You are on page 1of 485
DRAMAT URGIA pan Oren tet) CRC nae] Beep et Ct a INS eo EC eCortBer rcs tadas com grande sucesso de public em diversas cida- CSIC Ce eR eum ear mete Cate RE Resto do ss OS ene encenados por atores e diretores quase sempre negros Eee eee Ce ta Cd easier eeess Cee Reem ecar tert CRB See TOR en arm re de uma coletanea de dramaturgia das favelas, a Funarte recebeu de volta a proposta desta antolo- gia, com foco sobre o negro. O principal argumento Perr ey tart eC nee eesti a ame Pon tee tep ict Py et Cie met scm gcc uma celebracdo da conquista desses artistas que finalmente ocuparam seus lugares nos palcos bra- sileiros, apesar de todas as barreiras impostas pela Ce On ee emer re ert tin CCC enn Omran Geer CRE rten meratts assentos nas plateias de todo o pais — que sejam Ore tae emt nin ent ent ce eek oe eee Pore ernie err ats Pee ere teen eee ner te rn Brat eM oye a Ma Oe ae tae aC Pea ee eon en eeetriat nk ts nosso pais. Miguel Proenca pec B ET bac DRAMAT URGIA NEGRA Presidente da Republica Jair Bolsonaro Ministro da Cidadania Osmar Terra José Henrique Medeiros Pires FUNDACAO NACIONAL DE ARTES — FUNARTE Presidente Miguel Proenca Diretora do Centro de Programas Integrados Maristela Rangel Gerente de Edicées Oswaldo Carvalho DRAMATURGIA NEGRA Eugénio Lima e Julio Ludemir FUNDAGRO NACIONAL OF ARTES Equipe de Edicoes Carlos Eduardo Drummond Filomena Chiaradia Gilmar Mirandola Jaqueline Lavor Ronca Julio Fado Preparacao de Originais ‘Tikinet | Hamilton Fernandes Monica Silva Dirceu Teixeira Revisao Tikinet | Andressa Picosque Diagramacao Tikinet | Mauricio Marcelo Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP) Dramaturgia negra / Eugenio Lima, Julio Ludemir (Org). Rio de Janeiro : Funarte, 2018. 480 p.; 23cm ISBN 978-85-7507-199-1 1. Teatro brasileiro. 1. Lima, Eugenio, Il. Ludemir, Julio. CDD B869.2 Copyright © Funarte Todos os direitos reservados. Fundagao Nacional de Artes — Funarte Ay. Presidente Vargas, 3.131 — Cidade Nova — CEP: 20210-911 Rio de Janeiro — RJ | Tel. (21) 2279-8071 | livraria@funarte.gov.br www funarte.gov.br para Abdias do Nascimento, 0 comeco de tudo para Heloisa Buarque de Hollanda, por mais uma vez ter cumprido o seu papel de ponte para Ilana, Teresa, Oswaldo (e a eficiente turma da Funarte), 0s dois lados do abismo que Helotsa nos ajudou a atravessar. Sumario Apresentacio Flup Ecio Salles e Julio Ludemir Apresentacio. Eugenio Lima TEXTOS TEATRAIS Antimemérias de uma travessia interrompida. Aldri Anunciagao Esperando Zumbi Cristiane Sobral Ialodés Dione Carlos Vaga carne Grace Passo Farinha com agtica Jé Oliveira Buraquinhos ... 149 Jhonny Salaberg Fluxorama 183 JoBilac Cartas a Madame Sata. 235 José Fernando Peixoto de Azevedo Récita n° 3 - Figuracoes. 263 Leda Maria Martins Sera que vai chover?. 271 Licinio Januério Carne viva Luh Maza Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus... ‘Maria Shu © Pequeno Principe Preto Rodrigo Franca Medea Mina Jeje.... 37 Rudinei Borges dos Santos Mercedes... Sol Miranda Cavalo de santo... Viviane Juguero 473 Sobre os autore: Sobre os organizadores. areceu-nos o 6bvio ululante sugerir uma antologia de dra- maturgia negra quando fomos procurados pela Funarte para organizar uma coleténea que desse conta da produco teatral brasileira no campo das periferias. Além de a questio negra ter pautado todas as nossas acGes ao longo de 2018, duas evidéncias nos obrigavam a fazer essa indicac&o. A primeira delas foi a perda de vico do teatro das favelas, que, para além do sempre melhor Nés do Morro, nao tinha nenhuma novidade relevante além do Teatro da Laje e da Companhia Marginal. Cada um dos integrantes dessa triade merece uma antologia, mas eles sao casos isolados em meio & segunda evidéncia, que é 0 fato de que a periferia brasileira esté se assumindo como o espaco que sempre foi, ainda que somente na Ultima década tenha comecado a se discutir como tal. Sim, a perife- ria brasileira é, antes de mais nada, um espaco negro. Qualquer pessoa que concilie a relacio com a produgao cul- tural contemporanea e a pratica de gastar a sola dos sapatos pelas favelas e subtirbios do Rio de Janeiro j4 ter4 percebido a explo- siva quimica de producio teatral de qualidade e um ptiblico cada vez mais interessado nessas montagens, seja pelo viés da neces- sidade de se ver no palco, seja pelo que se convencionou chamar de black money, com o qual os negros estao priorizando as mon- tagens de seus préprios irmaos. O sucesso de espetaculos como Cartola e Mercedes, para ficarmos somente na producao carioca, é prova inequivoca desse fenomeno. Esse mesmo black money esta na base do sucesso de vendas dos livros de Lazaro Ramos e Dramaturgia Negra Djamila Ribeiro, dois casos do mercado editorial que ignoraram acrise que devastou livrarias e editoras. Esse fenémeno também se estendeu pela moda, pelas artes plasticas e mesmo em festivais, como o bem-sucedido Zézimo Bulbul e a Segunda preta, Temos certeza de que esta antologia vai esgotar em pouquissimo tempo. Plasmar essa producao em uma antologia se torna ainda mais relevante ao se considerar que, ainda que mais de 50% da populacdo brasileira seja de negros, esta ¢ apenas a primeira gera- cao de intelectuais e artistas afrodescendentes, todos eles filhos das aces afirmativas implementadas na primeira quadra deste século. Para quem duvidava da eficacia da politica de cotas, esta antolo- gia é prova cabal de que ela nao aconteceu antes porque nenhum governo ousara oferecer 0 unico instrumento possivel de mol dade social para um pais - a educacdo. Sabemos que os simbolos que permitiram a internacionalizacao do Brasil (samba, capoeira, carnaval) sao criagdes desse povo negro, mas foi somente depois da entrada expressiva dos negros na universidade que falar de um Abdias Nascimento, de uma Sueli Carneiro, de uma Conceicéo Evaristo deixou de ser um esforco de identificagao de estrelas soli- tarias em noites nubladas — nessas intermindveis noites nubladas que tém sido as noites brasileiras desde a escravidao. Agora, depois que as cotas prepararam uma geracao, tor- nou-se dificil escolher os dezesseis titulos sugeridos por Eugenio Lima, que nos pareceu ele préprio uma escolha tao ébvia quanto a de sugerir esta antologia. Depois de nos ajudar a tornar o Rio Poetry Slam em uma plataforma pela qual emergiu uma inspi- rada geracao de poetas negros, esse grande articulador do teatro negro brasileiro fez uma curadoria cirdrgica em meio a esse mar de possibilidades. Caso nao tenham acompanhado esse fenémeno em seu nascedouro (o préprio teatro), leiam. E depois confirmem toda essa poténcia nos palcos e na vida. Ecio Salles e Julio Ludemir Diretores da Flup 10 Apresentacao Serdo suas histérias minhas memérias? Se suas hist6rias sdo minhas memérias, por que ew ndo me vejo em voce? As minhas historias vém de memérias que dantes vocé ndo navegou. Venho de mares profundos, percorro terras sem-fim, uejo figuras mambembes, rostos de risos contidos, de olhos tingidos de dor. Miguel Salvador, de Maurinete Lima A primeira antologia brasileira de dramaturgia negra foi con- cebida como uma cartografia a partir do ponto de vista da desterri- torializacdo, em que a multiplicidade de poéticas e histérias conflui para o pensamento curatorial, criando diferentes possibilidades de acesso aos ramos de uma narrativa plural da gente negra brasileira. Como toda visao cartografica, ela nao pretende ser um. caminho tinico e linear para o material: localiza-se na imensidao da diéspora negra, com seus fluxos, contrafluxos, suas derivas e sobretudo seus encontros. Nesta publicacao, o material se guia pelo direito a narrar a propria histéria. Sobre as possibilidades estéticas (e politicas) do teatro escrito por autorxs negrxs brasileirxs. A disputa é pela Dramaturgia Negra narrativa: quem conta, como conta e quais sao as formas de que se lanca mio para contar essa histéria. O material foi organizado na contramao da histéria oficial, rompendo com a escassa representacao da dramaturgia negra no meio académico, constituindo-se como um portal para uma outra historia possivel, que se utiliza das impossibilidades para criar as miultiplas narrativas de um povo negro brasileiro. Esta primeira antologia brasileira de dramaturgia negra reflete alguns dos modos de criar e pensar a experiéncia negra no Brasil. E parte da memoria da ancestralidade negra estilhacada pela diaspora. Porém, ela também se inscreve no campo da produ- cao dramaturgica brasileira contemporanea; ndo é um apéndice, tampouco um adjetivo (negro) na producao da dramaturgia con- temporanea brasileira. f uma malha formada por dezesseis negras vozes de todas as regides do pais: Aldri Anunciasio, Cristiane Sobral, Dione Carlos, Grace Pass6, Jé Oliveira, Jhonny Salaberg, Jo Bilac, José Fernando Peixoto de Azevedo, Leda Maria Martins, Licinio Janudrio, Luh Maza, Maria Shu, Rodrigo Franca, Rudinei Borges dos Santos, Sol Miranda e Viviane Juguero. Um malha poética e portanto politica que conecta as partes umas as outras, mas que também existe em si, como um espaco aberto onde o tempo histérico, o territério e a poética tém suas fronteiras suprimidas, pois 0 mapa nunca se fecha, ele sempre aponta para outro lugar que nao estd contido nele préprio. Aqui, cada parte é um mosaico, e, quando unida a outras, forma um novo desenho, uma nova cartografia da subjetividade negra e de suas formas de narrar. Sejam bem-vindxs! Eugénio Lima Curador responsavel pela seleco dos textos Sao Paulo, 12 de novembro de 2018. 