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LE MONDE

diplomatique
BRASIL
2 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

EDITORIAL

O medo da multidão
POR SILVIO CACCIA BAVA
© Claudius

A
revolta é da multidão anôni- maciças em todas as cidades mais O que antes era considerado um di- Vivemos em uma sociedade orga-
ma. Não há lideranças nem en- importantes, mobilizações que con- reito e também um salário indireto, nizada para espoliar as maiorias em
volvimento de partidos políti- tinuam apesar do assassinato de de- pois compunha os bens e serviços favor dos interesses das grandes cor-
cos. São milhões de pessoas zenas de pessoas, das centenas de fe- necessários para a vida, transfor- porações. Nossa tarefa é desvendar
que protestam em um número cres- ridos, dos milhares de cidadãos e mou-se em mercadoria. E os traba- aquilo que se naturalizou, isto é, a
cente de países. cidadãs presos. lhadores, precarizados, não conse- maneira e os processos de como o ca-
Os governantes, temerosos das E, das reivindicações pontuais, guem pagar a conta. pital e as leis que ele impõe determi-
mobilizações, se preparam para o como o cancelamento do aumento As demandas se politizam tam- nam as possibilidades de reprodução
confronto e a repressão, como é o ca- no preço dos combustíveis, as mobi- bém diante de dois fatores: uma desi- da vida social em todas as suas
so do Brasil, e também amenizam lizações vão se transformando, vão gualdade que vem se tornando a cada dimensões.
suas medidas de espoliação, adiando se politizando, e não se satisfazem dia mais aguda e visível, e políticas de A recusa dos mecanismos de po-
aumentos previstos em serviços pú- mais com concessões tímidas feitas terror para submeter os pobres a der que impõem a dominação é uma
blicos e na gasolina, por exemplo. por governos amedrontados. Passam maiores privações. reação importante e poderosa que
Paulo Guedes, o ministro da Econo- a querer mudanças profundas, uma É o mundo do apartheid reafir- estabelece limites à espoliação. Sozi-
mia brasileiro, encara essas mobili- nova ordem política. É a demanda – mando as discriminações de toda or- nha, porém, ela só se configura como
zações como algo que atrapalha e agora atendida no Chile – por uma dem, expulsando os mais pobres das protesto.
adia seu plano de reformas.1 nova Constituição. áreas que ocuparam para moradia ou A defesa da democracia das elites e
As manifestações são combina- Essas maiorias buscam se defen- para trabalho, retirando-lhes a digni- da propriedade fazia que os protestos
das nas redes sociais, começam pací- der de um ataque sistemático a seus dade, ocupando militarmente as fa- levassem a reformas, como propunha
ficas e a violenta repressão policial direitos, um acúmulo de perdas e sa- velas, transformando-os em crimi- a social-democracia, mas não a mu-
provoca reações que levam as multi- crifícios que tornam cada vez mais nosos a serem combatidos, párias em danças estruturais que permitam a
dões para o confronto e abre espaço difícil a vida cotidiana. Elas sofrem sua própria sociedade. criação de uma nova sociedade, orien-
para opositores mais radicais que de- com a precarização do trabalho e o No caso do Brasil, a opressão e a tada para atender às necessidades das
predam o metrô, incendeiam edifí- desemprego, com a redução dos salá- violência determinadas pelas elites e maiorias. E mesmo essa democracia
cios públicos, saqueiam supermerca- rios, com cortes no orçamento da avalizadas pelas classes médias em- das elites vai desaparecendo. Sem
dos e lojas, bloqueiam avenidas. saúde e da educação, com a reforma pobrecidas garantem a apropriação maiores ameaças a seu domínio, as
Algumas dessas manifestações, trabalhista, com a reforma da previ- por poucos do que, de direito, é de to- elites não fazem mais concessões, não
como a dos coletes amarelos, na Fran- dência, com o aumento do preço dos dos. Onde existe saneamento? Onde se dispõem a um novo pacto social;
ça, comemoraram mais de um ano de serviços públicos, enfim, com a mer- estão as escolas e as creches? Onde a preferem os governos autoritários.
protestos contínuos, todos os sábados, cantilização do que eram bens públi- polícia zela pela segurança dos mora- “É na defesa da vida que se consti-
que agora se tornaram outra vez mul- cos providos pelo Estado. dores? Vem daí o ódio contra todo um tuem as multidões, na defesa do co-
titudinários. Desde maio de 1968 não Muito daquilo que foi construído sistema político e jurídico que só fa- mum, somando as subjetividades
se viam protestos tão amplos como o a duras penas a partir do fim da Se- vorece os ricos; contra a polícia que singulares que se identificam pela
das últimas semanas. O foco está na gunda Guerra Mundial foi privatiza- reprime violentamente todo protesto, pobreza e pelo amor na reprodução
destituição de direitos promovida pe- do. O Estado de bem-estar social so- invade residências, tortura e assassi- do comum... Teremos de descobrir a
la reforma da previdência. Lá também fre um desmonte radical. Em países na friamente favelados, em sua maio- passagem da revolta para a institui-
a repressão policial é forte e encontra como o Brasil, as políticas que busca- ria negros, jovens e pobres. ção revolucionária que a multidão
reações dos manifestantes, que incen- vam universalizar direitos estão sen- As mobilizações dos últimos me- pode pôr em movimento”.2
deiam carros, quebram vitrines, ata- do atacadas. É o caso do Sistema Úni- ses em países da América Latina, da
cam bancos, o que já vem de anos e co de Saúde (SUS). Europa e da Ásia têm o mesmo cará-
tem se tornado uma das característi- O neoliberalismo ataca o Estado ter. Clamam por justiça, democracia 1   “ Bagunça na América Latina fez governo de-
cas radicais nos protestos em Paris. e busca suprimir os bens públicos, e direitos. É a globalização que tam- sacelerar reformas, diz Guedes”, Congresso
em Foco, 1º dez. 2019.
O Chile está conflagrado desde que se transformam em negócios bém cria uma realidade comum vivi- 2   Michael Hardt e Antonio Negri, Bem-estar co-
outubro de 2019, com mobilizações privados. Só quem paga tem acesso. da por toda parte. mum, Record, Rio de Janeiro, 2016, p.11.
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 3

O RETORNO DA CONTESTAÇÃO

Fragmentar o coletivo
Independentemente da coloração partidária, sucessivos aumento das doenças laborais, não querem adiar a
governos pelo mundo encadeiam reformas da previdên- idade da aposentadoria (pág. 4) nem deixar seus filhos
cia. É hora de reconsiderar completamente esse mo- sem direitos. Essa rejeição do individualismo (abaixo)
mento da vida e de repensar o conjunto da carreira, suscita manifestações duramente reprimidas (pág. 9),
estabelecendo, por exemplo, um salário mínimo estu- que entram em ressonância com outras manifestações
dantil (pág. 8). Já os assalariados, que sofrem com o pelo mundo (pág. 6 )
POR MARTINE BULARD*

J
á conhecíamos na França a cifra 51,4% em 2018. O declínio seria então possível deter essas oposições baru- regime de pontos, a regressão seria
dourada de 3% de déficit públi- mais pronunciado: entre 47,1% e lhentas. O valor da pensão – e suas automática: bastaria colocar em prá-
co máximo estabelecida pelo 48%”.1 Superavam-se os 70%, em mé- possíveis reduções – seria quase au- tica uma das variáveis. Daí a irritação
Tratado de Maastricht; desco- dia, antes do primeiro questiona- tomático, resultado de um simples (muito comedida) do secretário-ge-
brimos agora o número fetiche de 14% mento dos direitos dos aposentados, cálculo: o número de pontos adquiri- ral da Confederação Francesa Demo-
do PIB para as aposentadorias. De- há quase trinta anos. dos ao longo de uma vida de trabalho, crática do Trabalho (CFDT), Laurent
pois de ter servido de argumento con- Já em 1991, o principal homem da multiplicado pelo valor do ponto no Berger, que propõe retirar a medida a
tra todo progresso social e econômico “segunda esquerda”, Michel Rocard, momento do início da aposentadoria. fim “de instalar uma nova governan-
durante trinta anos, a primeira foi havia mostrado o caminho com seu Os gestores do sistema (“os parceiros ça e deixá-la ser responsável pelo
questionada pelo próprio Emmanuel “Livro Branco das Aposentadorias”, sociais sob a responsabilidade do equilíbrio a curto, médio e longo pra-
Macron – “um debate ultrapassado”, sobre as recomendações insistentes Parlamento”,3 de acordo com Phili- zo”.5 As pensões seriam assim ampu-
ele declarou em um flash de lucidez da Organização para a Cooperação e ppe) poderiam aumentar o custo do tadas, mas de forma suave.
para a revista britânica The Economist o Desenvolvimento Econômico ponto (para um mesmo salário, se Diante de tal oferta, questiona-se
(7 nov. 2019). No entanto, o presidente (OCDE), que conclamava a “reduzir acumularia menos) ou diminuir o por que o primeiro-ministro persisti-
da República, seu governo e seus por- gastos com a proteção social”.2 Em valor de cada ponto adquirido (com o ria em manter sua nova idade de ba-
ta-vozes apressaram-se em brandir a 1993, Édouard Balladur, que se tornou mesmo número de pontos, se conse- se, a menos que ele veja nisso interes-
segunda cifra para a reforma da pre- primeiro-ministro, retomou o bastão. guiria menos no momento de iniciar se político (agradar à direita) ou que a
vidência. O montante das pensões Desde então, a regressão nunca pa- a aposentadoria). A conta seria pes- pressão da Comissão Europeia seja
pagas pelo sistema de distribuição, rou: recuo da idade oficial de início soal. Cada um poderia decidir se quer ainda mais forte que a de Berger. A
eles nos garantem, não deve exceder (de 60 para 62 anos), aumento no nú- iniciar com uma pensão baixa, ou cada ano, esta examina o orçamento
seu nível atual e, portanto, esse nú- mero de trimestres cotizados neces- trabalhar mais, ou pagar um “adicio- do Estado francês, mas não está de
mero fatídico. Por que 14%, e não 15% sário para ter direito a uma pensão nal” na forma de investimentos em forma alguma satisfeita, já que a
ou 16%? Ninguém sabe. completa (161 trimestres até 172 tri- fundos de pensão. Com a condição França não reduziu seus gastos o su-
A se crer no primeiro-ministro mestres em 2035), cálculo da pensão que se tenham os meios... ficiente. Exige, portanto, medidas fir-
Édouard Philippe, essa seria uma li- sobre os melhores 25 anos da carreira, mes, entre as quais “o alinhamento
nha vermelha a não ser ultrapassada, e não mais sobre os dez melhores pa- de diferentes regimes de previdência
já que nossos vizinhos estão em si- ra o setor privado, desaceleração do Esta é a filosofia dos setores público e privado, [que]
tuação bem mais drástica. A Alema- valor do ponto que determina o nível essencial desse projeto: poderia reduzir os gastos públicos
nha, por exemplo, gasta com isso das aposentadorias complementares, em mais de 5 bilhões de euros até
apenas 10,1% do PIB. Os “especialis- questionamento progressivo dos di-
romper os direitos 2022”.6
tas” simplesmente se esquecem de reitos dos ferroviários ou dos agentes coletivos, valorizar Esse é, fundamentalmente, o ob-
especificar que cerca de um em cada da Autoridade Autônoma de Trans- o individualismo jetivo financeiro dessa reforma. Para
cinco aposentados alemães (18,7%) porte Parisienses (RATP) – os famo- fazer que seu projeto seja aceito, o
vive abaixo da linha da pobreza, con- sos “regimes especiais”. poder destaca as injustiças do siste-
tra 7,6% na França. Se a reforma Philippe-Delevoye – a Assim, as perspectivas finalmente ma atual, especialmente para os pre-
Esse gatilho é ainda mais questio- nona – mantém a mesma trajetória, se abririam para os fundos de pensão carizados. Mas não está claro por que
nável quando se pensa que o número ela pretende transpor uma etapa de- e todo mundo se encontraria diante o atual sistema de distribuição, ba-
de aposentados aumentará em 2,5 cisiva para acabar com essa política de si mesmo. “Todos os riscos são seado em anuidades, impediria de le-
milhões, ultrapassando 18,6 milhões, de pequenos passos. De fato, apesar transferidos para os segurados. Essa var em consideração o emprego par-
daqui até 2035, o que, logicamente, desses múltiplos ataques, o sistema era a grande ideia”,4 observava um es- cial. Atualmente, são necessárias 150
deveria levar ao aumento da parcela francês continua sendo um dos mais pecialista sueco no momento em que horas de trabalho para reivindicar
da riqueza nacional a eles dedicada. eficientes para os beneficiários e um o país mudava para um sistema de um trimestre; seria possível imaginar
A menos que as pensões sejam redu- dos mais seguros financeiramente, pontos, em 2001. um limite bem inferior.
zidas, ativando-se duas alavancas: porque escapa aos acasos dos merca- Não é necessário anunciar, como Além disso, calculando o mon-
atrasar a idade de início e/ou reduzir dos. Os movimentos sociais, lidera- o fez Philippe, uma idade-base, ma- tante dos direitos ao longo de toda a
o nível do que cada pessoa receberá dos em particular pelos beneficiários ravilhosamente chamada de “idade carreira – e não mais nos 25 melho-
em relação a seu salário (a taxa de de regimes especiais, permitiram li- do equilíbrio”, fixada em 64 anos. Um res anos para o setor privado, ou pela
substituição). O Conselho de Orien- mitar os danos para todos. Essa tam- assalariado veria seus recursos redu- adoção de 75% do último salário (ex-
tação das Aposentadorias (COR) não bém é a razão pela qual o governo ata- zidos em 5% se se aposentasse um cluindo bônus) no serviço público –,
esconde isso: “A pensão média do ca esses regimes, quando eles dizem ano antes, e mesmo em 10% se o fi- o novo sistema prejudicaria precisa-
conjunto dos aposentados relaciona- respeito a apenas 3% dos assalaria- zesse aos 62 anos – ou seja, uma redu- mente as pessoas que tenham tido
da à renda de atividade média [vai] dos. Ele deseja estourar esse ferrolho. ção, para o resto da vida, de quase 150 uma carreira irregular ou um peque-
diminuir. [...] Ela representaria cerca A criação de um sistema de pon- euros por mês (para uma aposenta- no salário no início de sua vida pro-
de 49,8% da renda [em 2025] contra tos, com um regime único, tornaria doria média de 1.472 euros). Com o fissional. Então, mesmo com o bônus
4 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

REFORMA DA PREVIDÊNCIA

Nem mais
previsto por Philippe (5% desde o duzida em favor de contratos de tra-
primeiro filho), todas as mulheres, balho individuais, que podem ser
ou quase, seriam perdedoras, de modificados por um simples acordo
com a empresa mesmo que haja um

um dia
acordo com o Instituto da Proteção
Social (IPS).7 acordo coletivo mais protetor. Isso
Por outro lado, a garantia de uma tem por consequência enfraquecer
pensão de mil euros, depois de 85% as obrigações dos empregadores em
termos de demissão, condições de

de trabalho
do salário mínimo, é ainda mais
apreciável pelo fato de a disposição já trabalho etc.
existir e datar de... 2003. No entanto, Mesmo processo, ainda mais vio-
a medida afeta apenas pessoas com lento, para a indenização do desem-
uma carreira completa, e não se sabe prego. Ao reduzir os direitos dos
quantos pontos seriam necessários desempregados, o Estado quer eco-
ter para se qualificar para ela. Outros nomizar entre 1 bilhão e 1,3 bilhão O ambiente corporativo torna-se cada
podem ter de trabalhar mais ou se de euros e forçar os candidatos a vez mais estressante e, por vezes, letal – um
contentar com menos. emprego a aceitar qualquer trabalho.
Essa é a filosofia essencial desse Apenas 42% dos 6,6 milhões regis- desenvolvimento que contribuiu para explicar
projeto: romper os direitos coletivos e trados no Pôle Emploi [a agência por que muitos assalariados rejeitam a ideia
valorizar o individualismo. O princí- estatal de apoio ao emprego] de aposentar-se ainda mais tarde
pio é levado até a caricatura para os “tinham sido realmente indeni-
professores, todos perdedores. Os zados” no final do terceiro trimestre POR DANIÈLE LINHART*
professores do ensino básico, por de 2018.10 Até Berger falou de uma
exemplo, veriam sua pensão reduzi- “carnificina”! Em vigor desde 1o de

A
da entre 300 a 600 euros por mês.8 Se novembro, essa “reforma” vai gerar mobilização de dezembro de çam com toda a força numa mobili-
o primeiro-ministro prometeu des- pobres (e lucros, porque se traduzirá 2019 impressionou tanto por zação de tal magnitude? Por que eles
bloquear de 400 milhões a 500 mi- em contribuições mais baixas para sua amplitude quanto por sua têm o sentimento de que o governo
lhões de euros como compensação a os empregadores). diversidade: jovens e idosos, não os respeita?
partir de 2021 – ou seja, entre 32 e 35 Para destruir o senso do coletivo e advogados, artistas, professores, es- De fato, muitos franceses desco-
euros por mês e por professor... –, ele quebrar a solidariedade, o poder pre- tivadores, ferroviários, executivos, brem que o “nem direita nem es-
acompanhou esse anúncio com um tende impor à força um preceito bási- funcionários, médicos, enfermeiras, querda” de Macron foi substituído
vasto projeto de “reconstrução das co: o que é público deve ser minimi- bombeiros, músicos, funcionários por um pensamento puramente tec-
remunerações, das carreiras e das or- zado; o que é privado é mágico. O dos correios, estudantes, funcioná- nocrático, em que o “universal” se
ganizações do trabalho” ao longo da modelo anglo-saxão em todo o seu rios da alfândega etc. marcharam no refere ao mercado, em que a “mu-
próxima década. esplendor. Ainda será necessário mesmo ritmo. Essa febre surge um dança” suplanta o progresso e em
Com a reforma do exame de final convencer o povo de seus méritos. ano após o aparecimento espetacu- que os equilíbrios construídos ao
do ensino médio e de suas múltiplas Nada está definido. lar dos coletes amarelos,1 numa épo- longo do tempo não merecem aten-
opções, de fato não é mais necessário ca em que o movimento dava sinais ção alguma.
ter equipes coesas, ligadas a um esta- *Martine Bulard é jornalista do Le Monde de esgotamento. Emmanuel Macron Alguns achavam que os sindicatos
belecimento e a um projeto pedagó- Diplomatique. e o governo pensavam que se benefi- estavam ultrapassados, em especial
gico. Alguns professores podem se ciariam com a marginalização dos aqueles que não são considerados
tornar prestadores de serviços, dan- sindicatos, que os coletes amarelos “reformistas”. Eles saíram da caixa.
do aulas aqui ou ali. Não admira que rejeitavam; eles acreditavam ter Numa sociedade marcada pela indi-
1   “ Perspective des retraites en France à l’hori-
o governo planeje pagar bônus ape- acalmado a raiva da França popular vidualização e pela competição siste-
zon 2030” [Perspectiva das aposentadorias
nas aos professores “que concordem na França até 2030], relatório do Conselho por meio de medidas financeiras e mática, eles conseguiram superar a
em mudar de estabelecimento regu- de Orientação das Aposentadorias, Paris, 21 de consultas públicas. De fato, eles armadilha do confronto entre traba-
nov. 2019.
larmente”.9 Uma vez que se indivi- tinham “cedido” 10,3 bilhões de eu- lhadores estabelecida pelo governo,
2   “ Études économiques de l’OCDE: France”
dualizou o percurso dos alunos, com [Estudos econômicos da OCDE: França], ros – isenção de impostos para horas que focou sua comunicação na de-
diplomas que não terão mais o mes- OCDE, Paris, 1991. extras, aceleração do aumento do sa- núncia dos “privilégios” dos funcio-
3   Discurso do primeiro-ministro Édouard Phili-
mo valor de uma ponta a outra do lário mínimo por meio do bônus de nários públicos e dos beneficiários de
ppe perante o Conselho Econômico, Social e
país, tem lógica fazer o mesmo com Ambiental (Cese), Paris, 11 dez. 2019. atividade, supressão do aumento da “regimes especiais”.
os professores. 4   Citado por Michel Husson, “La réforme des contribuição social geral (CSG) para A maioria dos franceses conhece a
retraites au prisme du modèle suédois?” [A
De maneira mais geral, esses são alguns aposentados – e pago pes- utilidade dos serviços públicos, as di-
reforma da previdência pelo prisma do mode-
os pilares do modelo francês que se lo sueco?], Alternatives Économiques, Paris, soalmente para “ouvir o que os fran- fíceis condições de trabalho que ali
deve sacudir... apontando para suas 6 set. 2019. ceses tinham a dizer”? prevalecem, as remunerações mo-
5   David Revault d’Allonnes, “Laurent Berger ne
falhas. Assim, no setor da saúde, as Raramente um presidente da Re- destas. Não somente a divisão não
veut pas de blocage dans les transports pour
restrições de reembolso repetido Noël [Laurent Berger não quer bloqueios nos pública terá debatido tanto com os funcionou, mas a raiva parece ter se
transformaram a compra de óculos transportes no Natal], Le Journal de Diman- cidadãos. As redes de informação reforçado com a chamada cláusula
che, Paris, 14 dez. 2019.
ou a ida ao dentista em um luxo ao ecoavam a imagem de um homem “avô”, ou “neto”, ou mesmo “irmão
6   “ Recommandations du Conseil de l’Union eu-
qual alguns têm de renunciar. O go- ropéenne” [Recomendações do Conselho da ostensivamente envolvido, de pé, em mais velho”, colocada em destaque
verno poderia ter tornado obrigatório União Europeia], Bruxelas, 13 jul. 2018. mangas de camisa diante de uma as- por diversos ministros para neutrali-
7   “Contribution de l’IPS à la deuxième phase de
um pequeno aumento nas contribui- sembleia densa; ele ouvia, observa- zar a mobilização – como se as mu-
concertation” [Contribuição do IPS para a se-
ções para que a Seguridade Social gunda fase de entendimento], Instituto de va, discutia, trocava e, acima de tu- lheres ainda dependessem dos ho-
pudesse reembolsá-las; ele preferiu Proteção Social (IPS), Paris, 26 nov. 2019. do, explicava. Esperava-se que a mens de sua família; como se os
8   “Évaluation du rapport Delevoye” [Avaliação
impor a contribuição a um fundo opinião dos franceses deveria res- adultos pudessem conscientemente
do relatório Delevoye], IPS, 17 set. 2019.
mútuo cujo nível de cobertura de- 9   M arie-Christine Corbier, “Primes des enseig- soar através do “grande debate” or- programar uma degradação social
pende do portfólio de cada um: quan- nants: ce que pourrait faire le gouvernement” ganizado por meio de contribuições para seus filhos!
[Bônus dos professores: o que o governo po-
to mais rica (e jovem) a pessoa é, mais cidadãs em plataformas on-line, reu- Em uma demonstração de força,
deria fazer], Les Échos, Paris, 11 dez. 2019.
bem tratada acaba sendo. 10  Anne Eydoux, “Réforme de l’assurance chô- niões e livros de reclamações criados os sindicatos brandem suas reivindi-
No campo do direito social, mes- mage: l’insécurisation des demandeurs d’em- pelos municípios. cações e sua intenção de não deixar
ploi” [Reforma do seguro-desemprego: inse-
ma reviravolta: com a reforma traba- Por que, num tal clima e após dois de se posicionar. Eles apostam em
gurança de quem procura emprego], Les
lhista, aprovada, se não imaginada, Économistes Atterrés, 26 jul. 2019. Disponí- anos de “consulta” sobre a reforma da uma capacidade coletiva de defender
pela CFDT, a proteção comum foi re- vel em: <http://atterres.org>. previdência, os assalariados se lan- os interesses de todos. Bem em seu
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 5

publicou em 2014 um estudo segun- mudança perpétua, destinada, nesse


© Divulgação/Presidência Russa

do o qual 3,2 milhões de assalariados caso, a desestabilizar os agentes para


– ou seja, mais de 12% da população obter a saída “voluntária” de 22 mil
ativa – apresentariam risco de deles – com o risco de empurrá-los
burnout. para o suicídio.5
Ansiedade, medo de não conse-
ANSIEDADE, PERDA guir mais fazer, confrontação com
DA AUTOCONFIANÇA... conflitos de valores, perda de auto-
Em 1968, os franceses tinham estado confiança, quase impossibilidade de
entre aqueles que, no fundo, mais ha- se beneficiar da ajuda dos colegas
viam lutado contra a organização e a (que são concorrentes): os funcioná-
disciplina tayloristas (três semanas rios com frequência são reduzidos à
de greve geral com ocupação de fá- classificação de aprendizes ao longo
bricas), alegando que não queriam da vida. Embora se beneficiem de um
mais “perder a vida para ganhá-la”. emprego estável (contrato por tempo
Eles queriam uma tarefa que tivesse indeterminado, status de funcioná-
sentido, na qual pudessem se reco- rio ou de agente estatal), eles vivem
nhecer e serem reconhecidos pela em uma insegurança da mesma or-
qualidade de seu compromisso e de dem que a dos trabalhadores precá-
sua contribuição. “Metro, boulot, do- rios, que, por sua vez, sofrem ainda
Na França de Macron é preciso coragem para participar de uma manifestação do, ras-le-bol!” [Metrô, trabalho, dor- por cima de uma forte incerteza fi-
mir... basta!], era possível ler então nanceira. Não é apenas uma questão
nos cartazes. de “penúria” no sentido clássico, mas
papel, eles, sem dúvida, ganham Os franceses mantêm uma rela- Em resposta, a estratégia do em- de uma tarefa difícil por causa de fa-
legitimidade. ção especial com o trabalho. Longe pregador se esforçou para individua- tores físicos e/ou horários atípicos.
de serem frios e relutantes em fazer lizar o trabalho, a fim de reverter a Nesse contexto, a ideia de adiar a
3,2 MILHÕES esforços, como afirmam governantes correlação de forças e manter uma data de início da aposentadoria pa-
AMEAÇADOS DE BURNOUT e empregadores, eles atribuem a ele forte subordinação dos assalariados. rece insuportável. Diante de um mo-
Nas rotatórias, os coletes amarelos uma importância maior que seus vi- Esta envolve hoje um conjunto de do de organização do trabalho consi-
diziam redescobrir certa qualidade zinhos, de acordo com um estudo ba- prescrições, na forma de protocolos, derado ilegítimo, injusto e pouco
de relações sociais, uma felicidade seado em pesquisas europeias.2 Mas procedimentos, “boas práticas”, pro- eficaz, a maioria dos franceses –
por estarem juntos, compartilharem esperam poder desenvolver com ele cess, metodologias impostas etc., e de 54%, segundo pesquisas publicadas
valores e esperanças. No cerne dos suas capacidades e querem encon- controles (relatórios, rastreabilidade) no início de dezembro6 – apoia as
protestos contra a reforma previden- trar nele uma utilidade social. Pelo que estruturam e determinam forte- mobilizações, mesmo que não en-
ciária, o prazer de reivindicar e de se fato de suas expectativas serem mente a atividade profissional.4 A ad- trem em greve. Chegará o dia em que
rebelar juntos é também igualmente maiores, essas pessoas são também ministração procurou tornar a su- os manifestantes denunciarão esse
palpável. Muitas vezes uma criança as que mais se decepcionam. Assim, bordinação invisível por meio de um vínculo de subordinação que entra-
boazinha, às vezes enfurecida, sem- não é de admirar que tenham mais apelo solene ao espírito de iniciativa. va, esgota e humilha aqueles que
pre determinada, a mobilização mos- probabilidade de querer que o traba- Supõe-se que cada um ofereça inteli- gostariam de associar trabalho e dig-
tra um desejo de coesão, atenção aos lho ocupe menos espaço em sua vida. gência operacional e relevância fun- nidade, trabalho e utilidade social,
outros e coragem. Porque é preciso Segundo o economista Thomas Phi- cional a prescrições minuciosamente trabalho e respeito tanto pelas pes-
coragem para se manifestar enquan- lippon, não haveria “crise do valor elaboradas por “especialistas” dis- soas como pelo planeta.
to ficam lhe buzinando nos ouvidos trabalho na França, mas a expressão tantes da realidade concreta do tra-
coisas como a presença de black blocs de um forte desconforto. [...] Os assa- balho. E isso no âmbito de uma com- *Danièle Linhart, socióloga do trabalho, é
e um alto risco de violência. É preciso lariados iriam se desesperar com o petição sistemática de todos contra autora, em especial, da obra La Comédie
coragem para continuar desfilando trabalho e, de alguma forma, se colo- todos (bônus, salários, carreiras per- humaine du travail. De la déshumanisation
em meio a nuvens de gás lacrimogê- cariam em uma posição de aposenta- sonalizadas) e de cada um consigo taylorienne à la surhumanisation managé-
neo e aos disparos de granadas de doria: o desejo de reduzir o lugar mesmo: é necessário buscar a exce- riale [A comédia humana do trabalho. Da
efeito moral (ler o artigo na pág. 9). ocupado pelo trabalho seria conse- lência, se superar, “sair da zona de desumanização tayloriana à super-humani-
Na França de Macron, é preciso de fa- quência da impossibilidade de mu- conforto” – para retomar a expressão zação gerencial], Érès, Paris, 2015.
to coragem para participar de uma dar este último e a expressão das di- da moda –, correr riscos, a fim de
manifestação anunciada, em um ficuldades sentidas”.3 Os sintomas conseguir ser bem avaliado e... man-
percurso autorizado, para defender são conhecidos: síndrome de esgota- ter seu cargo. 1   L er “Le peuple des ronds-points” [O povo das
reivindicações que simplesmente se mento profissional (burnout), exaus- Os objetivos aumentam constan- rotatórias], Manière de Voir, n.168, dez. 2019-
relacionam com o respeito pelos tão devida ao tédio (boreout), mal-es- temente e as políticas de mudança jan. 2020.
2   Lucie Davoine e Dominique Méda, “Quelle
trabalhadores... tar, consumo de drogas psicotrópicas, perpétua alimentam um sentimento place le travail occupe-t-il dans la vie de Fran-
Por mais que se repita para elas suicídios. É verdade que não existem de precariedade. Ninguém pode do- çais par rapport aux Européens?” [Que lugar
que estão melhor que seus vizinhos, a pesquisas estatísticas nacionais, ravante se referir à sua experiência o trabalho ocupa na vida dos franceses em
comparação aos europeus?], Informations
grande maioria das pessoas não de- porque esses conceitos ainda são de- nem aos conhecimentos acumula- Sociales, n.153, Paris, 2009.
seja ser forçada a seguir uma carreira batidos e não são reconhecidos como dos. Todos devem se ajustar constan- 3   Thomas Philippon, Le Capitalisme d’héritiers.
mais longa nem a ver sua pensão di- doenças ocupacionais. Os atores de temente às reorganizações de seu La crise française du travail [Capitalismo de
herdeiros. A crise francesa do trabalho],
minuir. Elas são constantemente campo – médicos do trabalho, estu- trabalho, realizadas de forma a des- Seuil, Paris, 2007; citado por Lucie Davoine e
comparadas aos empregados em paí- diosos de problemas ligados a vícios, qualificar um desembaraço profis- Dominique Méda, op. cit.
ses onde a vida é ainda mais difícil, sindicalistas dos Comitês de Higiene, sional que os gerentes consideram 4   Ler Alain Deneault, “Quand le management
martyrise les salariés” [Quando a gerência
onde se trabalha por mais tempo, on- Segurança e Condições de Trabalho perigoso, porque poderia levar os martiriza os funcionários], Le Monde Diploma-
de se desfruta de menos proteção so- (CHSCT), clínicos gerais, psicotera- funcionários a querer legitimamente tique, nov. 2018.
cial e onde se recebem aposentado- peutas – apontam, no entanto, para a influir na definição de suas missões e 5   Ler “‘Appelez-moi maître...’” [“Me chame de
mestre...”], Le Monde Diplomatique, set. 2019.
rias mais baixas: isso é precisamente importância desses fenômenos, que nos meios necessários para realizá- 6   “Après les annonces d’Édouard Philippe, les
o que elas rejeitam. Muitas delas es- também são objeto das consultas -las. O emblemático processo da Français soutiennent toujours les grévistes”
tão ansiosas para deixar o emprego e “sofrimento e trabalho” criadas em France Télécom, que aconteceu de [Após os anúncios de Édouard Philippe, os
franceses ainda apoiam os grevistas], pesqui-
não querem que a idade de início da hospitais pela doutora Marie Pezé. maio a julho de 2019, ilustra a devas- sa da Ifop publicada pelo Journal du Diman-
aposentadoria seja adiada. Por seu lado, o gabinete Technologia tação produzida por essa política de che, Paris, 14 dez. 2019.
6 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

APOSENTADORIAS, CORRUPÇÃO, CUSTO DE VIDA...

