You are on page 1of 10

Flávio da Silva Andrade

STANDARDS
DE PROVA NO
PROCESSO PENAL
quanto de prova é necessário para
deferir medidas cautelares, receber
a denúncia, pronunciar e condenar?


edição
revista e
atualizada

2022

Andrade-Standards de Prova no Proc Penal-2ed.indd 3 30/06/2022 15:16:28


2
Noções preliminares: fatos,
provas e suficiência probatória

Os fatos, enquanto eventos que marcam a vida das pessoas e en-


tremeiam suas relações, acarretam contendas e ensejam o manejo de
demandas na esfera judicial. E, como eventos ocorridos no plano em-
pírico, os fatos precisam ser comprovados. São as provas dos fatos, ou
mais precisamente as provas dos enunciados fáticos1, que comandam a
decisão e a resolução dos conflitos de interesses pelo Poder Judiciário.
Mas quanto se deve provar? Que nível de confirmação da hipótese fática
deve ser exigido das partes?
O ensino jurídico nacional, assim como o de outros países de civil
law, não dedicou muita atenção ao estudo dos critérios de suficiência da
prova, à reflexão sobre a medida da prova, sobre o grau de corroboração
de uma hipótese para que possa ser considerada provada2. Diferentemente
do que acontece em países de common law, em que costuma haver uma
disciplina autônoma sobre evidence3, os países de tradição romano-ger-

1. Os enunciados fáticos, dos quais se tratará no capítulo seguinte, são as “descrições de


fatos”, as assertivas ou proposições sobre os fatos, mas não os constituem (ABELLÁN,
Marina Gascón. Los hechos en el derecho: bases argumentales de la prueba. Tercera
edición. Madrid: Marcial Pons, 2010, p. 60). Eles são formulados por meio da linguagem,
que conecta o objeto do processo à realidade externa, ao mundo. Um fato histórico
sempre é intermediado pela linguagem.
2. PÁEZ, Andrés (coord.). Hechos, evidencia y estándares de prueba. Ensayos de epistemo-
logía jurídica. Bogotá: Universidad de los Andes, 2015, p. 3-7.
3. Nos EUA, por exemplo, ao menos desde a primeira metade do século passado, Jerome
Frank questionava “o desequilíbrio entre a quantidade de atenção dedicada a questões
de direito em disputa nos tribunais e a quantidade dedicada a questões de fato”. Ele
23

Andrade-Standards de Prova no Proc Penal-2ed.indd 23 30/06/2022 15:16:29


STANDARDS DE PROVA NO PROCESSO PENAL • Flávio da Silva Andrade

mânica têm negligenciado a pesquisa quanto aos graus de suficiência da


prova, a investigação de parâmetros racionais voltados à objetivação do
juízo fático.4 Os critérios de suficiência da prova é que permitem alcançar
mais racionalidade no acertamento dos fatos e maior controlabilidade
do erro ou acerto do juízo fático realizado no processo.
Conquanto se tenha avançado no estudo do direito à prova, do ônus
da prova e dos poderes instrutórios do juiz na seara do processo penal5,
a academia6 e a jurisprudência brasileiras relegaram a segundo plano de
prioridades a reflexão canalizada a saber quanta prova é necessário para
se reputar provado um enunciado fático, qual grau de corroboração de
uma hipótese fática é exigido para que ela possa ser considerada verda-
deira. Os esforços e o tempo dedicados a este assunto são inversamente
proporcionais à sua importância.
As escolas de direito privilegiaram o estudo das normas, das regras
e dos métodos de interpretação do ordenamento jurídico, isto é, dedica-
ram-se mais ao juízo de direito, ao exame da quaestio juris, à exegese dos
preceitos normativos. O maior interesse na análise da norma aplicável
a um caso transformou a questão meramente jurídica na parte central
dos discursos acadêmicos ou forenses. Olvidou-se que, não obstante o