12 textos teatrais PVC ESE travessia interrompida Aldri Anunciacgao PP ere L er ee crags a ee identificacao (...) tera como objetivo construir uma nova espécie da populacaocom predisposi¢ao para(...) oenclausuramento. (...)0 Der en eat tar Te Oe eto ete aay ae ated por estas formas(...) que sdo.ada clausura, da cerca, do muro(...) Ce Meet FMC reel Ron at tate E Dramaturgia Negra SINOPSE Em Antimemérias de uma travessia interrompida, o leitor-espectador depa- ra-se com 0 confinamento solitario de uma mulher africana escravizada do século XIX que, no transito para o Brasil a bordo de um navio negreiro do qual foi jogada no oceano Atlantico, fantasticamente passa a morar no fundo dos mares. Dessas profundezas, ela articula pensamentos sobre a contemporaneidade (da plateia), ao mesmo tempo que reconstréi suas memérias através de objetos que caem dos navios que cruzam 0 oceano ao longo da narrativa. (CENARIO O cenério é composto por um home office completamente envelhecido (oxidado pela salinidade), e irregularmente estancado em uma grossa camada de sal branco que preenche todo 0 tablado-piso. O home office é circundado por paredes afuniladas como que indicassem o final de um grande esgoto. Na enferrujada escrivaninha do home office, vemos um velho microfone apoiado em um envelhecido pedestal de mesa. No alto, tubos enferrujados que fornecem objetos-meméria que vém da superficie dos mares. Resumo CRITICO Antimemérias de uma travessia interrompida trata de lacunas (buracos exis- tentes) na continua linha da meméria oficial das grandes narrativas histéricas ocidentais. Esse espetéculo faz uso desses espacos vazios, 0s quais a histéria/ memoria oficial nao registra ou atinge. Essa escrita ficcional-dramatica trata das memérias subterraneas, metaforizadas pelas evasivas aces subaquaticas da nossa personagem principal: a solitaria mulher negra no fundo do mar. AAs raz6es de sua persistente existéncia no fundo daquelas aguas oceanicas sao fantasticamente justificadas pela simples razao de ela fiscalizar (e fisicalizar) memorias. A meméria, que via de regra ajusta o tempo narrativo para o passado, surge nesta narrativa paradoxalmente como ferramenta que nos impulsiona ao futuro, na medida em que a personagem inicia sua trajet6ria na cena sem conheci- mento exato do seu passado. Ao tempo que vai acessando os figurais de memoria tensionados com o presente, ela vai produzindo informacées-dados que a reco- nectam com sua identidade ancestral. A identidade nesse contexto cénico apre- senta-se de forma liquida. Como a solitaria mulher do fundo do mar no principio 16 Antimemérias de uma travessia interrompida do espetaculo nao tem acesso 4 sua histéria ancestral (resultado de um apaga- mento de meméria traumatico e provocado por ela ter sido lancada ao mar de um. navio negreiro), sua identidade adquire entao as formas dos objetos que caem ao longo da sua trajetoria-vida no fundo das aguas, submetida a uma artificial con- temporaneidade cultural. Ela ajusta-se aos objetos que vém da superficie mari- tima e que foram jogados pelos navios que cruzam os mares, Na narrativa cénica da mulher do fundo do mar, a superficie dos mares assume o lugar do céu. As operativas tentativas de memédrias justificam sua exist¢ncia. Ao longo dessa histo- ria, surge uma coprotagonista: a mulher-espelho que surge como um falso “outro ser” e leva nossa personagem principal a acreditar numa improvavel nao-solidio, onde o reflexo do espelhamento estimula uma reflexio ideolégica e autocritica, disfarcada de consideracoes sobre “a outra”. Uma alteridade artificializada. Ap6s a traumatica descoberta-revelacio de que a mulher-espelho na ver- dade 6"si propria’, a mulher do fundo do mar resigna-se na sua real solidao e inicia uma busca do que seria a sua origem fundamental (em um esforco induzido para além da meméria oficial da superficie ocidental), através da juncao de (resquicios) objetos-rastros que caem dos navios que cruzam o oceano durante o espetdculo. Quem sou eu? De onde vim? Pra onde eu ia? Pra onde eu vou? Nessa busca através dos objetos-rastros que descem da superficie dos mares, a mulher do fundo do mar vai conectando a ideia de que (assim como 0s objetos que hoje possibilitam a logistica de sua vida no abismo dos oceanos) ela também outrora fora jogada de um outro navio. Ela foi lancada de um navio negreiro que cruzava 0 oceano Atlantico no trajeto Angola-Brasil. Essas pos- sibilidades se cruzam numa tessitura narrativa que nao define com exatidao matemiatica a origem dos fatos, mas estimula a fruigao do trajeto maritimo na superficie perigosa das aguas oceanicas (e histéricas). Temos aqui a possibilidade de uma identidade liquida, que dialoga com a identidade cruzada de povos dias- Ppéricos que, trazendo os figurais ancestrais de sua origem, confrontam-se com 0 figurais culturais dos locais para onde foram deslocados geopoliticamente. 7 Dramaturgia Negra Através dessa ficcdo, onde uma cidadi africana apresenta-se em cena com uma pele deteriorada pelo sal das aguas oceanicas (em um metaforico processo erosivo de camadas identitérias da sua negra epiderme), proponho a ideia de que as narrativas ficcionais existem para preencher lacunas da realidade. Lacunas que a histéria oficial ocidental sedutoramente nos oferta através de apagamentos stibitos de dados que deletam o trajeto natural de povos que sofreram (ou ainda sofrem) compulsérios deslocamentos territorialistas. Hoje em dia, todo e qual- quer deslocamento territorial aciona instancias de seguran¢a dos Estados-Pafses. Atualmente os deslocamentos territoriais tem sido considerados fontes de risco e perigo para todas as administragées puiblicas. Através de uma tensdo entre a memoria oficial e a memiéria subterranea, essa narrativa ficcional nos leva ao mais profundo dos oceanos. Esse mergulho tem 0 intuito de resgatar e reconstruir o imagindrio de identidades liquidas que adquirem formas diversas com os deslocamentos, apesar de nao perderem sua constituicao ancestral. Aldri Anunciacéo 18 Cena-Rastro 1 MULHER DO FUNDO DO MAR Antimemérias de uma travessia interrompida Em uminfimo e recortado foco de luz, percebemos uma mulher completamente nua. Seus cabelos esto molhados e gotas de dgua deslizam lentamente por toda sua pele negra. Ela permanece em siléncio por alguns instantes, encarando uma plateia acomodada na secreia escuriddo do teatro. Ela inicia entdo leves passos desinteressados sobre o sal branco que toma conta de todo 0 piso do palco. Uma sonoridade estranha e aquosa toma conta do ambiente. Como que tentando entender de onde venho, sinto na minha pele vibracées. Um dtimo de calor vindo de uma regio central que pulsa e bombeia um vermelho suco que alimenta meus 6rgios mais vitais! Percebo nessas 4guas circundantes sinais de reconhecimento e historia... da superficie. (Otha para o céw-mar) Superficie que respira e desconhece minha milenar existéncia. As 4guas contam histérias. Quando elas se atritam com a pele, seja onde for, elas tentam explicar a forca natural das coisas nao ditas, mas sabidas por todos! Todos sabem de sua histéria, mesmo que nao reconhecam. E aqueles que sabem da sua histéria com certeza vao saber da minha! A prova disso é a sensago que vocés sentem ao me ver aqui... no espaco circundado de Aguas abismais. Essas Aguas que a0 ‘mesmo tempo me preservam viva com a sua concentrada quantidade de sal vital, também me mantém estatica no tempo... e no espaco arrogante de todas as histérias oficiais e preservadas nas palavras de linguas ocidentais. Minha histéria, por ser inconscientemente sabida, diz muito de todos! Porque todos temos de reconhecer que as histérias no fundo fazem parte de um todo... impulsionado por nés mesmos. Seja através de pequenas atividades cotidianas realizadas desde nosso amanhecer, 19 Dramaturgia Negra 20 até nossos perturbadores desprezos pelo que aconteceu com 0 outro. Acreditem... com certeza... talvez todos saibam mais de mim do que eu de mim mesma! Aqui no fundo, tentem perceber as 4guas como um espelho numa posicao de ponto cego na parede. Aquele ponto que parece nao espelhar quem esté na frente. Mas no fundo.,. bem no fundo sabemos que se trata da realidade espelhada. Esse espelho reflete um passado que também Ihes pertence. Um passado que construiremos juntos aqui e agora! Eu na minha solidao abismal... e vocés na terra firme das conviccSes. Mas lembrem-se: a terra firme pode se tornar menos firme por conta desse oceano que me circunda! Acreditem! Ah... como voces nao esto aqui no fundo do mar... irei me referir a voces como pedras! (Ri) Aqui e agora, voces serao pedras! (Ri.) Pedras no fundo do mar. Pedras! (Ri) Sons de apitos de navios antigos invadem o ambiente. A mulher do fundo do mar realiza entdo uma coreografia a partir da harménica sonorizacao subaquatica. Nessa coreografia a nossa personagem vai ajustando e organizando o espaco, como que formatando uma arruinada-enferrujada sala de escritério (home office), com diversos livros velhos espalhados pelo chao de sal branco, Através de aéreos tubos enferrujados, quatro objetos-meméria caem em diversos tamanhos na cena-rastro. Nossa personagem nao reage a esses objetos. Em uma leve coreografia, ela se aproxima de um microfone enferrujado ‘fixo em um pequeno pedestal de mesa na velha escrivaninha. Cena-Rastro 2 MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR ‘MULHER DO FUNDO DO MAR Antimemérias de uma travessia interrompida Ainda na coreografia dancada, a personagem vai se vestindo com velhas e surradas pecas de roupas espalhadas no cendrio e nas camadas de sal do piso. Sentada a escrivaninha enferrujada, a mulher do fundo do mar ajusta o velho microfone a boca, como que se preparando para uma palestra. Estou... Um objeto-meméria cai pelo tubo enferrujado, interrompendo sua fala, A mulher se levanta, pega o objeto, analisa-o e guarda-o no bati-parede, Estou no fundo... Um outro objeto-meméria cai pelo tubo enferrujado, interrompendo novamente sua fala. A mulher se levanta, ‘pega 0 objeto, analisa-o e guarda-o no bati-parede Estou no fundo do mar... Mais um objeto-meméria cai pelo tubo enferrujado, interrompendo mais uma vez o que iria ser dito. A mulher se levanta, pega o objeto, analisa-o e guarda-o no bai-parede. Estou no fundo do mar! Simples assim! Aqui nao faz barulho! Nao... nao vim por conta prépria. (pra si mesma) Ou sera que vim? (pausa) Nao lembro ao certo. Estou aquil E isso é o que importa. Peixes... muitos peixes passam por aqui dias e noites! Alias dias e noites sao algo muito 2 Dramaturgia Negra 22 MULHER DO FUNDO DO MAR ‘MULHER DO FUNDO DO MAR distante de mim. Consigo perceber um ponto l4 no alto: quando claro... dia! Quando nada.... noite! As vezes tenho lembrangas! Vivo, quando lembro. E quando lembro em fluxo... nossa!!! E muita gente... Mais um objeto-meméria cai pelo tubo enferrujado, interrompendo mais uma vez 0 que iria ser dito. A mulher se levanta, pega o objeto, analisa-o e guarda-o no baii-parede. E muita gente! Incrivelmente carregado de gente! (pra si mesma) Gente. Sim, eu lembro de gente. Gente na maioria das vezes me comove! Me comove mesmo.... de coracdo! Gente olha pra voct e diz: “Ol4!”