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Anne-Marie Chartier PRATICAS DE LEITURA E ESCRITA HISTORIA E ATUALIDADE Ceale* seen auténtica Digitalizado com CamScanner COPYRIGHT © 2007 BY ANNE-MARIE CHARTIER PROIETO GRARICO DA CAPA Julia Elias e Marco Severo CCONSELHO EDITORIAL DA COLEGAO UNGUAGEM E EDUCACAO Anténio Augusto Gores Batista (coord), Ana Maria de Olvera Gahio, Artur Gomes de Morais, Cens Salete Ribas da Siva, Jean Hébrard, Luz Peroval Leme Brito, Magda Soares, Mércia Abreu, Vere Masagso Ribeiro TRADUCA ‘Ana Maria de Oliveira Galvéo, Ceres Leite Prado, Flavia Sarti, Maria Rita Toledo, Ricardo Casco, Ruth Siliviano Brandéo, Teresa Van Acker REVISAO TECNICA Ana Maria de Oliveira Galvo e Ceres Leite Prado Revisho Cecilia Martins EDITORACAO ELETRONICA Tales Leon de Marco Conrado Esteves Todos 05 direitos reservados pela Autentica Editora Nenhuma parte desta publicags0o poderd ser reproduzida, Sea por meios mecdnicos, eletrOnicos, seja via copia xerografica, sem a autorzagto preva da editora BELO HORIZONTE ™ Rua Aimorés, 981, 8° andar. Funcionarios & 30140:071. Belo Horizonte, MG ow Tel: (55 31) 3222 68 19 Teuevenoas: 0800 283 13 22 << www.autenticaeditora.com.br e-mail: autentica@autenticaeditora.com.br z 4H/SA0 PAULO 5 Tel.: 55 (11) 6784 5710 <¢ e-mail: autentica-sp1@autenticaeditora.com.br Chartier, Anne-Marie ‘C486p _Préticas de leitura e escrita - hist6ria e atualidade / Anne-Marie Chartier. — Belo Horizonte : Ceale/Auténtica, 2007. 248 p. — (Linguagem e educag3o) ISBN 85-7526-261-0 |.Educagao. 2.Leitura. 3.Escrita. LTitulo.L Série. cou37 2a 003 Ficha catalograficaelaborada por Rinaldo de Moura Fana ~ CRB6-1006 Digitalizado com CamScanner CarituLo | EXERCICIOS ESCRITOS E CADERNOS DE ALUNOS: REFLEXOES SOBRE PRATICAS DE LONGA DURAGAO! E sempre bem mais facil pensar sobre a escola ideal d que sobre a escola real; mais facil descrever um programa escolar do que narrar como foi _utilizado. Nos escritos dos instruir e educar os alunos, mas muito pouco podemos sa- ber sobre Como as Colas Runcionavam no dials. No en- tanto, existe, também, a “caixa preta” da escola, escrita com base em testemunhos polémicos de contemporaneos, lem- brangas dolorosas de antigos alunos, queixas de professo- res sobre as condigées desastrosas da profissio, sobre 0 absurdo ou a perversao do sistema. Os reformadores de todos os tempos sempre tiraram proveito desses fracassos da instituigdo, citando-os abundantemente, para legitimar seus projetos renovadores. Entre os textos que descrevem a escola ideal e os registros das suas falhas inadmissiveis, como situar a “escola real"? Para o periodo contemporineo, o trabalho de campo é possivel, e é por isso que, em todos os paises onde existe pesquisa em Educagio, os pesquisadores (sociélogos, an- tropélogos, especialistas em Educag’o) invadiram as salas ' Tradugao de Ana Maria de Oliveira Galvio ¢ Ceres Leite Prado. Digitalizado com CamScanner 22. Priticas de tettura ce: rita: hist6riae atualldade - Anne-Marle Chartier de aula, Nao se pode dizer o mesmo para a escola dos séculos passados. Os dados, pacientemente construfdos pelos historia dores, nos permitem conhecer ¢ comparar os diferentes siste- mas escolares do ponto de vista administrativo, politico, social, mas raramente penetram na vida concreta da sala de aula. Em 2000, um colaborador do cineasta Patrice Lecomte se dirigiu ao Institut National de Recherche Pédagogique (INRP), fazen- do uma série de perguntas: como a atriz Juliette Binoche deve- ria representar o papel de uma mulher letrada que alfabetizava um adulto em meados do século XIX? Foi facil encontrar um livro da época e colocé-lo em suas miios, mas quais seriam os gestos a fazer e as frases a dizer que caracterizariam essa relagZo que poderia ser chamada preceptorado? Como se Praticava o método da soletragao, ainda utilizado na época, mas tio macigamente criticado que praticamente s6 conhece- mos dele as descricdes estigmatizantes? Trata-se, entretanto, do método que, durante mais de 2.500 anos, permitiu a gera- ¢6es de alunos aprender a ler 0 grego, o latim ou as linguas da Europa moderna. A aprendizagem da leitura ¢ do catecis- _Mo, que constituia o essencial das pequenas escolas do An- (- Mn ¥ tigo Regime®, ocorria_oralment: marcas. Os ber manuais destinados aos professores, Por outro lado, nao nos “ informam muito sobre o trabalho dos alunos, Compreende-se_entio melhor o interesse dos historia- dores res pelos cadernos salvos da destruiclo_a que normal- mente so destinados. Através d escritos', sejam eles 1a weuve de Saint-Pierre (A vitva de Sao Pedro), 2000. A historia se passa por volta de 1850, em Saint-Pierre © Miquelon, © adulto iletrado ¢ um condenado & monte, ¢ a mulher do governador o ensina a ler, enquanto aguardam a chegada da *Viiva", a guilhotina enviada de Paris. * Periodo da histéria da Franga que vai do fim da Idacke Media a Revolugto Francesa (séculos XVI-XVIIL) ONT). * Dots nimeros especiais de Mato de Féducation nos serviram dle guia Travaux déleves Pour une bistoire des performances scolaires et de leur evaluation, 1720-1889, mare 1990, nimer 40 ¢ Travaux deters Pour une bistoire des performances scolatres ot de leur evaluation, NINN? siveles mai 1992, numer 54 Digitalizado com CamScanner Os escritos escolares foram tratacos: 1? como 2 ama escrita de um ensino magistral, marcado pel ‘> &Xpositivas; 2) como indicadores dos desemy 5 } vas; 2) como indicadores dos desempenhos escola: Exercilos escrtos e cadernos de alunos reflaxtessobreppriticasdelongaduragto 23 provenientes de alunos da escola priméria, da_secundaria ou da universidade, € possivel confrontar o ensino desejado com 0 aprendizado praticado, passar das teorias dagdgi- cas ou dos textos prescritivos A sua utilizagao. Os textos es- Gfitos pelos alunos (anotacdes de aulas, ligdes manuscritas, exercicios escolares, provas) constituem uma fonte desconti- nua, éliptica, que se toma ainda mais rara quanto mais se afasta no tempo. Essa fonte €, ao mesmo tempo, fascinante € enigmitica, dificil de watar ¢ de interpretar, justamente por sua aparente banalidade. | ‘Os cadernos mais bem conservados sao, com freqiiéncia, cadernos “de gala”, cuidadosamente encadernados (para se- rem expostos publicamente, por exemplo por ocasiio das Exposig6es Universais) ou cadernos de criangas excepcio- nais, em razao de seu sucesso precoce e de seu status social (filhos de principes ou criangas prodigios). Seria imprudente imaginar_a escola comum por meio desses cadernos, mesmo que eles nos tragam informagées essenciais. “ “Q que os historiadores j4 conseguiram saber a partir des- sas fontes raras? E. possivel distinguir trés abordagens histo- 1 riogrdficas. Os escritos escolares foram tratados: 1) como a rés; 3) como testemunhos das praticas de aprendizado (vul- gata escolar e exercicios usuais). Optamos por apresentar essas diferentes perspectivas nao comentando seus principios e procedimentos, mas descrevendo e analisando, concreta- mente, para cada uma delas, dois estudos de caso: um relati- vo ao ensino das elites ¢ outro referente ao ensino popular. Poderemos, assim, perceber os pressupostos e as exigéncias metodolégicas de cada linha de pesquisa, Serf, em seguida, mais facil mostrar como os cadernos dle alunos introduzem as geragdes mais jovens em uma certa cultura escrita; por exemplo, no uso cotidiano dos cadernos, a escola institui a divisto dos saberes em disciplinas, definidas tanto pelos exercicios quanto pelos contetidos. Digitalizado com CamScanner 24. Priticas de beiturae escrita: historia © atualidade - Anne-Marie Chartier As marcas do ensino magistral A aula magistral, tal como os alunos a anotaram ou Copia- ram, nos permite perceber como se efetuava a mediagao en- tre o saber livresco e uma turma de alunos principiantes ou avangados. Dois exemplos nos permitem ilustrar essa afir- magio: um relativo ao ensino humanista em um colégio do Renascimento e outro ao ensino da moral numa escola repu- blicana, entre 1880 e 1920. O ensino humanista e o valor universal dos classicos latinos. Anthony Grafton, ha mais de 20 anos’, decifrou com pacién- cia as anotacdes manuscritas de um estudante que freqiien- tava o curso do humanista e professor de Gramitica Latina em Paris, Claude Mignault. Essas notas nao estéo reunidas em um caderno, mas foram diretamente feitas sobre 0 texto impresso, em latim ou em grego, do autor em estudo. Em 1550, edigdes artesanais aliviavam os estudantes das cépias interminaveis e, segundo Grafton, representavam o papel das fotocépias de hoje. O estudante escrevia resumidamente, entre as linhas, nas margens e nas paginas intercaladas. Nessa pardfrase em latim do texto latino, Grafton encontrou proce- dimentos didaticos herdados da universidade medieval, como, por exemplo, apresentar o que faz a unidade do texto, expli: citar seu tema, seu género e as circunstAncias de sua escrita. O mestre levava em conta o nivel de estudos de seus alunos, fornecendo um numero maior ou menor de explicagdes gra- maticais e de traducao literal de acordo com as turmas, aju- dando sempre mais seus alunos no grego do que no latim. Grafton também encontrou os livros que Claude Mignault tinha consultado, sem entretanto cité-los. O pesquisador se iepernitareeeeemmpesnsieectic * GRAFTON, Anthony. “Teacher, text and pupil in the Renaissance class room: a case from a Parisian College”. History of Universities, 1, Universities and colleges, 1981, Avebury Publishing Company, Digitalizado com CamScanner Exercicios escritos e cadernos de alunos: reflexes sobre priticas delongaduragao 25 encantou sobretudo com a margem de liberdade inovadora desse professor de vanguarda, que analisava os autores gra- gas A logica de Ramus (Pierre de la Ramée®). Essa l6gica po- dia reduzir todos os textos a seu esquema de argumentagio; era, diz Grafton, a “Nova Critica” da época. Claude Mignault mostrava o valor argumentativo dos textos literirios antigos €, aO mesmo tempo, seu valor moral atemporal. O que o aluno deveria reter das ligdes do mestre era que existia uma 86 légica, a servigo de uma s6 moral humanista, ao mesmo tempo crista e antiga. Virgilio e Horacio sao autores pagios, pré-cristaos, mas esse dado acidental era apagado por uma leitura légica de seus textos — uma leitura “estrutural”, ahis- t6rica. Decifrando as notas tomadas por um estudante du- rante esse ensinamento de “viva voz”, Grafton nos faz perceber as novas correntes de pensamento das autoridades eruditas, no momento de sua criagao. Essa informagaio é im- Portante na medida em que essas correntes forneceram aos estudantes, que se tornariam, por sua vez, professores, um método de leitura e um corpus de referéncias antigas parti- Ihadas. Esses textos pagios forneceriam ao nivel de ensino realizado ap6s o primdrio uma antologia de hist6rias edifi- cantes e de modelos educativos. Para a geragdo seguinte, essa vulgata seria o fundamento dos estudos clissicos, como no modelo dos colégios jesuitas. Na Franca, 400 anos mais tarde, os alunos do Ensino Médio ainda aprenderiam a re- conhecer, em Horicio ou Augusto, as figuras “eternas” de herois- mo patriético ou da cleméncia politica. A moral laica nos cadernos da escola primdria O que aconteceria trés séculos mais tarde, nto mais na formagio das elites, mas na do povo, quando os professores * Professor de filosofia no College de France, eritico de Aristételes, conver- teuse ao protestantismo € fol assassinado no massacre de Sio Bartolomeu, em 1572. Digitalizado com CamScanner 26 Priticas de leitura. escrita: hintériae atualldade - Anne-Marie Chartier da escola primaria tiveram de ensinar a moral republicana, desvinculada de qualquer referéncia a religiio? Um conjunto de cadernos escolares permitiu ao historiador Jean Baube- rot’ analisar as ligdes ditadas pelo mestre, os manuais € os deveres de alunos. Se era possivel ditar ligoes de moral ou pedir que os estudantes as copiassem em um manual, era porque, para os professores primérios (como para Claude Mignault), nao existiam varias morais, embora existissem varias religies e uma infinidade de opinides. A moral esta- va baseada na dignidade do homem, uma dignidade que dava direitos e mais ainda deveres. Era, nessa concep¢do, o que distinguia o homem dos animais, que tinham também direi- tos, mas nao deveres. Essa dignidade fazia a “grandeza do homem’, sua “beleza moral”, e decorria de um traco especifi- co que fazia a humanidade dos homens, qualquer que fosse o nome que lhe fosse dado: razio, inteligéncia, vontade, li- berdade, espirito, consciéncia, alma. A dignidade era vista como incondicional, independente das idades e dos sexos, das situagdes e das fungées, das civilizagdes e das ragas, dos lugares e dos tempos. Assim, escreve Bauberot (1997, p. 119), “o ensino moral laico nao € marcado de forma alguma por uma ruptura, de tipo darwinista ou materialista, com a ins- trugdo moral e religiosa que o precedeu”, Segundo os manuais, o mestre insistia na hist6ria dessa Progressiva tomada de consciéncia. Foram necessirios sécu- los para que o homem descobrisse sua dignidade e os direi- tos dela decorrentes, em particular os direitos politicos: nto € a mesma coisa ser reconhecido como escravo, como stidi- to, como cidadao, Entretanto, a escola priméaria nado ensina- va filosofia, nao tinha de fundamentar teoricamente essa moral, mas somente tirar dela as conseqiéncias priticas. A escola devia explicar que, se muitos homens tinham uma “conduta indigna”, isso ndo era incompativel com a dignida- de de direito de todo ser humano. A ligdo a tirar dat era a de " BAUBEROT, Jean. La morale laique contre Vordre moral. Paris: Seuil, 1997 Digitalizado com CamScanner Exercicios escrites eadernos de alunos: reflexes sobre priticas delongaduragso 27 que “toda acdo meritéria aumenta nossa dignidade, toda agao mé a diminui” (p. 125). O que eleva o homem e o torna dig- no do nome de homem? Um aluno do colégio humanista te- ria respondido: a liberdade. O aluno republicano aprendeu a responder: o trabalho. O que é, ao contrario, um homem “indigno”, que prejudica a si mesmo e aos que o cercam, desonrando sua humanidade? E o tirano ou covarde, teria respondido um aluno dos jesuitas. E 0 bébado, responderia um estudante da escola primaria popular. Em vez de buscar seus exemplos nos grandes autores, como faria no ensino clissico, o mestre remetia os alunos & experiéncia comum. Dizer “vocés todos viram” evitava um longo discurso. O bé- bado, que “se torna semelhante a um bruto” e que se com- porta tao mal consigo mesmo quanto com aqueles que estao proximos, era o exemplo, ou melhor, o contra-exemplo per- feito para ilustrar a moral laica tanto no que se referia aos “deveres para consigo mesmo” quanto aos “deveres para com os outros” O aluno da escola laica, para saber se tinha se comporta- do bem ou mal, seguia entio o mesmo protocolo de exame de consciéncia utilizado por aquele que ia ao catecismo. No ensino religioso, um capitulo sobre os “deveres para com Deus” precedia o dos “deveres para consigo mesmo” e “para com 0s outros”. Esse capitulo s6 desapareceu dos textos ofi- ciais em 1923, mas se ausentou dos cadernos escolares mais cedo, nos anos 1900, testemunhando a defasagem temporal freqiente entre prescrigdes ¢ praticas, Encontramos em um caderno de um aluno de 12 anos de um vilarejo da Haute- Savoie em 1898: “LE nosso dever adorar Deus pela oragio. Uma boa oragio consiste na emogao produzida pelos belos espeticulos da natureza”, Esse impulso do coraglo evoca Rousseau, adepto da religilo natural, ¢ seu livro Le Vieaire Savoyard (1762), principalmente porque também trata de uma escola rural dessa regitio. Mas o mestre ditou, na frase seguin- te, “Trabalhar é rezar”, Ele wazi sim, os alunos da contem- plagio da natureza para o trabalho: o trabalho agricola para Digitalizado com CamScanner 28 ita nee DEI ho escolar para as crian¢as. Na escola, os deveres para com Deus se confundiam com os deveres para consigo mesmo ou para com os outros e seu desaparecimen- to nao mudou, na pritica, o ensino da moral. Por outro lado, o exame de consciéncia nao aparecia nos exames escolares e nao era objeto de nenhuma prova no certificado de conclu- sao dos estudos. As novas geragdes de mestres laicos seriam cada vez mais reticentes em fazer copiar as ligdes de moral ao lado das ligdes de histéria ¢ em fazer recitar regras de conduta como regris de gramiatica. Isso explica talvez o de- saparecimento progressivo desse ensino nos cadernos de alunos entre as duas guerras mundiais, bem antes da sua aboliglo nos programas apés 1968°. os pais e o traball Os trabalhos dos alunos como marca do desempenho escolar Uma segunda linha de investigagio tem interesse no de- sempenho escolar dos alunos. As primeiras fontes inventaria- das’ se interessaram pelos textos de exceléncia, por exemplo, aqueles que foram premiados no concurso geral, os textos de selegio para a escola politécnica, para a escola normal ou *0 desaparecimento das aulas de moral dos cademos no significa que elas nao estivessem mais presentes na sala de aula. Depois da guerra de 1914- 1918, 05 métodos ativos recomendavam que as questdes morais fossem atadas *concretamente", por ocasiio de situagdes reais: conflitos entre alu- mos | incidentes da vida escolar, acontecimentos da vida social, observagdes Pelas criangas, etc. Essa pedagogia da ‘moral ocasional” nto podia ser os a controlada. Outros professores mantinham uma “conversa” & dae lar, perpetuando antigo programa, que deixa sinais no didrio coplade cots 0 Nos cademos dos alunos. A excetio era a linha 2 Sf felizes", Suma be eid 3 caligrafia (‘o trabatho bem feito toma a3 peneat etc,), Essa pores agio nunca € perdida’, “quem muito ama, muito castiga Quando as cana oe im fitual sem herdeiros desaparece, definisivamente, * CHERVEL, Ans as esferogréticas expulsam as penas e 05 tinteiros. secondaire au en ¢t travaux écrits des éléves dans l'enseignement Uérielles et rectonten ie, URE source non exploitée: les enquétes minis também, do ae Histoire de Véducation, maio 1992, p. 13-38. et sidcle, Paris: Retz, oor Lenseignement du Francais du XVIP au Digitalizado com CamScanner Exarccio escritorecadernos de alunon refentes bre pratics detongadurayto 29 Para o exame de agregacio™. Trata-se ai de estudantes avanqa- dos em seus estudos e ja selecionados pela instituigo escolar. Os dois exemplos que vamos apresentar, a0 contririo, zem respeito a escritas comuns. Os primeiros deveres foram redigidos por jovens latinistas por volta de 1720 e os segun- dos testam a ortografia de alunos da escola primaria em 1873. Tradugées e versdées de jovens latinistas no século XVII Um acaso excepcional permitiu a Marie-Madeleine Com- pére encontrar 172 textos de jovens latinistas dos anos 1720, provenientes do colégio Louis-le-Grand em Paris: um profes- sor havia utilizado 0 verso em branco das folhas para fazer 0 rascunho de um manuscrito; por esse motivo, o material foi conservado. O que nos ensinam esses trabalhos de alunos do melhor colégio de Paris"? Trata-se de seis exercicios dife- rentes: cinco tradugdes de um texto em francés para o latim (duas em prosa e trés em verso) ¢ uma versio do latim para © francés. Esse desequilibrio reflete bem os objetivos peda- gogicos das aulas de Gramatica, no inicio do curso; a aqui: ¢ao das estruturas basicas que permitissem redigir discursos em latim. Os exercicios deveriam fixar 0 uso das declina- ges, das formas verbais, das construgdes sintaticas e, para os versos, as regras de divisio de silabas métricas. Os alu- nos a isso dedicavam a maior parte do seu tempo desde a idade de nove anos: cinco horas por dia em duas aulas, uma de manhi e outra a tarde. Cada aula era seguida de exercicios que focalizavam a leitura, a releitura, a aprendizagem de cor, a tra- dugio de trechos escolhidos ea redagio baseada na imitacao © concurso de agregacio di ao professor 0 titulo de agrigé e 0 direito de atuar nas escolas de Ensino Médio ¢ em certas faculdades (N.T.). 1. COMPERE, Marie Madeleine; JULIA, Dolores. Performances scolaires de colegiens sous "Ancien Régime. Etudes d’exercices latins rédigés au College Louis-le-Grand vers 1720. Paris: INRP, Publication de Ia Sorbon- ne, 1992. Digitalizado com CamScanner 30) pritea de tokura eer Hitérae atuallade -Anne-Marle Chartier lade, Um estudo detalhado dos textos desempenhos eram, em geral, bons; rabalho teve, entdo, seus frutos, de autores da Antigiiid permitiu constatar que os ‘0 esforgo empregado nesse U ‘Além dessas apreciagdes globais, os textos fornecem mui- tas outras informagdes sobre os procedimentos de trabalho. Os textos a serem passados para o latim foram redigidos pelos professores para exercitar pontos particulares de gramitica. Os erros cometidos mostram que os alunos escreveram os textos em prosa “de meméria”, enquanto que para compor hexassilabos bem divididos, eles consultaram 0 Gradus, 0 dicionario mais usado para a versificagao. A Unica versio do latim para o francés é de uma passagem de Tito Livio, mas 0 original foi simplificado e resumido pelo professor, de forma que os alunos nao tiveram muitas dificuldades para enten- der. Certos erros estranhos podem ser compreendidos quan- do sabemos que o texto em latim foi ditado e copiado pelos alunos em cadernos, e que alguns compreenderam mal, trans- formaram ou esqueceram certas palavras. Todos consulta- ram um diciondrio latim-francés usual, as vezes para entender o sentido literal, mas sobretudo para enriquecer seu léxico francés numa tradugdo em que contava menos a precisio do que a espontaneidade retérica do estilo. O professor apre- ciou os esforcos e as audécias (mesmo que nao estivessem corretas) de alguns, mais do que a tradugio literal prudente de outros. O espanto é maior quando se analisa a escrita do francés, catastréfica para um olhar contemporineo. Somente um tergo dos alunos dominava a ortografia da época € a sin- taxe de sua lingua. A pontuagao estava ausente, os agentos as maidsculas eram distribuidos aleatoriamente, sem que isso yeaa aL excessivamente aquele que corrigia. Apren- rita, s eamene pe Parecia, assim, ndo ajudar, sponuunes que'se diainguis = iranicte, O pequeno mimero de alunos oun epee se ponto se beneficiana, provavelmente, Preceptorado doméstico ou de aulas particulares. Dos seis exe; cxercicios, somente dois tinham sido integralmente corrigidos: a versao ¢ de exame de UMA Poesia que serv Digitalizado com CamScanner Exercicios escritos e cadernos de alunos: reflexes sobre priticas detongaduracao 31 passagem para a turma de nivel superior (0 que explica o cuidado dispensado a sua corregao). Dois outros deveres nao tinham nenhuma anotagao, o que leva a pensar que uma corre¢do oral coletiva podia ser suficiente. Para os outros trabalhos, os critérios de corregdo continuam enigmiticos, principalmente porque parecem ter sido corrigidos por duas pessoas. Segundo o regulamento, os melhores alunos deve- riam sublinhar os erros de seus colegas para aliviar o traba- lho do mestre: uma lista de tragos na parte baixa da pagina parece indicar o numero de erros cometidos e o valor que deveria ser descontado da nota final. O mestre releu, recapi- tulou os erros e colocou uma nota ou uma apreciagao, quase sempre abreviada: plac para placet (que em latim significa “est bom”, “agrada”), b ou bo para bom e para os trabalhos muito ruins, nao corrigidos, non potest legi (“nio se pode ler”, em latim). Mas num mundo em que o mestre via sua turma todos os dias, corrigia oralmente e recebia regular- mente os alunos em particular para conferir 0 trabalho de- les, a natureza elfptica das anotagdes ou a incoeréncia de certas corre¢des nado tinha muita importancia. Em contrapartida, o que nds vemos e que nenhum discur- so poderia nos ensinar é 0 investimento pessoal dos alunos em seu trabalho: muitos comegavam escrevendo uma invoca- G40 ou uma oragio religiosa, Os professores ensinavam a pra- ticar esse rito propiciatério antes de cada tarefa escolar”, mas nem todos os alunos o fizeram por escrito, o que indica que se tratava de um gesto espontineo, e nao de uma imposigio. A disposigio na pagina € pouco padronizada em relagio as normas atuais: cada aluno tinha uma grande margem de liber- dade para dispor as linhas na pagina, improvisar decoragdes com a pena, colocar ou nao sua assinatura ou o emblema de sua familia, Essas marcas de singularidade, autorizadas pela " Dai a pequena cruz que precedia a primeira letra dos alfabetos, chamada, Por essa razao, croix-de-par-Dieu (cruz de por Deus) ou “eruzinha’, para Jembrar ao aluno de fazer o sinal da cruz antes de comesar a leitura. Digitalizado com CamScanner 32 ravens daira nrc ntoucunade Ane are arr mostram que 0 exercicio nao era somente uma electual. As tarefas escolares exercitavam o zelo e a vontade tanto quanto a inteligéncia e a meméria. Os textos edificantes, nos quais os alunos trabalhavam, mistu- ravam cultura antiga € cultura orksta (uma das poesias é con- sagrada ao Bom Pastor). O nascimento da moral humanista que Grafton (1981) estudou, tinha se tornado, dois séculos mais tarde, o pao cotidiano da educagao destinada aos fi- Ihos das elites. instituicao, performance int A ortografia dos alunos do primdrio em 1873 e 1987 © corpus encontrado por André Chervel nao comporta apenas 170, mas 3114 textos de alunos. Durante todo 0 ano de 1873, por ocasido de suas visitas ao interior do pais, o inspetor geral'* Beuvain tinha o costume de dar um ditado e um problema de Aritmética para os alunos de doze a