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AINVENGAO DO NORDESTE Henrique Fontes e Pablo Capistrano | 2017 iA. Scanned with CamScanner Scanned with CamScanner Movimento 1: Aboiar pibligo entra e jé vemos o diretor no palco, sentado, fumando um cigarro. A fumaga do cigarro vai se espalhando pelo palco (efeito com maquina de fumaga); dois atores iniciam, na penumbra, um grercicio de aquecimento vocal que lembra os aboios nordestinos ou cantos érabes. Os dois atores gstdo realizando 0 exercicio em posigdo de seis apoios com o rosto virado para 0 chao. Henrique: Essa histéria comega com uma questo: um ator nordestino, de preferéncia norte-rio- qrandense, poderia representar um personagem nordestino? Mateus: (interrompendo o exercicio) Henrique, peraf, deixa eu entender: Tem que sentir aqui embaixo? Henrique: E, a base 6 ai. A nossa voz natural vem dai. Mateus: Daqui? Henriqu Robson: Pois eu nao t6 sentindo nada’dessa voz natural. Tem certeza que isso funciona? Henrique: Vocé t4 questionando o método “Freeing the natural voice", de Kristin Linklater? Robson: Mas o som nao ta saindo igual. Isso, da parte mais interna, , a minha ta bem diferente da dele. jo se preocupe. Faga o seu. Cada um tem sua voz. Voltam a fazer 0 exercicio até que Mateus rompe a cena e vivemos um flashforward da quinta semana de ensaio. Um debate caloroso sobre o ser ou nao nordestino em tltimas consequéncias. Robson est prestes a partir para cima de Mateus. Henrique esté em outro tempo-espaco. E como se aquela cena fosse uma meméria dele. Movimento 2: Discutindo o Nordeste Mateus: (provocando Robson) Vocé que nunca vai saber o que é Nordeste, porque a sua referéncia érasa, Seu Nordeste é de quem 86 vé de perto, rapaz. Seu Nordeste é mfope. Pra enxergar as coisas, vocé precisa se afastar, meu filho. Scanned with CamScanner Robson: (partindo para cima de Mateus ¢ sendo segurado por Henrique) Sou seu filho nao. Nem seu pareceiro, Olhe pra vocé: um paulista azedo que sé fez nascer aqui. Nunca pegou numa arupemba pra debulhar feijéo. Mateus: Anu... 0 qué? Robson: O pra ai, num conhece nem arupemba. Num sabe nem o que 6 catabil, nem Cibazs), cacimbéo, algaroba... Mateus: E tu acha porque vocé sabe vomitar glossario pra turista, vocé sabe o que 6 0 Nordeste) Robson: Mais do que vocé, pode ter certeza que eu sei. Eu nasci nele, seu otério. Mateus: Ai porque vocé morou no cu do sertao. Robson: Ei! Respeite minha cidade. Mateus: Ai sé porque vocé morou no sertao por vinte anos, af vocé tem a clareza do que seja um nordestino. E desde quando o Nordeste é s6 sertéo? Vocé também comprou esse discurso, foi? Muito me admira vocé, que diz que tem raiz, achar que o Nordeste 6 sé 0 sertao. Robson: Nao é s6, mas também 6. O sertao, o Nordeste, a seca tao dentro da gente... Mateus: Pronto, baixou Guimaraes Rosa agora. Tem seca em Sao Paulo também Robson, Robson: Seca, nao! Mateus: E é 0 qué? Robson: Crise hidrica! A seca é sé da gente! Movimento 3: Conhecendo os personagens Henrique irrompe a cena e volta para o que seria o tempo presente falando para a plateia, Henrique: Foram entrevistas e testes com mais de 150 atores, até que chegamos nesses dois, que pareciam mais convincentes. Sete semanas. Era tudo que eu tinha para deixé-los prontos para a selegao final, que seria feita pela produtora de fora. Parecia uma tarefa simples...eu tava precisando da grana... aceitei. Semana 1: No principio é 0 verbo. (entra Robson e tenta se sentar) Nao senta. Deixe que o entrevistador lhe convide pra sentar. Pode ser que ele queira ver vocé de pé primeiro. (siléncio / Robson fica em pé, sem saber onde colocar as mos, visivelmente incomodado) 86 Scanned with CamScanner gobson: E eu vou ficar em pé até ele mandar eu sentar? enrique: Sel Somente SE ele mandar vocé sentar. (outro siléncio) De cécoras. gobson Eo qué? srique: De cdcoras. (ele fica de cécoras de uma maneira bem incémoda) Robson, porque voc8 jomelhor para esse papel? pobson: Bom, primeiro porque eu sou nordestino, Nascido e criado em Jandufs, interior do Rio Grande do Norte. Sertao. Entao eu conhego bem o jeito que o nordestino tem. Eu tenho inclusive qtipo nordestino, Olhe pra mim. genrique: (olha para ele) Vocé, pra mim tem cara de colombiano. Se botar uma flauta andina na na mo, voc8 passa até por boliviano. Robson: Qué isso, homi! Eu nunca nem saf do Brasil. Henrique: Mas é o que vocé parece. Nessa selegao, ser 6 parecer. Robson: E 0 jeito que eu falo? Jé ouviu a forma como eu articulo as palavras, a cadéncia, Eu tenho toda a sonoridade nordestina. Henrique: Verdade. Eles esto interessados no sotaque. Fala af um pouco mais. Robson: Té certo. Eu vou recitar um cordel 14 de nés: Quando eu volto pras origens Pro sertéo da minha terra Pego logo a estrada Que vai dar na casa de Manuela Henrique: Robson, a rima... Robson: Ela melhora: Ocaminho é tortuoso Mas na minha moto eu vou ligeiro Passo no bar de Rita Eencho os cornos litro e meio Henrique: Robson. A rima té atravessada! Robson: E cordel contempordneo. 