. Engracado! Old vem de “Olhe Ié...”, a saudacao em si ordena que nao olhem pra gente. Mas que olhem pra ld! E assim a gente vai nessa ordem subliminar de afastamentos! Um outro objeto-meméria cai pelo tubo enferrujado, interrompendo sua fala. A mulher se levanta, pega o objeto, analisa-o ¢ guarda-o no bati-parede Ola! Entao eu me lembro de gente, sim! Assim como eu me lembro da superficie! A terra firme das convicgses. ‘As pedras podem estar perguntando como eu vim parar aqui! Nao importa! Eu t6 aqui. No fundo do mar! Onde nao hé encontro. Serd que eu segui a maxima ordem do “Ola”, hein?! (breve pausa) Ainda nao sabemos ao certo... ou pelo menos ainda nao construimos a razao de eu estar aqui. Fato é... que aqui estou! E aqui, eu vou daqui para ali... dali para aqui... e pronto! Ah... antes que a gente pule esse ponto, pode parecer uma loucura, mas eu to viva, viu?! MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR Antimemérias de uma travessia interrompida Um outro objeto-meméria cai pelo tubo enferrujado na cena- rastro, interrompendo a fala. A mulher se levanta, pega 0 objeto, analisa-o e guarda-o no bait-parede. Aqui neste lugar aquatico, suave, azul, onde o som é algo que vem transmitido por moléculas de aguas em fluxo continuo penetrando o meu corpo, talvez eu esteja até mais viva do que 14 em cima! (Aponta para a plateia) Sabe que esse fluxo de Aguas produz sensacdes? Muitas sensacdes! Sensacdes que me fazem lembrar de uma época. (pra si mesma) Epoca? De uma época! Pronto! Epoca! Agora comega a hist6ria! Falou-se em época, logo podemos comegar. Levanta-se da mesa enferrujada e dirige-se para frente da mesa numa articulacdo mais ligeira e académica. Houve uma época em que eu nao tinha essa imensidao! Alias, eu tinha uma imensidao, sim! E a imensidao que eu tinha nao me pertencia, sabe? Mas nao me pertencia porque eu nao queria! Tudo era menos real. Tudo era fugaz! Tudo era mentira, Nada do que se pensa que foi criado, foi criado realmente! Tudo foi uma doce ilusao pictérica. Os sentidos criados por aqueles que respiram em terra firme nao passavam de caminhos neurolégicos desviados! (rindo) Pequenos e induzidos desvios neuroldgicos. Desviados de uma coeréncia... emocional! As emocées se desgrudavam daqueles que respiram na terra firme das conviccdes... e se perdiam no tempo e no espaco! Um outro objeto-meméria cai pelo tubo enferrujado, interrompendo a fala. A mulher pega o objeto, analisa-o ¢ guarda-o no bail-parede, 23 Dramaturgia Negra ‘MULHER DO FUNDO DO MAR Cena-Rastro 3 24 MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR Eles deixavam escapar e nunca mais as encontravam! Viviam a segunda doce ilusao de que tais elementos emotivos voltariam um dia! Nunca voltaram! (breve gargalhada) As emocoes ficavam por la! Nao se sabe por onde! Por isso eu vim até aqui... (pra si mesma) Eu vim? Siibita sonoridade figural de navio singrao siléncio do ambiente. ‘A mulher do fundo do mar interrompe sua palestra, coloca os ouvidos contra a parede-funil, identificando através dos sons quais objetos esto por chegar através dos tubos enferrujados. Ela senta-se ao lado do bati-parede, na espera dos objetos- -meméria que estao prestes a cair no seu confinado home office. Entao um outro objeto-meméria cai sobre o chao de sal. A mulher se levanta, pega o objeto, analisa-o e coloca-o sobre mesa enferrujada. Bom... até onde me lembro, eu vim aqui pro fundo por vontade propria. (pra si mesma) Vontade propria? Um outro objeto-meméria cai no seu home office, interrompendo a sua fala, A mulher se levanta, pega o objeto, analisa-o e coloca-o sobre a mesa enferrujada. Mas posso estar enganadal Fato é que aqui eu encontro as emogées perdidas da terra firme das convicgdes! Aquelas emocées! Um outro objeto-memoria cai na cena, interrompendo novamente sua fala. A mulher se levanta, pega 0 objeto, analisa-o ¢ coloca-o sobre a mesa enferrujada, MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR ‘MULHER DO FUNDO DO MAR Antimemérias de uma travessia interrompida As possibilidades de encontra-las sio infinitas! Posso encontré-las dentro de alguma dessas ostras...atormentadas e invadidas por pequenos graos de areias! Nunca que nossos coracdes iriam permitir essas invasées. E muito louco isso, né? Por isso eu digo: é preciso saber lidar com a propria lucidez... lidar com a propria inteligéncia... pra que ela nao te engula e te leve a caminhos estranhos e descompassados da respiracdo. A inteligencia as vezes deseja preencher tudo! Até mesmo aquele espaco de tempo entre a inspiracdo... ¢ a expiracio. Um outro objeto-meméria cai no chao de sal, interrompendo a sua fala. A mulher se levanta, pega 0 objeto, analisa-o ¢ coloca-o sobre a mesa enferrujada. Esse espaco deve permanecer vazio. E uma vacancia que determina 0 compasso de algo que nao sabemos © que é. E nenhum entendimento deve preenché-lo. Ha quem diga que exista uma vida inteira dentro desse intervalo de respiracao! E que, sendo assim, a gente é feito de diversas pequenas vidas. Cada respirada... uma vida que se completa. Se em um minuto voce respira cinquenta vezes... ent4o voce viveu cinquenta vezes em um minuto. (sorriso) Simples assim! Agora eu pergunto: aqueles que respiram sabem disso? Um outro objeto-meméria cai no chao de sal, interrompendo a fala. A mulher se levanta, pega 0 objeto, analisa-o e coloca-o sobre a mesa enferrujada, (irritada) O tempo é algo sagrado que precisa ser respeitado! E tudo possui seu tempo. Logo, tudo é sagrado! Um outro objeto-meméria cai no chao de sal branco. 25 Dramaturgia Negra 26 MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR ‘MULHER DO FUNDO DO MAR Por exemplo, agora neste momento estamos trocando os nossos tempos. Um outro objeto-meméria cai no chao de sal branco. Vocés esto me dando os seus, e eu estou lhes dando o meu... tempo. Um outro objeto-meméria cai no chao de sal branco. Logo, uma troca sagradal Se eu Ihes sagro o meu, vocés me sagram os seus. Um outro objeto-meméria cai no chao de sal branco, E ai se faz.ajustica! Simples assim! A gente ajusta nossos tempos. Nossos tempos se entrelacam, ¢ neste exato instante somos um tempo sé! Um outro objeto-meméria cai no chao de sal branco. A mulher do fundo do mar, cansada, se apoia sobre o monte de objetos que estao sobre a mesa enferrujada, e permanece estdtica no seu fluxo-pensamento que segue escorrendo para a plateia. Bem verdade que meu tempo té aqui no fundo do mar... separado da terra firme das conviccoes! Tem pessoas que dizem que os tempos acontecem ao mesmo tempo. Que nao existem passado, presente e futuro. Essas trés instancias acontecem ao mesmo... tempo! Isso significa que o passado nfo € tao estatico como pensamos, e o futuro nao é tao maleavel como queremos. MULHER DO FUNDO DO MAR Cena-Rastro 4 Antimemérias de uma travessia interrompida A mulher pega um objeto-meméria da mesa. Um facho de luz faz um recorte sobre o objeto em sua mao. Euliem um desses livros que a retina dos nossos olhos capta a imagem com um certo tempo de diferenca. Entre o momento em que a luz ilumina o objeto... e o momento em que a informacdo é enviada pro cérebro, existe um delay! Um tempo! Ou seja, tudo o que a gente vé agora, neste momento, na verdade ja é passado! Nesse momento, a mulher do fundo do mar escuta uma espécie de sirene de navio em alto-mar que “singra” a sonorizacdo do ambiente, Ela observa diversos lados do espaco, como que desequilibrada com 0 chamado insistente do navio que cruza os mares na superficie, De stibito, a mulher do fundo do mar dirige-se para uma pequena e enferrujada escada de trés degraus que se encontra encravada nas camadas de sal branco do piso do fundo do mar. Ao se posicionar no alto da pequena e enferrujada escada, em um efeito cortante de luz, somos remetidos a uma outra atmosfera. Nao percebemos mais 0 arruinado home office receptor de objetos-meméria que caiam constantemente da superficie dos mares. Uma espécie de foco (de luz) recorta os olhos da mulher, e outro foco sugere uma contraluz. Atmosfera escura. A mulher do fundo do mar assume agora uma outra dic¢ao (0), como que se transformasse em outra pessoa em um dtimo de tempo correspondente & mudanca da iluminacao do ambiente. Sua voz agora é projetada por um microfone enferrujado que reverbera redimensionado por todo o ambiente. Ao fundo (em todo 0 cendrio) sdo projetadas imagens lancinantes que ar Dramaturgia Negra 28 MULHER DO FUNDO DO MAR, localizam trechos e pedacos de memorias que remontam figurais estilhacados, tematicamente relacionados a épocas de navios negreiros flutuantes, A mulher do fundo do mar desenterra umarfita prateada da areia e a amarra no antebraso esquerdo. A voz da mulher do fundo do mar é microfonada. Atensdo ao fato de que as frases enunciadas em yorubé significam exatamente a frase anterior enunciada em portugués. (dicgao I) (semigrito) Nao... nao quero ir! Vocés pensam e acreditam que o melhor pra mim é entrar! Mas algo me diz que essa embarca¢io no me levard pra onde voces estdo planejando! E que planos so esses? O trajeto pode nao corresponder aos fatos! Awon gigun le ko baamu awon mon! Sei que a historia nao vai registrar esse fragmento de tempo, onde me indisponho na entrada de um navio grande e imponente que se deseja maior que Deuses! Eu reitero e imploro que se me colocarem neste navio... tempestades internas vao acontecer, dilacerando coracdes de ambos 08 lados! Consequéncias imensuraveis se alastrando por todo o planeta... espalhando ddio e tristeza... repito, para ambos os lados! Almas distanciadas clamarao por conforto e retorno de confortaveis colos maternos! Awon gkan ti o ni ckun n kighe fun itunu ati ipadabo awon ofin ti iyara. E mesmo 0 conforto forjado e aparente surgiré de forma fugaz, insisto, para ambos os lados! Repulsa miitua e ataques histéricos contra imateriais designios de fé ocorrerao, reitero, para ambos 0s lados! Desejos de vinganga e requintes de regozijo de soberania. Excesso de trabalho paradoxalmente conjugado com inexisténcia de colhimento de resultados se estabelecerio, prevejo, para ambos os lados! Esquecimentos de identidade, aliados a busca dela, assim como apropriacao indevida e ilegitima de culturas ancestrais, reforco... para ambos os lados! Agbegbe ti idanimo, ti o darapo pelu wiwa fun re, bakanna pelu aisedeede ati aibikita ti awon asa idile, Cena-Rastro 5 Antimemérias de uma travessia interrompida iranlowog.... fun awon mejejil Pequenos botes em vao tentarao reaver resgates de fortunas materiais e imateriais através dos mares, como que um ajuste de contas...e isso afetara ambos os lados! Cidadios afundarao em mares azuis... eno instante em que sentirem nas suas peles o sal das Aguas oceanicas, no mais saberdo esclarecer de onde vinham e para onde iriam, E apenas saberemos que este mergulho vibrara seguro ‘no consciente e inconsciente de... ambos os lados! Ambos os lados! Ambos! Ambos! Lados!!! E ambos os lados! Esse meu Momento... em que sou estatica frente da entrada desse navio, alertando generosamente toda essa visio que por mim perpassa.... esse fragmento de historia nunca seré narrado! Esse fragmento de histéria nao sera considerado nos autos oficiais! Eu reclamo ao tempo que registre na forca dos ventos o ocorrido. E que a cada ouvido que esse mesmo vento acariciar este fato seja magicamente contado... e narrado! Plasmado! Narrado! Enviado! Comunicado! Falado! Enunciado! O vento eo fato... narrado! Ti so! Ghe sil Te Tu Loro! Awon afefe ati otito... so! Som ensurdecedor e continuo da sirene de navio corrompe o ambiente. Em um efeito de luz, somos remetidos de volta para a atmosfera do arruinado home office dos objetos-meméria da mulher do fundo do mar. Stibito siléncio. Sonoplastia figural de navio ecoa ao longe. Nao se sabe ao certo se 0 som vem Ié do alto da superficie dos mares ou dos