defendia também que, no âmbito da educação jurídica, das pesquisas acadêmicas,


nos debates sobre reformas e no discurso jurídico em geral, era preciso dedicar mais
energia ao tema da determinação dos fatos, ao juízo fático. Abraçando essa bandeira,
William Twining propugnou que a matéria Evidence, Proof and Fact-finding se tornasse
parte integrante e central do currículo básico do ensino de direito (TWINING, William.
Taking facts seriously. Journal of Legal Education, v. 34, n. 1, 1984, p. 22-25).
4. “Entre os juristas de formação romano-germânica, não é vulgar traçar distinções so-
bre os graus de convicção exigíveis para se dar certo facto como provado” (MENDES,
Paulo de Sousa. Medida da prova. In: MENDES, Paulo de Sousa; PEREIRA, Rui Soares.
Prova Penal Teórica e Prática. Coimbra: Almedina, 2019, p. 29).
5. Vale mencionar, verbi gratia, alguns estudos: GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito
à prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997; ARANHA,
Adalberto José Q. T. Camargo. Da Prova no Processo Penal. 5. Ed. São Paulo: Saraiva,
1999; BADARÓ, Gustavo Henrique. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003; ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A Iniciativa Instrutória do Juiz no
Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
6. São exceções um trabalho de Danilo Knijnik (A prova nos juízo cível, penal e tributário. Rio
de Janeiro: Forense, 2007), outro de José Paulo Baltazar Junior (Standards probatórios no
processo penal. Revista AJUFERGS, Porto Alegre, n. 4, p. 161-185, nov. 2007. Disponível
em: <https://core.ac.uk/download/pdf/79069754.pdf>) e, mais recentemente, um livro
de Gustavo Badaró (Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters
Brasil, 2019).
24

Andrade-Standards de Prova no Proc Penal-2ed.indd 24 30/06/2022 15:16:29


2. NOÇÕES PRELIMINARES: FATOS, PROVAS E SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA

fato esteja interligado ao direito ou seja por ele absorvido em alguma


medida, o pensamento crítico em derredor dele e de sua reconstrução
ou fixação em juízo constitui uma condição inescusável para a adequada
aplicação da lei.7
Comentando sobre o assunto, Willian Twining8 alertou que “a prática
de tratar o raciocínio jurídico como sendo exclusivamente preocupado
com questões tipicamente difíceis de direito é meramente sintomática
de distorções mais fundamentais nas agendas da jurisprudência” (tra-
dução nossa). Ele afirmou que é preciso “levar mais a sério as questões
relacionadas à prova, dentro de uma concepção equilibrada do que
está envolvido na compreensão do direito. Negligenciar essas questões
resulta em um quadro distorcido de atividade jurídica e de julgamento”
(tradução nossa).
Jamais se pode esquecer que dos fatos nasce o direito; são os fatos
que provocam o ajuizamento das ações judiciais; é em torno deles que
se estabelecem as discussões sobre certezas e probabilidades, a intera-
ção linguística, dialética voltada ao desvelamento da verdade; neles é
que reside o universo de incertezas, de dúvidas; são eles que precisam
ser reconstruídos e determinados no âmbito judicial para orientar a
tomada da decisão, pautada pela racionalidade e logicidade. Os fatos,
ou os enunciados que os retratam, constituem a matéria-prima do
provimento jurisdicional.
Os fatos estão, pois, na base do problema a ser resolvido em juízo
e sua relevância exige que deixem de ocupar uma posição marginal na
teoria jurídica9, máxime no que toca aos critérios de suficiência da prova

7. ABELLÁN, Marina Gascón. Los hechos en el derecho: bases argumentales de la prueba.


Tercera edición. Madrid: Marcial Pons, 2010, p. 11.
8. No original: “(...) the practice of treating ‘legal reasoning’ as being solely concerned with
typically hard questions of Law is merely symptomatic of more fundamental distortions
in the agendas of jurisprudence”. Ele afirmou que é preciso considerar “more seriously
within a balanced conception of what is involved in understanding Law. Neglect of
those issues results in a distorted Picture of adjudication, litigation, legal reasoning,
and legal practice” (TWINING, Willian. Talking facts seriously again. Journal of Legal
Education, n. 55, 2005, p. 2).
9. “Há, entre advogados e magistrados, uma certa tendência para considerar como
matéria quase inútil as questões de fato e para dar ao fato um significado deprecia-
tivo, isto quando é certo que, para quem procure nos advogados e nos juízes mais a
substância do que a aparência, a preocupação do fato devia ser um título de honra”
(CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Trad. de Ivo de Paula.
São Paulo: Editora Pillares, 2013, p. 192-193).
25