treze anos de todas as turmas que ele visitava. Corrigia imediata- mente esses exercicios, transferia os resultados para um re- lat6rio e enviava tudo ao Ministério da Educagao. Assim, ele podia testar o nivel dos alunos em grande escala, gragas a um instrumento de comparagio estavel, rapido e familiar a todos. Os resultados obtidos Ihe permitiam julgar as compe- téncias dos professores mas, na verdade, era a eficdcia da escola primdria, ao final do curso, que estava sendo avalia- da. Com a pesquisa de Beuvain, vemos aparecer uma “avalia- 40" no sentido moderno, destinada a informar o Ministro Sobre a situagAo do sistema escolar. Ditado e problema siio dos sxercicios que podem ser executados coletivamente ¢ forma padronizada e serem coi los objeti . CH Re André; MANESSE, Danidle. La Dictée. Les Frangais a 14 Lonbegrapbe. Paris: Calmann-Lévy, 1989. "Os is Fa Edvenagn Berals, que ocupam cargo ainda existente 0 Minisério ds exereem fargo tabalham diretamente sob as ordens do minsto ¢ 's de coordenagio avaliagio do sistema de ensino (N-7). Digitalizado com CamScanner Exercicios escritos © cadernos de alunos: reflextes sobre priticas de longaduracto 33 simplesmente descontando os erros. Pelos ditados, aquele que corrigia poderia igualmente julgar uma terceira_compe- é habilidade grafica do: por meio da qualida- de da escrita com a pena. Se essa avaliagio em grande escala foi possivel, é por- que, nessa época, o ditado tornara-se um exercicio habitual para aprender a ortografia francesa. Era ainda um exercicio recente, moderno, que substituira havia pouco tempo a c6- ia de textos. Com efeito, para se exercitar na escrita do fran- cés, os alunos que sabiam ler ¢ escrever copiavam trechos de livros ou recopiavam, sem cometer erros, textos em que havia, de propésito, muitos erros (“as cacografias"). As caco- grafias foram rapidamente julgadas perigosas pelas autori- dades, j4 que o principiante corria o risco de fixar uma ortografia incorreta. Desde os anos 1840, os editores publi- caram manuais para tornar esse trabalho de cépia mais efi- caz. Em vez de abrir ao acaso os livros disponiveis, os mestres dispunham de uma progressio: textos cada vez maiores e apresentando dificuldades progressivas. Cada aluno traba- Ihava s6, copiava no seu ritmo em diversos momentos do dia. 0 litado oral oletivo, por outro lado, praticado havia muito tempo nos colégios, era apenas um meio de dar rapi- damente a cada aluno a versio ou a tradugio latina que ele deveria trabalhar sozinho depois da aula (nao sem risco de erro, como vimos no colégio Louis-le-Grand). Adotando o dhado de un texto francs, escola izla deste nein Os mo, visando ao controle da corregdo ortogrifica, q ra wlavra_era soletrada em voz alta), Picava facil, entdo, contar os “erros’, dar a cada aluno uma nota e pedir para que recopiasse as palavras erradas qui tas vezes fossem necessarias. Para o pr fazia pare das provas do concurso de entrada para a escola normal ¢ para © cenificado de capacidade para o ensino (brevet) (N.T). | "A omografia se tornou, entio, um requisito da profissio, jA que © dlitado Digitalizado com CamScanner “4d pecan de iohorae evetachnra eating Anne-Marie Charer cera muito comodo: sua finalidade era clara, mobilizava a aten- gio geral, instalava um grande siléncio na sala, durava exa- tamente o mesmo tempo para todo mundo, os alunos Zorrigiam eles mesmos sob | ci ontrole_do_mestre ¢ a nota vinha imediatamente, Como se espantar com 0 fato de qué, apesar_de todas_as.criticas",-o-ditado-tenha_soby ev! todas as reformas pedagdgicas até o século XX? A tentagdo era grande, entio, de saber se, utilizando o mesmo exercicio, seria possivel comparar desempenhos de alunos um século depois. Em um pais como a Franga, onde todos se queixam da queda do nivel de aprendizagem dos alunos, o resultado da comparagao constituia uma sensivel questo politica. André Chervel ¢ Danitle Manesse (1989) di- taram, entdo, o mesmo texto a 3048 alunos de jdade equiva- lente. Eniretanto, criaram uma amosira representativa, segundo ©8 Critérios estatisticos contemporaneos. Nao era o caso de Beuvain: as escolas rurais de sala unica que escolarizavam, na época, metade dos alunos, representam somente 7% de sua amostra. Qual foi o resultado dessa experiéncia? Uma vez feitas as ponderacdes_que_possibilitaram _comparar_as_duas. populagées, a licdo € clara: os alunos do final do século XX ultrapassaram seus ancestrais. A \_diferenca_mais-espetacular se verifica entre os sexos. As meninas, que eram pot e- Fosas em. 1873 € muito inferiores. aos_meninos,_tornaram-se nitidamente superiores. Um certo ntimero de erros graves quase desapareceu (por exemplo, a mi segmentagio das Palavras, que tornava © texto incompreensivel). Em_cot Partida, as performances sio hoje mais aj is maus alunos (aqueles fi i 8 (3 's que fazem mais de 30 erros passaram de 3% a 1%), mas ha t nt ambém menos campedes de ortognilia: Sem cont a indelévers, fr oy dos “cinco erros = zero", que deixow lembrangas tuagag de apna intodur uma confusio entre exercicio de avalasto € sagem, obrigando © aluno a *inventar" a escrita de obtidos no ditade { * Por isso, cometer erros; os bons resultados Feddentemente do correspondem ao desempenho to nea Ou em redagdes, Digitalizado com CamScanner Enarcicios excritos @ cadermon de alunos: reflexdes sobre praticas delongadurayae 35 aqueles que nao cometem nenhum erro eram 10% ¢ nao 40 mais que 2% um século mais tarde. Hoje, os mestres e os bons alunos nao fazem disso uma questo de honra ¢ 0 tempo usado para fazer ditados nas salas de aula diminuiu consideravelmente.* Ao contrario, Beuvain pesquisa o momento em que 0 es- forgo dos mestres ¢ dos alunos estava fortemente mobiliza- do pela exceléncia ortogrifica. Através da ortografia, toda a cultura primdria era julgada. Ela foi, inclusive, tomada como exemplo a ser imitado pelos colégios de elite. Uma circular ministerial de 1847 dizia isso claramente: No momento em que a instrugio primaria faz penetrar a or tografia da lingua materna nas camadas mais modestas ds sociedade, seria aflitivo ver criangas de espirito cultivado con- tinuarem inferiores, quanto a isso, com relagio aos alunos de nossas turmas de pequenas cidades". Assim, a historia do ditado mostra que nao é somente 0 desempenho dos alunos que esta em questio. Se esse exer- cicio, apesar de vio modesto, se tornou_um ritual tio consa- grado, é ue ele manifesta _certa concep¢io da cultura eScrita, inicialmente tipica do ensino primario popular, mas que encontra tal sucesso social que ganha o ensino das elites. Por meio do ditado, o francés estava em vias de se tornar uma lingua “sagrada”, intocavel. A era do latim terminara. O res- peito a lingua nacional vai tomar impossivel, posteriormente, qualquer reforma da ortografia francesa. Géneros literarios e exercicios canéni & exercicios ene Como vimos em relagao aos deveres de latim ou ao dita- dof para que um exercicio possa ser adotado de forma durdvel 1 As avaliagdes nacionais realizadas entre 1990 ¢ 2000 mosiram que os desempenhos otogrificos tiveram uma tendéncia a diminuir, levemente mas de maneira regular, nesse nivel da escolaridade % Apud CHERVEL, André. Op. cit. p. 120. Digitalizado com CamScanner 36 Priticas de lelturae escrita: histérlae atualldade - Anne-Marte Chartier estivel e simples. Deve ser conveniente a todos os professo- res, principiantes ou tarimbados, e a todos os alunos, tanto aos melhores quanto Aqueles que apresentam os piores de- | sempenhos escolares. Os reformadores denunciaram conti- K nuamente o aspecto artificial, limitador e formal desses moldes | arbitririos, pré-construidos e que se tornaram, rapidamente, um fim em si mesmo”. Esses discursos criticos, entretanto, | nao tiraram a confianca dos professores no exercicio formal. | Para eles, o bom exercicio é aquele que combina, ao mesmo tempo, um quadro fixo, comum, reiteravel e uma “margem de jogo”. Cada aluno pode, assim, manifestar suas forcas e suas fraquezas, de forma individual e objetivada; o professor nao | tera dificuldades em ser justo em sua apreciacao, e o aluno ceitar, de bom grado, o seu veredito. ( na escola é preciso que ele tenha um esquema de agiio breve, Essa questo da eqitidade das avaliagdes (que nao cons- titufa, ainda, uma obsessao dos professores do Louis-le- Grand) se tornava crucial quando se tratava de selecionar candidatos para um concurso™. Instaurando provas idénti- cas, escritas, corrigidas anonimamente, a instituicdo esco- lar mostrava sua adesio aos valores do Iluminismo, fundados no reconhecimento dos talentos, e nao na nobre- za do nascimento. Essa Ppratica, instituida desde a monar- quia para recrutar no exército os oficiais “de elite” (artilharia, engenharia), passou a ser generalizada pela Revolugdo Fran- cesa. Essa forma de recrutar o pessoal a servico do Estado queria romper com a priitica das cartas de recomendagio, ee ae ees "" Tratando-se do ditado das anilises, as autoridades ministeriais rapic- mente estigmatizaram seu abuso. A frase de Ferry *Fagamsnos homens, mio gramaticos" foi regularmente citada pelos inspetores, bem antes que Freinet langasse seus ataques contra a *escolistica” escolar que assujeitava 0% Professores 40 manual © habituava os alunos a executar docilmente a tarefas sem compreender sua finaliclade. A respeito dessa questio em escala européia, ver, coordenado por Don Tiave Julia, o niimero especial de Paedagogica bistorica, Aux sources de Ja compétence professionnelle. eri 5 socteut Criteres scolaires et classements sociaux dans les carriores intellectuelles on Europe XVIt-XIX sidcle. 199A, \- Digitalizado com CamScanner ‘cadernos de alunos: reflexes sobre priticas de longaduragso 37 que favorecia os protetores e as redes de relagio mais do que o valor pessoal dos individuos™. As conseqiiéncias disso para a escola s6 apareceram bem mais tarde, mas toda ins- tituigdo escolar foi, pouco a pouco, polarizada pelos trei- namentos dos candidatos para as futuras provas. As provas do concurso ou do exame entraram no cotidiano das tur- mas e se tornaram exercicios escolares. Entretanto, as exi- géncias formais da instituigao sobre a competéncia intelectual se misturaram outras expectativas, morais, ret6ricas, estéti- cas, de tal forma que se tornou dificil separar forma e con- tetido. Quais eram as normas da instituic&o escolar quando se tratava de julgar os textos redigidos pelos alunos? Os critérios nado poderiam ser objetivados tao facilmente para as tradugées de latim ou para os ditados. E 0 que se pode ilustrar com dois exemplos: 0 “discurso francés” solicitado aos futuros professores em 1826 e a “redacio” para os alu- nos do primdrio entre 1880 e 1990. Os textos dos futuros professores no concurso de 1826 “A verdadeira coragem nio consiste nem em dar a morte nem em provocé-la sem necessidade, mas em afront4-la sem medo e em recebé-la sem fraqueza quando o dever 0 orde- na”. Esse foi o tema desenvolvido (em trés horas) em 1826, pelos 58 candidatos no concurso para a Escola Normal Supe- rior. Esse tipo de exercicio, inspirado no discurso latino, era também chamado de “desenvolvimento francés”, j que se tratava de desenvolver uma argumentagio. Era solicitado a todos os candidatos, quer se destinassem as letras ou as 2 BELHOSTE, Bruno. “La préparation aux grandes écoles scientifiques au XIX* gidcle: établissements publics et institutions privées". Histoire de Véducation, 90, mai 2001, p. 101-130. 