— Helô from the other siiiide!
— Não acho que “Helô” encaixou direito, não.
— Helô from the other siiiide!
— Como o Antoine consegue dormir com você desafinando desse jeito?
— Helô from the other siiiide!
— Sabia que essa música tem mais letra, né?
— Helô from the other siiiide!
15 horas
— EU AMO O HARRYYYY!
— Eu sei, mon amie.
— E ELE ME AMAAAAA!
— Provavelmente, flor.
— CADEÊ ELEEEEE?
— Pegando uma mulher um pouco menos transtornada?
— VOCÊ NÃO ESTÁ AJUDANDOOOOOO.
— Que bom! Quero o caos.
17 horas
— Helô, is it me you’re looking for?
— Mesmo enrolada, essa pizza ainda não parece um microfone.
— Helô, is it me you’re looking for?
— Você precisa aprender outras partes das músicas.
21 horas
— Calma, eu seguro seu cabelo.
— Braaaaaaaaaaaaaaaa! Ai, ai, meu nariz está ardendo. Braaaaaaaaaaa!
— É porque tem vômito saindo por ele.
— Você cuida tão bem de mim, Helô.
— Porque eu sou demais.
— Mas foi você quem ficou me dando caipirinha e depois pediu o sorvete
para a gente fazer o Tequivete, então, na verdade, a culpa de tudo isso aqui é
sua. Braaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!
— Não culpe a mensageira.
02 horas
— Helô do céu, que Riverdance é esse na minha cabeça?
— Acho que é uma competição entre a cachaça e a tequila.
— As duas parecem estar ganhando.
— Você só sente isso porque perdeu por nocaute.
N ão sei há quanto tempo estou nadando. Mesmo com a correnteza puxando
forte e a exaustão já chegando no limite, continuo dando as braçadas
necessárias para me manter em movimento.
Meu voo está marcado para daqui a seis horas. E, considerando que passei
as últimas trinta horas bebendo, a água fria está me ajudando a expelir o álcool
antes de eu entrar no avião. Liam me disse que existe alguma política das
companhias aéreas de não deixar pessoas bêbadas embarcarem. Não sei se ele
falou isso só para eu parar de beber ou se é verdade, mas não quero arriscar.
Preciso sair desse país.
Cada onda do mar me lembra Alice. Essa areia, o calçadão, as pessoas de
casaco, as pessoas sorrindo, qualquer pessoa, na verdade. Todo mundo parece
ter algo que me leva a pensar nela. Pensar na alegria de ter seu corpo embaixo
do meu, na tristeza de ter suas mentiras expostas, na raiva de não ver remorso
no seu rosto, e no arrependimento de ter deixado ela acabar com tudo.
Liam foi quem me fez ficar com esse último sentimento.
That wanker!
De acordo com ele, o que ela fez foi bizarro, mas não tinha nada a ver
comigo — tirando o uso das minhas fotos —, e ela, obviamente, me ama
agora, então eu precisava parar com a festa da depressão e ir atrás dela.
O problema é que eu não consigo confiar nesse amor. Ela não quis lutar
por mim; por que eu deveria lutar por ela?
Meus olhos ardem em contato com o sal do mar. A dor é bem-vinda. Serve
de lembrete para o fato de eu ainda estar vivo, algo que prezo muito nesse
momento, já que me sinto morto por dentro. Levanto a cabeça e uma onda
bate contra ela assim que a ergo, forçando-me para baixo novamente. Me
assusto com a água que entra, de súbito, nos meus pulmões. Acho melhor
começar o trajeto de volta logo, antes que as dores que estou sentindo deixem
de ser o alerta de que estou vivo e se tornem o motivo de eu não estar mais.
Luto contra a exaustão e bato mais forte as pernas, mergulho mais rápido
os braços. Logo percebo a areia no chão e apoio os meus pés. Me levanto com
cuidado, para evitar outro caixote. A conclusão do exercício físico traz calma e
desespero. Meus músculos se sentem felizes por poderem descansar; meu peito
aperta pelo fim da extenuante distração.
Eu achei que Melanie tinha me deixado destruído. Agora, sei que não tinha
ideia do que era estar verdadeiramente em ruínas.

— Onde você está?


O celular está apoiado no porta-guardanapos da minha mesa, na praça de
alimentação do aeroporto. Já fiz meu check-in, mas ainda tenho algum tempo
antes de precisar ir para o portão de embarque, então comprei uma água e me
sentei aqui, para ligar para Liam. Descasco o adesivo que contorna a
embalagem, enquanto espero pelo seu iminente julgamento que virá pelos
fones de ouvido bluetooth assim que eu responder a sua pergunta.
— No aeroporto.
— Você não voltou, né?
— Se ela quisesse dar uma chance para a gente, não teria acabado com
tudo.
— Isso de novo? Vocês dois falaram coisas que não queriam no calor do
momento. Você precisa ligar para ela.
— Não vou ligar para ela, Liam. Ela não quer tentar. Deve estar indo
procurar o tal do Rafael…
— Ciúmes, Harry? Sério?
— Você sabe muito bem que o meu histórico me dá todos os motivos do
mundo para ter ciúmes.
— O seu histórico com outra mulher. — Ele frisa as últimas duas palavras.
— Alice errou em não te falar a verdade? Errou. Mas você não pode jogar a sua
bagagem com outra pessoa em cima dela.
— Como você tem tanta certeza de que ela não quer estar com o cara?
— Porque ele chegou bêbado na casa dela, confessando o seu amor e ela não
saiu correndo com ele. Se fosse só para ter esse cara de volta, eles já teriam voltado,
Harry.
— Isso até pode ser verdade, mas não resolve as questões dela com a forma
como eu lidei com as coisas. Até você achou que Alice era só um estepe e você
me conhece a vida toda. Não posso esperar que ela pense diferente.
Ele passa a mão no rosto.
— Ao menos liga para se despedir.
— Vou pensar… Te mando mensagem quando estiver em casa.
— Tem certeza de que não quer que eu te pegue no aeroporto?
— Vou chegar muito cedo. É melhor você ficar dormindo e depois a gente
se encontra para um brunch.
— Okay. Espero que decida ligar para ela, Harry.
— Até mais, Liam.
Desligo e me levanto, caminhando para o embarque. Pego meu celular e
chego até o contato de Alice enquanto espero na fila do raio-X. Clico no
contato e deixo meu dedo pairar sobre o botão de ligar. Liam é mais romântico
do que eu, ele deve saber do que está falando. No entanto, não ter ideia de
como ela vai receber a minha ligação me paralisa.
— Celulares e aparelhos eletrônicos precisam estar separados em outro
recipiente, por favor. — Grita uma das funcionárias que está direcionando as
pessoas para as máquinas. — Bebidas e alimentos precisam ser jogados fora.
Guardo o celular no bolso, não tenho tempo de ligar agora. Rasgo a argola
que prende a tampa da minha garrafa d’água — para não acabar machucando
tartarugas se parar no mar — e jogo a embalagem na lixeira correta de
reciclagem.
Quando chego ao começo da fila, coloco o celular na caixa que a
funcionária me oferece. Abro minha mochila e tiro meu laptop para colocar
junto, depois retiro o meu cinto. Passo pelo aparelho e recolho tudo do outro
lado.
Abro o contato de Alice novamente, enquanto me direciono para o portão
de embarque.
O s fios de cabelo sobre o meu rosto fazem o meu nariz coçar. Assopro-os
deixando que planem no ar alguns instantes antes de voltarem a cair em mim.
Repito o processo.
E repito de novo. E de novo.
Não preciso nem dizer que esta tarde de domingo está começando
animada, né?
Helô saiu daqui assim que me forçou a tomar banho e a comer um
sanduíche. De tofu com alface. Num pão integral de linhaça com chia. Eu juro
que nunca mais vou deixar que ela faça as compras para mim, não importa o
quão na fossa eu esteja. Até estava gostoso, mas existem momentos na vida de
uma mulher em que tudo que ela quer é uma gordura hidrogenada. Se tem
outra maneira de fazer um coração partido ser remendado, eu desconheço.