Andrade-Standards de Prova no Proc Penal-2ed.indd 25 30/06/2022 15:16:29


STANDARDS DE PROVA NO PROCESSO PENAL • Flávio da Silva Andrade

voltada à confirmação das proposições fáticas, de maneira a se propiciar


um controle mais racional e satisfatório de seu acertamento. Michele
Taruffo10 faz a seguinte advertência:

Não há dúvidas de que os fatos devem ser levados a sério. Muitas


causas são vencidas ou perdidas nos fatos, dependendo de se o
autor conseguiu ou não provar os fatos postos como fundamento
de sua demanda; muitos hard cases são hard porque os fatos são
complexos em demasia e difíceis de se subsumir em uma clara
regra de direito. Além disso, no processo os fatos são o ponto
de referência de todo o mecanismo que concerne às provas e à
sua produção.

Na realidade, na maioria dos sistemas processuais de civil law, na


Europa Continental e na América Latina, falta uma teorização mais ade-
quada sobre o juízo do fato e acerca do grau de certeza ou de probabilidade
reclamado para apoiar a decisão. Os autores, como afirma Luigi Ferrajoli11,
ocuparam-se muito da verdade a respeito das proposições jurídicas, que
versam sobre as normas, “e quase nunca da verdade (ou justificação)
das proposições fáticas, concretas, para as quais é mais evidentemente
iniludível, dentro de um sistema garantista, a referência empírica (“ou a
correspondência”) à existência ou não dos fatos em julgamento”.
A prova representa o coração do processo, mas não há clareza sufi-
ciente sobre o “quantum” dela se faz necessário em cada tipo de demanda
para balizar a tomada da decisão. Com quanto se considera provada a
alegação sobre os fatos? É imperioso, do ponto de vista epistemológi-
co, que fique mais explícito quando se pode aceitar uma hipótese por
verdadeira, em que condições os fatos podem ser tidos por provados.12
Esses questionamentos não podem ficar sem resposta, mas preci-
sam ser estudados e enfrentados pelos profissionais do direito e pelos
legisladores. O assunto inerente à fixação judicial dos fatos, relativo aos
critérios de suficiência da prova dos enunciados fáticos, não se trata de

10. TARUFFO, Michele. Uma simples verdade. O juiz e a construção dos fatos. Trad. de Vitor
de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 60.
11. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula
Zomer Sica e outros. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 87.
12. BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prova e verdade no direito. Trad. de Vitor de Paula Ramos. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 86-90.
26

Andrade-Standards de Prova no Proc Penal-2ed.indd 26 30/06/2022 15:16:29


2. NOÇÕES PRELIMINARES: FATOS, PROVAS E SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA

mero academicismo, mas de uma questão essencialmente prática, de


extrema importância no contexto da decisão judiciária.
É crucial que a verificabilidade dos fatos em disputa possa se dar a
partir de critérios de suficiência probatória bem definidos, adequadamente
regrados ou sistematizados, de modo a permitir um debate mais franco
e consistente, em contraditório, sobre a confirmação ou a refutação das
proposições factuais, tendente a minimizar erros ou arbítrios e estabelecer
formas mais racionais e objetivas de controle da decisão judicial. Como
assinala Marina Gascón Abellán13, “(...) a declaração de fatos provados
já não pode ser concebida como um momento místico e/ou insuscetível
de controle racional, como tem sido (e ainda é) frequente em certas
ideologias do processo”14 (tradução nossa).
Entretanto, à míngua de um desenvolvimento teórico mais satisfa-
tório acerca da determinação fática e dos critérios de suficiência da prova
nos diversos tipos de lide, e ante a ausência de uma disciplina legislativa
mais clara quanto a essas matérias, a valoração do conjunto probatório
e a tomada da decisão judicial ficam sujeitas a uma pauta mais indivi-
dual do julgador, isto é, acabam orientadas, em grande medida, por sua
subjetividade ou discricionariedade.15
Os juízos fáticos, portanto, não podem derivar de critérios imprecisos,
puramente subjetivos, não objetiváveis. No terreno da fixação judicial dos
fatos e da tomada da decisão, precisam ser estabelecidos esquemas racio-
nais, mais objetivos, que orientem o juiz pelos caminhos da consistência
lógico-argumentativa, da coerência narrativa e, sobretudo, da análise da
confirmação ou refutação das hipóteses, de modo a possibilitar, em bases
intersubjetivas, um controle mais exato do raciocínio empreendido e do
convencimento alcançado.16