De Santiago vias, mais “ônibus Macron”, é isso que


vai preservar o meio ambiente. Frete
ferroviário, transporte por trilhos? Is-
morto. Mas ele sempre soube mudar
de cara e de discurso. Quarenta anos
após a chegada de Margaret Thatcher

a Paris, o
so está fora de questão, pois devemos ao poder, ele volta a triunfar no Reino
combater o excesso de funcionários Unido. E, do outro lado do Atlântico,
no serviço público. sua derrota em novembro não está de
Em dezembro de 2010, a revolta na forma alguma garantida. É melhor sa-

povo na rua
Tunísia abriu o ciclo da Primavera ber disso, mesmo que seja reconfor-
Árabe. Em maio do ano seguinte, na tante desviar os olhos de um fracasso,
Espanha, surgiu o movimento dos In- ou de vários – no Brasil, na Grécia, na
dignados. Em junho, a mobilização Bolívia, na Itália... –, ao mesmo tempo
de estudantes chilenos; em setembro, que sabemos que em algum lugar, em
o Occupy Wall Street. O ano que se outro lugar, o fogo volta a se acender.
Esta já é a terceira ou quarta onda de mobilizações de inicia marca o décimo aniversário de Hoje, os mesmos combustíveis
massa contra a ordem neoliberal e seus governantes? todos esses movimentos. Eles se ca- que alimentam cada uma dessas fo-
racterizaram, e isso foi amplamente gueiras estão em quase toda parte.
De Beirute a Santiago, sem esquecer Paris, o poder notado à época, por sua juventude, Tanto econômicos como políticos:
político parece em todo caso incapaz de restabelecer a espontaneidade, pelo uso de redes so- não apenas a crise financeira de 2008
situação, inclusive quando apela para a forte repressão ciais, pela recusa à cooptação, pela beneficiou os principais responsá-
cólera nascida de políticas econômi- veis por ela, como também os gran-
POR SERGE HALIMI* cas quase em toda parte destinadas a des partidos tradicionais, de direita e
absorver os danos causados pelos de esquerda, têm se revezado na obs-
bancos. Nove anos depois, embora tinada imposição de escolhas injus-
uma ditadura tenha caído na Tunísia, tas para as populações de seus paí-

A
de Argélia, B de Bolívia, C de A impotência da qual a questão as reivindicações sociais que estavam ses. A legitimidade do “sistema” tinha
Chile, E de Equador, F de Fran- ambiental é prova. Três anos após as na origem de toda essa rebelião não de sofrer as consequências disso. Dez
ça... Às vezes, um mês depois proclamações solenes da COP 21, o estão nem perto de terem sido resol- anos depois, ela está no chão. A cons-
que as manifestações começa- verniz já está descascando. O planeta vidas. E a situação não parece melhor tatação dessa falência pode, no en-
ram, seu motivo inicial já não tem dos ricos não reduziu seus apetites em outros lugares. Compreende-se, tanto, abrir o caminho (ou emprestar
muita importância, e atender às rei- consumistas; os riscos de superaque- nessas condições, a utilidade das o flanco) a interpretações ideológicas
vindicações originais dos manifes- cimento ficaram mais precisos. A pre- boas notícias e a tentação de superes- opostas. Isso porque o “sistema” so-
tantes também já não adianta muito. feita socialista de Paris, Anne Hidal- timar a existência de uma consciên- bre o qual recaem as acusações não é
Mesmo cancelando o aumento de 4% go, profere sermões ecológicos, mas cia internacional, próxima das priori- necessariamente aquele que atua a
no preço das passagens de metrô, Se- libera os grandes edifícios da capital dades que cada um de nós defende, serviço da classe capitalista. E há
bastián Piñera não conseguiu liberar para a exibição dos enormes anún- onde ainda só existem, de fato, movi- quem prefira ver nele tudo aquilo que
as ruas de Santiago, assim como o go- cios brilhantes de marcas de luxo e te- mentos heterogêneos, instáveis, e que se considera como uma proteção in-
verno de Hong Kong não foi capaz de lefones celulares. E o ministro dos não estão muito preocupados em es- devida das pessoas ao lado, aquelas
acalmar seus oponentes retirando o Transportes da França se deleita com tabelecer vínculos entre si. um pouco menos abastadas, os es-
projeto de lei sobre extradição. Uma as carreiras promissoras que se anun- Desde o fim do século passado, trangeiros, os “assistidos”. Os privilé-
vez iniciado o movimento, é preciso ciam para sua área: “Nos próximos não param de anunciar a morte do gios dos dominantes se aproveitam
ceder mais. Se necessário, enviar a anos, precisaremos de 30 mil moto- capitalismo, a convergência das lutas, desse tipo de ressentimento.
polícia, o Exército. No Iraque, no Chi- ristas, então essa é uma profissão que o esgotamento da hegemonia da glo- A reforma da previdência de
le, na Argélia, prometer mudar a deve ser valorizada, principalmente balização. Cem vezes o adversário foi Emmanuel Macron é mais um exem-
Constituição. entre os jovens”. Mais motoristas nas considerado em agonia ou dado como plo disso (ver artigo na pág. 3). Ela diz
Mesmo assim, quando o fogo apa- criar um “regime universal”, que “se-
ga em um lugar, logo acende em ou- Manifestação contra aumento da tarifa em Santiago, Chile rá o mesmo para todos os franceses,
tro. As reivindicações são enormes: sem exceção”. Mas, ao contrário, es-
“O povo quer a queda do regime”. E tabelece uma ruptura geracional
como fazer isso? Para fazer o que de- (trabalhadores nascidos antes de
pois? Ele nem sempre sabe, mas se- 1975 não serão afetados pelo novo
gue em frente. Na Argélia, as mani- sistema, que é claramente menos
festações já duram quase um ano. vantajoso), ao mesmo tempo que
Em Hong Kong, começaram em ju- prevê, sob a alegação de “equidade”,
nho. O mérito dos manifestantes não que as aposentadorias de trabalha-
pode ser desprezado: a repressão fe- dores de funções mais elevadas res-
roz poderia muito bem paralisá-los, peitem um teto, incentivando esse
mas eles continuam. E o que está público a recorrer aos fundos de pen-
acontecendo no Irã, onde até o nú- são a fim de garantir uma aposenta-
mero de manifestantes mortos é doria complementar.1 Porém, preo-
mantido em segredo? cupado em defender de maneira
Uma desconfiança generalizada efetiva – inclusive contra os manifes-
serve de cimento, ou de argila, para o tantes – sua particular universalida-
movimento popular – desconfiança de, o governo francês decidiu manter
em relação ao liberalismo econômi- o regime especial de aposentadoria
co, que coroa uma sociedade de cas- para os policiais, com o argumento
tas, com seus intocáveis de cima e de de que eles “ocupam funções de Esta-
baixo, mas, principalmente, descon- do na proteção da população”.
fiança em relação à arrogância e à
prevaricação do sistema político em FINANCIAR O PRIVADO COM
vigor, que a classe dominante, “as eli- A DESTRUIÇÃO DO PÚBLICO
tes”, transformou na guarda pretoria- Apesar de todas as divisões – que nas
na de seus privilégios. diferentes partes do mundo concer-
© Diego Correa
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7

nem sunitas, xiitas, cabilas, cata- bolsos de políticos e empresários cor- cargo, para quem eles vão trabalhar? No entanto, no Chile, como em
lães... –, a unidade dos manifestan- ruptos.3 Por fim, não sabemos nem O ex-primeiro-ministro francês Fran- tantos lugares, sobretudo nos países
tes, até o momento, permanece. Ela que termo usar, na França, quando o çois Fillon, arquiteto de uma reforma árabes, uma questão se coloca: o de-
se assenta em torno de reivindica- primeiro-ministro constata descara- previdenciária em 2010 e, depois, de- sejo de não se comprometer, a recusa
ções e recusas encontradas em qua- damente que os hospitais públicos fensor de um sistema de pontos dedi- em apontar líderes e representantes,
se todos os lugares: uma vida decen- estão “em fase de estol, como se diz cado a “reduzir o montante das apo- essa atitude tem raízes em uma longa
te, digna; a oposição a mais cortes de um avião que não está mais se sus- sentadorias”, agora trabalha para o experiência de decepções, derrotas e
nos programas sociais e ao aumento tentando e pode cair” (France Inter, banco Barclays. Assim como François traições. Mas como evitar a margina-
do preço dos serviços essenciais 21 nov. 2019). “Estol” significa um Baroin, a quem a imprensa (que o lização, o cansaço e o esmagamento,
(transporte, energia, comunica- avião girar em queda livre e dar com adora) já apresenta como potencial se a pressão popular nunca encontrar
ções); a insatisfação com uma queda o nariz no chão. Édouard Philippe candidato de direita na próxima elei- uma saída política? O endurecimento
na taxa de desemprego ancorada na ainda estará no palácio o ano que ção presidencial. Esperando, talvez, da repressão judicial, policial e mili-
geração de “empregos lixo” (na Espa- vem para comentar o acidente e con- que ele “contenha” a extrema direita, tar, os laços cada vez mais estreitos
nha, 40% dos novos contratos de tra- solar a família dos passageiros? o Barclays o instruiu a “guiar os inves- entre capital e Estado, tudo isso im-
balho são estabelecidos por menos “Queremos uma nação”, procla- tidores estrangeiros na França”. pede que esse debate seja considera-
de um mês), 2 ainda mais porque es- mam os iraquianos, que nem as 450 José Manuel Barroso, ex-primeiro- do secundário. Como resume Frédé-
ses empregos precários costumam vítimas da repressão desencorajaram -ministro português e ex-presidente ric Lordon: “É necessário se organizar
estar em metrópoles onde o custo da e que associam sua recusa à ingerên- da Comissão Europeia, preferiu outro e saber para onde se vai, porque os
moradia explodiu. O alto custo de vi- cia estrangeira e ao caráter confes- banco, o Goldman Sachs. Algumas se- outros estão organizados e sabem
da, a pobreza e a desigualdade for- sional a um desejo de solidariedade, manas antes, a holandesa Neelie para onde vão”.4
mam, portanto, o tecido dos protes- com vistas a construir um Estado Kroes, ex-comissária responsável pela Enquanto isso, em um contexto
tos. No Sudão ou no Equador, no digno desse nome, ou seja, honesto. Agenda Digital da Comissão Europeia, no qual, nos últimos trinta anos,
Líbano ou no Chile. No Chile, berço do neoliberalismo havia sido recrutada pela Uber. Pascal apesar das alternâncias de governo,
Também em quase toda parte, nascido do sangue derramado, a re- Lamy, socialista francês, acaba de in- nenhuma reforma estrutural essen-
graças à franqueza brutal do neolibe- pressão dos carabineiros (mais de 11 gressar na empresa de lobby Bruns- cial codificada pelo neoliberalismo
ralismo que rasgou o véu que separa mil feridos, duzentas pessoas cegas wick, cujos clientes não se veem todos (livre-comércio, mercado único, pri-
o Estado e o capital, as reivindicações de pelo menos um olho, 26 mortos) desempregados quando acabam seus vatizações, desregulamentação fi-
econômicas são imediatamente não conseguiu conter as manifesta- direitos. E, há um ano, o Facebook nanceira) foi confrontada, os movi-
acompanhadas por exigências políti- ções, que se cobrem com as cores na- brindou-se com um ex-vice-primeiro- mentos populares dos últimos meses
cas. Isso porque a corrupção e os es- cionais. Assim como na Argélia, onde -ministro britânico, Nicholas Clegg, já podem exibir um saldo bastante
cândalos não se limitam aos casos milhões de manifestantes pedem como diretor de relações públicas. Seu lisonjeiro: primeiros-ministros fo-
secundários que a imprensa coloca que o Exército deixe de monopolizar salário deve chegar a 4,5 milhões de ram exonerados (no Líbano e no Ira-
em evidência: um assistente parla- o poder, o petróleo, a violência e os euros por ano, sessenta vezes o que re- que), um presidente enfraquecido
mentar que dedica parte de seu tem- símbolos da nação. A bandeira nacio- cebia como parlamentar. Seria para- não conseguiu ser reeleito (na Argé-
po de trabalho a atividades políticas, nal também é privilegiada pelos cole- noia dos manifestantes se perguntar lia), novas Constituições poderão
um presidente da Assembleia que tes amarelos, que desejam evitar di- para quais futuros empregadores seus em breve destruir os antigos arran-
oferece lagosta aos convidados. E ha- visões internas de ordem política ou governantes já estão trabalhando? jos (a do Chile pode vir a ser reescrita
ja reviravolta, tuítes indignados, re- eleitoral – eles, cujos caminhos não Como os chilenos poderiam não rea- da primeira à última linha). Acima
velações bombásticas, programas es- se cruzavam até o dia em que sua ira gir de uma maneira um pouco rude de tudo, uma nova geração, muitas
peciais... Todo mundo, ou quase, já e suas reivindicações se encontraram quando, em setembro passado, seu vezes condenada a carregar uma dí-
entendeu que a corrupção diz respei- nas rotatórias de seus municípios. ministro das Finanças, escolhido pelo vida estudantil, a viver na precarie-
to mais fundamentalmente a um Es- Pagando o preço, mais uma vez, de presidente Piñera, ele próprio bilioná- dade e a receber uma aposentadoria
tado neoliberal que financia, por uma repressão que acreditávamos rio, explicou aos manifestantes des- mutilada e um meio ambiente de-
meio da destruição dos serviços pú- estar reservada somente a ditaduras. contentes com o aumento dos preços gradado, descobriu o combate cole-
blicos, o desenvolvimento dos inte- Quando expressa essa rejeição ao dos alimentos que os “românticos” tivo, a solidariedade e a vitória. O
resses privados – os quais, logica- individualismo, às predações do ainda poderiam comprar flores, cujo resto permanece em aberto, mas só
mente, se beneficiam de cada uma mercado e às divisões que este culti- preço “havia caído”? essa experiência, vivida por dezenas
das “reformas” iniciadas (privatiza- va entre suas vítimas, a bandeira na- O exemplo do Chile fala por si. de milhões de manifestantes que
ções, reformas tributárias, mudanças cional parece ter um rosto amigável. Apesar do fim da ditadura militar e agora se sentem mais fortes e dignos,
nos sistemas de previdência). E melhor ainda quando o global a que da alternância de governos de direita garante que nenhum sistema políti-
No entanto, a corrupção também ela se opõe tem a cara dos tratados de e esquerda, a Constituição do general co possa mais oferecer ao neolibera-
diz respeito a um sistema político livre-comércio, dos gigantes digitais Augusto Pinochet, que proíbe a na- lismo a esperança de um retorno à
que permite às elites globalizadas a que espionam nossos atos e escon- cionalização, mal foi tocada desde normalidade.
apropriação das riquezas nacionais, dem seus lucros. Ou dos bancos de 1980. Assim, o país continua dentro
ou sua destruição, com seu envio pa- investimentos que preparam a próxi- do espartilho neoliberal, feito sob *Serge Halimi é diretor do Le Monde
ra outras partes do mundo por meio ma catástrofe financeira (do qual sai- medida para os interesses financei- Diplomatique.
do livre-comércio e dos paraísos fis- rão, mais uma vez, incólumes). Ou a ros: sistema de aposentadoria por ca-
cais. E a governantes culpados de do FMI, que, no Líbano, no Egito, no pitalização, vias urbanas pedagia-
prevaricação, quando, como ocorre Equador, no Haiti, na Grécia, na Bolí- das, universidades privadas, venda  er “Contre l’équité” [Contra a equidade], Le
1   L
no Líbano, eles se revelam incapazes via e na Argentina impõe a uma po- de cursos de água sob a forma de Monde Diplomatique, dez. 2010.
de garantir a limpeza das cidades que pulação exausta suas doses cavalares ações. Nesse movimento chileno, que 2   
Daniel Michaels e Paul Hannon, “Europe’s
new jobs lack old guarantees – stoking wor-
sufocam sob o lixo, correndo o risco de remédios amargos. não tem porta-voz e reúne multidões kers’ discontent” [Os novos empregos na Eu-
de prejudicar ainda mais a qualidade A globalização, porém, tem pelo imensas, a desaprovação não poderia ropa não têm as garantias tradicionais – o que
da água, a sobrevivência da vegeta- menos um mérito: mostrar até que poupar a oposição de esquerda. Ve- alimenta o descontentamento dos trabalhado-
res], The Wall Street Journal, 25 nov. 2019.
ção, a saúde pública. A corrupção diz ponto as classes dominantes se pare- zes demais, esta teve medo de assus- 3   “ Pour Washington, l’Irak doit répondre aux re-
respeito ainda aos governos em fla- cem. Um jovem ex-banqueiro preside tar combatendo de verdade a direita vendications des manifestants” [Para Washin-
grante ilegitimidade, quando, como um país; um bilionário septuagená- “liberal”. O resultado é que, agora, “El gton, Iraque deve responder às reivindicações
dos manifestantes], Le Figaro (com AFP), Pa-
no Iraque, abandonam sua missão rio, outro. Eles parecem diferentes em pueblo unido avança sin partido”. ris, 29 nov. 2019.
essencial, permitindo o sucateamen- tudo, exceto nisto: uma das principais Nenhuma bandeira política nas ma- 4   
Frédéric Lordon, “Le capitalisme ne rendra
to da educação, enquanto em dezes- realizações de ambos foi favorecer os nifestações, apenas a bandeira na- pas les clés gentiment” [O capitalismo não
sairá gentilmente de cena], La Pompe à Phy-
seis anos o equivalente a duas vezes o ricos por meio da política fiscal. E de- cional e a do povo mapuche, alvo fa- nance, 22 nov. 2019. Disponível em: <https://
PIB teria evaporado, enchendo os pois, quando esses líderes deixam o vorito da repressão. blog.mondediplo.net>.
8 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

UMA DERROTA QUE REPERCUTE DESDE 1951

Precariedade “esforço unânime de reconstrução”.


Com uma votação apertada, ela ser-
viu de referência quando a Unef im-

e salário estudantil
pediu a duplicação das taxas de ma-
trícula nas universidades, em 1947,
ou quando obteve a extensão do regi-
me de Previdência Social para os es-
tudantes, em 1948.
A carta de Grenoble teve seu mo-
Como remediar a miséria que atinge os estudantes? Na França, após a Segunda Guerra mento de glória em maio de 1951. Ela
Mundial, as forças sindicais e associações promoveram o surgimento de uma ideia hoje foi recebida em sessão plenária na
Assembleia Nacional por deputados
em dia esquecida: assalariar os “jovens trabalhadores intelectuais” comunistas e democrata-cristãos
que tinham decidido adotar a ideia
POR AURÉLIEN CASTA* de salário defendida pela Unef. Em
sua exposição, o relator do projeto, o
democrata-cristão Raymond Cayol,
defendeu a medida em nome “do va-
lor pessoal do estudante, de sua qua-
lidade atual [e] do trabalho que ele
realiza”. Além de uma integração das

E
m 8 de novembro de 2019, Anas, Dessa forma, pouco se falou sobre e a União das Grandes Escolas (UGE). escolas particulares à universidade
estudante de Ciência Política em sua reivindicação de um salário es- A ideia foi retomada em 1945 por um pública e uma reforma da arquitetura
Lyon, imolou-se com fogo den- tudantil. A medida, associada à gra- punhado de membros da Unef. Da- geral dos treinamentos, inspirada no
tro dos muros do Centro Regio- tuidade do ensino superior, consiste das as dificuldades materiais (comi- plano Langevin-Wallon, de 1947, a
nal de Obras Universitárias e Escola- em conceder a cada aluno uma re- da racionada, moradias destruídas proposta parlamentar previa o paga-
res (Crous). Depois, entrou em coma. muneração igual a uma referência pela guerra), a imagem do “estudante mento a cada aluno de uma remune-
Em consonância com a comunicação salarial, por exemplo, o salário míni- pobre” foi então mobilizada, enquan- ração alinhada com o salário-base
governamental, a cobertura de seu mo interprofissional de crescimento to os apelos à caridade se multiplica- usado para calcular os benefícios
gesto feita pela mídia e as manifesta- (Smic, cerca de 1.200 euros líquidos vam. Le Figaro, em sua edição de 8 de familiares.
ções que a ela se seguiram se concen- por mês). Ela reflete um projeto polí- abril de 1948, pedia a seus leitores, A proposta foi finalmente adiada
traram muito na queda de um quadro tico mais ambicioso, que vai além da por exemplo, que “colocasse na mesa sine die. Na verdade, ela despertou a
do Ministério do Ensino Superior, es- luta contra a precariedade, pois en- da família um talher a mais, uma ou hostilidade de influentes ministros
pecialmente na “precariedade estu- volve trabalhar por uma mudança duas vezes por semana, para um alu- socialistas. Eles concentraram suas
dantil”, fenômeno geralmente ilus- radical na sociedade, travando uma no em dificuldade”.1 críticas no órgão responsável pela
trado pelo baixo número de bolsas, batalha cultural em torno da defini- Adotada no congresso da Unef em distribuição da remuneração e pela
na parcela daqueles que trabalham ção do trabalho. 1946, a Carta de Grenoble mobilizou implementação das reformas educa-
em paralelo com os estudos (46% em Na França, os primeiros projetos a um registro completamente diferen- cionais às quais ela estava vinculada.
2016) ou na taxa de pobreza dessa po- favor do salário estudantil foram ex- te. Evocando a necessidade de uma “Não parece que todos os ministérios
pulação (21,9% da quantidade de alu- postos no âmbito da Resistência, a “revolução econômica e social a ser- envolvidos [...] tenham sido chama-
nos em 2015). As constatações e as so- partir de 1943, por sindicatos de em- viço do homem”, ela consagrava uma dos ao seu conselho de administra-
luções políticas formuladas por Anas pregados, por associações de jovens e fórmula enunciada em seu primeiro ção [...]; sua composição paritária
na carta que deixou e por seu sindica- pelos dois sindicatos de estudantes artigo: “O estudante é um jovem tra- corre o risco de colocar os represen-
to, o Solidaires Étudiant-e-s, foram existentes na época, a União Nacio- balhador intelectual” – em particular tantes do Estado em minoria, quando
menos discutidas. nal dos Estudantes da França (Unef) por causa de sua contribuição para o se trata de administrar somas de tão
grande importância que é difícil
Protestos de estudantes na França contra medidas de Emmanuel Macron quantificá-las”, contestou o ministro
da Educação, Pierre-Olivier Lapie.
Desde esse fracasso, a reivindica-
ção desapareceu um pouco do cená-
rio político francês. Com a teoria do
capital humano, que ganhou influên-
cia nos últimos vinte anos, os estu-
dantes são vistos mais como investi-
dores: eles tentam maximizar sua
renda futura e, portanto, parece en-
tão impensável remunerá-los. No en-
tanto, as ideias da Carta de Grenoble
continuaram a se disseminar, inclu-
sive fora da França, onde organiza-
ções vez por outra retomaram esse
projeto. Foi recentemente o caso em
Quebec, por ocasião de uma greve de
estagiários, lançada entre 2017 e 2019
por Comitês Unitários sobre Traba-
lho Estudantil (Cute).
© Jeanne Menjoulet

O movimento começou alguns


anos após a contestação da “Prima-
vera do Bordo”, que (temporaria-
mente) fez fracassar um projeto para
aumentar de maneira drástica as ta-
xas de matrícula.2 Na linha de visão
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9

ESTADO DE EXCEÇÃO PERMANENTE

dos Cute: esse trabalho muitas vezes


imposto e exaustivo representado
pelos estágios, que duram vários me-
ção universitária generalistas, em
que as mulheres (56,2% dos alunos) e
as classes populares (29,7%) estão O retorno das
leis celeradas
ses e são realizados fora do local de mais presentes e em que os estágios
estudos. Prova, de acordo com ativis- com duração superior a dois meses –
tas, de que já existe trabalho estu- portanto, pagos – se mostram menos
dantil remunerado e reconhecido, frequentes. Apenas 22% dos estagiá-
mas apenas nos treinamentos em rios matriculados em mestrado rece-
que as mulheres estão em minoria beram um bônus de mais de 600 eu-
(engenharia, administração, TI, me- ros por mês (comparado a mais de A repressão policial e judiciária que atinge os movimentos
dicina): nos setores em que elas são 50% nas escolas de engenharia), che- de protesto na França ilustra um processo mais do que
majoritárias (assistência social, edu- gando a 4% no bacharelado. Uma
cação, cuidados de enfermagem), pesquisa mostra, além disso, dife- centenário: as leis de exceção votadas em momentos
prevalecem os estágios mal remune- renças disciplinares no mestrado, de emergência acabam se tornando a norma
rados ou não pagos.3 Essa estratégia com ciências exatas mais masculi-
levou dezenas de milhares de pes- nas, menos populares e mais favore- POR RAPHAËL KEMPF*
soas a exigir um salário por seus es- cidas durante os estágios que os ou-
tágios e estudos, e a participar de tros treinamentos generalistas
greves, que atingiram o pico no in- (letras, ciências humanas e sociais,
verno de 2018. Se é muito cedo para economia, direito).7
fazer um balanço, o movimento já No que diz respeito a estágios co-

E
pode se orgulhar de ter obtido, na mo outros períodos de estudos remu- m 10 de setembro de 1898, o jor- antes. A leitura desses textos em 2019
primavera de 2019, bolsas de estágio nerados (aprendizado, educação nalista Francis de Pressensé revela paralelos espantosos entre a
de 600 a 3 mil euros para cursos de continuada, estudos em saúde, dou- lançou, na tribuna de uma reu- reação da jovem Terceira República
treinamento feminizados que até en- torado, treinamento em prestigiadas nião de dreyfusianos em Saint- ao terrorismo anarquista e o acúmu-
tão não eram remunerados. escolas estaduais etc.), a perspectiva -Ouen: “Acusam-me de empreender lo contemporâneo de leis liberticidas
de um salário estudantil torna possí- uma campanha com anarquistas e que miram adversários políticos, ma-
MENOS ESTÁGIOS PARA vel lutar não somente contra a preca- revolucionários; é uma honra para nifestantes, muçulmanos excessiva-
FILHOS DE OPERÁRIOS riedade, como também contra as de- mim lutar com esses militantes pela mente religiosos, ambientalistas ra-
Na França, uma greve de estagiários sigualdades que a nutrem, no ensino justiça e pela verdade”.1 Tendo traba- dicais demais e até mesmo
realizada em nome do salário estu- superior e fora dele. lhado como colunista oficialíssimo transeuntes distraídos que resolvam
dantil poderia ser baseada em um da política externa francesa, o ex-jor- falar demais com a polícia...
contexto semelhante. O número de *Aurélien Casta, sociólogo e economista, nalista do jornal Le Temps era alvo de Em 1893-1894, assim como no sé-
integrantes do ensino superior tor- é pesquisador associado no Clerse (Uni- insultos diários na imprensa não culo XXI, parlamentares movidos pe-
nou-se muito significativo (quase 2,7 versidade de Lille) e no Idhes (Universida- apenas em decorrência de sua defesa la ocorrência do atentado, e cujas de-
milhões de matrículas em 2018, 80% de de Paris Ouest Nanterre) e autor de Un do capitão Alfred Dreyfus, mas tam- fesas democráticas repentinamente
dos quais em instituições públicas), salaire étudiant. Financement et démocra- bém porque se engajou nessa luta ao evaporaram, decidiram adotar leis de
com maior participação feminina e tisation des études [Um salário estudantil. lado dos anarquistas. Tal aliança não exceção que se normalizaram e, de-
oriundos em maior quantidade das Financiamento e democratização dos estu- era nada óbvia e tinha grande relação pois de se voltarem especificamente
classes populares.4 O número de es- dos], La Dispute, Paris, 2017. com a conjuntura econômica criada contra os anarquistas, estenderam-
tágios, por sua vez, também aumen- pelo Caso Dreyfus. Os libertários fa- -se aos militantes políticos de es-
tou acentuadamente nas universida- ziam campanha por seus camaradas querda como um todo, para em se-
des públicas, sob pressão da enviados às galés por meio da aplica- guida alcançarem potencialmente a
1   C itado por Didier Fischer. In: Robi Morder
profissionalização dos estudos: 5 em (org.), Naissance d’un syndicalisme étudiant. ção das leis adotadas cinco anos an- todos. Blum resumiu bem: “Dirigidas
2018, 40% dos matriculados no ter- 1946: La charte de Grenoble [Nascimento de tes em resposta aos atentados anar- contra os anarquistas, elas resulta-
ceiro ano do bacharelado e 64% dos um sindicalismo estudantil. 1946: A carta de quistas. Alguns deles, como Émile ram em risco às liberdades funda-
Grenoble], Syllepse, Paris, 2006.
alunos do segundo ano do mestrado 2   Ler Pascale Dufour, “Ténacité des étudiants Pouget e Jean Grave, de convicções mentais de todos os cidadãos”. Além
concluíram um. québécois” [A persistência dos estudantes de naturalmente antimilitaristas, relu- disso, tais leis, em nome da luta con-
Quebec], Le Monde Diplomatique, jun. 2012. taram em se engajar na defesa de um tra a materialidade física do atenta-
3   C f., por exemplo, Amélie Poirier e Camille
Tremblay-Fournier, “La grève des stages est capitão burguês e alto graduado do do, tentaram alcançar palavras,
A perspectiva de um une grève des femmes” [A greve dos estagiá- Estado-Maior.2 ideias, opiniões e até intenções.
rios é uma greve de mulheres], Françoise Ste-
salário estudantil torna reo, n.9, Quebec, 23 maio 2017.
No entanto, ao longo de 1898, Pou- Blum, novamente, escreveu que a se-
get mudou de ideia, concordando em gunda lei celerada, sobre as associa-
possível lutar não so- 4   “Repères et références statistiques sur les
enseignements, la formation et la recherche” escrever contra as leis que tinham ções de criminosos, “lesava um dos
mente contra a precarie- [Marcos e referências estatísticas sobre en- como alvo os partidários da ação di- princípios gerais de nossa legislação.
sinos, treinamento e pesquisa], Ministério da
dade, como também Educação Nacional, Ensino Superior e Pes- reta ao lado dos dreyfusianos Pres- [...] Segundo esse novo texto, a sim-
contra as desigualdades quisa (Menesr) – Direction de l’évaluation, de
la prospective et de la performance (DEPP),
sensé e Léon Blum, então jovem audi- ples resolução, o mero acordo, ga-
tor do Conselho de Estado. Essa nharam um caráter criminoso”.
que a nutrem Paris, 2019. Todos os dados a seguir são
aliança inédita encontrou seu lugar Foi após o atentado cometido por
desse documento e de suas edições anuais
anteriores. de expressão editorial em uma revis- Auguste Vaillant que a Câmara dos
Como em Quebec, são fortes as 5   Ler Vanessa Pinto, “Deux jeunesses face à la ta de vanguarda literária e artística, Deputados adotou a primeira das três
‘loi travail’” [Duas juventudes enfrentando a
desigualdades entre os setores. Os “lei trabalhista”], Le Monde Diplomatique, La Revue Blanche, então dirigida por leis celeradas. No sábado, 9 de de-
estagiários vindos de escolas de ne- nov. 2017. um dândi anarquista, Félix Fénéon, zembro de 1893, o jovem anarquista
gócios (que recebem apenas 12,8% 6   C f., por exemplo, Étienne Gless, “Stages: les que foi ele próprio preso por meio da lançou na Câmara uma bomba casei-
formations qui ‘paient’ le mieux” [Estágios: as
de filhos de trabalhadores e empre- formações que “pagam” melhor], L’Étudiant, aplicação dessas leis antiterroristas e ra cheia de pregos, que não matou
gados, em comparação com 28,4% Paris, 8 nov. 2019. Constatação já feita por depois absolvido. Na primavera de ninguém e quase não causou feridos.
para todo o ensino médio) ou de en- Jean-François Giret e Sabina Issehnane, “L’ef- 1899, Fénéon publicou uma brochura Diz a lenda que, uma vez recobrada a
fet de la qualité des stages sur l’insertion pro-
genharia (em que as mulheres só re- fessionnelle des diplômés de l’enseignement reunindo artigos de Pressensé, Pou- calma, o presidente da Câmara,
presentam 30,3% dos alunos) rece- supérieur” [O efeito da qualidade dos está- get e Blum. Seu título, Les Lois scéléra- Charles Dupuy, declarou: “Senhores,
bem frequentemente remunerações gios na integração profissional dos diploma- tes de 1893-1894 [As leis celeradas de a sessão continua”. Essas palavras
dos do ensino superior], Formation emploi,
entre 600 e mil euros.6 A situação é n.117, Marselha, jan.-mar. 2012. 1893-1894], retoma o título de um ar- simbolizam até hoje a serenidade le-
muito diferente nos cursos de forma- 7   Jean-François Giret e Sabina Issehnane, op. cit. tigo publicado por Blum seis meses gislativa da República.
10 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

Recentemente, Christian Vigou-

© Charles Platiau/ Reuters


roux, conselheiro de Estado e ex-che-
fe de gabinete de vários ministros do
Interior e da Justiça, orgulhava-se da
capacidade de nosso sistema de jurí-
dico respeitar as liberdades funda-
mentais mesmo diante dos piores
horrores. Em 2017, esse eminente ju-
rista apresentou o episódio de 9 de
dezembro de 1893 como um modelo
de reação democrática ao terrorismo:
“Essa força de resistência da Câmara
dos Deputados que não se interrom-
peu mostra ao próprio terrorismo
que, aos olhos da nação, não é ele que
define a agenda das instituições”.3
Por analogia, o jurista glorifica a res-
posta do Estado ao terrorismo em
2015, que, segundo ele, combina o
uso do estado de emergência com o
respeito às liberdades. O paralelo, no
entanto, não se sustenta: na realida-
de, não passaram nem dois dias após
o atentado de dezembro de 1893 para
que, na segunda-feira, dia 11, a Câ-
mara dos Deputados – sob a presi-
dência de Dupuy – votasse a primeira Estudantes protestam contra planos do governo de reformar as aposentadorias
das leis celeradas. Blum mostrou co-
mo a Câmara perdeu todo o sangue- nadas com as pesadas sentenças pro- toda a França, prisões preventivas de “Todo mundo admite”, concluiu
-frio e legislou sob pressão do gover- feridas em decorrência da aplicação coletes amarelos que participaram de Blum, “que essas leis nunca deve-
no, que instrumentalizou o atentado do novo texto.6 manifestações. Desse modo, a polícia riam ter sido nossas leis, leis de uma
para conseguir aprovar tudo. Os de- A segunda lei celerada, sobre a priva milhares de cidadãos de sua li- nação civilizada, de uma nação jus-
putados votaram antes mesmo que o associação de criminosos, introduz berdade, por algumas horas ou du- ta. Elas transpiram tirania, barbárie
texto do projeto fosse impresso e dis- na lei a noção de conspiração e de rante vários dias, sem que tal violação e mentira.”
tribuído a eles – um claro sinal de cal- participação em uma conspiração, de seus direitos seja acompanhada
ma, sangue-frio e moderação... passível de repressão, mesmo na por um juiz independente. *Raphaël Kempf, advogado, é autor de
A primeira lei celerada pune a ausência de qualquer início da exe- No entanto, o legado mais impor- Ennemis d’État. Les lois scélérates, des
apologia a crimes ou delitos. Uma dé- cução de uma infração. Pressensé tante das leis celeradas encontra-se anarchistes aux terroristes [Inimigos do Es-
cada antes, quando foi votada a gran- temia que esse texto pudesse “atin- hoje na lógica da suspeita, que conta- tado. As leis celeradas, dos anarquistas aos
de lei sobre a liberdade de imprensa gir, sob o nome de conspiração e de mina tanto o direito penal como o di- terroristas], La Fabrique, Paris, 2019.
de 1881, os parlamentares haviam se participação em uma conspiração, reito administrativo. O agora famoso 1   R émi Fabre, Francis de Pressensé et la défen-
recusado a incluir esse delito em nos- fatos tão pouco suscetíveis de repres- delito de participação de um grupo se des Droits de l’Homme. Un intellectuel au
sos códigos, pois isso permitiria uma são, como conversas privadas, cartas com o objetivo de cometer violência combat [Francis de Pressensé e a defesa dos
direitos humanos. Um intelectual em comba-
“caça ao pensamento”, nas palavras e até a mera presença em uma con- ou depredação – criado em 2010 por te], Presses Universitaires de Rennes, 2004.
do relator Eugène Lisbonne. E foi efe- versa, o fato de ouvir certas declara- iniciativa do deputado Christian Es- 2   Jean-Jacques Gandini, “Les anarchistes et l’af-
tivamente o que aconteceu a partir ções”. Não levou quinze dias para trosi para combater o que ele chamou faire Dreyfus” [Os anarquistas e o Caso
Dreyfus], Réfractions, n.42, Paris, primavera
de 1893, quando a polícia passou a que seus medos fossem confirma- de “violência de grupo” – representa a de 2019.
prender pessoas que tinham feito de- dos: em 1º de janeiro de 1894, deze- versão leve da associação de crimi- 3   C hristian Vigouroux, Du juste exercice de la
clarações favoráveis ao anarquismo. nas de pessoas listadas como anar- nosos de 1893. Ele permite punir me- force [Do justo exercício da força], Odile Ja-
cob, Paris, 2017.
Essa lei também permitia a prisão quistas pelo serviço de inteligência ramente a intenção, sem que nenhu- 4   M . P. Fabreguettes, De la complicité intellec-
provisória, ou seja, a detenção antes foram submetidas a mandados de ma violência ou dano material tuelle et des délits d’opinion. De la provoca-
do julgamento, de pessoas que tives- busca. Os jornais davam diariamen- tenham sido iniciados. Utilizado ma- tion et de l’apologie criminelles. De la propa-
gande anarchiste. Étude philosophique et
sem proferido declarações belicosas. te numerosos detalhes sobre essas ciçamente contra os coletes amare- juridique [Da cumplicidade intelectual e dos
O alto magistrado Fabreguettes co- operações policiais, que, no final, los, esse delito passou a ser usado nos crimes de opinião. Da provocação e da apolo-
memorou o fato de que, com a nova não resultaram em praticamente tribunais para encarcerar meros ma- gia criminais. Da propaganda anarquista. Es-
tudo filosófico e jurídico], Chevalier Marescq
lei, seria possível, “em plena reunião nenhuma condenação. nifestantes. Do lado da polícia admi- et cie, Paris, 1894-1895.
pública, prender um delinquente”.4 Essas leis permitem multiplicar nistrativa, os dois anos de estado de 5   Lei n. 2014-1353, de 13 de novembro de
Essa lei existe até hoje. Aliás, ela medidas de restrição, atentatórias emergência (2015-2017) e a inclusão 2014, que fortalece as disposições relativas à
luta contra o terrorismo.
foi agravada em 2014, por iniciativa contra as liberdades individuais, que deste no direito comum ancoraram 6   “France. ‘Test décisif’ en matière de liberté
do então ministro do Interior, Ber- escapam ao controle dos juízes. Foi o de forma sólida a ideia de que o Esta- d’expression, avec de très nombreuses arres-
nard Cazeneuve, que permitiu que a caso em 1894 e também em 2015, do poderia se livrar de elementos que tations dans le sillage des attentats” [França.
“Teste decisivo” para a liberdade de expres-
apologia ao terrorismo fosse julgada quando o estado de emergência auto- ele considera perigosos. Há vários são, com inúmeras prisões após os atenta-
em comparution immédiate [uma rizou milhares de buscas administra- mecanismos que permitem – diante dos], Anistia Internacional, 16 jan. 2015;
modalidade de julgamento expres- tivas que violaram a privacidade de apenas de informações policiais sem “Déjà 50 poursuites engagées au pénal pour
apologie du terrorisme” [Já são 50 processos
so].5 Isso resultou na prisão de deze- famílias muçulmanas ou de ativistas fonte nem assinatura – demitir um criminais por apologia ao terrorismo], Liga
nas de réus que não tinham nada de ambientais, sem que a esmagadora condutor de trem ou de metrô consi- dos Direitos Humanos, Paris, 14 jan. 2015.
terroristas, mas haviam feito obser- maioria dessas visitas domiciliares derado engajado demais,7 colocar um 7   Lei n. 2016-339, de 22 de março de 2016,
relativa à prevenção e ao combate às incivili-
vações suscetíveis de receber essa fosse acompanhada por um juiz. E muçulmano em prisão domiciliar,8 dades, às ameaças à segurança pública e aos
qualificação penal. Após os atenta- também em dezembro de 2018, quan- afastar de seus empregos todos os atos terroristas no transporte coletivo de pas-
dos de janeiro de 2015, a Anistia In- do, aplicando as ordens da Guarda inimigos que o Estado designar como sageiros.
8   Lei n. 2017-1510, de 30 de outubro de 2017,
ternacional e a Liga dos Direitos dos Selos Nicole Belloubet, os promo- tais, concedendo uma confiança ce- que fortalece a segurança interna e o comba-
Huma nos mostraram-se impressio- tores da República permitiram, em ga à polícia. te ao terrorismo.
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 11

AQUECIMENTO AMEAÇA FLORA E FAUNA EXTRAORDINÁRIAS

Na Austrália, uma mento e na demografia dos morcegos.