Agora eu estou aqui, deitada no sofá da sala, vestindo meu pijama e usando
pantufas — AS pantufas —, com o celular sobre a barriga e assoprando o meu
cabelo. A cachaça, a tequila e o sorvete acabaram. Confesso que estou feliz por
isso. Após sentir baunilha com álcool saindo pelo meu nariz, não sei se vou
conseguir consumir mais nenhuma dessas coisas.
Estou dormente. É uma mistura de negação com depressão e raiva. A
pessoa que definiu os cinco estágios do luto não mencionou que era possível
sentir todos ao mesmo tempo, mas te garanto que é. Só a parte da aceitação
que ainda não está nem perto de acontecer.
Sei o que eu deveria fazer, sei que preciso ligar para ele, contudo continuo
me recuperando da loucura que foi a nossa briga. Tudo está tão confuso! De
um lado, eu tenho a opção de tentar a sorte com um homem maravilhoso —
mas ligeiramente perdido — que eu quero mais do que tudo; do outro, não
fazer nada e viver na companhia da minha mente psicótica e obsessiva
enquanto eu assopro o meu cabelo.
É uma decisão muito difícil.
Meu celular vibra no meu abdômen. Pego o aparelho e, por entre as
mechas do meu cabelo, vejo que Helô me marcou em alguma coisa.
Abro o Instagram. Seu comentário em um vídeo de um fã clube da Cher
me pega de surpresa. “Se você não acredita em mim, acredite nela.”, diz a
mensagem que colocou com a marcação. Dou play.
É uma entrevista de 1996. Cher está falando sobre como sua mãe queria
que se casasse com um homem rico, e que ela lhe disse que ela mesma era o
homem rico. Cher não precisava de ninguém, então escolhia seus parceiros
apenas porque gostava deles.
A diva da música pop diz tudo que Helô tentou me falar. E faz isso em
apenas quarenta segundos, com um maior poder de convencimento e um
enorme sex appel. Não consigo evitar pensar que, em vez de passar uma hora
ouvindo as lamentações de pessoas com fetiche por canetas, Helô deveria
enviar vídeos da Cher por WhatsApp e seus pacientes estariam curados em
questão de minutos. Não teria um retorno financeiro tão bom, mas seria por
uma boa causa.
Não, esquece isso. Por mais que a diva tenha realmente uma capacidade de
hipnotizar e fazer qualquer um se desdobrar às suas vontades, eu sei que não é a
Cher que me dá esse fogo interno, essa vontade de fazer alguma coisa para
reparar o que aconteceu.
Também não é Helô, nem Antônio e, por mais que eu quisesse, também
não é o Harry. Sou eu.
Porque eu já sabia desde o primeiro segundo que o vi naquela cafeteria.
Talvez, desde que achei seu perfil no Instagram. Eu sabia que a nossa história
precisava de uma chance real.
— Eu quero o Harry — digo para absolutamente ninguém.
Um novo desdobramento do meu luto? Agora eu falo sozinha.
Será que tem alguma entrevista da Cher sobre isso?
Me levanto e pego a minha bolsa. Desço as escadas dos quatro andares que
me separam da portaria, pulando a cada dois degraus. Por que eu não esperei o
elevador? Porque eu não tenho tempo de vida para isso! Você não me ouviu
dizer que eu quero o Harry? Tenta acompanhar o drama, por favor!
Chego na calçada e percebo que esqueci o celular lá em cima, então não
posso pedir um carro pelo aplicativo. Estico o braço para chamar um táxi. Faz
mais ou menos uns três anos que não pego um táxi na rua. Eles ainda
respondem para pessoas balançando a mão, certo? Me sinto tão vintage.
Um carro amarelo com listra azul na lateral para e eu entro já falando o
nome do hotel do Harry.
— Boa tarde para a senhorita também — me diz o motorista, claramente
querendo me irritar.
O mundo precisa começar a entender quando eu estou passando por algum
caso de vida ou morte e ser mais empático com a minha falta de educação em
momentos de desespero.
O hotel é razoavelmente perto, então chegamos em cerca de dez minutos.
Dez minutos pensando em tudo que eu quero dizer para o Harry. O perdão
que vou pedir; o perdão que vou oferecer; e o sexo que com certeza vou querer
fazer. São dez minutos bem produtivos.
Taco o dinheiro no motorista, com uma bela gorjeta para compensar os
meus modos, e saio correndo de novo. Se eu não parar de correr, vou estar tão
cansada que não vou nem conseguir fazer o sexo que selará a nossa paz.
Pensando nisso, diminuo o passo quando entro no lobby do hotel. Caminho
tranquilamente, controlando cada membro do meu corpo que quer me atirar
sobre o atendente que está me fitando como se fosse chamar um segurança.
Estranho.
E, então, eu olho para baixo e entendo. Eu continuo de pijama. E pantufas.
Até tem um prendedor no meu cabelo, mas ele está segurando só metade dele.
Como o motorista do táxi parou para mim sem temer pela sua vida, eu nunca
vou saber. Devia ter dado uma gorjeta maior.
— Boa tarde — digo com o maior sorriso que consigo dar, lembrando da
tal educação.
Hum, pode estar meio assustador. Dou uma suavizada no sorriso.
— Boa tarde, senhora. Como posso ajudar?
— Eu preciso falar com o Harry Stewart, do quarto 513, por favor.
— Ele está te esperando? — O atendente me olha de cima a baixo quando
faz a pergunta.
— Está sim — minto.
Ele pega o telefone e continua me encarando enquanto segura o aparelho.
Depois de um tempo, desliga.
— Ninguém está atendendo. Tem certeza de que ele está esperando?
Um segundo atendente chega, cortando-me antes que eu possa responder.
— Quarto 513 que você disse?
— Isso.
— O homem que estava nesse quarto fez o checkout comigo de manhã.
Checkout.
Checkout.
Checkout.
A palavra se repete enquanto eu tento entender o que ela quer dizer.
Hoje é domingo. O último dia dele no Rio. E ele fez o checkout. Harry se
foi.
Atrás do balcão da recepção, três relógios marcam a hora no Rio, em Nova
Iorque e em Tóquio. Foco no que diz a do Rio. São uma e meia da tarde.
Lembro-me do Harry ter dito que o voo dele era às três. Ele ainda está aqui, só
está no aeroporto. Preciso ir para lá, falar com ele em pessoa. Preciso que veja
nos meus olhos que eu o quero. Não posso deixar que vá embora sem ver isso,
sem saber o quanto eu me arrependo da forma como lidei com as coisas.
Saio do hotel, sem me preocupar em me despedir dos atendentes que
acabaram de jogar uma bomba atômica na minha cabeça. Eu realmente fico
mal-educada quando estou com pressa.
Vou até o ponto de táxi, na entrada do hotel, correndo de novo porque,
agora que sei que ele está no aeroporto, sinto que as chances de eu fazer sexo
reduziram drasticamente. A menos que ele tenha interesse em transar no
banheiro. Não curto a ideia, mas pelo Harry acho que eu cederia.
Okay, vamos pensar menos no sexo que vamos fazer e pensar mais no que
preciso fazer para chegar nisso. E nesse momento, sabendo que ele já deve estar
dentro da sala de embarque, o que eu preciso é do meu passaporte.
Se você algum dia tiver que correr contra o tempo, eu tenho um conselho
para te dar. Até pode fazer sentido na sua cabeça usar as escadas em vez do
elevador, mas nunca — NUNCA — escolha fazer isso quando você precisar
subir. Estou agarrada ao corrimão, no terceiro andar, esbaforida e com sudorese
extrema, tentando usar a barra de ferro para me catapultar para cima. A calça
quadriculada do meu pijama e as lindas pantufas que Harry me deu estão
trabalhando em conjunto para criar uma estufa que será a responsável pela
minha morte nesses degraus, enquanto minha camisa branca de manga curta
cola nas minhas costas suadas. Contudo, luto contra o meu fim iminente,
puxando o corrimão e subindo no melhor estilo elefante dos Ursinhos
Carinhosos — “devagar e sempre”.
Chego ao meu apartamento e corro para o quarto, onde encontro meu
passaporte. Estou quase saindo, quando me lembro do celular que deixei no
sofá. Pego o aparelho e vou para o corredor. Aperto o botão do elevador,
mesmo querendo voar pelas escadas porque, sinceramente, já deu para mim.
