You are on page 1of 22
- Cadernos do gE gi BRR hg eg a5, ie ey MUSICA AFRO— ~~ WA NAGS eg INDUSTRIA SLD os cadernos do ceas sdo uma revista bimestral do centro de ceas — que apresenta, analisa e comenta a realidade brasileira, opressiio e desigualdades sociais e apontando a iniciativa das caminho para a superacao da miséria ¢ da exploragao, na direcSo. mais justa e humana, de real participagéio democritica. © 0 ceas é uma entidade constituida por um grupo de jesuitas © par diferentes pontos de vista, comprometidos com os objetivos acama. © as matérias ndo assinadas s4o de responsabilidade conjunta do ceas. os cadernos saem bimestralmente e as assinaturas sao feitas para os seis ano. equipe editorial e de redagao: ana cectlia s. bastos, ana portela (coordenadora), cléudio perani (responsavel), eliand rolemberg, elsa souza kraychete, gabriel kraychete sobrinho, geraldo luis de mori, josé ant6nio pecchia, josé criséstomo de souza, joviniano soares de carvalho neto, manuel andrés mato, maria ldcia simoes, milton moura (redator), nelson oliveira. colaboradores: dlvaro 1. pantoja leite, anténio isao yamamoto, beatriz costa, césar galvan, domingos cinico, emiliano josé, gianpaolo salvini, guaraci a. alves de souza, herbert de souza, homero de oliveita costa, inaid m. m. de carvalho, iraci picango, ivo poletto, jether ramalho, josé sérgio gabrielli de azevedo, josé de souza martins, mariano brentan, nelson navarro, raimundo pereira, romeu dale, sonia correa, ubirajara rebougas, vitor athayde. divulgacao: elita santos pinheiro administracao: pedro caldana arte grifica: nilddo, registro da censura n. 1.079, p.209/73 registro da revista n. 139-b, n. 1 issn (internacional standard serial number) 0025 13 — 002276 correspondéncia, colaboragGes ¢ assinaturas devem ser enviadas a: cadernos do ceas, rua aristides novis, 101 (federacao) 40.210 salvador - bahia - fone: 247-1232 preco anual da assinatura ....... Cz$ 600,00 camponeses, estudantes, operirios . Cz$ 500,00 exterior a USS 20 ti a Cz$ 150,00 Cz$_1,000,00 CENTRO DE ESTUDOS E AGAO SOCIAL — SALVADOR — BAHIA = i wh \= A um poder musical A produgdo musical de Salvador foi mar- cada, nos iiltimo$ anos, pela consolidacdo de um novo padrao estético negro, envol- vendo a claboracao e estabelecimento de um género musical. Desde o segundo se- mestre de 1986, destacou-se neste itine- Tario © sucesso sem igual da composicdo Farad, com que o bloco afro Olodum se impos na cidade antes, durante e depois do Carnaval.* Milton Moura Este artigo procura mostrar como e a par- tir do que se desenvolveu o fendmeno Faraé @ assim contribuir para a compreen- so do significado que tem a consagragao da miisica afro no meio do povo e seu de- sempenho no espaco da industria cultural. Para isto, toma como eixo da anilise a propria’ produeo estética, assumindo como elemento fundamental a genética ¢ fisiologia da feitura da miisica popular. Tag? futo® agradece a Angélica, Dedecho, Elsa, Fétima, Germano, Jofo Jorge, Kétia, Lazinho, Luis, Luisa, Mara, Nego, Neguinho do Samba, Omar, Paulo, Pett Rogério, ¢ assume a exclusiva Fesponsabilidade das incorregdes que este texto contiver. As fotos sio de componentes do Olodum, exceto aquelas das p. 24 e 25. A inicial ¢ de Lazinho, cantor. 10 Cadernos do CEAS n. 112 Alguns cientistas sociais falam da produ- ¢40. musical (e especialmente do Carnaval) a partir da sua utilizagdo ideol6gica pela direita, realcando normalmente 0 concei- to de alienagdo. Assim, de posse apenas da critica a industria cultural ou ao apare- lho ideolégico do Estado capitalista, s6 Ihes resta considerar sumariamente ‘“‘fol- clérico” (as vezes com uma conotago pe- jorativa e preconceituosa) tudo que no pode ser apreendido pela rigidez de seus No final dos anos 60, mostravam-se no Camayal de Salvador varios modelos de gxupo organizado. Os afoxés guardavam formas coreogréfi- cas e musicais que vinham desde o final do século XIX. Estavam em franco decli- nio. Os Filhos de Ghandi jé cram sua re- feréncia mais importante. Fundado em 1949, esse afoxé tem uma marca bem reli- giosa‘no seu desempenho ena sua imagem. E o intérprete principal do ritmo ijexa, sustentado sem interrupgdo e quase sem variacOes toda vez que se apresenta. Aque- la época, também o Gandhi estava em refluxo, talvez porque sua composigao majoritaria fosse de estivadores j4 ndo tao jovens, que resistiam ao dinamismo da hist6ria das formas do Carnaval. Das batucadas, cord6es ou simplesmente “blocos”, havia de ‘todo tamanho. Muita gente se juntava a sua passagem, inclusive mascarados. As bandas (metais e percus- so) tocavam marchas de Camaval tradi- cionais veiculadas pelo radio e diversos ti- pos de samba. Em outros tempos, a poli- cia ndo permitia que as batucadas e afo- xés, que vinham quase sempre pela Bai- xa dos Sapateiros, subissem até a zona nobre da cidade. Era indesejavel a presen- instrumentos tedricos. Ndo chegam a apreender 0 fato estético. Escapa-lhes a ptesenga ativa do proprio sujeito desta produc musical, os artistas do povo. O desafio colocado 4 ciéncia social pela ex- plosio musical de uma cidade requer uma abordagem que deseje ver, ouvir e sentir 0 que, como, por que, a partir de que ¢ para que se produz sua misica, enxergando as formas e os sons como realidades sociais vivas. atras do trio elétrico sO nao vai quem ja morreu Caetano Veloso ga desses “bandos de desordeiros e pande- 0s” junto ao “‘corso das familias”. As escolas de samba seguiam o padrao das grandes matrizes do Rio de Janeiro. Bem mais pobres e menos numerosas que estas, ngo chegavam a uma producdo musical que marcasse 0 Carnaval de Salvador. Seu desfile era uma atragGo, mas ndo havia uma mobilizago maior em toro. Os blocos de indio eram o modelo mais identificado com a juventude dos bairros populares. A mtsica nao diferia tanto da- quela das escolas de samba e batucadas. O