“Há poucas dúvidas de que nossos ve-
rões serão cada vez mais quentes. Os

temporada no inferno
morcegos morrerão em uma área
maior e com mais frequência, espe-
cialmente as fêmeas e seus filhotes.”
O desaparecimento maciço desses
animais, essenciais para a poliniza-
ção, fragiliza a selva australiana.
“A terra está queimando.” Até o momento, a expressão não passava de uma imagem. Na E outras espécies, mais solitárias,
Austrália, ela descreve com precisão incêndios gigantescos que há três meses destroem tímidas ou noturnas, desaparecem
em segredo nas florestas tropicais:
o país, a ponto de os bombeiros desistirem de apagar o fogo. Tais catástrofes podem ser “Coalas, cacatuas-negras-de-bico-
classificadas como “naturais”, quando se acumulam provas de sua origem industrial? -curto, periquitos-australianos, dia-
mantes-mandarins e beija-flores da
POR MAXIME LANCIEN*, ENVIADO ESPECIAL espécie Atthis heloisa”,7 enumera o
cientista. O Melomys rubicola, um ra-
tinho habitante da ilha arenosa de

D
omingo, 13 de janeiro de 2019. mo sempre estive”, foi a resposta do mento global? Após uma investiga- Bramble Cay, que está sendo gradual-
Faz 47 °C nas planícies de Nova primeiro-ministro, Scott Morrison.2 ção realizada em 2018, a Comissão mente engolida pelo mar, desapare-
Gales do Sul, e o Rio Darling O fenômeno climático batizado de Real da Bacia Murray-Darling emitiu ceu em 2019. Em 2014, o coala repre-
agoniza ao vivo pela TV. O solo Angry Summer [verão bravo] tomou suas conclusões, mostrando a com- sentava US$ 2 bilhões em receitas
vermelho australiano está rachado. conta do país pela primeira vez em placência das autoridades em relação turísticas. Nada menos do que 30 mil
Às vezes, o céu fica laranja, e tempes- 2012. Desde então, o “supervilão” se aos agricultores. As planícies úmidas empregos diretos dependiam desse
tades de areia engolem pequenas lo- tornou mais perigoso. Sete anos de- estão fritando, mas os investidores marsupial arborícola, agora classifi-
calidades, como Mildura, mergulhan- pois, é necessário recorrer a um su- dos latifúndios ignoram a ameaça. cado como espécie “funcionalmente
do-as em uma noite extraterrestre. perlativo para expressar sua virulên- De maneira totalmente ilegal, bom- extinta” – isto é, incapaz de se repro-
Por muito tempo, a bacia hidro- cia: Angriest Summer [o mais bravo beiam intensivamente a água do Rio duzir ou de desempenhar seu papel
gráfica de Murray-Darling, celeiro dos verões].3 Em apenas noventa dias, Darling, exaurindo a bacia hidrográ- no ecossistema.
agrícola da Austrália, deu vida a uma 206 recordes de temperatura foram fica. “Foi mais a política do que a Sozinha, a Grande Barreira de Co-
de cada duas propriedades rurais do quebrados. Em 24 de janeiro de 2019, ciência que estabeleceu limites para rais tem um valor econômico, social e
país. Os períodos de seca ritmavam a os termômetros chegaram a 49,5 °C a quantidade de água que pode ser simbólico estimado em US$ 56 bi-
existência dos vinhedos, pomares, na cidade de Port Augusta, na Austrá- retirada dos rios da bacia”,4 observa o lhões.8 Mas de que adiantam esses
pastagens e campos de algodão que lia Meridional. “Eu amo um país quei- relatório. Três milhões de pessoas de- números, que repetem a lógica da
se estendem por 1 milhão de quilô- mado de sol”, escreveu Dorothea pendem desse ecossistema agoni- economia padrão, quando se sabe
metros quadrados, de Victoria a Mackellar em seu poema “My Coun- zante. Falta água potável mesmo em que a indústria extrativa australiana
Queensland – uma área equivalente à try” (1908), que expressava o nasci- poços e reservatórios. Serão os agri- representa US$ 248 bilhões em pro-
do Egito. Mas, em 2019, o calor extre- mento de sentimentos patrióticos. cultores, suas famílias e as comuni- dutos exportados, empregando 247
mo desencadeou a proliferação de al- “Uma terra de vastas planícies, de ca- dades aborígines os primeiros refu- mil pessoas?
gas azuis. Centenas de milhares de deias montanhosas irregulares, de giados climáticos australianos? Quase 90% dos australianos vi-
peixes mortos asfixiados flutuam ao secas e de chuvas torrenciais. Eu amo A Oceania é o continente com a vem a menos de 30 quilômetros da
sol, vítimas da espuma letal produzi- seus horizontes longínquos.” Agora, a maior taxa de espécies de animais e costa. O perímetro litorâneo entre
da pelas cianobactérias dolichosper- meteorologia está exaurindo a “terra plantas endêmicas – ela concentra, Brisbane e Melbourne concentra 15
mum e microcystis. As comunidades marrom”, tão amada pela poeta, e por exemplo, 80% dos mamíferos en- milhões de pessoas, mais da metade
locais culpam a agroindústria pelo perturbando seus horizontes. dêmicos do mundo. Isso se explica da população total da Austrália, que é
ecocídio.1 “Lamento que algumas pelo longuíssimo período de isola- de 25,4 milhões de habitantes. O re-
pessoas queiram usar esse drama COALAS E mento após a separação entre a Aus- sultado é uma forte pressão sobre os
apenas para fazer política. [...] Essa é PERIQUITOS-AUSTRALIANOS trália e Gondwana, há 40 milhões de recursos hídricos,9 começando pelos
uma das consequências da seca, com Como o órgão responsável pela ges- anos. Mas a chegada do gato domésti- de Murray-Darling. O aquecimento
a qual continuo tão preocupado co- tão da bacia tem reagido ao aqueci- co (Felix catus) e da raposa (Vulpes global, portanto, torna a Austrália
vulpes), trazidos pelos colonizadores mais vulnerável do que qualquer ou-
Lago Hume na Austrália, país tem atingiu temperaturas de até 49,5°C em 2019 britânicos, dizimou parcialmente a tro país desenvolvido à elevação do
população de mamíferos locais. Em nível do mar e aos ciclones extratro-
dois séculos, 10% das 273 espécies ter- picais. “Nossa pátria é cercada pelo
restres endêmicas da Austrália desa- mar”, lembra o hino nacional, Advan-
pareceram, em comparação com ape- ce Australia Fair. A Austrália está
nas uma na América do Norte.5 O “cercada por mares em elevação”,
aquecimento global está agravando a completa a climatologista Joëlle Ger-
mortalidade dos grupos mais frágeis, gis: “Uma parte fundamental de nos-
a ponto de 21% dos mamíferos endê- sa identidade nacional vai desabar, e
micos estarem em risco. A sexta extin- estamos assistindo a isso de cima de
ção em massa descrita pela jornalista um terreno em erosão”.10 O pior cená-
Elizabeth Kolbert6 está esvaziando rio prevê um aumento do nível do
florestas, savanas e recifes. mar de mais de 1 metro até 2100, o
Desde os primeiros dias do verão, que significa para as seguradoras
em novembro de 2018, milhares de US$ 226 bilhões em ativos imobiliá-
morcegos (Pteropus) foram vistos rios e de infraestrutura engolidos pe-
caindo no chão, de Cairns a Adelaide. las inundações e pela erosão. Em ju-
© Tim J Keegan

Justin Welbergen, professor de Ecolo- nho de 2016, violentas tempestades


gia Animal em Sydney e especialista atingiram a costa leste do país, de
em quirópteros, estuda os efeitos das Queensland à Tasmânia. A força das
temperaturas extremas no comporta- ondas destruiu casas e estradas,
12 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

principalmente em Sydney, nos bair- vada no restante de Queensland. Em de “eleições das mudanças climáti- wa, parteira e médica, Anne é a voz
ros de Collaroy e Narrabeen. Sem as setembro de 2018, 17,7% dos jovens cas”, confirmaram o poder de Scott das comunidades indígenas locais.
praias necessárias para que o mar entre 17 e 24 anos estavam desem- Morrison, pentecostal e ardente de- Diretora da Madjulla Inc., uma orga-
possa respirar, as ondas quebram pregados. “Don’t take my coal job fensor do carvão. No entanto, como nização comunitária dedicada à edu-
contra o concreto. and I won’t take your soy latte” [Não explica Lesley Hughes, climatologista cação, à pesquisa e à formação pro-
“A queima de gás e petróleo e o tome meu emprego no setor de car- membro do Climate Council e profes- fissional, ela trabalha com cientistas,
desmatamento levam à produção de vão e eu não tomo seu latte de soja], sor emérito de Biologia, “seria muito ecologistas, artistas, contadores de
gases de efeito estufa, que estão na proclama um adesivo que caçoa dos simplista considerar que os australia- histórias e juristas. “Os aborígines
raiz dos Angry Summers”,11 resume a ambientalistas, citadinos pretensio- nos não se importam com as mudan- querem participar da transição ener-
associação Climate Council. Nor- sos que dão lições aos operários en- ças climáticas pelo fato de que a coa- gética, e é muito frustrante para eles
malmente refrescada pelos Venda- quanto bebericam seu leite vegetal. lizão [da direita conservadora] foi não serem reconhecidos no debate.
vais da Latitude 40, a Tasmânia, uma Ali se planeja construir a Carmi- reeleita [...]. Os desafios ligados ao Eu defendo uma abordagem pacifis-
ilha localizada no sudeste do conti- chael, a maior mina de carvão do pla- emprego foram cruciais para alguns ta, para demonstrar que a transição
nente, atingia 35 °C no último mês de neta: quase 447 quilômetros quadra- dos assentos perdidos pelo Partido beneficiaria tanto os aborígines co-
janeiro. Nuvens negras mergulham a dos, ou seja, quatro vezes a área de Trabalhista”. Em Queensland, os elei- mo as grandes empresas.” Cultura lo-
cidade de Hobart em um claro-escu- Paris. Com uma produção de 60 mi- tores preferiram a firmeza da coali- cal, medicina tradicional, conheci-
ro irreal. Por trás das montanhas, as lhões de toneladas por ano, o esgota- zão de Morrison à posição confusa mento agrícola milenar e energias
florestas tropicais ardem. Quinhen- mento da megamina levaria 150 dos trabalhistas, que não se declara- renováveis são alguns argumentos
tos bombeiros lutam para proteger os anos. Apesar das dúvidas do Tesouro vam nem realmente pró-minas nem nesse sentido. “Kimberley é um lugar
pinheiros king billy e huon, tesouros de Queensland quanto à viabilidade sobretudo pró-impostos. único no mundo, onde outro modelo
botânicos milenares. Já viraram fu- financeira do projeto, o governo de de desenvolvimento é possível”.
maça 200 mil hectares de terra até Campbell Newman e o de Annasta- O animismo dos aborígines colo-
então muito úmida. cia Palaszczuk deram apoio total ao Após a “ameaça ca a “lei da terra” acima da lei dos ho-
No continente, a paisagem austra- conglomerado indiano Adani, opera- vermelha” da mens. Há 60 mil anos se transmite, de
liana, em parte nascida do fogo, está dor do projeto. Milhares de empregos geração em geração, uma memória
sendo consumida a uma velocidade seriam garantidos por várias gera-
Guerra Fria, a cantada que mistura conhecimentos
alarmante. “A temporada de incên- ções, prometeram. A Adani, no en- direita australiana geográficos e astronômicos. Essas
dios durou mais do que o normal em tanto, não esconde seu desejo de au- agora apregoa songlines, ou “trilhas de cantos”, car-
Queensland e começou mais cedo na tomatizar a mina “do poço ao porto”, a “ameaça verde” tografam o continente e refazem ao
Tasmânia”, observa o Climate Coun- a exemplo da gigante Rio Tinto, que mesmo tempo a história e o itinerário
cil, que pede uma reação forte para controla caminhões autônomos de de uma terra, um rio, uma floresta.
reduzir as emissões “a zero líquido até um centro operacional com sede em A Austrália poderia, no entanto, No polo oposto a essa filosofia, a pe-
2050, por meio de uma ação política Perth, na Austrália Ocidental. seguir outro caminho. Uma centena cuária industrial hoje ameaça o ecos-
coordenada”. Uma aposta alta, em um “Em 2017-2018, os royalties do car- de governos locais e trezentas cidades sistema do Rio Mardoowarra-Fitzroy.
país campeão mundial de exportação vão representaram, no conjunto das estão reunidas no programa Cities Po- Diante das evidências de uma Aus-
de carvão, no momento em que os receitas públicas de Queensland, ape- wer Partnership, que visa promover trália em vias de desidratação, Anne
meios de comunicação do bilionário nas 6,4%, número que deve cair para um “futuro energético sustentável”. O conclui: “A água é o novo ouro. É um
Rupert Murdoch (que controla 70% da 4,6% em 2021-2022”,13 observa o escri- surgimento de países interessados, artigo raro”.
imprensa nacional),12 os empresários tor James Bradley. Mais problemático, em graus diversos, na descarboniza- Para além da costa de Perth, a
ligados à indústria fóssil e think tanks um estudo realizado pelo Australia ção de suas economias – como Japão, corrida pela exploração do gás natu-
como o Minerals Council of Australia Institute mostra que as empresas es- Coreia do Sul, China e Taiwan – moti- ral liquefeito deixou perplexo o escri-
e a Australian Coal Association de- trangeiras detêm 86% da indústria de va Canberra a rever sua agenda. É ho- tor Tim Winton, dedicado há mais de
nunciam o “mito” do aquecimento mineração do país e teriam gasto em ra de “ativar o mercado”.15 25 anos à proteção dos mares. A em-
global. Após a “ameaça vermelha” da dez anos mais de meio bilhão de dóla- Mas os estados federados preten- presa de engenharia Subsea 7 plane-
Guerra Fria, a direita australiana ago- res para influenciar os diferentes go- dem mudar de rumo? “Isso é outra ja construir uma fábrica de gasodu-
ra apregoa a “ameaça verde”. vernos australianos.14 Os defensores história”, admite Anne Poelina, que tos ao sul de Exmouth. Tubos de dez
da ecologia política simplesmente mora perto do Rio Mardoowarra-Fit- quilômetros de comprimento alcan-
CORRIDA PELO GÁS NATURAL não têm recursos para competir com zroy, em Kimberley, região situada no çariam jazidas offshore atravessando
Em Townsville, a taxa de desemprego os lobbies extrativistas. As eleições le- norte da Austrália Ocidental. Guar- o recife de Ningaloo. A preservação
é de 9%, 3% acima da média obser- gislativas de maio de 2019, apelidadas diã tradicional da tribo Nyikina War- dessa área, listada em 2011 como Pa-

Estudos sobre a As políticas da política Aprendizagens do


personalidade autoritária Organizado por Marta Arretche, estudo sobre os
Nesta seleção de textos,
Eduardo Marques e
Carlos Aurélio
Estados Unidos
Theodor W. Adorno O ex-ministro chileno Luis Maira
Pimenta de Farias,
discute como, em plena apresenta um amplo estudo sobre as
esta coletânea
Segunda Guerra Mundial, relações internacionais dos Estados
investiga, sob
o fascismo não era um Unidos – em especial, no que tange às
diversos aspectos, os
episódio isolado, mas políticas de relacionamento com a
marcos políticos de
estava presente de forma América Latina – a partir da década de
nosso recente trajeto
latente na população 1970, período de grande crescimento
republicano, com
norte-americana da econômico dos países ocidentais após a
destaque para as
época. Expõe como o Segunda Guerra Mundial.
desigualdades e
autoritarismo mantém
inclusão nos governos
relações profundas com o
do PSDB e do PT. Produzir conteúdo
“clima cultural geral” do
Compartilhar conhecimento.
modo capitalista.
Desde 1987.
ww
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JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 13

trimônio Mundial da Organização dos lobbies de pesca industrial e es-


das Nações Unidas para a Educação, portiva”, explica Jessica Meeuwig, di-
a Ciência e a Cultura (Unesco), mo- retora do Centre for Marine Futures GUIADO PELAS ESTRELAS
bilizou a população da Austrália Oci- da Universidade da Austrália Ociden-
dental no início dos anos 2000. Hoje,
a luta está sendo retomada. Em
Perth, a Autoridade de Proteção Am-
tal e uma das criadoras do plano de
gerenciamento inicial. “O resultado:
um plano desolador ficou pronto em
“A expressão cinematográfica está ajudando a desconstruir o discurso nacio-
nalista australiano, que não para de ganhar terreno”, afirma Greta Morton
Élangué, historiadora e diretora artística do Festival de Cinema Aborígene da
biental anunciou em junho a inten- julho de 2017.” Mais de 1.400 cientis- Austrália, em Paris. Com o documentário We Don’t Need a Map [Não precisamos
ção de submeter a proposta da Sub- tas de todo o mundo expressaram sua de mapa], o diretor Warwick Thornton explora o símbolo do Cruzeiro do Sul, que
sea 7 à forma mais rigorosa de preocupação com a mudança inicia- figura na bandeira nacional. Já premiado pelos filmes Samson e Delilah (2009) e
monitoramento: a análise ambiental da pela Austrália.17 Em vigor desde 1º Sweet Country (2017), ele analisa a representação dessa constelação, tão popu-
pública. “Ningaloo é um dos santuá- de julho de 2018, o documento redu- lar nos círculos nacionalistas, e seu lugar no imaginário australiano.
rios marinhos mais incríveis do ziu em 400 mil quilômetros quadra- “O documentário ecoa as palavras da canção “(I’m) Stranded”, da banda punk
mundo. Observar as baleias é inspi- dos a área marinha até então interdi- australiana The Saints. A trilha sonora lembra que a Austrália continua sendo um
rador. Elas são curiosas”, explica tada à pesca e à exploração de país em crise quanto à sua identidade e herança colonial”, prossegue Élangué.
Winton, sempre maravilhado. A área petróleo e gás (Marine National Park Lançada em 1976, “(I’m) Stranded” trata da alienação sentida pelos músicos de
abriga a maior população mundial Zone IUCN II), colocando-as sob o re- um Queensland então dirigido pelo governo racista de Joh Bjelke-Petersen. Na
de baleias jubarte. Ali elas se repro- gime de proteção parcial (Habitat época, a Austrália não tinha hino nacional. O documentário de Warwick Thornton
duzem na companhia de dugongos, Protection Zone IUCN IV). explora, então, as songlines que compõem a cultura aborígine há 50 mil anos. As
arraias e golfinhos. A zona de pesca recreativa cobre cerimônias, a pintura, a dança e o cinema expressam a permanência desses ma-
No outro extremo do país, perto 97% das águas australianas e se es- pas orais, traçados no solo e no céu. We Don’t Need a Map destaca sobretudo o
de Cairns, encontra-se o maior orga- tende por mais de 100 quilômetros saber dos “homens da lei ritual” (law men), oriundos dos povos warlpiri, yolngu e
nismo vivo do planeta: um recife de da costa. No momento, dos 44 par- wardaman. “Entendemos, graças a suas histórias, que a constelação do Cruzeiro
coral. Essa maravilha natural é pro- ques marinhos criados em 2012, de- do Sul é um mapa cosmológico, um mapa dos saberes sagrados”, conclui Élan-
tegida desde 1981 como Patrimônio zesseis estão sem nenhuma forma de gué. “É a história do mesmo céu que conecta todos nós.
Mundial da Unesco. Ela gera uma ati- proteção. “Em 1975, o professor neo-
vidade turística considerável, garan- zelandês Bill Ballantine ajudou a
te a renovação dos recursos pesquei- criar o primeiro santuário marinho Até o momento, a interação entre dings of the National Academy of Sciences,
Washington, DC, abr. 2015.
ros e preserva as margens da erosão. do mundo, a Cape Rodney-Okakari as correntes oceânicas e a geologia da 6   E lizabeth Kolbert, La 6e Extinction. Comment
Mas o aquecimento global ameaça Point Marine Reserve, também co- Grande Baía permanece um misté- l’homme détruit la vie [A sexta extinção. Como
sua existência. David Cazzulino, que nhecido como Parque Leigh”, conta rio. Entre 2013 e 2017, pesquisas cien- o ser humano está destruindo a vida], Vuibert,
Paris, 2015.
trabalha em Cairns para a Australian Jessica, admiradora do trabalho des- tíficas revelaram a existência de 277 7   Justin Welbergen, “Canaries in the coalmine:
Marine Conservation Society, expli- se biólogo marinho engajado e visio- novas espécies. Nesse ecossistema Flying-foxes and extreme heat events in a war-
ca: “Os fertilizantes da indústria ca- nário. De fato, há quarenta anos, as onde coexistem baleias-francas-aus- ming climate” [Canários na mina de carvão:
raposas-voadoras e eventos extremos de ca-
navieira há muito tempo poluem as pesquisas de Bill Ballantine demons- trais, grandes tubarões-brancos, lor em clima quente], comunicação no Griffith
águas costeiras. Hoje, o governo in- traram a importância vital dos san- leões-marinhos, cachalotes e diver- Climate Change Seminar, Griffith University
centiva os agricultores a adotar práti- tuários para repovoar o oceano e or- sas criaturas batipelágicas, é difícil EcoCentre, Nathan, Queensland, 3 jul. 2014.
8   “At what price? The economic, social and icon
cas mais benéficas, embora sempre ganizar áreas específicas de pesca. mensurar a extensão das intercone- value of the Great Barrier Reef” [A que preço?
haja resistência quando se trata de Essa proteção também aumenta a re- xões. Mais recente empresa a amea- O valor econômico, social e simbólico da
mudar hábitos”. David não está oti- siliência dos corais no contexto do çar esse tesouro, a Equinor parece Grande Barreira de Corais], Deloitte Access
Economics, 2017.
mista: como podemos pedir às na- aquecimento global. tranquila: “Há petróleo na Grande 9   Ler Marc Laimé, “Crise de l’eau: le laboratoire
ções do mundo que reduzam suas Baía Australiana? Talvez. Podemos australien” [Crise da água: o laboratório aus-
emissões de gases de efeito estufa descobrir isso com total segurança? traliano], Le Monde Diplomatique, jun. 2007.
quando Queensland, o cenário da A área abriga a maior Com certeza”.
10  Joëlle Gergis, Sunburnt Country. The History
and Future of Climate Change in Australia
Grande Barreira de Corais, decide população mundial de Nenhum estudo científico parece [Um país queimado de sol. A história e o futu-
ro das mudanças climáticas na Austrália],
construir uma mina gigantesca? capaz de prejudicar a confiança da
baleias jubarte. Ali elas companhia norueguesa. Não mais
Melbourne University Press, 2018.

OCEANOS MAL PROTEGIDOS se reproduzem na com- do que a lembrança do pior derrama-


11  Climate Council of Australia, op. cit.
12  Robert Manne, “Bad news: Murdoch’s Austra-
No poder desde 2013, os conservado- panhia de dugongos, mento de petróleo da história da lian and the shaping of a nation” [Más notí-
cias: os australianos de Murdoch e a modela-
res incentivam o setor industrial a re- arraias e golfinhos Austrália: há dez anos, o poço de gem de uma nação], Quarterly Essay, Carlton
virar o ventre dos oceanos. Porém, já Montara explodiu, liberando mi- (Victoria), n.43, set. 2011.
em 2012 o governo trabalhista defen- lhões de litros de petróleo no Mar de 13  James Bradley, “How Australia’s coal mad-
ness led to Adani” [Como a loucura do carvão
dia um ambicioso plano de gestão do Embora as zonas protegidas de- Timor. Mais um desastre na longa da Austrália levou à Adani], The Monthly, Carl-
oceano, fruto de dez anos de pesquisa vessem ser ampliadas, o continente lista de crimes ambientais da Austrá- ton (Victoria), abr. 2019.
científica. Na época, o líder da oposi- segue o caminho inverso. A maior re- lia moderna. 14  Hannah Aulby (The Australia Institute), Under-
mining Our Democracy: Foreign Corporate
ção, Tony Abbott, considerava que serva nacional de petróleo estaria na Influence through the Australian Mining Lobby
uma regulamentação excessiva dedi- Grande Baía Australiana, segundo a *Maxime Lancien é jornalista e um dos [Minando nossa democracia: a influência de
cada à criação de santuários mari- empresa norueguesa Equinor (ex-S- organizadores da revista Paysageur. corporações estrangeiras por meio do lobby
mineiro australiano], ago. 2017.
nhos “trancaria” os oceanos. Ele pro- tatoil). A companhia planeja perfurar 15  Hydrogen Strategy Group, Hydrogen for Aus-
meteu suspender o plano se vencesse. o poço de exploração Stromlo-1, que 1   “ Pumped” [Bombeado], ABC, 24 jul. 2017.
tralia’s Future. A Briefing Paper for the COAG
2   Entrevista concedida a Paul Kennedy, “ABC
Durante a campanha, inflamou a estaria operacional em 2020-2021. Energy Council [Hidrogênio para o futuro da
News Breakfast”, 14 jan. 2019. Disponível
Austrália. Um informativo para o COAG Ener-
multidão de marinheiros amadores Esse é um projeto razoável, quando em: <www.pm.gov.au>.
gy Council], ago. 2018.
presentes na convenção da Austra- se sabe que o Oceano Antártico é var- 3   Climate Council of Australia, The Angriest
16  “Abbott coalition will suspend Marine Park
Summer [O mais bravo dos verões], 2019.
lian Fishing Trade Association. Du- rido por tempestades que propagam process” [Coalizão Abbott suspenderá o pro-
 ret Walker SC, Murray-Darling Basin Royal
4   B
cesso do parque marinho], Sail World, Sou-
rante a infância, Abbott pescava com pela superfície do globo uma onda de Commission Report [Relatório da Comissão
thampton (Reino Unido), 27 ago. 2013.
seu avô na Gold Cost, e queria que “as energia excepcional? Em 2018, uma Real da Bacia Murray-Darling], Governo da
17  Ocean Science Council of Australia, “Safe-
Austrália Meridional, 29 jan. 2019.
gerações futuras pudessem desfrutar boia registrou uma onda de 23 me- guarding Australia’s Marine Parks Network:
5   John C. Z. Woinarski, Andrew A. Burbidge e
The science case” [Salvaguardando a rede de
do mesmo privilégio”.16 Eleito em se- tros de altura.18 A Equinor tenta tran- Peter L. Harrison, “Ongoing unraveling of a
parques marinhos da Austrália: o caso cientí-
tembro de 2013, ele logo começou a quilizar os ânimos: a atividade do continental fauna: Decline and extinction of
fico], jul. 2017.
Australian mammals since European settle-
trabalhar. “De 2013 a 2017, o governo poço seria limitada ao período entre 18  M etOcean, “A record wave height measured
ment” [Observação de uma fauna continental:
in the Southern Ocean” [Onda de altura re-
federal gastou muito dinheiro para outubro e maio, de relativa clemência declínio e extinção de mamíferos australianos
corde medida no Oceano Antártico], maio
elaborar um novo texto, com o apoio meteorológica. desde a chegada dos europeus], Procee-
2018.
14 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

CAMPOS DE VENENO

A vida de pequenos
Uma tarde de 2007, no início do
verão amazônico, Macaxeira viu
mais uma vez o vizinho iniciando a
aplicação do veneno. Eram 6 horas da

agricultores rurais em
tarde e as crianças estavam em casa.
Preocupado, foi conversar sobre a si-
tuação com ele. Alguns dias depois, o
vizinho veio lhe fazer uma proposta:

terras amazônicas
“Ou o senhor compra a minha área,
ou eu compro a sua”.
Sitiado por um terreno maior que
o seu, ambientalmente degradado

cercadas pela soja


pela derrubada da floresta e acúmulo
de veneno, e com suas economias de-
bilitadas pela atividade do vizinho,
Macaxeira não tinha como comprar a
área. “Não tivemos mais como ficar
Reportagem acompanhou os impactos da monocultura no meio ambiente e na vida dos no terreno em que eu morava na épo-
habitantes da região do Planalto Santareno, no Baixo Rio Tapajós. “A maioria da ca. Ninguém mais conseguiu sobre-
viver respirando soja, com aquele ve-
população é afetada negativamente: aumenta a pobreza, aumenta a miséria, aumenta a neno. E eu fui obrigado a vender.”
fome, a insegurança pública, a violência. Concentra renda, concentra terra e aumentam Macaxeira se mudou para outro
os impactos negativos na área social” local da mesma Santos da Boa Fé, o
ramal do Jacaré, onde fizemos esta
entrevista. A partir de 2005, a soja to-
POR FÁBIO ZUKER (Texto) E BRUNO KELLY (Fotos)* mou conta da comunidade e de ou-
tras tantas na região conhecida como
Planalto Santareno, composta pelos
municípios de Santarém, Belterra e
Mojuí dos Campos. “O veneno obriga