2 ALBERTINI, Pierre. “Le ‘développement frangais' au concours de I'6cole prépa- aloire en 1826", Histoire de l'éducation, Travaux d’élives. Pour une bistoire ides performances scolaires et de leur évaluation, 1720-1830, p. 135-154 Digitalizado com CamScanner 38. Praticas de leiturae escrita: histéria e atualidade - Anne-Marie Chartier ciéncias. Nesse caso preciso, o tema dado obrigava, ainda, a tomar posi¢ao a respeito de uma questao moral bastante gra- ve. Explicitando 0 que é a “verdadeira coragem”, 0 candida- to trataria forcosamente da moral da Antiguidade (que faz 0 elogio do suicidio), da moral aristocratica (que faz 0 elogio do duelo), da moral crista (que condena um e outro, mas faz co elogio do martirio), enquanto a morte pelas armas, a servi- ¢o do rei ou da patria, era aceita por todos. Esse tema fazia parte dos “lugares comuns” que 0 candidato deveria argu- mentar por meio de exemplos mais do que discutir filosofi- camente. Esperava-se dele um trecho de eloqiiéncia préximo do sermao religioso que terminaria, segundo P. Albertini, por condenar “a ferocidade guerreira (liberagao de instintos bestiais), a temeridade militar (origem dos desastres), 0 due- lo (infragao das leis reais e divinas)”, “o suicidio (covardia pessoal, falta civica, crime religioso)” para exaltar a morte serena do sabio. Como os candidatos desenvolveram esse tema? Como o seu desempenho foi julgado pelo examinador? O anonimato ainda nfo era uma pratica comum nos exames, jA que quase todos os candidatos assinaram seus trabalhos. Apenas 0 rei- tor de Nimes exigiu dos candidatos a assinatura no alto e a direita antes de dobrar e colar 0 canto da pagina. Os textos escritos pelos candidatos eram curtos (nunca mais do que quatro paginas), o que nfo significa que nao apresentassem erros de ortografia ou de sintaxe e que nfo tivessem uma pon- tuag4o aleatéria. Como vimos, a norma escolar colocava suas exigéncias em outros aspectos. A cultura de referéncia do candidato poderia ser julgada pelos herdis ou anti-herdis que ele citava para apoiar seus argumentos, baseando-se em tex- tos traduzidos ¢ lidos; as figuras que serviam de contraponto cram, geralmente, tiradas da histéria romana; a Franca era mais importante do que Roma, a Grécia e a Biblia quando se trata- va de dar modelos de coragem (Turenne € o heréi favorito, ele que, por lealdade a seu rei, se recusou a bater-se em duelo para Se juntar ao seu exército). Os candidatos se mantiveram Digitalizado com CamScanner Exercciosescritos¢cadernos de alunos reflexes sobre priticas de ongaturacso, 39 politicamente prudentes, nunca evocando Napoleao, nem de forma positiva nem negativa, e raros foram aqueles que €x- primiram explicitamente sua hostilidade pela Revolugio. Quem corrigiu foi sensfvel 4 forma pela qual cada um sou- be se servir das figuras de ret6rica, metdforas (“sede de san- gue” por “desejo de matar”), metonimias (“o trono e os ferros” para designar o poder e a escravidao) e sinédoques (“os Tu- renne” e “os Cicero” para falar de guerreiros ¢ de oradores). Exclamagoes, interrogagdes, evocagoes e invocagdes visavam despertar no auditor/leitor todo um repertério de “movimen- tos da alma” (medo, dor, indignagio, despeito, célera). O exa- gero e o patético eram, entretanto, um risco constante para essa geragdo que crescera com 0 Romantismo, que tinha difi- culdade em encontrar o caminho estreito entre a secura € 0 excesso. Nessa época, os candidatos eram mais freqiientemente do interior do que parisienses, dignos filhos de origem bur- guesa, geralmente catélica e monarquista. Os trabalhos nao tém nota, mas foram classificados por ordem de mérito: 38 foram julgados ruins ou muito ruins, 17 mediocres e 3 bons. No trabalho classificado como o melhor, quem corrigit: escre- veu “sem mau gosto, sem énfase”. A sobriedade era questo de tato, mas também de treinamento: os candidatos vindos de colégios parisienses, mais treinados, estavam quase certos de serem aceitos, enquanto que, para os outros, principalmente para os que vinham de colégios menores, 0 sucesso se tor- nava mais improvavel. E verdade que, nessa época, a Escola Normal Superior nao era, ainda, 0 pdlo de atrag4o que se tornaria depois de 1830, durante a Monarquia de Julho* A existéncia do discurso francés, ao lado de um discurso latino, marcou a entrada da arte orat6ria escolar na moderni- dade, Foi em francés, e nao mais apenas em latim, que a escola passou a exercitar a juventude na arte de escrever textos. A histéria de Atenas e de Roma nao era mais suficien- te: foi a historia da Franga que se tornou a fonte, mesmo que i agi a ® Proclamada em 1830, a Monarquia de Julho sucedeu a Restaurago (N.R.) Digitalizado com CamScanner le - Anne-Marie Chartier AO Praticas de telturae excrita: histériae atualidade - At fosse apenas para retomar as continuidades rompidas por dez anos de Revolugao Francesa. A pratica do discurso fran- cés podia, assim, fornecer modelos de eloqvéncia profana cuja utilidade ultrapassava 0 tribunal ou a Camara, em um tempo em que toda reuniao de notdveis exigia uma prosa oratéria®’, Novas geracoes de professores apaixonados pe- las “belas letras” iriam desvalorizar esses objetivos retéri- cos e afirmar que o papel dos mestres nao era tratar as obras primas como simples pretextos para a escrita de alu- nos. O que ganhariam os discursos das reunides de agri- cultores ou de banquetes politicos a macaquear Cicero ou Boileau? Lanson e Péguy® concordavam pelo menos nesse ponto: o patrim6nio da Antigitidade ou francés era tao ad- mirdvel que seu conhecimento era um fim em si; a leitura literdria formava mais a juventude (moralmente, intelectual- mente, esteticamente) do que a retérica. O discurso francés persistiria nas provas do concurso até 1904 mas, nessa data, os trabalhos entregues pelos candidatos abandonaram a his- t6ria pela literatura: os herdis citados, mesmo quando eram personagens hist6ricos (como Augusto, Nero ou Esther) eram apenas figuras literdrias*, ficcSes da escrita. Sob 0 mesmo nome de “discurso”, j4 nao se tratava do mesmo exercicio; um outro cénone cultural havia imposto sua marca. O discur- so francés desapareceu dos exames e concursos, mas j4 ha- via desaparecido ha muito tempo das praticas de sala de aula. Essa morte oficial consolidou na instituigao a vitéria do exercicio concorrente: a dissertacao literdria. as ™* DOUAY-SOUBLIN, Francoise. “Les recueils de discours frangais pour Ia classe de rhétorique'. Histoire de l'éducation, les Humanités classiques. 74, mai 1997, p, 153-184, * Gustave Lanson (1854-1934) foi professor de Hist6ria Literdria na Sorbon- tat autor da primeira histéria da literatura da Franga, Charles Péguy 73-1914) foi escritor, poeta, ensaista e critico ferrenho de Lanson. Morreu no front da Primeisa Guerra Mundial. (N-T). s lure au lycée: invention d'une discipline (1880- 1925)", Recherches textuelles, 3, Metz, 1998, CHERVEL, Ande La com- ) position frangaise au XIX* sidcle, Paris: Vuibert-INRP, 1999 * JEY, Martine. “La linérat i Digitalizado com CamScanner Exerciclos escritose clos ‘cadernos de alunos: reflextes sobre priticas de longadurac3o. 41 _Evolugdo da redacao entre © primario e o secunddrio (1880-1990) Foi apenas em torno dos anos 1850 que as autoridades es- colares propuseram com prudéncia um novo exercicio aos alu- nos do primdrio que nao tinham feito nem latim nem retérica: eles também deveriam aprender a compor textos.” Os exercicios thamados de “composigao francesa” ou de “redagao de estilo” instalaram finalmente na escola republicana sob o nome de Obrigatéria nas provas escritas do certificado de nal de estudos primarios, ao lado do dita aritmética, ela era um testemunho das novas ambigées da ins- irugao priméria sob o regime republicano. Um século mais tar- de, com as reformas dos anos de 1970, o exercicio passou a se intitular “expresso escrita” e, depois, “produgao de texto”. Mas de que atividade efetivamente se trata, sob esses diferentes nomes? Para dar uma idéia da evolugao das praticas, Brigitte Dancel selecionou, no interior de um grande corpus, 90 textos de alunos de 12 e 13 anos®. Ela indicou as caracteristicas mate- tiais do trabalho, reproduziu os erros de ortografia e as altera- gdes feitas pelo aluno, a corregao € a nota e a apreciagao de quem corrigiu. As mais antigas foram escritas em cademos, como por exemplo: “caderno em pequeno formato, linhas simples de 8 mm, escrita inclinada feita com pena, tinta roxa” para uma redacaio de 1911 contra o alcoolismo (“Explique estas palavras de Lamenais: “O bébado bebe as lagrimas, o sangue, a vida de sua mulher e de seus filhos”). Cingiienta anos mais tarde, todas as criangas de 12-13 anos entravam no gindsio e entregavam sua “composigio francesa’ a um professor de Literatura nZio maisem um caderno, mas em folhas soltas. Assim, em 1989, “Folha du- pla, formato grande, escrita reta com caneta esferogrifica azul, 7 CHARTIER, Anne-Marie; HEBRARD, Jean. “Lire pour écrire & I'école pri- aire? Ltinvention de In composition frangaise au XIX* sigele*. Les inuerac- tions lecture-écriture, Actes dt colloque Théodile-Grel, réunis par Yves Reuter, Berne: Peter Lang, 1994, p. 23-90. rédactions. Ecrits d'écotiers et de collégiens. coll, Argos Références, 2001, ® DANCEL, Brigit. Un sidcle de Grenoble; CRDP de Grenoble, Digitalizado com CamScanner Chartier 42. Priticas de leiturae escrita: histériae atualidade - Anne-Marie Correcao do professor em vermelho, na meee? 9 tema era: “© que evoca para vocé a palavra ‘Africa?” A mengio geral foi “aceitivel”, mas detalhada em varios aspectos Cimaginagio: C; pesquisa: entre B e CG; reflexdo: C; vocabulério e gramitica: en- tre Ce D; plano: B; apresentagio: entre C e D"). O trabalho era assinado pelos pais depois da corregao. Essas siglas abrevia- das, tao enigmaticas para quem nao é um ex-aluno, mostram de que modo as praticas escolares misturam sempre forma e fun- do, apresentacao e contetido. Mas 0 que permite datar um texto é, inicialmente, sua apa- réncia: pena e tinta roxa, caneta azul, “canetinha hidrocor” preta. Para ser adotado, alids, nao é suficiente que um instru- mento esteja disponivel. A caneta esferografica, utilizada na Franga desde o pés-guerra, entrou no estojo dos alunos ape- nas em 1968. Dai por diante, os professores nao puderam mais ensinar a escrita da mesma forma: nao havia mais mata- borrao nem tinteiro sobre as carteiras, nio havia mais exer- cicios de manutengio para que a pena nao espirrasse tinta, no havia mais tragos espessos ou finos. A esferogrifica mudou ao mesmo tempo os gestos grificos € o imagindrio social das praticas de escrita. Um outro trago se refere as rasuras: o aluno deve riscar, colocar 0 erro entre parénteses, apagar, utilizar um corretivo? Cada época produziu habitos dominantes. A exposigao da escrita de “primeiro impulso” € hoje uma pratica licita, ao passo que a escrita em dois tem- Pos (rascunho ¢ passar a limpo depois da corregao) era ine- vitavel até 1950. O que diziam esses textos? Brigitte Dancel selecionou-os de acordo com trés entradas tematicas: “o aluno na escola”, “o ado- lescente na vida cotidiana” e “o adolescente no mundo”. Para cada tema, ha seis trabalhos, Assim, para cada um dos periodos recortados, entre 1880 e 1990, ha 18 trabalhos, com descricdes de alunos e de sala de aula, festa familia férias etc., que formam um fundo de lu que no se desgastam. Na verdade, as ir ou local, narrativas de gares comuns escolares redag6es escolares so Digitalizado com CamScanner Exercicios escritos e cadernos de alunos: reflexes sobre priticas de longaduracso 43. escritos “semi-publicos”. Elas devem evitar questionar as famf- lias e expor condutas ou opinides que nao condizem com a neutralidade da instituigao: nem religiao, nem politica, nem testemunhos muito pessoais sobre a vida ¢ os costumes. Por outro lado, ha um reservatério inesgotdvel de descrigdes e narrativas, na vida da escola (a sala de aula, os colegas, 0 recreio, as emogdes dos exames) e na vida cotidiana, por meio das estagdes e dos dias (titulos como: “O outono”, “A colheita de magis”, “As vitrines de Natal”, “Nevou”, “Os passaros”, “A viagem de trem”). Todos podem ter idéias sobre o que escre- ver rememorando as leituras feitas em sala ou baseando-se em sua prépria experiéncia. Quando se trata do olhar sobre 0 mundo, a escola assume classicamente o papel fundamental na glorificagao do progresso, mas com o passar do século, podemos ver a substituigdo dos sinais anunciadores da mo- dernidade: em 1896, Robert se encantou com os trens “que nos levam em alguns dias de Paris a Marseille”. Em 1930, Denise péde observar diretamente um aviao que sobrevoou a cidade, mas concluiu: “Eu nao gostaria de viajar de aviao”. Nos anos 1950, André estava encantado com o aparelho de radio da familia, que “nos instrui através de numerosos jogos” e “nos diverte com suas cangdes e pecas de teatro”. Em 1967, as invengdes recentes que Carmen preferia eram a méquina de lavar e a panela de pressao, que “revolucionaram a vida” das mulheres. Se seguimos 0 corpus apresentado, o género evolui de uma retérica imposta e fortemente normativa, antes de 1914 (retrato do bom aluno, elogio do campo, beneficios do pro- gresso, homenagem 4s mulheres de soldados), a uma ex- pressio que solicita cada vez mais a experiéncia pessoal, a partir dos anos 20 (meus colegas, 0 avido, a festa da cidade), e depois a temas que pedem a expressiio de escolhas e de opinides pessoais (Qual é o seu lazer preferido? O que evo- ca, para vocé, a palavra “Africa?"), Os alunos sabem que gos- tar de ler “vale mais” do que ver televisto, mas como € que Digitalizado com CamScanner 4d. pritca deers onrta: hstérineatulldade- Anne-Marie Charlo, eles aprendem essas normas ensiay asi valores legitimos quando elas nao sio mais ensinadas diretamente? Os textos. modelo, que eram considerados como uma ajuda eficaz no inicio do século, passam a ser percebidos como bitolas for- mais e desaparecem progressivamente. jPassou-se, assim, de uma escrita escolar imitada das leituras (para reescrever og textos aprendidos) a uma escrita apoiada em leituras cruzadas com a experiéncia (para dar inspirag4o), antes de chegar a uma escrita expressiva apoiada em experiéncias singulares, mas sempre tendo como referéncia um horizonte de valores partilhados ou supostos como tal.