que lhe dava um perfil proprio era a recria- do alegérica dotndionorte-americano.Ha- via blocos de indio com nomes como Os Tupis ou Cacique do Garcia, mas a fantasia correspondia ao esterestipo fornecido pe- los filmes de cowboy, num tempo em que boa parte das imagens do grande mundo ainda eram captadas pela via do cinema. Era evidente 0 contetido de revolta e pro- testo na expresso agressiva dos blocos de indio. As vezes a policia os reprimia vio- lentamente, para satisfacdo das familias tradicionais, das classes médias e de todos quantos zelavam pelo “decoro” do Car- naval. Esse pessoal dangava em clubes fechados Cadernos do CEAS n. 112 un Nego, cantor. como 0 Baiano de Ténis, onde nao entra- vam negros nem mestigos. Seus blocos se- guiam 0 mesmo esquema. Alguns admi- tiam “morenos claros”. Outros, como Os Internacionais, sustentavam uma polr- tica francamente racista: negros, so na percussio ¢ na seguranga. O trio elétrico foi criado por uma dupla de miisicos e eletricistas, Dodé e Osmar, que inventaram e reinyentaram intimeras vezes seus instrumentos, adaptando o car- to que levava o grupo e formando um tepertério sintético a partir do frevo e do chorinho. Em 1950, safram a rua numa fobica ' cujo motor parou de funcionar em pleno desfile. E sé um exemplo do ca- riter artesanal do trio elétrico daquele tempo, associado sem diivida a permanen- te recriacdo. No ano seguinte, pequenas multidées seguiam o veiculo bizarro a que ji se chamava trio elétrico, A novidade se reproduzia e diferenciava a cada ano A prinetpio, os trios s6 safam no Camaval + Uma histéria minuciosa do trio elétrico é O Pats do Carnaval Elétrico, de Fred de Gées, Salvador, Ed. Corrupio, s/d, Colegao Baianada, opério Ferrari ou eventualmente nas micaretas do Re- cOncavo, patrocinados pelos fabricantes de bebidas. Nos anos 60, quando seus fundadores no se apresentaram na rua, a instituiggo foi mantida principalmente pelo trio elétrico Tapajés. Foi a partir dat que 08 conjuntos se. profissionalizaram propriamente, apresentando-se também em outras épocas, sobre caminhées imen- 808. 0 estilo'do frevo elétrico j4 contava com um repertério consideravelmente vasto, adaptando antropofagicamente ou- tros ritmos, inclusive temas cldssicos. O primeiro de uma série de discos do Tapa- j6s veio a puiblico em 1964. O trio era a experiéncia de participaao mais ampliada do Carvanal; qualquer pes- soa podia facilmente pular 4 sua volta, sem distingao. Na virada dos anos 70, Salvador experi- mentava mudangas profundas na vida econdmica e social, inauguradas pelo esta- belecimento da Petrobras, em 1953, seguida pela instalagéo de um centro industrial e um pélo petroquimico. O aparelho do Estado se modemizava e ex- pandia. O quadro das ocupagGes se amplia- va, ocasionando 0 surgimento de novos 12 Cadernos do CEAS n. 112 tipos, como o operdrio da petroquimica e o funciondrio da Bahiatursa. O sistema vidtio se reformava. A populacdo crescia em taxas mais elevadas, por conta do éxo- do rural forcado e da perspectiva de em- pregos urbanos, mesmo que de existéncia muitas vezes virtual. A pequena classe mé- dia tornava-se mutudria do BNH, enquan- to os moradores de varias invasGes eram expulsos para precérios conjuntos habita- cionais em bairros novos e afastados. Co- megavam a surgir os grupos de base da Igreja e os centros pentecostalistas. Ne- nhum aspecto de vida ficou isento da transformagdo. Neste processo pelo qual a sociedade tornava-se mais urbana, indus- trial e moderna, modificavam-se também os padroes de produgio e divulgacdo da noticia e da musica, com reflexos nos gos- tos e nos habitos. ‘A cidade se encheu de televisores ¢ apare- Thos de som. Uma quantidade inédita de informagoes invadiu seu ambiente musi- cal jf acostumado a misturar e combinar. O préprio movimento tropicalista, apesar de sua curta duragdo, reforgou o costume de propor continuamente novidades na misica e na poesia. O encontro da tradi- ¢do (inclusive esta de inovar) com algu- mas contribuicdes musicais exdgenas te- ye como resultado, justamente, os dois acontecimentos mais importantes do Car- naval de Salvador nos ultimos 20 anos: a reformulagao do trio elétrico e a insti- tuigdo do bloco afro. Quando Caetano Veloso gravou Atnis do Trio Elétrico, em 1969, colocou a musica do trio no circuito nacional do disco, am- pliando consideravelmente os recursos do género. Além da harmonia enriquecida, agora havia uma letra, e uma letra que tematizava o Carnaval, a vida da cidade. A partir de entdo, o trio nao era apenas o evento do caminhao musical, Poucos anos depois, ja era comum o canto no frevo elétrico. ‘A gerago dos filhos dos fundadores do trio havia crescido ouvindo rock ¢ trouxe os recursos desse género. Em 1974, re- compés-se 0 trio inicial, com 0 nome Ar- mandinho, Dodé e Osmar, Os instrumen- tos cram sofisticados e os arranjos, bem diferenciados entre si, mostravam outra qualidade de claboragao. J4 estavam em cena outros conjuntos. Os Novos Baia- nos, 0 mais importante, rebentaria em sucessos individuais, como Moraes Mo- reira, Pepeu Gomes e Baby Consuelo. Era o carnaval elétrico no mercado extenso da misica, consolidando-se no desempe- nho dos jovens artistas. De 1975 em diante, multiplicaram-se os blocos de classe média, de grande maioria branca, formados muitas vezes por jovens do mesmo colégio, faculdade ou empresa. Alguns jé eram puxados por pequenos trios; outros, por bandas de metais. As mocinhas pequeno-burguesas podiam pu- lar A vontade no espaco garantido pela corda de isolamento conduzida pelos segurangas, quase sempre jovens ¢ adoles- centes negros de porte atlético. Forma- vam-se também varios conjuntos de trio que se apresentavam mediante patrocinio do comércio e da industria, levando mul- tides de andnimos. O repertério come- cava a integrar todo tipo de musica brasi- ieira que fizesse