N
© Bruno Kelly
o início dos anos 2000, o terre- a pessoa a entregar seu lote. Não é
no ao lado da casa de seu Ma- mais o preço”, resume.
caxeira foi comprado por um Manoel Edivaldo Santos Matos é o
sulista recém-chegado. De iní- Peixe. Presidente do Sindicato dos
cio, seu Macaxeira ficou feliz com o Trabalhadores Rurais de Santarém,
novo vizinho. Era simpático e dizia ele narra a chegada da soja à região.
que vinha trabalhar a terra. Ao se Entre o final dos anos 1990 e o início
apresentar, falou que queria mesmo dos anos 2000, o prefeito da cidade
vir para um lugar tranquilo, que lá no convidou produtores de soja de ou-
Sul tinha tido muito atrito com os vi- tras regiões do Brasil, especialmente
zinhos. Deu a impressão de que viera do Mato Grosso, para fazer uma ex-
para se estabelecer. Seu Macaxeira periência, um teste, em 1 hectare de
havia se mudado em 1999 para a co- terra. Antes, relembra Peixe, não ha-
munidade de Santos da Boa Fé, próxi- via soja. Na área se plantava arroz,
mo à Rodovia Curuá-Una, em Santa- feijão, frutas, macaxeira. “E deu bem,
rém (oeste do Pará). Estava contente a soja deu porreta na área aqui.”
com sua produção. Plantava mamão, O agricultor ingressou na direto-
cupuaçu, graviola, batata, maracujá e ria do sindicato em julho de 2002,
macaxeira – tanta que lhe rendeu o momento em que se iniciava a venda
apelido que leva até hoje, aos 64 anos. de terras para os sojeiros. Em outu-
Todos chamam Antônio Alves assim: bro daquele mesmo ano, fizeram um
seu Macaxeira. Com seu plantio, sus- levantamento rápido para entender o
tentava quatro filhos. Sem veneno. impacto da nova situação: “Seiscen-
Naquele momento, virada do milê- tos agricultores já haviam vendido
nio, a soja sequer figurava em seu suas terras”. Foi aí que iniciaram a
horizonte. primeira campanha “Não Abra Mão
“Foi um vizinho muito bom, só da Sua Terra”: “Deu uma freadinha,
que aí ele começou a comprar terras”, mas muito pouco, porque o lobby pa-
relembra Macaxeira. Primeiro ele ra comprar a terra era muito grande”,
comprou uma terra dos fundos. De- lamenta Peixe.
pois, a da direita. Já em 2002 começou Em seguida veio o porto da Car-
a derrubar o mato que havia ao redor. gill. “Tudo de acordo com o projeto
Ele prometia àqueles de quem com- Área desmatada para a plantação de soja em Santarém (PA) deles. Mete soja aqui, faz o porto
prava os terrenos que geraria empre- aqui, para receber a soja do Mato
go na região. Pouco a pouco, Maca- Seu Macaxeira observava a reação colheita do mamão, da macaxeira, Grosso e daqui também”. A então
xeira se viu cercado. A tranquilidade da aplicação do veneno em seus fi- começou a não dar mais. O veneno presidente do sindicato, Ivete Bastos,
prometida não vingou. Os empregos, lhos: “irritava os olhos, irritava a gar- não deixou.” As plantas passaram a foi para a Europa denunciar o que es-
tampouco. Quando muito na fase de ganta. Era febre diária, era dor na ca- não dar frutos. Ou, quando davam, já tava acontecendo na região, mostrar
derrubada da mata. Nessa época, era beça”. O uso de agrotóxicos pelo não eram frutos tão saudáveis como aos compradores de soja europeus o
o barulho que mais transtornos tra- vizinho começou a dificultar sua pró- antes. As folhas murchavam antes de impacto da monocultura na região:
zia. Em seguida, a soja. “Aí comecei a pria atividade profissional. “Eu, que florescer. A saúde e o sustento de sua “Naquela época nem se falava tanto
passar muito atrito”, relembra. vivia da agricultura familiar, mais da família estavam ameaçados. no impacto do veneno. Era a expul-
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são dos agricultores. Eram igarapés Presidente da associação de mo- Dileudo teme que a construção campo de soja defronte às instalações
sendo soterrados pela derrubada”. radores do Quilombo do Bom Jar- dos portos e o fluxo de grandes em- escolares trabalhava livremente.
Foi nesse contexto que teve início dim, Dileudo Guimarães dos Santos barcações possam vir a aterrar o Rio Heloíse Rocha, professora indíge-
a negociação para a Moratória da So- conhece como poucos a realidade do Maicá, o que implica um problema na, trabalha há cinco anos na região
ja. Para Peixe, a moratória foi um Lago do Maicá. Ele vive os impactos maior para a segurança alimentar do Trevo de Belterra: durante três
acordo que envolveu produtores, tanto da expansão da plantação de dos quilombolas. Com o desmata- anos foi professora em uma escola vi-
consumidores e organizações am- soja como da construção da infraes- mento demandado pela soja, a caça já zinha, também rodeada pela soja, e
bientalistas. “Era o acordo de que a trutura que a exportação do grão diminuiu. Castanheiras e abacabei- há dois está na Vitalina Motta. Ela
Europa só ia comprar soja de área demanda. ras, de onde tiravam parte de seus ali- conta que nunca foi feita uma nego-
que fosse legalizada, que não tivesse O Quilombo do Bom Jardim fica mentos, também foram derrubadas. ciação com os sojeiros, para evitar a
expulsão de agricultor, que não tives- em um local de difícil acesso, entre o Enquanto isso, os projetos de ex- borrifação em horário de aula das
se impacto ambiental, como os iga- Lago do Maicá e o pé de uma serra. pansão da soja não param. Ciro crianças. “Não houve negociação. Ne-
rapés etc., e que não fosse derrubada Para chegar até ele, vindo da Rodovia acompanha a construção da Ferro nhuma gestão da escola fez essa ne-
mais nenhuma árvore de floresta pri- Curuá-Una, é preciso embrenhar-se Grão e do projeto de hidrovia Teles Pi- gociação. Não que faltassem reclama-
mária para plantar soja, só em áreas em ramais tomados pela soja, passar res-Tapajós. O advogado aponta para ções dos professores e funcionários.
alteradas ou degradadas, como eles ao lado do terreno de seu Macaxeira a relação entre o desenvolvimento da Eu oficialmente pedi: ‘Temos de fazer
dizem. Mas isso depois descumpri- e descer uma baixada íngreme e es- infraestrutura de escoamento da soja alguma coisa. É necessário que a gen-
ram, e a coisa avançou.” corregadia. Para Dileudo, a localiza- do Centro-Oeste e o incentivo para a te proteja as crianças e nos proteja’.”
O sindicalista mostra-se cético ção do quilombo é estratégica: “O produção no Planalto Santareno: “O Existe também receio quanto à
em relação às promessas do setor de povo que vinha para cá, que veio pa- Lago do Maicá tem um projeto para possível contaminação da água da es-
agronegócio, de que portos, ferrovias ra cá como escravo, se localizava nas construção de seis portos, terminais cola, que é de poço artesiano e passa
e rodovias melhorarão a situação do áreas aqui debaixo, mas tinha gente de uso privado. Além de escoar a pro- pelo filtro. “A gente sabe que o agrotó-
município: “Essa história não vale que ficava, durante o dia, na área da dução já existente, ele vai vir como xico vai pro lençol freático.” Entre-
mais. Porque a gente sabe que, onde serra. E alguns trabalhavam tam- um incentivo para os produtores lo- tanto, inexistem estudos sobre a qua-
existe isso, tem aqueles que se dão bém lá. Porque facilitava ter uma vi- cais ou de fora virem produzir aqui”. lidade da água. A falta dos estudos,
bem, e muito bem. Mas a maioria da são de quem chegava pela água, né? Para Ciro, houve um forte lobby aliás, é um dos problemas maiores na
população é afetada negativamente, Então já avisava as pessoas: ‘Olha, tá para a alteração do plano diretor de relação da população do Planalto
ou seja, aumenta a pobreza, aumenta chegando, tal e ali’”. Santarém. “Essa região do Lago do Santareno com o veneno. Simples-
a miséria, aumenta a fome, a insegu- Maicá é de uma área de preservação mente se desconhece o impacto.
rança pública, a violência. Concentra ambiental. Você não podia fazer na- Heloíse desabafa: “A gente se sen-
renda, concentra terra e aumentam “Eu, que vivia da agri- da ali. Então, quando foi para mudar te refém na escola. É um consenso
os impactos negativos na área social, cultura familiar, mais o plano diretor municipal, houve to- entre todos os funcionários que tra-
principalmente na área da saúde”. do um ano de participação pública, balham aqui de que a gente está sen-
Peixe cita de cabeça uma fala do
da colheita do mamão, consultas, audiências. As comunida- do contaminado. A gente, aos pou-
médico neurologista santareno Erik da macaxeira, começou des, os movimentos sociais e demais cos, está sendo envenenado”.
Jennings sobre o futuro que se vis- a não dar mais. O vene- organizações apontaram a necessi- A Secretaria Municipal de Educa-
lumbra para a saúde da população no não deixou” dade de manter essa área como uma ção de Belterra, procurada pela repor-
da região: uma população doente área de preservação. E foi o texto tagem, não respondeu às perguntas.
pela ingestão de peixe contaminado passando assim. Então a gente acha- Morador da região há 28 anos, seu
de mercúrio e pela exposição ao No interior do Pará, a história se va que no final, quando fosse aprova- Macaxeira não hesita: “O objetivo de-
agrotóxico. Em abril de 2019, o médi- repete de modo curioso. Ela parece da a lei municipal que continha o les hoje é acabar a comunidade”. A
co participou de uma audiência pú- inverter a célebre frase usada por plano diretor, ficasse como uma área história de Antônio Macaxeira é a
blica na Câmara dos Deputados, em historiadores: em terras tapajônicas, de preservação”, conta Ciro. Ele pros- história de pessoas sujeitas à fria lei
Brasília. Lá, fez uma apresentação a história surge primeiro como farsa segue: “Então houve um lobby por da concorrência do mercado. Exis-
para deputados e indígenas sobre o e só depois como tragédia. Justa- trás, e em dezembro, quando todo tem frequentes acusações de grila-
impacto do mercúrio no Tapajós: mente por conta dessa geografia es- mundo estava feliz, a Câmara e a gem na região – como denuncia Di-
“Tenho uma tese de que o homem tratégica, que uma vez favoreceu Prefeitura aprovaram uma redação leudo, do Quilombo Bom Jardim.
amazônico está mais doente e mais aqueles que fugiam da escravidão, que na verdade autorizava essa área Mas, em muitos outros casos, o pro-
ameaçado que a floresta”. hoje o quilombo recebe água com como expansão portuária”. Outra al- cesso de compra de terras é feito de
Ciro de Souza Brito é advogado e veneno das plantações de soja que fi- teração no plano diretor diz respeito acordo com a legislação vigente, as-
trabalha na Terra de Direitos, ONG cam no topo da serra. Um lixão da ci- à soja diretamente. Praticamente to- sim como a aplicação do veneno. Não
que presta assessoria jurídica para co- dade de Santarém, instaurado na das as áreas que não sejam de pre- incorrer em ilegalismos, porém, não
munidades rurais e quilombolas afe- parte mais alta, também traz água servação ambiental foram transfor- significa que esse não seja um pro-
tadas pela soja na região do Planalto contaminada para eles. Apesar do madas em áreas onde a monocultura cesso violento. A cada metro compra-
Santareno. “A soja não vem sozinha, avançado processo de titulação do poderá se desenvolver. do, a cada terreno com mata que dá
como commodity. Ela traz diversos quilombo, grileiros avançam sobre a Por não terem tido seus protoco- espaço à monocultura de grãos, a ca-
problemas. Ela vai desterritorializar, área dos comunitários, plantando los de consulta respeitados, os qui- da borrifada de veneno, os pequenos
ela vai adoecer, ela vai criminalizar, soja dentro do território, enquanto lombolas entraram na justiça, que agricultores rurais se sentem cerca-
ela vai marginalizar.” os quilombolas mesmo... “Poucos suspendeu temporariamente a cons- dos. Fogem para a cidade. Aos pou-
O advogado analisa a expansão têm terra pra trabalhar”, lamenta trução dos portos de soja. Porém, ou- cos, são desterrados. Ou ficam como
da cadeia da soja na região com base Dileudo. tro projeto, um terminal portuário de o caju cultivado em meio à soja, apá-
nos impactos em quem vive junto à Além da qualidade da água, outra combustível, com as devidas autori- ticos, sem dar fruto, fora de lugar na
terra: “À medida que se expande, a de suas preocupações é com o peixe. zações municipais e estaduais, está terra a que pertencem.
soja desterritorializa as comunida- “Aqui é água do Tapajós, a água do sendo construído e, com ele, toda a
des e aumenta a necessidade de es- Amazonas é mais branquicenta. A infraestrutura logística: “O porto es- *Fábio Zuker é jornalista e antropólogo,
coamento dessa produção. E por on- gente percebe que essa água tem mu- tá avançando, está se consolidando, autor de Vida e morte de uma Baleia-Min-
de vai sair? Aí entra a questão do dado um pouco de cor. E já foram en- estão terminando de construir”, afir- ke no interior do Pará e outras histórias da
Maicá. Do Lago do Maicá. As comu- contrados peixes mortos. A gente ma Ciro. Amazônia (Publication Studio SP, 2019);
nidades entendem que é um criadou- pensa que é pela contaminação da Chegamos à Escola Municipal Vi- Bruno Kelly é jornalista baseado em Ma-
ro de peixes, inclusive nas palavras água. E a gente sabe que a contami- talina Motta, em Belterra, pela tarde. naus. Esta reportagem foi produzida com o
do Dileudo, e os estudos apontam nação da água vai diminuir a quanti- As crianças estavam em pleno horá- apoio do Rainforest Journalism Fund em
que é um santuário de peixes”. dade de peixe.” rio de aula, e um trator vermelho no parceria com o Pulitzer Center.
16 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

PUNIR OS INDIVÍDUOS, POUPAR OS GRANDES POLUIDORES

Em nome da
urgência ecológica
Nenhum tomador de decisão público ou privado de relevo pode
ignorar a questão climática... pelo menos no discurso. Essa vitória
ideológica do movimento ecologista precisa traduzir-se em
medidas concretas. Entretanto, a conquista abre outro campo
de disputa, provocado por sua instrumentalização reacionária
por parte dos comandantes do capitalismo verde
POR ANNE-CÉCILE ROBERT*

“A
s medidas que devem ser desde 2005 no preâmbulo da Consti-
tomadas serão difíceis de tuição, ao lado da Declaração dos Di-
aceitar. Podemos dizer que reitos do Homem e do Cidadão. Em
a luta contra as mudanças 2018, a Comissão de Direito da As-
climáticas é incompatível com as li- sembleia Nacional propôs ir além,
berdades individuais, portanto, sem com a inclusão da luta “contra as mu-
dúvida, incompatível com a demo- danças climáticas” no artigo 1º da
cracia”, afirma o climatologista Fran- Constituição, colocando essa ques-
çois-Marie Bréon.1 “Eu não pretendo tão no mesmo nível que o caráter “in-
ter as soluções [para lutar contra o divisível, laico, democrático e social”
© Ivan

aquecimento global]; há especialis- da República, portanto, no topo da


tas muito mais competentes para is- hierarquia das normas que balizam
so”, explica, por sua vez, o astrofísico as instituições.
Aurélien Barreau, antes de acrescen- O estabelecimento, no dia 4 de ou-
tar que sua única certeza é sobre a tubro de 2019, da Convenção Cidadã clarece Dion. “Elaborar propostas em vel sanção pelas urnas, eles poderiam
necessidade de tomar “medidas coer- pelo Clima (CCC) concentra os im- uma estrutura aprovada pelo gover- estar sujeitos a ações judiciais. Asso-
citivas, impopulares, contrárias às pensados e os perigos desse discurso, no e depois obter um referendo.” ciações ambientais como Oxfam,
nossas liberdades individuais”.2 A aparentemente movidos pelo bom Friends of the Earth, Climate Action
tentação de subordinar a democracia senso e pela “necessidade de agir an- ASSEMBLEIA SEM MANDATO Network e Greenpeace, apoiadas por
ao imperativo climático se espalha tes que seja tarde demais”. Encarre- À primeira vista razoável, esse dis- personalidades do mundo das artes,
como uma música de fundo. “Após gado, ao lado de Anne Frago (diretora curso assume como dadas coisas que, já não estão tentando, por meio da
ter sido um tabu por muito tempo, a do Departamento de Cultura e As- na realidade, não o são. Em primeiro plataforma “L’affaire du siècle”,5 levar
ideia da necessidade de uma restri- suntos Sociais da Assembleia Nacio- lugar, não está claro por que milagre o Estado aos tribunais por “inação
ção, da tomada de decisões impopu- nal) e Michèle Kadi (diretora-geral cidadãos definidos por sorteio esta- diante das mudanças climáticas”? A
lares, começa a ganhar terreno”, ob- honorária dos Serviços do Senado), rão subitamente despidos de todos os ferramenta legal também foi tema da
serva o jornalista Stéphane Foucart. pela organização da CCC decidida revezes inerentes à vida social: impe- universidade de outono de 2019 da Li-
E conclui: “As alternativas são som- pelo presidente Emmanuel Macron netráveis à corrupção, imunes a qual- ga dos Direitos Humanos.
brias: renunciar à forma atual da de- no fim do grande debate nacional, o quer raciocínio tendencioso, louca- Embora a democracia natural-
mocracia para conter o aquecimento diretor e escritor Cyril Dion assim de- mente desinteressados etc. Além mente acomode as restrições exerci-
global ou esperar até que este vença a fine o alvo: “Nosso modelo de demo- disso, as virtudes da transparência e das sobre os cidadãos em nome do in-
democracia?”.3 cracia representativa não permite to- da neutralidade atribuídas ao sorteio teresse geral, a incerteza aqui provém
Ao contrário do que afirmam al- mar as medidas radicais necessárias não parecem tão evidentes quando se da crença em uma definição objetiva
guns cientistas na revista Valeurs Ac- para enfrentar os desafios atuais”. A sabe que, durante a pré-seleção reali- do progresso ecológico isenta de uma
tuelles,4 a realidade das mudanças chave, segundo ele, está no estabele- zada entre 250 mil números de telefo- análise econômica e da consideração
climáticas está estabelecida. Interro- cimento de espaços de deliberação ne, o acaso escolheu Daniel Cohn- das correlações de força da sociedade.
guemos então o real significado do que permitam criar soluções a serem -Bendit (ele declinou, argumentando É por isso que a CCC atribui um papel
discurso que sujeita a democracia – adotadas pelos poderes públicos. Ele que não tinha tempo). Em segundo central aos “especialistas” encarrega-
ou seja, uma das expressões funda- se mostrou particularmente anima- lugar, em nome de que se atribuiria a dos de dar os esclarecimentos neces-
mentais de nossas liberdades – ao do durante o lançamento da CCC. um areópago resultante do acaso, sários para que sejam criadas solu-
meio ambiente. Não há “ditadura ver- Definidos com base em um sorteio portanto sem mandato, o poder de ções “corretas”, ou seja, baseadas em
de” no horizonte: as eleições conti- geral, a ideia é que os 150 membros da influenciar decisões políticas toma- uma espécie de verdade científica. No
nuam sendo o alfa e o ômega do exer- convenção se reúnam por seis sema- das por autoridades constituídas por entanto, “a noção de ‘progresso eco-
cício do poder, pelo menos no mundo nas com especialistas que expliquem sufrágio universal? Embora os eleitos lógico’ não faz sentido”, explica a his-
ocidental. Em compensação, as bali- as questões a serem decididas. Cabe- mantenham seu poder de decisão, toriadora Valérie Chansigaud. “Se não
zas da democracia começam a ser ob- rá então ao Parlamento adotar for- poderão eles realmente contornar a refletirmos sobre a arquitetura social
jeto de medidas concretas, muitas ve- malmente as medidas ou aos eleito- amigável proposta feita pela CCC, que queremos, a ecologia parece uma
zes adotadas sem discussão real, tão res tomar uma posição. “Nossa adornada com as virtudes da demo- espécie de panóplia que pode revestir
pesada é a “emergência climática”. aposta é criar uma relação de forças cracia new look e incensada pelo al- qualquer coisa. Nos últimos dois sé-
Na França, a Carta Ambiental figura com o governo a partir de dentro”, es- voroço da mídia? Além de uma possí- culos, encontramos referências à na-
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17

nisteriais ou nas instituições inter- Os efeitos do aquecimento global do a qual o ser humano é mau por na-
nacionais. Todo temor é razoável e da poluição em larga escala pare- tureza; ele é responsável pelos infor-
quando se sabe que, entre a dúzia de cem tão aterradores – e de fato são – túnios do planeta e merece ser
personalidades “imparciais” encar- que estão colocando em cena ideias controlado. De outro, existiria uma
regadas de selecionar os especialis- monstruosas. Certamente, aqueles verdade ambiental – uma espécie de
tas da CCC, está Catherine Tissot- que, ainda minoritários, pedem insis- pensamento único – indiscutível, à
-Colle, alta executiva da Eramet, uma tentemente o questionamento das li- qual poderíamos, ou deveríamos,
multinacional de mineração parti- berdades imaginam que serão eles submeter todo o resto, a fim de ga-
cularmente poluidora.7 Não é difícil próprios a definir os limites que afe- rantir nossa sobrevivência. Sem en-
imaginar um mentor mais neutro... tarão todos os demais. Se restringir- trar em uma discussão filosófica so-
Bem orientada, a CCC está ajudando mos o turismo de massa, por exem- bre a existência de uma natureza
a construir esse falso consenso que plo, limitando a tonelagem de navios humana, seria o ser humano o res-
poupa os interesses econômicos e fi- de cruzeiro ou elevando o custo dos ponsável pelas mudanças climáti-
nanceiros. “Estamos assistindo a transportes, as classes ricas não so- cas, pelo simples fato de ser um Ho-
uma demagogia democrática surrea- frerão com isso, pois vão encontrar mo sapiens predador, ou a
lista, pois as perguntas que são feitas suas maneiras de dar a volta ao mun- responsável seria, por exemplo, a
nós já sabemos como responder”, do. “Um mundo mais justo seria um cultura industrial que se impôs em
avalia Allain Bougrain-Dubourg, mundo mais feio”, dizia um bilioná- detrimento de uma cultura campo-
membro do Conselho Econômico, rio, observando o navio lotado de nesa mais sintonizada, por necessi-
Social e Ambiental da França.8 uma operadora de turismo, em uma dade, com a natureza? Os pensado-
À medida que se espalha pela mí- praia das Baleares. Em outras pala- res progressistas, em particular os
dia, o discurso sobre o aquecimento vras: se o meio ambiente é caro (é do Iluminismo, destacaram-se por
global imperceptivelmente sai do conveniente dizer), então reservemos seu otimismo sobre a capacidade de
universo da ciência e do pensamen- os prazeres do turismo aos donos de o ser humano se aperfeiçoar, sobre-
to (no qual é solidamente construí- iates. O novo “imaginário social” ne- tudo por meio da educação e do espí-
do) para instalar-se no campo da cessário para a proteção do planeta rito crítico. Ao contrário, os reacio-
crença, em verdades socialmente não pode nascer sem uma reflexão nários contestaram qualquer ideia
determinadas e subtraídas à refle- global sobre “a instituição de uma so- de progresso e desenvolveram uma
xão crítica. Com seu alerta pelo cli- ciedade radicalmente diferente”, visão pessimista do ser humano, que
ma, que soube atrair a atenção dos lembram os economistas Jean-Marie- seria irreparavelmente calculista e
líderes mundiais, torna-se uma es- -Harribey e Pierre Khalfa.12 egoísta. Estariam as questões climá-
pécie de Bernadette Soubirous pós- ticas inesperadamente mostrando
-moderna, liderando gigantescas que eles estavam certos?
procissões em todo o mundo sem A tentação de
nunca dizer uma só palavra sobre os subordinar a *Anne-Cécile Robert é jornalista do Le
acordos de livre-comércio e seus Monde Diplomatique.
efeitos sobre o meio ambiente.
democracia ao
tureza e ao respeito a ela vindas de Apontar o dedo para a responsa- imperativo climático
quase todos os atores políticos, da ex- bilidade do homem (falando em An- se espalha como uma 1   A urore Coulaud, “François-Marie Bréon: ‘La
trema direita, que a vê como a base da tropoceno) apaga oportunamente a música de fundo lutte pour le climat est contraire aux libertés
individuelles’” [François-Marie Bréon: “A luta
identidade dos povos, até os anar- responsabilidade do produtivismo, ou pelo clima é contrária às liberdades indivi-
quistas, para os quais a preservação do modo de produção capitalista,9 em duais”], Libération, Paris, 29 jul. 2018.
ambiental está na raiz da demanda favor de uma espécie de “pensamento UMA BRECHA NA DEMOCRACIA 2   Anna Benjamin, “Climat: Aurélien Barrau, mé-
téorite médiatique?” [Clima: Aurélien Barrau,
por progresso social e igualdade, pas- único” da luta contra o aquecimento Assim, o argumento ecológico pode- um meteorito midiático?], L’Express, Paris, 10
sando pelos mais moderados. Procla- global que muito beneficia o capitalis- ria se tornar uma ferramenta disci- out. 2018.
mar, por si só, que vamos ‘respeitar a mo verde. “Encontrar no ser humano plinar a serviço da classe dominante, 3   Stéphane Foucart, “Climat: la démocratie à
l’épreuve de l’environnement” [Clima: a demo-
natureza’ não significa nada.”6 pecados constitutivos”, resume o que o usaria para colocar a culpa nas cracia posta à prova pelo meio ambiente], Le
A limitação dos gases de efeito es- cientista político Pierre-Yves Gomez, pessoas. Isso também abre uma bre- Monde, 3 jan. 2019.
tufa, por exemplo, é uma questão po- “é poupar-se do trabalho (ou do dever) cha na democracia, no momento em 4   “ Pour en finir avec l’alarmisme climatique, inu-
tile et coûteux” [Para acabar com o alarmismo
lítica que implica setores tão diversos de criticar o consumo, a produção e as que esta é contestada por uma parte climático, inútil e caro], Valeurs Actuelles, 19
quanto a produção de energia (eletri- interações no mundo social concreto das elites, a qual acusa o povo de vo- jul. 2018.
cidade, aquecimento) e de combustí- no qual esse ser humano vive aqui e tar mal. Thierry Pech, diretor-geral 5   Disponível em: <https://laffairedusiecle.net>.
6   Claire Chartier, “‘La démocratie est au cœur
veis (carros, aviação e transporte agora”.10 Figura consensual do movi- do think tank Terra Nova, equidistan- du progrès écologique’” [A democracia está
marítimo), o desmatamento, a agri- mento ambientalista, Nicolas Hulot – te entre o Partido Socialista e Emma- no centro do progresso ecológico], L’Ex-
cultura e a pecuária intensiva. A defi- que critica os danos do “capitalismo nuel Macron, declara que “os popu- press, 18 ago. 2019.
7   Gaspard d’Allens, “Une lobbyiste de la pollu-
nição das medidas mais eficazes e a selvagem” – acredita, no entanto, que lismos em ação se baseiam em uma tion au cœur de la convention pour le climat”
ordem das prioridades não se im- os esforços individuais corresponde- absolutização do sufrágio. Bolsona- [Uma lobista da poluição no centro da con-
põem espontaneamente. Não basta riam a “20% do caminho para alcan- ro, Orban e Putin são o produto de venção pelo clima], Reporterre, 5 out. 2019.
Disponível em: <https://reporterre.net>.
apelar à coerção: é necessário dizer çar as metas climáticas”.11 Se conside- nada além do que eleições. Mas, fora 8   Europe 1, 4 out. 2019.
sobre o que – e sobre quem – tal coer- rarmos que é assim, por que as isso, eles não têm legitimidade, nem 9   Ler Jean-Baptiste Malet, “La fin du monde
ção recairá. Após décadas de loucura autoridades públicas não priorizam para a imprensa, nem para os órgãos n’aura pas lieu” [Não haverá fim do mundo],
Le Monde Diplomatique, ago. 2019.
decorrente dos transportes de baixo os 80% que lhes dizem respeito dire- intermediários, nem para a justiça”.13 10  Pierre-Yves Gomez, L’Esprit malin du capita-
custo, por exemplo, estamos apenas tamente? “O objetivo, ao mostrar o ca- Com seus especialistas benevolentes lisme [O espírito maligno do capitalismo],
começando a nos questionar sobre minho individual, é incentivar os ato- e suas verdades “objetivas”, a CCC Desclée de Brouwer, Paris, 2019.
11  Frédéric Mouchon, “Nicolas Hulot: ‘Écoutons
os danos do turismo de massa. res políticos a ir mais longe”, responde funciona como um pequeno labora- le cri d’alerte de nos enfants’” [Nicolas Hulot:
Além disso, a experiência mostra Hulot. Tradução: os cidadãos devem, tório dessa “democracia deliberati- “Ouçamos o grito de alerta de nossos filhos”],
que o veredicto dos “especialistas” por meio da disciplina e da contrição, va”, tão reconfortante para quem de- Le Parisien, 14 out. 2019.
12  Jean-Marie Harribey e Pierre Khalfa, “L’équili-
não está imune a vieses e tendências, dar um exemplo aos poderosos, que, tém o poder. bre avec la nature n’a jamais existé, on ne voit
como mostra, no campo econômico por sua vez, não sofrem praticamente Duas ideias em voga favorecem a donc pas comment il pourrait être rétabli” [O
e financeiro, o unanimismo liberal restrição nenhuma. Seria possível instrumentalização reacionária (an- equilíbrio em relação à natureza jamais existiu,
portanto não vemos como ele poderia ser res-
daqueles que discursam nas plata- uma maior ignorância das relações tidemocrática e associal) da questão taurado], Le Monde, 6 ago. 2019.
formas televisivas, nos gabinetes mi- sociais e econômicas? ecológica: de um lado, aquela segun- 13  France Culture, 5 nov. 2018.
18 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

CAPA

Colapso ou atualidade do único da força de trabalho e do talen-


to organizatório de milhares de pseu-
dopequenos proprietários, que na

empreendimento colonial?
verdade não estão mais que venden-
do sua força de trabalho às unidades
principais do sistema, mediadas por
uma falsa propriedade que consiste
numa operação de pôr fora dos cus-
tos internos de produção fabris a par-
A uberização do trabalho consolida a transformação do trabalhador em um autogerente cela correspondente aos serviços”.6
subordinado. Nada está garantido, nem mesmo a remuneração por dia de trabalho. Um Dessa forma, a periferia se apresenta
e se perpetua nos meios bem-sucedi-
trabalhador que se encontra disponível ao trabalho, mas só é utilizado e remunerado na dos e invisibilizados de transferir
exata medida do que produz, e nem mesmo sua carga de trabalho está garantida custos e riscos para os trabalhadores
e rebaixar o valor de sua força de tra-
POR LUDMILA COSTHEK ABÍLIO* balho, mantendo altas taxas de ex-
ploração. Quarenta anos depois po-
demos enxergar o mundo arriscado

B
erenice é motogirl, compondo a la queda no poder aquisitivo dos que lidade é extremamente bem-sucedi- em veloz crescimento das motocicle-
minoria de mulheres em uma consomem os relógios chineses, en- do em concretizar meios de rebaixa- tas da classe trabalhadora como ex-
ocupação tipicamente masculi- tre outros. mento do valor da força de trabalho.3 pressão dessa autogestão.
na. Já foi copeira e trabalhou em “O mesmo cara que me xinga no A formação dos centros urbanos e in- Atualmente, a autogestão se im-
uma clínica de tratamento para vicia- trânsito é aquele que reclama quando dustriais não trará consigo o desen- brica no autogerenciamento subordi-
dos em drogas. Tem 47 anos e há vinte a pizza chega fria”, resume a ópera do volvimento dos meios que garantem nado7 que se espraia pelas relações de
trabalha no ramo de entregas. Para proprietário de uma microempresa de a reprodução social da classe traba- trabalho de alto a baixo. O perverso
ela, a primeira década de 2000 foi de entregas motorizadas, que faliu. Ar- lhadora em formação. Custos da re- termo “empreendedorismo” hoje ex-
extensão do tempo de trabalho, inten- lindo, com 55 anos, é motoboy há 35. O produção da força de trabalho são pressa a eficaz transferência de riscos
sificação do trabalho e aumento de trabalho de entregas se materializa no transferidos para o próprio trabalha- e custos do trabalho e a eliminação
rendimentos. Em 2015, reformou sua caos organizado do espaço urbano; o dor. Transporte, habitação, distribui- de proteções, garantias e direitos,
casa e a de sua mãe, quitou as presta- motoboy torna-se o veículo da circula- ção dos bens de consumo contam que se combinam com uma adminis-
ções da moto e adquiriu outra, que ção de informação, de documentos e com a gestão não paga dos trabalha- tração permanente de si, sem que is-
utilizava apenas para passear aos fins da economia de tempo de outros tra- dores para garantir sua própria re- so signifique ausência de subordina-
de semana. Naquele ano, ela eviden- balhadores. A batalha tempo-espaço produção enquanto trabalhadores.4 A ção ou controle do trabalho. O
ciava a realidade do mundo do traba- reificada nas buzinas, chutes do retro- precariedade, na perspectiva do au- empreendedorismo passa a compor o
lho brasileiro que os dados não dão visor, 500 cavalos contra 125 cilindra- tor, é então politizada, e o espaço ur- léxico da gestão do desemprego, das
conta de mostrar. Durante o dia tra- das e xingamentos recupera sua banal bano que se apresenta colapsado de políticas públicas, dos discursos de
balhava para uma terceirizada de en- forma humana às vezes em uma fratu- nascença é desvelado como espaço mercado, das reformas e da celebra-
tregas de motofrete, com carteira assi- ra exposta ou na morte cotidiana que da materialização de interesses de ção em torno da eliminação de direi-
nada. À noite era empregada informal atrapalha o trânsito. classe. A informalidade, o trabalho tos do trabalho.
de uma pizzaria de seu bairro. Sua jor- No entanto, apesar de a loucura por conta própria de baixa qualifica- Se seguirmos com a tese da crítica
nada começava às 7 horas da manhã e do trânsito ser também a loucura de ção e rendimento, a viração5 são en- à razão dualista, assim como se
terminava após a meia-noite. seu trabalho, não são os motoboys a tão compreendidos não como exce- olharmos para as trajetórias de tra-
Maurício hoje não consegue pa- maioria das vítimas fatais nos aci- ção ou margem, mas plenamente balhadores em plena década da ges-
gar suas contas ou a pensão alimentí- dentes com moto na cidade de São integrados a um modelo específico tão do Partido dos Trabalhadores –
cia da filha. Com 46 anos, já foi meta- Paulo. Em 2009, o relatório da Com- de desenvolvimento, no qual a indus- que trouxe redução do desemprego,
lúrgico, repositor de mercado, panhia de Engenharia de Tráfego trialização está entrelaçada com os aumento do trabalho formal, aumen-
atendente da Claro, eletricista, além (CET) traçou o perfil socioeconômico serviços que crescem horizontal- to real do salário mínimo –, veremos
de várias outras ocupações; é moto- das vítimas. A morte por acidente de mente, “à base de concurso quase que termos como “precarização”
boy há dezoito anos. Há dez anos es- motocicleta tem classe, sexo e cor
tabeleceu-se como motoboy autôno- bem definidos: “Frentistas, garçons,
mo, ou seja, conseguiu eliminar a manobristas, motoristas, porteiros,
mediação das empresas terceiriza- seguranças e vigilantes, ajudantes
das, tendo sua própria cartela de gerais, mecânicos, eletricistas e pe-
clientes. Estes vêm falindo nos últi- dreiros”.2 É feita de trabalhadores que
mos anos e a alternativa possível é não são os profissionais das motoci-
tornar-se o que cinco anos atrás os cletas, mas que decidiram arcar com
motoboys consideravam um bico em um transporte arriscado como meio
sua profissão de entregadores: o deli- de economizar o tempo de desloca-
very de comida, agora por aplicativo. mento para ir e voltar do trabalho.
Além de motoboy, Maurício também Trabalhadores que trocam a violên-
é sacoleiro; durante vários anos com- cia das horas imobilizados nos ôni-
binou as entregas com a compra e bus pelos riscos do deslocamento em
venda de mercadorias – tênis, bolsas, cima da moto.
relógios de marcas falsificadas. Nos anos 1970, o agora tão saudo-
Atualmente, a retroalimentação que so mestre Francisco de Oliveira en-
estabelecia entre uma atividade e ou- frentava os mitos da marginalidade,
us

tra já não se sustenta; a clientela de do “inchaço” do setor terciário urba-


u di

ambas as atividades está se esvaindo, no e do “atraso”, evidenciando a es-


Cl a

seja pela concorrência estabelecida pecificidade do desenvolvimento ca-


©

pelas empresas-aplicativo,1 seja pela pitalista periférico, que, em seu


falência das empresas clientes ou pe- aparente caos e precariedade, na rea-
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19

guardam uma dificuldade explicati- profunda que fica difícil resumi-la ou bem-sucedida do gerenciamento do to social diante da banalidade da ex-
va – que, entretanto, não os invalida reduzi-la a alguns objetivos. Trata-se trabalho para o próprio trabalhador, ploração do trabalho. Com jornadas
– diante da realidade do mercado de da instalação legal de mecanismos que segue subordinado, o que geral- de em média 12 horas por dia, rece-
trabalho, desde sempre costurado que derrubem qualquer obstáculo à mente também é uma transferência bendo em torno de R$ 900 por mês,
pela informalidade, pela concentra- exploração do trabalho. Também é de custos e riscos. Trata-se da cres- esses trabalhadores pedalam mais
ção de renda, por uma espécie de difícil explicar como tamanho proje- cente eliminação das determinações que 50 km por dia em meio ao tráfego
acumulação primitiva permanente to foi aprovado sem maiores resistên- da jornada de trabalho, do que é e do de São Paulo.8 Reduzidos à força físi-
sobre o corpo dos trabalhadores. As- cias. Requintes de crueldade per- que não é tempo de trabalho, do que ca barata, perambulam pelas ruas e
sim como o termo “flexibilização”, meiam o que se tornou essa grande é a remuneração pelo trabalho. praças da cidade à espera do próximo
em um mundo do trabalho tecido pe- festança de reformas e MPs, as quais chamado. Arcam com os poros do
lo que Francisco de Oliveira define propagandeiam a modernização, in- trabalho, recebem estritamente por
como “talento organizatório” da clas- visibilizando a realidade brutal da Desde o impeachment aquilo que produzem, embora este-
se trabalhadora e que se traduz em maioria da população brasileira. de Dilma Rousseff está jam em média 12 horas disponíveis
um trânsito permanente entre dife- Um dos elementos centrais da re- ao trabalho, sete dias por semana. A
rentes ocupações, engajamento em forma trabalhista – também da re-
em curso uma transfor- grande novidade da uberização resi-
meios de geração de renda que mal centemente aprovada MP da liberda- mação profunda, ainda de na consolidação dessa redução do
são reconhecidos como trabalho, de econômica e de futuras tentativas difícil de definir, mas, ao trabalhador a um trabalhador just-
combinação de trabalho formal com de ataques que já se desenham na in- mesmo tempo, evidente -in-time, mas também nesse cerca-
informal, com empreendimentos fa- saciável festa – é a transformação do mento produtivo sobre um modo de
miliares. A despeito das importantes trabalhador formalizado em traba- vida tipicamente periférico. Autoges-
conquistas da última década, esses lhador just-in-time. Essa poderia ser A uberização do trabalho consoli- tão e autogerenciamento são hoje
elementos se mantiveram estrutural- outra definição para a uberização do da a transformação do trabalhador transformados em dados e apropria-
mente, mas isso não nos impede de trabalho. Estamos assistindo global- em um autogerente subordinado. Na- dos privadamente no controle e na
reconhecer que desde o impeach- mente a uma tendência de informali- da está garantido, nem mesmo a re- subordinação do trabalho pelas
ment de Dilma Rousseff está em cur- zação das relações de trabalho, como muneração por dia de trabalho. Um empresas-aplicativo.
so uma transformação profunda, a ponta do iceberg de décadas da trabalhador que se encontra disponí- Logo após se eleger, o atual presi-
ainda difícil de definir, mas, ao mes- consolidação da integração global de vel para o trabalho, mas só é utiliza- dente da República declarou que o
mo tempo, evidente. cadeias produtivas, do ataque aos di- do e remunerado na exata medida do modelo para o mercado de trabalho é
Implementada em novembro de reitos do trabalho e de novas formas que produz, e nem mesmo sua carga o da informalidade. A declaração
2017, a Lei n. 13.467, mais conhecida de organização e controle do traba- de trabalho está garantida. Motoris- não é banal, e sim expressa com cla-
como Reforma Trabalhista, promo- lho. A possibilidade de dispersar o tas da Uber, motofretistas da Loggi, reza o futuro imediato que se dese-
veu uma brutal mudança na legisla- trabalho sem perder o controle sobre ciclistas do Ifood passam longas jor- nha para o mundo do trabalho brasi-
ção do trabalho. Há um deslocamen- ele tornou-se reconhecível nos in- nadas disponíveis para o trabalho. leiro. Uma população invisibilizada
to em como o Estado se apresenta na contáveis nós das cadeias produtivas Estar logado o dia todo – como se diz e tornada refém dos supostos impe-
relação capital e trabalho: ele passa a de corporações que externalizam sua para os trabalhadores vinculados às rativos da crise econômica, e um Es-
se assumir legalmente como um pro- produção, sua distribuição, sua co- plataformas digitais –, todos os dias tado que assume legalmente o papel
motor da informalização do trabalho mercialização, mantendo o controle da semana, não significa garantia de de eliminação dos entraves à explo-
formal, como um trator na demolição sobre o trabalho e a centralização remuneração. A multidão de motoris- ração. Talvez possamos lembrar com
de garantias aos trabalhadores, com dos lucros. A dispersão controlada tas, manicures, professores on-line, o mestre Chico a atenção aos proje-
suas armas diretamente apontadas também se expressa na figura dos executores de tarefas da Amazon Me- tos e interesses de classe onde apare-
para as forças do trabalho, minando trabalhadores home office, na elimi- chanical Turk é controlada por meio cem o caos e o colapso.
o poder das negociações coletivas, nação do relógio de ponto, nas mesas de um gerenciamento algorítmico,
apresentando a relação contratual de de sinuca e sofás coloridos das em- ou seja, por uma enorme possibilida- *Ludmila Costhek Abílio é pesquisadora
trabalho como uma livre negociação presas “descoladas”. Trabalhadores de de extração, processamento e ge- do Centro de Estudos Sindicais e de Eco-
entre partes que supostamente esta- que trabalham por metas, movidos a renciamento de dados que serão uti- nomia do Trabalho (Cesit/Unicamp) e inte-
riam em igualdade. A reforma é si- bonificações e participações nos lu- lizados na distribuição do trabalho, grante do grupo de estudos “Impactos das
multaneamente refinada e brutal; cros, gerentes de seu próprio tempo. nas formas de remuneração, nos me- novas morfologias do trabalho sobre a vida
sua gama de alterações é tão ampla e Trata-se de uma transferência muito canismos informais de promoção do dos trabalhadores”, coordenado pelo Prof.
engajamento e produtividade do Dr. Rene Mendes, do Instituto de Estudos
trabalhador. Avançados da USP.
A reforma trabalhista promoveu a
uberização por dentro do trabalho 1   T ermo cunhado em Ludmila C. Abílio, “Uberi-
zação: subsunção real da viração”, Passa Pa-
formal. O trabalho intermitente re- lavra , fev. 2017. Também publicado no Blog
duz o trabalhador à condição de just- da Boitempo.
-in-time: disponível para o trabalho, 2   Heloísa Martins e Eduardo Biavati, Mortos e
feridos sobre duas rodas: Estudo sobre a aci-
é recrutado e utilizado na exata me- dentalidade e o motociclista em São Paulo,
dida da demanda do empregador. Jo- CET, São Paulo, 2009.
ga-se para o trabalhador a adminis- 3   Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualis-
ta/O ornitorrinco, Boitempo, São Paulo, 2003.
tração de si como estratégia de 4   Para uma perspectiva dessa discussão a par-
sobrevivência. A reforma consolida a tir dos transportes, ver Leonardo Cordeiro,
equalização do tempo de trabalho ao Em trânsito, Texto de qualificação de mestra-
do, FFLCH-USP, 2019, mimeo. Para uma
tempo de produção: caminhar do perspectiva a partir da habitação e dos movi-
portão da fábrica até o local de traba- mentos de moradia, ver Isadora Guerreiro,
lho e vestir o uniforme já não são Habitação a contrapelo, Tese de doutorado,
FAU-USP, 2018.
considerados parte do tempo de tra- 5   Vera Telles, Mutações do trabalho e experiên-
balho. O refinamento dos detalhes cia urbana, Tempo social, 18(1), p.173-195,
evidencia uma vitória mais ampla, 2006.
6   Francisco de Oliveira, op. cit., p.68.
que é a da pura utilização do traba- 7   Ludmila C. Abílio, “Uberização: do empreen-
lhador como um fator de produção. dedorismo para o autogerenciamento subor-
A figura dos ciclistas jovens, ne- dinado”, Revista Psicoperspectivas, v.18, n.3,
2019.
gros e periféricos pareceu romper 8   Aliança Bike, “Pesquisa de perfil de entrega-
momentaneamente o anestesiamen- dores ciclistas de aplicativo”, São Paulo, 2019.
20 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