Abro a tela de bloqueio para pedir um carro, quando me deparo com o
alerta de mensagem de voz. E uma chamada perdida. Do Harry.
Ele me ligou? Ele também está arrependido de como terminamos as coisas?
Ele também quer voltar?
Ligo de volta e o seu celular está fora de área.
O elevador chega e entro nele, clicando para ouvir a mensagem de voz.
Na primeira palavra, já me apoio contra o espelho no fundo do elevador.
Eu estava com saudade desse sotaque.
— Alice, eu… Eu não queria fazer isso por telefone, mas — Mas nada. A voz
de Harry some. No seu lugar, entra a musiquinha que o meu celular faz
quando desliga. A bateria acabou.
Você está de sacanagem!
A porta do elevador se abre. Pondero voltar para o apartamento para usar o
carregador, mas já são quase duas da tarde, eu tenho que voar se quero
encontrá-lo pessoalmente. Decido que qualquer coisa que queira me dizer, ele
vai ter que falar na minha cara. Corro para a rua e começo a mexer os braços
feito uma idiota. Onde estão os táxis quando se precisa deles?
— Você está bem?
Viro para o lado e me deparo com um homem que deve ter quase uns
cinquenta anos. Quer dizer, eu acho que tem essa idade pelo pouco do seu
rosto que consigo ver, já que metade dele está encoberta por uma tatuagem
tribal. Seu bigode está bem demarcado, indo até o fim do seu queixo. A jaqueta
e a calça de couro, os alargadores nas orelhas e a Harley-Davidson preta na qual
ele está recostado compõem o look motoqueiro bad boy.
Há quanto tempo ele está do meu lado? Será que me viu sacudindo os
braços para qualquer carro que passava?
Não sei se é o seu interesse, eu não poder ligar para chorar as pitangas com
a Helô ou simplesmente porque ele está disponível, mas abro a boca e uma
enxurrada de palavras que eu não estava esperando saem de mim.
— Eu criei um perfil falso de um cara que me daria mole para fazer o meu
ex ter ciúmes e me querer de volta, mas aí o homem da foto que usei para criar
o perfil surgiu de verdade e eu percebi que não amava o ex, mas sim esse novo
cara; só que ele descobriu o rolo todo, se sentiu traído e está nesse momento
esperando um avião que vai levá-lo de volta para a Inglaterra e eu preciso ir
para lá, nesse segundo, para confessar que eu o amo e que quero que a gente
tente fazer dar certo, mesmo ele morando do outro lado do oceano e só tendo
transado comigo para ganhar um baixo.
O ar entra nos meus pulmões rapidamente e percebo que não respirei um
segundo sequer para vomitar o meu discurso.
O motoqueiro fica imóvel, me encarando. Eu também paro de me mexer,
segurando o seu olhar. Ele está me julgando? Eu já tenho a Helô para isso.
— Sobe aí.
— Ahn… Oi?
Ele sobe na moto, coloca seu capacete preto e me entrega outro lilás, que é
menor e não tem visor.
— Vou te levar até o aeroporto.
— Por que você faria isso? Você nem me conhece.
— Você está vestida desse jeito e gritando para carros na rua. Obviamente,
precisa de ajuda. — Eu estava gritando também? Nem percebi. — E eu adoro
histórias de amor. Vai ser meu prazer fazer parte da sua. Apesar de eu não ter
entendido quase nada do que você me falou, mas raramente o amor faz
sentido.
Hum. Quem podia imaginar que por trás dessa carapaça dura, teria um
cara tão gentil e sensível?
Ignoro a voz da minha mãe no fundo da minha cabeça, dizendo que eu
serei assassinada por esse desconhecido, e subo na moto.
Se tem um dia em que eu preciso que a minha mãe não esteja certa, esse
dia é hoje.

Ela estava errada!


Valcir, o motoqueiro mais gente boa que existe, me deixa no aeroporto, em
menos de quarenta minutos. Temi pela minha vida mais pela velocidade da
moto do que pela possível ameaça de ele ser um serial killer. Ele me entrega um
cartão do seu trabalho — uma loja que faz bolos de casamento — e me diz
para ligar se tudo der certo e eu precisar dos serviços dele.
Me pergunto se ele realmente curte histórias de amor, ou se só me viu
como uma possível oportunidade profissional.
Corro — sério, não vou fazer nenhum exercício de cardio nunca mais na
vida — até o balcão da companhia Fly British e… espero. Na fila. Tem uma
fila. É sério que essas pessoas estão na minha frente quando tem uma
declaração de amor esperando para ser feita no portão de embarque?
Então, eu me dou conta. Esse é o momento.
Todas as comédias românticas têm essa hora. A mocinha está no aeroporto
indo embora, o mocinho vai atrás dela e abre o seu coração para estranhos a
fim de conseguir ajuda e chegar até ela a tempo. Eu sou o mocinho dessa
história.
Depois de um breve pigarro, tento chamar a atenção de todos.
— Oi! — A pessoa à minha frente vira, mas só ela. Preciso de mais força
nos pulmões. — OI! — grito, conseguindo a atenção do restante da fila. —
Boa tarde, pessoal. — Lembrar da educação que perdi quando comecei essa
empreitada pode me ajudar aqui. — O homem da minha vida vai embarcar
em quinze minutos e eu preciso falar que o amo. Vocês podem me deixar
passar para que eu consiga me declarar e salvar o nosso relacionamento?
É isso. Eu falei. Agora vai dar tudo certo.
Talvez até tenha uma daquelas palmas lentas que começa com só uma
pessoa e logo o aeroporto todo está me aplaudindo. Talvez eu nem tenha que
comprar uma passagem. A atendente deve ter escutado e vai se compadecer
também. Talvez até seja ela quem vai começar as palmas.
Eles me olham de cima a baixo. Dois voltam a olhar para o celular, um vira
de costas, a atendente chama o próximo, o casal cochicha algo antes de dar um
passo porque a fila andou, uma criança chora e pede para a mãe colocá-la no
colo.
Todos cagam para mim. E eu odeio cada um deles. Menos a criança.
Coitada. Eu devo ser uma visão assustadora mesmo.
Depois do que parece ser uma vida, a fila acaba e eu, finalmente, chego até
a atendente.
— Boa tarde, em que posso ajudar?
Você podia ter me ajudado quando gritei feito uma louca agora há pouco.
— Eu preciso estar no voo de três da tarde para Londres.
— Esse voo acabou de decolar.
Me apoio contra o balcão e abaixo a cabeça, devastada. Ele foi embora. Eu
cheguei tarde demais.
— Eu tenho um que sai daqui a meia hora com um assento disponível,
interessa?
Levanto a cabeça e encaro a escrota que não me aplaudiu. Eu ia comprar
uma passagem apenas para ganhar acesso ao portão de embarque. Nunca
passou pela minha cabeça que eu entraria em um avião. Já consigo sentir as
paredes fechando em torno de mim. Inspiro fundo, contando quatro segundos.
Expiro, contando mais quatro.
O Harry precisa ver o quanto me importo com ele. Não posso deixar as
coisas assim. Se existe uma prova de amor que eu posso dar, é essa.
Leio o nome na placa que está no blazer da atendente.
— Quer saber, Priscila? Interessa sim.
— Ida e volta?
— Só ida.
— Passaporte, por favor.
Entrego o passaporte para ela. Priscila digita algo no computador.
— São seis mil e quinhentos reais. Como será o pagamento?
É, Helô estava certa. Ter um cartão de crédito com um bom limite é
importante mesmo.
Deixo meu rim no balcão e me dirijo para o raio-X. Só tenho uma bolsa,
então tudo flui rapidamente. Pouco antes de chegar ao meu portão, vejo uma
loja com souvenirs do Brasil e me dou conta de que o calor que estava sentindo
foi substituído por um frio congelante do ar-condicionado do aeroporto. Entro
na loja e saio de lá com uma jaqueta estampada com o Calçadão de
Copacabana em verde e amarelo. Se minhas vestimentas já estavam uma visão
do inferno antes, agora estou uma visão do inferno capaz de cegar alguém.
