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CAPITULO I O MAGNETISMO O magnetismo é uma forga andloga 4 do ima; esta espalhado em toda a natureza. Seus caracteres sG&o: a atragdo, a repulsdo e a polarizagdo equilibrada. A ciéncia observa os fenédmenos do imé astral e do ima mineral. O ima animal se manifesta todos os dias por fatos que a ciéncia observa com descon- fianga, porém j& n&o pode mais negé-los, embora, para admiti-los, espere com razdo que possa ser ter- minada a sua andlise por uma sintese incontestdvel. Sabemos que a imantagGo produzida pelo magnetismo animal determina um sono extraordind- rio, durante o qual a alma do magnetizado cai sob o dominio do magnetizador, com esta particularidade: @ pessoa adormecida parece deixar inativa sua vida propria para manifestar somente os fenémenos da vida universal. Ela reflete o pensamento dos outros, vé sem auxilio dos olhos, torna-se presente em toda parte sem ter consciéncia do espago, percebe as for- mas mais que® as cores, suprime e confunde os pe- riodos do tempo, fala do futuro como se fosse do passado e do passado como se fosse do futuro, ex- plica ao magnetizador seus préprios pensamentos e até as acusagées secretas da sua consciéncia; evoca na sud recordagdo as pessoas em que pensa e as des- creve do modo mais exato, sem que o sondmbulo ou sondmbula as tenha visto alguma vez; fala a lingua- ELIPHAS LEVI gem da ciéncia com o sdbio e a da imaginagdo com oe, descobre as doencas e adivinha os remédios, da muitas vezes sdébios conselhos, sofre com quem sofre e, as vezes, da um grito doloroso ao anunciar- vos tormentos que devem surgir. Estes fatos estranhos, porém incontestdveis, nos Jevam necessdriamente a concluir que existe uma vida comum para todas as almas, ou do menos uma espécie de refletor comum de todas as imaginagées e memérias no qual podemos ver-nos uns dos outros, como acontece para uma multid@o que passa diante de um espelho. Tal refletor 6 a luz édica do cavalhei- to Reichenbach, é nossa luz astral, 6 o grande agente da vida chamada od, ob e aur pelos hebreus. O magnetismo dirigido pela vontade do operador é Od, o sonambulismo passivo é Ob. As Pitonisas da anti- guidade eram sondémbulas ébrias de luz astral passi- va. Esta luz, nos livros sagrados, é chamada espirito de Python, porque na mitologia grega a serpente Python é a sua imagem alegorica. Ela é representada também na sua dupla agao pelas serpentes do caduceu; a serpente da direita 6 Od, a da esquerda é Ob, e no meio, no cimo da ver- ga hermética, brilha o globo de ouro que representa Aur ou a luz equilibrada. Od representa a vida livre- mente dirigida; Ob representa a vida fatal. £ por isso que o legislador hebreu diz: “Infelizes dos que adivinham por Ob, pois evocam a fatalidade, o que é um atentado contra a providéncia de Deus e con tra a liberdade do homem." Ha certamente uma grande diferenca entre 4 serpente Python, que se arrasta no lodo do diliv! que o sol feriu com suas flechas; hd, dizemos uma grande diferenga entre esta serpente @ se enrosca no bastdo de Esculdpio, da me: que a serpente tentadora dé Eden difere da | ze que curava os doentes no deserto, Estas duai pentes opostas figuram efetivamente as férgas con: GRANDE ARCANO iL trarias que podemos associar, porém que jamais de- vem confundir-se. O cetro de Hermes, separando-as as reine; e é assim que aos olhos penetrantes da ciéncia, a harmonia resulta da analogia dos contré- tios. Necessidade e Liberdade tais séo as duas gran- des leis da vida; e estas duas leis fazem sé uma, pois sdo indispensdveis uma & outra. A necessidade sem liberdade seria tao fatal quanto a liberdade