87 Scanned with CamScanner Henrique: Cordel contemporaneo? i Robson: £, Pés-modemo. Tao quebrando a rima agora. Henrique: Robson. Té massa, t4 lindo, mas, eles néo téo procurando modemidade,Eles quem “aquele nordeste” que eles j4 conhecem, entends? Mesmo sendo atual, mas eles querem ver “nordeste familiar", entendeu? ° Robson: Nao. Henrique: Vamos fazer o seguinte, va dar uma pesquisada em Gilberto Freyre, Euclides da Cunha... Ai a gente retoma. Mateus, pode entrar. Robson: Mas e... Mateus: (entrando jé falando compulsivamente) Henrique, eu tive uma ideia étima: eu pensei em pegar um trecho do Auto da Compadecida e j4 entrar meio vestido de Chicé, entendeu? Ai ey tespondo s6 em verso. Quer ver? Vamos testar. Eu consigo com tudo rimar. Basta que eu fale na hora que vocé perguntar. Henrique: Mateus... Mateus: E pra cada pergunta, eu mudo de lugar. Porque do jeito que eles quiserem, eu posso me comportar. Henrique: Mateus, eu nao acho... Mateus: Eu posso subir na cadeira e na hora me agachar. Eles vo pensar que eu sou brito de lascar. Posso até tirar um cigarro na hora e fumar. Henrique: Mateus, para! Essa euforia, vocé tem que controlar. Essa sua ansiedade nao vai te ajudar. E para de falar com essa rima em “ar”. Entra de novo. Em siléncio. (Mateus entra) De cécoras. (Mateus estranha o pedido) Mateus, por que vocé é o melhor para esse papel? Mateus: Primeiro, porque eu sou nordestino. Nasci no Nordeste. Minha cultura toda nordestina. Eu tenho 0 jeito de nordestino criado perto do mar. Henrique: Vocé tem cara de paulista pra mim. Mateus: Pois 6, todo mundo diz isso, mas também fala que, quando eu abro a boca, eu sou Joio Grilo. Henrique: O sotaque de Joao Grilo era mais cantado. Mateus: Oxi, eu canto também, num seja por isso. It s6 pedir que eu arrasto esse sotaque dau atééééééé Carutapera no Maranhao. 88. Scanned with CamScanner oriuet Mas eles querem algo novo, original. ysteust Oxil E vocé nao falou que eles tavam procurando uma coisa familiar?! eorique: Sim, mas tem que ser algo que venda. E as pessoas querem novidade. Ninguém paga ver um ator ficar imitando esse sotaque inventado que ja foi usado mil vezes. yystous: (ingénuo) Oxi, paga nao?! enrique: Bom, faga 0 seguinte: trabalhe mais isso do sotaque, acho que vocé tem chance. pepois do ensaio, pega um sol também, porque branco assim fica dificil. yyfateus: Mas... genrique: Tchau, Mateus! E escuta mais. Movimento 4: Buscando o corpo nordestino Henrique: (fala para a plateia, enquanto Mateus e Robson aquecem o corpo) Partimos entao para ainvestigagao do corpo do nordestino. Como seria isso? Um corpo nordestino? Teria uma marca de nascenga, um trejeito no andar, um gesto? Era muito dificil encontrar um padrdo. Foi entao que a literatura apareceu para nos salvar. Semana 2: O corpo aos pedagos. (Henrique recita um trecho de “Os Sertées” de Euclides da Cunha, enquanto Mateus e Robson continuam aquecendo) “Osertanejo é, antes de tudo, um forte. Nao tem o raquitismo exaustivo dos mestigos neurasténicos do litoral. A sua aparéncia, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrario. Falta- lhe a plastica impecdvel, o desempeno, a estrutura corretissima das organizagées atléticas. i desgracioso, desengongado, torto. Hércules-Quasimodo, reflete no aspecto a fealdade tipica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translagéo de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicéncia que lhe dé um cardter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta- se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra. Caminhando, mesmo a passo vépido, nao traga trajetéria retilinea e firme. E o homem permanentemente fatigado.” Robson: Perai, Henrique, concordo nao. Henrique: Nao concorda com qué? 89 Scanned with CamScanner Robson: Com essa descrigdo af. Henrique: Robson, isso é Euclides da Cunha. Vocé vai discordar de Euclides da Cunha? Robson: Rapaz, eu discordo até do co. Henrique: Robson, o texto de Euclides da Cunha é um les motifs. Robson: Les motifs de Cunha ¢ rola! Henrique, ele nem chegou em Canudos. Eu ndo tenho nada contra a literatura no, mas esse negécio de “andar sem aprumo”, “humildade deprimente", isso aj nao bate com o que eu conhego, nao. Nunca vi ninguém assim 14 em Jandufs, Mateus: Nao precisa ser, Robson, basta parecer. Robson: Pois isso parece 6 com a seca de 77. Henrique: Sim, a seca. (para a plateia) Podia ter a ver com seca, sim. Semana 3: Para entender Nordeste é preciso entender a seca. Entra vinheta de abertura de uma palestra de inovagdo, ao estilo TEDX, mas bem caricata, Algo como uma palestra-show. No tel&o pode entrar a logo e o slogan “FEDX 2017 - Ideias que merecem ser espalhadas”. Mateus faré as vezes do palestrante paulistano, especialista em Nordeste. Henrique faré o assistente que opera 0 audiovisual e Robson fara a operagao de éudio, a trilha ao vivo e a interpretagao de personagem sertanejo em depoimento documental fake. Movimento 5: Inventando o Nordeste Mateus: Boa noite! Meu nome é Mateus Cardoso e eu té aqui pra falar um pouco sobre o Nordeste, Quero comegar perguntando: Quem aqui é nordestino ou tem um parente nordestino, talvez un avé ou avé, um primo? Quem aqui tem amigos nordestinos ou convive todo dia com um? Pode ser um colega de trabalho, uma empregada doméstica, um jardineiro ou pedreiro. Levanta amao quem se enquadra numa dessas categorias, por favor. (pausa) Olhai. Quase 100% do auditério levantou a mao. Mas talvez quase a mesma porcentagem de pessoas nessa sala nao