13. ABELLÁN, op. cit., 2010, p. 12.


14. No original: “(...) la declaración de hechos probados ya no puede ser concebida como
un momento místico y/o insusceptible de control racional, como ha sido (y aún es)
frecuente em ciertas ideologías del proceso”.
15. KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízo cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007,
p. 33.
16. SCHIAVO, Nicolás. Valoración racional de la prueba en materia penal. Un estándar
probatorio subjetivo que no es tal. Tres pasos para un estándar objetivo. El juicio de
valoración como un esquema de verdad probabilística prevalente. 2. ed. Buenos Aires:
Hammurabi, 2015, p. 102.
27

Andrade-Standards de Prova no Proc Penal-2ed.indd 27 30/06/2022 15:16:29


STANDARDS DE PROVA NO PROCESSO PENAL • Flávio da Silva Andrade

Nos domínios do processo penal, o tema aqui abordado ganha


contornos sérios, relevantes, na medida em que os valores em jogo são
nobilíssimos, quais sejam, a liberdade e o status dignitatis das pessoas.
Quais são os graus de suficiência da prova para que a prisão provisória
de um cidadão seja decretada, para que seja tornado réu num processo
criminal ou para que seja ele condenado? Quando se pode considerar
suplantada a presunção de inocência do acusado? Qual é o grau de
corroboração de uma hipótese fática quando questões dessa gravidade
estão na base da decisão?
As respostas a tais indagações são oferecidas pelos standards pro-
batórios ou modelos de constatação, critérios que apontam o grau de
suficiência da prova, o nível de confirmação das hipóteses ou proposições
fáticas que estão na base de um caso. Esses parâmetros, como se verá
ao longo do trabalho, devem ser pensados e estudados com o propósito
de tentar objetivar a formulação do juízo fático, de propiciar logicidade
e controlabilidade na determinação dos fatos que estão em discussão
num processo.
Naturalmente, como será constatado no capítulo 6, o ordenamento
jurídico-penal brasileiro oferece alguns standards de prova ou modelos
de constatação destinados a orientar a tomada da decisão sobre os fa-
tos. Existem, entre nós, guias para nortear o juízo de admissibilidade
da ação penal, a análise de pleitos de concessão medidas cautelares, a
(im)pronúncia e o julgamento do acusado. Porém, como se verá, há a
premente necessidade de uma sistematização didática e consistente da
matéria.17 Não estão bem clarificados os níveis de suficiência da prova
exigidos em cada etapa do processo penal e conforme a natureza da
medida postulada.
Assim, ainda que se entenda que não existe necessidade de mudança
na esfera do direito legislado, evidente está que é preciso tornar menos
difusos e mais inteligíveis os critérios de decisão atinentes à determina-

17. Segundo Gustavo Badaró, ‘‘o tema dos ‘critérios de decisão’, também denominados
‘standards probatórios’ ou ‘modelos de constatação’ tem sido muito pouco explora-
do pela doutrina processual penal brasileira, que geralmente se limita a apreciar a
questão sob o enfoque do in dubio pro reo, mas não dos diversos graus que se pode
exigir do julgador para que considere um fato ‘provado’ ou mesmo para que se
tenha como satisfeito um requisito legal de mera probabilidade, e não de certeza”
(BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2018, p. 432-433).
28

Andrade-Standards de Prova no Proc Penal-2ed.indd 28 30/06/2022 15:16:29


2. NOÇÕES PRELIMINARES: FATOS, PROVAS E SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA

ção dos fatos no contexto da justiça criminal, de forma a viabilizar um


controle mais adequado do raciocínio do julgador no que tange à questão
factual (quaestio facti).
No capítulo que se segue, buscar-se-á traçar as premissas episte-
mológicas do juízo de fato, da prova, da sua valoração racional e dos
standards de prova. Depois o estudo avançará para uma indispensável
reflexão acerca dos vetores axiológicos da decisão judicial sobre os fatos.