Quando termino de comprar o casaco, já estão chamando o meu grupo
para embarque.
Entro na lata de metal, tentando ignorar que vou passar mais de onze horas
presa dentro dela, e me encaminho para a minha poltrona.
Claro que estou sentada no meio. Porque essa é a minha vida! Não que
uma janela ou um corredor ajudasse muito, mas a sensação de que eu não
consigo um segundo de paz está realmente me alcançando.
Me sento respirando fundo. Não tenho nenhum lugar para correr. Não
tenho para onde ir. Só tenho que esperar.
Por favor, não morre aqui dentro.

— O que foi isso?


— Acho que foi aquela parte de trás da asa abrindo. — me diz a
senhorinha que está sentada do meu lado esquerdo.
— Okay. — Fecho o olho e coloco meu fone. Arranco o fone. — E isso?
— Agora estamos taxiando. Devemos decolar em breve.
— Okay. — Coloco o fone. Tiro o fone. — E agora?
— Ainda estamos andando na pista.
— Okay. — Coloco o fone. Tiro o fone. — Ainda taxiando?
— Ainda.
— Okay. — Coloco o fone. O avião para. Tiro o fone. — Ai, meu Deus.
Quebrou?
— Não, agora vamos decolar. Eles sempre param e aí aceleram.
— Aceleram. Claro, eu sei disso. Eles param e aceleram. É normal. Está
tudo bem. Eles param e aceleram, e aí a gente voa nessa lata mortal que
encolhe a cada segundo e faz com que eu não consiga respirar.
— Você não costuma viajar muito de avião, não é?
— Como a senhora sabia?
— Só um palpite. — Ela remexe a bolsa e me mostra uma cartela com
comprimidos. — Quer um remédio de enjoo?
— Daqueles que faz a gente capotar?
— Esse mesmo.
— Quero.
Eu sei. Não deveria aceitar drogas de estranhos. Mas é uma senhorinha
fofa! E eu realmente estou precisando. Vai ficar tudo bem.
Pego o remédio e coloco na boca. Não tenho água, então ele desce
grudando na minha garganta, e eu quase engasgo, mas sobrevivo.
Pronto. Agora é só esperar a mágica acontecer.
A qualquer minuto agora. Já vem o soninho. É só relaxar que ele vem. Pode
confiar. Vem, naninha! Já, já.
O avião acelera. E acelera mais. E mais.
A senhorinha do meu lado se benze.
— Por que a senhora está se benzendo?
— Não custa pedir uma dose extra de proteção.
— A proteção que a gente tem agora não é o suficiente?
— Nunca se sabe.
Me benzo também. E mais uma vezinha só para garantir.
A ponta do avião começa a subir. Meu corpo parece que vai entrar no
assento. Me agarro aos braços da poltrona. O homem do meu lado direito
estava com a mão no braço que fica entre a gente, mas eu o empurro sem
cerimônias. Estou precisando mais do que ele.
Minha mão está suando, minha nuca também. Sinto uma gota de suor
escorrer pela minha têmpora. A crise de pânico está começando. Sei que está. E
dessa vez eu não tenho Helô alguma para me ajudar. Meu Deus, ela nem sabe
onde eu estou! Ninguém sabe! Bom, o motoqueiro Valcir sabe. Contudo,
duvido que ele esteja rastreando o voo para ter certeza de que eu vou chegar
bem ao meu destino.
Sinto meu coração na garganta. Meu campo de visão começa a ficar escuro
nas laterais. Eu vou desmaiar. Eu vou desmaiar? É sério isso? Não, não posso
desmaiar. Eu tenho que me distrair.
— A senhora está indo para Inglaterra ou só vai fazer escala?
— Vou para Inglaterra mesmo. Tem um seminário do qual eu vou
participar.
— Que legal. — Uso o panfleto com instruções do que fazer no caso de
despressurização da cabine para me abanar. A senhorinha precisa começar a
falar algo interessante antes que eu morra aqui. — Sobre o que é o seminário?
— Como manter uma relação com dinâmica BDSM. — A mão da
senhorinha toca em uma mão enrugada do seu lado esquerdo. Estico o pescoço
e vejo um senhorzinho de uns setenta anos. — Você sabe como é. É sempre
bom dar uma apimentada na relação.
— E a senhora precisa ir até a Inglaterra para isso?
— Os ingleses são super sacanas na cama. Não tem melhores professores!
Me lembro das ordens de Harry quando fizemos sexo por telefone e tenho
que concordar com ela.
A senhorinha, que se chama Clotildes, me explica tudo sobre o seminário,
o que me distrai um pouco, mas eu ainda rezo para o remédio de enjoo fazer
efeito.
Espio novamente o velhinho ao seu lado. Só espero que ela não tenha
acidentalmente me dado Viagra.
A conversa com a senhorinha — com a melhor vida sexual que eu já vi —
dura aproximadamente quarenta minutos. Até que ela fecha os olhos e dorme
porque o remédio já fez efeito nela. Em mim? Nem um pouco. Sem ter os
detalhes da sua última ida a uma casa de swing, sou obrigada a ficar com o
monitor, dotado de uma seleção de filmes que eu já vi setenta e quatro vezes,
como única distração. Consigo sentir uma gota de suor descendo pelas minhas
costas. Minha boca está seca e eu a abro e fecho algumas vezes, tentando
umedecer os lábios, sem sucesso.
— Carne ou massa? — diz o comissário de bordo do meu lado, cortando o
meu momento de desespero.
— Vinho. Quero vinho.
Sei que jurei não beber depois do desastre que foi ontem, mas eu estou
desesperada! Preciso de inconsciência urgentemente!
Ele me serve o vinho e eu viro de uma vez.
— Mais um tico.
Ele começa a virar a garrafa no meu copo e para depois de um dedinho de
bebida.
— Mais um tico.
O comissário vira mais dois dedinhos. Ele está me sacaneando?!
— Mais um tico.
Ele enche até a borda.
— Perfeito.

— If I could turn back tiiiiime!


— Querida, acho melhor você se sentar.
— Dona Clô, a Cher está dizendo tudo que eu queria dizer com essa
música.
— Dizer para o tal Harry, não é?
— Isso!
— Então que tal você guardar as palavras para não gastar seu discurso de
reconquista com a gente.
Ouço alguns gritos ao redor concordando. São os outros passageiros? Ah,
quem se importa! Reflito sobre o que Dona Clô está falando.
— A senhora é um gênio! — Fico em silêncio, durante alguns instantes,
ponderando opções. — Melhor eu cantar outra música então!
Dona Clô fala algo baixinho que parece ser “senhor, me dá forças” e juro
que consigo ouvir vaias ao meu redor, mas posso estar enganada.

— Abre essa porta que eu preciso sair!


— A senhora precisa voltar para o seu assento.
— Você não está entendendo, Suellen. Correndo, eu chego mais rápido. Eu
peguei as escadas em vez do elevador e deu certo.
— Nós estamos no meio do Oceano Atlântico, senhora. E meu nome é
Abigail.
— Jura? Então por que está escrito Suellen na sua plaquinha?
— Não está.
— Suellen, eu corro muito rápido.
— Eu aposto que sim. Mas tubarões também são bem rápidos. E a queda
dessa altitude também vai ser.
— Tubarões? O Harry deve gostar de tubarões. Eu não sei se ele gosta ou
não, Suellen. Que tipo de caso de doze dias eu sou? Eu nem sei se gosta de
tubarões!
— Realmente, senhora. Você não o merece.
— Você acha isso mesmo, Suellen?
— Com certeza é algo para se pensar. Sentada.

— Braaaaaaaaaaaa.
— Pronto, pronto, querida. Coloca para fora.
— A senhora é tão boa para mim, Dona Clô.
— Tive que ser, não é, querida? A outra opção seria você se vomitar toda,
sozinha e algemada na frente do avião. E por mais que eu seja fã de algemas,
acho que vomitar usando um par não seria agradável.
— Eu culpo o Viagra que a senhora me deu. Braaaaaaaaa.
— O que a sua consciência achar melhor.