saiba de onde veio o termo “Nordeste”. Vocés sabem de quando é esse termo? Como surgiu? Eu vou voltar a falar sobre isso jé jé, porque primeiro é preciso entender a seca. (entra trilha regionalista) Scanned with CamScanner no século 19, quando a estiagem chegava, os donos das grandes fazendas se mudavam para olitoral, deixando os escravos para morrer junto com o gado. Era s6 mercadoria, eles repunham aepois. Mas na seca de 1877 foi diferente. Houve também uma epidemia de variola e a elite foi singida. O povo no teve escolha. Olha s6 esse depoimento... gobson: (fazendo video ao vivo) Era aquela multidao de gente a pé nas rodagens, tudo indo litoral. Naquela época, Fortaleza tinha uma populagdo bem pouquinha, era sé uns 10 mil pbitantes. De repente chegou pra mais de 40 mil pessoas. «Mateus: Foi depois disso que a seca, que antes era s6 um fendmeno climatico, passou a ser uma arca geografica, um sofrimento documentado e legitimado pelo orgéo que sempre definiu 0 grail: a imprensa. (projeta-se uma capa da revista “Veja” dizendo: "Yes, nés temos seca”, sequida de foto de José do Patrocinio) Esse homem que a gente t vendo ai, José do Patrocinio, era um sta que escreveu uma série de reportagens para o Diario de Noticias, do Rio de Janeiro, descrevendo a “Seca do Norte”. Exatamente: do Norte. Porque na época nao se usava o termo Nordeste para indicar a regiao. Robson: (interpretando o sertanejo euclidiano) Antigamente meu avé safa pra cagar, andava a \égua que fosse, nessas brenha, e ninguém dizia que ele era do Nordeste, ele dizia: (imitando o avé) “o povo do Sul me chamava de nortista”. Sim, porque na época, da Bahia pra cima era tudo Norte, e da Bahia pra baixo era tudo Sul. Mateus: E ninguém desse Sul imaginava o que era, como era a seca. Mas com as reportagens de José do Patrocinio, as fotos de Joaquim Anténio Cortéa e o livro A fome, de Rodolfo Tedfilo, osertéo do Norte finalmente ganhou uma cara e se tomou essa triade: seca, fome e flagelados. (entra imagem de um triangulo no PowerPoint formado pelas palavras: seca, fome e flagelados). Foi af que os politicos se interessaram. O imperador da época declarou: (entra 4udio de Temer dizendo que quer ser o maior presidente nordestino da Historia do Brasil) Eo Imperador Dom Pedro Il, na parte que esta inaudivel da gravagéo, prometeu também vender até a diltima joia da Coroa pra acabar com a seca. Nao vendeu, mas enviou engenheiros para perfurar pogos. No entanto, quanto mais recursos chegavam nas maos dos gestores publicos, mais 0 povo morria. Sem gua e sem comida, a populagao continuava migrando para o litoral até que, em 1915, 0 governo do estado do Ceard inovou e empreendeu. Pra impedir que os flagelados chegassem na capital, criou o primeiro campo de concentragao pra “abrigar” os retirantes. Isso foi dezoito anos antes da inauguragao do primeiro campo de concentragao nazista na Alemanha. Olha que vanguarda! on Scanned with CamScanner Robson: (fazendo alguém que ouviu a histéria da época): “... ali chamava os currais do governo. O povo chegava e eles fam logo raspando a cabega... por causa da infestagao de piolho. A roupa que davam pro povo vestir era saco de agicar. A comida era as parte mais ruim do boi: os fato, as tripa... porque os encarregados ficavam com as partes melhor que tinha. Ai eu sei que 0 povo comegou a morter, de muito. E o senhor acha que enterrava direito? Eles jogavam 03 corpos numas cova rasa, e os urubus, 0s cachorro escavacava e comia os defunto.” Mateus: As aves e os caes se alimentavam dos cadaveres. (pausa). Lembram que eu perguntei se vocés sabiam de onde veio o termo Nordeste? Em 1920, o Instituto de Obras Contra a Seca, IFOCS, determinou que os estados do Norte que sofriam com a estiagem precisavam de uma atengdo especial, e numa ata publicada naquele ano aparece pela primeira vez e 6 criada a expressdo: NORDESTE. (entra imagem no PowerPoint projetado) Vocé certamente estA se perguntando: Por que um paulista ta af falando sobre o Nordeste? E eu te respondo com outra pergunta: Vocés sabiam que o IBGE s6 oficializou a divisdo da regio em 1942? Faz pouco mais de 75 anos que inventaram, criaram o Nordeste. Uma separac4o muito forte e muito recente. Mas meu afeto é 0 seu afeto, nao importa se vocé é do rico Sul, do desenvolvido Sudeste, ou do seco e flagelado Nordeste. Nés somos todos uma s6 nagao. Henrique: Ok, Mateus. Robson. A cena comunica isso ai que vocés querem comunicar, mas vocés fugiram do foco do workshop. O que isso tem a ver com 0 corpo nordestino? Nascer no Nordeste define o que em termos de corpo? Robson: Era o que eu tava dizendo. Tem gente de todo tipo 14 em Janduis. Mateus: (indignado) Ai, Robson, pelo amor de Deus! Janduis é o mundo agora? Robson: E nao é nao? Movimento 7: O cabra-macho Henrique: (falando para a plateia) A preparago nao estava avangando. A tarefa era mais dificil do que eu imaginava. Era preciso achar uma caracteristica que marcasse esse personagem. Talvez os atores precisassem de uma referéncia mais proxima a eles. Robson: Eu costumo dizer que convivo com duas pessoas distintas. Um homem extremamente sério e fechado e outro brincalhao e carinhoso. Henrique: Porque referéncias de fora, a gente tinha muitas. A literatura regionalista sempre Tecortia ao tipo franzino, humilde... 