sucesso nas FM Em 1973, Gilberto Gil assumiu o ritmo ijexd no seu trabalho, com 0 disco Phono 70 3, Instantemente naquele ano, 0 Gan- dhi estava parado. A intervencao de Gil contribuiu definitivamente para legitimar © papel do afoxé: trés anos depois, revi: talizado, 0 Gandhi voltou ao carnaval, crescendo continuamente a partir daf. Passava a ser obrigatério, para os politicos em ascenséo como Antonio Carlos Maga- Ihdes, aparecer junto aos artistas do Car- naval, associando sua imagem @ alegria, ao prazer e 4 idéia de integragao social. Além disso, com a industrializagao do turismo, 0 governo organizava concursos, distribu‘a prémios e condecoragdes e alcangava Gerta legitimagdo com a versio da Bahia moderna e progressista, onde habitava um povo feliz ¢ irmanado. A Bahiatursa, em 1976, decorou a cidade com o motivo dos afoxés. Quanto ao trio de Dodé ¢ Osmar, quanto mais se sofisticava ¢ expandia suas atividades (apresentagdes em toda parte, durante o ano inteiro), mais se relaciona- Cadernos do CEAS n. 112 13 va com 08 patrocinadores e o Estado. Enquanto isso, 0 Apaches do Tororé havia se tornado o maior bloco de Salva- dor, chegando a ter mais gente do que a propria policia. A presenca de tantos jo- vens — na maioria negrose mestigos— com gestos violentos, insinuando irreveréncia e ousadia, fazendo muito barulho, irrita- va a minoria branca e racista, de gosto aristocrdtico, que se sentia ameacada no combate pela posse da rua. Em 1977, a policia espancou barbaramente o bloco, dispersando milhares de jovens de ver- melho ¢ branco e perucas de indio, nu- ma recriagdo trégica e ironica da historia dos apaches norte-americanos. (O delito do Apaches foi comparecer 4 rua com mi- Nego Tica Uma quantidade de jovens negros — so- bretudo aqueles qué habitavam ou fre- quentavam a Liberdade* — assimilava di ferenciadamente as novidades explosivas que chegavam com a modemizacao da cidade A principio, a influéncia maior foi dos ar- tistas negros norte-americanos, que ti nham a seu favor um sistema de comercia- lizagao € divulgagao correspondente a as- cendéncia ideolégica dos Estados Unidos sobre o Brasil, intensificada com a ditadu- ra. No bojo das importagdes, chegavam a miisica soul de James Brown, 0 rock de Jimmy Hendrix ¢ a coreografia do con- junto Jackson Five, com um Michael Jackson ainda adolescente. Pouco a pou- co, foi-se formando um modelo negro de imagem.* Ainda nao se conhecia o reggae, apesar do conjunto The Wailers ter sido Maior bairro popular de Salvador, com vida propria, Ihares de machadinhas. Estavam armados!) Essa pancadaria fez muita gente pensar na relagdo entre o camaval e a vida. O centro Ga cidade comegava a ficar apertado para tanta gente e a disputa do espaco nos dias da festa era a vivéncia teatral dos ou- tos 360 dias do ano. A revolta da juven- tude excluida e disctiminada frequente- mente se desencadeava em agressdes, 0 que se agravava com a postura da policia. Esta ndo somente reprimia ostensivamen- te os jovens das classes populares, como tomava a iniciativa de agredir-lhes, justifi- cada na suspeicdo de que todo negro seria potencialmente um “marginal”. A progressdo da violéncia tomava-se tema frequente dos compositores de trio. aquela moca esta na praca ta esperando o bloco da raca fundado por volta de 1965, em Kingston, Jamaica. A musica e a danga desses artistas estava associada a uma maneira de vestir, de an- cat e de arrumar o cabelo. A expressio mais tipica dese tempo era o cabelo black power.* Buscaya-se um modelo pr6- prio de comportamento, alternative ¢ contestador da sociedade burguesa que impunha 0 padrio branco da beleza e da modernidade: a roupa “normal”, “perti- nente”, “decente”, corresponde a tradi- 0 “ocidental”; 0 cabelo “bom” é aquele liso e penteado; quase todas as mulheres negras, no comeco dos anos 70, alisavam Esse perfodo ¢ comentado com pormenores nas crénicas de Anténio Risério em Carnaval Ijexd, Salvador, Ed. Corrupio, 1981. Em inglés, significa poder negro. A expres- sdo € usada para 0 cabelo. crespo crescido e al- tw, como Jimmy Hendrix e Michael Jackson (em outros tempos) o usavam. O filme Acqua- rus era um bom modelo visual do black. “4 Cadernos do CEAS n. 112 © cabelo ou o amarravam com um lengo; os homens o cortavam bem rente, mesmo quando os rapazes brancos usavam cabe- Jos compridos como o dos Beatles. Assim, a insinuagao de um tipo negro de beleza, até entdo sempre reprimido e discrimina- do, no podia nao ser uma oposi¢ao ao tipo branco e pequeno-burgués, bem compor- tado.> E nem podia, em contrapartida, deixar de despertar a repulsa e 0 temor dos setores mais tradicionais da sociedade tacista de Salvador. Cléudia, componente, Foto: Rogério Ferrari A nova maneira de se apresentar custava muito aos jovens negros, que tém de dis- putar as vagas no mercado de trabalho mediante 0 enquadramento da “boa apa- réncia”, isto é, aparéncia de branco. O cabelo “black era praticamente inviével para muitos que o desejavam usar. Por um lado, isto estimulou a procura de outros caminhos para a afirmagao da identidade negra.