recantos da meméria da mulher... ou mesmo detras da plateia. A mulher do fundo do mar desce da pequena enferrujada escada de trés degraus. E senta-se na mesma escada. Contemplae se regozija com 0 som figural do navio que cruza a superficie. Ela olha fixamente para o céu-mar. 29 Dramaturgia Negra MULHER DO FUNDO DO MAR, Cena-Rastro 6 30 (olhando pro alto) Ab... mais um a cruzar 0 imenso oceano, cortando as Aguas verdes-azuis dos mares. Daqui posso sentir as vibracdes do mecanismo que se mobiliza nas 4guas criando ondas invisiveis que vém acariciar a minha pele! (Otha a propria pele atrds da palma das maos. Estranha algo na sua pele, mas logo segue o fluxo de pensamento) Quantas pessoas esto naquele navio? (pra si mesma) Ou bote? Ou barco? Pra onde elas pensam que esto indo? Qual 0 objetivo de cada uma delas? Quantas estdo neste momento a olhar profundamente essas aguas... pra elas misteriosas e inabitaveis? (solta uma gargalhada) Coitados! Eles nao sabem do impossivel... do possivel! Nao sabem que eles também podem vir até aqui! Basta se jogar... se lancar no espaco existente entre 0 mar e eles. E assim mergulhar bem fundo! E se desprender de la. La? Eu jé ndo sei mais o que é ld. Aqui, eu me desprendi de algo que me aprisionava. Mas que ao mesmo tempo me alimentava. Os desejos de deslocamento... ou mesmo os deslocamentos involuntérios resultantes das conviccGes severas daqueles que respiram sempre nos impulsionam pra terras utépicas. Terras que possuem perfeicao somente em nossos imagindrios. (leve riso) Por isso, sempre que posso, recolho-me nesses maravilhosos imagindrios utépicos da mente! Onde nenhum tubarao pode me atacar! Onde nenhuma convicgao da terra firme possa levar a caminhos incertos! Ser4 que veio dai a causa da minha existéncia abismal neste oceano?! (Olha para o céwmar) Eles cruzam ‘os mares, mas nao sabem pra onde vao! De stibito, altos e estranhos sons parecem vir de dentro dos tubos enferrujados, alegrando em expectativa a solitaria mulher do fundo do mar. MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR ‘MULHER DO FUNDO DO MAR Antimemérias de uma travessia interrompida L4 vem mais alguma coisall! Mulher do fundo do mar vai até os tubos amarelos. Decepciona-se ao perceber que nada vem de la. Nada? Parece até que eles sabem que eu t6 aqui. Muitas yezes, adivinham meus pensamentos! Perseguindo novamente o som, ela vai até o bati-parede, que estd na direcdo contréria da mesa enferrujada. De repente, do alto do céu-mar, cai diretamente na sua mesa enferrujada uma lata de ervilhas, surpreendendo levemente a mulher do fundo do mar. Lacrada...e té na validade! Olha sé! (Senta-se a mesa enferrujada,) Eu nao acredito que alguém tenha desistido dessa lata de ervilhas! Se alguém jogou, jogou coma plena consciéncia de que alguém receberia por aqui. Seria uma oferenda religiosa? Uma vez jogaram um livro que falava sobre as ofertas aos mares. Guardei esse livro...té ali no armério! Se essa ervilha foi ofertada pra alguma Deusa, ela que me perdoe e me empreste essa comida! Vai até o bai-sanfona e ininterruptamente procura algo. Simultaneamente ela segue seu fluxo-pensamento. ‘Muitas vezes me vém 4 memoria imagens de pessoas jogando coisas ao mar! Nao sei se sio minhas memérias... ou alguma foto que eu vi! Mas sao imagens bonitas de pessoas alegres... vibrantes... como se aquele ato deixasse elas mais satisfeitas. (Acha um abridor de lata no bati-sanfona.) Satisfeita estou eu agora... aqui... prestes a comer essas ervilhas! (Vai em direcdo a mesa enferrujada 31 Dramaturgia Negra 32 ‘MULHER DO FUNDO DO MAR ¢ comeca a abrir a lata de ervilhas.) Eu penso que 0 ato de doar deve ser louvado! Podemos até questionar que quem. recebe deveria batalhar pelo seu. Mas nem sempre temos essa possibilidade. Como eu, por exemplo, aqui no fundo desse oceano. Vou trabalhar de qué? Pra quem? Por qué? Ao menos eu poderia pescar... pescar os peixes... meus vizinhos aqui embaixo. (Termina de abrir a lata de ervilhas e fala ao microfone enferrujado.) Mas a0 mesmo tempo acho muito desinteressante e nada agradavel vocé matar os seus vizinhos. Eles me respeitam também. Por exemplo, uma hora dessas, eles jd estariam aqui me incomodando por causa dessas ervilhas. Mas nao! Eles me respeitam. Nao invadem meu espaco! (Pega um prato que sai do bati-sanfona e volta para a mesa enferrujada, sentando-se.) Bom apetite pra mim mesma! Humm... que delicia! Vieram na hora certa! Como as coisas sao, nao 6? Essas coisas dos pensamentos aqui funcionam muito bem! Uma vez eu pensei: “Preciso de algo que me ajude a dormir de noite”. Pois tem uns peixes que perambulam por aqui em altas horas, que é um inferno!!! Entao eu pensei : “Bem que podia cair algo 14 da superficie que pudesse me ajudar contra esses peixes noturnos”, Pronto! Foi pensar que logo desceu esse objeto aqui... Levanta-se de stibito na ansiedade de mostrar o objeto, um ventilador velho enferrujado que esteve todo 0 momento no canto do seu afunilado home office. Liga o ventilador..A mulher aciona 0 dispositivo na base do velho ventilador que comeca a funcionar... girar. Seu giro desenha pequenos redemoinhos nas aguas que vdo em direcdo a mesa com prato de ervilhas. Euligo e esse troco gira! E vai espantando os perturbados peixes noturnos! Bela invencao! Aqueles que respiram inventam é coisa l4 em cima! (Termina de dar a tiltima ‘MULHER DO FUNDO DO MAR Antimemérias de uma travessia interrompida garfada nas ervithas) Uma vez jogaram esse aparelho aqui! (A mulher vai até 0 bati-livreiro e pega um pequeno ¢ velho smartphone.) Foi quando conheci o Pedro! Ab... vocés ainda nao conhecem o Pedro?! (Senta-se na cadeira enferrujada,) Pedro é um amigo, que mora aqui dentro. Ele nao fala, Ele ¢ estatico. E suas emogdes sou eu quem determino. (Mostra uma foto de Pedro) Ola o Pedro aqui, alegrao, olha! (Muda a foto de Pedro no smartphone. Projecto na parede de imagens de Pedro, redimensionando a acdo da nossa personagem.) Aqui, ele t4 mais angustiado... triste! Aqui dentro Pedro faz é coisa. As vezes eu coloco ele assim do lado... (Coloca smartphone-Pedro na mesa enferrujada) E fico horas conversando com Pedro. Um parceirao! S6 nao entendo por que ele nao sai dat de dentro. Ele chegou nessa caixinha... e ai ficou. Mas enfim... cada um com seu jeito! Aqui na casinha do Pedro tem um trogo tao interessante! Um som que quando funciona é muito divertido! A mulher aciona uma miisica no smartphone enferrujado, e 0 som fantasticamente alto comeca a tocar uma misica irreconhecivel — algo como uma mtisica enferrujada. Um rastro sonoro do que seria uma musica do Ocidente. A mulher diminui 0 volume do smartphone enferrujado. Uma vez eu li um desses artigos espontaneos que caem de repente ld de cima dos mares, que explicava que a casinha de Pedro causou uma revolucao danada por 1a! ‘As pessoas conversavam através da casa de Pedro. Podiam estar proximas, mas ficava cada uma com sua casinha de Pedro! Sé conversavam assim. Até que um dia eles deixaram de reconhecer as proprias vozes. (pra si mesma) Imagino que deva ser uma loucura quando vocé perde a nocao do que realmente sao as coisas. Entao restava 33 Dramaturgia Negra MULHER DO FUNDO DO MAR Cena-Rastro 7 34 MULHER DO FUNDO DO MAR apenas a voz interior! A voz interior! Mas... e esta? Era possivel ser ouvida? A mulher do fundo do mar leva as cosias da mao aos ouvidos, na tentativa de ouvir sua voz interior. Nao consigo ouvir mais nada. Sons de baleia invadem o ambiente. A mulher do fundo do mar tenta perceber de onde eles vém, Reconhece que vém da esquerda do home office, e reage como se estivesse entendendo as baleias. Olha para 0 braco direito e retira um pedaco da velha roupa, deixando 0 antebraco exposto, no qual vemos amarrada uma fita prateada igual a encontrada na areia da Cena-Rastro 4. As baleias so muito amigas! Sempre que elas passam por aqui clas ndo deixam de me cumprimentar. E sempre mandam mensagens enigméticas. Agora mesmo, pediram pra eu deixar exposto meu antebraco direito. (estranhando) Hé muito tempo eu nao reparava no meu antebraco direito. E que aqui eu nao preciso tirar a roupa pra tomar banho. Estou sempre fresquinha e lavada! As correntes maritimas sempre me acariciam, e assim eu nao preciso nunca tirar essa roupa... alguém jogou la de cima, faz muito tempo. Jé nem me lembro mais ao certo quando foi. Eu acho essa roupa bonita! Ajusta-se bem ao meu corpo e me deixa pronta pra qualquer eventualidade. Vai que alguém aparece aqui de repente pra tomar um vinho! (Precipita-se para o batt Cena-Rastro 8 Antimemérias de uma travessia interrompida girat6rio e retira um vinho enferrujado. Coloca-o na mesa enferrujada.) Olha que beleza! Caiu lé de cima... assim! Cheinho! Mas eu sempre tomo uma taca. (Pega duas tagas enferrujadas no bat-gaveta) Coloco sempre essa outra ta¢a aqui. Como se alguém fosse aparecer pra beber comigo. Eu sei que as possibilidades so minimas aqui... no fundo desse oceano. Mas sempre ha uma possibilidade pra tudo, né? E matematico. E devemos sempre estar preparados para as possibilidades! As possibilidades so algo criado por aqueles de 14 de cima! Aqueles que respiram na terra firme das conviccdes! Mas, em verdade, foi a natureza quem criou as possibilidades. A natureza criou de forma tao pertinente as possibilidades, que aqueles la de cima pensam que foram eles que criaram. (rindo) E sao felizes assim! E isso é importante. De repente sons de multiddo em desespero invadem o ambiente aqudtico. Através de um efeito de luz, somos remetidos a uma outra atmosfera. Nao percebemos mais 0 arruinado e velho home office da muther do fundo do mar, com piso de sal branco, Uma especie de foco de luz ilumina de modo a deixar a muther do fundo do mar em contraluz. Atmosfera obscura. A mulher do fundo do mar assume agora uma outra diccao (I), como se se transformasse em outra pessoa, em um dtimo de tempo correspondente a mudanga na iluminagdo. Ao fundo, projecdes que subliminarmente remontam a figurais distorcidos de espacos, de florestas arruinadas e grandes embarcagoes de possiveis navios negreiros, A voz da mulher do fundo do mar ¢ agora microfonada, juntamente com os incémodos sons de multidao em desespero. 