que, privada do,seu freio necessd- rio, se tornaria insensata. O direito, sem o dever, 6 a loucura. O dever, sem o direito, é a servidéo. Todo o segrédo do magnetismo consiste nisto: governar a fatalidade do ob pela inteligéncia e 0 po- der do od. a fim de criar o equilibrio perfeito de aur. Quando um magnetizador, mal equilibrado e su- jeito a fatalidade por paixdes que o dominam, quer impor sua atividade & luz fatal, assemelha-se a um hhomem com os olhos vendados que, montado em ce- go ginete, quisesse aguilhod-lo ds esporadas no meio de uma floresta cheia de sinuosidades e precipicios. Os adivinhos, tiradores de cartas e sondmbulos sao todos alucinados que adivinham por ob. O copo de agua de hidromancia, as cartas de Etteilla, as linhas da mGo, etc., produzem no viden- te uma espécie de hipnotismo. Vé ent&o o consul- tante nos reflexos dos seus desejos insensatos ou das suas imaginagGes cupidas, e, como é, por sua vez, um espirito sem elevagao e sem nobreza de vonta- de adivinha as loucuras e sugere maiores ainda, o que é, de resto, uma condiga&o de éxito para ele. Um cartomante que aconselhasse a honestidade e os bons costumes perderia logo sua clientela de concubinas e solteironas histéricas. As duas luzes magnéticas podiam muito bem chamar-se: uma, a luz viva e a outra, a luz morta; uma, 0 fluido astral e a outra, o fdsforo espectral; uma, 0 facho do verbo e a outra, a fumaga do sonho. 12 ELIPHAS LEVI Para magnetizar sem perigo é preciso ter em si a luz de vida, isto é, deve-se ser um scébio e um jus- to. O homem escravo das paixSes ndéo magnetiza, fascina; porém a irradiagaGo da sua fascinagdo au- menta ao redor dele o circulo da sua vertigem; mul- tiplica seus encantos e enfraquece cada vez mais sua vontade. Assemelha-se a uma aranha que se cansa e, enfim fica presa na sua prdpria teia. Os homens até agora ainda nado conheceram o império supremo da razdo; eles a confundem com o raciocinio particular e quase sempre erréneo de cada um. Contudo o préprio Senhor de la Palisse Ihes di- ria que quem se engana nGo tem razdo, a razao pre- cisamente o contrdrio dos nossos erros. Os individuos e as massas que a razdo n&o go- verna sao escravos da fatalidade; é ela que faz a opi- niGo, e a opiniGo é rainha do mundo. Os homens querem ser dominados, atordoados, arrastados. As grandes paixdes lhes parecem mais belas que as virtudes e aqueles a quem chamam grandes homens sGo, ds vezes, grandes insensatos. © cinismo de Didgenes lhes agrada como o charla- tanismo de Empédocles. Nada admirariam tanto como Ajax e Capanea, se Polyeucto néo fosse ainda mais furioso. Pyrama e Thisbeu, que se matam, sGo os modelos dos amantes. O autor de um paradoxo sempre tem certeza de adquirir renome. E, por mais que condenem ao esquecimento, por despeito e inve- ja, o nome de Eroastro, este nome tem tanta grande- za de deméncia que supera a sua raiva e se impée eternamente a sua recordagao! Os loucos sGo, pois, magnetizadores ou antes fas- cinadores, e é o que torna contagiosa a loucura. Por falta de saber medir o que é grande, a gente se apaixona pelo que é estranho. As criangas que ainda n&o podem andar, que- rem que a gente as carregue e leve a passeio. GRANDE ARCANO 13 Ninguém ama tanto a turbuléncia como os impo- tentes. E a incapacidade do prazer que faz os Tibé- tios e as Messalinas. O garoto de Paris no paraiso das ruas arborizadas queria ser Cartouche, e rideco- ragao, quando ridicularizam Telémaco. Nem todos gostam da embriaguez opidcea ou alcodlica, porém quase todos quereriam embria- gar o espirito e comprazer-se facilmente em fazer de- lirar 0 coragéo. Quando o Cristianismo impés-se ao