° Por outro, o fato de alguns jovens manterem o cabelo black era uma refe- séncia importante também para quem nao ousaya. A outra noticia provocadora foi a luta pela emancipagao politica de varios paf- ses africanos, como Guiné Bissau, Angola e Mocambique, revelando uma dimensao mais explicitamente politica da questio étnica. A fermentagdo desses fatores resultou, em 1974, na formagao do Ile Aié,” com sede no Curuzu, territério da Liberdade, Entre 0s fundadores, havia operdrios das indis- trias recentes da petroquimica. A moder- nizagdo da estrutura produtiva, ao contrd- rio do que alguns costumam supor, no havia amenizado a discriminagdo racial, sentida também no interior da fabrica. E mesmo fazendo parte do setor de classe média criado pela industrializag0, 0 ne- gro ndo era aceito nos Internacionais. O Us adotou, entdo, uma selecio simétri- ca: $6 eram aceitos negros bem escuros, para caracterizar radicalmente a nova pos- tura. Seria incorreto dizer que o Ulé foi o pri- meiro “bloco negro”, pois os blocos de indio, os afoxés e as batucadas j4 mere- ciam ‘este adjetivo, se considerada sua composicio étnica. O Ilé se estabeleceu como o primeiro bloco afro. Quando saiu no Carnaval falando da Afri- ca e ostentando simbolos africanos, como méascaras, adomos de sisal e ceramica, ca- begas, pinturas, etc., ndo faltou quem la- mentasse o “desejo de voltar as florestas africanas”. Este tipo de critica, proprio de universitérios convencionais e da pe- quena burguesa “moderna”, mostra o des- desconhecimento do que é 0 AFRO na cul- tura popular de Salvador. Para quem experimenta a exclusao cotidi- ana, para quem é maioria oprimida numa sociedade onde os modelos dominantes 5 © dancarino Jorge Watusi diz que a consci- éncia veio como moda, Cf. RISERIO, ibid., p18. O que acontece ¢ que esta ou aquela moda’ passaram © 0 processo de descoberta & construggo de uma identidade prosseguiu. Evidentemente, a hist6ria dos moyimentos negros conheceu o desdobramento de varias for- mas de luta, como 0 Movimento Negro Unifica- do. Neste artigo, séo abordados os fatos mais intimamente ligados & produgdo musical. 7 Em iorubi, significa aproximadamente mun- do negro, ow a casa da gente, Cadernos do CEAS n. 112 15 de beleza, capacidade e valor correspon- dem ao branco e sua origem européia, ¢ importante encontrar o fundamento de seu proprio valor em outro lugar: esse fundamento nao pode estar na terra da exclusao. Todo jovem negro, ou mesmo uma crian- ga ou um adolescente, sabe que seus as- cendentes vieram da Africa como es- crayos. Contudo, a quantidade de infor- mages que recebe e a freqiéncia com que tematiza sua origem nao séo suficien- tes para que ele possa elaborar uma idéia mais plena do que seja esta origem. Aque- les que vio a escola ouyem muitos no- mes — lugares, pessoas, instituigdes — do mundo branco e ocidental. Da Africa, pelo contrario, “vieram os bragos escravos para a lavoura do agiicar”. E como se 0 continente africano e suas civilizagdes nao existissem propriamente, como se fossem mais uma sombra do que uma realidade de contornos nitidos. Normalmente, nada se sabe acerca do que faziam e de como eram os africanos, antes de escravizados e traficados. Os esteredtipos fornecidos pelo cinema ¢ pela televisdo completam a descaracterizagao promovida pela escola, apresentando os negros como bons/timi- dos/leais/subservientes ou maus/pervers- sos/ignorantes/rudes. Mas talyez o mais grave € que estas figuras no tem nome nem historia, ndo sao sujeitos. Conside- rando a defasagem entre estas imagens ¢ aquelas do mundo branco-ocidental-cris- 140, compreende-se como a descoberta e reelaboragdo do conhecimento sobre a Africa é uma experiéncia profundamente transformadora. E evidente que o bloco afro nao divulga conhecimentos 4 maneira com que é trans- mitido 0 conteddo programatico de uma escola ou uma proposta légico-histérica de um partido, Anualmente, cada bloco escolhe um pais africano como tema, co- locando nas letras das miisicas alguns as- pectos histéricos, geograficos, culturais e politicos dessa porcio do continente. A forga deste antincio, portanto, nao est somente no contetido da informacdo, mas em sua novidade, no fascinio de suas for- mas — 0$ nomes, 08 proces: contados — € no sujeito que a € 0 negro que fala de si, nao é tado como uma sombra. Re’ prio uma imagem de beleza, nialidade e dignidade, emerge guém brilhante. Por outro lado, também nao se. esquema clissico da localizacao pela projecdo de uma sociedade as primeiras expressdes dos bl poderiam justificar esta impressao, atual, mais completa, demanda cagZo mais dialetizada. Os compo falam frequentemente da dime til e perversa da realidade africana, citando a tensdo entre a autonomia © 2 submissao, Seja quando a realidade poli- tica da dependéncia e do colonialism € substitufda por uma viséo da tera de completa felicidade, onde os negros eram somente livres e fortes, seja quando se te- matiza a fome de Mocambique ou o mar como caminho da escrayidao, ¢ vivida e promovida a tensdo entre a beleza do desejo € do projeto, de um lado, e a ad- versidade do cotidiano, do outro. O mes- mo autor pode propor uma composicZo exaltando a fora de uma etnia e outra protestando contra 0 racismo e 0 colonia- lismo, ou integrar ambos os aspectos no mesmo trabalho.® A tensio é dada pela polaridade geogréfi- ca (0 aqui e o ld), cronolégica (0 antes e o agora) e existencial (a autonomia e a es- craviddo). A distancia entre Africa e Sal- vador é percorrida muitas vezes pela ima- ginaco, sentidos e sentimentos durante um ensaio de bloco. A recriago da Afri- ca, entdo, nao é somente uma resposta so- bre © passado e a formacio do presente. Cada elemento polar torna-se a referéncia ® Sendo a etnicidade uma dimensfo totalizan- te da existincia — todas as pessoas humanas so continuas a uma ou mais etnias ¢ a cor marca € em _certa medida determina todas as relacSes so- ciais numa sociedade pluriétnica -, toda ago ou palavra neste espaco se desdobra em miilti- las diregdes. E 0 caso jé comentado do cabelo lack: nao pode acontecer somente como imita- fo ¢ vaidade, porque a simples aparéncia ji 6 protesto e ousadia, 16 Cadernos do CEAS n, 112 do outro, num jogo complexo de liberda- de/ privagdo e de presenca/distancia. Esse modelo, desencadeado pelo I, se consolidou com o surgimento de outros grupos. Vale notar que isto foi estimulado pelo préprio rigor do Ilé na admissao. O afoxé Badaué € de 1978. Sua bateria é percutida com a mo, como um antigo afoxé, mas jd ndo segue o padrio do Gandhi; afinal, nasceu modemo, O Malé de Balé e 0 Olodum (1979) puxaram a se- gunda geracdo de blocos, com