92 Scanned with CamScanner s: Correto, honesto. Ele é bom. Nunca deixou de pagar uma dfvida, néo conta mentira e e de uma boa discussao. yt plo P : : _gfique: (entram imagens de nordestinos “fora do padréo”)... e se vocé for do Maranhao até a ne tentar encontrar um padrao, uma conexio... _ ps0 As vezes me liga do nada, de onde tiver, pra falar os planos que tem. Isso quando bebe, |W pe quando té sébrio nunca fala essas coisas. Na verdade, ele nao fala nada. Quando ele ta 2s, ele 96 trabalha. pysteus: £ um homem temente demais a Deus. _ garique: Aquele homem que antigamente rezava pra Séo Pedro fazer chover, hoje abre o Google vpaneja a colheita a partir da previséo do tempo. , pbson: Acho que 0 tinico meio de diversao que ele consegue enxergar 6 na bebida Quando ele | tgbe, todo mundo j sabe, porque ele pega o violdo e toca como se tivesse lavando a alma. enrique: Essa esséncia. Essa marca nao deve ta no corpo. (lembra) Perai! Mas tem uma coisa... , onordestino... sate enrique: Talvez seja isso. (os dois atores estranham) Mateus: A 16? Henrique: A virilidade. Isso! A poténcia vital. (olha para a plateia) Semana 4: Porque nordestino écabra-macho! . entrega tudo o que tem para o Senhor. (nisica super animada e uma intervengao audiovisual ironizando 0 mito do cabra-macho / tudo acontece como em uma coreografia, uma marcagdo precisa e agées irénicas com, talvez, ontuagées claramente de danca) (Henrique: O que se diz é que o nordestino tem nas veias o sangue da resisténcia. Ele é espinhoso, sseco como a vegetagao da caatinga. Reza a lenda que corre pelo seu corpo a forga de um homem jbode, um satiro do deserto: um cabra-macho. Mateus: Homens risticos, sem as frescuras da civilizagéo, que enfrentam de peito aberto as vicissitudes da vida. 93 Scanned with CamScanner (a musica evolui para uma versdo mais “regionalista” @ a coreografia vira algo parecido com a danga vogue) Robson: Mas nem todos eram assim. Havia também os sinhozinhos de engenho, filhos dos coronéis, enviados a Franga para estudar. Mateus: En-viados. Robson: Voltavam mais delicados, com a cara lisa, sem barba e fumavam com as pernas cruzadas enquanto falavam bonito, (nessa hora da coreografia, todos reproduzem a forma de sentar de pernas cruzadas) Mateus: Franga. Henrique: E... Além do jeito esquisito, os filhos dos coronéis néo queriam mais saber de administrar fazenda, cuidar de gato, negociar no mercado. Eles queriam era mudar pra capital, Mateus: As mulheres, como sempre fizeram, assumiram a responsabilidade e passaram a administrar as fazendas. Na época, anos 20, aquilo foi um escAndalo. Henrique: Mas eis que o mundo da técnica modema logo langou novos medicamentos para recuperar a virilidade perdida. (projeta-se o amincio “Boas Novas para todos os homens” do “Diério de Pernambuco” de 20/06/1926 — Livro "Nordestino: invengao do falo”) Mateus: (lendo o antincio como um locutor de programa de rédio) Soret, o novo e maravilhoso descobrimento médico que restaura a perda parcial ou completa da virilidade nos homens de todas as idades. Nao é necessario que vos queixeis de ser um homem somente de nome e que tenhais que privar-vos de todos os prazeres que vossa natureza deseja. Comprai na botica de vossa vizinhanga uma garrafa de Soret e ficais maravilhado com a mudanga rapida. Soret é um Teconstrutor ativo mental e fisico e sentireis seus resultados benéficos em vosso organismo inteiro. Deves pedir com insisténcia 0 Soret. Movimento 8: Coronéis e cangaceiros Henrique: Caiu por terra o mito do cabra-macho. Eu j4 queria jogar a toalha, até porque ¢ melhor pedir a rentincia do que sofrer impeachment, nao 6? Mas af, no dia em que eu ia anunciar ninha desisténcia, na quinta semana, a produtora revela quem 6 0 personagem. Era uma figura onhecida. Um coronell (os atores comegam a colar lambe-lambe com imagens tipicas de coronéis). 94 Scanned with CamScanner 4 jyss BAO era um coronel qualquer. Esse tinha influéncia politica (colam o rosto de Sarney), era "n° de milhares que hectares de terras (cola o rosto de Renan Calheiros), e, nessas terras, ‘ntrolava as pessoas no cabresto (foto de Gilmar Mendes). Dono de uma labia impressionante ito de José Agripino Maia). Nao existia lei no mundo que o parasse (cola foto de Aécio Neves), yauma figura quase folclérica do Rio Grande do Norte (fixa o cartaz de campanha de Henrique ives), © que fazia todo sentido eles terem escolhido atores do nosso estado e ndo de outro jtado do Nordeste. Nos sentimos importantes. (anuncia aos atores) Atengéol A produtora me gsse quem 6 o personage. jgobson: Olha af “as coisa” melhorando, ) Mateus: Finalmente a coisa ficou séria. Quem 6? Henrique: O personagem 6... (querendo fazer suspense) Mateus: Fala, criatura. Isso nao é o show do milhao, nao. Henrique: O Major Teodorico Bezerra. Mateus: Oi? Robson: O Teodorico real? De Santa Cruz? Henrique: Isso. O ultimo dos grandes coronéis do Rio Grande do Norte, Mateus: Ultimo? Henrique: Ultimo, assim, no estilo old school. Robson: E a série 6 biografica? Henrique: Realismo fantastico. Mistura personagens reais ¢ ficticios, meio Pedra do Reino. Mateus: Sei... Henrique: Vamos 14 experimentar no corpo? Caminhando. Pensa nesse coronel, dono | de