35 Dramaturgia Negra 36 MULHER DO FUNDO DO MAR (diccdo I1) (semigrito) Eu tenho filhos e meus filhos tem mie! Nao sei do que se trata essa jornada! Emi ko mo ohun ti irin-ajo yii je gbogbo! Se voces nao sairem de cima de mim, pelo leite materno que sorveram todos os cidadaos da terra, alimentando de forca aqueles que se voltaram contra a sua propria genitora, eu juro que o outrora leite vital se verterd em veneno mortal dentro de suas entranhas, ea travessia ndo se concretizaré! Eu tenho filhos e meus filhos tém mie! Mo ni awonomo wewe ati awonomo wewe mi ni Mama! Vocés nio podem me deixar em estado de paraiso invertido! Saiam de cima de mim... Gba mi kuro! O leite secou! E voces ainda insistem em mim... seca e desnutrida de meus préprios nutrientes vitais, tornados alimentos de sua propria ganancia e brutalidade? Saiam de cima de mim... Gba mi kuro! Eu preciso respirar! Eu nao consigo me mover! Pra onde voces navegam? E por que tanta festa numa travessia tao conturbada? Saiam de cima de mim... Gba mi kuro! Essa morada nao lhes pertence! Nao depositem suas forcas dentro de mim! Parem! Nao vou ficar! Por favor, nao me tornem parte desse universo distante e desconhecido que por ora se apresenta tinico! Nao faco parte deste ritual! O meu leite t4 secando! Nao adianta doloridas manipulagées. . O meu leite secou! Saiam de cima de mim! Gha mi kuro! As Aguas la embaixo nao estao contentes! Quem disse que nao se pode ver com as maos? Quem disse que sé se vé com os olhos? As aguas gritam... eu tenho filhos e meus filhos tém mae! Mo ni awon omo wewe ati awon emo wewe mi ni Mama! Dai-me a vida como eu vos dei um dia, e me lancem nos mares infindaveis do retorno. Eu ainda nao fui... mas ja quero voltar! Mo fe pada sehin! Nao me apertem! Nao me toquem! Minhas Aguas estao gritando! Minhas aguas esto secando. A navegacao nao esta ajustada! Saiam de cima de mim... eu tenho filhos Cena-RastRo 9 MULHER DO FUNDO DO MAR Antimemérias de uma travessia interrompida e meus filhos tém mie! Mo ni awon omo wewe ati awon omo wewe mi ni Mamal A mulher cai exaurida no chao de sal branco, como que esvaziada de energia. Em um efeito de luz, somos remetidos de volta para a atmosfera do arruinado home office da solitaria mulher do fundo do mar, De repente, sons metilicos de uma corrente maritima ecoam, assustando a mulher do fundo do mar. Ela fica atenta, e na expectativaolha para osladose porentre os aéreostubos enferrujados. Subitamente os sons interrompem-se, dando lugar ao siléncio, Por um momento, achei que finalmente serviria uma taca de vinho a alguém! Mas ta bom assim! Eu bebo nas duas tacas... e assim bebo mais. (Sorri.) Nesse momento, 0 fluxo de pensamento da mulher do fundo do mar é interrompido pelos mesmos sons metdlicos de uma corrente maritima, idénticos aos da cena-rastro anterior, porém muito mais fortes. Trata-se de uma corrente maritima que traz um objeto-meméria que logo percebemos se tratar de um grande espelho, jogado de algum navio que cruzava a superficie maritima naquele momento, Siléncio contemplativo em frente ao novo objeto, agora fincado sobre as camadas de sal branco do home office. A mulher pega o grande objeto- meméria (espelho). Observa-o cuidadosamente. Quando ela vira 0 objeto e percebe sua prépria imagem espelhada, assusta-se e joga o espelho ao chao de sal branco. A mulher do fundo mar contempla silenciosamente, pela primeira vez, a sua imagem refletida no grande espelho fincado na areia de sal branco. Ao 37 Dramaturgia Negra 38 MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR ver o espelho, a mulher do fundo do mar encara seu proprio reflexo como se fosse um outro ser, uma outra pessoa com quem estd agora dividindo o espaco abismal do fundo do oceano. A mulher comeca entdo a dialogar com a propria imagem. Quem esta ai? A mulher do fundo do mar esté completamente surpresa com a possibilidade de alguém estar dentro de algo com uma espessura tao fina, Ela entende o espelho como uma espécie de caixa transparente. Bla circula o espelho tentando desvendar o mistério. (aturdida) Como voce consegue ficar dentro desta caixa? Rapidamente ela pega uma trena enferrujada no bat giratéria, e comeca a medir a espessura e altura do espelho. Como é possivel? Olhando pra vocé assim de frente, eu diria que vocé é até encorpada... (encabulada) Vocé consegue sair dai? Nao se sente confinada? Tenho espaco suficiente pra nés duas aqui fora. Vem! Aqui somos eu e alguns peixes. Pode vir! (Aguarda uma reacao da mulher do espelho) Ta bom! Nao quer vir! (Caminha para sua mesa enferrujada) Posso supor uma razao pra esse seu receio! Realmente aqui eu nao tenho os melhores equipamentos da vida moderna! Tudo isso que vocé vé sao objetos que vieram lé de cima! Da superficie dos mares! Mas nao me incomodo! Todas essas coisas ainda funcionam muito bem! Tenho coisas repetidas... como a casinha de Pedro por exemplo... posso lhe dar uma! (Vai até o bati giratério.) Hei! Vocé também tem uma dessas casinhas! (sorrindo) Antimemérias de uma travessia interrompida Vejo que temos muito em comum! E gosto dessa sua roupa! Gosto muito! Igual a minha! (Observa a prépria vestimenta.) Dei sorte que o corte se ajusta perfeitamente ao meu corpo! Tem horas que penso que... embora me caia bem, eu poderia experimentar outras coisas! Minha meméria as vezes me trai... e eu no consigo me lembrar do que eu vestia antes. Vocé nao té entendendo, nao é? E assim, quando essa roupa caiu aqui em baixo, eu vestia outra coisa que ndo me lembro exatamente o que era. E a0 mesmo tempo que sinto falta dessa “outra coisa que nao me lembro o que era’, essa roupa ja faz parte de mim. Quer dizer... eu fui inserida nela! Ela agora é minha, entende? Pelo menos eu acho que ela me pertence. E isso! Nao devo me desfazer! Mas ao mesmo tempo... veja bem... ao mesmo tempo sinto que devo me lembrar da minha antiga “outra coisa que nao me lembro o que era’. Uma certeza que sinto, de que a “outra coisa que nao me lembro o que era” me foi muito importante, e guiou a minha alma em algum sentido bem fundamental. Mas minha memoria, invadida por essas aguas salgadas, no me permite ter acesso a esses dados! De modo que nao tenho mais acesso Aquela “outra coisa que nado me lembro 0 que era”, Mas no vamos empacar neste assunto! ‘Vamos distrair um pouco! Eu tenho algumas bebidas aqui e podemos escolher algo pra beber! O que vocé gosta em termos de bebida? Temos... deixe-me ver... vinho branco.... cervejas... refrigerantes... sucos enlatados alguns drinks! O que voce prefere? Nao sabe o que quer? Bom. ., entdo vamos de vinho branco. (Ri) Vamos distrair porque uma das conviccdes lé de cima é que a vida é algo que passa... e rapido! ‘A mulher do fundo do mar aciona no smartphone-Pedro uma miisica com predomindncia instrumental de balafons, djambés 39 Dramaturgia Negra 40 MULHER DO FUNDO DO MAR e kora tradicional. A miisica invade totalmente o ambiente, e ela danca com a muther-espelho uma coreografia inusitada. De repente cansada, a mulher do fundo do mar termina o niimero musical bastante feliz, ¢ senta-se sobre a mesa enferrujada. Poxa! Divertir também cansa! Descobri essa canco em um pen-drive. Provavelmente quem jogou o pen-drive no mar devia estar de saco cheio de ouvi-lo. Mas nem tudo que pra gente é enjoado e repetitivo o é para todos os outros! Eu ouco essa cancao todos os dias, como se fosse uma oracdo ou um mantra! Me faz bem! (Sorri,) Vocé ai dentro, me fale de vocé! De onde voce veio? ‘Até onde quer chegar? Suas preferéncias de comida? Gosta de viajar? Trabalha com 0 qué? E quando tem folga, o que mais gosta de fazer? Hobbies? Tem algum? Filhos? Mulher? Parceiro? Preferéncias sexuais? Gay? Hétero? Bi? Pan? Trans? Cis? Namora? Fica? Ou é casada? E politicamente? £ de esquerda? De direita? Centro? Extremos? Tem conta no banco? Qual? Porque isso faz toda a diferenca! Aplica seu dinheiro onde? Iméveis? Bolsa? Poupanca? Fundos de rendimento fixo? E casa prépria? Jé tem? Ou té pagando financiamento? Porque se ainda paga financiamento, o imével ainda nao é seu! Parece ser... mas nao é! Carro? Possui? (irritando-se) Possui carro, mulher? Me responda? (irritando-se ainda mais) Nao vai dizer nada? Ah... é isso, né?! Vocé é nada! E apenas a moradora do espelho.... que nada faz... nada realiza.... nada comunica! Nada! Nada! Nada! E nao me da nenhuma chance de Ihe conhecer. Nem ao menosa sua voz? A voz interior ainda vai la... é dificil mesmo de se ouvir! Mas a sua voz metilica. .. cadé? Emita sua voz metilica! Friccione mecanicamente esses dois musculos vocais e se apresente, mulher! Assim é dificil! Assim nao tem conflito! Me devolve meu vinho... que vocé nem bebeu! (Mulher do ‘MULHER DO DO MAR Antimemérias de uma travessia interrompida fundo do mar pega o vinho e bebe) Se vocé nao bebe, eu bebo! Sabe por qué? Porque eu nao preciso de vocé! T6 aqui j4 faz algum tempo, e eu me basto! Nao preciso de nenhuma caridade... de companhia! Agora vocé, com essa sua aparéncia estranha... essa sua roupa ridicula, essa sua cara de indefinida, ndo convence ninguém! Esta muito claro que essa roupa nao lhe pertence. voce nao lembra aquela coisa que era! Voc¢ deve estar se perguntando: “Por que ela té me tratando assim? O que eu fiz a ela? Eu nem sequer falei com ela!”. Pois é exatamente isso que té me deixando intrigada, mocinha! Vocé nao me diz nada! Vocé nao me ajuda em nada! De que mat¢ria eu sou feita? Pra onde eu vou? E até onde eu vou? Sim... porque pode parecer absurdo, mas tudo isso aqui nfo me pertence! Eu sei... eu admito! Vieram ld do alto... (Empurra irritada uma cadeira enferrujada ao chao . que de sal branco.) Tenho plena consciéncia disso! Cabem no meu corpo, se ajustam bem na minha sala... (Joga o prato com ervilhas ao chao de sal branco.) Mas na verdade eu nao me lembro... eu nao me lembro... eu nao me lembro!!! Nesse momento, diversos objetos-meméria comecam a cair ininterruptamente dos aéreos tubos enferrujados. Em quantidade que aumenta gradativamente, caem sem parar durante toda a cena. Mas, diferente das outras vezes, a mulher do fundo do mar nao dé.a minima atencao, pois estd estressada com a mulher-espelho. Nao lembro... ou entocaram no santuério da minha meméria! E isso, eu preciso de alguém que me ajude a acessar esse santuario! Esses livros aqui (Abre o bati-livreiro, jogando irritada varios pelo chao.) nao me dizem nada quanto a essa questo! Nada! Jé li tudo... e nada! Tenho a leve sensacio de que me roubaram! Parece que apagaram a a Dramaturgia Negra 42 ‘MULHER DO FUNDO DO MAR minha pessoa. Esconderam a mulher que realmente sou... (Empurra a outra cadeira ao chao.) Vocé veio la do alto... da terra firme das convicgées! Eu vil Nao foi ninguém quem me falou, nao! Eu vi vocé descendo ld de cima, til? Por isso sinto que vocé é minha tinica esperanca! Pelo menos alguma coisa me deixa tranquila e aliviadal Sabe o que @ Saber que nao sou assim que nem vocé! Estranha... asquerosa! Vestida com uma roupa que nao lhe cai bem... alids, nem deve existir algo que lhe caia bem! Olha esse cabelo! Essa pele! Esse olhos! Prefiro nao saber quem eu sou, a ser assim que nem vocél (Grita.) Vocé é muito feia! Feial Feial!! (Empurra a mesa, virando todos os objetos que se misturam no chao de sal branco.) De repente, seguida por um som ensurdecedor, comeca uma inesperada e tremenda tempestade marinha no fundo do oceano. ‘A mulher do fundo do mar se assusta com o som do que seria um tornado marinho. Fla reconhece a gravidade das tempestades