o Araketo (1980), que também combina elementos dos blocas afro e dos afoxés, e 0 Muzenza (1981). Gerénimo No fim dos anos 70, o reggae comegou a acontecer nos bairros populares de Salva- dor como uma matriz exdgena de forca inédita. O rastafarianismo jé era cultivado em ambientes restritos. O reggae era co- nhecido através de alguns discos, princi- palmente Kaya, aqui chegado em 1978. Sua difusdo maior, contudo, se deu com a vinda dos jamaicanos Bob Marley, em 1980, e Jimmy Cliff, no ano seguinte. Gil- berto Gil teve um papel importante nesta conexo. Quando Marley morreu, em maio de 1981, justamente de exaustao pela ansia de divulgar a Jamaica e 0 rasta- farianismo, sua popularidade cresceu ain- da mais. Hoje, a figura e o nome do com- panheiro Marley estao em milhares de ca- misas. Muitas cangdes falaram e conti- nuam falando do Farol da Jamaica, 0 Rei do Reggae. O. sucesso de Peter Tosh, ex- parceiro de Marley, jamaicano também, somou-se 4 corrente do reggae, que jd ti- nha, entio, considerdvel presenga em al- guns blocos, embora fosse visto com re- serva em outros. Sua mistica tornaya pre- sente a Africa e a Didspora Negra e seu Desde 0 inicio, a influéncia desses blocos era visivel no comportamento de muitos jovens de bairros populares como Liber- dade, Engenho Velho e Ribeira, inclusive reforgando a moda do cabelo. Os blocos de indios ¢ os afoxés perdiam componentes para os blocos afro, cujo modelo preenchia com mais propriedade a caréncia de uma expressfo negra para 0 jovem, no Carnaval. Além desta motiva- ‘edo mais ideoldgica, havia o apelo da no- vidade: 0 Indio jd estava cansado, todo ano parecido. Tudo enjoa. Ai vocé procu- va outra coisa, de outra fase... eu sou negao, eu sou negao meu coracao é a liberdade significado, a0 ponto de muitos imagina- rem que a Jamaica é um lugar na Africa. Hoje, 0 cabelo rasta ¢ associado funda- mentalmente a imagem de Bob Marley. O primeiro reggae brasileiro esté no ter- ceiro disco de Macalé; é Negra Melodia, feito em parceria com Waly Salomao, uma colagem de afirmacdes sobre a negri- tude e trechos de Bob Marley. No elepé Refavela (1975), de Gil, é ainda mais ni- tida a procura de estabelecer um padréo negro moderno. (Gil vinha de representar o Brasil no Festival Internacional de Arte Negra, na Nigéria). Na virada dos anos 80, a batida do sam- ba de bloco afro ja tinha se firmado como um ritmo proprio. O acento do contra- tempo e o andamento mais lento que o de outros tipos de samba revelam a influén- cia do reggae. Além disso, o reggae esté presente no desenho melédico da maioria das composigées de bloco afro. A harmo- nia do reggae mais referencial é um arran- jo pendular entre um tom maior e um ou- Cadernos do CEAS n. 112 7 Germano, cantor. tro menor, sustentado pelas guitarras e completado e matizado pelo baixo. Ainda que o bloco afro nao use instrumentos harménicos, a melodia da maior parte das composigdes supée um esquema de har- monia pendular semelhante ao do reggae. Para compreender 0 crescimento e conso- lidagdo desse género musical, é preciso considerar 0 tipo de atividades que sua produgdo envolve. Cada bloco faz ensaios semanais de cinco a sete horas de dura- go, onde sdo divulgados centenas de mi- sicas. Um bom mimero de artistas propde suas composig6es. A preferéncia do publi- co recai sobre um mimero reduzido de misicas, que sdo repassadas continuamen- te, enquanto prosseguem os langamentos. Quando se faz 0 concurso que aponta as misicas que serio levadas no Carnaval, ja se sabe quais delas agradaram mais ao pés- soal presente aos ensaios. Algumas vao sendo divulgadas na praia, nas festas, nos bares, na rua. Foi através deste processo de transmissao direta que a misica afro se fez. presente em toda a cidade, antes que pudesse ser ouvida pelo rédio. (E 0 contrario do que acontece com os trios elétricos, que en- Foto: Rogério Feerari saiam a parte. Durante o vergo, promo- vem grandes shows no baitro mais aristo- cratic da cidade. Normalmente, quem os frequenta jd aprendeu o reperténio pelo radio). Jovens e adolescentes dos baizros e invasdes mais distantes arranjam um jeito de se fazer presente aos ensaios, con- tornando os desconfortos de um péssimo servico de énibus, sobretudo nos fins de semana. O modelo das composigdes esté associado 4 participagao no canto. Jd na origem, 0 Tlé puxava 0 samba estimulando o canto da multidio. Hoje, acontece em alguns blocos o cantor apenas iniciar a letra, dei- xando-a para o coral da quadra e reto- mando-a no contraponto do refrdo. Desde 0 inicio, a cada ano, duas ou trés composigdes de bloco afro se destacavam como sucesso nas quadras, tocadas depois pelos bairros. Uma das mais difundidas foi Eu vi o Negro Afro na Senzala, de Ra- diola (1983), saida das rodas do Araketo edo Ile. Via-se, também, como 0 ritmo do bloco afro tomava o lugar do samba de roda an- tigo. Até ndo faz muito tempo, a roda 18 Cadernos do CEAS n. 112 acontecia na feira, na praca, na praia, na rampa do mercado. Pequenos grupos mar- cavam o ritmo com as palmas. No meio, revezavam-se as pessoas a dancar. Era uma forma muito direta de comunicagio: quando quem estava no meio da roda cansava, dava uma umbigada em alguém proximo, que vinha entdo para o centro. Era extremamente descontrafda, ria-se muito. O repertério contava centenas de letras curtas, relativas 4 vida de uma cida- dade ainda nao moderna, de estreitas liga- g6es com 0 Reconcavo rural. O Indcio, 6 Inacio, mulher parida nao come farinha do mesmo dia/Se ela come, ela morre e 0 {fitho nao se cria/Minha vaca Laranjinha, seu bezerro quer mamar, berrou/O Moi- nho da Bahia queimou. Queimou? Dei- xa queimar. O canto era muito dialoga- do, quase nunca havia propriamente um puxador. Hoje, esta forma caiu em desu- so. Se alguém comecar um ponto de roda, automaticamente serd acompanhado pela marcacéo do quaterndrio em