fazendas, empresario, reeleito deputado varias vezes, dono de avides, barcos, malas de dinheiro. Criem, tragam pro corpo. Mateus: Mas a gente vai fazer ele velho? Henrique: Nao, quem ganhar o papel vai fazer ele na fase 1, 0 coronel jovem. Vamos 14 improvisar? Sem pensar. Vai, Mateus, vocé que jé tA ai, vai vocé primeiro. (Mateus se distancia dos outros dois e comega um monélogo, refletindo como ele faria esse Personagem) 95 Scanned with CamScanner Mateus: Ai, Henrique, assim? E complicado. Como é que eu vou fazer ele na fase 1 se eu nem sei quem vai interpretar ele na fase 2? Se for Anténio Fagundes é uma coisa, mas se for Tony Ramos 6 outra completamente diferente. Henrique: Improvisa. Mateus: (comega a criar 0 personagem) Se eu fosse um coronel? Eu? Coronel do sertéo? (ironiza Robson) Coronel do litoral? Um coronel da industria? Do Congresso? (ri um pouco, tenta concentrar-se) Bom, eu acho que eu teria um olhar soberano. Uma postura firme e uma voz (vai encontrando a voz e exagera no sotaque nordestino inventado)... uma voz, (vai mudando a Voz)... uma voz, uma voz assim escrotinha. (ele vai se aproximando de Robson, uma atmosfera 6 recriada com luz e entra a projegao do primeiro trecho do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de 14min53s até 15min49s) Mateus: A lei ta comigo! Robson: Da licenga outra vez, seu Moraes, mas que lei é essa? Mateus: Quer discutir? Robson: Nao, senhor. Sé t6 querendo saber que lei é essa que nao protege o que é meu. Mateus: Ja disse, ta dito. Vocé nao tem direito a vaca nenhuma. Robson: Mas seu Moraes... 0 senhor nao pode me tirar o que é meu. Mateus: Ta me chamando de ladrao? Robson: (longa pausa) Quem ta falando é 0 senhor. Mateus: Quem vocé pensa que é seu moleque? (sai irado) (filme vai para o trecho entre 22min39s e 24min22s; Henrique sobe na cadeira e passa a interpretar 0 beato) Henrique: E preciso mostrar aos donos da terra, o poder e a forga do santo. Eles tiraram Dom Pedro do trono e agora querem matar quem ama o imperador, mas quem quiser alcangar a salvag&o fica aqui comigo de hoje em diante até o dia em que aparecer no sol o sinal de Deus. Vao descer “cem anjo" com as espadas de fogo ansiando o dia da partida e abrindo nosso caminho “nas vereda” do sertao. E o sertao vai virar mar e o mar vai virar sertao. O homem nao Pode ser escravo do homem. O homem tem que deixar “as terra” que nao so dele e buscar “as terra” verde do céu. Quem é pobre vai ficar rico no lado de Deus. E quem é rico vai ficar pobre 96 Scanned with CamScanner -gas profunda” do inferno. E nés ndo “vai” ficar sozinho porque meu irmao Jesus cristo m: ym anjo guerreiro, com sua langa, para cortar a cabega “dos inimigo”, jandou gobson: T6 condenado, mas tenho coragem. Entrego minha forga a meu santo pra libertar o meu ovo. Henrique: Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! ouvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! (corte para cena do filme em que Othon Bastos fala que & o capitao Corisco em 1h38min46s) Robson: “Meu Padim Padre Cigo fechou tudo isso aqui (gesto mostrando o peito). Espero Anténio das Morte. Quero me topar com ele de homi pra homi. De Deus pra diabo. f 0 capitao Corisco enfrentando o Dragao da Riqueza. Se eu morrer, nasce outro.” Aquela paz, s6 existe na morte. Homem, nessa terra, sé tem validade quando pega nas armas pra mudar o seu destino. £ no rifle, no punhal. (entra a trilha sonora semelhante & da cena final da morte do capitao Corisco em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” / Robson corre pelo palco como se estivesse desviando de balas até que para no meio como se tivesse sido atingindo, abre os bragos e repete o giro de Othon Bastos no filme/ para diante da plateia com os bragos abertos, a miisica cessa ¢ ele grita) Robson: “Mais forte sao os poderes do povol” Mateus: Henrique, e vai ter cangaceiro também, é? Eu achava que era sé coronel. Henrique: Vai. (para a plateia) Pra entender o Nordeste, tem que entender o cangago. (Todo comegam a organizar os materiais na mesa) Foi também na seca de 1877 que tudo comegou. Os coronéis fugiram para o litoral e abandonaram seus jaguncos para eles morrerem no sertéo. Logo eles se juntaram em bandos e, armados, comegaram a saquear as cidades. Jesuino Brilhante, Ant6nio Silvino, Lampiao. Cada um com seu mito particular. Com sua histéria de sangue, poder erevolta. (Henrique e Mateus comecam a fazer uma animagao / a animagao mostra a histéria da morte de Lampido / Robson narra o texto que descreve a morte do cangaceiro). Robson: Foi na madrugada de 28 de julho. 