mundo pela fascinagtéo do martirio, um grande es- critor daquele tempo formulou o pensamento de to- dos, exclamando: “Creio porque é absurdo!” A loucura da Cruz, como o préprio S. Paulo a chamava, era enta&o invencivelmente invasora. Quei- mavam-se os livros dos sdbios e S. Paulo preludiava em Efeso os feitos de Omar. Derribavam-se templos que eram maravilhas do mundo e fdolos que eram obras-primas das artes. Tinham o gosto da morte e queriam despojar a existéncia presente de todos os seus ornamentos para desprender-se da vida. O desgosto das realidades sempre acompanha o amor dos sonhos: Quam sordet tellus dum coelum aspiciol] —- diz um célebre mistico; literalmente: Quéo suja se torna a terra quando olho para o céu! Pois entéo, teu olhar ao perder-se no espago, acha suja a terra, tua nutriz? Que é, pois, a terra senado um astro do céu? Serd que ela é suja, porque te car- rega? Porém, que te levem para o sol e teus desgos- tos logo sujarao o sol! Seria o céu mais limpo se fos- se vazio? E nao é ele admirdvel de contemplar-se porque durante a noite brilha com uma multidéo inumerd- vel de terras e de sdis? Porventura, a.terra espléndi- da, a terra de imensos oceanos, a terra cheia de dr- vores e de flores torna-se uma imundicie para ti, por- que quererias langar-te no vacuo? Acredita-me, nado procures mudar-te por isso: o vdcuo esté no teu es- pitito e no teu coragao! 14 ELIPHAS LEVI £0 amor dos sonhos que mistura tantas dores aos sonhos do amor. O amor tal como no-lo da a na tureza 6 uma deliciosa realidade; porém, o nosso or= gulho doentio quereria alguma coisa melhor que a natureza. O pensamento de Carlota, na cabega de Werther, se transforma fatalmente como devia suce- der, e toma a forma brutal de uma bala de revélver. O amor absurdo tem como desfecho 0 suicidio. O amor verdadeiro, o amor natural, é o milagre do magnetismo. Eo entrelagamento das duas ser- pentes do caduceu; parece produzir-se fatalmente, porém é produzido pela razaéo suprema que lhe faz seguir as leis da natureza. A fdbula refere que Ti- resias, tendo separado duas serpentes que se uniam, incorreu na cdlera de Vénus e tornou-se andrégino, © que anulou nele o poder sexual; depois, a deusa irritada o feriu ainda, tornando-o cego porque atri- buia & mulher o que convém principalmente ao ho- mem. Tiresias era um individuo que profetizava pela luz morta. Por isso, suas predig6es anunciavam e pareciam sempre determinar doengas. Esta ale- goria contém e resume toda a filosofia do magnetis- mo que acabamos de revelar. CAPITULO I oO MAL O mal, no que tem de realidade, é a desordem. Ora, em presenga da ordem eterna, a desordem é essencialmente transitéric. Em presenga da ordem absoluta, que ¢ a vontade de Deus, a desordem é apenas relativa, A afirmagao absoluta da desordem e do mal 6, pois essencialmente a mentira. A afirmagao absoluta do mal é a negagao de Deus, pois que Deus 6 a razéo suprema e absoluta do bem. O mal, na ordem filosdfica, 6 a negaga&o da ra- zao. Na ordem social, é a negagao do dever. Na or- dem fisica, é « resisténcia ds leis inviolaveis da na- tureza. O sofrimento nado é um mal, é a conseqiiéncia e quase sempre o remédio do mal. Tudo que é naturalmente inevitavel nao pode ser um mal. O inverno, a noite e a morte nado sao ma- les. Sdo tromsigdes naturais de um dia para outro dia, de um outono para uma primavera, de uma vi- da para outra vida. Proudhon disse: Deus é o mal; é como se tivesse dito: Deus 6 0 diabo, pois o diabo é tomado geral- mente como génio do mal. Voltemos & proposigao e ela nos daré esta formula paradoxal: O diabo 6 Deus ou em outros termos: O mal é Deus. Porém, com certeza, ao