marinhas. As coisas se mexem como que fossem partir ao meio. Oespelho comeca a girar com muita velocidade, impulsionado elas correntes da tempestade marinha. A mulher do fundo do mar percebe que o espelho pode se quebrar a qualquer momento, ou mesmo ser levado embora pelas correntes da tempestade marinha. Ela tenta conter seus objetos nos lugares, mas muito atenta ao espelho para que ele nao se quebre. Segura-o por um tempo, mas a tempestade ¢ suficientemente forte para conseguir desvencilhd-la do espelho, que comeca a rodopiar mais forte ainda. O espelho rodopia em velocidade e some no vasto oceano, por entre cardumes assustados. A mulher do fundo do mar grita pelo espelho, mas esse jd se foi. (gritando) Mulher, nao se va! Espere! Nao se va! Nao me deixe aqui sozinha! Volte! MULHER DO FUNDO DO MAR Cena-Rastro 10 Mutuer po FUNDO DO MAR Antimemérias de uma travessia interrompida Os objetos-meméria param subitamente de cair dos tubos enferrujados.A tempestade marinha também vai se acalmando, e conseguimos ver a mulher do fundo do mar em seu home office completamente desarrumado pela tempestade. Mas agora em calmaria e em siléncio, Ela esta triste por nao ter conseguido segurar a mulher-espelho, que se foi com a tempestade marinha. Osiléncio se instala em definitivo no ambiente abismal. (triste) Ela se foi! A mulher-espelho se foi! A mulher do fundo do mar comeca a ajeitar a mesa enferrujada ¢ as duas cadeiras que estavam viradas ao chao sobre a areia de sal branco. Ela tenta recompor a desordem causada pela tempestade marinha. Mostra-se muito cansada e abatida por uma atmosfera de falta de sorte... e pelo fracasso por nao ter conseguido evitar que a mulher-espelho fosse embora com a tempestade marinha do fundo do mar. Que besta que cu fui! Aquela mulher parecia ser gente boa! Mas nao me contive! Estava cansada de somente brigar com os peixes! Mas tal e qual os peixes, ela nao reagial!! (estranhando) Ela nao reagia! E que roupas eram aquelas? Definitivamente ela nao tinha bom gosto! Sua aparéncia também nao era das melhores! Uma pele desgastada! Uma cor que nao era feia, mas também nao me chamava atenco! (contemplativa) Sim, aquela pele nao me chamava atencao. A pele! A mulher olha e analisa a pele das costas ¢ das palmas de suas préprias maos. 43 Dramaturgia Negra MULHER DO FUNDO DO MAR MULHER DO FUNDO DO MAR Cena-Rastro 11 Ak MULHER DO FUNDO DO MAR ‘Minha pele té igual a delal (leve pausa) Onde est minha melanina? Pra onde foi minha melanina? O sal! O sal branco tornou vulneravel a minha pele! A minha pele! ‘A muther do fundo do mar rapidamente comeca a tirar a sua Toupa, em um pequeno desespero egoista, Ao ficar novamente nua, ela espalma as maos e se pergunta, Quem roubou a minha pele? Pega um pouco de sal e esfrega na prépria pele. Cansada, nua e jogada ao chao de sal branco, a mulher do ‘fundo do mar recobra energias. Abre o batt retira um livro enferrujado do bat-livreiro, Um estranho som livreiro. A mulher subaqudtico invade o ambiente e intensifica-se gradativamente. Ela abre o livro enferrujado e comeca a ler. Uma vez eu encontrei uma garota na rua... naquele instante ela vendia balas... ela devia ter seus quatro ou cincos anos de idade. No entanto, a sua face era como se fosse de uma velha. Era uma velha-menina. Aquela face me transmitia uma sabedoria tao grande, que antes de ela tentar me vender aquelas balas, eu pedi pra que ela se sentasse e me dissesse alguma coisa. Ela me perguntou: “Como assim, alguma coisa?” Eu disse: “Qualquer coisa”, Entao ela disse: “Alguma coisa ou qualquer coisa? (breve pausa) Quer comprar balas? Sao doces como 0 mel!” Foi entao que eu pensei: “Claro! Eu nao havia me dado conta de que a bala copia o efeito do mel”. E mesmo sendo o mel MUuLHer po. FUNDO DO MAR Antimemérias de uma travessia interrompida algo da natureza e portanto gratuito, eu estava preferindo comprar a bala, que seria a copia da copia do mel... e que nem era natural! Por que eu tava querendo comprar a cépia, quando eu poderia ter 0 original de graga? Coma mulher do fundo do mar ainda com o livro enferrujado aberto nas suas maos, percebemos se desdobrar no cenério a projesdo da prépria imagem da mmulher lendo o livro enferrujado, como se o livro fosse uma webcam que captura a imagem do seu leitor e a projeta por todo o cenério subaqudtico. Logo em seguida vemos projecdes de varios corpos negros flutuantes no fundo do mar. Corpos sem face. Homens, mulheres e criancas. Corpos flutuantes em projecdo. A mulher entao percebe os corpos flutuantes em projegdio e arrisca um leve sorriso, talvez pela posstvel ndo-soliddo, ainda que com corpos mortificados. (dicgao IM) Okun na si wa... ati awon okun tio wa niwaju mi ni ailopin. O navio seguia... ¢ 0s mares na minha frente eram infindaveis. As razGes que me levavam adiante eram as mesmas que me faziam querer ficar. Okun nasi wa... ati awon okun tio wa niwaju mi ni ailopin. Mas estavamos todos naquela embarcacao. Os pordes dos navios nos tornavam, invistveis! Apenas as frestas de luz que vinham do piso do navio riscavam nossas peles! Sim. .. 0 piso era 0 nosso teto. ‘Mas, ainda que riscados pelas frestas de luz, estavamos invisiveis ali. A vontade de invisibilidade nao correspondia com a relacao espelhada da vaidade feminina. Mas ainda assim nunca vou me reconhecer em um espelho. Eu nao conheco mais o meu rosto riscado de luz. Eu nao conhego mais o meu corpo! Eu me pergunto: quando é que se quer ser invisivel? O porao parecia nos proteger daqueles mares. Seguiamos sem rumo! Simples assim! Gente na maioria das vezes me comove... me comove mesmo... de cora¢ao. lati ‘Awon eniyan julo ti akoko ghe mi... gan fi owo kan mi.. 45 Dramaturgia Negra 46 MULHER DO FUNDO DO MAR inu. Nossos corpos apertados nos forcavam a imaginar uma multidao! Uma pequena multidao de cinquenta pessoas! Eu tenho filhos. do piso-teto vinham pingos invasivos da dgua do mai e meus filhos tem mie. Dos tracos vazios E nossos corpos quentes e molhados pelas invasivas 4guas grudavam-se uns nos outros... e naquele momento eu me sentia mais segura! Eu ouvia as velas insistindo... velas presasinsistindo em voar pela forca dos ventos. .. 0s ventos... aqueles que registram tudo! Mas minhas maos apoiavam-se no casco-fundo daquele navio! © desejo de invisibilidade era a fonte de nossas forcas! As ondas mexiam na contramio como que insistindo num posstvel retorno nao desejado por alguns e almejado por muitos! Eramos de vontades dispares... Deuses dispares...embora iguais! Vozes dispares, embora iguais! Linguas dispares, mas unificadas e igualadas pelos pedacos de madeira soltos daquele casco-fundo de navio! O casco! Minhas maos apoiadas no casco. Ao colocar meus ouvidos no casco, eu podia ouvir o palpitar cardiaco dos mares! (Imita o som de batida cardiaca.) Os mares vivem! Os mares pulsam! E aquelas cinquenta vidas! Cinquenta vidas! Repito: aquelas vidas que respiravam de acordo com © palpitar do coraco dos mares... Sim, respirévamos em conjunto como se féssemos um sé! A cada respirada, uma vida que se completava... E 0 espaco existente entre ainspiracao a expiracdo era preenchido por nossas expectativas por la! E pela saudade antecipada de cé! Em alto-mar, o ar de nosso peito comecava a escapar, se juntando aos ventos... nosso ar aos ventos! Afefe wa si aon afefel Uma sonoridade de tempestade maritima invade o ambiente. Com o ar do peito tornado vento... nossos pesos excediam! Ultrapassavam a linha do controle! Um excesso de peso e de esperanca que condenava meu corpo ao fundo dos ‘MULHER DO FUNDO DO MAR Antimemérias de uma travessia interrompida mares. Opo ti iwuwo ati ireti tio da ara mi lebi isale awon okun.Os meus filhos, que tém mie, foram os escolhidos ao martirio de lancarem-se ao mar... como que em um sacrificio aos mares. Meus filhos escolhidos por aqueles que pisavam em nosso céu frestado de luzes! Foi quando eu gritei: “ye owo fi awon omode kekere meta... je dogha pelu iwuwo ti iyal’,“a soma do peso de trés filhos pequenos...é igual ao peso da mel”. Ninguém me ouviu. .. mas eu repeti: “A soma do peso de trés filhos pequenos... é igual ao peso da mae!", “iye owo ti awonomode kekere meta... je dogha pelu iwuwo ti iyal”. Sim, subi aos céus do piso daquele navio. E encontrei finalmente a fonte dos pingos dos mares que nos refrescavam. Meus bragos entdo ficaram enormes... e longos...¢ assim, eu abracei os mares! Abracei o imenso mar com os meus bracos longos e gigantes! Nesse momento, percebemos finalmente o esfriamento de uma atmosfera aquosa na cena. Imagens borbulhantes de dguas azuis tomam conta do ambiente, e uma sonoridade aqudtica se amplifica onde percebemos o embate sonoro das moléculas de oxigénio com as moléculas das éguas dos mares. Por entre imagens confusas de dguas azuis, percebem-se trechos de mantos prateados. A mulher do fundo do mar se confunde por entre essas projetadas imagens, que de stibito somem, deixando apenas um leve e cortante foco de luz azulada sobre 0 rosto da mulher do fundo do mar que, com um leve sorriso, ainda diz: Gente na maioria das vezes me comove... me comove mesmo! De coracao! Awon eniyan julo ti akoko gbe mi. gan fi owo kan mi... lati inu. A imagem projetada da mulher, agora com imensos e gigantes bracos, se dissolve lentamente no fundo das aguas ocednicas. Fim 47 ey era Ly Cristiane Sobral Ba aPC) eave pet ted PILINTRADO Dramaturgia Negra Cena 1 50 ‘Voz EM OFF Percussionista negro toca no cajon um ponto de Exu. Imbarabé é mojuba Awa afoxé Omodé bogi goi Imbarab6 ¢ mojubé Elegbara Exd Lona Laroié! Bard 6 bébé tiriri Lona Exi tirirf Bard 6 bébé tiriri Lona Exi tirirf (Cancao de dominio piiblico) Mulher negra entra com uma mala nas mdos, de onde durante acena vai retirar vérios objetos. Veste-se com roupa em tecido africano estampado, usa um turbante e vdrios colares coloridos. Nos pés, sandélias rasteiras. No centro do palco esté uma cadeira, na mesma extremidade a direita uma garrafa de cachaca e um copo de vidro, Na direita frontal do palco um cesto de palha com muitos bizios, um instrumento indigena, pequeno chocalho com pena verde. Entao eles disseram 4 minha mie por detras da porta: “Essa garota nao nasceu da sua barriga, no se iluda, vai crescer, vai virar uma cobra, uma puta, olha como parece mulher-macho, é esquisita, preta, cuidado, pode até matar a propria mie!”, EsPERAX, Esperando Zumbi Eu ouvi muito bem as frases ditas por eles, os vizinhos. Cresci, venci aquela gente malvada e me tornei, entre outras coisas, uma cobra, sim, com toda a poténcia de Oxumaré, o transformador. Aprendi a entender a maravilha de ser cobra e também entendi que ser cobra nao era pra qualquer uma. Engoli antropofagicamente a vida, o que de bom havia, inclusive tudo de melhor que mamie deixou com 0 seu imenso amor e um mundo de palavras. Digeri, escrevi, escrevo e escreverei um universo de