1938. Chovia muito, Estava escuro quando a volante chegou. Vieram de mansinho. Nem os cées farejaram o perigo. As cinco e quinze da manh, os cangaceiros j4 estavam de pé. Preparavam o café, como faziam todos os dias. Rezavam 0 oficio da manh4, arrumavam as armas, as barracas de lona. Iam deixar a gruta do Angico. (barulho de titos interrompendo a narragao, a animagdo mostra os cangaceiros sendo abatidos). Foi traicéo. Depois de vinte minutos de tiroteio, onze corpos caidos. Morreram na hora, incluindo o capitao Vigulino, Euféricos, os policiais comegaram um sinistro ritual de mutilagéo. Maria Bonita, a Scanned with CamScanner mulher que dizia ter entrado no cangago por escolha prépria, que escandalizava a tradicional familia sertaneja com sua ousadia, foi degolada ainda viva. (entra @ projegéo das cabegas degoladas enquanto os atores comegam a dizer 0 nome dos cangaceiros mortos) Mateus: Quinta-feira, Mergulhao, Luis Pedro... Henrique: ... Elétrico, Colchete, Macela... Mateus: ... Enedina, Alecrim... Robson: Embriagado pela festa da degola, um dos policiais desfere um golpe com a coronha do fuzil na cabeca de Lampiao. A pancada foi tao forte que deformou o crénio, modificando a fisionomia do cangaceiro. A cabega dele afundou tanto que chegaram a duvidar que era mesmo © capitdo Virgulino. Pra muita gente, a cabega cortada de Lampiao nao provava nada. ‘Mateus: (interrompendo a animagéo) Exato! A cabega. Os cientistas, durante meses, estudaram as cabecas decapitadas de Lampiao e Maria Bonita para saber se havia alguma mé-formacao que justificasse a inclinagao para o mal. Algum indicio de que cabega chata era sinal de uma predisposigao inata para o crime. Robson: Eles tinham convicgéo, mas nao tinham provas. Mateus: Eles mediam a circunferéncia da cabeca, o comprimento a partir do queixo até a nucae o tamanho para identificar a origem do banditismo sertanejo. Robson: Peraf... mas era bandistismo por necessidade. Nao era por maldade, nao. Mateus: Maldade, sim. Que ¢ isso?! Direitos humanos pra cangaceiro? Eles eram sociopatas sadicos. Robson: Que conversa é essa, Mateus? Sédicos eram os coronéis que deixavam o povo morrer na miséria, Mateus: Pera lA... na histéria que eu estudei, coronel é uma coisa e cangaceiro 6 outra. Robson: Claro. Sao completamente diferentes. Um nasceu em bergo de ouro (claramente Teferenciando Mateus) e o outro nasceu pra revolugao. Vooé nao entende de Nordeste mesmo, néo, viu? Mateus: (provocando Robson) Vocé 6 que nunca vai saber o que é Nordeste, sabe por qué? Porque a sua referéncia é rasa. Seu Nordeste é de quem sé vé de perto, rapaz. Seu Nordeste é mfope. Pra enxergar as coisas, vocé precisa se afastar, meu filho. 98 Scanned with CamScanner ‘a: Sou seu filho néo, Nem seu pareceiro. Othe pra vocé: um paulista azedo que s6 fez re ‘aqui. Nunca pegou numa arupemba pra debulhar feijao. * ys: Ani. 0.qUS? igson: O pra. ail Num conhece nem arupemba, um eatabl, Cibazol, bilo, cacimbo.. . E tu acha porque vocé sabe vomitar glossario pra turista vocé sabe o que é o Nordeste? é: son: Mais do que voc®, pode ter certeza que eu sei, Eu nasci nele, seu otéro! pasos: AS porque voce morou no cu do sero... _gsson: Bil Respeite minha cidade, s: Ai s6 porque vocé morou no sertao por vinte anos, ai vocé tem a clareza do que seja um Nidestino. E desde quando o Nordeste é s6 sertdo? Vocé também comprou esse discurso, foi? nito me admira vocé que diz que tem raiz, achar que o Nordeste é s6 sertao. igoson: Nao é 86, mas também 6. O sertéo, o Nordeste, a seca téo dentro da gente... _steus: Pronto, baixou Guimarées Rosa agora. Tem seca em Séo Paulo também, Robson. _igbson: Seca, nao! Seca, nao! Crise hidrica! A seca é sé da gente! ateus: Pronto, se apropriou da seca agora. O préximo passo é o qué? Pedir recurso pra scergéncia? Fazer a transposigaéo do Sao Francisco pra Janduis? Vocé s6 quer ver 0 que Ihe jyorece. (inicia uma representagdo que remonta a sesséo do Senado, em 2009, quando Renan uheiros bate boca com Tasso Jereissati; no inicio sem, a projegéo das imagens). Outra coisa, ahor presidente (dirigindo-se a Henrique), existem manifestagdes aqui pela... de... nessa siuna de honra aqui. (se volta para a plateia) Eu pediria que retirassem esse senhor aqui, que sfazendo manifestagdes constantes aqui, porque nAo t de acordo com o regimento. -iehson: Senhor presidente, pela ordem (dirigindo-se a Henrique)... Senhor presidente, 6, Senhor ~stesidente, pela ordem, 6 que eu queria... a respeito da manifestagao do senador Tarso Jereissati... “sas crises acontecem por isso. E a minoria com complexo de maioria. Quer expulsar agora imcidaddo que esta aqui participando da sessdo, que é uma sessao infelizmente histérica do * nado Federal. ‘Wlateus: Ele nao t4 participando. A tribuna de honra ndo pode ficar fazendo piadas, e me desculpe, ’ snador Renan Calheiros, mas nao aponte esse dedo sujo para cima de mim! (pausa) nao aponte ’ 8s dedo sujo para cima de mim! Té cansado das suas ameagas. tbson: Ei... o dedo sujo, infelizmente, 6 o de Vossa Exceléncia. Sao os dedos dos jatinhos que - Senado pagou. 99 Scanned with CamScanner Mateus: Pelo menos era com o meu dinheiro. O jato 6 meu. Nao é o que vocé leva seus empreiteitos, Robson: O dinheiro ¢ seu? Mateus: E meu. E meu. E meu. E meu e eu tenho pra... pra falar. Ta? (inicia a projegdo na passagem em que os dois senadores se xingam e os discursos se misturam ou a projecdo fala por si sé enquanto os atores ficam parados) Robson: (fora do microfone) Coronel de nada. Vocé é coronel de nada. Mateus: Eu, coronel? Cangaceiro! Cangaceiro de terceira categoria! Can... seu o qué? (interrampe a projego enquanto os atores retomam a discussdo) Robson: (falando para Mateus) Vocé é coronel de merda. Mateus: O qué? Robson: Coronel de nada. Mateus: Nao, repete o que vocé disse. (para Henrique) Decoro parlamentar. Repete o que vocé.. Robson: Vocé ndo & coronel de nada. Mateus: Repita o que vocé