falar assim, o rei dos légicos que ch tomos n@o queria, sob o nome de Deus, designar a 16 ELIPHAS LEVI personificagao hipotética do bem. Pensava no deus absurdo que os homens criam e, explicando seu pen- samento, diremos que tinha razdo, pois o diabo é a caricatura de Deus, e o que chamamos o mal é o bem maldefinido e malcompreendido. Nao seria possivel amar-se o mal pelo mal, a de- sordem pela desordem. A infragao das leis nos agra- da porque parece colocar-nos acima das leis. Os ho- mens nao sao feitos para a lei, mas a lei é feita para os homens, dizia Jesus, palavra audaciosa que os pa- dres daqueles tempos certamente consideraram sub- versiva e impia, palavra de que o orgulho humano pode abusar prodigiosamente. Dizem que Deus sé tem direitos e ndo deveres, porque é o mais forte, e 6 isto que 6 uma palavra impia. Devemos tudo a Deus, ousam acrescentar, e Deus nada nos deve. E’ o con- trério que é verdade. Deus, que é infinitamente maior do que nés, contrai, ao pér-nos no mundo, uma divi- da infinita. Foi ele que fez o abismo da fraqueza hu- mana, é ele que deve enché-lo. A covardia absurda da tirania no mundo antigo nos legou o fantasma de um deus absurdo e covarde, este deus que faz milagre eterno para forgar o ente finito a ser infinito nos sofrimentos. Suponhamos um momento que um de nés pudes. se ter criado um efémero e que lhe dissesse, sem que éle o pudesse ouvir: Criatura minha, adora-me! © pobre animalejo deu alguns véos sem pensar em coi- sa alguma, morreu no fim do dia e um necroman- te diz ao homem que, deitando-Ihe uma gota do seu sangue, poderd ressuscitar o efémero. O homem faz uma picadura em si — eu faria o mesmo em seu lugar: — eis que o efémero ressuscita. Que fara o homem? — O que fara ele, vou dizer-vos, exclama um fandtico crente. Como o efémero, na sua primeira vida, n&o teve o espirito ou a tolice de adoré-lo, acender&é uma fogueira espantosa e nela langar& o efémero, sentindo somente nao poder con- GRANDE ARCANO! 17 servar-lhe milagrosamente a vida no meio das cha- mas, a fim de queima-lo eternamente! — Ora, pois, dirao todos, n@o existe louco furioso que seja tao co- varde, tao mau como éste! — Eu vos pego perdao, cristaos vulgares, 0 homem em questéo nao podia existir, concordo; porém, existe, na vossa imagina- g&o sémente, digamo-lo ja, alguém mais cruel e mais covarde, E’ o vosso Deus, tal como o explicais, e é déle que Proudhon teve mil vézes razédo de dizer: Deus € o mal. . Néste sentido, o mal seria a afirmagao mentiro- sa de um deus mau e é éste deus que seria o diabo ou o cumplice. Uma religi&o que trouxesse como bdl- samo para as chagas da humanidade um dogma se- melhante, as envenenaria em vez de curd-las. Re- sultaria dai o embrutecimento dos espiritos e a de- pravagéo das consciéncias; e a propaganda feita em nome de tal deus poderia chamar-se o magnetismo do mal. O resultado da mentira é a injustiga. Da injustiga resulta a inigitidade que produz a anar- quia nos estados e, nos individuos, 0 desregramen- to e a morte. U’a mentira nao poderia existir se n@o evocasse na luz morta uma espécie de verdade espectral, e todos os mentirosos da vida sao os primeiros a en- ganar-se, tomando a noite pelo dia. O anarquista se julga livre, o ladr&o se cré habil, o libertino cré que se diverte, o déspota pensa que oprimir é reinar. Que seria necessério para destruir o mal na terra? Uma coisa muito simples na aparéncia: desiludir os tolos eos maus. Aqui, porém, tsda vontade se abate e todo poder falha; os maus e os tolos ndo querem ser desiludidos. Chegamos a esta perversidade secreta que parece ser a raiz do mal: o gésto da desordem @ © apégo