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Introducaéo.... 7 Paul Watzlawick Prefacio.... 13 Peter Krieg Adeus a objetividade ..... 17 Ernst von Glasersfeld O mito da onisciéncia e o olhar do observador Mauro Ceruti 57 Como podemos observar estruturas latentes’ Niklas Luhmann “ Cultura <> Conhecimento..... Edgar Morin 81 Para a autodesconstrugao de convencées. Jean-Pierre Dupuy Ficgéio e construgao da realidade sobre a distingao entre ficcdes no direito e na literatura .... Peter M. Hejl E tudo muito simples (radionovela).... Siegfried J. Schmidt Pontos cegos e buracos negros ~ Meios de comunicagao como mediadores de realidades .. 125 Peter Krieg Perspectiva interna e externa — Como aplicar o pensamento sistémico ao cotidiano ... 135 Fritz B. Simon Entre ousadia e confusao verbal 147 Helm Stierlin Ciéncia e cotidiano: a ontologia das explicagoes cientificas ...... 163 Humberto R. Maturana Motivos elementares e elementos basicos para ‘uma teoria de agées construtivistas. . 199 | Karl H. Miller | Circulos viciosos criativos: Para compreensao das origens....... 239 Jean-Pierre Dupuy e Francisco Varela Os Autores Paul Watzlawick KE von Foerster se considera “filho de uma tipi- ca familia vienense, portanto, uma deliciosa mis- tura de antepassados de origem germAnica, eslava e judaica, formada por artistas, artesaos, engenheiros, camponeses, ar- quitetos e advogados”. Esta descricdo, no entanto, chega a ser atenuada porque aquele mundo vienense de antes e depois da Primeira Guerra Mundial era, sabidamente, um microcosmo de idéias, escolas e movimentos culturais, artisticos, cientificos e sociais, Wnico em sua maneira de ser, com efeitos que remanes- cem até os dias atuais. E a propria familia de Heinz von Foers- ter foi uma parte desse mundo: seu. bisavé deu a Viena sua identidade urbana, sua avo foi uma das primeiras sufragistas da Europa, um de seus tios foi Ludwig Wittgenstein, um outro Hugo von Hofmannsthal. Como se sabe, é mais facil empreender realizacdes ex- traordinarias como filho de uma ascendéncia de classe média ou até mesmo miseravel do que nas condigdes aqui esbocadas superficialmente. Em sua juventude pretendia dedicar-se as “Ciéncias Naturais”, 0 que para ele significava “uma mistura ro- mantica de Fridtjof Nansen e Marie Curie”. Ele proprio se des- 8 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) creve como um aluno péssimo que nunca fazia seus deveres; esquiar, alpinismo, a banda de Jazz-Combo fundada por ele, além de seu extraordinario sucesso como magico, nao lhe dei- xavam tempo para essa tolice. Excecao feita A matematica e A fisica; nestas matérias “eu sabia a resposta antes que me fizes- sem a pergunta; tudo era evidente e perfeitamente claro”. (Isto nos lembra 0 famoso matematico Gauss, que dizem ter declara- do certa vez em sentido bem semelhante: “A solucdo eu ja en- contrara — agora eu precisava descobrir somente os caminhos pelos quais havia chegado a ela.”) E justamente nessa fascinante capacidade dos que pos- suem um talento especial que para nés, seres comuns, ha algo magico. Como descreve Arthur Koestler em seu livro, A centelha divina, raramente as descobertas sao aquilo que imaginamos, isto é, algo completamente novo, mas sim bissociagées, que Koestler considerava relacdes praticas ou “so mentais” entre dois fatos, nunca antes estabelecidas, no entanto, perfeitamen- te conhecidas isoladamente. Os resultados praticos e os efeitos das bissociagées seréo ainda mais surpreendentes e “magicos” quanto mais conhecidos forem seus elementos individuais até o momento isolados.! Isto n&o € senao o que ocorre com a perplexidade que o magico provoca em seus espectadores, e 0 jovem Heinz von Foerster revelou-se, como ja mencionamos, um magico de habi- lidade incomum. O ilusionista realiza algo “simplesmente im- possivel” mas que acaba de ser feito diante dos nossos olhos. Naturalmente esta perplexidade ocorre somente porque 0 es- pectador mantém sua visao da “realidade” e a bissociacao ora observada em sua realidade é “impossivel”. Sabemos que os contemporaneos de Galileu se recusavam a olhar através do seu telescopio porque aquilo que ele afirmava ter descoberto simplesmente nao podia ser verdade. Mas 0 ilusionista sabe algo mais: se ele cedesse as pressdes dos seus espectadores