29

Andrade-Standards de Prova no Proc Penal-2ed.indd 29 30/06/2022 15:16:29


3
Premissas epistemológicas
concernentes ao juízo de fato

Para bem entender a discussão em torno da suficiência da prova,


dos standards probatórios, é necessário primeiro conhecer os pressupos-
tos epistêmicos inerentes ao juízo de verificabilidade fática. Recordar os
conceitos de fatos, de enunciados fáticos e de narrativas, as distinções
e conexões entre as categorias quaestio juris e quaestio facti, as dimen-
sões da prova e a noção de inferência probatória é primordial para se
compreender a decisão sobre os fatos e buscar estabelecer parâmetros
lógico-racionais acerca de como ela deve ser construída.
O aclaramento dessas premissas ajudará a desmistificar um dis-
curso que favorece a discricionariedade exacerbada ou a intocabilidade
do juízo de fato, compreensão equivocada que pode ser superada pela
estandardização dos critérios de suficiência probatória, afastando a ideia
de incontrolabilidade do juízo fático, o que é essencial para o desfecho
adequado das causas e o alcance do ideal de justiça.

3.1. FATOS, ENUNCIADOS FÁTICOS E NARRATIVAS


“Fato”, do latim factum, é o que foi feito, é o que ocorreu, o que existe18.
“Fato” é qualquer evento ou acontecimento que acarrete a modificação
da realidade existente. Nicole Abaggnano19 descreve o vocábulo “fato”

18. OTHON SIDOU, J. M. Dicionário Jurídico: Academia Brasileira de Letras Jurídicas. 11. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 470.
19. ABBAGNANO, Nicole. Dicionário de filosofia. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. 5. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 429-430.
31

Andrade-Standards de Prova no Proc Penal-2ed.indd 31 30/06/2022 15:16:29


STANDARDS DE PROVA NO PROCESSO PENAL • Flávio da Silva Andrade

como algo que pode ser verificado e confirmado, como um fragmento da


realidade que pode ser averiguado e identificado no tempo e no espaço,
apontando, ainda, o conceito preciso de Kant, delineado na obra Crítica
ao Juízo: “os fatos são os objetos dos conceitos cuja realidade objetiva
pode ser provada tanto pela razão como pela experiência: no primeiro
caso, com base em dados teóricos ou práticos; em qualquer caso, por
meio de uma intuição correspondente”.
Um fato pode, então, admitir observação direta, se ainda estiver
acontecendo, se permitir sua percepção pelo próprio observador, mas,
muitas vezes, reclama observação a partir do que é transmitido oralmente
por outras pessoas ou com base na análise de documentos que contêm
narrações acerca de sua ocorrência. A morte de uma pessoa, um aci-
dente de trânsito, a queda de um raio ou a dispensa de um empregado
são eventos que evidentemente acontecem no plano empírico, mas que,
ficando presos ao passado, precisam ser comprovados por relatos ou
documentos para que operem efeitos na órbita jurídica20.
Qualquer acontecimento, simples ou complexo, natural ou artificial,
pode ter alguma relevância jurídica conforme seja, ou não, regulado pelo
Direito21. Um fato da natureza ou um agir humano pode repercutir no mundo
jurídico, na medida em que seja normatizado pelo Estado ou venha a ser
objeto de pactuação entre os interessados. Na realidade, um fato adquire
importância não quando se apresenta em seu estado puro, mas quando
ele, à luz do Direito, ganha significado e produz algum efeito jurídico.
Por isso, o fato é percebido e racionalizado por meio do conceito jurídico.
Nessa perspectiva, Michele Taruffo22 esclarece a diferença entre fatos
brutos e fatos institucionais. Aqueles são os eventos naturais, ontologi-
camente objetivos, que existem independentemente da intencionalidade
do observador, como a queda de um raio; estes, por sua vez, são fatos
que decorrem das relações sociais, são marcados pela intencionalidade e

20. No âmbito do Direito Processual Penal, é o fato típico, ato comissivo ou omissivo
penalmente relevante, que interessa à sociedade e que deve ser objeto de prova num
processo. Como é um evento passado, deve ser demonstrado a partir da transmissão
oral de informações por testemunhas ou peritos, bem como mediante a análise de
documentos nos quais as informações foram registradas pela linguagem.
21. O Direito, termo polissêmico, variável conforme doutrina jurídico-filosófica adotada,
consiste, nas palavras de Othon Sidou, num “sistema ordenado de preceitos de conduta
social, segundo os critérios de justiça e equidade” (OTHON SIDOU, op. cit., p. 342-343).
22. TARUFFO, Michele. A prova. Trad. de João Gabriel Couto. São Paulo: Marcial Pons, 2014,
p. 17.
32

Andrade-Standards de Prova no Proc Penal-2ed.indd 32 30/06/2022 15:16:29

You might also like