ao érro. Pretendemos, por nossa parte, que a perversidade ndo existe, ao menos como li- vremente consentida e desejada. Ela naéo 6 mais 18 ELIPHAS LEVI que o envenenamento da vontade pela forga dele- téria do erro. O ar que respiramos se compie, como é sabido, de hidrogénio, oxigénio e azoto. O oxigénio e o hi- drogénio correspondem 4 luz viva e o azoto a luz morta. Um homem mergulhado no azoto nao pode- ria respirar nem viver, assim como um homem asfi- xiado pela luz espectral néo pode mais fazer ato de vontade livre. Nao é na atmosfera que se realiza o grande fenémeno da luz, é nos olhos organizados para vé-la. Um dia, um filésofo da escola positi- vista, o senhor Littré, se n&o me engano, dizia que a imensidade ¢ apenas uma noite infinita pontilha- da aqui e acolé por algumas estrelas. — Isto é verdade, respondeu-lhe alguém, para os nossos olhos que ndo estto organizados para a per- cepcdo de outra claridade a nao ser a luz do sol. Po- rém, néo nos aparece em sonho a prépria idéia des- ta luz enquanto é noite na terra e os olhos estdo fe- chados? Qual é 0 dia das almas? Como veimos pelo pensamento? Existiria a noite dos nossos olhos or- ganizados de outra forma? E se ndo existissem os nossos olhos, teriamos nés consciéncia da noite.? Para os cegos n&o existem estrelas, nem sol; e, se pu- sermos uma venda nos olhos, nés nos. tornaremos ce- gos voluntarios. A perversidade dos sentidos, como a das faculdades da alma, resulta de um acidente ou de um primeiro atentado contra as leis da nature- za; ela se torna enta@o necessdria e como que fatal. Que fazer para os cegos? — Tomdélos pela mao e guiélos. — Porém, se ndo quiserem deixar-se guiar? — E’ preciso pér parapeitos. — Porém, se eles os derribam? — Entao n&Go sto somente cegos, sao alienados perigosos, e 6 preciso deixé&-los perecer se nao se puder prendé-los. Edgar Allan Poe relata a hilariante histéria de uma casa de loucos em que os doentes tinham conse- guido apoderar-se dos enfermeiros e guardas, pren- GRANDE ARCANO 19 dendo-os nos seus préprios cubiculos, depois de té-los disfargado em animais selvagens. Ei-los triunfantes nos aposentos do seu médico; bebem o vinho do es- tabelecimento e se felicitam reciprocamente por te- rem feito excelentes tratamentos. Enquanto esta- yam na mesd, os prisioneiros rompem suas cadeias e vém surpreendé-los a fortes bastonadas. Tornam- se furiosos contra os pobres loucos e os justificam, em parte, por maus-tratos insensatos. Eis af a histéria das revolugées modernas. Os loucos triunfando pelo seu grande numero, que cons- titui o que chamamos a maioria, prendem os sdbios e os disfargam em animais selvagens. Dentro em pouco, as prisGes se gastam e se rompem, e os s& bios de ontem, feitos loucos pelo sofrimento, fogem, gritando e espalhando o terror. Queriam impor-lhes um falso deus e vociferavam que ndo ha Deus. En- tao, os indiferentes, tornando-se bravos a cusia de medo, se coligam para reprimir os loucos furiosos e fundam o reino dos imbecis. Jd vimos isso. Até que ponto sao os homens responsdveis por estas oscilagées e angustias que produzem tantos cri- mes, que pensador ousaria dizé-lo? Detesta-se Marat canoniza-se Pio V. E' verdade que o terrivel Ghisleri nao guilhotina- va seus adversdrios; ele os queimava. Pio V era um homem austero e catdélico convicto. Marat levava o desinteresse até & miséria. Ambos eram homens de bem, mas eram loucos homicidas, sem serem preci- samente furiosos. Ora, quando uma loucura criminosa encontra ct cumplicidade de um povo, tornase quase uma ter- rivel raz&o e quando a multidao, néo desiludida, mas enganada de um modo contrdrio, renega e abandona