boquiabertos e mistificados e lhes explicasse a bissociacao (0 truque), o resultado provavel- mente seria uma imunidade permanente contra cair novamen- te nesse truque. O tio de Foerster, Ludwig, expressou este pro- cesso da seguinte maneira: Suponhamos que... [um] jogo seja assim: quem comeca sempre tem a possibilidade de vencer por meio de um de- O olhar do observador 9 terminado truque muito simples. Mas ninguém se deu conta disso, porque é um jogo. Nesse instante alguém nos alerta e — tudo deixa de ser um jogo. Na verdade isto significa...: que 0 outro nao nos alertou so- bre alguma coisa mas que nos ensinou nao o nosso, e sim um outro jogo. Mas, como o antigo se tornou obsoleto atra- vés do novo? Agora temos uma outra visdo e néo podemos continuar jogando inocentemente.” Em 1956, quando Wittgenstein publicou esta idéia, seu sobrinho ja havia comecado a aplica-la praticamente a ciéncia. A respectiva bissociacao de Heinz von Foerster é aquela entre observador e observado. Sabemos que a ciéncia classica teve por objetivo pesquisar 0 universo em sua realidade objetiva e independente do ser humano. Isto nao significa nem mais, nem menos, a necessidade de suprimir qualquer contaminacao subjetiva deste universo, inclusive 0 proprio observador, para se chegar a esse universo objetivo. Desde 0 inicio do nosso século, as duvidas quanto a exeqtiibilidade desse processo vém cres- cendo. Comegou-se entao a comprovar que um universo de onde se banisse todas as subjetividades nao seria mais obser- vavel, justamente por isso. @tividadesdesBinstein (segundo a qual as observacoes sao relati- vas ao ponto de vista do observador) e 0 postulado da relagéo da desfocagem (segundo o qual a observacao exerce influéncia sobre 0 observado). Neste contexto, vamos comparar o que Schrédinger jA postulava em 1958, portanto, em uma época em que a expressao construtivismo ainda era desconhecida no seu sentido atual : A concepcao do mundo sempre foi e continua sendo para todos uma construgao intelectual; sua existéncia nao pode ser comprovada de qualquer outra maneira.> A relatividade do ponto de vista construtivista em rela- ¢&0 ao nosso universo e a nds mesmos € expressa de maneira especialmente clara no “Calculus for self-reference” de Varela: © ponto de partida desse calculo [ ... ] € 0 estabelecimento de uma distincao. Com este ato primitive da dissociagao, 10 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) separamos aspectos que consideramos serem entéo o pro- prio universo. Partindo dai insistimos na prioridade do pa- pel do observador, que faz suas distingdes nos pontos que lhe convierem. Mas estas distingdes que, por um lado criam nosso universo, por outro lado revelam justamente as distingdes que nds fazemos e que se aplicam muito mais ao ponto de vista do observador que 4 real constitui- cao do universo que, em conseqiiéncia da dissociagéo de observador e observado, continua sempre incompreensivel. A partir do instante em que observamos 0 universo na sua esséncia especifica, esquecemos o que empreendemos para encontra-lo nessa esséncia; e se recuarmos na historia até © ponto como isto ocorreu, nao encontraremos nada além do reflexo de nods mesmos no universo e como universo. Ao contrario do que freqitentemente se supde, a analise cuida- dosa de uma observacao revela as particularidades do ob- servador. Coube no entanto ao trabalho cientifico de Heinz von Foerster estender esse ponto de vista construtivista a pratica- mente todos os aspectos da existéncia humana no universo — aos problemas da percepcao, da cognicéo e das demais fun- goes do sistema neurolégico, da linguagem, da inteligéncia arti- ficial, da biofisica e, sobretudo, ao conceito da auto-organizacao de sistemas (Autopoiese). Os relatos desta edi¢ao comemorativa devem fornecer uma visao global do significado deste preceito sistémico para a moderna ciéncia natural. Entretanto, estamos apenas comecando a avaliar qual a importancia do preceito construtivista sistemico delineado por Heinz von Foerster também para as ciéncias sociais e, sobretu- do, para nossa compreensao de problemas humanos totalmente ota u avel para a visao a. A esta mudanca de pensamento da ménada classica para a interacao sistémica devemos novas € promisso- ras estratégias de soluc4o nao somente