CAPA

Um ano de ultraliberalismo
de coturnos e pés de barro
Graças a esse acabrunhado keynesianismo de última instância e à irresponsável prática de vender ativos públicos para
custear despesas correntes, o ultraliberal Paulo Guedes conseguiu enfim evitar o pior e chegar vivo a seu primeiro ano
no comando da economia do país
POR MARCELO MANZANO*

O
governo do capitão Bolsonaro
completa um ano. É verdade
que as pessoas ainda acordam
de manhã, algumas continuam
tomando café, outras vão à escola, os
mais afortunados trabalham. Mas
será que sobrevivemos? Isso que nos
acostumamos a conhecer como Bra-
sil ainda pode ser chamado de nação?
Será que os interesses que atraves-
sam este imenso território seguem
dando liga?
Provavelmente 2019 ficará marca-

© Claudius
do na história como o ano da mais
agressiva e radical destruição das
instituições públicas brasileiras. O
que a duríssimas penas levamos oi-
tenta anos para botar de pé, Bolsona-
ro e sua trupe de inclassificáveis fize-
ram o que puderam para levar ao
chão. Se na clássica reflexão da soció-
loga Sonia Draibe (Rumos e metamor-
foses, 1985) falava-se da constituição
da “ossatura do Leviatã” brasileiro
por Getúlio Vargas, parece que com o
ultraliberalismo rentista executado
por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes es-
tamos em processo de acelerada e in-
tencional osteoporose. Não se requer da toca, a economia voltaria a bom- significa que não tinham mais condi- mais adiante, este fosse abiscoitado
muito para perceber que a razão pri- bar e o país, a sorrir. Só que não. ções econômicas ou anímicas para pelo governo central.
meira do governo atual é o ataque ao Já na triste Quarta-Feira de Cinzas continuar procurando uma ocupa- Mas Paulo Guedes piscou. Sem
Estado e, mais do que isso, sua defini- de 2019 as taxas projetadas pelos sá- ção remunerada. alarde, sem as bravatas costumeiras,
tiva desidratação e estrutural bios do mercado começavam a mur- Mas Paulo Guedes insistiu. Sem na solidão dos corredores escuros de
impotência. char. Com reforma da Previdência e pestanejar, conduziu um contingen- seu superministério – sim, em ato de
O percurso dessa saga regressiva, tudo, de queda em queda, chegou-se ciamento do orçamento federal que populismo rastaquera, cortou as lu-
entretanto, tem se mostrado mais pe- às quadrilhas juninas com a mediana testou os limites das políticas públi- zes dos ministérios no período da
dregoso do que sugeriam a propa- das estimativas do mercado triscan- cas de saúde, educação, ciência e tec- noite –, cedeu à realidade e sucum-
ganda mercadista e as estratégias, do anêmicos 0,8%, o que significava nologia, cultura, assistência social, biu a um keynesianismo torto e mal-
por conseguinte, um tanto errantes. que, a despeito do ciclo de reformas meio ambiente etc. Motivado sabe-se -intencionado: para dar fôlego políti-
O ano começou com os analistas estruturais e após quatro anos de cri- lá por que tipo de desejo estranho, co ao projeto de radical desmonte do
do mercado para lá de entusiasma- se econômica, a economia voltava a deixou 700 mil famílias na fila do Bol- setor estatal, abusou do Estado e de-
dos, projetando um crescimento do perder fôlego. sa Família – apesar de todas estarem cidiu dinamizar a demanda entre-
PIB que superaria a taxa de 2,5% no No mercado de trabalho, o de- abaixo da linha da pobreza, aptas e gando os parcos recursos do FGTS
ano. Nas atas do Comitê de Política semprego zunia em patamar histori- cadastradas. Deu de ombros aos pro- para as famílias encalacradas do an-
Monetária (Copom) do Banco Cen- camente elevado. Quase 13 milhões gramas de pós-graduação, seguran- dar de baixo.
tral, nos relatórios das casas bancá- de mulheres e homens buscando em do os recursos das bolsas até os 45 do Como quando se despeja água em
rias, nos jograis da mídia corporati- vão uma maneira de ganhar seu sus- segundo tempo. No BNDES, depois chapa quente, a partir de setembro
va, a senha e a sanha eram uma só: tento. Entre os jovens, um em cada de buscar sem sucesso revelar a fan- deu-se início à liberação gradual dos
com a reforma da Previdência e a li- quatro começando a vida adulta co- tasmagórica caixa-preta, travou a saldos das contas ativas do FGTS.
mada de R$ 1 trilhão do Orçamento mo desocupado. Outros cerca de 5 concessão de crédito ao setor produ- Sufocados por dívidas, pelo desem-
da Seguridade Social, a confiança se- milhões de pessoas submergiam na tivo, forçando o empoçamento de ca- prego, pela estagnação dos salários,
ria restaurada, o animal spirit sairia penosa condição do desalento, o que pital no caixa do banco para que, a grana extra no bolso dos trabalha-
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21

dores transitou pelos meandros res- fraca como as registradas nos últi- a impulsionar o crescimento, benefi- lançando como despesas realizadas
secados da economia, trazendo al- mos dois anos. ciado por uma safra 2019/2020 com os valores pagos a aposentados dos
gum alento ao comércio e às O que esperar então para o ano potencial de ser a maior da história. setores de saúde e educação. Todas
atividades dos serviços. Em outra que vem? Entre os fatores que jogarão con- somadas, essas medidas represen-
frente, colhendo os bons resultados O ultraliberalismo de Guedes de- tra o desempenho da economia no tam o rompimento dos pisos de gas-
do outrora renegado pré-sal, o gover- verá continuar pulsando, mantido próximo ano, destaca-se a deteriora- tos que minimamente garantiam a
no privatista de Bolsonaro e Guedes por aparelhos e soluções ad hoc. Com ção de nossa balança comercial. Se sustentação do Estado social brasilei-
surfou na herança dos governos do doses extras de FGTS a vitaminarem por um lado a aceleração do cresci- ro e que, a um só tempo, evitavam o
PT e viu a indústria extrativa puxar o o consumo durante o primeiro se- mento doméstico deverá ampliar o agravamento das condições sociais
crescimento da economia no tercei- mestre de 2020, espera-se uma leve volume de produtos importados, por nos momentos de crise e serviam co-
ro trimestre. De quebra, por conta de aceleração do crescimento do PIB, outro nossas exportações, que já têm mo estabilizadores automáticos da
R$ 100,5 bilhões conseguidos pela que poderá alcançar uma taxa entre sofrido com a desaceleração do co- própria dinâmica econômica.
venda de diversos ativos das estatais 2% e 2,5%. Isso, contudo, fará pouca mércio internacional, deverão ser Noves fora, o ano de 2020 deverá
da União e de outros R$ 69 bilhões diferença para a grande maioria da ainda mais prejudicadas em função ter um crescimento medíocre e de fô-
embolsados com os bônus de assina- população brasileira. Lastimavel- do acordo firmado entre Estados lego curto, mas, por contraste com os
tura auferidos no leilão da cessão mente, as bases desse provável voo de Unidos e China, que poderá reduzir cinco anos anteriores, suficiente pa-
onerosa do pré-sal, o governo refor- galinha são demasiadamente frágeis, nossas vendas ao país asiático em até ra tuítes exultantes do presidente
çou o caixa com receitas extraordi- com reduzido efeito dinâmico sobre o US$ 10 bilhões por ano. Bolsonaro e festejos da banda rentis-
nárias, evitando o colapso completo conjunto das atividades econômicas, Além disso, no que diz respeito à ta, que tudo fará para esconder o so-
da máquina pública. além de limitadas no tempo e con- dinâmica dos gastos públicos e seus corro keynesiano e louvar os supos-
Além disso, em outra demonstra- centradas em alguns poucos setores. efeitos sobre a renda agregada, vale tos efeitos positivos do ciclo de
ção de rendição à heterodoxia econô- lembrar que, no apagar das luzes de reformas liberais e antipopulares
mica, Paulo Guedes cansou de espe- 2019, o governo entregou ao Congres- que engendraram.
rar o apoio de seus amigos da Como quando se despeja so Nacional três Propostas de Emen- Para além dessa disputa de narra-
Febraban e preferiu copiar a bem-su- água em chapa quente, a da Constitucional (PECs) que, se tiva, porém, a vida da enorme maio-
cedida política de redução das taxas aprovadas, representarão enorme ria dos brasileiros deverá continuar
de juros nas linhas de crédito dos
partir de setembro deu- constrangimento à política fiscal e à tragicamente igual. O mercado de
bancos públicos praticada por Guido -se início à liberação manutenção dos programas sociais trabalho poderá registrar um peque-
Mantega durante os governos de Lula gradual dos saldos das de caráter universal instituídos pela no aumento de algumas ocupações
e Dilma. Com a Caixa Econômica Fe- contas ativas do FGTS Constituição Federal de 1988. A título precárias, com baixas remunerações,
deral e o Banco do Brasil cortando de exemplo, entre as diversas barba- alta rotatividade e, na maioria dos ca-
pela metade as taxas de juros para ridades encaminhadas na chamada sos, informais. Com isso, o consumo
determinadas linhas à pessoa física, Se pelo lado da demanda o princi- “PEC da emergência”, em nome da continuará fraco e dependente de no-
os outros três bancões privados tive- pal vetor de crescimento deve vir de “responsabilidade fiscal intergera- vas e improváveis medidas de trans-
ram de se mexer e, aos poucos, o cré- um consumo anabolizado e de algu- cional”, serão estabelecidos gatilhos ferência de fundos públicos; e a infla-
dito na ponta voltou a crescer. ma recuperação do investimento no que permitirão aos três níveis de go- ção – a despeito do soluço da carne e
Ironicamente, graças a esse aca- setor de petróleo e gás, pelo lado da verno reduzir a jornada e os salários dos efeitos da desvalorização cam-
brunhado keynesianismo de última oferta um dos propulsores da econo- do funcionalismo em até 25% sempre bial sobre alguns preços – deverá per-
instância e à irresponsável prática de mia deverá ser a construção civil. De- que as projeções fiscais indicarem manecer sob controle, em grande
vender ativos públicos para custear pois de uma profunda crise que fez o risco de déficit. Isto é, ante uma pers- medida como decorrência da prolon-
despesas correntes, o ultraliberal setor se retrair 34% ao longo de vinte pectiva de crise, prefeitos, governa- gada anemia que caracteriza a eco-
Paulo Guedes conseguiu enfim evitar trimestres consecutivos, desde mea- dores e governo federal poderão nomia brasileira nestes tempos de li-
o pior e chegar vivo a seu primeiro dos de 2019 se nota uma discreta re- mandar professores, médicos e en- beralismo de mão pesada.
ano no comando da economia do tomada das atividades no segmento fermeiros para casa, a fim de que as
país. Diferentemente do que ocorria de imóveis para alta renda, provavel- contas públicas fiquem no azul, aju-
tempos atrás, entretanto, agora a cla- mente refletindo o deslocamento de dando a deprimir ainda mais a renda *Marcelo Manzano é economista, pes-
que rentista bate palmas sem cons- investimentos em títulos de renda fi- e o consumo das famílias e, no limite, quisador do Centro de Estudos Sindicais e
trangimento para uma taxa de cres- xa (que se beneficiavam da Selic alta) aprofundando a crise econômica e a de Economia do Trabalho da Unicamp e
cimento do PIB que antes era para fundos imobiliários. Além disso, própria arrecadação fiscal. Em outra coordenador do programa Maestria Esta-
chamada de “pibinho” e que deverá ainda pelo lado da oferta, o setor da frente draconiana, propõe-se flexibi- do, Gobierno y Políticas Públicas da Flac-
ficar pouco acima de 1%, isto é, tão agropecuária também deverá ajudar lizar os “mínimos constitucionais”, so/Brasil.
22 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

PROJETO DE INDÚSTRIA NACIONAL TORPEDEADO PELO GOLPE

Na Bolívia, o leilão
mas também outros minerais pre-
sentes na salmoura, como potássio,
boro etc. – sob a égide de uma em-
presa nacional: a Yacimientos de Li-

da cadeia do lítio
tio Bolivianos (YLB). “Nossa política
consiste em garantir que as maté-
rias-primas sejam exploradas por
empresas estatais”, explicou-nos no
verão de 2019 Luis Alberto Echazú,
Em outubro de 2019, um golpe derrubou o presidente Evo Morales. Enquanto vice-ministro de Altas Tecnologias
o governo em exercício promete eleições para março, um dos projetos mais Energéticas, responsável pelo proje-
to desde seus primórdios. A aborda-
ambiciosos do ex-chefe de Estado parece já enterrado: permitir que a Bolívia gem envolvia desenvolver uma tec-
não se satisfaça em meramente exportar o lítio que tem em abundância, mas nologia nacional para não depender
que possa ela mesma garantir sua industrialização de multinacionais e patentes estran-
geiras. Para conseguir isso, o Estado
POR MAËLLE MARIETTE*, ENVIADA ESPECIAL gastou quase US$ 1 bilhão, um dos
investimentos mais importantes da
história do país.

D
e um lado, o país mais pobre da categoria de “Arábia Saudita do lítio”, radores estrangeiros, nenhuma das O maior desafio, no entanto, não
América Latina. De outro, a como gosta de repetir o vice-presi- riquezas do subsolo boliviano benefi- era financeiro. “No plano tecnológi-
tecnologia de ponta que quase dente Álvaro García Linera – agora ciou as populações locais. “Não é de co, praticamente foi preciso começar
nenhuma nação do Sul domi- exilado no México. forma alguma o caso de nos deixar- do zero”, disse-nos Echazú. “Apenas
na. A priori, nada permitiria imagi- O planeta tem poucos salares, lo- mos espoliar novamente”, Morales ti- duas universidades abrigavam labo-
nar que um dia a Bolívia pretenderia cais privilegiados de exploração de nha dito no início de seu primeiro ratórios de química que trabalhavam
se tornar um dos principais atores- lítio, enquanto a demanda explode. O mandato. Desde sua chegada ao po- um pouco com recursos evaporíti-
-chave do mercado de lítio, metal al- menor smartphone contém 2 a 3 gra- der, em 2006, ele defendeu a ideia de cos”, completa Oscar Mamani, dire-
calino essencial para a produção de mas desse material. Para um carro uma extração “100% nacional”. Sua tor de operações de Llipi, que estava
baterias. A descoberta da maior jazi- elétrico, deve-se contar 20 quilos. Es- ambição: exportar o lítio não no esta- morando no exterior no momento do
da mundial desse “ouro branco” no tima-se que 260 milhões de carros do bruto, mas transformado em bate- lançamento do projeto e retornou ao
Salar de Uyuni, o imenso deserto sal- chamados “limpos” circularão em rias produzidas localmente, com país na ocasião, como vários outros
gado do oeste do país, poderia ter le- 2040, contra 4 milhões hoje. A de- maior valor agregado. Se tivesse sido engenheiros bolivianos. “Examina-
vado a um fenômeno que o país co- manda global por lítio, de cerca de bem-sucedida, a Bolívia se tornaria mos minuciosamente a literatura
nhece bem: a exploração por outros 300 mil toneladas em 2018, deverá um dos raros países do Sul a se encar- científica e tateamos, sem ajuda ex-
de uma riqueza enterrada em seu so- atingir 1 milhão de toneladas ao lon- regar de toda uma cadeia industrial: terna. Em suma, todos nós nos torna-
lo. Mas o presidente Evo Morales, go dos próximos dez anos. Os preços exploração e extração da matéria- mos pesquisadores.”
eleito em 2006 e derrubado por um já quadruplicaram em três anos, ele- -prima (tratamento das salmouras), Em Llipi, o lítio é transformado
golpe de Estado em outubro de 2019,1 vando-se a US$ 20 mil por tonelada preparação de compostos de base em carbonato de lítio com “qualida-
imaginara outro cenário: uma explo- em 2018 (antes de um ligeiro recuo (carbonato de lítio, mas também clo- de de bateria”. Em La Palca, a algu-
ração do lítio que não beneficiaria as em 2019). Com isso, a pequena cidade reto de potássio, subproduto do pro- mas dezenas de quilômetros dali, es-
multinacionais do Norte, mas os de Llipi atrai os olhares de todo o cesso de extração do lítio usado como se carbonato é usado na fabricação
bolivianos... mundo. Haveria ali 21 milhões de to- fertilizante e amplamente destinado de materiais catódicos e depois em
O fim do dia está chegando. Um neladas2 de lítio sob os 10 mil quilô- ao mercado brasileiro) e, depois, fa- baterias íon-lítio. Essa última etapa
vento glacial varre o Salar de Uyuni. metros quadrados do Salar de Uyuni. bricação de bens intermediários (cá- – a produção de bens de consumo –
Estamos em frente ao complexo in- Uma promessa de abundância. Mas todos de lítio e de eletrólitos), bem se mostra a mais difícil. “Temos de
dustrial de produção de lítio e de clo- para benefício de quem? como bens de consumo final (bate- medir a amplitude do desafio”, co-
reto de potássio de Llipi, no verão de Desde a colonização espanhola, rias de íon-lítio). menta Marcelo Gonzales, diretor da
2019. Aqui se decide o futuro do país: quando milhões de índios morreram Assim, em 2008, o governo lançou fábrica-piloto de baterias. “Não ape-
comandada pelo Estado, a unidade nas minas de prata, até o século XX, um plano nacional de industrializa- nas ela é a única fábrica de baterias
pioneira de exploração e industriali- quando as minas de ouro, tungstênio ção para os chamados recursos “eva- da América Latina, como também ti-
zação do lítio deveria elevar o país à e estanho fizeram a fortuna de explo- poríticos” – o lítio em particular, vemos de treinar toda a equipe!”
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23

Além de adquirir os equipamentos

© Dan Lundberg
necessários – fabricados no Japão,
Europa ou Estados Unidos –, foi ne-
cessário de fato desenvolver as habi-
lidades para usá-los. Como o diretor
do centro de pesquisa, Marcelo Sai-
que, que voltou do Brasil, os traba-
lhadores tinham de ir ao exterior pa-
ra receber treinamento que não
podia ser encontrado na Bolívia – em
particular, graças a um programa de
bolsas do governo que permite que
os pesquisadores aprimorem suas
habilidades em setores estratégicos,
entre eles o do lítio.
A Bolívia, porém, não é uma ilha.
Paradoxalmente, seu projeto de in-
dependência teve de ser acompanha-
do de um esforço para estabelecer
vínculos com empresas transnacio-
nais que bloqueiam o acesso a certas
tecnologias e a certos mercados. Tra-
tava-se, portanto, de identificar par-
ceiros que não se comportariam co-
mo mandantes – o que não é a atitude
preferida das grandes empresas.
Nessa perspectiva, Echazú estabele-
ceu as cinco condições que os par- Maior jazida mundial de lítio fica no Salar de Uyuni, o deserto salgado do oeste do país
ceiros da YLB deveriam cumprir:
aceitar a participação majoritária do mais: concessões privadas, acordos HAVERÁ MUITA PRESSÃO particularmente ativo durante o gol-
Estado boliviano (51%); garantir a in- tributários, normas ambientais me- Quando o encontramos, alguns me- pe de outubro de 2019 contra Mo-
dustrialização do lítio, levando a nos exigentes. Muitas multinacionais ses depois, seu entusiasmo havia de- rales. Segundo ele, é inútil imaginar a
uma cadeia de produtos com alto va- se recusaram a sair do único quadro saparecido. “Estamos lutando com exploração do lítio na Bolívia: “So-
lor agregado; fornecer financiamen- econômico que elas toleram e que, os alemães porque eles desejam re- mente os Estados Unidos têm a tec-
to; assegurar o acesso a um mercado como afirma Borja Segovia, diretor discutir o contrato. Não querem nologia exigida”.4
externo; e garantir a transferência de do complexo La Palca, se resume na mais baterias aqui porque não é ren- Morales atribuiu grande impor-
tecnologia e know-how, em particu- frase: “Exploro, pago impostos irrisó- tável, eles afirmam.” Fabricar bate- tância ao seu projeto de exploração e
lar por meio do treinamento de fun- rios, levo embora a matéria-prima e, rias na Bolívia implica de fato im- industrialização do lítio porque o via
cionários bolivianos. com ela, o valor agregado”. portar todos os insumos necessários. como uma ferramenta de conquista e
Em agosto de 2019, o governo boli- Conseguir fabricá-los localmente le- defesa da soberania nacional. “Sabe-
viano firmou parceria com o consór- varia tempo, dada a debilidade da mos que haverá muitas pressões so-
Se tivesse sido bem- cio chinês Xinjiang TBEA Group-Bao- infraestrutura a partir da qual é pre- bre a Bolívia”, explicou-nos Echazú
sucedida, a Bolívia se cheng para explorar os salares de ciso fazer emergir as linhas de pro- ainda no verão passado. “É sempre
Coipasa e de Pastos Grandes. O acor- dução. Mas uma segunda dificulda- assim: o imperialismo se propõe a
tornaria um dos raros do também incluía a construção de de atinge a competitividade da encontrar recursos e, quando neces-
países do Sul a se uma fábrica de baterias de íon-lítio produção boliviana: o custo do sário, não hesita em atacar ou invadir
encarregar de toda na China, com a participação da YLB. transporte, em um país desprovido este ou aquele país para colocar suas
uma cadeia industrial “O mercado do futuro é a China!”, diz de acesso ao mar. Daí a luta de Mo- mãos nele. Sabemos que isso pode
entusiasmado Vargas Villazón. “Ela rales junto a várias jurisdições inter- acontecer conosco. Obviamente, se a
anunciou que em 2025 todos os car- nacionais para obter um acesso so- direita voltasse ao poder, as coisas se-
Se empresas japonesas, chinesas, ros do país seriam elétricos.” Com berano ao Oceano Pacífico. 3 riam mais fáceis para as multinacio-
sul-coreanas e francesas manifesta- 60% do mercado de baterias, ela já é o A imprensa há muito convida a nais. Na Bolívia, ela sempre achou
ram interesse, as coisas por vezes se maior consumidor de carbonato de Bolívia a abandonar suas ambições, que era melhor privatizar.” Há pou-
mostraram complicadas. Como no lítio no mundo. condenadas ao fracasso, porque o cas dúvidas de que esse será o cami-
caso da empresa Bolloré. “Vincent As negociações foram conduzidas país não teria as capacidades neces- nho escolhido pelo governo tampão
Bolloré veio em 2008”, conta-nos Os- com a Índia e a Rússia, mas a espe- sárias e, o mais importante, não en- de Jeanine Áñez, bem como pelo go-
car Vargas Villazón, economista, na rança repousou por longo tempo na tenderia o mundo dos negócios. Oni- verno que sairá da votação de janeiro,
época responsável por receber a dele- assinatura, no final de 2018 – após presente na mídia sobre o assunto, organizada pelos golpistas.
gação do chefe francês. “Ele conhe- dez longos anos de negociações –, de um certo Juan Carlos Zuleta, membro
ceu Evo Morales, convidou-o a Paris e um acordo com a alemã ACI Systems. da Comissão Nacional do Lítio chile- *Maëlle Mariette é jornalista.
até o levou para passear nas margens Criando a primeira joint venture do na, se apresentou quando o conhece-
1   Ler Renaud Lambert, “En Bolivie, un coup
do Sena em um de seus carros elétri- país no setor, a YLB-Acisa, a parceria mos como “pesquisador indepen- d’État trop facile” [Na Bolívia, um golpe de Es-
cos. Seu projeto foi cuidadosamente assim concluída abria o mercado eu- dente”, possuidor de um “doutorado tado fácil demais], Le Monde Diplomatique,
estudado, mas seu lado ‘Françáfrica’, ropeu ao lítio da Bolívia e atendia a em Economia obtido nos Estados dez. 2019.
2   De acordo com o estudo “Modelage numéri-
muito condescendente, não agra- uma necessidade estratégica da in- Unidos”. Ele é principalmente analis- que hydrologique” [Modelagem digital hidro-
dou.” Echazú se diverte: “A empresa dústria automobilística alemã (a ta de ações e consultor de multina- lógica], da empresa norte-americana SRK,
Bolloré não entendeu nossa filosofia. maior da Europa), que não produz cionais ligadas à exploração do pre- em fevereiro de 2019.
3   Ler Cédric Gouverneur, “La Bolivie les yeux
A única coisa que lhe interessava baterias. O objetivo declarado: “En- cioso metal alcalino, especialmente vers les flots” [A Bolívia de olho nas ondas],
eram nossas matérias-primas”. O viar para a Alemanha as primeiras no Chile, segundo produtor do mun- Le Monde Diplomatique, set. 2015.
empresário francês finalmente se baterias de carros elétricos no final do. Também é consultor do comitê cí- 4   “Zuleta: Bolivia no sabe explotar el litio ni con-
siguió patentes” [Zuleta: a Bolívia não sabe
voltou para a Argentina, onde as con- de 2023 ou no início de 2024”, afirma- vico de Potosí (a região onde se loca- explorar o lítio nem conseguiu patentes], Pagi-
dições propostas lhe convinham va Echazú no início de 2019. lizam Llipi e La Palca), que foi na Siete, La Paz, 4 nov. 2019.
24 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

OS DESAFIOS DE LÓPEZ OBRADOR

Quem, de fato, trabalha na economia informal – e


15% no outro lado do Rio Bravo, nos
Estados Unidos –, as ações de López

manda no México?
Obrador são amplamente aplaudidas.
Ainda mais porque ele se preocupa
em manter um vínculo direto com o
povo: todas as manhãs, às 7 horas, ele
participa de uma coletiva de impren-
sa, que lhe permite não deixar a ini-
O presidente mexicano assumiu o poder há um ano, após uma vitória eleitoral ciativa para a mídia privada, hostil,
esmagadora. Se desde então o México fez seu retorno ao cenário mundial em termos enquanto joga o jogo diário de per-
guntas e respostas com jornalistas.
de política externa, a fragilidade do Estado, o ativismo dos mercados financeiros e um Comprometido com a forma física, o
vizinho norte-americano bastante espaçoso ameaçam as ambições da equipe de governo exercício foi benéfico para ele durante
sua gestão como prefeito da Cidade do
POR LUIS ALBERTO REYGADA* México, entre 2000 e 2005. No mo-
mento, essas práticas matinais pare-
cem reforçar a imagem de um líder in-
cansável, acessível e transparente.

Q
uando Andrés Manuel López escreveu ele em 27 de novembro de dieta dos altos funcionários públicos Sua popularidade está acima de 70%.1
Obrador – conhecido como 2018. Bolsonaro de fato tem o mérito, (que, no México, têm um estilo de vi- Ao apresentar seu balanço dos
AMLO – assumiu o cargo em 1º segundo ele, de ter indicado um eco- da particularmente confortável) e a primeiros cem dias, AMLO afirma
de dezembro de 2018, o sema- nomista ortodoxo para o cargo de mi- redução de 30% na remuneração do que já cumpriu 62 dos cem compro-
nário britânico The Economist o apre- nistro da Economia. presidente – que agora viaja somente missos assumidos em seu discurso
sentou como “o presidente mexicano Eleito por uma forte onda de oti- de classe econômica em voos comer- inaugural. Certas reformas constitu-
mais poderoso em décadas”. Após mismo popular, AMLO promete a ciais. Já o salário mínimo teve um au- cionais ainda estão sendo considera-
duas tentativas fracassadas, em 2006 “quarta transformação do México”: mento de 16%. das, notadamente as que visam pro-
e 2012, sua vitória foi total. Não con- um ponto de virada tão marcante Hiperativo, López Obrador multi- mover a democracia participativa ou
tente em esmagar seus rivais coletan- quanto a adesão à independência plica viagens para apresentar seus introduzir o referendo revogatório de
do 53% dos votos nas eleições de 1º de (1821), o período da Reforma (1855- programas sociais: subsídios do jar- médio prazo; outras três medidas já
julho de 2018, a coalizão liderada por 1863) ou, depois, a Revolução (1910- dim de infância à universidade, auxí- foram aprovadas: duas delas dizem
seu partido, o Movimento de Regene- 1917). “Este não é apenas o começo de lio a jovens aprendizes e deficientes, respeito a bens ilícitos adquiridos por
ração Nacional (Morena), obteve a um novo governo: hoje estamos pas- subsídios para pequenos agricultores, meio de ações criminosas e à requali-
maioria absoluta nas duas câmaras sando por uma mudança de regime”, duplicação da pensão para idosos, ficação da corrupção e da fraude elei-
do Congresso Federal, e em dezenove disse quando assumiu o cargo. Ele re- microcrédito para pequenos comer- toral como crimes graves. São medi-
dos 27 congressos locais renovados. cusa-se a ficar na suntuosa residên- ciantes e artesãos. Em alguns meses, das de consenso.
Essa configuração abre a possibilida- cia presidencial, que prefere conver- o executivo anunciou 15 milhões de A terceira é mais polêmica: criou a
de de revisar a Constituição e, por- ter em um centro cultural. Vendeu o beneficiários de seus vários progra- Guarda Nacional, resultado da fusão
tanto, realizar grandes reformas. Tal Boeing e a frota de automóveis dispo- mas, que contornam a burocracia in- de várias forças policiais militares e
perspectiva alarma o editor das pági- níveis para o chefe de Estado, substi- termediária para evitar desvios. responsável pelo combate à insegu-
nas de América Latina do Financial tui o corpo militar que deve garantir rança. Essa instituição, inspirada em
Times, John Paul Rathbone. Hostil ao sua segurança por cerca de vinte jo- NÃO REALMENTE DE ESQUERDA particular pela gendarmaria france-
modelo neoliberal, López Obrador vens civis desarmados – homens e Em um país em que 43,6% da popula- sa, confirma o lugar do Exército no
“representa uma ameaça maior à de- mulheres – e retira pensões e privilé- ção (126 milhões de pessoas no total) coração do sistema de segurança pú-
mocracia do que Jair Bolsonaro”, pre- gios de seus antecessores. Chegou a vive abaixo da linha da pobreza e 60% blica – uma maneira de superar o des-
sidente de extrema direita do Brasil, hora da “austeridade republicana”: a da população economicamente ativa crédito das forças policiais locais. A

Andrés Manuel López Obrador afirma que já cumpriu 62 dos 100 compromissos assumidos em seu discurso inaugural