seu herdi, o vencido se torna ao mesmo tempo um bode emissdrio e um martir. A morle de Robespierre 6 tao bela como a de Luiz XVI. 20 ELIPHAS LEVI Admiro sinceramente éste terrivel inquisidor que, massacrado pelos Albigenses, escreveu no cho, com seu sangue, antes de expirar: Credo in unum Deum! A guerra é um mal? Sim, sem divida, pois é horrivel. Porém seraé um mal absoluto? — A guerra é o trabalho gerador das nacionalidades e civiliza- goes. Quem é responsdvel pela guerra? Os homens? — Nao, pois sGo as suas vitimas. Quem, pois? — Ousariamos dizer que é Deus? Perguntai ao conde Joseph de Maistre. Ele vos dir& porque os sacerdé- cios sempre consagraram a espada e como hé algu- ma coisa de sagrado no oficio sangrento do algoz. O mal é a sombra, é a repulséo do bem. Vamos até o fim e ousemos dizer que é o bem negativo. O mal é a resisténcia que fortifica o esf6rgo do bem; e é por isso que Jesus Cristo nao receava dizer: - E preci- so que haja escéndalos! Ha monstros na natureza como hé erros de im- pressGo num belo livro. Que prova isso? Que a na- tureza, como a imprensa, sdo instrumentos cegos que a inteleligéncia dirige; porém, responder-me-eis vés, um bom revisor corrige as provas. Sim, certamente, e na natureza é para isso que serve o progresso. Deus, se me permitirem esta comparagao, é o dire- tor da imprensa e o homem 6 o revisor de Deus. Os padres sempre clamaram que os flagelos sao causados pelos pecados dos homens, e isto é verda- de, pois que a ciéncia é dada aos homens para preve- nirem os flagelos. Se, como pretenderam, o célera vem da putrefagao dos caddveres amontoados na embocadura do Ganges, se a fome vem dos monopé- lios, se a peste 6 causada pela imundicie, se a guer- ta é provocada tao a miudo pelo orgulho estipido dos reis e a turbuléncia dos povos, néo é verdadei- ramente a malvadez, ou antes, a tolice dos homens que é a causa dos flagelos? Dizem que as idéias es- t&0 no ar, e, em verdade, pode-se dizer que os vicios também af estado. Téda corrupgéo produz uma pu- GRANDE ARCANO a1 trefagao e toda putrefagado tem seu mau cheiro ca- racteristico. A atmosfera que rodeia os doentes é mérbida e a peste moral tem também sua atmosfera muito mais contegiosc. Um coragao honesto se acha comodament® ma sociedade das pessoas de bem. Torna-se oprimido, sofre e fica sufocado no meio dos entes viciosos. CAPITULO It A SOLIDARIEDADE NO MAL No seu livro do movimento perpétuo das almas, o Grande Rabino Isaac de Loria diz que é preciso | r empregar com grande vigilancia a hora que prece- e de osono. De fato, durante o sono, a alma perde por algum tempo sua vida individual para mergulhar- | se na luz universal que, como dissemos, se manifesta por duas correntes contrdrias. O ente que adorme- ce abondona-se aos abracos da serpente de Esculd- pio, da serpente vital e regeneradora ou se dei- xa ligar pelos nés envenenados da horrivel Python. O sono é um banho na luz da vida ou no fésforo da morte. Aquele que adormece com pensamentos de justiga se banha nos méritos dos justos, porém aque- le que se entrega ao sono com pensamentos de ddio I ou mentira se banha no mar morto em que aflui a | infeccao dos maus. ‘fs A noite 6 como o inverno que incuba e prepara os germes. Se semearmos joio, nao colheremos fer- mento. Aquele que adormece na impiedade nao des- pertaré na béngao divina. Dizem que a noite é con- | selheira. Sim, sem divida. Bom conselho traz ao justo, funesta impuls@o ao malvado. Tais sao as dou- trinas do Rabi Isaac de Loria. Nao sabemos até que ponto devemos admitir es- ta influéncia reciproca dos entes mergulhados do so- % no e dirigida de tal forma, por atracdes