no ambito clinico, mas também social e organizacional, e até internacional. ii © nosso aniversariante possa divulgar pelo menos um es- e suas contribuigdes basicas para uma nova visdo da e, portanto, de nés proprios. Notas ler, Arthur, Der géttliche Funke, Scherz Verlag, Bern und en, 1966. stein, Ludwig, Bemerkungen tiber die Grundlagen der Ma- ik, Bkackwell, Oxford, 1956. inger, Erwin, Mind and matter, Cambridge University Press, bridge, 1958. wrela, Francisco; “A calculus for self-references”, Internat. Journal ral Systems 2:5-24, 1975. magine que vocé seja convidado em um salao vie- nense no final de qualquer século. Os anfitrides, pessoas civilizadas (polidas) e cultas, convidam regularmente cientistas e técnicos de diversas areas, que fazem um relato re- sumido sobre seus mais recentes trabalhos. Acompanhados de vinho e pequenas iguarias, conversam em seguida sobre a pa- lestra da noite e sobretudo sobre os métodos por meio dos quais os palestrantes chegaram aos seus resultados ou afirma- gdes. Esses saloes eram tradicionais na velha Viena e também entre os cientistas fora de Viena eles eram e as vezes ainda sao mantidos até os dias de hoje. Se vocé imaginar ainda que 0 an- fitriao nao apresenta palestra alguma mas, através das suas perguntas, As vezes desconcertantes, entremeando truques de magica ocasionais, dos quais nao se percebe mais a longa e cuidadosa elaboracao, reconduzindo a discusséo a sempre no- vos e emocionantes apogeus, ent&o vocé ja tem uma idéia da- quilo com que o livro de Heinz von Foerster tem a ver. Justa- mente ele, que forneceu o pretexto deste livro, nao esta repre- sentado por um trabalho proprio! Ou sera que esta? Todos os 14 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) autores deste volume foram, mesmo que nao o saibam, por um menor ou maior espaco de tempo, convidados de saldes foerste- rianos. Suas dissertagdes também devem ser lidas como tenta- tivas de respostas as perguntas de Heinz von Foerster. Nesse sentido Heinz von Foerster esta representado duas vezes neste livro: como o criador (inventor) de perguntas e como uma cria- co (invencao) dos que respondem. Para homenagea-lo em seu 80° aniversario, tentaremos neste livro esclarecer sua influéncia, sobretudo a influéncia de alguém que sempre pergunta, nas respostas dos autores e, as- sim, seguir suas pegadas, 0 que em algum momento poderia le- var o leitor a Heinz von Foerster como autor. O nome Heinz von Foerster aparece nas notas de rodapé da literatura cientifica das mais diversas areas. triviais . Os autores deste livro sio representativos de muitos daqueles que ele influenciou com seu pensamento e com suas perguntas. Eles parecem estar relacionados em uma seqtiéncia caética mas talvez seja possivel imprimir uma certa ordem a esse caos: Nastradigéondasliteraturasconstrutivistaso™fini=esta°no” circularidade do pen- ~ Existindo um construtivismo vivenciado, antes de tudo ele seria segura- mente identificado como a biografia de Heinz von Foerster, mas ela antes ainda devera ser reconstruida... Vamos entao abrir 0 sal4o com uma cancéo de adeus que Ernst von Gla- sersfeld, outro grande construtivista austro-americano, canta em louvor 4 objetividade. Com isto estamos no meio do tema: O universo como construcaéo do seu observador. Inicialmente pretendemos circundar este tema historica e epistemologica- mente, talvez com o “Mito da onisciéncia e a visdo do observa- dor’, de Mauro Ceruti, seguido da pergunta de Niklas Luh- mann: “Como podemos observar estruturas latentes?” Edgar Morin apresenta a questdo da relagao entre cultura e conheci- mento e seu compatriota Jean-Pierre Dupuy tenta langar uma ponte entre as tradigdes do pensamento anglo-saxonico e fran- cés, mas também da epistemologia para a literatura, com seu trabalho, “Para a autodesconstrucgao de convengées”. Entra- mos um pouco em terreno literario ao que se associa também O olhar do observador 15 o artigo de Peter M. Hejl sobre fungao e construcao da realidade na literatura e no direito. Bem caracteristico para as perguntas de Heinz von Foerster é que as vezes elas levam os inquiridos a divagacées e tentativas surpreendentes, 0 que também deve ter ocorrido a Siegfried J. Schmidt, que apresentou suas respostas (“é tudo muito simples...”) em forma de radionovela, que