|Foi nesse momento que a escrita coletiva, resultado de trabalhos em grupo, ultrapassou as turmas coletivas e os jornais escolares do movimento Frei- net para entrar no ensino fundamental (dos primeiros aos l- timos anos), ao lado de antigos modelos de “produgio escrita”. Dessa forma, analisando os escritos dos alunos numa lon- ga duracao, a interrogacio se desloca: € inttil perguntar-se se o nivel baixa ou sobe, j4 que mudam, ao mesmo tempo, as finalidades e as formas do exercicio, as normas pedagégi- cas e os critérios de avaliac4o. Por outro lado, o leitor perce- be retrospectivamente como a escola leva sempre os alunos a selecionar, hierarquizar e, logo, a reconstruir a realidade que o cerca escrevendo sobre ela js temas sao de uma esta- bilidade impressionante, mas as normas escolares (morais € éticas) evoluem e modificam o olhar sobre o mundo, deixan- do aos alunos mais “liberdade de expressio”.fOs professo- Fes, 408 poucos, desejam menos obediéncia conformista aos valores da escola véem na “sinceridade” um voto de confian- £4 na instituigto, A escola acompanhou, assim, a evolugto das classes médias, que adotaram a partir dos anos do pés- guerra um modelo de educagio mais liberal e menos autori- ‘rio, Se foi a midia que se encarregou de difundir esse fee 4 escola desempenhou um papel importante na sus egitima 2, crevendo, os alu 1 ot ro junto as camadas populares. 108 deveriam se g r s cons ea “verlam se apropriar, de forma mais ou menos cons ' €08 villores ~ da escola puiblica ou de seus professores Digitalizado com CamScanner Exercicios excritos « cadernos de akinos relexBes sobrepriticas de ongaduragto 45 Os cadernos como dispositivos de escrita normatizada As trés linhas de investigagao que acabamos de ilustrar brevemente se interessam prioritariamente pelas produgdes dos alunos. De modo geral, pouco importa, para essas pes- quisas, se os trabalhos foram escritos em folhas soltas (como era habito no ensino secundario desde o Antigo Regime ou nas provas dos exames), em cadernos (como no ensino pri- mario) ou mesmo nas margens dos livros impressos (como € © caso do exemplo universitério analisado por A. Grafton). Esses dados fazem parte das caracteristicas das fontes docu- mentais, mas permanecem independentes dos contetidos ana- | lisados. Entretanto, quem reflete sobre as aprendizagens, .,°°%yS| escolares nao pode absiraas rotlmente dis condicoes “ma yw" térais” de sua realizacio, em particular a dos suportes da es- “~ | crita. Os historiadores nao Iéem os textos da mesma forma quando levam em conta os objetos a serem lidos: rolo de pa- piro, que se sustenta em pé, com as duas mios; in-folio colo- cado sobre uma mesa, onde o leitor inscreve seus comentirios; pequeno livro de bolso que se pode carregar; texto que desfi- la numa tela. Sente-se 0 quanto esses suportes de leitura cons- tituem modos de leitura heterogéneos®: texto proferido em | pé, em voz alta, ou comentado silenciosamente, ou relido/ redito de memoria, ou consultado rapidamente em um banco. de dados... Mesmo quando se trata de um mesmo salmo, de Profundis, por exemplo™, trata-se ainda do “mesmo” texto? * CAVALLO, Gugliemo; CHARTIER, Roger (Dir). Histoire de la lecture dans Te monde occidental. Paris: Seuil, 1997. Tradugto brasileira: Historia da leitura no mundo ocidental, Sto Paulo: Atica, 1999. CHARTIER, Roger. Au bord de la falaise. Paris: Albin Michel, 1998. » Quando se aprende a ler em abecedirios cristios (CroixdeparDiew na Franga, Crisscross na Inglaterra, Salterio na Malia), encontram-se depois do alfabeto © uma lista de silabas, as oragdes (Pater, dev, Credo) © os sete Salmos da Peniténcia - 6, 31, 37, 50, 101, 129, 142 ~ ditos nos offcios dos mores. Para geragbes, esses salmos foram, entio, leturas de aprenclizagem. Digitalizado com CamScanner 4G. praticas de lolturae escrita: historia @ atualldade “Anne-Marie Chartlor ‘Tratando-se de cadernos escolares®, € Possivel também deslocar o olhar dos contetidos escolares manuscritos para ° seu suporte, levando em consideragao ndo apenas os conted- dos inscritos, mas também sua materialidade editorial. Os su- portes de escrita definem atitudes, tanto na recep¢ao quanto SE ee Se nike eigen 5a sean ZAM 05 sos J possiveis que, no caso dos escritos escolares, con 1 * ‘questionamos a respeito da adogdo dos “cadernos do dia” na escola primdria na época de Jules Ferry”. No momento em que um dispositivo de trabalho se instala ou perde a fc s siveis: efeitos pragmiaticos, relacionados aq_desenvalvimento ‘€ do produto do trabalho do aluno (a conservacao de um folhia Solta); efeitos pedagopicos, pelo fato dé que um escrito Plas esiratégias (correcta individual ou coletiva, com ou sem hola, duranté ou apés o tempo da aula®) e, enfim, efeitos * Para uma apresentagao geral sobre o tema, ver DANCEL, Brigitte. “Le cahier d'éléve, approche historique". Reperes, n. 22, Les Outils d’enseignement du Francais, coordenado por Sylvie Plane et Bernard Schneuwly, INRP, 2000, p, 121-134, P. Albertini apresentou detalhes do Seu repertério de fontes em L'enseignement classique & travers les manus- crits des éloves, 1640-1940, Paris INRP, 1986, * Politico francés. Durante © periodo em que foi Ministro da Instrusio Pablica, foram publicadas as leis que tornaram © ensino gratuito (1881) € ‘obrigatério (1882) (N.T,), » 'ss0 46 s¢ tornou habitual no primitio durante o Segundo Império (1852- ae quando 08 alunos aprendiam a ler e escrever ao mesmo tempo, € a aos eeramenss: Podia-se, descle entdo, fazer com que os alunos enquante caret (rabalhasser paralelamente, alguns escutando a liste SV Permit. ren nan OcuPados em uma tarefa de escrita. Esse dispo~ samiine sue Progressivamente 4 dispensa dos monitores, necessirios que era preciso v Vidal simultaneamente, varias atividades onais silabario para os indlniony corrigir imediatamente (leitura oralizada do dia para 08 outros), en caer reetasde das diversas ligdes ou leitunt do em contrapartica, isso obrigava o professor a prepart- 8288 © comecdes depois da ai exerci la, o que transformay: velmente MAVA consiceravelmente © icio da. profissa: FMAvA consicleravelm« Digitalizado com CamScanner Exercicios escritos e cadernos ‘alunos: reflexes sobre praticas de longa duracao 47 cognitivos: os alunos trabalham “com”. io_nos” ler- 108, folhas eu: icharios, porque esses sao sistemas de classifi- cagao conceitual materializados. Eles operam classificagoes “em ato”, na medida em que realizam tarefas cotidianas ique- rtografia, Aritmética, Geografia). Mas como se instalou, na escola primdaria, o habito de escrever nos cadernos adotando esses principios complexos de organizacao e de classificagao? O “caderno do dia” como memoria do trabalho escolar Nas salas de aula do curso primario no inicio do sé XIX, os alunos nao tinham caderno. Nas pequenas turmas de alfabetizagao, as Unicas frequentadas pela maioria da populacio, os alunos liam em circulo, diante do quadro de letras e de silabas, ou assentados em bancos, no livreto que colocavam sobre os joelhos. Os alunos mais velhos que aprendiam a escrever trabalhavam no “banco dos escritores”. Eram os tnicos assentados a uma grande mesa. Eles escreviam, em folhas soltas ou finos folhetos costurados juntos*, os modelos de letras ou de palavras dados pelo professor para que reproduzissem. Em seguida vinham as frases que eram chamadas de “exemplos” - provérbios, maximas morais ou religiosas. Todo esse material era pendurado num fio que atravessava a mesa dos “escritores” a altura de seus olhos. Quando e como apareceram os cadernos no sentido mo- derno do termo? Na época do Antigo Regime, encontramos, % Na Conduite des écoles ebrétiennes (Conduta das escolas cristAs), Jean- Baptiste de La Salle escreve ‘nao se deve aceltar que nenhum aluno traga papel que nao esteja costurado nem dobraclo num quadrado, ¢ preciso que os folhctos sejam costurados em toda sua altura." (IV, 2, 5). Os alunos deviam ter sempre seis folhetos de papel branco de reserva na escola (IV, 2, 2). 08 “cadernos’ (a palavra nao ¢ utilizada) eram entto muito finos, como os *eadernos” dos impressores antes ca encademagio ¢ ato lem bram em nada os cadernos das papelarias modernas Digitalizado com CamScanner 48 prisicas de eiturne oscrita htérlae atualldade- Anne-Marle Chartier no uso doméstico ¢ profissional, “livros de raz0", “livros de contas”, e nas oficinas dos mestres escritores-aritméticoss, ‘os alunos compunham, ao longo dos dias, um caderno que levariam com eles ao final do periodo. Ele serviria de mode. lo para as caligrafias “de gala", para a disposiczio de uma carta na pagina, e as formulas utilizadas na correspondén- cia, para as técnicas operatérias ou a manutengao dos livros de contas. Esse caderno era freqiientemente constituido de folhetos reunidos e encadernados. Isso 6 era feito quando a mao bem treinada ja tinha sido capaz de tracar sem erro as escritas. A formagdo estava, ent4o, terminada, e as Paginas da “obra-prima” artesanal eram numeradas A mao*, Mas tam- bém era possivel pedir ao encadernador para confeccionar, previamente, um “livro branco” que serviria para as ativida. des pessoais ou profissionais. Nas turmas das tltimas séries, quando o professor entregava ao aluno a sua Produgio, rea- lizada em folha solta, o aluno recopiava, cuidadosamente, a corre¢ao em latim num caderno, diante do texto francés dita- do na véspera pelo professor. Um caderno dé latim de 1811 forconservado na Biblioteca do INRP”: seu proprietario o Paginou e cuidadosamente fez um inventdrio dos textos tra- duzidos, nas duas Gltimas paginas — esse trabalho de recapi- tulac4o foi feito posteriormente, sugerindo que o proprietirio queria consult4-lo facilmente (na continuagio de sua escola- ridade?). Como ficou com muitas paginas em branco, 0 ¢a- demo foi novamente utilizado em 1836 por um outro aluno, * HEBRARD, Jean. “Des France entre XVit Rome. Malie et Médi écritures exemplaires: Part du mattre-éerivain €n et XVIII" sidcles". Mélanges de licote Frangatse a Mterrannée, 107, 2, 1995, p, 473-523 sd © uso © @ composigto material dos cademos, ver HEBRARD, tel Snir un journal, L’écriture personnelle et ses su *. Actes du Collo- i pports’, Ac Hsp, Rcit de vie et Médias*, Paris X-Nanterre, Gablers IRTM, 20, 1999 P ea 2 caderno no qual Pere Hardouin escrevia suas sibias controversis seat a SomPosio de um dnico lado, que era o verso das folhas i fol estudann °° deveres de latim pelos alunos do Liceu Louis-le-Grars 'udado por Marie-Madeleine Compare © Dolores Julia (ver not | * Cédice 1R 158 609, Ele foi escanea 0 Service de Hissria-da Educagaos MEMO © Pode ser consultado no Digitalizado com CamScanner | Exerciclos escritos « cadernos de alunos: reflexdes sobre priticas de longaduracio 49 sem dtivida da mesma familia, mas como caderno de rascu- nho para os deveres de casa. O preceptor que se ocupava do jovem escrevia no caderno, dia apés dia, o programa de tra- balho que seu aluno deveria fazer antes e depois da escola. Os exercicios do aluno (em latim e também em grego) mos- tram numerosos sinais de “arrependimento”, rabiscos e cor- regdes. Eles esto redigidos tanto com pena de ganso como a lépis. Essa retomada de um caderno inacabado para outros fins® é bem conhecida nos meios populares (cadernos esco- lares se transformando em Albuns com letras de musica, em cadernos de receitas ou ainda em rascunho de cartas). Tal reutilizagio existia também nos meios privilegiados, até o momento em que a produgio industrial fez do caderno um objeto corrente e barato, facil de ser encontrado no comér- cio. Entretanto, o interesse_desse documento o mesmo suporte, duas faces da atividade escolar: aquela que tem por modelo 0 livro e uma disposi¢ao perfeita na pagina (primeiro uso em 1811) € aquela de rascunho do trabalho, due westemunh_ os enstios <5 etros deems esata “de pameiro,impu so" para a aprendizagem em curso (a reutiliza- sao em 1836). E entre esses dois modelos, 0 livro ¢ o rascu- nho®, que vai sé situar 0 “caderno do dia” da escola primaria. Os cadernos entraram, pouco a pouco, na escola primd- ria quando os mestres comegaram a _ensinar “os elem« da lingua francesa”, colocados no programa em 18 inventados, entio, como vimos, os exercicios mjugagao, de andlise gramatical das palavras. Em Ari ética, * Dominique Blanc estudou as priticas atuais de escrita privada de adoles- centes em seus cademos de textos: “Correspondances. La raison graphi- que de quelques lycéennes’. Lcritures ordinaires sob a directo de Daniel Fabre, Paris, Bibliotheque