involunta- tias, que os bons melhoram os bons e os maus dete- 24 ELIPHAS LEVI rioram os que lhes séo semelhantes. Seria mais con- solador pensar que a brandura dos justos irradia so- bre os maus para acalmé-los e que a perturbagao dos maus pensamentos agitam o sono e o tornam, por conseguinte, doentio, que uma boa consciéncia dispde maravilhosamente o sangue e refrescar-se e a descansar no sono. Todavia, é muito provdvel que a irradiag&o mag- nética determinada durante o dia pelos hdbitos e a vontade nao cesse durante a noite. O que nolo pro- va sdo os sonhos, nos quais parece, muitas vezes, que agimos conforme os nossos desejos mais secre- tos. Sé conquistou a virtude da castidade, diz San- to Agostinho, quem impée a modéstia até aos seus sonhos. Todos os astros sGo imantados e todos os imas celestes agem e reagem uns sobre os outros nos sis- temas planetarios, nos grupos dos universos e em toda a imensidade! O mesmo acontece na terra com os entes vivos. A natureza e a forca dos ima@s é determinada pela influéncia reciproca das formas scbre a forga e da forga sobre as formas. Isto tem necessidade de ser seriamente examinado e meditado. A beleza, que é a harmonia das formas, é sem- pre acompanhada de grande forga de atragao; po- rém existem belezas discutiveis e discutidas. Hd belezas de conveng&o concordes com certos gostos e com certas paixdes. A corte de Luiz XV te- ria achado que a Vénus de Milo tinha uma esiatu- ra elevada e grandes pés. No Oriente, as favoritas do sultGo sto obesas e no reino de Sido compram-se as mulheres a peso. Os homens ndo est&éo menos dispostos a fazer loucura pela beleza verdadeira ou imagindria que os subjuga. Existem, pois, formas que nos embria- gam e exercem sobre a nossa raztéio o dominio das forgas fatais. Quando os nossos gostos sdo depra- GRANDE ARCANO 25 vados, nés nos apaixonamos por certas belezas ima- gindrias que sGo realmente fealdade. Os romanos da decadéncia gostavam de fronte baixa e olhos de sapo de Messalina. Cada qual forma aqui um parat- so & sua maneira. Porém aqui comega a justiga. O paraiso dos entes depravados é sempre e necessaria- mente um inferno. Sao as disposigdes da vontade que fazem o va- lor dos atos. Pois 6 a vontade que determina o fim @ que nos propomos, e é sempre o fim procurado e alcangado que faz a natureza das obras. E’ confor- me as nossas obras que Deus nos julgard, no dizer do Evangelho, e n&éo conforme os nossos atos. Os atos preparam, comegam, continuam e concluem as obras. Sao bons quando a obra é boa. Se for o con- traério, sio maus. NGo queremos dizer que o fim jus- tifica os meios, mas que um fim honesto necessita meios honestos e dé& mérito aos mais indiferentes da sua natureza. O que aprovais, vés fazeis ou fazeis os outros fazerem, animando-os a fazé-los. Se o vosso princi- pio é falso, se o vosso fim e iniquo, todos aqueles que pensam como vés, agem como agirieis em seu lugar; e quando triunfam, pensais que fizerom bem. Se as vossas agées parecem ser de um homem de bem, ao passo que o vosso fim ¢ o de um celerado, as vossas agées tornam-se mds. As preces do hipo- crita nado mais impias que as blasf€mias do malva- do. Em duas palavras: tudo o que fazemos para a injustiga ¢ injusto; tudo o que fazemos pela justiga é justo e bom. Dissemos que os entes humanos sdo imis que agem uns contra os outros. Esta imantagdo, natural a principio, determinada depois no seu modo pelos habitos da vontade, agrupa os entes humanos por falanges e séries, talvez de forma diferente da que supunha Fourier. E’, pois, exato dizer com ele que as atragées sao proporcionais aos destinos, porem GRANDE ARCANO 27 26 ELTPHAS! LES