© Marysol
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 25

iniciativa é apoiada pela grande a essa estratégia, considerada por Apesar disso, o grande vizinho Um analista da agência Moody’s ex-
maioria da população, exausta pela muitos mal planejada, está crescen- norte-americano não é a principal plicou que a firmeza demonstrada
violência diária. No entanto, é mar- do. Outro exemplo: em abril, autori- ameaça para o México de López Obra- pelo futuro presidente enviava um si-
cha a ré para alguém que, durante sua dades empreenderam uma reorgani- dor. No dia de sua eleição, uma voz nal negativo que podia “desencorajar
campanha, prometeu retirar as For- zação do sistema de saúde, que destoava no coro de editorialistas: o investimentos de médio prazo e desa-
ças Armadas das ruas. Choveram crí- envolve a revisão das práticas de do Wall Street Journal. “Dia após dia, celerar o crescimento econômico”.5
ticas, especialmente por parte das or- compra de medicamentos – um mer- os mercados financeiros também vo- Um ano depois, a austeridade
ganizações de direitos humanos, que cado anual de US$ 4,5 bilhões, mina- tarão no governo, por meio do merca- combinada com a incerteza predo-
denunciam a perpetuação da milita- do por fraudes e corrupção. Seguiu-se do de câmbio e do valor do peso”, minante entre os investidores estão
rização do país. No entanto, o presi- um impasse com laboratórios e forne- alertou editorial do jornal diário. atingindo os principais indicadores
dente conseguiu que seu plano fosse cedores; os medicamentos esgotaram AMLO está ciente do peso dos econômicos mexicanos. A desacele-
aprovado pelo Alto Comissariado das por várias semanas. Mais uma vez, mercados. Durante a campanha, seu ração é significativa: com um cresci-
Nações Unidas para os Direitos Hu- criticaram a medida por parecer im- economista-chefe – que mais tarde se mento do PIB de 0% no segundo tri-
manos. Ele garante que, na luta fron- provisação. Em maio, o diretor do tornaria seu ministro da Economia –, mestre de 2019, a recessão técnica é
tal contra os poderosos narcotrafi- Instituto Mexicano de Seguridade So- Carlos Manuel Urzúa Macías, viajou evitada por pouco e a economia do
cantes, sua estratégia de pacificação cial pediu demissão para denunciar pelo mundo agitando a bandeira país está passando pelo pior primei-
terá uma nova abordagem, atacando os cortes no orçamento. Austero, o branca. Do presidente e diretor execu- ro semestre desde a crise de 2009. No
os fatores sociais que alimentam a plano de redução dos gastos públicos tivo da BlackRock – o maior gerente de primeiro trimestre de 2019, empre-
delinquência. não busca apenas ajustar os excessos ativos do mundo – a representantes de sas e cidadãos expatriaram quase
Em termos de infraestrutura e de- do passado: milhares de funcionários cerca de sessenta fundos de investi- US$ 9 bilhões.6 Para as agências de
senvolvimento, grandes projetos são não titulares foram demitidos, o que mento, passando por funcionários classificação financeira, a culpa é do
anunciados, principalmente nas re- causou amargura e disfunções no dos Estados Unidos no Departamento governo e de suas “políticas imprevi-
giões sul e sudeste. Eles despertam aparato administrativo, levando ao do Tesouro, Macías trabalhou para síveis que minam a confiança dos in-
tanto o entusiasmo em governadores fechamento de alguns serviços. transmitir uma mensagem: “Nós real- vestidores”. A Fitch, a Moody’s e a
e empresários e em uma parte da po- mente não estamos à esquerda. Esta- Standard & Poor’s “puniram” o Méxi-
pulação quanto o sinal amarelo entre mos à esquerda do centro”.3 Durante co em várias ocasiões, enquanto Ur-
ambientalistas. A nova administra- Remodelada para se seu discurso de vitória, na noite de sua zúa Macías renunciou em julho de
ção lançou a construção de uma li- tornar retaguarda eleição, López Obrador também ten- 2019, criticando o presidente por seu
nha ferroviária de 1,5 mil quilôme- tou tranquilizar os ânimos: prometeu “amadorismo”. “López Obrador deve
tros que ligará os principais pontos
industrial dos Estados manter a disciplina fiscal, respeitar a aceitar a realidade econômica [...] e
turísticos da Península de Yucatán, Unidos, a economia autonomia do Banco Central e os parar de confiar em seus próprios
com o objetivo de revitalizar sua eco- mexicana atualmente se compromissos assumidos com em- dados”, diz um editorial do Financial
nomia. Embora apresentado pelo assemelha a um enclave presas e bancos nacionais e interna- Times (10 jul. 2019).
presidente como “um ato de justiça cionais. “Não agiremos arbitraria- Mas AMLO é quase tão teimoso
em relação à região mais negligencia-
norte-americano mente: não haverá confiscos ou quanto os mercados financeiros.
da [por governos anteriores]” (Noti- expropriações”, afirmou. “Não sou fã de economia”, disse ele a
mex TV, 17 dez. 2018), o “trem maia” No entanto, as principais dificul- um repórter da Bloomberg. “Acho que
desperta certa apreensão quanto ao dades de López Obrador estão fora do QUASE TÃO TEIMOSO seu papel foi exagerado por muito
impacto no meio ambiente, porque país e podem ser resumidas em uma QUANTO OS MERCADOS tempo, ao ser elevada como valor su-
deverá atravessar várias áreas natu- pergunta: controlar as instituições No entanto, a primeira advertência premo ao qual todos os outros aspec-
rais protegidas. no México é de fato deter o poder do ressoou em 29 de outubro de 2018, tos do governo devem ser subordina-
Preocupado em criar um Estado país? Remodelada para se tornar re- antes mesmo de o novo presidente dos.”7 A queda de braço está rolando,
forte, López Obrador lançou um plano taguarda industrial dos Estados Uni- assumir o cargo. Após uma consulta e a pergunta feita pelo presidente em
de resgate para os dois campeões pú- dos, a economia mexicana atualmen- pública, ele apoiou o cancelamento outubro de 2018 permanece: quem
blicos de energia: a Comissão Federal te se assemelha a um enclave do novo projeto do aeroporto inter- realmente decide no México?
de Eletricidade (CFE) e, acima de tu- norte-americano. Com 78% do co- nacional da Cidade do México, o qual
do, a Petróleos Mexicanos (Pemex). O mércio exterior constituído por tran- criticava bastante. AMLO julgava *Luis Alberto Reygada é jornalista.
presidente ambiciona dar vida a este sações com seu vizinho do norte que esse megaprojeto, do qual quase
último, já que, há algum tempo, a gi- (2017), o país está em uma situação um terço já está concluído, era inútil
gante do petróleo importa petróleo de extrema dependência que muitas e muito oneroso (mais de US$ 13 bi- 1   L eo Zuckermann, “La popularidad de AMLO y
bruto dos Estados Unidos. Seu objeti- vezes o obriga a aceitar as exigências lhões); e o considerava uma aberra- los resultados” [A popularidade de AMLO e
vo: alcançar a autossuficiência ener- de Washington. ção ecológica. A decisão também os resultados], Excelsior, México, 9 out. 2019.
2   Ler John Mill Ackerman, “Le Mexique privatise
gética em 2022 e converter a empresa Assim, no fim de maio de 2019, o ofereceu a oportunidade de ele anun- son pétrole” [México privatiza seu petróleo],
em um motor de desenvolvimento. Ou presidente dos Estados Unidos, Do- ciar o tom: atacar diretamente os in- Le Monde Diplomatique, mar. 2014.
seja, um giro de 180 graus em compa- nald Trump, ameaçou AMLO de au- teresses dos empresários mais im- 3   Jean Yoon e Paritosh Bansal, “Mexican elec-
tion favorite is ‘really not leftist’, adviser tells
ração à política de privatização colo- mentar as tarifas alfandegárias se o portantes do país era marcar uma investors” [O candidato favorito à presidência
cada em prática por seu antecessor, México não se responsabilizasse por clara separação entre os poderes po- do México não é um esquerdista, diz conse-
Enrique Peña Nieto (2012-2018).2 Pe- restringir o fluxo de imigrantes da lítico e econômico. lheiro a investidores], Reuters, 6 jun. 2018.
4   “ ‘¿Quién manda? ¿No es el pueblo?’, el men-
dra angular dessa nova estratégia, a América Central. A chantagem funcio- No dia seguinte, a bolsa desvalori- saje de AMLO a los mercados” [“Quem man-
construção de uma nova refinaria foi nou: o ministro das Relações Exterio- zou 4,2% e o peso despencou 3,6% em da? Não é o povo?”, a mensagem de AMLO
iniciada em junho de 2019, no estado res, Marcelo Ebrard, viajou para relação ao dólar – a pior cotação em aos mercados], El Financiero, México, 29
out. 2018.
natal do presidente, Tabasco. Washington para anunciar que seu quase dois anos. A mídia criticou Ló- 5   J ude Webber, “Mexico: AMLO’s ‘people po-
Essas mudanças, contudo, não país se comprometeria a enviar 6 mil pez Obrador por criar pânico entre os wer’ rattles the markets” [México: o poder do
acontecem sem obstáculos. Em janei- agentes da lei para a fronteira sul. Em- investidores. Ele então perguntou em povo reivindicado por AMLO assusta os
mercados], Financial Times , Londres, 25
ro de 2019, o governo decidiu fechar bora acompanhado por um “Plano de voz alta: “Devemos de fato considerar nov. 2018.
os oleodutos por vários dias para Desenvolvimento Integral” para a re- o Estado mexicano [...] subordinado 6   J ulio Gutiérrez, “Los Mexicanos están sacan-
combater desvios criminosos, que gião de El Salvador-Guatemala-Hon- aos mercados financeiros? Quem de- do dinero del pais: Bank of America” [Os
mexicanos estão tirando dinheiro do país:
custaram cerca de US$ 3 bilhões em duras, o acordo que transforma o cide? Não é o povo? Isto não é uma de- Bank of America], La Jornada , México, 29
2018. Drástico, o método causa escas- Exército mexicano em subcontratado mocracia?”.4 Nas 48 horas seguintes, ago. 2019.
sez de combustível e interrupções de da Patrulha de Fronteira dos Estados a agência de classificação Fitch rebai- 7   John Micklethwait, “La política debe estar por
encima de la economía: López Obrador” [A
fornecimento a postos de gasolina em Unidos provocou fortes críticas dentro xou o rating da dívida soberana do política deve estar acima da economia: López
todo o país. A insatisfação em relação do Morena e da esquerda em geral. México de “estável” para “negativo”. Obrador], Bloomberg, 8 ago. 2019.
26 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

MINAS DESCOBERTAS EM UMA REGIÃO CAÓTICA

A corrida pelo
ouro no Sahel

© Paulo Ito
Mal equipados, milhares de homens cruzam o Saara
em busca de ouro após a descoberta de veias no Sudão,
Chade e Níger... Rápida e recente, essa corrida pegou
de surpresa os Estados do Sahel, já desestabilizados
pelos movimentos jihadistas e por tráficos de todo
tipo, especialmente de drogas. Apesar de lucrativo, o
garimpo artesanal é uma atividade perigosa e precária
POR RÉMI CARAYOL*, ENVIADO ESPECIAL

N
atural de Arlit, cidade ao norte lário mínimo não chega a 30 mil fran- mite o general Mahamadou Abu Tar- “Os Estados da região tentaram
do Níger conhecida por suas ja- cos CFA (R$ 200). ka, presidente da Alta Autoridade de regular a atividade, mas adotaram es-
zidas de urânio, Ahmed G. tem A descoberta da veia Tchibaraka- Construção da Paz (HACP). “Permitiu tratégias diferentes”, explica o geó-
como patrimônio um robusto ten por alguns pioneiros equipados estabilizar uma área instável e frágil.” grafo Laurent Gagnol. A Argélia e o
4×4 japonês e um conhecimento pro- com detectores de metais em julho de Cinco anos depois, são 10 mil garim- Chade proibiram a extração de ouro
fundo das trilhas do Saara. Durante 2014 causou um grande fluxo de ga- peiros e mais de seiscentos garimpos artesanal e suprimiram, às vezes com
muito tempo, esse tuaregue de 42 rimpeiros improvisados. Milhares de espalhados por 50 quilômetros. Antes sangue, a mineração clandestina. O
anos guiou turistas interessados em homens tentam a sorte: moradores despovoado, Tchibarakaten agora tem Sudão e a Mauritânia estão tentando
admirar paisagens do Maciço de Aïr, locais, como Ahmed; nigerenses do quase 45 mil habitantes.4 controlar a indústria construindo
transportou mercadorias – legais e resto do país; e também malineses, A primeira corrida para a faixa centros de processamento de rochas,
ilegais – e migrantes até a fronteira sudaneses, chadianos e burquinen- saaro-saheliana – “o surgimento da onde o ouro e a pedra são dissociados
com a Líbia, até a proibição dessa ati- ses. No espaço de algumas semanas, frente pioneira”, como é chamada usando processos químicos. O Níger
vidade, em 2015.1 Da noite para o dia, centenas de homens peneiram essa por pesquisadores5 – ocorreu no Su- adotou um caminho intermediário:
ficou sem recursos para alimentar a área deserta. Uma cidade precária dão em 2011. Começou no norte, per- se os territórios de Aïr e Tchibaraka-
esposa e os três filhos. Foi então que, emerge da terra, com lojas, restau- to do Vale do Nilo, depois se espa- ten são tolerados, o de Djado, fechado
com alguns amigos, também desem- rantes e acomodações básicas. lhou para o oeste, para Darfur, uma há três anos, parece ser destinado a
pregados, embarcou no garimpo de região em guerra há mais de uma dé- uma empresa industrial estrangeira.
ouro em Tchibarakaten, a várias ho- NEBULOSA DE SÍTIOS cada. Havia então cerca de 20 mil Essa “nebulosa de sítios de minera-
ras de Arlit em direção à Argélia. A DE MINERAÇÃO minas e entre 100 mil e 150 mil ga- ção que emergem, crescem muito ra-
evocação dessa mudança profissio- Entre os garimpeiros, há ex-mercená- rimpeiros. Uma nova geração de de- pidamente e se multiplicam, e às ve-
nal faz seus olhos brilharem. rios tuaregues de origem nigerense, tectores de metais baratos e fáceis de zes desaparecem ainda mais
“O ouro é um presente do céu. Isso que retornaram da Líbia após a queda usar, bem como a explosão do preço repentinamente”,6 representa um
mudou a vida das pessoas aqui”, re- de Muamar Kadafi em 2011 e frequen- mundial do ouro favoreceram a eclo- grande desafio para os governos da
pete. No entanto, ele está longe de ter temente estão armados; também há são dessa atividade lucrativa, en- faixa saaro-saheliana, sujeitos a inú-
feito fortuna: antes de descobrir ou- trabalhadores demitidos pela Areva quanto o Sudão do Sul, que controla- meras ameaças de segurança.
ro, Ahmed precisou comprar licenças após o fechamento da mina de Imou- va as reservas de petróleo do país, A produção de ouro é antiga na
de operação e equipamentos, contra- raren em 2015; larápios, motoristas co- passava por uma secessão. África ocidental, principalmente em
tar mineradores e alimentá-los. Sua mo Ahmed, ou ainda ex-rebeldes tua- Depois de Darfur, a “frente pio- reinos que ficaram célebres por essa
nova ocupação mal lhe permite sus- regues que não encontraram neira” avançou de leste para oeste, atividade, como Gana (séculos III a
tentar a família. “Não ganho mais di- reintegração apesar dos acordos de sem controle, pegando outros Esta- XIII) e Mali (séculos XIII a XVI). O im-
nheiro do que quando transportava paz assinados em 1995 e 2009.3 Para o dos de surpresa. Fora de qualquer es- perador maliano Mansa Muça ficou
turistas, mas é melhor do que esperar Níger, um dos países mais pobres do trutura legal, indivíduos com equi- famoso, especialmente no norte da
sem fazer nada”, afirmou. Outros, en- mundo, que ocupa a 189ª posição en- pamentos de baixo custo – sudaneses África, pelo esplendor que exibiu du-
tretanto, conseguiram enriquecer ra- tre os 193 em Índice de Desenvolvi- em sua maioria – descobriram jazi- rante sua peregrinação a Meca em
pidamente, aproveitando o alto preço mento Humano (IDH), a descoberta é das no Chade, particularmente no 1324 e pela quantidade de ouro que lá
do ouro. Os comerciantes do Níger uma dádiva de Deus. “O ouro ocupa norte, em 2013; em seguida, no sul da gastou, o que contribuiu para baixar
chegam a vender o quilo a US$ 45 mil todas essas pessoas e mantém os jo- Líbia e Níger, em 2014; na Mauritânia, o preço do metal por vários anos.
a compradores de Dubai 2 – uma for- vens afastados de grupos armados, em em 2016; e, mais recentemente, em Mais ao norte, contudo, no deserto, a
tuna colossal em um país onde o sa- particular das sereias jihadistas”, ad- 2018, no norte do Mali. extração do metal amarelo está ape-
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 27

nas começando e faz crescer a incer- viram dezenas de milhares de ga- não há estatísticas sobre o número de
teza em uma região já desestabiliza- rimpeiros reunindo-se ali. “Tornou- vítimas, os atores do setor admitem
da. Essa nova atividade aumenta a -se impossível”, diz um morador lo- que poeira e produtos químicos usa-
circulação transfronteiriça e a rivali- cal contatado por telefone. “Eles dos sem precauções (sem máscara ou
dade por recursos entre indivíduos e tiraram água de nós, que já é escassa luvas) causam muitas doenças. Aci-
grupos, em áreas marginais do de- nesta área. Poluíram o solo com pro- dentes fatais são frequentes. “Quase
serto que experimentam forte subde- dutos químicos necessários para ex- toda semana há mortes”, confirma O olhar da cidadania
senvolvimento e, às vezes, fraca re- trair ouro, como cianeto e mercúrio, Ahmed. Em setembro passado, o co-
gulamentação do Estado. “Essas matando nosso gado. Cortaram as lapso de uma mina em Kouri Bou-
corridas do ouro constituem um fator árvores e caçam os animais”, com- goudi, ao norte do Chade, matou pelo
adicional de vulnerabilidade para es- pleta. As tensões levaram a confron- menos 52 pessoas. Os vídeos filma-
ses países saaro-sahelianos ou suas tos armados a partir de 2014, primei- dos no local mostram corpos sem vi-
populações?”, questionam, sem for-
mular uma resposta, os pesquisado-
ro entre os tedas e os garimpeiros de
outros lugares, depois entre os tedas
da, trazidos à tona por cordas.
Os danos ao meio ambiente tam-
Na luta
res Raphaëlle Chevrillon-Guibert, e as forças de segurança do Chade, bém preocupam as populações lo-
Laurent Gagnol e Géraud Magrin. acusado de acobertar a pilhagem. cais, mais particularmente os pecua-
“Ou, pelo contrário, representam um
estabilizador sociopolítico, forne-
ristas, cujos animais adoecem com a
água poluída. Após a passagem dos pela
cendo renda descentralizada a um Uma cidade garimpeiros – a exploração de um lo-
número muito grande de homens?”7 precária emerge cal nunca dura muito tempo –, a pai-
A curto prazo, os efeitos da mine-
ração de ouro parecem positivos para
da terra, com suas
lojas, restaurantes e
sagem se assemelha a um campo de
batalha: o chão esburacado, às vezes construção
a economia. Se os mineiros às vezes com buracos profundos; os intrusos
vêm de longe, cada local permanece acomodações básicas cortam toda a madeira para se aque-
mais ou menos controlado pelas co-
munidades locais, que são as princi-
pais beneficiárias: os tuaregues no Histórias de pastores modestos
cer e cozinhar, caçam; e a terra e os
lençóis freáticos são contaminados
com produtos químicos por décadas.
de uma
Aïr, em Tchibarakaten e na região de que venderam um camelo para fi- No Saara, às vezes o ouro é encon-

sociedade
Kidal, no Mali; os tubus em Djado e nanciar sua viagem à mina e volta- trado em forma de pepitas. Porém, na
Miski; zaghawas e árabes em Darfur. ram ricos, com centenas de milhares maioria das vezes, permanece aglo-
Por fim, explica Gagnol, a atividade de francos CFA no bolso, povoam os merado com rochas, o que torna ne-
tem “um efeito inegável na economia sonhos dos candidatos à mineração cessário triturar a pedra para extrair

mais justa,
regional”, porque os garimpeiros, de ouro. Mas também acontece de o minério precioso da farinha assim
cientes de que o ouro não é inesgotá- algumas pessoas perderem tudo o obtida, com cianeto ou mercúrio. Al-
vel, geralmente reinvestem dinheiro que possuem. “Para chegar aos lo- guns centros de tratamento muito
ganho em construção, comércio ou cais, muitos garimpeiros tiveram de poluentes são construídos próximo
construção. vender parte de suas propriedades às principais cidades. A atividade

POLUIÇÃO QUÍMICA
ou emprestar dinheiro. Uma vez lá,
dívidas, roubos, doenças e acidentes
também requer uma grande quanti-
dade de água, em uma área onde esse
solidária e
E ACIDENTES MORTAIS de trabalho tornam a aventura um recurso natural é escasso. A longo
Ex-traficante de cocaína, Saleh inferno se não se tem a sorte de en- prazo, o garimpo de ouro poderia
Ibrahim, conhecido como “Boss”,
também embarcou no garimpo arte-
contrar ouro”, disseram Gagnol e
Grégoire.
tornar a vida impossível nessas áreas,
já bastante hostis. sustentável.
sanal de ouro. Hoje, dirige várias cen- Com frequência, os principais
tenas de garimpeiros, comprou equi- vencedores são aqueles que podem *Rémi Carayol é jornalista.
pamentos de perfuração profunda, investir capital significativo para
1   L er “Les migrants dans la nasse d’Agadez”
abriu um centro de saúde e investiu comprar máquinas e contratar ga- [Os migrantes na armadilha de Agadez], Le
parte de seus ganhos em seu oásis rimpeiros – empresários que vivem Monde Diplomatique, jun. 2019.
original, em Timia, ao norte de Aga- principalmente nas capitais –, bem 2   C f. David Lewis, Ryan McNeill e Zandi Shaba-
dez, onde mandou plantar mais de 3 como comerciantes que vendem ou-
lala, “Gold worth billions smuggled out of Afri-
ca” [Bilhões em ouro contrabandeados para
Quartas, às 17h,
mil laranjeiras. Ibrahim afirma ter ro para o estrangeiro, às vezes sem fora da África], Reuters Investigates, 24 abr. Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
abandonado todas as atividades ile- pagar os impostos cobrados pelo Es- 2019.
3   Ler Philippe Leymarie, “Comment le Sahel est Ribeirão Preto: 107,9 FM)
gais. “O ouro é um presente de Deus. tado. Impossível determinar o peso devenu une poudrière” [Como o Sahel tornou-
Melhor esmagar pedras do que trafi- de uma economia que permanece -se um paiol], Le Monde Diplomatique, abr.
car”,8 afirma. informal. “As condições de vida dos
4   
2012.
C f. Emmanuel Grégoire e Laurent Gagnol,
Quartas, à meia-noite
O conto de fadas, entretanto, trabalhadores são terríveis. Nos ga- “Ruées vers l’or au Sahara: l’orpaillage dans le TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
também pode se transformar em pe- rimpos, só se vê miséria”, confiden- désert du Ténéré et le massif de l’Aïr (Niger)”
Vivo Fibra e 186 da Vivo.
sadelo. Em Darfur, em 2013, um con- cia um funcionário do Ministério de [Corrida do ouro no Saara: o garimpo no de-
serto de Tenéré e no Maciço de Aïr (Níger)],
flito sobre o controle de minas atin- Minas do Níger, que pede anonima- EchoGéo, 2017.
giu as milícias Janjawid – que to. Dependendo do chefe para ali- 5   C f. Raphaëlle Chevrillon-Guibert, Laurent
aterrorizam as populações dessa re- mentação e acomodação, relativa- Gagnol e Géraud Magrin, “Les ruées vers l’or
au Sahara et au nord du Sahel. Ferment de
gião há anos – e as tribos árabes: cen- mente mal remunerados em relação crise ou stabilisateur?” [As corridas do outro
tenas de mortos e quase 150 mil des- ao lucro que o ouro dá aos emprega- no Saara e ao norte do Sahel. Fermento de
crise ou estabilizador?], Hérodote, n.172, Pa-
locados. No norte do Chade, na área dores, os garimpeiros são oriundos
ris, 2019. observatorio3setor
de Miski, a sede de ouro levou à for- dos setores mais pobres da popula- 6   Ibidem.
mação de um grupo de autodefesa ção. Alguns ainda são adolescentes, 7   Raphaëlle Chevrillon-Guibert, Laurent Gagnol
que ao longo do tempo se transfor- até crianças, que também resolve- e Géraud Magrin, op. cit.
8   C f. Jérôme Tubiana e Claudio Gramizzi, “Lost observatorio3setor
mou em rebelião armada contra o ram tentar a sorte ou seguir um ir- in trans-nation. Tubu and other armed groups
Estado central. Em apenas algumas mão mais velho. and smugglers along Libya’s southern border”
semanas, em 2013, os tibestis, cuja Trabalho de força física, o garim- [Perdido na transnação. Tubus e outros gru-
pos armados e contrabandistas ao longo da www. observatorio3setor.org.br
população é estimada em cerca de 25 po artesanal de ouro também é uma fronteira sul da Líbia], Small Arms Survey, Ge-
mil pessoas (principalmente tedas), atividade perigosa. Se por um lado nebra, dez. 2018.
28 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

COMO A JUSTIÇA NORTE-AMERICANA INDENIZA SUAS VÍTIMAS

Vidas que valem


nos distritos brancos – já que as pena-
lidades financeiras em caso de aci-
dente são mais elevadas ali – e que, a
fim de efetuar seus trajetos com mais

mais que as outras


rapidez, privilegiaria então os itinerá-
rios que atravessam os bairros ne-
gros, aumentando ao mesmo tempo
os transtornos e o perigo.
Tão comuns quanto discretas, es-
Quando alguém sofre um prejuízo, a Justiça deve fixar uma indenização. Nos Estados sas práticas discriminatórias ganha-
Unidos, elas se apoiam em critérios como salário e expectativa de vida. As desigualdades ram visibilidade recentemente. Em
2016, os senadores democratas Cory
sociais repercutem mecanicamente nas compensações, de tal modo que um médico Booker e Kirsten Gillibrand apresen-
receberá mais que um enfermeiro, um branco mais que um negro, um homem mais que taram um projeto de lei, o Fair Calcu-
uma mulher etc. lation Act, que visava proibir o uso de
critérios de raça e de gênero no âmbi-
POR CHARLOTTE RECOQUILLON* to federal. Mas o texto nunca foi ado-
tado. Os movimentos Black Lives

Q
uando se mudou com o marido, vítima retrucou afirmando que “a po- sob a pressão de políticos e associa- Matter e #MeToo ampliaram a con-
em maio de 2011, para um pulação hispânica tem uma tendência ções, finalmente escolheu tomar co- testação dessas práticas discrimina-
apartamento recém-reforma- maior a alcançar um nível de educa- mo referência as tabelas masculinas e tórias, denunciando as desigualda-
do no Brooklyn, Nova York, Ni- ção superior ao de seus pais”. O júri fi- brancas – as mais favoráveis – para to- des socioeconômicas que embasam
ki Hernandez-Adams estava grávida. nalmente decidiu por US$ 1,9 milhão, das as vítimas. “A prática [de discri- as desigualdades de indenização.
Quinze meses depois, um exame mé- após a exclusão categórica do critério minar por gênero e etnia] é comum, Em abril de 2019, dezesseis organi-
dico de rotina revelou níveis de racial – pouco comum nos tribunais mas não sistemática”, explica Martha zações de direitos civis enviaram uma
chumbo tão elevados no sangue do norte-americanos – pelo juiz Jack B. Chamallas, professora de Direito da carta aberta à Nafe pedindo que con-
recém-nascido que as consequências Weinstein. “A categoria ‘hispânicos’ é Universidade de Ohio e autora, desde denasse publicamente o procedimen-
para sua saúde eram irreversíveis. A muito geral. Existem professores e jar- 1994, dos primeiros trabalhos sobre o to de levar em conta dados de raça e
jovem mãe decidiu então registrar dineiros. Portanto, vocês não podem tema. Em 2009, 92% dos peritos pes- gênero no cálculo de indenizações
uma queixa contra o proprietário da considerar a criança segundo a média quisados pela Associação Nacional por prejuízo moral ou físico. Elas rece-
habitação, a fim de obter uma indeni- dos hispânicos, mas devem levar em dos Engenheiros Forenses (Nafe) de- beram uma recusa categórica. No pla-
zação para o pagamento por perdas e conta características específicas, co- claravam levar em consideração o gê- no legislativo, em julho de 2019, a Ca-
danos (compensatory damages).1 mo os diplomas da mãe, o lugar onde nero da vítima, e 44,1%, sua raça.5 lifórnia se tornou o terceiro estado a
No final de uma batalha judicial ela mora, sua família e assim por dian- proibir essa prática, depois da Caroli-
de quatro anos, o proprietário foi te”, falou aos jurados. na do Norte e de Nova Jersey. No âm-
considerado culpado.2 O tribunal de- “As desvantagens que bito federal, um novo projeto de lei es-
via então determinar a indenização DISCRIMINAÇÕES ONIPRESENTES negros e mulheres so- tá sendo examinado no Congresso
que a vítima receberia. Para esse fim, Assim, a Justiça permite levar em desde setembro. Se não tem nenhuma
juízes e júris contam com o testemu- consideração o sexo e a raça de uma
frem nos Estados Unidos chance de ser votado pelo Senado –
nho de peritos, tanto do reclamante vítima, além de seu nível social, no em termos de acesso ao onde os republicanos são maioria –,
como do acusado, para avaliar os cálculo de perdas e danos. Em outras mercado de trabalho se ele demonstra avanços tímidos no de-
prejuízos econômicos sofridos, o que palavras, por dano igual e status so- refletem no montante bate público. Poucas são as vozes, po-
inclui possíveis despesas médicas ou cial equivalente, mulheres e mino- rém, que defendem o abandono do
funerais, prejuízos materiais, assim rias recebem menos que homens e
das indenizações” critério social. Permanece aceito que,
como rendimentos perdidos por cau- mulheres brancos. “As desvantagens se dois adolescentes morrerem no
sa da lesão, invalidez ou morte. Para que negros e mulheres sofrem nos CONTESTAÇÃO CRESCENTE mesmo acidente de carro, suas famí-
embasar suas estimativas, os peritos Estados Unidos em termos de acesso Levar em consideração critérios de lias poderão ser indenizadas de ma-
levam em consideração critérios su- ao mercado de trabalho se refletem meio social, raça ou gênero equivale a neira diferente, dependendo da ocu-
postamente objetivos: o salário da ví- no montante das indenizações que uma forma de dupla punição. As fa- pação ou do nível de instrução deles.
tima (ou de sua família, se se trata de recebem”, resumem os advogados mílias pobres, entre as quais as mino-
uma criança), o número de anos de Ronen Avraham e Kimberly Yuracko.3 rias são super-representadas, correm, *Charlotte Recoquillon é jornalista.
atividade em que ela ainda deve Em 2019, nos Estados Unidos, a renda por exemplo, mais riscos de sofrer
1   E ssas perdas e danos se diferenciam das mul-
atuar, sua expectativa de vida... Me- média das mulheres representava uma exposição ao chumbo que aque- tas que podem ser impostas aos autores de
canicamente, as desigualdades exis- 82,3% da dos homens; a dos homens las mais ricas: elas são mais limitadas crimes e delitos.
tentes na sociedade têm repercus- negros, 74,9% da dos homens bran- na escolha de seus bairros e casas, e 2   G MM vs. Kimpson, 13-CV-5059, 30 jul. 2015.
Cf. também Kim Soffen, “In one corner of the
sões no montante de perdas e danos. cos; um homem asiático ganhava em as atividades poluidoras se instalam law, minorities and women are often valued
No caso do filho de Hernandez-A- média 30% mais que um homem mais frequentemente em territórios less” [Em um canto da lei, minorias e mulheres
dams, os advogados da família esta- branco4 etc. Todos esses dados, cole- populares, onde o poder político (e, são com frequência menos bem avaliados],
The Washington Post, 25 out. 2016.
vam reivindicando entre US$ 2,5 mi- tados pelo governo, são em seguida portanto, o poder de oposição) dos 3   Ronen Avraham e Kimberly A. Yuracko, “Torts
lhões e 4 milhões, o que, segundo suas transformados em tabelas que ser- moradores é mais fraco... Então, em and discrimination” [Danos e discriminação],
estimativas, seria a quantia que a víti- vem de referência para as estimativas caso de intoxicação, elas são menos Ohio State Law Journal, v.78, n.3, Columbus,
2017.
ma poderia ter podido ganhar ao lon- dos peritos, especialmente quando bem indenizadas. Avraham e Yuracko 4   “ Median usual weekly earnings of full time
go da vida se não tivesse se tornado as vítimas são jovens e não têm histó- chegam a argumentar que a adoção wage and salary workers” [Remuneração se-
inválida por uma intoxicação por rico de carreira. das tabelas demográficas no cálculo manal habitual média dos trabalhadores em
tempo integral e assalariados], Escritório de
chumbo. Os defensores do proprietá- O fato de a maioria das negocia- de perdas e danos poderia incentivar Estatísticas do Trabalho, Departamento do
rio faziam outro cálculo. Como a ções entre o queixoso e o acusado ser as empresas a concentrar riscos nos Trabalho dos Estados Unidos, Washington,
criança é de origem hispânica, eles ar- feita a portas fechadas torna difícil bairros pobres e não brancos. Para DC, out. 2019.
5   Michael Brookshire, Michael R. Luthy e Frank
gumentaram que ela teria poucas avaliar com precisão o peso dessas ta- embasar sua hipótese, eles apresen- Slesnick, “A 2009 survey of forensic econo-
chances de estudar e de seguir uma belas. Acontece de o tribunal rejeitar o tam o caso (fictício) de uma empresa mists: Their methods, estimates, and perspec-
carreira que lhe permitisse acumular uso dos critérios de sexo e raça, como de entregas, a PhedEx, que teria todo tives” [Uma pesquisa feita em 2009 com eco-
nomistas forenses: seus métodos, estimativas
tal quantia. Propuseram entre US$ 1,5 foi o caso do fundo de indenização o interesse em incentivar seus moto- e perspectivas], Journal of Forensic Economi-
milhão e 2,5 milhões. O advogado da das vítimas do 11 de Setembro, que, ristas a dirigir em menor velocidade cs, v.21, n.1, Mount Union, Iowa, dez. 2009.
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 29

RICOS TRANSGÊNICOS

Doenças genéticas e classe social


Novas tecnologias reprodutivas prometem prevenir doenças genéticas graves.
O que aconteceria se apenas os ricos tiverem acesso a elas?