publique d'information (Centre Georges Pom pidou) et P.O.L., 1993, p. 95-115. ” Para as escritas “de primeiro impulso” (projets de carta ow de memérias, anotagao de tarifas, célculos escritos) ov de treinamento (inhas com letras, cOplas de palavras), « ardésia tomou lugar cas tabuinhas de cera, utilizadas na Antigdidade, e depois das tabuinhas apagivels (writting tables, libretes de memoria), cobenas de resina, utilizadas até os séculos XVI € XVIL ro) Digitalizado com CamScanner 150 pritias de eturao evcria:histria e ntualidade - Anne-Marie Chartier os exercicios de cdlculo (operagdes em linha ou em coluna) ea resolugio de problemas encontraram ent&o uma disposi- gio na pégina progressivamente normalizada: sob o texto tecopiado do problema, os alunos colocavam as operagdes ea formulagao da solugio. Nas turmas dos menores, os alu- nos faziam suas primeiras tentativas nas ardésias (que tinham a grande vantagem de ser colocadas nos joelhos e poder ser apagadas). Os principiantes logo iriam, eles também, ter aces- so aos cadernos, quando seu prego baixou de forma espeta- cular, com a producio industrial do papel de celulose. Nesse momento, também se expandiu o uso da pena metilica, mui- to mais resistente e facil de se utilizar do que a pena de gan- so. Os alunos podiam, entio, utilizar a pena desde o curso elementar. O Museu da Educagao de Rouen® conservou uma bela colegao de cadernos de escrita do Segundo Império"; em paginas e paginas os alunos se exercitavam em reproduzir in- definidamente os mesmos modelos. Nessa época, mudou o mobilidrio escolar: os professores exigiam que todos os alu- nos tivessem, a partir dai, uma carteira pessoal, com um tintei- ro € um espaco no qual pudessem colocar seu material escolar, quer dizer, livros e cadernos. A escola primaria parecia, entdo, se engajar na via traga- da pelas escolas secundarias, que atribuem um cadern: cada tipo de exercicio, quer dizer, para cada_matéria, Um inspetor escreveu em 1868: Em grande ndmero de escolas, para ndo dizer em todas, oS professor 5 © professors tém o hibito de colocar nas mos dos alunos tantos cadernos quanto o niimero de exercicios que Vigorou de 1852 ct japoledio Wl, cae, ee 4 1870, wot © governs de Napole “Cha aes PRANCILION ns dadas & enquete feita por Rowland em 1861. JACQUET: _ |, Frangois, “ e, ene ton, 1999, 9 gale, tildes avant la république, PU du Sere Digitalizado com CamScanner Exercicios escritos ¢ cadernos de alunos: reflexes sobre praticas de longaduragao 5] wed go A a (| diferentes utilizados no ensino; primeiro, €0 cademno de rascu- 4e nho, depois 0 caderno de escrita, «Geo de dpa a limpo, 0 cadeo de problemas, 6 cadennio de anillise, etc. Essa pratica era, a seus olhos, condendvel: Essa multiplicidade de cadernos torna a tarefa do professor (\ 4c dificil, é uma perda de tempo consideravel para 0 aluno ¢ nao aa pode servir para dar a medida de seu progresso e principal- mente de seu trabalho diario. A partir das, observa-se a passagem para um segundo modelo, imposto pelas autoridades da escola republicana: 0 caderno tinico, chamado “caderno do dia”. O verbete “Ca- demo”, no Diciondrio de Pedagogia, de Buisson, assim se refere a esse objeto: yz No.eadero tinico, a data e a hora em que o dever foi feito, yr qualquer que seja a sua natureza, se encontram exatamente ‘ indicadas, de tal modo que o caderno do aluno € como 0 2 ve" 2 controle do diario de classe. A O verbete € concluido citando a doutrina oficial: ‘Acrescentamos que 0 caderno tinico toma muito facil 0 exame do trabalho de cada aluno e de toda uma turma pelo inspetor € outras autoridades escolares; que ele pode, de forma mais cé- moda que os cademos miltiplos, permitir comparagdes titeis, o que é uma garantia da sinceridade do trabalho das criangas*. ‘As virtudes do caderno do dia eram a de preencher de forma econdmica varias fungdes ao mesmo tempo, cruzando os olhares do alunos, dos professores, dos inspetores dos pais: vigiar o trabalho do aluno eo do professor, apreciar os progressos ao longo do tempo, comparar os alunos entre ei tat © M. Leras, inspetor da academia do departamento de Yonne, citado pelo Dictionnaire de Pédagogie de Buisson, no verbete “caslerno”. O autor do verbete é 0 inspetor Charles Defodon, redator chefe do célebre Manuel général de Vinstruction primaire, revista semioficial que exprimia © pon- to de vista do Minisiério. * Ibidem. Digitalizado com CamScanner 52. pratican delelturae erceits: histriae atualldade Anne-Marie Chartier eles e fundamentar “objetivamente” as notas distribuidas: “4 sinceridade do trabalho das criangas” autorizava, assim, a conservar, A vista de todos, escritas desajeitadas, exercicios e problemas incorretos € erros de ortografia. A escola muda, entio, a finalidade tradicional do caderno. Ele nao era mai estinado a se tornar um “livro de uso”, selecdo de modelos an ee Se Terris ou compilagio de textos, mas a prestar contas aprendizagens em curso. Essa visibilidade do trabalho certa- mente dava seguranga para as familias populares. Como niio podiam julgar as competéncias intelectuais invisiveis, por meio do caderno do dia elas poderiam confiar mais no mestre, na medida em que as tarefas da escolarizacao estariam inscritas em formas estiveis e faceis de serem reconhecidas. Enquanto no caderno do gindsio, propriedade privada do aluno, o pro- fessor nao intervinha, o professor primdrio deveria tornar vi- sivel o fato de que ele corrigia os cadernos todos os dias. Apesar disso, 0 caderno do dia da escola priméria nao deveria se parecer com um cadero de rascunho. As escritas de “primeiro impulso” tém uma aparéncia ruim. Conservar essas experiéncias desqualificaria a escola e tornariam paten- tes as diferencas de desempenho tao humilhantes para certas criangas quanto para suas familias. © cadero do dia, “vitrine do trabalho escolar”, recolhia o trabalho pasado a limpo.que ee corregao era Treqiientemente coletiva, alu: no devia, ento, se auto-corrigir); i muito numerosa, éla poderia ser individual, O professor, pas: sando entre as carteiras, deveria dar uma olhada na ardésia ou no caderno de rascunho (f6rmula recomencada mas esco- las normais no periodo entre guerra), Cada caderno do dia Mostrava o que cada crianga era capaz de (re)fazer sozinha, depois da ajuda do professor. “Sinceridade do trabalho" no €ra, entio, sindnimo de “competéncia individual’. O aluno que fracassava em fazer sozinho seus exercicios podia ches" apesar disso, a “se mostrar” bom aluno, desde que prestass atengao na corregio e se aplicasse ao passar a limpo. Era ess? Digitalizado com CamScanner \critos @ cadernos de alunos: reflexes sobre priticas delongaduragso 53 Exereielos: “trabalho sincero” que era valorizado, nado o desempenho inte- lectual aut6nomo, mas ninguém duvidava que o tiltimo seria decorréncia do primeiro. A tinta (preta, depois vermelha) na margem servia para sancionar ou elogiar esse esfor¢o do dia-a- iia, Para os professores primérios dos anos 1880-1900, a niptura éra, entretanto, forte, com o modelo livresco antigo, aquele do cademo sem erro, feito com boa caligrafia, reproduzindo escru- pulosamente textos-modelo e 0s “ditados passados a limpo” tos-rorascunho-€, depois da _correqio, recopiados no caderno imais de uma geragio para se banalizar e as anotagdes, nesses primeiros tempos da escola republicana, se reduziam a algumas marcas muito breves na margem (“Visto”, “Bom”, “Mal escrito”), mostrando que nessa etapa das atividades, o professor verifica- va o trabalho formal do aluno, e nao mais seu contetido. Pode-se, desde entao, analisar espaco grifico% do ca- melo Sa orpanizacio da pigins: a data, os diversos titulos sublinhados, a alternancia dos exercicios em que as listas e os quadros eram tdo freqiientes quanto 0s textos, as barras de ilustragao. A forma geral parece ter ficado pronta em 1914: a escrita das criancas era enquadrada por uma pauta que limitava a grossura das letras e a altura das hastes. A escrita recomendada era inicialmente inclinada (no século XIX), de- pois reta (apés 1920), com linhas obliquas, depois verticais € sempre & esquerda, a linha vermelha delimitando a mar- gem reservada a quem corrigia, Assim, © espago do cademo é uma perpétua reinscriglo de um escrito que jé estd Id e que se deve transformar seguindo as instrugdes: colocar no plural, conjugar os verbos, preencher as palavras que faltam no texto, resolver 0 problema, desenhar o losango ou 0 trlingulo retiingulo’. [Nese “pequeno teatro do saber HUBERT, Christiane; HEBRARD, Jean. *Fais ton travail”, Enfances et Cultures, 2, Paris: Fernand Nathan, 1979, p. 46-59, HEBRARD, Jean. “Por uma bibliogratia material das escritas ordindrias, 0 espago grifico do eademo escolar (Franga XIX* -XX9". Revista Brasileira da Histéria da Educagdo, 1, 2001, p. S141, Digitalizado com CamScanner 54. Priticas de leiturae escrita: histéria e atualidade - Anne-Marie Chartier escolar", como escrevem Jean Hébrard ¢ Christiane Hubert, “as listas ¢ 05 quadros que a crianga constr6i cotidianamente na escola recortam €, 20 mesmo tempo, organizam o campo de seu saber, saber talvez limitado, mas que por essa disposigio grifica se constitui, como sempre, exaustivo ¢ totalizante®, A multiplicagéo dos cadernos e fichdrios Em que se transformou o cadero escolar no principio do século XI? Os alunos franceses de hoje, longe de se limitar a0 caderno unico recomendado no tempo de Jules Ferry, utilizam um ntimero cada vez maior de cademos e ficharios. O que é que orienta esta profusao de material? O que conduz os profes- sores a escolher essa ou aquela solugdo? Segundo uma pesqui- sa realizada junto a uma centena de professores das séries iniciais”, a variedade dos usos dos cademos e fichdrios é im- pressionante: os professores utilizam de seis a 14 suportes no segundo ciclo (alunos de seis a cito anos) e de seis a 16 supor- tes no terceiro ciclo (alunos de nove a 11 anos). Assim, numa sala “normal” de terceiro ciclo, onde fizemos uma observa¢io, as criangas tém dois fichdrios (para francés e matemitica), seis cadernos para as outras disciplinas, mais um caderno de textos e um caderno para comunicagio com os pais. O fichdrio de francés € subdividido em cinco sub-partes: ortografia de uso, ortografia gramatical, gramética, conjugagao, expressio escrita. O fichario de Matematica separa Geometria e Aritmética, essa Ultima subdividida em operagdes e€ problemas. Os outros ca- demos se intitulam Ciéncias e Tecnologia, Histéria, Geografia, Instrugao Civica, Musica, Poesia, Uma das atividades essenciais dos alunos 6, entio, tirar 0 cademo adequado no momento certo ¢ saber rapidamente se orientar nas sub-partes dos fichirios e classificar corretamente as folhias soltas em que escrevem, gragas ——__ “ HUBERT, Christiane; HEBRARD, Jean, op. cit, p. 57. ° pei el Anne-Marie; RENARD, Patricia, “Cahiers et classeurs: les supports Grdinaires du travail scolaire". Repdres, n. 22, Les Outils denseignement du Francais, coordonné par Sylvie Plane et Bernard Schneuwly, INRP, 2000 (parution mai 2002), p. 138-159, Digitalizado com CamScanner Exereciosexcritos¢cadernos de alunos: refiexdes obre priticas de longaduragie 55 as divisérias e as etiquetas coloridas. Entretanto, de um ano a outro, os habitos pacientemente construfdos pelo professor devem ser abandonados e refeitos de outra maneira por outro professor. Para alguns alunos, nao ha divida de que as conti- nuidades intelectuais ou das disciplinas aparecem rapidamente sob as modalidades variéveis das “organizagoes” materiais. Mas as coisas podem parecer infinitamente mais arbitrérias ou obs- curas para outras criancas. Uma professora, que mede bem toda a energia que essa “gindstica” exige dos alunos..., ¢ do profes- sor, nos disse: “E uma gindstica, mas é para habitud-los”. Habi- tud-los a qué? O que os mestres polivalentes das séries iniciais mostram, assim, a seus alunos, de forma pratica, é que a escola primaria € 0 vestibulo das séries finais do ensino fundamental, que os saberes sio organizados por “familia” e que o bé-a-ba da pro- fissaio de aluno de escola priméria € de classificar, material e intelectualmente, o que se faz. O antigo modelo do caderno do dia era uma cronica das tarefas, escritas umas depois das outras, e o patchwork dos exercicios acumulados constitufa a “instrugao primdria” — 0 que os ingleses designam pelo termo literacy. Por outro lado, os suportes de escrita atuais tém por modelo a especializagao disciplinar das ultimas séries do En- sino Fundamental. Nessas manipulagdes cotidianas, os alu- nos aprendem, pela forga do habito e da rotina, uma classificagao implicita dos saberes escolares. A representagio (e nao a definigiio) que cada aluno faz da atividade e/ou do saber em questio é assim construida empiricamente, por se- melhanga e diferenga, pela acumulagio de tarefas. Aprende- se o sentido do conceito ancestral de “gramitica” ou o mais recente de “tecnologia” como se aprende sua lingua, pelo uso e nao por principios, em contexto e nao por definigdes®. Essa distincia fantasticamente traduzida pela fala de uma aluna de sete anos, a quem o pesquisador pede que defina o que ¢ a tecnologia: “Nos estudames tecnologia. Eu no sei o que € tecnologia, mas eu estucio muita tecnologia” (Enquéte sur la polyvalence des mattres/INRP, Joel Lebeaume, 1998, rapport dactylographié). Digitalizado com CamScanner 56 rie otra ccs hnsrine nade Anne alah Por outro lado, as escritas de “primeiro impulso”, pratica- mente ausentes do caderno do dia, se tornam cada vez mais freqientes. Os exercicios para completar fotocopiados e cola- dos ou os livros de exercicio existentes no mercado s6 au- mentam essa tolerncia, deixando seus tragos na aparéncia geral dos cadernos. Alguns professores se queixam disso (‘eles escrevem como porcos, nao dao importncia nenhu- maa isso e os pais nao dizem nada") mas todo mundo consi- dera que € impensivel voltar atras. Os cadernos utilizados na sala de aula parecem cada vez mais com rascunhos. 