enganava-se em ndo distinguir as atragdes fatais das atragdes ficticias. Acreditava também que os maus sdGo incompreendidos pela sociedade, ao passo que sao eles, pelo contrério, que néo compre- endem a sociedade e que nao querem compreendé- la. Que teria feito ele no seu falanstério de pessoas, cuja atrag&o, proporcional, na opiniao dele, ao des- tino delas, fosse a de perturbar e demolir o falans- tério. No nosso livro intitulado: A Ciéncia dos Espiri- tos demos a classificag¢ao dos bons ¢ maus espiritos, conforme as tradigdes cabalisticas. Alguns leitores superficiais talvez dirao. Por que estes nomes em vez de outros? Que espirito descido do céu ou que alma subida do abismo teria revelado assim os se- gredos hierdrquicos do outro mundo? Tudo isto é apenas alta fantasia, e, dizendo isto, estes leitores se enganam. Esta classificagao n&o é arbitrdria e se supomos a existéncia destes ou daqueles espiri- tos no outro mundo, é que existem, com toda a certe- za, neste. A anarquia, o preconceito, o obscurantis- mo, o dolo, a iniqitidade, o édio, sao opostos & sabe- doria, & autoridade, & inteligéncia, & honra, & bon- dade e & justiga. Os nomes hebraicos de Kether, Chocmah, Binah; os de Thamiel, Chaigidel, Satha- niel, etc., que se op6em aos de Hajoth, Haccadosch, Ophanim e Aralim, néo significam outra coisa. Assim acontece com todas as grandes palavras e com todos os termos obscuros dos dogmas antigos e modernos; em ultima andlise, sempre encontramos neles os principios da eterna e incorruptivel razao. E’ evidente, é certo que as multidées néo est&o ma- duras para o reino da razdio e que, por sua vez, os homens mais loucos ou mais velhacos as desviam por meio de crengas cegas. E, loucura por loucura, en- contro mais socialismo verdadeiro na de Loyola que na de Proudhon. Proudhon afirma que o ateismo é uma crenga, a pior de todas, é verdade, e $ por isso que fé-la sua. Afirma que Deus é o mal, que a ordem social é a anarquia, que a propriedade é 0 roubo! Que socie- dade é possivel com tais principios? A Companhia de Jesus é estabelecida sobre os principios contrarios ou, talvez, sobre os erros contrdrios, e desde ha va- rios séculos ela subsiste e ainda é bastante forte para fazer frente, por muito tempo, aos partiddrios da anarquia. Ndo é equivalente, é verdade, mas ainda sabe langar na balanga pesos maiores que os do nos- so amigo Proudhon. Os homens sao mais soliddrios no mal do que o supdem. S&o os Proudhon que fazem os Veuillot. Os acendedores de fogueiras de Constanga tiveram de responder diante de Deus pelos massacres de Jodo Zisca. Os protestantes sto responsdaveis pelos mas- sacres da noite de Sdo Bartolomeu, pois tinham de- golado catdlicos. Foi, talvez, em realidade, Marat que matou Robespierre, como foi Carlota Corday que fez executar os Girondinos seus amigos. Madame Dubarry, arrastada ao cadafalso como uma cabeca de animal berrador e teimoso, nao julgava, sem du- vida, que tinha de expiar o suplicio de Luiz XVI. Pois as vezes, os nossos maiores crimes sGo os que nds néo compreendemos. Quando Marat dizia que é um dever da humanidade derramar um pouco de san- gue para impedir um derramamento maior, tirava es- ta maxima — adivinhai de quem? — do brando e piedoso Fenelon. Ultimamente publicaram cartas inégditas de Ma- dama Elisabete, e, numa destas cartes, a angélica princesa declara que tudo estava perdido se o rei nao tivesse a coragem de mandar cortar trés cabe- cas. Quais? Ela nao o diz; talvez as de Felipe de Or- leans, Laferyette ¢ Mirabeau! — um principe da sua familia, um homem de bem e um grande homem,

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