narrativas, eu, a menina estranha e transformista, a transformadora silenciosa das histérias, a cabocla Jurema, a pombagira do fundo do quintal, a zé pilintrada e cheia de vida. Aquela do riso alto e largo. A mulher feliz e do gozo eterno. A fémea altiva que gosta de viver. Eu tenho mie, sim, sempre tive, nos meus perrengues, minha mae dona Maria Navalha, ela risca faca no chao! Eu tenho pai, sim! Seu Zé Pilintra, nao bole com ele, nao. Eu tenho tio, sim, seu caboclo Arranca Toco, ele te quebra no meio. Eu tenho padrinho, sim, meu tio Ogum me dé caminho que é uma beleza. Eu tenho tudo, gente, eu tenho tudo, no me falta nada, Quem me tem é Oxum, Oxéssi, Ians3, Ogum e Oxumaré também. Eu sou muito obediente aos que cuidam de mim. Quem tem Orix4 tem tudo. Esperax entra em cena Alguém viu Zumbi? Voce viu Zumbi? Voce? Vocé viu Zumbi? Zumbi, um negro alto, forte. Ele marcou comigo, ele... Zumbi, alguém viu Zumbi? Ele marcou comigo, ele disse que vinha, ele! Zumbi. Um negro alto, forte, Zumbi. Voce viu Zumbi? Ele disse que vinha. Vocés nao sabem quem é Zumbi? Ele disse que vinha. Zumbi, um negro 51 Dramaturgia Negra 52 alto, forte. Vocés nao sabem quem é Zumbi. Vocés vio ver s6 quando Zumbi chegar. Esta estranhando a minha roupa? O meu cabelo? Sim, estou negra, estou afro, brasileira, indigena? E vocé, esta europeu? Vocé é europeu? De onde? Voce é europeu de onde? Vocé sabe o que é europeu? Voce é latino? Fala quantas linguas indigenas? Fala espanhol? Por qué? Cadé Zumbi, menino? Vocé nem sabe quem é Zumbi, t4 meio estranho, foi o capitalismo, né? A televisao faz isso, 0 McDonalds, a coca-cola, o shopping, 0 acticar, isso faz mal, gente. Claro que devem existir muitas razSes para que Zumbi ainda nao tenha chegado Zumbi nao veio porque foi abduzido, por 99% das loiras que pegam os nossos homens negros; Zumbi nao veio porque entrou na geracao fast food, comeu demais, engordou e poderia estar com medo de aparecer disforme; Zumbi nao veio porque nao deseja visitar um pais tao racista como o Brasil; Zumbi deve ter perdido a hora, é verdade, os congestionamentos, os transportes, sao terriveis; Zumbi pode ter sido acometido pela dengue; Zumbi morreu assassinado em um confronto coma policia. Cena 2 EsPERAX, EsPrraX, EsPERAX, EsPERAX, Esperando Zumbi (fala como se em transe) Meu nome talvez seja negrindeuropeia cabocla jurema afroeuropeindigena europeiamestica caradepau afrocorrompida por fulano de tal brasileira que fala portugués na América Latina que fala espanhol, eu so sei que nao sou Gilberto Freire, pelo amor, eu sei que nao sou, sei lé, sinto, cafuza confusa que ha tempos nio toma sol, enganada pela televisio mais esttipida do mundo, nao sei o meu nome, sou colonizada, nunca fui amada por ninguém além de Zumbi, nem pensar, acho que mentiram pra mim, acho que mentiram, sou colonizada, sou brasileira, o espelho é mentiroso, quem me deu foi o colonizador portugues. Nao finge, nao acredito nem na esfinge, ninguém me devora. A solidao da mulher negra apavora. Cadé eu, cadé Zumbi? Volta a apelar para a platcia. Vocé viu Zumbi? Zumbi! Eu sé quero saber onde esté Zumbi, seré que vou ter que apelar para a maldade? Abre.a mala, pega uma faca de cozinha grande e fala com raiva: Vocés vao ter que responder se viram ou se nao viram Zumbi. Eu vou riscar a faca no chao, riscar a faca no chao trés vezes e voces vao cantar comigo. Risca a faca no chao trés vezes. Canta trés vezes, risca trés vezes em tom ritmado. E preciso incentivar para que o piiblico acompanhe, Ainda com a faca na mao, di ‘A verdade é que vocés nao sabem o que uma mulher é capaz de fazer enquanto est esperando o seu homem. Eu 53 Dramaturgia Negra 54 outro dia estava trabalhando no campo, bem entretida com 0 servico, de repente apareceu um homem branco, com aquela cara de homem branco tarado, de macho hegeménico, aquele bem enquadrado na caixa de macho, que se acha bem machio, ficou me olhando como se eu fosse um pedaco de carne e salivando muito, bem nojento, ele pulou pra cima de mim pra querer me estuprar, eu lutei com ele até o fim com a faca na mao, nao foi facil nio, gente, sentir aquele bafo podre de colonizador em cima de mim, eu lutei de tudo quanto foi jeito, o que eu ia dizer pro meu homem? Eu sei que nao pensei muito quando eu meti a faca no bucho dele, quantas vezes? Sei 1a, quantas vezes o meu Odio permitiu. Eu fui penetrada por aquele homem, minha gente, isso me déi muito, mas eu também penetrei aquele bicho com a minha faca. Um tempo depois eu comecei a perceber uma tristeza, um cansaco, eu que sou mulher de Zumbi e mulher de Zumbi té sempre cheia de coisa pra fazer, andando daqui pra lé, organizando as coisas, eu fazia meu servico, mas me cansava a toa, fui ficando pesada, um sono bravo, até que um dia no campo, mexendo com as folhas, eu senti um negécio melado saindo de dentro de mim, parecia um bicho estranho me rasgando por dentro, do mesmo jeito que aquele homem me rasgou, sé que dessa vez nao entrou dentro de mim, foi saindo aquela coisa pequena, branca, melada, eu vi uma crianga escorrendo pelo meio das minhas pernas e pensei: “O que eu diria para Zumbi? O que eu poderia dizer ao meu homem? O que fazer, meu Deus? Othei aquela crianga branca, com cara de gosma, e lembrei do homem nojento, eu chorei muito, como se ele me rasgasse por dentro de novo, eu pensei: “Ai, meu Deus, que nojo que Cena 3 PILINTRADO Esperando Zumbi eu tenho dessa gente, nao podemos viver em paz, eles estdo sempre cruzando o nosso caminho”. Eu olhei aquele menino pilido, pensei que podia crescer pra ser capitio do mato, que crescer que nada, aquele troco tinha que morrer ali mesmo, sem demora, eu comecei a apertar 0 pescoco do menino, pensei em jogar da ribanceira, eu tinha direito de me vingar, eu tinha, ninguém sabe a dor que uma mulher sente quando é invadida por dentro sem permissdo. Mas de repente, eu quase finalizando o menino, tive que olhar nos olhos dele, do jeito que 0 agressor olhou nos meus olhos, e quando eu olhei bem, eu tava l4 dentro dos olhinhos dele, o menino, o menino, o pedacinho branco de gente tinha, ele tinha, tinha sim 0s meus olhos, os meus olhos, negros, meus olhos negros. Eu nao pude matar os meus olhos, eu nao pude, eu ndo consegui, nds nao somos iguais a eles, Zumbi, nao somos assim. Eo menino viveu pra crescer decente, aprender a respeitar uma mulher, cresceu pra saber que foi Zumbi. Como é preciso uma aldeia pra criar uma crianca, eu entreguei o menino pra ser criado na comunidade, porque eu tinha muito o que fazer. Entrega o menino, um lenco que antes estava amarrado na barriga de Esperax, para alguem da plateia. Esperax abre a mala e tira um charuto, senta em uma cadeira que esté no centro do palco e fuma 0 charuto com muito prazer e ceriménia. Eu acho que a culpa é dos contos de fada sim, a culpa é das historias unicas, das narrativas eurocentradas, claro, porque nelas ha sempre uma mulher esperando alguém, 55 Dramaturgia Negra Cena 4 56 EsPERAX EsPERAX um macho, um principe, um trouxa qualquer. E uma mulher, esperando. O mundo é dos machos porque eles roubaram das fémeas e ai colocaram nomes masculinos em tudo que é valoroso. Homem, mulher, o que é 0 género? O que é? Ninguém quer pensar, mas quem domina ja decidiu. (Ri muito) A palavra dinheiro 6 masculina, a palavra casamento também, a palavra filho, sexo. (Ri muito) O primeiro gozo de uma mulher quase sempre é um homem que oferece e af elas permanecem escravizadas. (Ri muito.) Pilintrado apaga o charuto em um copo com dgua que esté atras da cadeira, Confianga, diz a minha pombagira enquanto dana a cobra preparando o bote como crianca distraida no rebote com fé, com forca, lingua tesa gira gira nas ondas Oxumaré manjar jura exunizada com Iemanjé cobra me cobre do hoje e do oj confianca serpente com cara de crianga a bailar enche meu sexo de esperanca avida parindo espiral de nova vida Esperax volta a questionar a plateia, anda no meio do piiblico. Alguém viu Zumbi? Ei, vocé, viu Zumbi? Vocé? Viu? Vocé? Viu? Ele marcou comigo? Disse que vinha? Ele, um homem alto, homem negro forte? Negro como vocé? EsPerax. Esperando Zumbi O que foi? Vocé nao sabe se é negro? Vocé viu Zumbi? O qué? Vocé viu? Vocé viu? O qué? Ele marcou comigo? Ele é negro? Cadé Zumbi? O tempo vai passando e a espera vai ficando cada vez mais insustentdvel, a mulher tenta se enganar, mas percebe-se que nao esté bem, ansiosa, meio fora de si, gestos nervosos... E possivel que ela pareca louca aos olhos do espectador, que muitas vezes poderd rir mesmo nos instantes mais dramdticos, em funcao da expectativa do piiblico que nao é atendida porque a mulher que esté em cena nao é nem de longe o estereétipo de mulher que a plateia espera quando pensa em alguém que ama. espera o ser amado, um heréi, um homem de honra. As pessoas fora do palco talvez considerem ridicula a situagao. E uma reaso esperada pela dramaturga e atriz, que deseja afetar o espectador de forma que ele reflita e possa perceber, a partir do momento que comeca a se identificar com a humanidade da personagem, 0 racismo e 0 preconceito presentes em nossa sociedade. Talvez essa sensacdo nao seja tao confortdvel, o piiblico poderd tossir, sair no meio da apresentacdo, rir, apés ter sido afetado inesperadamente. No desespero, insiste: Zumbi é um homem de palavra. Serd que sofreu algum acidente? Pode ter esbarrado com algum capitao do mato na casa grande capitalista de nossos tempos e por isso ainda nao teria conseguido aparecer, mas ele disse que viria. Vai perdendo argumentos, chora copiosamente, emite gargalhadas nervosas em uma espiral crescente, agita 0 corpo ¢ as mdos, caminha pelo palco em linha reta, diagonais, para, comeca a andar novamente, até 0 climax. Pausa. Esperax mostra 0 que uma mulher no auge da espera ¢ capaz de fazer. Abre a mala, passa perfume e veste calcinha rosa. Fala no centro 87 Dramaturgia Negra 58 EsPERAX EsPERAX EsPERAX, do palco. E uma mulher mais velha, desiludida pelo tempo ¢ pela espera infértil Vocés sabem por que Zumbi nao veio? Vocés vao ver quando Zumbi chegar. Vocés sabem onde esté Zumbi? Por que nao me disseram nada? Eu sei, agora eu sei, sei, sim. Vocés, vocés, crépulas, covardes, fascistas! Voces sabem onde esté Zumbi? Ele marcou comigo, ele disse que vinha, ele... Vocés nao sabem quem é Zumbi. Voces mataram Zumbi, vocés mataram Zumbi, foi isso? Eu sou mulher de Zumbi, tenho direitos, tenho direito de esperar o meu homem. Eu tenho direitos. Se vocés mataram Zumbi, agora vio ter que me ajudar a enterrar. Uma pessoa de bem precisa ter pelo menos quatro amigos, quatro amigos pra segurar 0 caixio. Comeca a andar no meio da plateia. Se voces mataram Zumbi, agora vio ter que me ajudar aenterrar. Escolhe aleatoriamente quatro homens nao negros entre os espectadores, que sao convidados a subir ao palco para segurar 0 corpo imagindrio de Zumbi, Seré