disse ai, Repita o que vocé disse ai. Robson: Vocé é minoria com complexo de maioria. Mateus: Repita o que vocé disse. Presidente! Presidente! O senador acabou de quebrar o decoro parlamentar me dirigindo com palavras de baixo caldo. Eu pego que seja feita uma representacéo sobre isso. (a campainha do senado toca um toque longo e para / no siléncio, Henrique entra com a placa que de um lado diz “Representagéo feita” / ouve-se o segundo toque do teatro - dois toques longos -, Henrique vira a placa e do outro lado esté escrito “Semana 6: O ator foi escolhido!” / Ouvem-se trés Iongos toques da campainha do teatro) Robson: Como assim? A gente nem fez o teste. ‘Mateus: A produtora avaliou os videos, Robson. Certeza. Pode falar. Eu t6 pronto. Quem foi? Henrique: Caud Reymond, Mateus: Cau Reymond? Como assim, Henrique? Por qué? ane Por qué? Por qué? Vocé acha que vocé vai atrair mais publico do que Caua Reymond? incio Scanned with CamScanner jpson: Nao, né, Henrique? Mas ele ta mais rodado do que Matheus Nachtergaele. Nao... do ‘ft Wagner Moura... Pior! Do que Irandhir Santos! genrique: E dai? Se ele conseguir interpretar o coronel Teodorico. iyeteus: Ele 6 carioca, Henrique. enrique: E da{? Se até o trio de sanfoneiro de Luiz Gonzaga foi criado no Rio de Janeiro. Ele pode representar quem ele quiser. jysteus: Seré que a gente nao consegue representar 0 lugar que a gente mesmo inventou? jenrique: “Criou”, Mateus. Criou. “Inventou” é um termo meio pesado. Grande mudanga. Um toque de banda de frevo invade a cena. Serpentinas caem do teto. A luz comega a piscar. Se tiver recurso, o ideal seria que entrasse a banda de frevo ao vivo e puxasse um loco de carnaval formado pelos atores que vao se fantasiando de Gilberto Freyre, Odilon Nestor ;Ariano Suassuna. Todos vibram, bebem e comem, projegdo: 7 de fevereiro de 1926. Carnaval no Recife. Na Faculdade de Direito, se reuniram jntelectuais nordestinos, comandados por Gilberto Freyre, na defesa do “Espirito nordestino”. Ali comegava 0 Congresso Regionalista. Mateus: (com a mascara de Gilberto Freyre, no meio da festa, comendo e bebendo) Nao nos qurvaremos a esses estrangeirismos. Nao seremos a terra de reliquias e antiquarios! Robson: (com a mascara de Odilon Nestor e bebendo) O Brasil é um conjunto de regiées antes de ser uma mera federagao de estados! Henrique: Empolgados durante os cinco dias de congresso, os provincianos incuraveis debateram temas importantes para a criagdo de uma identidade nordestina. Temas come... Mateus: “A loucura das secas' Robson: ... “Higiene cerebral’ Henrique: .,. “a estética e a tradigdo da cozinha nordestina”, entre outros. Ali, eles estabeleceram 0s fundamentos da cultura nordestina. Mateus: Artigo Primeiro: Que tome a iniciativa de estabelecer no Recife um café ou restaurante ¢m que no falte a cor local, umas palmeiras, uma gaiola com papagaios e uma preta de fogareiro fendo grude ou tapioca. \brojetam-se os dizeres: “Saudades da casa-grande”) 101 Scanned with CamScanner Robson: Artigo Segundo: Que os colégios de meninas estabelegam cursos de cozinha em que sejam cultivadas as mesmas tradigbes mu (projetam-se os dizeres: “Lugar de mulher 6 onde EU quiser”) Mateus: Aliés, 0 ideal seria que o Recife tivesse 0 seu restaurante regional, onde a pessoa da terra ou de fora se regalasse comendo tranquilamente sua paca assada ou sua fritada de guaiamum com pirao e molho de pimenta. Henrique: Perai, seu Gilberto. Mas vocés s6 falam de comida nesse congresso? ‘Mateus: Muito do saber humano est4 naquilo que vocé come, Henrique: Concordo. Mas ai, porque eu como tapioca eu aprendo a ser nordestino? ‘Mateus: (meio bébado j4) Ué, se quiser trocar de identidade, a gente recebe. Robson: (trocando para a mascara de Ariano Suassuna e bébado) “Nao troco o meu ‘oxente’ pelo ‘OK’ de muita gente.” Henrique: Dé licenga, seu Suassuna. Como é que o senhor pode opinar se o senhor s6 nasceu um ano depois que esse congresso terminou? Robson: Nao sei. S6 sei que foi assim. Henrique: (para o pitblico) Pela preservacao da boa meméria, damos por encerradas as atividades. (luz muda; Mateus e Robson tiram a mascara) Mateus: (retomando 0 diélogo) Mas... e eles néo queriam se separar do resto do Brasil? Henrique: Nao. A questo era estabelecer os limites culturais que iriam definir o “modo de ser nordestino”. Eram nacionalistas, tradicionalistas e morriam de saudade da escravidao. Mateus: T4, entendi. (retoma o tom explosivo) Pois entdo pronto! Eles que fiquem com Caua Reymond, porque hoje, dia (diz a data do dia da apresentacao da pega), nos vamos redefinir 0 Nordeste, porque do jeito que té hoje, o Nordeste foi definido sem critério. Robson: Sem critério? (Mateus: Era camaval, Robson. E eles cometeram o erro de criar o regionalismo pra s6 depois criar a regio. A gente vai logo comegar é pelas fronteiras, porque o Nordeste vai virar um pals, sim, senhor. (vai até o mapa do Brasil em formato de quebra-cabegas fixado no cenério). De cara, sai essa parte todinha aqui. (removendo Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte das pecas do quebra- sgabecas que formam o mapa do Brasil) 102 Scanned with CamScanner _ygson: Certo. E a Bahia? 