contratem- po do bloco afro. A maioria dos grupos folcloricos profissionas se apresenta j4 coma nova batida. Em 1980, Raimundo Sodré fazia a cidade inteira cantar A Mas- sa, uma recriagio do samba de roda. Foi a tiltima vez que esse género fez. sucesso. Atualmente, subsiste na memoria de quem tem acima de 20 anos e no traba- lho diferenciado de artistas como o pro- prio Sodré, Parece que os jovens e adoles- centes ndo desejam mais falar tanto de fa- rinha, vacas ¢ outros simbolos menos mo- dernos — ou menos associados a temas mo- dernos. © observador atento pode encontrar ele- mentos comuns ao antigo samba de roda © 0 novo género do bloco afro, como por exemplo a marcagdo com as palmas (as vezes) e 0 didlogo entre 0 puxador ¢ o res- to do grupo. Hé, porém, mais descontinui- dade do que semelhanga entre os dois gé- neros; sobretudo o ritmo e a temética diferem consideravelmente de um para 0 outro. E controvertida a relagao dos artistas con- sagrados com 0 bloco afro, havendo quem os acuse de “aproveitar-se da cultura ne- gra”. Desde quando se firmavam os blo- cos, Caetano ¢ Gil estiveram presentes junio as liderangas e mtisicos do Ilé ¢ do Badaué. A partir de Beleza Pura (1979), regravada por vdrios outros, Caetano in- corporou a energia ascendente do movi- mento e, em contrapartida, legitimou e reforcou a imagem do(a) jovem negro(a) que se produzia como afro; milhares de pessoas trangavam o cabelo e aplicavam conchas da costa. Era o bloco afro no mundo do disco, lancado em ambito na- cional. O novo modelo passava a ser co- nhecido nos ambientes de classe média e era noticiado pela imprensa com maior freqiéncia. Este estimulo contribuiu para que muitos jovens negros vencessem a timidez e aderissem ao cabelo afto, Em 1979, Moraes Moreira assumiu o rit- mo ijexa em algumas composig&es, depois do que a batida do Gandhi esteve sempre presente em seu trabalho. Logo em segui- da, Pepeu a adotou também, adaptando-a para que coubesse sua guitarra. O trio elé- trico de Armandinho, Dod6 e Osmar pas- sou a falar insistentemente dos blocos afro nos refrdes de seus sucessos. Ilé ¢ o Ba- daué jd ndo eram mais novidades para a classe média. Ao mesmo tempo, chega- vam a Bahia alguns ritmos do Caribe: salsa, merengue ¢ lambada. Em 1982, uma coleténea de misicas do Carnaval foi gravada em elepé. Era a pri- meira vez que a producdo dos blocos afro se industrializava. Do Conjunto do disco, as rddios tocavam bem mais as misicas de trio. Em 1983, um reggae de Rubem Con- fete, Tributo a Bob Marley, foi gravado em compacto, alcangando grande sucesso. Era ainda recente a morte de Marley. Em 1984, o Ué gravou o primeiro elepé pro- prio do género, que jé obteve uma divul- gagao maior que a coletanea. Comegava a pegar uma forma simplificada do ritmo afro, batida com palmas, com gue os cantores estimulam a participaco, nos ensaios. E com essa batida que se pu- xa repertério dos blocos nas ocasises mais informais, como no Onibus ou na praia. Hoje, ele predomina também nos pequenos blocos que sem A rua nas festas juninas, chamados simplesmente de Cadernos do CEAS n. 112 19 “samba”. Apesar da divulgacio pelo radio lo “forré malicioso”, os sambas estdo preferindo o ritmo afro. Com o crescimento dos moyimentos ne- 708, 0S governos estadual e municipal in- tensificavam o recurso a referéncia afro na busca de popularidade. O nome dos orixds batizava auditérios e projetos. O prefeito aparecia na televisto abragado com mies de santo. Convidava-se o Gan- dhi e o Badaué para receber autoridades. © Estado precisava apresentar Salvador como 0 palco da convivéncia interétnica feliz e do desabrochar das “coisas da ter- Continuavam se multiplicando os grupos de trio. A maior parte de seus artistas é de jovens da pequena classe média, estu- dantes, semiprofissionalizados ou mesmo vivendo de misica. Ao seu repertorio, que integraya jd 0 frevo, 0 rock, 0 merengue © jjexd, acrescentou-se por volta de 1982 a batida do bloco afro, que os artis- tas do trio chamai Jevada, Essa ultima as- similago ainda hoje traz problemas técni- Neguinho do Samba, primeiro maestro da banda. 1a”, As imobilidrias construfam edifiieios e condominios de luxo com nomes do exi- gem afticana, No meio da burguesia, eres- cia o mimero dos que se diziam amigos tntimos de Dona Menininha... E a vida se tornava mais dificil e a disceimi- naco racial se mantinha no cotidiano, os donos da cidade procuravam capitalizar 2 acumulaco de forcas dos movimentos negtos, sacramentada no prestigio de al- gumas_ personalidades. Qualquer estran- geiro ilustre tinha que visitar os antigos terreiros de candomblé, alguns dos quais em risco de desabar pela conserwagdo precéria. Foto: Rogério Ferrari cos. A marcagdo da batida, feita com 0 baixo, a guitarra e a bateria modema, é mais répida e invariével, 0 se conse- guindo um bom resultado.? E significati- vo que, quando seu repertério é cantado na praia e nos baitros populares, os can- ° 0 trio elétrico de Armandinho, Dodé e Os- mar gravou uma miisica do IIé com um arranjo deste tipo. 20 Cadernos do CEAS n. 112 tores e percussionistas Ihe devolvem o ritmo afro dos blocos, com a cadéncia e as variag6es proprias. Os blocos de indio, em refluxo justamen- te por causa do crescimento dos blocos afto, comegaram a assimilar 0 ritmo des- tes ¢, com o ritmo, a tematica, O Apaches e 0 Comanches conseguiram, assim, re- cuperar parte de sua forca. Mais tarde, adotariam também o pagode de origem carioca, promovendo festivais com ‘boa participacao. O pagode esté mais pro- ximo do sambdo, sendo mais descontrat- do, quase sempre cémico. O Gandhi tornou-se cléssico por obra da modernizacio, que tem na forma fixada do afoxé a referéncia da tradigfo. E a iinica forga capaz de atrair todos os gos- tos. Por volta de 1985, tem-se a impresstio de que © género musical do frevo elétrico estd cansado, enquanto