— Senhoras e senhores, sejam bem-vindos ao aeroporto de Heathrow. São
oito e trinta e sete da manhã, hora local de Londres. O céu está limpo, sem
sinal de chuva e com temperatura de vinte graus Celsius. Dentro de instantes,
vamos iniciar o desembarque, mas permaneçam em seus assentos até que o
aviso luminoso de apertar o cinto esteja desligado. Obrigada por escolherem a
Fly British e tenham todos um bom dia.
A piloto repete o discurso em inglês e lágrimas começam a escorrer do meu
rosto. Estamos no chão. Chegamos. Eu cheguei. Peguei quase doze horas de
voo sozinha. Mesmo com a montanha-russa de emoções que vivi — e
entretenimento de qualidade que ofereci aos outros passageiros —, agora o ar
que me cerca traz um quê de realização pessoal. Nunca achei que seria possível
cruzar o oceano com todas as minhas fobias e os meus ataques de pânico,
porém eu consegui!
Posso ter entrado nesse avião pelo Harry, mas saio por essa porta me
sentindo melhor comigo mesma. O medo existe e sempre vai existir. No
entanto, eu ter feito isso, ainda que desesperada, provou coragem. Me sinto
corajosa. Me sinto bem. Me sinto leve.
Também, depois de ter vomitado até a alma, não tinha como me sentir
pesada. Obrigada pela escova de dentes de cortesia, Fly British!
O tempo do voo permitiu que eu conseguisse me recuperar da bebedeira
com um toque de remédio de enjoo a tempo da aterrissagem, então já estou
sóbria quando chego ao guichê da Imigração. Se não fosse Dona Clô
conversando com os comissários de bordo, explicando a minha situação e
afirmando que tomaria conta de mim, eu, provavelmente, estaria agora sendo
deportada. No entanto, graças aos deuses da diplomacia entre países que
tornam desnecessário precisar de visto para entrar na Inglaterra, passo pelo
guichê, sem problemas.
Ignoro as esteiras com bagagem e sigo para a saída. Preciso achar o Harry
quanto antes. Foi para isso que vim até aqui.
Então, me dou conta de uma leve falha no meu plano: eu não sei como
encontrá-lo.
Eu não tenho ideia do seu endereço, meu celular está sem bateria e nada
garante que ele me atenderia se eu ligasse. O que foi que eu fiz? Atravessei o
globo para ficar andando por esse aeroporto, sem destino? Tenho que conseguir
falar com o Harry. Preciso falar com ele antes que eu me torne o Tom Hanks
em O Terminal e tenha que tomar banho de gato na pia do banheiro.
— Com licença, senhor. — falo para o segurança que está perto de uma
pilastra, usando o meu melhor inglês. Ele se vira sorrindo para mim. Agradeço
mentalmente as horas de vida perdidas vendo Friends, que me trouxeram essa
fluidez. Viu, mãe? Serviu para alguma coisa aquele tempo todo diante da TV.
— Preciso carregar meu celular, existe algum lugar onde possa fazer isso?
Depois de fitar um tempo meu vestuário inusitado, ele me responde. No
entanto, seu sotaque, bem mais carregado que o do Harry, faz com que eu me
arrependa de ter passado tanto tempo vendo Friends e não o The Office
original.
Peço para ele repetir e entendo que está me direcionando para um café que
eu não tinha visto, do outro lado de onde estamos. Existem uns totens para
carregamento de celular na área onde ficam algumas mesas. Agradeço o
segurança e corro para lá.
Me sento em uma das mesas e coloco o aparelho para carregar. Tenho que
esperar alguns minutos para que ele ligue, já que a bateria estava zerada. Uso
esse tempo para tentar controlar minha perna, que balança para cima e para
baixo.
Vai, celular!
Cinco minutos depois, consigo ligá-lo. Tenho que me contorcer um pouco
na cadeira, que é daquelas presas ao chão, para ser capaz de mexer no aparelho
ainda sentada. Não sei se você já teve a experiência de passar um dia correndo
de pantufas por aí, mas meus pés estão implorando repouso — além de uma
bacia com água quente e uma almofada acolchoada. Logo, ficar sentada toda
torta é o que temos para hoje.
Enquanto estou tentando ficar confortável numa posição digna do Cirque
du Soleil, um SMS apocalíptico chega jogando mais um balde de água fria na
minha busca por Harry.
Bem-vindo ao Roaming Internacional!
A partir de agora, por apenas sete dólares o minuto,
você será capaz de fazer ligações internacionais e navegar na internet.
Cacete… Precisava ser em dólar?
Seis mil e quinhentos reais da passagem aqui, sete dólares por minuto para
chamadas ali. Esse deve ser o ato de amor mais caro da história. Respiro fundo
e ligo para o Harry aceitando o destino falido que me aguarda quando voltar
ao Brasil.
Porém, a chamada cai direto na caixa postal. O celular está desligado.
Ou… Ou ele me bloqueou.
Não, Harry…
Não posso pensar no que essa possibilidade significa agora. Tenho que ser
prática!
Posso deixar mensagem de voz, mas, se ele me bloqueou, a chance de
querer me ouvir é bem baixa. Preciso de algo que atice a sua curiosidade e que
ele seja notificado. Preciso do Instagram.
Isso se ele não tiver me bloqueado por lá também.
Nesse momento, já estou com as costas arqueadas na cadeira, jogando a
cabeça para trás e segurando o celular no alto, afastado do meu rosto. Meus
óculos ficaram no Brasil, então tudo de perto é um grande borrão.
Entro no aplicativo e abro o nome do Harry para mandar uma mensagem
privada. Começo a digitar, mas paro na hora.
Com toda a confusão com o perfil de Fernando e minhas tentativas de
esconder Harry de Rafael, acabei tornando a nossa relação quase secreta. Está
mais do que na hora de mostrar ao mundo o homem maravilhoso que
encontrei.
Pego a foto que tiramos no Sítio Burle Marx, no pé da figueira, e uma que
os alunos da Helô fizeram de montagem onde eu e Fernando estamos na Serra.
Marco Harry na primeira, Fernando na segunda, e escrevo meu post.
Você me disse, uma vez, que falar a verdade era algo importante para você.
Então, aqui vai. Eu errei. Errei por omitir a verdade sobre o Fernando e o
Rafael. Errei criando um perfil falso para causar ciúmes no meu ex. Errei não te
confessando que já conhecia a sua música e errei ao usá-la para chamar a sua
atenção. Mas está aí uma coisa da qual eu não me arrependo: ter tentado
chamar a sua atenção. O momento em que você olhou nos meus olhos, com
uma mistura de fascinação e dúvida, não vai sair nunca mais da minha
memória. Mesmo que eu esqueça o resto da minha vida, você me descobrindo
do seu lado naquela cafeteria será a única lembrança à qual vou me apegar com
unhas e dentes. Me senti querida, me senti segura. Seu rosto me mostrou que
casa pode ser uma pessoa e, agora, eu preciso que veja o mesmo em mim. Olhe
as duas fotos desse post. Olhe meu rosto, Harry. Eu não sei quem é essa mulher
da primeira foto, mas eu sei que quero ser ela. Ela está tão feliz. Minto; ela está
aliviada. Depois de uma vida buscando do lado de fora algo que a completasse,
essa mulher finalmente achou alguém que a fizesse se sentir tão bem a seu
próprio respeito que não precisa mais buscar nada externo, ela sabe que já é
completa. Eu estava quebrada e sei que você também estava. Então, a única
coisa que eu espero é ter feito você sentir o mesmo e que, nós dois, completos,
possamos estar juntos. Por isso que eu estou aqui. Estou em Londres, Harry.
Vim atrás de você e agora estou em uma cafeteria, no aeroporto de Heathrow,
me lembrando da primeira vez que te vi em um lugar assim e torcendo para
você me ligar e querer me encontrar. Porque eu te amo, Harry. E essa é a única
verdade que importa.
Uso um dos guardanapos que ficam na mesa para secar meu rosto. Abri
meu coração e agora tenho que esperar. Consegui marcá-lo na foto, então não
acho que tenha me bloqueado no aplicativo, mas, ainda assim, ele pode decidir
não ler. O alerta em seu celular pode fazer apenas com que se lembre que não
me bloqueou e ele acabe fazendo isso. Contudo, eu tentei. Tentei de verdade.