0 motivo que leva o professor a mandar fazer certos exercicios num caderno mais do que em outro € freqiientemente dificil de perceber. Um grande numero de atividades escritas per- manecem no estado de “ensaios” no caderno de mesmo nome, por falta de tempo para serem passadas a limpo pelo aluno e/ou para serem corrigidas pelo professor. Os trabalhos de grupo, as pesquisas coletivas e as situagdes-problema sao grandes consumidores de suportes efémeros de folhas gran- des (0 verso de cartazes, de folhas A3 impressas, papel kraft de embalagem etc.*); certas produg6es escritas individuais sao feitas também em folhas soltas conservadas provisoriamente em pastas, enquanto o texto estd em processo de “reescrita”. Toda uma parte da atividade escolar que € considerada como essencial pelos pedagogos nao deixa tracos durdveis. A cOpia (no sentido antigo) nfo desapareceu mas rege diu fortemente (0 aluno niio copia mais os textos dos pro- blemas, nem mesmo, as vezes, as instrugdes dos exercicios). \ Os recursos do computador, que permitem descobrirdeforma aX precocea fungio “cortar-colar”, acentuou ainda mais lificagao do gesto de copista dos discursos insti : Jovens professores tm dificuldacle em imaginar que @ cOP# ———— OMO nota Brigitte Dancel esses suportes estilo ausentes dos araulre® sscolares, op, cit,, Repores, n. 22, p. 132 ° oy anne ; BERNARDIN Jacques. *Usages et sens de la copie a l'école primaire me vont: Milos, ROCHEX, Jean-Yves; STECH, Stanisl (Dit). la lane wvoir comme probidme culturel et idenuitaire. Université Chatle® “ Digitalizado com CamScanner Exerciclos excrtose cadernos de alunos reflexes sobre pritiens de longa duragio. 57 possa ter sido um tempo de aprendizagem, de apropriagdio ou de automatizagdo de miiltiplos saberes (graficos, ortograficos, sintiticos, disciplinares), j que véem nela apenas uma repro- dugao mecinica consumidora de tempo e cognitivamente va- zia, da qual as fotocépias felizmente aliviaram os alunos. Quando e como se dé o momento de passar a limpo de manei- ra definitiva? Ele é realmente necessdrio? Se os pais nado se escandalizam hoje em ver as escritas espontaneas de seus fi- Ihos mesmo depois da educagao infantil, por que perder tem- po com cansativas apresentagdes manuscritas? Quando a necessidade (social) de um texto passado a limpo se fizer sentir pode-se recorrer aos recursos do computador e a impressora. Um olhar retrospectivo vé nos belos cadernos do dia de antigamente o sinal de uma exigéncia de perfeigaio desapare- cida, bem propria para alimentar as nostalgias de uma idade de ouro escolar. Uma abordagem historica que procure se manter a.distancia das armadilhas da memoria permite des- cobrir que foi o caderno do dia da escola da época de Jules Ferry que rompeu com a concepgio do caderno-livro. Fazen- do isso, ele abriu o caminho para uma valorizacio dos de- sempenhos “balbuciantes” das criangas. Para que nascesse uma ciéncia das aprendizagens intelectuais fundada numa documentagao empirica e nao apenas numa teoria filos6fica dos graus do saber, foi preciso que as produgées dos alunos fossem consideradas interessantes como tais. No work in progress, 0 erro nao é (ou nao € apenas) uma falta ou um desvio do modelo, Nao é de se espantar que a ciéncia das Prague, Editions Karolinum, 2001, p. 91-106. Na pedagogia tradicional « c6pia era também relacionada com a trapaga Ccopiar é trapacear") ¢ com @ punigio (copiar 50 linhas”), * As publicagdes nostilgicas sobre a escola de antigamente, que tinha 0 cheiro bom da tinta roxa, sto sucesso de venda nas livrarlas. Entre os Sucessos recentes da edigio, ver Rachel Grinstein ¢ Jérome Pecnard, no livro Nos cabters d’écolters 1880-1968, Les Arenes-France Info, 2002, Esses autores renovaram plasticamente, através de uma suntuosa pagina- G40 em quatro cores, um género em que se destacou Gaston Bonheur, Cujo livro (Notre patrie gaulotse, 1974) fol um best-seller Digitalizado com CamScanner 58. Priticas de leiturae escrita: histérlae atualldade -Anne-Marle Chartier aprendizagens escolares, como a psicologia de Binet, tenha se construido sobre “escalas de desenvolvimento” institui- das pelo curriculo primario e que os testes que determinam a idade mental se parecam tanto com os exercicios escolares. A psicologia da crianga (Wallon, Piaget), no contexto da edu- gio liberal, das novas pedagogias € dos métodos ativos, eu ao entre-guerras uma fiova base Cientifica As oriticas for- niuladas contra o formalismo escolastico da escola (para Ta- se fizeram sentir bem mais tarde, nos anos 1960-1970, no momento da massificacio do ensino secundadrio. Em que medida a atividade espontanea das criangas (construtivistas) de Piaget recobre o “trabalho sincero” das criangas (normais) de Binet? E as aprendizagens cognitivas do aluno (ou do prin- cipiante) de hoje? Essas defasagens temporais entre a pres- crigao institucional, os discursos cientificos de referéncia e as exigéncias dos professores mostram que a historia das idéias Pedagégicas e a das praticas nao evoluem no mesmo passo. E quando a freqiiéncia ao ensino posterior ao primério se torna obrigatéria que a escola comeca a levar em conta, “de outra forma”, os saberes do gindsio. Essa mudanga tem uma vertente te6rica visivel na criagdo das didaticas especializa- das pelos pesquisadores cuja identidade intelectual € disci- plinar: os primeiros foram os mateméaticos e os lingiiistas, mobilizados pelas experimentagdes dos anos sessenta. Tra- balhando com os cadernos atuais, vemos o outro lado desse Processo de “secundarizagao” dos saberes, efetuado por aque- les que atuam nas escolas. Os professores, mesmo freqiien- temente lamentando que o Pprimdrio se baseie nos saberes disciplinares préprios do ensino secundirio, inventaram modalidades eficazes para que esse processo ocorresse. [sso foi feito no por meio da transposigio de modelos didaticos cruditos (que transitam em diregao a eles principalmente por meio dos manuais) mas introduzindo ferramentas “secundé- rias’ de trabalho nas priticas ordinarias do primario, adap- tagdo dos fichdrios ou dos cadernos num espaco livre de toda Digitalizado com CamScanner Exerciclo etcritos ecaternos de alunos: reflexdes sobre priticas delongadurayto 59 a prescricao institucional se relaciona mais com o cotidiano funcional do que com uma estratégia explicita. Trata-se de uma acao coletiva, mas nao planejada, o que explica a varie- dade das solugdes individuais numa mesma escola. Ela é feita a revelia dos teéricos, das autoridades administrativas e das préprias pessoas que atuam na escola. Mas o modelo cumulativo das atividades, em uso nos antigos cadernos do dia, foi percebido progressivamente como inaceitavel. O con- sumismo escolar incitou a profusao de suportes, que na maioria das vezes poderiam permanecer nos escaninhos sem fazer peso nas mochilas. O uso dos cadernos e dos fichdrios, uma vez iniciados no cotidiano escolar, parece exigir apenas o gerenciamento pritico dos seus efeitos”. “E uma gindstica, mas é para habitu4-los", dizia a professora jd referida. Os professores sao, assim, os atores (e nao os agentes) de uma transformacao que nao tem autor, ou seja, anénima ¢ impensada. A reparti¢ao das atividades disciplinares entre varios su- portes tem outra conseqiiéncia. A multiplicidade dos cader- nos nao permite mais tio facilmente, como no tempo de Ferry, © controle do “diario de classe” do professor, e é dificil para um observador exterior reconstituir 0 desenvolvimento das atividades ao longo do tempo. Pode-se traduzir isso dizendo que o trabalho escolar se tornou menos transparente ou que a liberdade do professor € mais bem preservada dos olhares exteriores, sempre percebidos como inquisidores. Mas ocor- re o mesmo para os alunos. A multiplicidade dos cadernos faz com que o professor nao possa verificar tudo com facilida- de, mesmo que o numero de alunos da sala tenha diminuido * Vemos, hoje, agendas que slo quase “cadernos de texto” aparecerem cada vez mais cedo na vida escolar (algumas prefeituras as disiribuem aos alunos que entram nas turmas de alfabetizag’o) mesmo que ninguém tenha “objetivamente” necessidade delas, jf que os alunos nto tém, na Franca, deveres a ser feitos em casa. Ora, 0 uso de tais agendas *muda as coisas’ na concepsao do trabalho, sem que os professores saibam ainda dizer bem 0 qué. Digitalizado com CamScanner la-Anne-Marle Chartier veritas histdrine atualldad 60. Pritieas de elturas: consideravelmente; por outro lado, a energia ¢ 0 tempo gas. tos para iniciar o trabalho (aprender a abrir 0 caderno certo, a escrever na pagina certa) nado diminufram — a0 contratio, aumentaram. Os professores, alls, se dividem entre aqueles que corrigem os cadernos depois da aula e acham que é ne- cessirio verificar todos e aqueles que tentam, ao maximo, fazer as correcdes de imediato (0 que os libera em seguida), com o argumento de que uma corre¢4o posterior é intitil Para o aluno, mesmo que ela seja testemunho do zelo profissio- nal do corpo de professores. Os tinicos cadernos corrigidos regularmente sio os de Matemitica e os de Francés. Os cadernos ou fichdrios das outras disciplinas tem um outro tipo de uso. Neles, é 0 traba- Iho da sala de aula que é registrado, mais do que o trabalho individual do aluno; nesse tipo de caderno, os exercicios de avaliago sao muito raros. Esse fato € acentuado pelas re- centes partilhas de tarefas® entre as diferentes pessoas que intervém na sala de aula: enquanto certas disciplinas nao sio delegadas (Francés e Matematica’), outras podem ser trocadas entre colegas ou ter hordrios “eldsticos” (Hist6ria, Geografia, Ciéncias) e outras, ainda, podem ser confiadas a Pessoas externas a instituigao (Lingua Estrangeira, Musica, Educagho Fisica). Essas ltimas sto geralmente disciplinas “sem escrita” e, portanto, sem cadernos, Para os alunos, a hicrarquia de autoridade entre os diversos adultos da escola € facilmente colocada em relago com seu poder sobre os dispositivos de escrita, Evidentemente, é preciso obedecet 408 ajudantes, aos que realizam oficinas e Aqueles que nado Pertencem ao quadro da escola que tém o direito de punir, mas que “no sito professores de verdade”, Da mesma for Ma, 08 alunos fazem diferenga entre seu interesse por unit disciplina (em geral, todos os alunos adoram educagao fisica) RNIER, P, Vacole tee ‘ascale. Faire la classe ” Blas se div @ plusieurs. Mattres et partenariats jentaire. PU de Rennes, 2003, dem quando a wrma é mantida por dois professores. Digitalizado com CamScanner Exereicios: .critos © cadernos de alunos: reflexdes sobre priticas de longaduracio 6] e seu valor para a instituigao (ser fraco em Educagao Fisica nao faz repetir de ano). Enfim, hoje, como antigamente, a de- signagdo das atividades escolares define o mundo dos sabe- res legitimos. Todos os alunos, quer estejam vivendo uma experiéncia de sucesso ou de fracasso, sabem que nenhuma disciplina se chama Religido nem Moral. Aqueles que vieram dessa cultura comum (os professores atuais) tém dificuldade em imaginar que a religido e a moral possam ter sido considera- das durante tanto tempo como saberes e, mais ainda, que elas poderiam ser ensinadas™ novamente. Independentemente das criticas ideoldgicas ou das reservas priticas sobre esses ensi- nos, uma tal proposta lhes parece, inicialmente, “inacreditavel”. Concluséo Para concluir este trabalho, faremos trés observaces. As diferentes pistas de pesquisa apresentadas neste artigo, apesar das especificidades de seus objetos e, conseqiientemente, de seus métodos, relacionam-se com as questoes atuais da cultura escolar, quer explorem os processos de transmissio, a avalia- ¢do das aquisigdes, as construgées identitérias ou os saberes proline, A Deel Ht th cor de Média, como FC Bloch®, se constréi a partir das interrogac6es do presente. Entretanto, enquanto a oposi¢ao clas- sica dos debates no campo _educativi entre tradi¢io e inova¢ao (sob multiplas variantes: tradi ionalismo/reformismo, ordem/movimento, reagio/evolugio etc.), as pesquisas sobre os trabalhos de alunos nao param de mostrar como as jovel geragdes “fazem o novo com o velho”. De acordo com o ponto de visia adotado, pode-se Tocalizar a ruptura ou, ao contririo, a continuidade, a criagio original ou a heranga revisitada, mas 0 reformador mais radical nunca chega a apagar, de si mesmo, © DEBRAY, Régis. L'enseignement du fait religieux dans l'école laique. Rapport au ministre de U'Bducation nationale, Paris: ©, Jacob, 2002. » Introdugdo A historia. Lisboa: Publicagdes Europa-América, [s.