se fortalecem ¢ multiplicam 0s trios como instituigdo. Ar- tistas como Osmar, Armandinho, Pepeu e Moraes compdem bem menos para 0 car- naval. A qualidade da maior parte das mi- sicas de sucesso fica aquém da expectativa criada pelos trios tradicionais no inicio da década, Um bom niimero de grupos re- centes passa a gravar em estiidios. Mais alguns artistas tinham se estabeleci- do nos iltimos anos no mercado do disco. Safram dos conjuntos de trio, acostuma- dos a tocar de quase tudo. Os que mais sucesso fazem, Sarajane, Missinho e Luis Caldas, adotaram a batida simplificada do bloco afto, o fjexd, o reggze e o meren- gue como elementos fundamentais de sua criagGo (0 reggae, assimilado sobretudo por Luis Caldas, 6 tocado com menos dificuldades técnicas, j4 que se adapta bem as guitarra), A banda Chiclete com Banana assumia 0 lugar de ponta entre os conjuntos de trio. Ultimamente, 0 sucesso de alguns deles estd associado as novas maneiras de dan- gar por eles criadas, divulgadas nos pro- gramas de televisdo para criangas e adoles- centes. E 0 caso de Luis Caldas, com 0 deboche, e de Gerénimo, cuja composi- do Jubiabd insepardvel da criagdo core- ogréfica de maior sucesso desde a moder- nizaco do camaval: a danga da galinha, que se espalhou em 1986 por toda parte, inclusive nos ambientes dos blocos afro. Ty Foto: Rogério Ferrari Putuca, percussionista. ‘A sintese desses movimentos da histéria do carnaval de Salvador parecia estar na faixa Macuxi muita onda, do disco de Ge- ronimo para overdo 86/87. A milsica comega com uma espécie de reggae. De- pois, Gerénimo canta o nome de varias nagdes indigenas, numa alusdo aos blocos de’ indio. Em seguida, entra em ritmo afro: Eu sou negdo, eu sou negdo / Meu coragao é a Liberdade / Sou do Curuzu | Igualdade nagé / Essa é a minha verdade, Vem entio um trio pelo caminho. Gerd- nimo faz uma sitira do caminhdo todo iuminado, seu ritmo e sua melodia e do discurso de elogios tipico de seus canto- res. Ha uma briga pelo espaco da rua e 0 cantor do bloco afro finalmente diz: Pe- gue seu caminhéo, siga seu caminho que a Cadernos do CEAS n. 112 a gente vai seguir 0 nosso. 0 bloco prosse- gue 0 trajeto, retomando Fu sou negao, apesar da forca do trio. A forga do género musical do bloco afro tinha se firmado na Tua e no interior dos grupos de trio, Che- pelourinho é Valmir Brito e Gibi 0 Pelourinho é 0 coracdo do centro his- térico de Salvador. Em tomo esté o Ma- iel, um conjunto de casas e sobrados em péssimo estado de conservagao e higiene. A drea tem uma densidade demogrdfica muito alta. Fora, conhecida coino 0 bre- gu, lugar de prostitutas, travestis, trafican- tes e ladrées — de “marginais”, enfim. Com a modemizagao da cidade, esses ti- pos de ocupacdo se descentralizaram. Ha uma variedade imensa de profissdes na area, mas permanece o estigma do Maciel- Pelourinho, Para 2 moral dominante, ali se esconde o pecado, 0 vicio e a perdi- Go. Quase ninguém emprega seus mora- dorés, sobretudo um negro de cabelo ras- ta, Isto faz com que os jovens dai se defrontem, de modo talvez mais draméti- €o que aqueles de outros bairros, com a ealidade do desemprego, o que gera muita tensdo. Hoje, ha um esforgo no sen- tido de mudar a imagem negativa do am- biente. Outra marca do Pelowrinho é 0 ambiente cosmopolita que se mantém pe- la presenga ‘dos turistas, artistas e estudio- sos. Boa parte dos moradores jé partici- pou de filmes, videos, gravacoes, pesqui- sas, ete. Nos anos 50, formou-se af 0 cordao Vai Levando, que chegava a reunir 3,000 pes- soas. Na década seguinte, apareceu outra batucada, a Sio Salvador, e a escola Rit- mistas do Samba, com sede na Ladeira da Preguica, proxima do centro histérico. Todos esses grupos entraram em refluxo nos primeiros anos 70. Parecia que nio 2 gando o Camaval, esperavase o sucesso absoluto de Geronimo, Luts Caldas ¢ 0 Chiclete, campedes de audiéncia das FM. Nio foi absoluto, porém, o sucesso indus. trial... meu quadro negro retrato da negra raiz dava mais certo, os blocos ndo aguenta- vam mais aquela estrutura, Em 1976, cri- ou-se o Banda Voou, um bloco com certa influéncia do modelo do Hé na batida e na roupa. Durou pouco. Em 1979, durante uma cachagada no Ma- ciel, um grupo de amigos se propés a for: magdo de um bloco afto, com a moti- vacdo inicial do nome: Olodum,!° 0 equi- Pamento minimo necessdrio foi juntado a retalho ¢ local de ensaio foi cedido pe- la antiga Fundacdo do Patrimonio Artisti- co. No primeiro carnayal (1980), 0 Olo- dum reuniu- 700 componentes, a maioria do Maciel-Pelourinho, com experiéncia de batucadas, escolas de samba e blocos de indio. A taxa era bem acessivel, como ainda hoje. O bloco comecou a crescer, enfrentando uma crise interna em 1981- 82 que culminov na safda de alguns fun- dadores, que formaram entdo o Muzenza. Em_1983, 0 Olodum no se apresentou no Carnaval. A esta altura, jd tinha canto- Tes experientes ¢ sua banda jd havia arran- jado uma batida propria, com clara influ- éncia do reggae. © bloco se reestruturou em 1984, passan- do a se chamar Grupo Cultural Olodum. Sua programacao inclufa, agora, além dos ensaios e do Carnaval, uma série de cur- 808, pesquisas e outras atividades em tor- 1° Do ionubé: Olodumaré é 0 Deus dos deuses, senhor dos destinos e das coisas, Nao é uma Pessoa, estd acima dos orixas. ‘Cademnos do CEAS n. 112 no da cultura afrobrasileira. Isto determi- nou uma produco musical mais clabora- da. A diretoria cultural elabora uma apos- tila sobre o tema do ano, para orientar 0 trabalho dos autores. Estes sao estimula- dos a evitar o lugar comum e a ineluir, na letra, a referéncia ao centro histérico. Algumas composig6es tomam o significa- do do Pelourinho, 0 tronco onde eram amarrados 0s escravos rebeldes para a tor- tura, Era‘fincado em frente ao que é hoje a sede do bloco. £std bem at. Eu durmo e acordo vendo esta ladeira, onde