tam- bém so se revela em sua plenitude ao ser ouvida. Aqui reco- menda-se um tipo de leitura de 2° ordem, onde o leitor ouve a si mesmo (ou a um outro leitor) durante a leitura, observando- se portanto com os ouvidos. Com isto atingimos naturalmente a area da producao artistica e, assim, da pratica social, um cam- po que minha propria contribuicdo, “Pontos cegos e buracos negros — a midia como mediadora de realidades”, procura abordar (nao sem o estimulo da pergunta de Heinz von Foerster aos documentaristas que sempre afirmam que relatam “como era”: “Como vocé pode saber como era? Vocé somente pode sa- ber 0 que vocé acha agora, como era...”). A partir daqui é curta a distancia até os praticantes da terapia sistemica, que também foram intensamente influenciados por Heinz von Foerster e pelo trabalho de Fritz B. Simon, “Perspectivas internas e externas: como podemos aplicar 0 pensamento sistémico ao cotidiano”. Helm Stierlin, igualmente festejado neste ano, cujo 65° aniver- sario e jubilacao da Universidade de Heidelberg na primavera de 1991 foram festejados com um grande congresso em Heidel- berg, no qual encontraram-se, nao por acaso, quase todos os autores deste livro, contribuiu com “Entre ousadia e confusao da linguagem — reflexdes sobre a teoria e pratica sistémica”. Agora chegamos, por assim dizer, na Ultima curva do nosso sa- lao circular e nos movemos de encontro ao final e novamente ao comego, inicialmente com a dissertagao de Humberto Matura- na, “Ciéncia e cotidiano: a ontologia de explicagées cientificas”. Com Karl H. Miller, mais um convidado do salao vienense, anuncia a palavra com a contribuicao: “Motivos elementares e elementos basicos para uma teoria da ac&o construtivista”. Como véem, almejamos um fechamento do circulo por assim di- zer em um “nivel mais elevado” onde partindo da teoria e, atra- vés da pratica, visamos a fusao de ambas. E que melhor titulo poderiamos dar ao capitulo final de um livro construtivista se- nao este de Francisco Varela e Jean-Pierre Dupuy: “Circulos vi- ciosos criativos: para a compreensao das origens”. A intengao deste livro foi a congratulacdo e o agradeci- mento a Heinz von Foerster de alguns de seus amigos. Ele nada 16 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) sabia sobre esta intengao (se sabia, entéo, mais uma vez ele de- sempenhou o papel de nao suspeitoso com perfei¢ao). Agradecimento também aos autores que participaram com alegria desta “con-spiracao” (no sentido de Maturana). Fi- nalmente, o agradecimento também a Mai von Foerster que contribuiu com muitos nomes e enderegos e nao tem qualquer responsabilidade sobre a auséncia de tantos nomes que ainda nao constam deste livro. Heinz von Foerster tem tantos amigos, que eles (mesmo considerando apenas os ainda vivos) teriam facilmente conseguido publicar a homenagem em varios volu- mes Peter Krieg Maio de 1991 Ernst von Glasersfeld ce s mudancas ambientais, sociais e as transforma- cdes radicais dos fundamentos ideolégicos sem- pre parecem mais abrangentes e de conseqiiéncias mais graves que todas as revolugées da historia universal precedente para as geracdes que as vivenciam. Idéias que nés mesmos fomos forgados a reestruturar consumiram-nos esforcos muito maio- res que aquelas que ja recebemos reestruturadas. Todavia eu gostaria de ressaltar que nas ultimas oito décadas que Heinz von Foerster tera vivido no outono de 1991 houve mais revolu- des que em qualquer outra época. Isto se aplica sobretudo a perspectiva pela qual um pensador deve observar as experién- cias vividas e ao ideario simplesmente chamado de conheci- mento. Isto nao significa que em outros tempos, alguns, isola- damente, nao tenham tentado avangar na diregao que agora co- mega a se impor, mas sempre foram atropelados pelo fator da tradicdo e suas tentativas ficaram, como raridades, 4 margem da hist6ria das idéias. A revolugéo que tomou impulso no nosso século vai mais fundo que a copérnica, que baniu o homem da sonhada 18 Paul Watzlawick/Peter Krieg (Orgs.) primazia do centro do universo. Depois de Copérnico ainda po- diamos nos considerar o “rei da criagéo” e alimentar a crenca de sermos os Unicos capazes de compreender, pelo menos a grosso modo, a natureza da criacéo.

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