¢]. (N-T). Digitalizado com CamScanner 62. Priticasde leturac escrita: histérla e atualldade - Anne-Marie Chartier \ antigo aluno que foi um dia. Em matéria de cultura escolar, na medida em que ha sempre um direito e um dever de inventirio, | nao ha tabula rasa possivel. Isso conduz & segunda observagio. Os pesquisadores se queixam freqientemente de que os resultados de suas pes- quisas permanecem ignorados ou sem efeito, mesmo quan- do sio lidos pelos professores. Pode-se perguntar que pesquisas eles poderiam utilizar com mais facilidade. De fato, os que esto na pratica dificilmente podem desenvolver seu trabalho apoiando-se em saberes que, por raz6es tedricas muitas vezes legitimas, ignoram ou “esquecem” sua existén- cia. Aquele que aprendeu com os discursos eruditos a consi- derar o papel do professor como de menor importancia vera ai um dlibi para seu sentimento de impoténcia ou uma isen- ¢40 de sua responsabilidade (o que, nos dois casos, trans- forma o saber “em ideologia”). Por outro lado, todo estudo sobre contetidos de ensino, priticas profissionais, produgdes toma visivel uma outra lace das realidades escolares (politi- cas, sociais, culturais), nao a de sua necessidade retrospecti- va, mas a de sua relativa “indeterminagio””. Pesquisando * A hiswéria dos textos oficiais pode estudar os resultados (os novos progra- mas, aS novas instrugdes) sublinhando as continuidades ou as rupturas prescritivas explicitas. Ela pode ser uma historia menos pacifica, se buscar reconsiituir “o processo de produgio das reformas”, quer dizer, as reli- ges de forca, 08 conflitos, os compromissos que presidiram seu nascl- mento ¢ deixaram sinais nos textos (as incoeréncias discursivas, as concessbes te6ricas ou siléncios que resultam das negociagdes), A historia dessas “tomadas de decisto" faz parte da cultura pritica-oral dos atores (membros dos gabinetes, delegados sindicais ou participantes las comis- s0¢8 de trabalho), mas eles sto obrigados a manter reserva sobre 0 assun- fo € nunca deixam tragos escritos. Sobre essa questo dos “arquives 0! Témoins et acteurs des politiques de Véducation depuis la Libération. Mar- line Allaire et Marie-Thérése Franck, (. 1; Marie-Thérese Franck et Pierre Mignaval, 1. 2, INRP, 1995 et 2000. Essa *indeterminagdo” relativa explica que, nos contextos de restrigoes econdmicas ¢ de demandas sociais globalmente idénticas, os sistemas escolares dos paises da Europa tenham conseguido evoluir sem perder suas identidades fortemente nacionais. Digitalizado com CamScanner Exerelcios etrits eeadernos de alunos: rfledessobrepriticas de longadurasao 63 sobre 0 espago préprio dos atores é que podem ser percebi- das as modalidades de exercicio de seu poder, as orientagdes que eles encorajaram, permitidas, ou proibidas, na evolugao do sistema®. As escolhas epistemol6gicas (o que se procura conhecer?) sio assim, também, escolhas éticas e politicas. A Ultima observagio é, entio, pratica. Se se deseja que os objetos de estudo ajudem os professores a “pensar” a escola € a sua posigio na escola, devem ser priorizados aqueles que se situam em seu proprio campo de iniciativa, campo limitado ¢ normatizado, evidentemente, mas que se relacio- na com seu poder de atores, e nao apenas com sua fungao de agentes do sistema. A dificuldade esta em descobrir fon- tes que permitam tratar esse poder nao apenas de forma resi- dual®. Tomando como objeto de reflexdo os cadernos de alunos, foi esse “curto-circuito” que nés tentamos evitar. Pa- radoxalmente, é a no¢ao de dispositivo, tal como foi temati- zada (de um ponto de vista epistemolégico) por Michel Foucault a propésito dos dispositivos de controle, que nos deu uma base conceitual para “pensar” 0 poder complexo desse objeto modesto. O uso dos cadernos institui “relagdes de forca entre saberes” e solidariedades priticas entre ele- mentos “heterogéneos” (saberes, autoridade, instituigao, fer- ramentas)®. Ora, essa abordagem se encontra fortemente * O trabalho de Martine Jey (La littérature au lycée, invention d'une discipli- ne 1880-1925, op. cit.) mostra, assim, 0 poder decisive dos professores que tém o titulo de agrégés (ver nota 10) em letras no Consetho Superior da Instrugao Publica, na defesa, 20 mesmo tempo cultural € corporativista, do ensino clissico, ¢ a forga dos usos coletivos que limita “na pritica” um programa muito mais aberto *na teoria", Por exemplo, as estatisticas definem o ‘efeito professor" como as dlstineias verificadas entre as urmas que nao podem ser explicadas por outras variéveis controladas, De um ponto de vista ‘cientifico", a pesquisa sobre 05 conteddos, os exercicios ¢ as didéticas disciplinares, 0 desempenho dos alunos pode legitimamente articular instituigdes, saberes, politicas ‘educativas, sem levar em conta os professores, a no ser como “agentes”. © FOUCAULT, Michel. Ibid, p. 300: “Crest ga, le dispositif: des stratégies de rapports de force, supportant des types de savolrs et supportés par eux”. CHARTIER, Anne-Marie, “Un dispositif sans auteur: cahiers et classeurs dans lécole primaire’, Hermas, Le disposit(f, Entre usage et concept. 25, décembre 1999, CNRS, p. 207-218, * Digitalizado com CamScanner 64 do elt raw escrta:hintdria@ atuatidade Anne-Marle Chartler priticas de fot defasada em relagao a forma pela qual a instituigao trata ge. ralmente a historia dos saberes ea relacdo teoria-pritica, para o pesquisador, a delimitacdo de um objeto especifico, a coeréncia racional e a selegao de um ponto de vista sio as condicGes necessdrias de uma cientificidade discursiva que permite delimitar de que tratara um determinado discurso e, logo, do que ele procurar4 nao tratar. Para um professor, por outro lado, os pontos de vista miltiplos sobre a pratica, originarios das diferentes ciéncias sociais (sociologia, psi- cologia, didatica etc.), tém os efeitos de “bombas de frag- mentacdo”. Como nenhuma recapitulag4o sobre todos os pontos de vista® é sequer imaginavel, as opinides elabora- das pela midia séo mais difundidas quando a conjuntura educativa € opaca. Estudar um dispositivo € obrigar-se a levar em conta, de forma local e conjuntural, ou seja, empiricamente documenta- da, “discursos, instituigdes, arranjos arquitet6nicos, decisdes regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados cientificos, proposig6es filos6ficas, morais, filantrépicas™®. E também o que faz todo aquele que atua na pratica no cotidi- ano, sem ter forcosamente consciéncia, e € essa profusio de pontos de vista de documentos que desencoraja a teoriza- ¢4o. “A partir do momento que se puxa um fio do novelo, Dans Les Mots ot les Choses, en voulant faire une histoire de lépistéem’s F «ais dans une Impasse", FOUCAULT, Michel. Dits et Berit op it P * Robert Darnton situa o nascimento das classificagdes contemporiness Mo 22 Grande Encyclopédie de Diderot, mus na de Panckouke, ave per de dor saber de uma *Arvore dos conhecimentos”, integrando # her cina, Juris ies Lendo os titulos de seus volumes (Historia Natural, Nes “Wau 2utsprudéncia, Botinica, Matematica, Gramétiea @ Literatur ° dine waa Roe sentimos em um pais estrangeiso. Seria como 0 CRT, conn an ne moderna, onde as construgdes representam os Se ur a lseiplinas esto organizadas em cepartamentos. NOs ene. Tango Ae Podemos reconhecer, 0 do saber profissionalizade Yantai cs mologique: de Vencyclopédisme a la publicite, PMT P78 Cy ise: ilusiration, méthode, PU de Bordeaux: Pesstes 2° anglais, Berkeley 2001) % Po} UCAULT, Michel. Dits o ” Berits, Ml, Paris: Gallimard, 19% P- 3 Digitalizado com CamScanner ‘ercicios excritos e cadernos de alunos: reflexes sobre priticas de tongaduragao 65 tudo vem”, me disse uma professora do maternal que nao leu Michel Foucault, mas que resiste, pacientemente, aos meus esforgos para categorizar suas Pprdticas de acordo com esque- mas tedricos usuais, repetindo-me que “tudo est4 em tudo” E sua obstinagao que nos tonduz progressivamente a utili- zar a nogdo de dispositivo, mas do ponto de vista do seu trabalho (enquanto Foucault se serve “politicamente” do dis- Positivo para instrumentalizar sua critica das instituigdes encarregadas de vigiar ¢ punir). Tanto para um quanto para outro, os dispositivos so como maquinas que, uma vez en- grenadas, funcionam sozinhas. Eles sao lentos para serem “amaciados” (devem integrar 0 herdado e o novo), s6 funci- onam gragas a individuos de quem sustentam a autoridade, mas podem perdurar independentemente deles e tém sobre os grupos um poder de dominacio moral e intelectual mais eficaz do que muitos carismas transitérios. Eles nao permi- tem separar, “distintamente”, fins e meios, nem causas e con- seqliéncias. A divergéncia vem do valor de uso desse saber. Michel Foucault coloca politicamente sua anilise a servigo de uma critica discursiva das instituigdes de controle anéni- mo. A professora coloca, pragmaticamente, sua competéncia dos “dispositivos escolares” a servico das propostas pedag6- gicas que ela elabora para seus alunos e para os professores iniciantes ainda em formagao que ela acolhe. Com efeito, os dispositivos de controle constituem também espacos de es- tabilidade e de seguran¢a para seus usudrios®. Aquele que sabe o que lhe espera pode agir, e nao apenas “reagir”, quer dizer, se defender, se proteger ou se fazer esquecer (a luta, a © CHARTIER, Anne-Marie. “L’expertise enseignante entre savoirs pratiques et savoirs théoriques". In: Recherche et Formation, Les Savoirs de la Prati- que. Un enjeu pour a recherche et pour la formation, n. 27, déc. 1998, INRP, p. 67-82. Ver, neste livro, o capitulo “A ago docente: entre saberes priticos e saberes tedricos”. © BELIN, Emmanuel. “De Ia bienveillance dispositive". Hermas, Le dispositif, Entre usage et concept, 25 décembre 1999, CNRS, p. 245-259. Cf. também PRAIRAT, Elrick. Eduquer et punir, Généalogie du discours psycbologique. PU Nancy, 1994 et Questions de discipline a Véeole et ailleurs, Exes, 2003, Digitalizado com CamScanner 66 Priticas de telturae escrita: st6rine atualidade - Anne-Marie Chartier fuga ou a submissiio: as trés Unicas saidas Para o individug que nao tem escolha, segundo Henri Laborit). Todos ‘aque. les que trabalham com criangas sabem, por experiéncia, que os dispositivos de vigilincia sto também “dispositivos de benevoléncia”®. As miltiplas combinagdes de que sao cons- tituidos geram, de forma quase mecinica, espacos de jogo, de indeterminagao. E nesses espacos que os conflitos, os bloqueios, mas também as invengGes, sao possiveis. O tra- balho sobre as priticas se encontra, entao, em educagio como em outros campos” numa articulacao estratégica para defi- nir, ao mesmo tempo, tematicas de pesquisa e perspectivas de formagio. Septic ceeeicapthonsisnin ac “ Reconheceremos af todos os temas desenvolvidos pelos “clissicos” 44 tere € da pedagogia institucional, Nao se pode compreen- ; Beral, como um dispositive de “benevoléncia® educativa Poa enon concn @ aqueles que eram previstos ou desejados: os ‘ontextualizados so sempre necessitios Tensamos nos estudos jé antigos sobre o trabalho dos cientistas de Bruno Prag Steeve, Woolgar Laboratory Life: the construction af scientific cae rincelon University Press, 1986 (2* ed) ow mais recentes te Chis: Fesporieren, V4 formation de la pratique scientifique. Le discours de 1996, nat eH France et en Angleterre, 1630-1820, Paris, La Découvett®> nae oe st Nas leniativas de modelizagio sociologicas promovidas decisao dos aes laurent Thévenot que se interessam pela tomads oe i * Poranto, a ci éenico Aico di POHANIO, ao exercicio, ao mesmo tempo Ju Ponsabilidade (Les économies le ta grandeur, Paris: PUB, 1987: (Eds.) Justesse ey On. Patis: G ai aoe le travail, Paris: PU, 1987. De ta Justificatt Digitalizado com CamScanner

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