POR LAURA HERCHER*

A
medicina genética e a manipu- implicaria uma chance de 25% de o consensual – que poderia apresentar sublinharem a necessidade de recur-
lação de DNA suscitam muitas bebê nascer com uma doença dege- mais problemas em um futuro pró- sos e apoio. Também mencionam a
preocupações. Assim que essas nerativa fatal: novamente, a genética ximo. Como prevenir doenças here- importância de um diagnóstico pré-
palavras são pronunciadas, al- pode mudar o jogo. ditárias poderia ser algo nefasto? À -natal que integre certa compreensão
guns imaginam resultados assusta- Isso é desejável? Nos Estados Uni- primeira vista, a operação é total- das experiências e necessidades das
dores, experiências fracassadas, dos, futuros pais respondem majori- mente benéfica. Entretanto, várias pessoas envolvidas. Esse ideal rara-
Frankensteins, mundos dominados tariamente que sim, se levado em indicações sugerem que os testes mente é posto em prática, e progra-
por super-homens geneticamente conta o sucesso crescente do teste ge- pré-natais podem se tornar um luxo mas avançados de triagem às vezes
modificados. Ao projetarmos cená- nético introduzido em 2011, que per- reservado a uma elite, transforman- são vistos como uma afronta à huma-
rios tão distantes, contudo, não cor- mite a observação não invasiva do do certas doenças genéticas em um nidade das pessoas com deficiência.
reríamos o risco de nublar uma amea- DNA fetal. Se ampliada a outras ca- problema “que só acontece com ou- Paradoxalmente, restringir o aces-
ça imediata e muito real? Pois, ao madas da população, essa opinião tras pessoas”. so à triagem pode ser ainda mais peri-
modificar nossa concepção da doen- torna-se mais contrastada: os norte- Isso é sugerido pelo caso da sín- goso para o bem-estar das pessoas
ça, a medicina genética contribui pa- -americanos de forma geral aprovam drome de Down, ou trissomia 21, com síndrome de Down, transfor-
ra o aumento das desigualdades. certos usos e recusam outros. De uma anomalia cromossômica relati- mando esse evento aleatório em uma
Se pudesse, você usaria técnicas acordo com um estudo de 2018 da vamente comum e para a qual as mu- anomalia quase ausente em alguns
reprodutivas para evitar que seu filho Universidade de Chicago,1 os norte- lheres conseguem realizar testes de grupos e relativamente comum em
tivesse uma doença hereditária? Para -americanos seriam favoráveis a in- detecção há décadas. A síndrome de outros. Nem todo mundo decide fazer
muitos pais em potencial, essa ques- tervenções destinadas a reduzir o ris- Down é uma diferença, não uma o teste dessa síndrome e, quando o re-
tão não é mais ficção científica. Se o co de câncer em uma criança, mas doença em si. Em 2011, uma equipe sultado é positivo, alguns pais prefe-
genoma deles apresenta um risco rejeitariam a possibilidade de esco- de pesquisadores entrevistou 284 rem continuar a gravidez. A grande
particular de câncer de mama ou de lher a cor dos olhos ou otimizar sua pessoas com mais de 12 anos afeta- maioria, entretanto, faz a escolha
ovário, agora eles podem evitar trans- inteligência. Em resumo, bebês sau- das por essa síndrome: 99% disseram oposta. Segundo um estudo – o mais
mitir essa variante patogênica aos fi- dáveis, mas não catalogados. que estavam felizes.2 Na ocasião das abrangente sobre o assunto – publica-
lhos. O mesmo acontece se cada um Ironicamente, essa é justamente entrevistas, muitos pais me confia- do em 2012 por pesquisadores da Uni-
deles possuir um gene de atrofia a manipulação genética com fins te- ram se considerar privilegiados por versidade da Carolina do Sul,3 dois
muscular da coluna vertebral – o que rapêuticos – em sua versão mais terem um filho trissômico, apesar de terços das mulheres grávidas que des-
cobrem que seu feto é portador da
síndrome de Down optam por fazer
© Pixabay

um aborto. Mas essa proporção varia


de acordo com o ambiente, e a proba-
bilidade de uma mulher dar à luz um
filho com síndrome de Down depen-
de de sua cultura, crenças religiosas,
local de vida, renda etc. O acesso aos
testes pré-natais modificou a inci-
dência da síndrome de Down a ponto
de torná-la uma marca geográfica e
de classe. Como as famílias abastadas
têm cada vez menos filhos afetados, a
síndrome está cada vez mais associa-
da a outros ambientes.
Existem milhares de doenças ge-
néticas e em breve poderemos diag-
nosticá-las ainda mais no início da
gravidez. Os testes se concentrarão
em doenças que gerem risco de vida
desde a infância, em patologias me-
nos graves ou mesmo em doenças que
aparecerão mais tarde, como Parkin-
son ou Alzheimer. Em alguns casos,
os resultados poderão atestar se a
criança será portadora de determina-
da doença. Entretanto, na maioria
das vezes, apontam apenas um risco
aumentado, indicando a presença de
genes que colocam as pessoas em
maior risco de doenças cardíacas ou
A manipulação genética com fins terapêuticos pode apresentar problemas em um futuro próximo câncer de colo do útero, por exemplo.
30 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

HERANÇA SOVIÉTICA

Emprego
Para muitos pais, o aborto é um eliminar o risco de doença genética, a
ato doloroso, e isso limita a incidên- aposta assume dimensões inteira-
cia de testes pré-natais. A situação é mente diferentes. Algumas patolo-
muito diferente quando se trata de gias hereditárias sempre afetaram

garantido para
escolher entre vários embriões no populações em particular, como a
contexto da fertilização in vitro (FIV). anemia falciforme, mais presente nos
Esse setor está crescendo nos Estados afro-americanos, a doença de Tay-
Unidos, em parte graças ao teste ge- -Sachs, nos judeus asquenazes, ou

a juventude
nético pré-implantação (PGT), que mesmo um raro caso de nanismo ob-
envolve a coleta de uma pequena servado entre os Amish. Com os tes-
amostra de células de um embrião tes pré-natais, as doenças genéticas
inicial para analisar seu DNA. podem atingir desproporcionalmen-

bielorrussa
Recentemente, chegaram ao mer- te certos grupos regionais, culturais e
cado muitas ofertas de rastreamento socioeconômicos – geralmente os
de centenas de doenças raras, como mais frágeis.
fibrose cística ou doenças órfãs, co- O problema não é apenas moral,
mo trimetilaminúria, também co- mas também prático. Famílias abas-
nhecida como “síndrome do odor de tadas lutam contra essas doenças fa- Para lutar contra o desemprego de jovens, a Bielorrússia
peixe podre”, um distúrbio metabó- ça chuva ou faça sol: financiam pes- aplica uma política cada vez mais rara na Europa: o
lico caracterizado por emanações quisas, divulgam as doenças que
corporais fétidas. Esses testes são afetam seus pares, estabelecem asso- governo garante um primeiro emprego para os formandos
caros, e ainda assim não é nada com- ciações, atraem a atenção da mídia. na graduação. Herança da economia planificada soviética,
parado ao valor que é preciso desem- As famílias modestas não têm esse essa instituição é parte integrante de um monumento de
bolsar para utilizar essas informa- poder e provavelmente serão perde-
ções em outras análises. Por doras na “Olimpíada das Doenças”,4 direitos aos quais a população permanece conectada
exemplo, o sr. e a sra. Smith desco- um jogo de soma zero em que certos
brem que ambos são portadores do grupos pressionam e buscam dire- POR LOÏC RAMIREZ*, ENVIADO ESPECIAL
gene da hipofosfatasia – o que faria cionar fundos de pesquisa e assistên-
seus filhos terem uma chance em cia para determinadas doenças que
quatro de nascer com ossos fracos e os preocupam.
deformados, e morrer cedo. Para evi- Além disso, esses grupos podem
tar essa probabilidade, eles podem alimentar uma crescente falta de em-
passar pelo teste PGT. A fertilização patia e de tolerância: se uma parte da
in vitro custará US$ 20 mil por ciclo, população se sente protegida, ela po-

D
aos quais deverão ser adicionados de não ter o reflexo da compaixão, ia de calor em Navapolatsk. O atende, de acordo com o artigo 83 da
US$ 10 mil em custos laboratoriais sentimento que decorreria do exercí- sol esturrica a imensa praça da Lei da Educação, à “exigência de pro-
para determinar quais embriões não cio de se colocar no lugar de uma pes- prefeitura. Nenhuma árvore teção social dos jovens diplomados e
são portadores da doença. soa doente ou com deficiência, ou para dar uma mínima sombra. à satisfação da necessidade de espe-
Para muitas famílias, essas quan- ainda de pais com filhos nessas con- A poucos metros de distância, encon- cialistas, operários e empregados em
tias são insignificantes: equivalem dições. Proteger os filhos parece, des- tra-se a bem denominada Rua das Es- ramos da economia e da esfera so-
mais ou menos a um ano de universi- sa forma, uma questão de jurisdição colas. Do número 5 escapa uma mú- cial”. Em 2018, ele abrangeu 19.300
dade, e elas podem evitar desastres. e responsabilidade dos pais. Onde a sica pelas janelas entreabertas. No estudantes, ou seja, cerca de 60% dos
Um casal rico com histórico de cân- sociedade via o acaso, ou a má sorte, chão, cascalhos pintados de azul for- graduados (sem contar os que fize-
cer de mama e ovário pode se livrar passará a ver uma falha e relutará a mam uma clave de sol. Trata-se do ram curso por correspondência).
desse flagelo em uma geração. E, se “pagar pelos erros dos outros”. instituto de música, onde me encon- O princípio é simples. Cada esta-
produz embriões suficientes, pode ti- trei com Ksenia Kossaia. “Bem-vindo belecimento de ensino superior abre
rar proveito deles para reduzir o risco *Laura Hercher é diretora de pesquisa no a Navapolatsk, a única cidade da Bie- para os estudantes de graduação um
de desenvolver a doença de Alzhei- programa de genética humana Joan H. lorrússia que não tem uma estátua de número de vagas gratuitas,1 distri-
mer ou escolher um bebê menos pro- Marks no Sarah Lawrence College, Esta- Lenin”, diz a jovem em tom de buídas em função de seus resulta-
penso a doenças cardíacas nas coro- dos Unidos, e âncora do podcast The Bea- brincadeira. dos: os melhores são os primeiros
nárias. Para outras famílias, essas gle Has Landed. Uma versão longa deste Localizada no norte do país, nos contemplados. Em contrapartida,
despesas são proibitivas, em um con- artigo foi publicada na revista norte-ameri- confins da Letônia e da Rússia, essa quando terminam seus estudos, eles
texto em que nada é feito para tornar cana The Nation (23 ago. 2019). antiga cidade soviética foi construída devem trabalhar dois anos em um
a fertilização in vitro mais acessível. em 1954 para acolher as famílias dos posto geralmente designado por seu
Nos Estados Unidos, pouco menos de trabalhadores do setor petroquími- centro universitário, desde que seja
2% dos recém-nascidos são concebi- co. Atualmente, abriga a imponente na Bielorrússia. Médicos, engenhei-
dos dessa maneira; nos países que 1   “ The December 2018 AP-NORC Center Poll”, refinaria da empresa estatal Naftan. ros, contadores, professores, jorna-
The Associated Press – NORC Center for Pu-
destinam fundos públicos à procria- Para esse município com cerca de 100 listas, nenhuma profissão escapa do
blic Affairs Research da Universidade de Chi-
ção assistida por medicamentos – co- cago, dez. 2018. Disponível em: <www.ap- mil habitantes é que Kossaia foi de- dispositivo.
mo Israel, Dinamarca e Bélgica –, os norc.org>. signada por dois anos como professo- Ao garantir um primeiro emprego
2   Brian Skotko, Sue Levine e Richard Goldstein,
números são duas a três vezes maio- ra de piano. “Eu estudei no Conserva- a uma parte de seus jovens, a Bielor-
“Self-perceptions from people with Down syn-
res. Quarenta anos após sua introdu- drome” [Autopercepção de pessoas com sín- tório de Minsk. Quando terminei rússia faz uma opção na contracor-
ção, a técnica permanece fora do al- drome de Down], American Journal of Medi- meus cinco anos de formação, queria rente das receitas liberais adotadas
cal Genetics, v.155, n.10, Hoboken (Nova
cance de muitos bolsos trabalhar na capital, mas me envia- no resto da Europa, onde os governos
Jersey), out. 2011.
norte-americanos. Jaime Natoli (org.), “ Prenatal diagnosis of
3    ram para cá.” pretendem lutar contra o desempre-
As desigualdades no sistema de Down syndrome: a systematic review of termi- Ela faz referência ao sistema de go dos jovens reduzindo seus salários
nation rates (1995-2011)” [Diagnóstico pré-
saúde nos Estados Unidos não são designação obrigatória após os estu- ou flexibilizando seus direitos.
-natal da síndrome de Down: uma revisão sis-
novas e o acesso à fertilização in vitro temática das taxas de aborto (1995-2011)], dos, o raspredelenie, que literalmente Pouco conhecida, a Bielorrússia é
é apenas um exemplo entre muitos. Prenatal Diagnosis, v.32, n.2, Charlottesville significa “distribuição”. Criado na muitas vezes ridicularizada em ra-
(Virgínia), fev. 2012.
Mas, considerando as possíveis con- época da União Soviética e parcial- zão de seu gosto pelas estátuas de Le-
4   
Virginia Hughes, “The Disease Olympics”
sequências de um mundo em que [Olimpíadas das Doenças], 6 mar. 2013. Dis- mente mantido após a independên- nin e sua ligação excessiva com o
apenas os ricos possam reduzir ou ponível em: <www.virginiahughes.com>. cia do país, em 1991, esse dispositivo passado. As instituições financeiras
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 31

internacionais julgam seu setor pú- der Executivo e pôs o Estado no soal” junto às autoridades. Membro trada na zona rural, não é raro obser-
blico inchado. No entanto, a preser- centro da vida econômica. Hoje em do Departamento da Ideologia, da var cidadãos vestidos com uma es-
vação de algumas conquistas sociais dia, as empresas públicas reúnem Cultura e da Juventude da prefeitura quisita malha amarela, que se
soviéticas contribuiu para a longevi- 50% dos assalariados e geram 60% da de Beshankovichy, Tatiana Bojedo- ocupam ativamente de repintar uma
dade do poder do presidente Alexan- produção nacional. Mas o governo se mova é responsável pelas designa- mureta metálica de segurança, tirar
der Lukashenko, que mantém o país preocupa também em atrair investi- ções na circunscrição desse vilarejo o mato dos canteiros de um jardim
com mão de ferro desde 1994. Da he- mentos externos, principalmente de cerca de 6 mil habitantes. Todo público ou varrer um pátio, sobretu-
rança comunista, o regime de Luka- provenientes da Europa ocidental, ano, a partir do mês de março, seu de- do em períodos próximos de eventos
shenko conservou também um culto com o objetivo de reduzir sua depen- partamento faz um levantamento da particulares ou de celebrações. “Co-
ao “valor trabalho” e, portanto, uma dência em relação à Rússia, que lhe quantidade de mão de obra qualifica- mo trabalhadora do meio hospitalar,
aversão à ociosidade, que tem a ver fornece hidrocarbonetos a baixos da necessária aos órgãos públicos e às sou encarregada, com outros colegas,
com sua preocupação de encontrar preços, essenciais à sua indústria. empresas privadas. “Tudo tem de ser da manutenção de um parque da ci-
uma ocupação útil para a população Apesar das acusações de fraude re- terminado em maio. Em seguida, en- dade”, explica Lia Tarassevich, uma
em idade de trabalhar, sobretudo se correntes, Lukashenko foi reeleito viamos os resultados à capital regio- epidemiologista de uns 20 anos de
ela for jovem e potencialmente pela quinta vez consecutiva em 2016, nal, Vitebsk, que, por sua vez, os envia idade designada ao hospital de Be-
turbulenta. sem que, no momento, haja uma on- a Minsk. Sem isso, todos os médicos e shankovichy para fazer a coleta e a
da de contestação contra seu regime, professores iriam para Minsk, e te- análise de amostras de água e de ali-
“JOVENS ESPECIALISTAS” como a que ocorreu do outro lado da mos necessidade de profissionais mentos nas escolas.
Como é de esperar, as autoridades fronteira, na Ucrânia. aqui também”, justifica. Para Bojedo- As empresas e as coletividades lo-
exaltam, então, os méritos do raspre- mova, o raspredelenie permite, antes cais organizam diversas vezes por
delenie. “A designação obrigatória é, de mais nada, lutar contra a desertifi- ano subbotniks, ou seja, sábados de-
antes de mais nada, uma vantagem cação na zona rural e nos vilarejos. dicados aos trabalhos coletivos. Exis-
concedida aos estudantes”, afirma Hoje em dia, as “Quando chega o período das desig- te também uma jornada nacional, ge-
Irina Starovoitova, vice-ministra da empresas públicas nações, lhe mostram os postos dispo- ralmente na primavera, durante a
Educação, que nos recebeu em seu es- níveis, mas lhe dão possibilidade de qual o presidente adora entrar em ce-
critório. E prossegue: “Por um lado, o
reúnem 50% dos apresentar um emprego que você na arando um campo, como a tradi-
Estado tem obrigação de lhes garantir assalariados e geram mesmo encontrou”, explica Júlia, es- ção das Komsomols (juventudes co-
um trabalho no fim de seus estudos. 60% da produção tudante em Minsk. munistas) ajudando diferentes
Por outro, eles obtêm o status de ‘jo- nacional colheitas. A construção de alguns
vens especialistas’ e recebem, por is- MULTA POR DESEMPREGO prédios públicos, como a Biblioteca
so, um bônus que complementa seu Foi essa via que Anna Korachova pri- Nacional de Minsk, em 2003, e o com-
salário”. A maior parte dos jovens en- Para exaltar os méritos desse forte vilegiou. Ela trabalha como respon- plexo esportivo e cultural Minsk-Are-
trevistados concorda com essa avalia- enquadramento do liberalismo, o go- sável comercial no grupo Altabel, na, em 2006 e 2008, também foram
ção. Alguns nos confessaram seu me- verno pode apresentar alguns argu- uma empresa de serviços de informá- ocasião de encenar esse tipo de mo-
do de serem nomeados para uma mentos sólidos. Classificado pelas tica estabelecida em Minsk. “O setor bilização, da qual até mesmo altos
região distante, longe da família e dos Nações Unidas como um dos Estados privado, de maneira geral, paga funcionários participaram.4
amigos, mas ainda assim sem criticar com “índice de desenvolvimento mais”, ela argumenta para explicar Misturando direito com trabalho
o princípio do dispositivo. “Termino muito alto”, o país exibiu em meados sua escolha. Além do salário, a em- e senso cívico, as designações ao final
minha designação neste verão, mas dos anos 2010 taxas de crescimento presa lhe dá um bônus de 220 rublos dos estudos ou os subbotniks pare-
penso em continuar aqui no próximo próximas de 10%, sem que as desi- (R$ 420) para cobrir uma parte do cem aceitos pelos cidadãos, mas sem
ano. Eu me acostumei com este lu- gualdades se acentuassem excessiva- aluguel. “E eles não têm o direito de entusiasmo. A luta contra a ociosida-
gar”, disse-nos Kossaia, para quem o mente. Embora 6% de seus habitan- nos demitir durante nossa designa- de tomou um rumo recentemente
sistema obrigatório é, em última aná- tes vivam abaixo do limite da ção”, acrescenta a jovem. Por que um mais repressivo, a ponto de exasperar
lise, “uma coisa boa”: “Isso me permi- pobreza, essa taxa continua bem empregador aceita um “jovem espe- uma parte deles. No início de 2017, al-
tiu conseguir imediatamente um tra- abaixo daquela de seu vizinho mais cialista” do qual não poderá se sepa- guns milhares de pessoas foram para
balho e uma experiência”. rico, a Polônia, que chega a 17,6%. As rar? “Porque ele sabe que temos boa as ruas protestar contra um decreto
A preservação de um sistema de pessoas desempregadas correspon- formação”, responde Korachova, sur- presidencial. Adotado em 2015, ele
colocação dos jovens no mercado de dem a 5% da população em idade de presa com a pergunta. sancionou uma multa de mais ou me-
trabalho comprova a escolha que fez trabalhar (sem levar em conta estu- A redução do número de universi- nos US$ 200 para as pessoas que não
a mais russa das repúblicas soviéti- dantes e aposentados).2 Trata-se do tários (de 430 mil em 2013 para 268 têm emprego declarado durante mais
cas de conservar algumas institui- único indicador disponível que per- mil em 2019), em consequência da de seis meses. Após ter concedido
ções de sua antiga economia planifi- mite abordar a taxa de desemprego, chegada à idade escolar dos que nas- emendas e depois ter declarado que-
cada. A Bielorrússia, que desfrutava uma vez que o governo tem má von- ceram num período de baixa taxa de rer mirar o trabalho clandestino e as
na época do mais alto índice de de- tade para reconhecer essa categoria natalidade, pode explicar a adesão atividades que escapam do imposto
senvolvimento humano (medido pe- de “ociosos”. “As pessoas devem tra- das empresas privadas ao dispositi- (empresas de apostas on-line, loca-
la renda, alfabetização e expectativa balhar”, declarou o presidente em vo. No entanto, às vezes o Estado tem ção de apartamentos etc.), o governo,
de vida) e industrial da URSS, jamais uma visita, em agosto de 2017, aos de se esforçar para colocar os diplo- pouco habituado às manifestações,
foi um polo de contestação do poder empregados de uma empresa de lati- mados em postos que correspondam finalmente recuou.
central de Moscou. Em 1991, o país cínios localizada no oeste do país. às suas qualificações, principalmen-
conquistou sua independência quase “Se não os estimularmos a um traba- te nas áreas de ciências humanas ou *Loïc Ramirez é jornalista.
inesperadamente, levado pela onda lho socialmente útil, criaremos uma da física, nas quais, respectivamente,
1   O s custos universitários na Bielorrússia, em
nacionalista que agitava os países vi- categoria que só poderá aumentar. apenas 80,7% e 76,8% encontram em- geral, estão entre 800 e 1.200 euros por ano.
zinhos (países bálticos, Ucrânia). Te- Isso não é admissível.”3 prego em sua especialidade (em com- 2   “Labour and employment in the Republic of
ve início, então, um período de tran- Para se adaptar às leis do merca- paração com 88,4% em média). Belarus” [Trabalho e emprego na República
da Bielorrússia], National Statistical Commi-
sição durante o qual o governo do, o raspredelenie se tornou mais fle- Longe de reservar um destino ex- tee of the Republic of Belarus, Minsk, 2018.
provisório, dirigido por Stanislav xível ao longo dos anos. Unicamente traordinário para seus jovens, o regi- 3   “ Working trip to Brest” [Viagem de trabalho a
Shushkevich, inaugurou uma pri- destinadas a atender às demandas do me de Lukashenko faz do trabalho Brest], 11 ago. 2017. Disponível em: <http://
president.gov.by>.
meira onda de privatizações. setor público colossal na época da um dever cívico para todos os cida- 4   Ronan Hervouet e Alexandre Kurilo, “Travailler
Em 1994, para surpresa geral, a URSS, atualmente as designações po- dãos e o amálgama da sociedade. Ao ‘bénévolement’ pour la collectivité: les sub-
primeira eleição presidencial colo- dem ocorrer também no âmbito do passear pelas ruas, em geral impecá- botniki en Biélorussie postsoviétique” [Traba-
lhar “voluntariamente” para a coletividade: os
cou um ponto final nessa política li- setor privado. Basta que uma empre- veis, seja na calçada de uma grande subbotniks na Bielorrússia pós-soviética],
beral. Lukashenko consolidou o Po- sa se declare “com demanda de pes- cidade ou no acostamento de uma es- Genèses, n.78, Paris, 2010.
32 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

O CAPITALISTA QUE VIVE EM CADA UM DE NÓS

O pequeno-burguês gentil
Como combater uma ordem social que instalou em nós mesmos sua visão de mundo?
Esse dilema atravessa a obra do sociólogo Alain Accardo, assim como a figura
que o encarna: o pequeno-burguês gentil, dividido entre suas aspirações frustradas
e sua revolta represada. A crise climática e a exigência de uma ecologia anticapitalista
serão o fim desse gênero humano?

POR ALAIN ACCARDO*

A
inda que na corrida pelo capi-

© Jeanne Menjoulet
tal industrial e financeiro a
grande burguesia tenha man-
tido suas vantagens clássicas,
em matéria de acúmulo do capital
simbólico e cultural (em particular
em sua forma escolar-universitária)
a pequena burguesia ultrapassou
sua “irmã mais velha”. Mesmo não
sendo a criadora, ela contribuiu con-
sideravelmente para o desenvolvi-
mento e a difusão no mundo de um
estilo de vida caracterizado pelo po-
der total do dinheiro, o culto à audá-
cia empreendedora, o movimento
dos negócios, a propensão ao consu-
mo compulsivo e o hedonismo a cur-
to prazo; tudo isso maquiado por
uma espiritualidade de fachada.
Esse “novo espírito do capitalis-
mo”, como o batizaram Luc Boltans-
ki e Ève Chiapello,1 conseguiu, desde
antes da grande crise de 2008, colo-
nizar as mentes e as sensibilidades, a
ponto de penetrar até mesmo nos
meios em princípio mais refratários
ao espírito burguês e nos mais favo-
ráveis tradicionalmente aos valores
do humanismo progressista ou aos
ideais do socialismo revolucionário.
Para Boltanski e Chiapello, essa
orientação ideológica estava forte-
mente correlacionada ao espaço ca- Manifestação pelo clima em Paris: “menos ricos, mais abelhas”
da vez maior ocupado pela nova pe-
quena burguesia nos altos cargos, os ciada em 1968, que, em meio século, frutos da terra] (1897), intimava cada da Antiguidade. De Madame de La
diplomados em estudos superiores, como podemos perceber hoje, con- um a fazer de sua própria pessoa, em Fayette a Marguerite Duras, de Mon-
os universitários, os artistas e outros duziu as classes médias (não sem se relação a e contra todos os tabus, “o taigne a Jean-Paul Sartre ou André
grupos e categorias de novos calou- espalhar, por contágio simbólico de mais insubstituível dos seres”. Da Malraux, a literatura e, mais ampla-
ros, jovens e ricos em capital cultu- certa maneira, para as classes popu- mesma forma, Paul Valéry, em seu mente, todas as artes ocidentais não
ral, que se multiplicavam com as ne- lares urbanizadas) a se perceberem e Narcisse [Narciso] (1890), incitava ca- pararam de exaltar as potências pes-
cessidades sociais cada vez maiores consequentemente se comportarem da um a “se perder em si mesmo” pa- soais do eu e de exortar cada indiví-
de estrutura, educação, informação, como se tivessem se tornado môna- ra aprender a “se cuidar e se unir [ao duo a fazer de sua vida uma obra de
consultoria, apresentação, diverti- das2 incapazes de atribuir a si mes- seu] inesgotável eu”. Em si, tal pro- arte admirável, incomparável a qual-
mento etc. mas outra moeda, outro ideal de vi- grama poderia ser totalmente sedu- quer outra, esquecendo-se de preci-
Os trabalhadores dos anos 2000 da, que não fosse o proclamado pelos tor se não tivesse implicado, entre sar que, entre as condições concretas
já eram encarregados das correntes, grandes pregadores do egotismo pe- outras condições permissivas, a ins- para o sucesso de toda vida singular,
mas muitas delas já pareciam menos queno-burguês da primeira metade tauração da pior concorrência indivi- existe inevitavelmente, num sistema
pesadas. Pelo menos era para con- do século XX. dualista. Além disso, essa injunção ultraconcorrencial do qual não so-
vencê-los disso que a Escola da Re- Esse ideal, tal qual foi gravado por moralmente mortífera se encontra mos capazes de fazer abstração, a
pública e a Imprensa do Capital tra- André Gide (em particular) no már- sob a pluma de todos os nossos gran- ruína e até mesmo o assassinato, em
balhavam. Eles caminhavam a more das Nourritures terrestres [tra- des autores e pensadores desde pelo maior ou menor escala, de certo nú-
passos largos rumo à mutação ini- duzido para o português como Os menos o Renascimento e a retomada mero de outros.
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 33

DESIGUALDADE, cena, mas com um elenco diferente. ca por que a maioria de nossos pre- pela notoriedade, mas a ecologia co-
OSTENTAÇÃO E DESPERDÍCIO O jovem protagonista Macron apare- tensos especialistas não vê geralmen- mo sensibilidade de massa se expres-
Redescobrimos hoje com consterna- ce brilhando, se não como o arquéti- te o aparecimento do novo no antigo. sando em um projeto coletivo global
ção o que a crítica marxista eviden- po do pequeno-burguês de nosso de transformação social – aparece
ciava desde 1844: que o discurso do tempo, pelo menos como seu tipo fi- O ESPECTRO DA ECOLOGIA para um número cada vez maior de
humanismo abstrato, idealista e nal. Nesse sentido, ele é o ícone máxi- Foi assim que, ao longo dos anos 2010, cidadãos como a única saída para a
grandiloquente sobre a essência do mo do Homo economicus engendrado a maré crescente da sensibilidade crise da civilização em que estamos.
homem universal e sua habilidade pelo capitalismo do século XXI, o ecológica pouco a pouco submergiu Assim como o “espectro do comunis-
para dominar o mundo tem uma irri- neoaristocrata da sociedade da abun- toda a paisagem, de maneira quase mo” fazia tremer a Europa do século
tante tendência a fechar os olhos pa- dância, da desigualdade, da ostenta- silenciosa, a despeito do barulho mi- XIX, o espectro da ecologia faz tre-
ra a sorte concreta dos homens reais e ção, do exibicionismo e do desperdí- diático feito em volta das vãs tentati- mer o mundo do grande capital atual.
para a submissão das massas às oli- cio, o modelo por excelência proposto vas de recuperação eleitoreira da eco- Nisso reside a única grande novi-
garquias. Nos anos 2000, os porta-vo- a nossos alunos das boas escolas. logia pelos governos sucessivos. dade de hoje, e a única esperança.
zes do neoliberalismo tanto de direi- Infelizmente para ele e seus se- Nossas classes dirigentes, que acredi- Torna-se cada dia mais claro, princi-
ta quanto de esquerda já tinham melhantes, eles chegaram tarde de- tavam ter encadeado definitivamente palmente no espírito da jovem gera-
havia muito tempo perdido de vista, mais para deixar suas ambições se as classes médias ao carro do libera- ção, que não somente é preciso lutar
se é que alguma vez eles entenderam desenvolver livremente: a sociedade lismo de direita e de esquerda, pensa- para salvar o planeta, mas também
isso especificamente, que a moeda da da abundância está desmoronando. ram primeiro que, para devolver as que o combate para salvar o mundo
emancipação humana não tinha sido E, mesmo que eu não queira parecer classes médias preocupadas ao mun- natural é absolutamente indissociá-
formulada nem por Terêncio, com um colapsólogo, podemos perceber do produtivista e desviar sua raiva vel de um combate para mudar o
seu “Homo sum”,3 nem por Descar- as premissas de um terremoto de diante do horror capitalista, bastaria mundo social. Nesse nível de refle-
tes, com seu “Cogito ergo sum” [“Pen- grande escala. confiar uma pasta ministerial, mais xão, a noção de ecossistema para de
so logo existo”], mas pelo “Enrique- Tocamos aí no único aspecto im- honrosa do que efetiva, a qualquer re- ser um conceito-chave das ciências
çam-se” de um certo François Guizot, portante da realidade atual que po- presentante da pequena burguesia da vida e da terra para se igualar, em
historiador universitário que traba- demos considerar verdadeiramente verde ávido por entrar na carreira. extensão e em compreensão, ao con-
lhava no governo do “rei burguês” como uma novidade capaz de provo- ceito de “sistema social”.
Luís Felipe (1830-1848). Sabemos co- car mudanças essenciais no curso de Em outros termos, se queremos
mo, na verdade, a injunção de Guizot, nossa história: a afirmação, durante Tal qual Saturno realmente salvar os ecossistemas hu-
que se tornou a palavra de ordem de a última década, da consciência eco- devorando seus filhos, manos, devemos tirá-los do capitalis-
toda a pequena burguesia, foi o pre- lógica, sob a forma tanto de um dis- mo. Ou melhor, tirar o capitalismo do
lúdio do empobrecimento sem limi- curso científico sobre as relações en-
o capitalismo estende gênero humano. Mas o sistema social
tes e sem remorso do proletariado. tre as atividades humanas e a gestão sua voracidade a tudo capitalista continua existindo e em
Foi esse, em essência, o ponto de do meio ambiente natural, como de o que existe toda parte, conjuntamente, sob duas
vista que tentei expressar ao escrever uma doutrina filosófico-antropológi- formas: uma, objetivada em estrutu-
Le Petit-bourgeois gentilhomme [O pe- ca sobre o pertencimento do homem ras, em instituições e em distribui-
queno-burguês gentil] há quase vinte à natureza – ideias e opiniões já ex- Como pudemos constatar, essas ções externas, a ser combatida por to-
anos. Aparentemente, muita água cor- pressas há muito tempo, sem grandes tentativas da dita esquerda do gover- das as vias tradicionais da luta
reu desde então sobre o plano dos reverberações, é preciso reconhecer. no, depois da direita macronista, pa- política; a outra, interiorizada e in-
eventos ou das conjunturas. A moda, Ao contrário, nesses últimos anos ra implantar no tronco capitalista corporada em um certo tipo de sujei-
inclusive, se instalou nas redações, nós assistimos a um destes movimen- um enxerto ecologista até agora con- to, que podemos personificar sob os
desde os resultados inesperados da tos do conjunto do corpo social que sistiram num fiasco. Isso só pode traços de um “pequeno-burguês gen-
eleição presidencial francesa de 2017 e as ciências sociais sempre tiveram di- surpreender aqueles que ainda não til”. E este está bem enraizado, a pro-
depois das eleições legislativas que se ficuldade em apreender porque elas entenderam que tal projeto é essen- fundidades variáveis, em cada um de
seguiram, de falar de “novo mundo”, têm frequentemente tendência a tra- cialmente incompatível com a lógica nós. O que se segue é que o combate
de “ruptura” com o antigo, e de reto- tar o coletivo como interindividual e do desenvolvimento capitalista. Esta contra o sistema capitalista ainda é
mar em forma de informação jornalís- porque é praticamente impossível obriga qualquer governante e qual- também, de certa maneira, um com-
tica, sem nenhuma distância crítica, perceber com precisão onde, como e quer gestor a vender tudo o que hou- bate contra uma parte de nós mes-
os “elementos de linguagem” dos co- por que exatamente as incontáveis ver, incluindo a própria mãe, a natu- mos, contra o pequeno-burguês
municantes do regime que se esfor- individualidades que formam um reza, se houver mercado para isso. É oportunista que cochila em cada um
çam para repetir que a chegada de grupo social mudam de direção com claro que, para introduzir a ecologia de nós, pronto a acordar quando as
Emmanuel Macron inaugurou uma um conjunto surpreendente, como na política, não basta alistar qual- sereias cantarem.
revolução – como já anunciava o título um bando de pássaros ou um cardu- quer jovem acólito ambicioso ou in-
de sua campanha (Juntos França). me de peixes que, na aparência, não gênuo e colar na sua testa a etiqueta *Alain Accardo, sociólogo, é autor da obra
Mas, se examinarmos um pouco o que obedecem a nenhum sinal isolado de “ecologista de plantão” para resol- Le Petit-bourgeois gentilhomme. Sur les
aconteceu sob o ângulo das lógicas es- perceptível. ver o problema. Nem a França, nem a prétentions hégémoniques des classes
truturais e da história coletiva, só po- A razão é que esses movimentos Europa, nem o planeta vão melhorar. moyennes [O pequeno-burguês gentil. So-
demos concluir que o movimento inseparavelmente coletivos e indivi- Tal qual Saturno devorando seus fi- bre as pretensões hegemônicas das clas-
inercial da sociedade capitalista nun- duais não têm um maestro único, mas lhos, o capitalismo estende sua vora- ses médias], nova edição a ser publicada
ca conheceu mudanças decisivas. são provavelmente orquestrados, nas cidade a tudo o que existe, sem se pela Agone, Marselha, 2020.
Em relação a isso, até mesmo o populações humanas em todo caso, preocupar com sua própria reprodu-
surgimento na cena política e na es- por um mecanismo de comunicação ção a longo prazo: recursos minerais, 1   L uc Boltanski e Ève Chiapello, Le Nouvel Es-
prit du capitalisme [O novo espírito do capita-
fera do Estado dos agentes do impro- imediata de habitus a habitus4 nos in- vegetais, animais e até mesmo hu- lismo], Gallimard, Paris, 1999.
viso macronista não tem nada de no- divíduos moldados por uma mesma manos, tudo passa, tudo está à ven- 2   Para o filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz
vo. No plano das estruturas, tanto matriz coletiva: mesmas reações às da, tudo se torna mercadoria e di- (1646-1716), as mônadas, unidades singula-
res que constituem uma totalidade autossufi-
subjetivas quanto objetivas, o atrope- mesmas condições estruturais de nheiro. Até que o planeta inteiro se ciente, “não têm janelas pelas quais qualquer
lo da história parece confirmar a pre- existência e aos mesmos estímulos torne um vasto aterro de lixo fedo- coisa possa entrar ou sair” (monadologia).
dileção de La Bruyère (no século conjunturais. Essa forma de sensibili- rento, tóxico e inabitável. A menos 3   “ Homo sum, nihil humanum mihi alienum
puto” [“Eu sou um homem, eu penso que
XVII): “Em cem anos, o mundo ainda dade propriamente social é por natu- que se pare essa loucura assassina nada de humano é alheio a mim”], Terêncio
subsistirá integralmente: será o mes- reza condenada a escapar às análises antes que ela destrua tudo. (século II a.C.).
mo teatro e o mesmo cenário, não se- interacionistas dos cientistas políti- É aí que a ecologia – não a ecologia 4   Segundo o sociólogo Pierre Bourdieu, o habi-
tus é um sistema de disposições incorpora-
rão mais os mesmos atores”. É, de fa- cos de plantão e à miopia pontilhista de caras e bocas de madames e pe- das pelos indivíduos ao longo de sua sociali-
to, sempre o mesmo repertório em dos institutos de pesquisa. Isso expli- queno-burgueses gentis apaixonados zação e que varia em função da origem social.
34 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

UNESCO, FÁBRICA DA DENOMINAÇÃO DE ORIGEM CONTROLADA (DOC) CULTURAL

Músicas certificadas
Valorizar um patrimônio imaterial da humanidade parece uma medida benéfica. No entanto, as características
estabelecidas pela Unesco para definir quem destacar implicam valores questionáveis. E as consequências
dessas práticas de rotulação estão eivadas de ambiguidades, particularmente no caso da música
POR ÉRIC DELHAYE*