correu 0 sangue dos escravos, De vez em quando, isto bate no peito e vem uma musica, Um exemplo dessa inspiragio é Retrato da Negra Raiz, de Valmir Brito e Gibi: Deus dos deuses, Olodum movimenta o mundo inteiro eafricaniza o dom que compée anatureza O negro revela grandeza No seu mundo ndo reina tristeza ndo Infinita beleza O sétimo sentido dessa tal legido Pelourinho é meu quadro negro Retrato da negra raiz Um canto singelo e divino Traz simbolizando essa negra razdo Quem sou eu? Negro/Negra/Negro/Negra Raga negra i6 i6 16 16 Raga negra chorou no Pelé © Olodum tinha trabalhado os temas Guiné-Bissau, Nigéria, Tanzania e Mogam- bique quando, em 1986, ampliou a viséo de negritude e africanidade levando Cuba. Era a primeira vez que um bloco afro es- colhia um pais da Diaspora. A preferéncia por um pais latinoamericano e de posi¢ao to singular na histéria politica do conti- nente causou impacto. Para alguns, o blo- co se desviava das rafzes, Para outros, fa- zia demasiada concessdo as esquerdas. A outros, ainda, parecia que o modelo alcan- gava @ matutidade, podendo relaxar sua preocupaco com certa ortodoxia. Mas o impacto maior viria com o tema de 1987. O diretor cultural, Jodo Jorge Ro- Grigues, havia lido os textos de Cheick Xanta Diop, cientista senegalés que sus- tentava uma posi¢ao polémica nos circu- los cientificos internacionais: 0 elemento negro era preponderante do principio ao fim da historia egtpcia.'' A posigao de Diop é a mesma de varios outros historia- dores negros militantes, na Africa e nos Estados Unidos. Na_perspectiva desses, trés perfodos da histéria do Antigo Egito tém significacdo especial: a 34 e a 4# di- nastias, do Antigo Império (2.750-2.200 a.C), quando o Egito alcangou o primeiro apogeu e se construiram as grandes piré- mides de Gizé; a 18% dinastia, do Novo Império (1.500-1.305 a.C), incluindo os reinados de Akahenaton, que promoveu uma reforma monoteista, e Tutankamon, que restaurou a antiga religito; a 254 dinas- tia, chamada Kushita ou Etyope, também do Novo Império (715-656 a.C). Ha indi- cadores de que os faraés desses periodos eram negros. ‘A proposta de levar o Egito no Carnaval obteve 0 consenso do grupo, mas desper- tou uma série de criticas externas. Alguns achavam um absurdo dizer que os faras eram negros, afeitos a historiografia mais convencional. Esta sempre apresenta a civilizacdo egipcia antiga como branca, ou quase isto. Ndo por demonstragfo ou exposi¢do, porém; simplesmente, parece “natural” que a construgdo de um impé- tio poderoso seja atriburda aos brancos. Alguns intelectuais, por outro lado, per- guntavam que sentido poderia ter 0 elo- gio de uma formacao politica imperialis- ta, baseada no trabalho escravo, depois de um tema como Cuba. 11 DIOP, Cheick Santa: “Origem dos Antigos Egipcios", in UNESCO, Historia Geral da Afri- ea, Sao Paulo, Atica/Unesco, 1983, p.41. Seus argumentos mais convincentes sao a descoberta de alta dosagens de melamina das miimias dos faraés ¢ da notavel coincidéncia entre os radi- cais da lingua wolof (fala no atual Senegal), aquela falada no Antigo Império e 0 copta. 12 Cf, DRAKE, St. Clair: Black Folk Here and There, vol. 1, Los Angeles, University of Cali- fornia, 1987, p. 144, 208, 217 © 223. Este li- vro resenha iodo um’ trabalho de afirmacao da negritude no campo da historiografia, relacio- nando etnocentismo € procedimento cientifico. Trata especialmente das civilizagdes antigas do Vale do Nilo. Cadernos do CEAS n. 112 23 eat pss etic faraé Akahenaton (18# dinastia) promoveu uma reforma monoteista e transferiu a capital de Tebas ava Amarna, onde floresceu um estilo novo — mais realista ou mais estilizado — de representagio da lia real. Estas esculturas de Akahenaton (Museu Egipeio, Berlim) estao entre os muitos indica~ dores de que essa fara6 era negro. Para alguns egiptdlogos, entretanto, a escultura & esquerda deve ser “uma caricatura” ou uma representacdo de “uma deformacao” ou “uma degeneracdo”, enquanto a da direita tem “os labios inchados” ¢ ‘as feigdes grossciras nna apreciagao estética que 0 etno- centrismo dos cientistas parece se manifestar com mais intensidade, O impacto do tema sobre os diretores e artistas do grupo ¢ os frequentadores dos ensaios foi bem outro. Toda vida pensei que o Egito era branco. Foi uma revolu- ¢do na minha cabeca saber que aqueles fa- ra6s eram negros, Nos blocos, a gente muitas vezes sai de primitivo, A gente fala de escravidao e sofrimento, e tem mais é que falar mesmo, Mas 86 isto ndo resolve. Como é que pode falar de poder negro na base de uma langa contra um canhio? A singularidade do argumento estimulou o trabalho dos Iideres e artistas do Olodum. A banda tinha se reestruturado, trocando os cambitos de madeira das caixas pelas baquetas de vime, para obter um som mais nitido, Vdrias batidas tinham sido arranjadas, acompanhando a diversifica- ¢do do ritmo das composigées que apare- ciam: merengue, salsa, reggae. A batida de samba desenvolvida no comeco do bloco foi_aperfeicoada, Participavam da banda varios adolescentes que haviam aprendido a tocar na banda mirim, um trabalho edu- cativo do grupo. Pela observagio do conjunto das composi- gGes é que se percebe o sentido do afro no trabalho dos artistas do Olodum, co- mo a tensfo relacional entre Salvador e Africa, Algumas misicas falam de uma A- frica de esplendor, poder e grandeza: O rei Amonhotep paulatinamente honrando aos deuses/edificou em Tebas um majes- toso templo. Outras abordam o negro que luta © a extrema humilhagdo do apart- heid: gaiola ndo é prisdo pra negro / pren- de segredo, mas no pode nos prender | Que bandeira é aquela? | E Luter King, Zumbi, Nelson Mandela, E. 0 bloco que faz presente a Africa: Oh, Pelourinho, 0 afro Olodum traz é avenida 0 Egito dos Faraés, Em contrapartida, 0 Olodum é 0 24 Cadernos do CEAS n. 112

You might also like