86 ela jé 6 um pafs, Maior que a Franga. _pous: Beleza, Tira a Bahia também. _gyson: E Sergipe? japteus: Sorgipe também? a _ gbson: Homi... Aracaju é quase um bairro de Salvador _ysteus: Beleza. Sergipe roda. Eu tirava o Piaui e o Maranhéo também. _ gobson: Isso. Eles so praticamente Norte, ja. yoteus: Pronto, fica assim. Os Estados Unidos do Nordeste. Henrique: Mateus, isso ai parece a Confederacao do Equador. sylateus: Pois entdo, sai o Ceara. \genrique: Oxi! O Ceara? Por que nao é Nordeste? Mateus: Eles chiam no “T", “Tchia’ Robson: Verdade. Chiou no “ “Aracatchi’ iA 6 quase carioca. Tira o Ceard. Henrique: Se for pra arranjar motivo, sai Alagoas também. Mateus: Alagoas? Que é isso?! Henrique: Vocés querem correr o risco de ter Renan Calheiros na presidéncia desse novo pais? Mateus e Robson: (a0 mesmo tempo) Sai Alagoas. Henrique: Eu também tiraria Pernambuco. Robson: Té doido, Henrique? Pernambuco? : Henrique: Os pernambucanos nunca iam deixar o pafs se chamar “Nordeste”. Mateus: Verdade. Iam chamar de “Pemambuquia”. Henrique: Ou “Nassévia”, em homenagem a Mauricio de Nassau. Robson: (tira Pernambuco) Ento ta af. O Nordeste. Mateus: Lindo, né? Henrique: Mas af 6 que tA. Se vocés pararem pra pensar. Nordeste, Nordeste mesmo, é s6 0 Rio Grande do Norte. Porque olha qual é o estado mais a nordeste do Brasil. 103 Scanned with CamScanner Robson: Verdade. O nordeste do Nordeste (retira a Paraiba) Mateus: Se for assim, a capital deveria ser em Touros, aqui na ponta, que é o nordeste do nordeste do Nordeste. Henrique: (olhando o RN sozinho) Podia se chamar “Nordeste Grande do Norte” Mateus: E nem 6 téo grande assim. (Um siléncio / Mateus se atrapalha e derrama café no mapa de agiicar feito na mesa; os outros reagem e depois derramam o café que estdo tomando também; todos riem / 0 telefone de Henrique toca) Henrique: & a produtora. (prepara uma voz para falar com ela; os demais tentam adivinhar a conversa) Alé! Al6! Oi! Hum... foi eles... (enquanto Henrique fala ao telefone, Robson coloca uma imagem na frente da cdmera; na projecdo, vé-se um cartaz de filme no qual esté escrito: “Semana 7: Eu tava precisando do dinheiro, aceitei.") Nao... 6. A noticia é boa. Noticia 6 muito boa... Eu?... Ah... (um tempo) Ta bom. Que étimo. Obrigado Patricia. Eu te retorno... sim, claro, o mais breve possivel. T4 bom. Até. Tchau! Mateus: E ai? Noticia boa? Eles reavaliaram? Henrique: Mais ou menos. Ela falou que gostaram muito de vocés. Reconheceram a dedicagao. E fizeram um convite. Sem teste. Mateus: Sem teste? Ei, Robson, a gente se garantiu muito, viu? (cumprimenta Robson) Henrique: E pra uma minissérie que se passa em Sao Paulo nos anos 90. ‘Mateus: (se fazendo de dificil) Sei, mas qual seria o papel? Henrique: Robson seria um porteiro de prédio e vocé um operdrio da construgao civil. Robson: Porra, Henrique! Té tirando onda, né? Henrique: So secundarios, mas tem muita fala e 6 contrato de seis meses, talvez um ano. Mateus: Henrique, depois de tudo isso, vocé acha que a gente vai se sujeitar. Henrique: O salério é de dois mil reais por més, carteira assinada e tudo. (pausa) E eles pagam hospedagem e alimentacéo, Nao tem mais teste de nada, Se vocés aceitarem, 6 s6 assinar 0 contrato e os ensaios j4 comegam semana que vem. Até pra mim eles ofereceram um papel. Mateus: Vocé atuando?! , Henrique: Pois é, falei que fazia tempo, mas o personagem é um diretor de teatro nordestino que tenta sobreviver em Sao Paulo. £ uma ponta, menor que os papéis de vocés, mas também gem fala, 104 Scanned with CamScanner gson: Homi, a gente tA esperando o qué? Nessa crise. Vamos assinar 0 djiabo desse Or rato logo. att : ,steus: Nao sei, eu tenho que pensar. (Henrique e Robson vao saindo de cena) _goson: Henrique, se Mateus nao quiser, eu posso fazer os dois. Vocé lembra d’O Clone? Eu sso fazer Robson e Rabson, os irmaos gémeos nordestinos... oo vai escurecendo até ficar sé um foco em Mateus. Depois de uma pausa, comega a falar jé " (emo 0 personagem. Mateus: Eu sempre achei que eu queria t4 aqui, nesta construgéo. Nesta luz, olhando para acts. Eu achava que 0 fato de eu ter nascido onde eu nasci nao devia definir o que eu ia ser. Eu sempre me imaginei diferente. Em outro lugar. Ai eu chego neste “outro lugar” e eu percebo que aproblema nao era o lugar. O problema era o que eu achava que eu devia ser. Porque os outros sim sempre muitas certezas, muitas verdades. Eles sempre querem que a gente seja o que a gente “nasceu pra ser”, no lugar que a gente “nasceu pra ficar”. Eu acreditei nisso por muito tempo. Por muito tempo o Nordeste era eu. Eu carregava comigo uma regio. Vocé sabe o que 6 voc carregar uma regido no corpo? Na fala? Quem botou essa regido em mim? Sera que fui eu mesmo? Hoje, eu nao tenho certezas. Elas foram queimadas pela historia. Reduzidas a cinzas. Hoje eu sei que o dilema ndo é “ser ou nao ser”. £ "ser e ndo ser”. Viver “entre”, viver “quase”. Andar nas frestas, nas fronteiras. Cruzar os limites, deixar a poeira subir e, mesmo com a vista embagada, olhar pra frente e continuar. Diretora: Corta! Muito bom! Vamos refazer tudo do comego? S6 que, dessa vez, diferente. luz apaga em Mateus, que sai de cena. Uma ultima imagem fica acesa sobre o mapa do Brasil dividido. 105 Scanned with CamScanner

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