Não corri atrás do Harry porque não posso viver sem ele, fiz isso porque não
quero. Mas, se tudo der errado e eu tiver que voltar para o Brasil com o rabo
entre as pernas, saber que fiz meu melhor para consegui-lo de volta me acalma.
Uma sábia diva da música pop, uma vez, nos questionou se acreditamos em
vida após o amor. A resposta é que sim, existe; mas eu não quero essa vida para
mim. Quero uma vida com o Harry. No Brasil, na Inglaterra, no quinto dos
infernos, não interessa. Só quero estar com ele.
Os minutos passam e meu coração aperta. Uma atendente da cafeteria vem
me informar que não posso ficar sentada à mesa se não consumir algo e eu digo
que já vou entrar na fila, daqui a pouco. Ela parece não acreditar muito, e não
deveria mesmo, mas eu não tenho tempo para pensar nisso. Atualizo o post de
novo.
Não há resposta. Na realidade, não há resposta dele. Já estou com diversas
curtidas e comentários de pessoas que não estão entendendo nada, porém
gostaram da minha declaração. Tirando a minha mãe. Ela não gostou muito do
fato de eu estar em Londres e não ter avisado ninguém e muito menos que o
tal médico não existe. Não é de madrugada no Brasil? Aparentemente, me
vigiar nas redes sociais é um trabalho que não tem hora para acabar. Depois do
seu último comentário — porque ela é dessas que faz cada frase ser um
comentário novo — perguntando se Harry se oporia a fazer uma faculdade de
medicina, eu saio do app e vou jogar Sudoku. Quando acabar essa partida eu
tento abrir de novo, mas a expectativa a cada comentário novo está me
matando. Queria tanto saber se ele já leu! Se sente o mesmo! O que será que
está pensando? Será que quer me dizer algo…
PUTA QUE PARIU!
A MENSAGEM DE VOZ!
Meu celular acabou a bateria e não consegui ouvir antes do voo! E, com
tantas drogas lícitas na cabeça e focada em descobrir onde ele estava, acabei me
esquecendo de ouvir.
Digito o código para ouvir minhas mensagens. A voz de Harry entra como
uma agulha afiada no meu peito, cortando-me de saudade e de nervosismo.
Por favor, não me odeie. Por favor, não me odeie.
— Alice, eu… Eu não queria fazer isso por telefone, mas meu voo sai em breve
e não vou te encontrar mais… Nossa… Só de pensar que não vou te encontrar,
love… — Sua voz falha, e as lágrimas que eu estava tentando conter escorrem.
— A aposta foi uma brincadeira, e eu deixei claro para o Liam que perdi, Alice.
Eu perdi porque nunca poderia ter você por apenas uma noite. No segundo em que
vi o contorno do seu corpo nas sombras de uma cabine escura no centro de
convenções, eu já sabia que algo espetacular estava prestes a acontecer. E, quando eu
pude te conhecer, conversar com você… Deus! Eu nunca soube que era possível se
apaixonar tão rápido. Você nunca foi um estepe. Nunca poderia substituir
ninguém, porque não existe alguém como você. Eu não entendo direito o que estava
na sua cabeça para fazer o que fez, mas acho que sei o que estava no seu coração.
Pelo menos, espero que essa parte tenha sido verdade. Eu… Eu continuo sentindo o
mesmo, Alice. Pode colocar quantos oceanos você queira entre a gente, isso não vai
mudar. — Ele fica em silêncio, alguns instantes e ouço um fungar alto. Ele está
chorando? — Falar sobre o que eu sinto sempre foi difícil, principalmente depois
do fim turbulento com a Melanie. Eu me fechei tanto que não tinha ideia do
quanto estava sufocado. Até que consegui voltar a respirar. Pode ser clichê e piegas,
mas é isso que sinto com você. Eu posso respirar de novo. — Ele dá uma risadinha
sem vontade. — Não muito agora, porque meu nariz entupiu de tanto chorar
feito um idiota no portão de embarque, mas você me entendeu. — Eu rio
também. Que vontade de abraçar seu corpo e de beijar suas lágrimas. — É isso.
Só queria me despedir. Te amo, Alice. Não se esquece de mim, por favor. Eu não
vou conseguir suportar se você se esquecer de mim.
— Nunca — sussurro.
O apito mostra que a mensagem se encerrou. Ele me ama também. Eu
preciso encontrá-lo! Preciso dele agora!
Meu pescoço está doendo, então me levanto para ficar mais perto do totem
de carregamento sem ganhar um torcicolo, ficando de costas para a cafeteria.
Levantar me faz lembrar da dor nos pés, mas alguma parte do meu corpo vai
ter que sofrer aqui, então são eles que eu sacrifico.
A Helô tinha me falado que esse Liam que ele menciona na mensagem
tinha Instagram também, talvez ele me responda. Dou uma conferida rápida
nos novos comentários que surgiram no meu post e, quando percebo que ainda
não tive resposta do Harry, sigo com meu plano. Entro no perfil dele, encontro
uma foto com o tal do Liam e clico no nome do amigo na marcação.
Sinto alguém batendo no meu ombro e estico o dedo pedindo um
segundo. Eu já me levantei da mesa, logo a atendente não tem motivo para me
encher agora; estou numa missão!
Começo a digitar e ela bate no meu ombro de novo.
— Por favor, senhora. Eu já saí da mesa. — Eu falei em português ou
inglês? Sei lá, mas não me importo. Tenho que conseguir convencer o amigo de
Harry a dar o seu endereço para uma mulher que está fazendo o seu melhor
cosplay de louca perseguidora aqui.
A atendente estica um café em um copo de papelão do meu lado.
— Eu não pedi nada.
— Coloquei canela, Alice. Como você gosta.
Essa voz. Olho para a mão que segura o copo. Os dedos grandes, a
munhequeira no pulso.
— Harry?
Me viro correndo e quase derrubo o café, mas ele tira o copo do caminho a
tempo. Suas olheiras e seu rosto pálido me mostram que ele dormiu tão mal
quanto eu. O canto levantado dos seus lábios me mostra que sua dor está no
passado. Ele está feliz agora, feliz por me ver.
Ele está aqui.
— Você não me atendeu. Achei que tinha me bloqueado.
— Esqueci o celular desligado depois do voo, acabei de ligar. E
aparentemente eu tenho que fazer medicina?
— Só se você quiser agradar a minha mãe.
— Prefiro agradar você.
Ele segura minha cintura e me puxa para perto. Meu peito contra o seu,
meu coração contra o seu.
— Eu fui uma idiota.
— Eu também fui.
— Eu fui mais. Nem deixei você explicar direito a história da aposta, já fui
deduzindo…
Seu indicador vai para os meus lábios, pedindo-me silêncio.
— Eu já li as suas desculpas. Agora quero trabalhar na parte de fazer as
pazes.
— Você quer fazer as pazes?
— Se você quiser.
— Eu cruzei o planeta de pantufas, Harry. Acho que fazer as pazes está
implícito.
— Só queria ter certeza antes.
— Antes?
— Antes disso.
Ele coloca o café que estava segurando na mesa ao nosso lado e puxa meu
rosto para perto do seu.
Seu beijo — nosso beijo — é quente e forte, com um toque de café e
canela. Continuo grudada contra o seu corpo, sentindo suas mãos nas minhas
costas e na minha nuca, suas pernas contra as minhas, seu calor contra o meu.
Quero ficar perdida na sua boca para sempre, mas sei que ainda precisamos
conversar, então me afasto.
Pelos seus olhos fechados e seu cenho franzido, ele discorda de que esse é o
momento ideal para isso.
— Preciso saber o que você quer. Quer tentar uma relação comigo? Mesmo
estando na Inglaterra e eu no Brasil? Eu quero um futuro com você, mas não
sei como ter isso, Harry. Te perdi por dois dias e foi demais para mim. Não
posso mais ficar longe. Como a gente vai fazer?
— Não tenho ideia.
— Temos que conversar.
— Temos. E vamos. Logo depois de eu te levar para minha casa e
compensar cada uma dessas quarenta e oito horas.