feito 0 enterro.O percussionista vai tocar um canto finebre doido e Esperax vai colocar o cesto de palha na cabeca e caminhar com o cortejoem semicirculo pelo palco junto com os homens até a parada final. Zumbi, um homem negro, alto, forte. Ele disse que vinha, ele, ele marcou comigo. Sua meméria nao ser4 esquecida. Zumbi est aqui, esta sim, sempre estar, eu sou Zumbi, Zumbi vive! Zumbi vivel Jé nao espero, sou aquela por quem se espera. Sou Esperax. Eu sou Zumbil Voz EM OFF Esperando Zumbi Aguia de sangue automutilacao no foi mito no fundo de minha caverna eu a dguia de sangue vislumbro novos voos mortes inevitaveis intraduziveis dor pelo saber nao pelo sofrer meu saber ali se aperfeicoando na fraqueza na dureza da vida eu dguia de sangue nunca estive tio nua téo crua to nova diante da vida entregando minhas légrimas deixando rasgar a pele do sofrimento eu dguia de sangue recém-parida nascida de si feita j4 a despedida desta que nao quero mais ser Iuto-morte antiga mazela morre, me mata e depois me deixa bela pra enfrentar dguia nova a batalha dessa vida. 59 PGT [Es Dione Carlos Dy EE ere ee eee te eg Pere ete Cc Car ners COr en heen teers ccna tary eee cts Dramaturgia Negra O agora é agora O agora ¢ passado O agora ¢ futuro Uma conjuragio magica de forcas passadas ¢ futuras, no presente. Niama Safia Sandy, antropéloga. O Afrofuturismo nao cria em oposigdo a nada, Nao tem a ver com confirmar algo. Tem a ver com ser algo. Ytasha Womack, escritora. O propésito desta ficcdo (baseada na teoria da bolsa, em contraponto ao da Tanga) nao é nem a resolucdo, nem a estabilidade, mas 0 processo continuo. Ursula Le Guin, escritora. Se wo were fi na wo sankofa' a yenkyi [Nao é tabu voltar para tras e recuperar o que vocé perdeu]. Provérbio do povo ashanti, do Golfo da Guiné 1 Passaro ancestral de duas cabecas (representando o passado e o futuro). 62 PROLOGO TALopes lalodés A grande Mae Passaro esta presente. Ela se faz ouvir. (cantam) Passaro de duas cabecas Nos lhe invocamos, em nome de nossas avos Nossos verdadeiros nomes Nomes de sangue Livres de corrente Sonhos vivos Sabedoria latente De avé-ewé-folha sagrada Sabedoria de mulher De avé benzedeira Ancestral presente Olhai por nés, Grande Mie Passaro Livrai-nos dos olhos de pimenta, das bocas amargas Que toda mé-dgua seque Eo mel escorra em seu lugar O mel das avés O ouro das maes Neste lugar, aqui, agora Onde nossas avés estao presentes Em cada gesto Em nossos nomes Apresentam-se. ‘Ayobami (Que a riqueza me encontre) Femi (Me ame) Bisi (A primeira filha) Oni (Nascida em casa sagrada) Asali (Mel doce) 63 Dramaturgia Negra A COLMEIA 64 Bist Oni Bist Oni Bist Oni Bist Femi Oni Femi (ruidos) Ouviu? Sim O mesmo som, sempre (Mostra uma das mdos.) Continua tremendo Piora quando eu escuto 0 barulho que eles fazem Vai passar Eles produzem ruidos Nés criamos mtisica Precisamos ensaiar, Bisi Ensaiaremos Faremos o que precisa ser feito Nés sempre fazemos A ferida fecha A dor diminui O tremor passa Respeite o tempo da cura, Oni Quanto tempo é isso, Femi? O tempo da lagrima secar perto da boca O tempo da lingua colher a légrima O tempo do sorriso voltar para o rosto Bist Ont Bist Oni Femi AYOBAMI Bist Femi AYOBAMI Oni Bist lalodés Vai passar Queria poder tocar novamente Cada vez que o seu corpo ouve um instrumento, ele se cura Vocé voltar a tocar, pode ter certeza Falta s6 esta mao O resto ja curou, cicatrizou, fechou Fechou Fechou para 0 que nao serve mais Houve um tocador de banjo. Um tocador de banjo comum. Tocava desde os doze anos. Aos quinze, perdeu dois dedos da mao esquerda em um incéndio. Passou a tocar guitarra, com trés dedos. Criou um novo estilo. Tornou-se um génio. Quando vocé esta ferido, consegue extrair 0 melhor do seu potencial. Acredite, Oni. Além do mais, tem as folhas Tem folha, tem mel, tem reza Tem banho de agua salgada para limpar, agua doce para renovar Tem sempre alguém cuidando, em siléncio, sem ser vista Eles so muitos, mas nés somos mais Somos muitas mais 65 Dramaturgia Negra AYOBAMI ASALI Bist Oni AYoBAMI ASALI Fem ASALI AyonaMi ASALI Oni ASALI Bist AYOBAMI 66 Eles separam éxtase de transe. Nao gostam de transe Nao gostam de transe, de transa, de nada Acham que éxtase € um tipo de droga Acham que transe € possessio maligna Vamos ensaiar ‘Vamos responder a este tempo com tudo de bom e ruim que ele nos oferece Quem comeca? Asali tem algo novo Escrevi para mim, tinha pensado em nao mostrar, depois percebi que era para todas nés O que é intimo é universal, Asali E um manifesto Vocé escreveu um manifesto sobre si? Para mim Sobre todas nés Para todas nés E sempre assim Sobre nés, nao é sobre eles Talvez por isso nao nos tolerem ASALI Oni Bist Femi AYOBAMI ASALI Femi Bist ASALI Bist AYOBAMI Bist lalodés Poderia ser sobre eles também, se nao estivessem tao amortecidos Como isso aconteceu? Isso nunca deixou de acontecer Talvez continue acontecendo para sempre Talvez exista uma razdo para continuar acontecendo Razio é algo que desconhecem, nao hé razio nenhuma que justifique as acées deles Nao conhecem o poder do mel, s6 do ferrao Transformar veneno em antidoto exige vontade E preciso muito sangue para exercer a propria vontade Nem todo mundo suporta dormir e acordar com duvida Aalegria 6 um ato politico Aalegria nao é uma realidade Aalegria é uma escolha, um posicionamento existencial Dito isto, comecemos a responder a este tempo com tudo 0 de bom e de ruim que ele nos oferece, pois eles continuam anos chamar de bruxas em todos os lugares. Em seus discursos, nas capas dos jornais, nas radios, na TV, na internet Eu poderia... Nao Temos um cédigo de ética e vamos respeita-lo 67 Dramaturgia Negra ASALI Oni Femi Bist Eu acho que a gente devia mesmo, sabe, por exemplo, considerar... Agir como eles? Jamais seremos como eles, mas... Para proteger a nossa familia, talvez, tenhamos que... Nao Nao mancharemos as nossas mos e tampouco os nossos nomes ‘Vamos comecar Asali, por favor Cinco RAINHAS (coLMEIAS)/ENSAIO DA ARKESTRA 68 ASALI Neste manifesto, reafirmo O meu prazer como um contragolpe Cabem todas e todos aqui Neste esconderij bem guardado Caverna-paraiso perdido Eden-escuro universo Feita de carne, fluidos e sangue Dela cuido eu e bem cuidada E minha, de mais ninguém E preciso chegar com leveza antes de usar a forca Porque eu gosto da forca, mas ela, ela nao, ela precisa [de tempo Ela tem o tempo dela Eu tenho o meu Quando 0s nossos tempos se encontram, se fundem em gozo E nao termina lalodés Acontece de novo E preciso chegar com leveza antes de usar a fora Descascar, lamber, chupar, degustar Como se fosse uma manga Uma manga rosa com 0 interior dourado E doce Vocé nio extrai o melhor com forga Voce machuca, estraga, faz apodrecer E fica com fome Eu chego com leveza, sempre, antes da forca Eu dedilho, me dedico, me concentro, toco com leveza [e forca e leveza e forca Escorro Gozo liquido dourado e doce Murmuro palavras incompletas Nao formo frases Falo em gemido Um som agudo, longo e profundo E preciso chegar com leveza, sempre, antes da forca Para ouvir este meu idioma sem tradugao Este meu gemido poliglota Meu dourado e doce gozo Vem, eu direi Depois da leveza Vem de novo Durante a forca Quero vocé na exaustio ‘A ponto da parada cardiaca Chorando de gozo Nao é alegria E uma pequena morte Ela tem o meu nome Eu quero ouvir vocé gozar o meu nome e nao esquecer [dele nunca mais 69 Dramaturgia Negra 70 Dentro de mim Entra e fica quem eu quero Eu escolho vocé Eu digo sim Se eu digo no, ninguém entra Eu me fecho, seco ‘Mas para vocé eu digo sim, vem Quero owvir as palavras que voce nao usa todo dia: Apoplético Fleumatico Loquaz Pachorrento Pandego Taciturno Incélume Frugal Belicoso Capcioso Empedernido Misantropo Tconoclasta Insolente Pérfido Ardiloso Vocé j4 amou o seu corpo hoje? Eu amo o meu todo dia Todo dia é dia de amar o préprio corpo © meu corpo sempre serd um odsis, mesmo numa [tempestade de areia IL AYOBAMI lalodés Vermelho-rubro-sangue Desses que surge todo més ‘Talvez exista uma fase da lua quea gente ainda nao percebeu Lua nova-ancia Lua crescente-jovem Lua cheia-mie Lua minguante-feiticeira E alguma outra fase desconhecida Talvez nés estejamos sob esta outra fase da lua Recebendo algum tipo de influencia nova Exercendo algum tipo de influéncia diferente nas pessoas Lua-serpente Lua-liberdade Todo més, uma lua Escorrendo, sendo descartada Nao a minha A minha lua, eu planto Consagro a minha lua Todo més Com palavras de poder Consigo 0 que eu quero Tenho 0 que eu desejo Sou encontrada pelo que me deseja Prospero na minha negritude Prospero no meu cabelo, nos meus dentes, nos meus olhos Lua-negra-rubra-vermelha-escura Todo més, uma lua escorrendo pelas pernas Eu nao descarto Planto e prospero Na minha casa tem um jardim de luas enterradas Meu ttero nutriz ainda vazio Todo més, uma lua n Dramaturgia Negra mM 2 Oni Sendo germinada Eu colho as minhas luas Elas crescem fortes Folhas-ewé-de sangue bendito Folhas-ewé-de quem abencoa Um bebé, um desconhecido, um parente Bate as folhas-ewé, coisa ruim leva embora Bate as folhas-ewé, faz dormir o insone Bate as folhas-ewé, dé coragem a quem teme Bate as folhas-ewé, que seja uma boa viagem Planto luas, rego com sangue Planto luas, encontro coragem Para voltar para mim Para dizer que sim Sai ontem, voltei hoje Cheguei agora Quem foi a primeira a sangrar na tua familia? Fla sabia plantar a propria lua? Fla prosperou? ‘Vamos aprender a prosperar? Nao acumular, multiplicar. Vamos? A minha avé veio do planeta Fome Tinha fome e voz Eu tenho voz, dizem Eu tenho maos também Uma delas ainda treme Esta aqui Moldei Deus com a minha mao esquerdae o transformei [em Deusa E para Ela que eu rezo Em nome da Deusa, da mie e da filha lalodés Criamos comunidades em torno de colmeias A minha avé nao deixou a minha mie nascer no planeta [Fome A minha avo, a nossa avé Aavé das cinco rainhas, das cinco colmeias Colmeia-cidade-comunidade-autonomia Nos, rainhas Sim, rainhas O mel matou a fome O mel acabou com aquele planeta Aminha avo sabia onde estava o mel Ela o vendia Ninguém entendia como ela o achava Apenas o passaro no mel sabia O pissaro no mel: Ele se chamava Indicador Indicador* O canto da minha avé o chamava Indicador Indicador, onde est4 o mel? Eelea guiava até uma colmeia escondida dentro de uma [arvore A minha mae, as nossas maes Maes e tias de cinco rainhas Nés, rainhas Sim, rainhas As nossas maes trocaram o mel pelo ouro Eo planeta fome, cada dia mais vazio Aquele planeta estd tao distante de nés agora O nosso planeta é dourado e brilha Ouro: amarelo, denso e maleavel Nascido da colisao entre duas estrelas de néutrons Do espaco sideral para maos artesas Eles nunca entenderam como achamos mel e ouro no [planeta Fome 2. Péssaro que guia humanos até colmeias, através de cantos especificos entoados pelos humanos. 73

You might also like