Q
ual é o ponto comum entre a ções orais e as práticas sociais, rituais Auguste Perret), os que entram são do cantou, em “Revolution” (1974):
cosmovisão andina dos Kalla- ou festivas... O rótulo é um sucesso: determinados por um comitê cientí- “Jamais deixe que um político te faça
waya, na Bolívia, a arte do piz- abertas em 2008, as listas totalizam fico. Ao contrário, no caso do patri- um favor/ Ou ele vai querer te contro-
zaiolo napolitano, a colheita do hoje mais de quinhentas referências mônio vivo, a Unesco insiste na com- lar para sempre”. O que ele terá pen-
teucrium no Monte Ozren, na Bós- originárias de 122 países. Mas quem petência das próprias comunidades. sado da inscrição do reggae no PCI
nia-Herzegovina, e a gestão do perigo decide o que entra? E quais são as Muitas vezes agrupados em associa- em novembro de 2018? Na Jamaica,
de avalanche na Suíça e na Áustria? consequências disso? Eleger para o ções, os que praticam a atividade so- esse estilo musical contribui muito
Nenhum, exceto que todas essas prá- PCI a tapeçaria de Aubusson e a ren- licitam sua inscrição no inventário mais para a indústria do turismo
ticas foram rotuladas pela Organiza- da de agulha tecida com o ponto de nacional do PCI, preenchendo um quando ele é institucionalizado do
ção das Nações Unidas para a Educa- Alençon – para citar dois exemplos dossiê que impõe especialmente que que quando é associado a rastafáris
ção, a Ciência e a Cultura (Unesco) franceses – não parece que vá susci- se comprove que a comunidade adere fumantes de haxixe. “O poder jamai-
como pertencentes ao patrimônio tar objeção, pelo menos se as consi- ao projeto maciçamente. Em seguida, cano lutou contra o reggae durante
cultural imaterial (PCI) e com neces- derarmos duas formas de artesanato os candidatos passam pelo filtro do anos, antes de compreender que ele
sidade de salvaguarda. Como se vê, o secular que merecem proteção. Em Ministério da Cultura de seu país, era mais lucrativo que a indústria na-
campo é amplo. compensação, a questão se complica que decide qual será levado até a cional da bauxita, em dificuldade”,
De acordo com a Unesco,1 o PCI quando se trata dos estilos musicais e Unesco, usando critérios políticos ridicularizou um dos apresentadores
engloba o que, “transmitido de gera- das práticas que lhes são indissociá- que incluem o nepotismo e as reti- da BBC, Dotun Adebayo, no The
ção em geração, é recriado perma- veis. Ora, elas representam mais de cências comerciais. “Dê uma ferra- Guardian de 1o de dezembro de 2018.
nentemente pelas comunidades e um terço (176) dos componentes re- menta a um Estado e ele fará uso dela O rótulo torna-se um trunfo turístico
grupos em função de seu meio, de gistrados no PCI. O que deve ser iden- para fazer política. É seu trabalho, e um fator de folclorização.
sua interação com a natureza e de sua tificado como “transmitido de gera- mas é um desvio dos objetivos da No entanto, mais do que a mer-
história, e lhes dá um sentimento de ção em geração” e como algo que dá Convenção”, lamenta o antropólogo cantilização – previsível –, o que im-
identidade e de continuidade, contri- um “sentimento de identidade”? Cécile Duvelle, que ocupou o posto porta é, sem dúvida, o significado da
buindo para promover o respeito à No caso do patrimônio mundial de chefe da seção do PCI na Unesco rotulação para esses estilos musicais
diversidade cultural e à criatividade material (os bens culturais ou natu- de 2008 a 2015.2 e para os grupos que os reivindicam.
humana” – em outras palavras, os co- rais excepcionais, como a gruta Bob Marley parece ter expressado Na França, a Federação dos Atores e
nhecimentos acumulados, as tradi- Chauvet ou Le Havre, do arquiteto um ponto de vista semelhante quan- Atrizes de Músicas e Danças Tradi-
cionais (FAMDT), que reúne uma
Reggae jamaicano virou patrimônio da Unesco: trunfo turístico e fator de folclorização centena de estruturas, se alinhou
atrás dos objetivos da Unesco. Mas a
reação dos arautos dos três únicos es-
tilos musicais inscritos no PCI para a
França é esclarecedora. Esses três gê-
neros têm origem em comunidades
que, em diferentes contextos e graus
variados, manifestaram sua oposição
ao centralismo: maloya, em La Réu-
nion, cantu in paghjella, na Córsega
(inscritos em 2009), e gwoka, em
Guadalupe (em 2014).
Originária da escravidão e, por is-
so, degradada, a maloya foi proibida
após suscitar suspeita ativa das auto-
ridades, particularmente de 1959 a
1981, quando era apoiada pelo Parti-
do Comunista de La Réunion (PCR).
Fundador do PCR e presidente do
conselho regional de 1998 a 2010,
Paul Vergès defendeu a inscrição da
maloya no PCI com base na edifica-
ção de uma MCUR – Maison des civi-
lisations et de l’unité réunionnaise
[Casa das Civilizações e da Unidade
de La Réunion]. Carpanin Marimou-
© Eddie Mallin

tou, principal organizador desse pro-


jeto, relata: “Foi preciso a intervenção
de um terceiro – a Unesco – para que
os que a praticam se sentissem dig-
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 35

nos. Anteriormente, eles eram des- dade seria, segundo ele, sinônimo de tinados principalmente à remunera- rais de uma sociedade [...] não tem
prezados pela escola, pela institui- “recuo, medo e xenofobia” e, portan- ção de seis “transmissores” que mais nenhuma espécie de significa-
ção, pela burguesia e por seus to, contrária à vitalidade de músicas atuam em ambiente escolar. Segun- do. Ou melhor, uma vontade como
próprios filhos, que se tornaram pe- que envolvem “mudança, movimen- do a avaliação de Petru Guelfucci, essa significa praticamente que o que
queno-burgueses”. A iniciativa da to e interculturalidade”. No entanto, que participa do projeto desde sua se busca é se opor à própria vida de
MCUR deu uma guinada quando a ele admite que a inscrição possa gênese e contribuiu para a renovação uma cultura.”4
região passou para a direita e os pro- constituir um motivo de orgulho.3 do canto em língua corsa na década Após a aceitação pela Unesco de
jetores iluminados em prol da inscri- Instrumentalização política e co- de 1970 com o grupo Canta U Populu centenas de inscrições nos primeiros
ção se desviaram. Nenhum estudo mercial, petrificação estética... A Corsu, diversas iniciativas permiti- anos, as regras mudaram: cada país
estabeleceu que o dinamismo atual Unesco, contudo, é movida pelas me- ram dobrar, em dez anos, o número pode inscrever apenas uma atividade
da maloya, amplamente praticada e lhores intenções e espera, antes de dos praticantes aguerridos, que pas- a cada dois anos. Então, o ritmo desa-
objeto de múltiplas fusões, resulte da mais nada, contribuir para a regene- sou de trezentos para seiscentos, celerou muito. Mas a limitação não
rotulação. O mais célebre embaixa- ração dessas músicas por suas pró- mesmo que, desde 2018, eles traba- atinge os dossiês multinacionais, do
dor desse gênero musical, Danyèl prias comunidades. Segundo Séveri- lhem voluntariamente, pois o acordo que poderia se beneficiar a rumba ca-
Waro, continua a denunciá-la como ne Cachat, diretora do Centro de financiamento não foi renovado talã, um gênero formalizado nos
paternalista: “Não somos contra o Francês do Patrimônio Cultural Ima- em razão de dissensões internas na anos 1950 em Barcelona. Hervé Pa-
apoio, mas não esperamos o olhar terial (CFPCI), “a inscrição é apenas associação. rent, que coordena essa candidatura
dos turistas para nos orgulharmos de uma ferramenta para reunir em fede- franco-espanhola na região da Occi-
nossa cultura. Ela é, de fato, funda- ração os que praticam a atividade, tânia, salienta a importância de um
mentalmente rebelde, porque a Re- mobilizar os políticos e renovar os O rótulo é um sucesso: possível reconhecimento da popula-
pública indivisível não reconhece públicos. E isso só pode funcionar se abertas em 2008, as ção cigana. “Uma vez que não se cor-
nossas diferenças. Inscrita ou não, os processos forem bem conduzi- re um grande risco”, comenta. E con-
devemos continuar a brincar, cantar, dos”. É o mesmo que dizer que a fer-
listas totalizam hoje tinua: “A rumba não pode ser fixada.
transmitir e lutar”. ramenta não dá a menor garantia de mais de quinhentas Como os ciganos, que adaptam seu
Em Guadalupe também se ouvem resultados, principalmente na área referências originárias modo de vida à sociedade ao redor,
objeções. “O gwoka é uma expressão dos recursos públicos. Assim, por de 122 países ela sempre vai conseguir dar uma es-
identitária que não pode ser ao mes- ocasião de sua última edição, o Festi- capada”. Mas, como as outras, ela de-
mo tempo do escravo e do senhor”, val de Gwoka de Sainte-Anne – cujo verá ter paciência durante vários
declara Jean-Claude Nelson, atual precursor, Félix Cotellon, fundou No entanto, ainda de acordo com anos. No Ministério da Cultura, uma
conselheiro regional de Guadalupe também a associação Rèpriz, na ori- Guelfucci, se a sobrevivência do dezena de dossiês está pronta, mas
(representante da esquerda) e cantor gem da demanda de rotulação – la- paghjella continua ameaçada, não é nenhum diz respeito à música. Os
há 25 anos do grupo Solèy Nwè. Críti- mentou, mais uma vez, uma redução somente por uma questão de dinhei- próximos componentes inscritos pe-
co ferrenho da inscrição no PCI, ele de suas subvenções. E uma feira pú- ro: “Em meu povoado, Sermanu, per- la França na lista da Unesco pode-
não reconhece que ela tenha qual- blica acaba de ser criada para relan- to de Corte, aprendemos ouvindo os riam ser a yole ronde da Martinica
quer efeito benéfico: “Ao classificar o çar o plano de salvaguarda... velhos nas vigílias. Atualmente, a (uma embarcação de pescadores) e a
gwoka, embora ele não estivesse em Na Córsega também se apresen- maior parte deles já morreu, e os jo- baguete de pão.
perigo, corremos o risco de congelá- tam dificuldades, mas não unica- vens preferem modos de vida urba-
-lo. Por sorte, jovens se dedicam a ele mente relativas a fundos. O problema nos incompatíveis com o canto em *Éric Delhaye é jornalista.
e o renovam..., mas a inscrição não é, sobretudo, de “renovação”. O cantu coletividade. Mas acreditam nele.
tem a menor importância nisso”. A in paghjella, um canto a três ou qua- Nos corredores dos estabelecimentos
propósito, como um eco a essa ques- tro vozes, foi inscrito na lista do PCI visitados, ouvimos algumas vezes
tão, o etnomusicólogo Luc Charles- com necessidade de salvaguarda ur- alunos que o cantavam entre si”. É o 1   A Convenção para a Salvaguarda do Patrimô-
-Dominique sustenta que os antro- gente; uma categoria estimada, que caso de ver isso como uma repetição nio Cultural Imaterial foi ratificada em 2003.
2   Salvo menção contrária, as citações são ex-
pólogos são “unânimes em dizer que conta com menos de sessenta com- do que o escritor e etnólogo Michel traídas de entrevistas dadas ao autor.
a patrimonialização é extremamente ponentes no mundo, entre eles ape- Leiris já salientava em 1950? “A partir 3   Luc Charles-Dominique, “La patrimonialisa-
perigosa” porque “acaba criando um nas um na França, e que abre a possi- do momento em que toda cultura tion des formes musicales et artistiques. An-
thropologie d’une notion problématique” [A
discurso pernicioso sobre a autenti- bilidade de habilidades renovadas e aparece em perpétua evolução e co- patrimonialização das formas musicais e artís-
cidade”. Querida dos tradicionalis- até mesmo apoios financeiros. Desde mo objeto de constantes superações ticas. Antropologia de uma noção problemáti-
tas, atribuída a um território como 2015, o Ministério da Cultura conce- à medida que o grupo humano que é ca], Ethnologies, v.35, n.1, Quebec, 2013.
4   Michel Leiris, “L’ethnographe devant le colonia-
uma “DOC [denominação de origem de à associação Cantu in Paghjella seu suporte se renova, a vontade de lisme” [O etnógrafo diante do colonialismo],
controlada] cultural”, essa autentici- um apoio anual de 45 mil euros, des- conservar as particularidades cultu- Les Temps modernes, n.58, Paris, ago. 1950.
36 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

ENTREVISTA

As intensidades de Gil
Confira entrevista com o músico e compositor Gilberto Gil
POR CRISTIANO NAVARRO E GERALDO ADRIANO CAMPOS*

“M
eu papo reto sai sobre

© Cristiano Navarro
patins, a deslizar sobre
os alvos e as metas.”
Tal qual o trecho da
música “OK”, de seu último álbum, as
palavras e opiniões de Gilberto Gil
também deslizam sem perder a con-
tundência. Sobre o palco do Festival
de Artes de São Cristóvão, em Sergi-
pe, ladeado por edificações religiosas
na praça construída no início do sé-
culo XVII, Gil parece fundir-se ao
próprio tempo. O vigor, característico
de suas apresentações, escorre ao pú-
blico, composto por milhares de jo-
vens. A força da performance con-
trasta com um movimento pessoal
que o próprio artista, que se aproxi-
ma das oito décadas de vida, descreve
como uma redução consciente da in-
tensidade. Se a serenidade nunca foi
um afeto estranho à figura e à obra de
Gil, mesmo em seus momentos de
maior fulgor inventivo e força musi-
cal, é inegável a suavidade que atra-
vessa OK OK OK. Ao mesmo tempo, o
que está em evidência é um traço po-
lítico e estético de sua trajetória: há
um corpo que se apresenta, se expõe
e reivindica a vida. Mas, desta vez,
um corpo que reconhece e tenta con-
tornar limites, que envelhece, mas
não deixa de reverberar o presente.
Gilberto Gil permanece um agudo
leitor do mundo. Enquanto homena-
geia seus médicos e acolhe a chegada
do neto, Gil atualiza a música “Pela Gilberto Gil em entrevista no Convento de São Francisco, município de São Cristovão (SE)
internet”, sem perder a relação políti-
ca com aquilo que se apresenta como GILBERTO GIL – Eu acho que OK OK balhava fusões mais complexas de ções, quando eu estava com 75 anos.
novo. “O desejo agora é garimpar/ OK é um disco de público interno. O ritmos e gêneros. É um disco de sam- Quer dizer, saindo de um período de
nas terras das serras peladas vir- público referencial para quem as bas, sambas-canções, canções sim- busca da superação de dificuldades
tuais/ As criptomoedas, bitcoins e canções se dirigem e do qual as can- ples e toadas, com um instrumental com o corpo, dificuldades muitas de-
tais/ Novas economias, novos capi- ções emanam são os netos, bisneta, muito simples. É um disco que, com las associadas ao envelhecimento, ao
tais”. Este momento de inflexão pes- os médicos que cuidaram da minha relação aos anteriores, tem uma re- cansaço da condição material. Então,
soal é bom para pensar sobre os vá- saúde... Meus afetos mais recentes e dução do tônus musical, da intensi- é nesse sentido que eu chamei de o
rios papéis desempenhados ao longo alguns mais antigos, como é o caso dade musical. Um disco mais calmo, primeiro disco da minha velhice. Há
de sua trajetória – seja como verea- da minha mulher, para quem eu fiz mais suave. também o ponto de vista daquela in-
dor, ministro, compositor, músico, mais uma vez uma canção. Enfim, é tensidade à qual me referi. É possível
comunicador, pai, avô, paciente ou um disco, nesse sentido, de público No making of de OK OK OK, você que essa baixa intensidade, esse tô-
como embaixador informal de uma interno. Ao mesmo tempo, ele foi pa- diz que esse é o primeiro disco da sua nus mais suave, também se refira um
afrodiplomacia “transinstitucional” ra os meios de difusão, rádio, televi- velhice. Você relaciona essa velhice pouco à questão da idade.
brasileira. Com menos tônus, mas são e internet, todo esse campo da di- com a quantidade de tempo que vi-
um corpo que segue vibrando. fusão musical. Ele foi para lá também veu. Mas qual é o marco do começo Na faixa que abre OK OK OK você
e se tornou um disco de público ex- dessa velhice? E como ela se expressa fala sobre o ato de opinar. Opinar so-
LE MONDE DIPLOMATIQUE terno, e acho que ele se equilibrou esteticamente? bre as coisas e as situações. Você se
BRASIL – O disco OK OK OK remete a bem entre os dois públicos. Do ponto A velhice é uma forma de balizar, sente muito cobrado pelas pessoas so-
afetos, amigos, família e carinhos. de vista estrutural, da coisa musical, estabelecer uma marca no tempo. bre sua opinião?
Como foi a construção dele? O que ele é um disco bem mais simples do que Aos 77 anos, o processo do disco foi A gente vem de uma geração que
representa? iniciativas anteriores em que eu tra- todo ele, composições e depois grava- de certa forma inaugura a coisa da
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37

militância na opinião pública, com com a natureza. Esse conjunto de lito- expansão natural no seu modo de as bifurcações. Essa coisa de plantar
posicionamentos a respeito dos cos- ral e sertão, mar-sertão, do Nordeste agir, propiciada por esse alcance dos uma bandeira de um princípio úni-
tumes, das dimensões existenciais brasileiro tem uma importância ex- meios de comunicação, como os co, uma monocultura da política,
de cada um, da política, das várias traordinária. Aí nasceram muitos grandes shows. Por exemplo, você fa- monocultura da religião, monocul-
questões que dizem respeito à vida poetas, muitos escritores, artistas lou sobre quando a gente foi a Lagos tura do entretenimento, monocultu-
social. Então eu, Caetano, Chico plásticos, dramaturgos, músicos. En- para o Festac em 1977. A gente se ra da informação, tudo isso, me pa-
Buarque, Geraldo Vandré, Milton fim, brasileiros, em Pernambuco, na apresentou em vários lugares como rece, não cabe mais.
Nascimento, esse bando de gente da- Bahia, no Ceará, no Maranhão. Mui- uma banda brasileira, cantando coi-
quela geração, mais aqueles que vie- tos artistas populares, poetas popula- sas brasileiras, rememorando as raí-
ram depois e que fortaleceram esse res, todos os repentistas que estabele- zes africanas e expondo os laços “Ali está um exemplo
processo de militância na opinião ceram, já de longa dada, o rap popular atuais que caracterizam essas rela- dessa diplomacia
pública, nós somos, por isso mesmo, brasileiro. Tudo isso, a crônica sobre ções de raízes de lá e de cá... Esse é o
cobrados. A cobrança já está no pró- esses povos, a crítica sobre as assime- papel da arte e o papel do artista.
transinstitucional, no
prio fato de que nos dispomos a tra- trias sociais e econômicas... tudo isso Plenário da Organização
balhar nesse campo, da opinião pú- no Nordeste ganhou dimensões mais Recentemente, as pessoas recupe- das Nações Unidas em
blica, com derivativos dessa evidentes do que em outras partes do raram nas redes sociais sua apresen- Nova York”
classificação, como formadores de Brasil, um país amplo com várias eco- tação com o então secretário-geral da
opinião. Portanto, somos cobrados logias sociais e ecologias naturais. ONU, Kofi Annan. Em geral, esse res-
necessariamente pela própria noção gate se fez com bastante nostalgia e Seu período à frente do Ministério
desse modo de ser artístico. orgulho do que fomos, poderíamos da Cultura é reconhecidamente um
ter sido ou também daquilo que não marco entre os ministros da área. Ha-
Você acha que a sociedade atual “A gente vem de somos mais. Aquilo é símbolo de um via uma concepção de política públi-
lida mal com o silêncio ou com a pos- uma geração que momento? Que lembranças esse mo- ca para a cultura que, concordemos
sibilidade de uma pessoa responder mento traz? ou não, acabou pavimentando um
a uma pergunta dizendo simples-
de certa forma inaugura Ali está um exemplo dessa diplo- projeto que incluía, entre outras coi-
mente “não sei”? a coisa da militância macia transinstitucional, no Plená- sas, não apenas maior atenção às
A sociedade é cada vez menos pa- na opinião pública” rio da Organização das Nações Uni- culturas populares, mas também
ciente. Com o advento da internet, das em Nova York, diante de centenas uma preocupação com a dimensão
dessas ferramentas de condensação de diplomatas representantes das econômica da cultura, visão política
de públicos, de coletivos e de indivi- Ao longo de sua trajetória, seja co- várias nações do mundo. Um artista da cultura como indutor econômico.
dualidades também nos seus territó- mo artista, participando de eventos de uma dessas nações com a marca Estamos vivendo agora um desmonte
rios, nos seus recantos, essa coisa da como o Festival de Artes e Cultura Ne- muito forte na atividade cultural, das instituições e possibilidades de
exigência do posicionamento e da gras e Africanas (Festac), em Lagos, que é o Brasil. Um artista desses se financiamento da cultura no âmbito
opinião ficou ainda maior, se intensi- na Nigéria, em 1977, seja ocupando encontra com esse mundo diplomá- federal. Olhando para as ruínas dis-
ficou muito nos últimos anos. É daí cargos públicos, você exerceu um pa- tico internacional e compartilha o so, por onde recomeçar?
que nascem as grandes polarizações pel muito importante nas relações palco com o secretário-geral das Na- Terá de necessariamente recome-
de hoje, as radicalizações dos confli- entre o Brasil e a África, atuando co- ções Unidas, que é um africano, por- çar por um governo, uma instituição
tos entre os opostos no campo das mo uma espécie de embaixador in- tanto com aspectos muito natural- governamental tanto no plano cen-
ideologias. Nossa geração inaugurou formal, uma diplomacia paralela. mente associados aos brasileiros, tral da União, do governo nacional,
essa coisa midiática, da opinião pú- Assim como você, outros artistas ne- aos baianos, àquele artista – no caso, quanto na capilaridade dos estados e
blica circulante através das cabeças gros brasileiros, como Martinho da eu –, que estava ali representando dos municípios, que estejam na mão
de muitos de nós. A internet intensifi- Vila, assumiram esse papel, de diver- essas coisas todas. Então é um mo- de grupos identificados com essa no-
cou isso, dando essa condensação. sas formas, uma espécie de afrodiplo- mento muito interessante. A dúvida ção de cultura – essa noção pluralis-
macia brasileira. Como se dá a ela- de que ele [esse momento] possa se ta, abrangente, republicana e iguali-
Estamos aqui em São Cristóvão, boração dessa prática diplomática repetir ou se estender é razoável, tária, de cultura. Quer dizer, quando
uma das cidades mais antigas do específica? mas não impede que a gente conti- vier alguém para dizer que é impor-
Brasil, em um festival riquíssimo em É uma dimensão transinstitucio- nue trabalhando para que aquele ti- tante ter um ponto de cultura em um
cultura popular do estado de Sergi- nal. Naturalmente, porque é da cul- po de relacionamento se estenda não aterro sanitário, como fizemos, ou
pe. Há expressões que estão no cine- tura, das interações com as formas só ao Brasil, com seus polos de refe- uma biblioteca em um açougue em
ma, música e religião e que parecem religiosas, com as linguagens da pa- rências no mundo, mas também pa- Brasília. Um açougueiro que juntava
convergir numa identidade pan- lavra, linguagens do corpo, a dança, a ra outras nações, com seus polos de livros fez uma biblioteca e disponibi-
-nordestina. Qual tem sido a impor- festa, a celebração. Portanto, é uma referência no mundo, a Europa com lizou esses livros para muita gente.
tância dessa identidade para resistir diplomacia via cultura que o Itama- a África, as Américas com a Ásia, a Aquilo ali chegou aos ouvidos e olhos
ao avanço do fascismo na região raty ou o corpo diplomático de qual- África com suas diásporas pelo mun- do Ministério da Cultura e a gente foi
Nordeste? quer outro lugar não podem fazer. do inteiro... Tudo isso deve conti- lá se encontrar com isso. Os pontos
Manifestações extensivas nas vá- Eles fazem dentro da institucionali- nuar, até porque uma marca impor- de cultura eram, entre outros proje-
rias regiões do Brasil, com suas diver- dade chamada diplomacia. Nós, ar- tante da vida da sociedade mundial tos, essas tentativas de aproximação
sidades, e mais intensivas em algu- tistas, fazemos a trans ou interinsti- contemporânea é a fruição das lin- com a cultura vibrante e popular do
mas outras localidades tiveram papel tucionalidade. Quer dizer, acabamos guagens culturais. Nos serviços, no Brasil, que complementasse as cultu-
mais relevante na formação do ele- impactando, de certa forma, institui- entretenimento, no turismo, nas for- ras letradas que vêm das universida-
mento cultural brasileiro. E, no caso o ções dos vários campos da vida, nas mas de busca de conhecimento, nas des com o sangue pulsante da vida
Nordeste, esse trecho que vai da Bahia relações econômicas, nas trocas co- ciências... São essas inter-relações das pessoas, das ruas, dos lugares.
até o Pará, se quisermos, até o Amazo- merciais, nas comparações entre os que propiciam essa interinstitucio- Portanto, para retomar esse processo
nas, tanto na faixa litorânea que está vários Estados nacionais, nas suas nalidade diplomática. Isso tudo é é preciso que tenhamos governos que
ligada a uma exuberância climática e formações como Estados e como go- um desejo, um modo de ser da socie- venham a retomar essa noção. O que
a um estímulo do hedonismo existen- vernos e etc. O papel da cultura é es- dade atual de que os protofascismos, não é o caso desse governo.
cial mais natural quanto para o inte- se. E com o rádio, depois o disco, o ci- os neofascismos e o conservadoris-
rior dessas regiões, onde o semiárido nema, a televisão, tudo isso deu, mo embrutecedor não conseguem *Cristiano Navarro é jornalista; Geraldo
caracteriza uma dimensão muito du- especialmente aos artistas que se de- dar conta. E, penso eu, que não da- Adriano Campos é professor do Departa-
ra, muito rude da natureza, e estabe- dicaram às artes populares, o benefí- rão conta. Porque o desenvolvimen- mento de Relações Internacionais da Univer-
lecendo, portanto, uma relação tam- cio de uma ação cada vez mais ex- to da história da humanidade é para sidade Federal de Sergipe e integrante do
bém rude dos homens dessa região pandida. Eles têm um dado de a frente e para os lados, os desvios, grupo de samba Batuqueiros e Sua Gente.
38 Le Monde Diplomatique Brasil  JANEIRO 2020

MISCELÂNEA

livros internet
ressonância entre educadores(as) e educan- NOVAS NARRATIVAS DA WEB
do(as). A escuta. O diálogo. O reconhecimento. Sites e projetos que merecem seu tempo
Conta da importância da ação coletiva e co-
munitária para o sentido do trabalho de Freire, ISABOT
desde os tempos dos círculos de pais e pro-
fessores no Sesi de Recife, passando pelas ex- Uma ferramenta de acolhimento e infor-
O EDUCADOR: periências no interior do país e pelas incursões mação para uma internet mais segura
UM PERFIL DE internacionais. O coletivo. O comum. para as mulheres, que funciona pelo Mes-
PAULO FREIRE Em um dos trechos mais bonitos do livro, dá senger, do Facebook, ou pelo assistente
Sérgio Haddad, vida a um pensamento circulante de Freire, mas virtual do Google. Foi desenvolvida com o
Todavia que, quando fundamentado neste episódio, ga- apoio do Facebook e do Google, pelo Co-
nha mais densidade. Conta de quando Paulo nexões que Salvam, da ONG Think Olga,
ficou mexido e promoveu mudanças em sua e pelo Mapa do Acolhimento. Invasão de
ação ao ouvir de um operário que suas pala- conta, racismo, pornovingança (quan-

É no texto-subtexto dessa biografia de Paulo


Freire que seus valores vão se desvelando.
Sérgio Haddad conta que o educador era um
vras eram bonitas, mas que ele não conhecia
a realidade das pessoas com quem ali falava, e
que essa realidade era causa e efeito da com-
do um conteúdo sexualmente explícito é
compartilhado publicamente on-line, sem
consentimento, por uma pessoa de sua
estudioso. Teve oportunidades importantes em preensão que essas pessoas tinham do mundo. intimidade e confiança, para causar ver-
sua vida escolar e soube manejá-las com dedi- A humildade. A troca. O vínculo. gonha e constrangimento), sextorsão
cação e afinco. Conta da paixão pela educação Nos capítulos finais, Haddad narra a história (ameaça de divulgar conteúdo sensível
e pelo ofício de professor que o acompanhou do Paulo que – ao retornar ao país – desfruta não autorizado), tudo isso faz parte do
sempre. Fala do amor por Elza, companheira de de reputação e reconhecimento, mas é desafia- conteúdo educativo do bot.
vida que esteve ao seu lado por 42 anos e, de- do a assumir tarefas políticas em universidades, <www.isabot.org>
pois, do amor por Nita, com quem viveu até sua como a PUC e a Unicamp, e no poder público,
morte, em 1997. como secretário de Educação da cidade de São
Revela que Freire era um escutador. E um Paulo. No Brasil, ele amplia sua atuação junto a OCEANOS PROFUNDOS
educador que tinha na comunicação um funda- organizações da sociedade civil e publica obras
mento, na medida em que acreditava que “a pa- em diálogos com outros pensadores. Filia-se ao Neal Agarwal é um recém-formado em
lavra é a expressão da existência e não apenas PT. Recebe prêmios, condecorações e títulos Ciências da Computação da faculdade
um veículo de comunicação”. em pelo menos cinco universidades. A educa- Virginia Tech, nos Estados Unidos. Desde
Mostra que, para Freire, o ato de compreen- ção. A política. os 10 anos é também programador. Um
der o outro passava por conhecer o universo Uma aula freireana sobre Paulo. de seus projetos mais recentes e interes-
do outro. E a educação só seria possível por santes é basicamente uma página em que
meio desse reconhecimento e de um vínculo de [Michelle Prazeres] Jornalista e educadora. você, enquanto faz a rolagem para baixo,
mergulha cada vez mais fundo no oceano,
descobrindo informações sobre animais e
sobre os mergulhos realizados por huma-
nos. Simples, eficaz, hipnótico, porque não
dá pra sair da página sem chegar ao fundo.
Mais de 1 milhão de views desde dezembro
O maldito, diabólico e irracional arraial que de 2019, quando foi lançado.
SERTÃO, SERTÕES: mobiliza metade do contingente do Exército, <https://neal.fun/deep-sea/>
REPENSANDO cinco generais e o ministro da Guerra na re-
CONTRADIÇÕES, cém-proclamada República. Um massacre de
RECONSTRUINDO fundação. Canudos é queimada, 25 mil pere- O GRITO
VEREDAS cem na segunda maior cidade da Bahia; muitos
Joana Barros, são degolados em nome da civilização, e outros, A pintura de Edvard Munch é uma das
Gustavo Prieto destruídos pela ponta tecnológica da máquina mais conhecidas do mundo, perdendo tal-
e Caio Marinho (orgs.), de guerra dos canhões Krupp (cuja empresa vez para poucas outras. Os autores San-
Elefante será ativa no âmbito do nazismo, mais tarde). dra Paugam e Charles Ayats criaram uma
Uma obra do progresso (assim como a inun- experiência imersiva em realidade virtual
dação da segunda Canudos para dar lugar ao de quinze minutos que pretende incitar as
Açude Cocorobó, em meados do século pas- angústias que marcaram a criação dessa

U ma viagem aos sertões nos propõem Joa-


na Barros, Gustavo Prieto e Caio Marinho;
a esses espaços míticos, da luz de Deus e o
sado), pois, afinal, era uma loucura coletiva,
esse Belo Monte dos rios de leite e montes de
cuscuz, onde tudo era compartilhado. Diante do
obra. Parte documentário, parte expe-
riência sensorial, parte exibição interativa,
esse modelo experimental de atualização
Diabo na Terra do Sol e da poesia de Patativa, partido dos proprietários, a posse das coletivi- de museus tem se tornado cada vez mais
da luta ancestral e encruzilhadas do que cha- dades na terra habitada do messianismo co- comum e cada vez mais interessante.
mamos de Brasil. Os três deglutem Euclides letivo onde confluíam camponeses, foragidos, <www.the-scream-vr.com/en>
da Cunha e o fotógrafo Flávio de Barros, tra- escravos libertos, indígenas kiriri.
zem joias dos monstros Antonio Candido, Aziz [Andre Deak] Diretor do Liquid Media
Ab’Saber e Pierre Verger, e convidam pesquisa- [Jean Tible] Professor de Ciência Política da Uni- Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
dores contemporâneos. versidade de São Paulo e autor de Marx selvagem ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
(Autonomia Literária, 2017). pela ECA-USP e doutorando em Design
na FAU-USP.
JANEIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Planos de saúde
Ano 13 – Número 150 – Janeiro 2020
O artigo da professora Ligia Bahia, da edição de www.diplomatique.org.br
novembro, revela a sordidez da caterva política
aliada sub-repticiamente aos megaempresários
das áreas de saúde e planos privados. O segundo DIRETORIA
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
país do planeta com maior concentração de renda 02 EDITORIAL
O medo da multidão
Silvio Caccia Bava
Diretores
só se interessa em gerar dividendos para os lobos
Por Silvio Caccia Bava Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
do setor, em tácito detrimento dos segmentos Rubens Naves
mais vulneráveis da sociedade. Mas devemos
observar que muitos médicos são notadamente 03 O RETORNO DA CONTESTAÇÃO
Fragmentar o coletivo
Editor
Luís Brasilino
elitistas, ignorando pacientes do SUS, enquanto Por Martine Bulard Editora-web
endeusam os que frequentam seus consultórios. Nem mais um dia de trabalho Bianca Pyl
Nosso Congresso não legisla para seu eleitor, mas Por Danièle Linhart
Editor de Arte
para si e para quem detém o poder (ricos empre- De Santiago a Paris, o povo na rua Cesar Habert Paciornik
sários e banqueiros). Brilhante texto! Por Serge Halimi
Precariedade e salário estudantil Estagiária
Franklin Siqueira Santos Gabriela Bonin
Por Aurélien Casta
O retorno das leis celeradas Revisão
Tentam vender uma ideia de que a saúde no Brasil Lara Milani e Maitê Ribeiro
Por Raphaël Kempf
é gratuita, mas pagamos pela saúde quando com-
Gestão Administrativa e Financeira
pramos qualquer serviço ou produto (tributação).
Não existe auditoria em contas médicas, e muitos
11 AQUECIMENTO AMEAÇA FLORA E FAUNA
Na Austrália, uma temporada no inferno
Arlete Martins

Assinaturas
hospitais particulares fazem “fortuna” cobrando Por Maxime Lancien, enviado especial assinaturas@diplomatique.org.br
do INSS por serviços ou produtos nunca utiliza-
dos. O plano de saúde empresarial tem um papel 14 CAMPOS DE VENENO
A vida de pequenos agricultores rurais em
Tradutores desta edição
Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
muito importante na reforma da Previdência. Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
terras amazônicas cercadas pela soja
Vanderlei Nogueira Por Fábio Zuker e Bruno Kelly Conselho Editorial
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Documentário Entremundo (YouTube) 16 POUPAR OS GRANDES POLUIDORES
Em nome da urgência ecológica
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
Parabéns a todos os envolvidos no projeto.
Por Anne-Cécile Robert Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
Excelente documentário! Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Angelo Fulgêncio Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
18 CAPA
Colapso ou atualidade
Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.

Documentário incrível e necessário! Chocada com Assessoria Jurídica


do empreendimento colonial? Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
a falta de humanidade das pessoas, defendendo Por Ludmila Costhek Abílio
uma “limpeza” e um “batman” para matar outros Um ano de ultraliberalismo Escritório Comercial Brasília
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
seres humanos. de coturnos e pés de barro Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br
Bárbara Grigorieff Bublitz Por Marcelo Manzano
Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação

22 PROJETO DE INDÚSTRIA da associação Palavra Livre, em parceria com o


Documentário imprescindível e de grandiosa Instituto Pólis.
TORPEDEADO PELO GOLPE
valia, que mostra duas realidades distintas. O Na Bolívia, o leilão da cadeia do lítio Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
que mais me atordoa é essa classe média alta que São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil – Tel.: 55 11 2174-2005
Por Maëlle Mariette, enviada especial diplomatique@diplomatique.org.br
temos. É estarrecedor ouvir essas pessoas. www.diplomatique.org.br
Thiago Zini 24 OS DESAFIOS DE LÓPEZ OBRADOR
Quem, de fato, manda no México? Assinaturas: Leila Alves
assinaturas@diplomatique.org.br
Por Luis Alberto Reygada
Debates TV Diplomatique (YouTube) Tel.: 55 11 2174-2015

Que conteúdo maravilhoso, aprendi muito! Obri-


gada mesmo pela aula de cidadania.
26 MINAS DESCOBERTAS EM UMA REGIÃO CAÓTICA
O Sahel desafiado pela corrida do ouro
Impressão
Plural Indústria Gráfica Ltda.
Av. Marcos Penteado de Ulhôa
Gabriele Valerie Schues Por Rémi Carayol, enviado especial Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001

Programa fantástico, como sempre. Precisamos de 28 JUSTIÇA NORTE-AMERICANA


Vidas que valem mais que as outras
MISTO

mais debates longos como esse se contrapondo Por Charlotte Recoquillon


a opiniões de 280 caracteres, que tanto são vistas
por aí. Obrigado!
Anderson Pires
29 RICOS TRANSGÊNICOS
Doenças genéticas e classe social
Distribuição nacional
DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda.
Por Laura Hercher Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte –
Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624
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Emprego garantido para a LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
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Presidente, Diretor da Publicação

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O pequeno-burguês gentil
Serge HALIMI

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de recebimento e, se necessário,
34 UNESCO, FÁBRICA DA D.O.C. CULTURAL
Músicas certificadas
Anne-Cécile ROBERT

Le Monde diplomatique
resumidas para a publicação. Por Éric Delhaye 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
secretariat@monde-diplomatique.fr
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Os artigos assinados refletem o ponto de vista
de seus autores. E não, necessariamente, a
36 ENTREVISTA
As intensidades de Gil Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
opinião da coordenação do periódico. Por Cristiano Navarro e Geraldo A. Campos com 37 edições internacionais em 20 línguas:
32 edições impressas e 5 eletrônicas.

Capa: © Claudius
38 MISCELÂNEA
ISSN: 1981-7525
O sistema tributário precisa
reduzir desigualdades.

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