— Como você pretende fazer isso?
— Te amando pelos próximos dois dias. Talvez três. Melhor trabalharmos
com uma margem de erro.
— Você não tem que trabalhar? O que eu estou dizendo! EU tenho que
trabalhar! Eu tenho que trabalhar e estou na Inglaterra. Ai, vou ser demitida.
— Você está pensando demais.
— E você está pensando de menos!
— Eu passei o fim de semana inteiro pensando. Agora só quero sentir. Só
quero te sentir.
Sua boca volta para a minha.
— Eu sempre posso dizer que estou doente — falo, sem desgrudar a boca
da dele.
Ignoro que acabei de fazer um post dizendo que estava na Inglaterra e que
todo mundo do meu trabalho me segue. É na boca do Harry que quero focar
agora. E é aqui que eu vou ficar.
A lice não perdeu o emprego e nem eu, o doutorado. Ela conversou com a
chefe, quando o relógio bateu um horário que seria decente no Rio, e
negociaram de ela usar alguns dias das suas férias agora. Já a Dra. Harrison
decidiu me dar essa semana livre para compensar a viagem a trabalho e eu
resolvi dedicar o meu tempo da melhor forma possível: dentro de Alice.
Tinha passado o voo todo remoendo a mensagem que deixei no seu
telefone e, quando finalmente liguei meu aparelho enquanto estava na fila da
cafeteria, confesso que não esperava um retorno. No entanto, ela fez muito
mais do que retornar a ligação. Ela me assumiu para todo mundo, incluindo o
tal do Rafael. Alice explanou seus sentimentos e eu li sinceridade em suas
palavras. Ela realmente me amava, portanto, não dar uma chance para nós seria
idiotice.
E quando eu a vi do lado daquele totem de celular? Não havia como
questionar mais o que eu sentia. Caminhei na sua direção e lhe entreguei o
meu café e a minha alma, que ela aceitou, sem pestanejar.
Agora, com Alice em meus braços, sei que foi a melhor decisão que já
tomei na vida.
Minha campainha toca e ela se revira na cama. Saí dessa casa não
conseguindo deixar de pensar em Melanie, mas, vendo Alice nua entre os meus
lençóis, não consigo me lembrar de um tempo em que qualquer outra mulher
esteve aqui. A campainha toca de novo e corro para atender antes que ela
acorde.
— Liam, o que você está fazendo aqui?
— Você não vê o celular? — me pergunta já entrando na sala e
empurrando um saco gordurento contra o meu peito.
— O que é isso?
— Nosso brunch. Tive que inventar uma diarreia para o meu tio me liberar
de uma reunião, então é melhor não me expulsar! Você está sofrendo e é meu
irmão; eu preciso estar com você.
— Ahn…
Ele arranca o saco da minha mão e leva até a bancada no centro da minha
cozinha.
— Black pudding e bacon para mim, ovo frito e torradas para você — ele
narra enquanto expõe as comidas.
— Liam.
— Café dos campeões para absorver toda a cerveja que você já deve estar
tomando desde o voo.
— Liam.
— Nem pense nisso, Harry. Eu não vou embora. Você está mal.
— Liam.
— Eu não me importo com o meu trabalho! Vou te ajudar a superar desde
o começo. Não vou deixar você se afundar que nem aconteceu com a Melanie.
— Liam.
— Vamos encarar isso agora. Quero você bem quanto antes.
— LIAM!
— Ai, que foi? Não precisa gritar!
— Claro que preciso; você não cala a porra da boca um segundo.
— Não calo porque eu já conheço o seu discurso quando fica mal. Você vai
esconder seus sentimentos de mim até eu ter que começar a usar um guindaste
para tirar você do seu coma alcoólico todo dia de manhã para conseguir ir para
o trabalho. Não dessa vez, queridinho!
— Liam, não tem sentimento para esconder.
— Claro que tem.
— Não tem. Não tem porque estão todos expostos. Eu estou amando.
Liam franze o rosto inteiro em uma careta que eu nunca vi.
— Okay… E o que isso significa?
— Significa que a Alice está na minha cama, nesse momento e eu preciso
que você vá embora.
— Oh! — ele exclama, arregalando os olhos. — O que ela está fazendo
aqui?
— Ela veio atrás de mim.
— Ela veio do Brasil até aqui para falar com você?
— Sim.
— Então, está tudo bem entre vocês? Você não está mal?
— Nem um pouco.
— Harry! — Ele contorna a bancada e me abraça. — Que alegria, irmão!
Não posso acreditar que ela fez isso.
— Ela me ama, Liam. De verdade. Não achei que algum dia ia sentir isso,
mas esse tipo de amor é diferente de tudo que eu já vivi.
Liam se afasta e dá um tapinha carinhoso no meu rosto.
— Aproveita muito, Harry. Não é todo mundo que tem isso.
Suas palavras me causam uma dor no peito. Aqui estou eu, falando pelos
cotovelos sobre como estou feliz, e me esquecendo de que faz dias que Liam
terminou mais um namoro.
— Você vai encontrar também, Liam.
— É… Quem sabe… — Ele não acredita nas minhas palavras. Eu, que
estava tentando ignorar que o amor existe, tenho agora a melhor mulher do
mundo me esperando no meu quarto. Enquanto isso, esse homem que sempre
buscou o amor, nunca consegue encontrar. — Vou deixar vocês curtirem seu
dia. Aproveitem o brunch.
— Pode deixar.
— Espero ser o padrinho do casamento, hein.
Casamento? A ideia não me assusta tanto quanto eu pensei que assustaria.
Acho que, quando se está com a pessoa certa, não tem por que se assustar.
— Acho que vou chamar o Taylor para ser padrinho.
— Se você acha que o sovaco dele fede depois de um show, é porque ainda
não viu o cara no calor de um terno. Você não vai aguentar aquilo do seu lado,
durante a cerimônia.
— Okay. Por motivos de odor, você será meu padrinho.
— É melhor mesmo.
Liam dá um sorriso sincero e sai. Coloco as comidas que ele trouxe em um
prato e volto para Alice.
Ela está recostada em dois travesseiros, mexendo no celular, mas percebe
quando eu entro e se vira, imediatamente notando o que trago nas mãos.
— Isso é comida? E eu achando que não tinha como te amar mais!
— Liam que trouxe. Você vai ter que me ajudar com as carnes.
— Ele ainda está aí? Não vai me apresentar?
— Ele já foi. Não quero dividir você com o mundo ainda; vocês vão ter
muitas oportunidades para se conhecerem.
— Mal posso esperar!
— Mas agora eu não quero falar disso.
— Você quer falar do quê, então?
Arranco o prato da sua mão antes que ela pegue o bacon.
— Não quero falar.
— Mas e a comida?
— Ainda vai estar aqui em quarenta minutos.
— Quarenta minutos? E o que você quer fazer durante esse tempo?
Abraço seu corpo e rolo com ela na cama, colocando-a em cima de mim.
— Tudo que eu conseguir.
— Então acho melhor começarmos.
E é exatamente isso que fazemos: hoje começamos algo.
Não temos os detalhes de como vamos seguir adiante, contudo, temos a
certeza de que vamos. Seguiremos completos e juntos, como ela disse em seu
post e como estamos agora. Não tenho ideia de que tipo de caminho nos
espera; mas o começo? Ah, o começo é doce demais.
-P rende o cabelo.
— Não.
— Mas eu usei o cabelo preso no meu casamento.
— Eu não sou você, mãe.
— Pois deveria.
— Eu nem sei o que isso quer dizer.
— Quer dizer que eu sou uma pessoa com bom gosto e você não. — Diz a
mulher que está usando um vestido com ombreiras para o casamento da sua
única filha.
Meu pai e Antônio — que agora aceita ser chamado de Antônio
novamente, com a graça de Deus — estão conversando no sofá que fica nos
fundos da sala, enquanto minha mãe me enche os ouvidos. Ela está em pé do
meu lado e eu estou sentada na penteadeira com a maquiadora finalizando os
últimos toques no meu rosto. Se eu achava que a dona Yolanda Santana era
insuportável, não tinha ideia da loucura que seria no dia em que eu finalmente
fosse dizer sim.
Depois de um ano morando cada um em seu país, nos falando — e
fazendo outras “cositchas” também — todos os dias por videochamada, não
aguentei mais e pedi Harry em casamento.
Sim, EU pedi Harry em casamento.
Ele tirou férias no fim do ano que nos conhecemos e ficou comigo durante
um mês, no Brasil. Em abril deste ano, eu fiz a mesma coisa, mas fui para
Londres uma semana antes da data que eu tinha combinado com ele (pegando
avião sozinha novamente porque agora sou dessas). Me encontrei com Liam —
que é um fofo, por sinal — e pedi sua ajuda. Ensaiei com ele, o baterista da
Moon Landing, Taylor, e o outro guitarrista da banda, Owen, durante seis dias
e surpreendi Harry com um show privado no seu flat. Cantei “I Got You Babe”
(você não achou que a Cher ia estar de fora de um momento tão importante
assim, né?), com Owen cantando as partes do Sonny, até o Harry sair do seu
estado de choque e se juntar a mim. No fim, me ajoelhei, abri uma caixa de
sapatos com um par de pantufas de tubarões e pedi para ele me deixar
esquentar seus pés em noites frias. Harry aceitou e expulsamos os rapazes para
fazer sexo em cima da ilha da cozinha.
Voltei para o Brasil disposta a pedir demissão e a buscar um emprego por
aqui depois do nosso casamento. Me lembrei de Maria, mãe de Harry, que
largou tudo para ir atrás do seu amor. No entanto, não precisei largar nada.
Conversando com Raquel sobre meus planos, ela me revelou que a GameStart
vai abrir uma filial em Londres e que conseguiria a minha transferência.
Não foi fácil me dar conta de que não estaria mais a apenas quadras de
distância de Helô, contudo minha amiga logo viu vantagens. Entre as
principais estão ter um lugar para se hospedar de graça em outro continente e
mais oportunidades de sexo casual com estrangeiros. Depois que eu lhe contei
sobre Dona Clô e sua opinião sobre a vida sexual dos ingleses, esse assunto tem
sido uma constante nas nossas conversas.
Oito meses depois do pedido, estamos aqui. O pequeno sítio onde os avós
paternos de Harry moram é um lugar encantador. Pinheiros altos cercam todo
o terreno, fazendo-me sentir como se o mundo não soubesse onde estamos. A
neve de fim de ano e o lago congelado fazem com que o clima romântico da
paisagem seja exacerbado. Desde que Harry me mostrou fotos do lugar pela
primeira vez, eu sabia que nossa união seria feita aqui. Não tinha outro lugar
possível.
— E o batom?
A voz da minha mãe me traz de volta para o pequeno cômodo no segundo
andar da propriedade, onde eu estou me arrumando. Harry está em um quarto
no térreo, esperando o aval da cerimonialista para a gente começar.
Mas não podemos começar sem a madrinha.
— O que tem o meu batom?
— Você já colocou?
— Não está vendo?
— Não.
— É nude.
— Ou seja, imperceptível. Você não quer passar despercebida, né?
— Acho meio difícil considerando o vestido branco, o véu e… Ahn… O
que mais que eu estou esquecendo? Ah, sim. Que é o MEU casamento!
Se Helô não voltar logo, quando ela chegar vai ter acontecido um
matricídio.
Onde diabos ela está?
Como se tivesse sido atraída pelos meus pensamentos, Helô entra correndo
e ofegante. Ela apoia as costas contra a porta, seu olhar perdido, sem fixar em
nenhum lugar, e nem percebe que existem outras pessoas na sala. Seu coque
está desfeito e tem uma margarida amassada, presa na lateral do seu cabelo. O
sorriso na sua boca é a única coisa que me diz que eu não deveria me preocupar
muito com o seu estado.
— Helô? — Ela levanta a cabeça se dando conta da minha presença pela
primeira vez. — Está tudo bem?
— Sim, sim, sim.
— Isso são dois “sins” a mais do que eu estava esperando. Onde você
estava?
— Ahn… Banheiro.
— Deixa eu adivinhar, arrumando o cabelo?
— É.
Ela, claramente, não está bem.
— Você quer me contar alguma coisa, Helô?
— Não.
— Então você está monossilábica porque está tudo bem?
— Isso.
Nunca vi Helô falar tão pouco na vida.
Ela chacoalha a cabeça em um movimento divertidamente exagerado.
— Vamos falar sobre o que interessa: você! Nossa, esse vestido está tão
lindo. Esses ombros expostos… Você sabe que eu sou louca por ombros, né?
— Ombros largos que podem segurar você quando transa contra uma
parede? É, eu me lembro.
Ela fica estranhamente encabulada. É porque a minha mãe está aqui? Dona
Yolanda está azucrinando Antônio sobre a cor bordô da sua gravata — que, de
acordo com ela, vai fazer com que ele chame mais atenção do que eu —, então
ela não está prestando atenção. E, mesmo que estivesse, isso nunca foi um
empecilho para Helô.
Antes que eu tenha tempo de tentar conversar melhor com minha amiga, a
cerimonialista entra.
— Estão todos aqui já?
— Sim — responde minha mãe. — Melhor já começar antes que o Harry
desista.
Meu pai chega ao seu lado e beija sua têmpora. Imediatamente os ombros
dela se abaixam como se pudesse finalmente relaxar.
— Vamos casar nossa menina, Yoyo.
— Vamos, meu amor.
Como não amar esse homem e a sua habilidade de desarmar essa bomba-
relógio que eu chamo de mãe?
A estufa do sítio é um lugar aquecido, mas cercado por paredes e teto de
vidro, o que permite vermos todo o esplendor à nossa volta, sem sermos
impactados pelo frio. Os poucos convidados que chamamos estão ocupando
cadeiras brancas posicionadas nas laterais do tapete verde, que eu vou cruzar
para chegar na cena que está tirando o meu fôlego: Harry.
Ele veste um terno preto, camisa preta e uma gravata cinza ligeiramente
folgada no pescoço. Harry consegue dar um ar rock para uma vestimenta que
deveria ser clássica e, não sei como é possível, mas, nesse momento, eu o amo
mais ainda. Seus olhos brilham com emoções que eu não sou capaz de nomear
enquanto analisa cada passo que dou na sua direção. Sua boca está entreaberta
e tudo que eu mais quero é beijá-la. Saber que vou ter que aguardar até o fim
da cerimônia para isso é um tipo de tortura que não desejaria ao meu pior
inimigo.
Fico tão presa à visão de Harry que quase não percebo Liam do seu lado,
ocupando seu espaço de padrinho e Helô me esperando do outro, onde eu vou
ficar. Meu pai segura meu braço direito e minha mãe o esquerdo — claro que
dona Yolanda não ficaria de fora desse momento. E eu não queria que fosse
diferente.
Eles me dão beijos nas bochechas e cumprimentam Harry antes de se
sentarem.
Em sintonia com meus pensamentos de não querer aguardar, Harry me
puxa pela cintura.
— A cerimônia que espere — ele diz, avançando com a sua boca contra a
minha.
Seus lábios me tiram completamente do momento presente. Não estamos
entre nossos amigos e familiares, não estamos nesse sítio, não estamos na
Inglaterra. Só existe eu e Harry aqui. Ele me domina e eu me entrego. Sua
língua, suas mãos, seu peito contra o meu.
Cadê a lua de mel quando se precisa dela?
— Aham. — Pigarreia alguém perto de nós. — Vamos tentar manter a
classificação livre do evento, por favor. Vovô Milton e vovó Grace agradecem.
Harry separa nossas bocas, reagindo ao pedido de Liam, e se vira para os
convidados que estão divididos entre suspiros e gargalhadas.
— Alguém aqui se controlaria no meu lugar? Olhem para ela, pelo amor de
Deus!
— Deduzo que você gostou do vestido? — pergunto.
— Adorei, love. — Ele se abaixa para sussurrar no meu ouvido. — Mas sei
que você também está louca para a gente correr com isso e eu poder te tirar de
dentro dele.
Gato, romântico e ainda lê mentes?
Eu tirei a sorte grande.
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