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Marie-Louise von Franz concedeu duasenirevistas 8 rédio Cultura Francesa no final dos anos de 1970: 0 grito de Merlin e Sonhos ¢o destino, ambas tratando da questo existencial da bissca de sentido, que constitui o caminho dda alma para a autorrealizac0 e o encontro da propria iddentidade. Em Ogprio de Merlin, encontramos conceitos da psicologia junguiana presentes no processo de autoconhecimento. Em Somos ¢o destino, Von Franz identifica, no arcabougo onirico, a hipotese de contimuidade da alma paraalém da morte do corpo fisico. Neste pequeno livro encontramos Von Franz tratando de grandes questoes que pulsam no fntimo de cada um de nos, Marie-Louise vor Fawr (1915-1998) trabalhow com June. por quase trinta anos. Autoridadlereconhecida a dra da Interpretasdo psicologica de sonhos, contos de fadaetexios alquimicos, exereveu must livros sobre esses assunt05 ‘Oxteas tos de sus autora pablicados pola Paulus ste A tudivtdiuaet0 nos contos ie fada » A interpetag dos fonts de fda» O gato un conta da reengdo eminina ® ‘uct Acterms afta cdoadulto contra o paraiso da hjdncla “it A BUSCA O SENTIDO Marie-Louise von Franz A BUSCA DO SENTIDO (aloo Aone Pee oordanago: Oa pacar uote es dei) a open) Fs tc ar “wet at eo gender gee ase ins tt tak gs eee ka ype, Fe) ae ose amr ps og, ‘pawns Ht he a ae ‘Danone? Oars nam, to robe san) nn yon Sha ie "opp ete amine gre Joma peeps Me conarenrienn ligase heen gh ni tg mgs Hola pepas ‘totems ok ‘neice spt, lta beets: ‘Ser ss ‘roman ttre lng te anon ‘apr eng fee es naa ‘heii Oa guar oprrente “movant Minty fos, ae “Fair pares es ‘Gmeptoe taney et tesa es esnips se ae a Cre Hessen, a Sut “hase aes penne eae ss es ee wats ahs “spots, weit “etree Sard “iti ee Marie-Louise von Franz, A BUSCA DO SENTIDO Entrevistas radiofénicas Traducio: Naney Donnabella Inacio Cunt, PhD “daria Lo Gute dy Sone Tadue- Nancy Bomabela eine Cua Deco eto Cucona Astin do Santor oordanagi de revisor ga ue Lane Capa hlaeloCarpanta ator impreaoe acabamene PAULUS Dados inarnacionsi de Catlogao ma Publica (CP) (Camara Brae doLivo, SP, Bras Fans Mar Laue vo, 1915-1958 ‘busca do seatdesenreystas acne /MaeLousevon Fane {tadia Nancy Denna nae Cn” SS Paulo Ful, 20 Gogo Amore pe Tiuosrisiak aque dusons SbNore azo 40142 187519612 scolog Hnguan Til. Sve 0991 cop-03854 Indies para catitogo sister: ‘selog jinguana 1501954 (oland gues iode-Bblotecia-CRB 8/0016 . Cadastre-se recebo informagbes sobre noss0s langamentos ‘hun Fraeisco Cr, 29 -08117-091 So Paulo Bras) Tel) 3oe73700-Fae (35792007 pechatomr-edtrlopwehcombe INTRODUGAO A COLEGAO, AMOR E PSIQUE Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos que o levam para a sua interiori- dade: 0 seu préprio espaco interior tona-se um lugar novo de experiéncia, Os viajantes desses caminhos nos revelam que somente 0 amor é capaz de gerar a alma, mas também ‘© amor precisa de alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicagdes psicopatolégicas para as nossas feridas e 0s nos- 508 sofrimentos, precisamos, em primeito lugar, amar a nossa alma assim como ela é. Desse modo é que poderemos reco- Inhecer que essas feridas esses sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nos: sa unidade e a realizacio de nossa totalidade, Assim a nossa propria vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa uunidade primeira Finalmente, ndo é 0 espiritual que aparece primeiro, mas © psiquico e depois o espiritual.€ a partir do olhar do imo es- piritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa ue a psicologia pode de novo estender a méo para a teolo- gia. Essa perspectiva psicolégica nova ¢ fruto do esforco para libertar a alma da dominacao da psicopatologia, do espirito analitico e do psicologismo, para que volte a si mesma, & sua propria originalidade. Ela nasceu de reflexes durante a pri 5 ca psicoterdpica, e esté comecando a renovar o modelo e a f- nalidade da psicoterapia. € uma nova visio do homem na sua cexistencia cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimensbes diferentes de nossa existéncia para podermos reencontrar a nossa alma. Ela poderé alimen- tar todos aqueles que sio sensivels a necessidade de inserir ‘mais alma em todas as atividades humanas. ‘A finalidade da presente colecao é precisamente restituir aalmaa si mesma ever aparecer uma geracao de sacerdotes ‘capazes de entender novamente a linguagem da alma’, como C.G.Jung 0 desejava, Léon Bonaventure NOTA DA EDICAO BRASILEIRA O texto que se segue é uma traducio para o portugues de duas entrevistas concedidas por Marie-Louise von Franz a Claude Mettra, produtor da programagao da estagao de radio Cultura Francesa, do grupo Radio France. A primeira, O grito cde Merlin’ foi divulgada em 18 de feverelro de 1978 e 16 de julho de 1979; 4 a segunda,“Os sonhos € o destino’ pode ser ouvida entre os dias 1° e 3 de dezembro de 1986, Esta ultima coincidiu com a época do langamento da versio francesa do livro Traum und Tod (Os sonhos e a morte), que fora traduzida, para o francés, por Luigi Aurigemma, também presente du- rante a entrevista, Considerando-se que a lingua matemna de Marie-Louise von Franz nao era o francés, algumas ligeiras adaptacées fo- ram feitas durante a preparagao do texto naquele idioma. A publicacdo dessas entrevistas no ano de 2010, na Franca, foi acompanhada por 2 CDs com o registro das conversas, tal ‘como aconteceram. Esta edicéo brasileira, contudo, ndo traz ‘essas gravacbes, uma vez que os originais esto em frances, Nao obstante, a versio para o portugués tentou manter 0 mesmo tom coloquial registrado no texto original, também, ‘com pequenas adaptacoes para nossa lingua, para que onos- 0 leitor possa, igualmente, desfrutar da espontaneidade e ‘maestria da Dra. Marie-Louise na lida com a Psicologia Ana~ litica Junguiana, ‘As duas entrevistas foram concedidas quando a analis- ta 6 havia alcancado um alto nivel de exceléncia, tanto do jponto de vista da experléncia quanto do conhecimento 42 Pima humana. isso the conferia um lugar de destaque, nfo apenas como acolaboradora mals virtuosadle Jung, mas a7 item como uma fonte propria de inspiracao para aqueles que tencontraram na Psicologia Analitca Junguiana 0 veiculo para Compreensao de si préprios e daqueles a quer assister em seus consultérios analiticos. © registro dessas duas entrevistas nos permite visual zat de forma alegsrica,certa condigao de transtus em que a ark Marie-Louise se encontrava naquele periodo Poder: se dprecar tanto os seus comentarios acerca do curso da alma fuimana, enquanto se desenvoive nesta vida do aqui e agora, Comp também aprender com as eflexdes que ela nos oferece Em relagio as hipdteses e debativeis possibilidades de Pros: Seguimento deszaalma que ‘avez, corra do lado de i aP6s sArorte, Com 0 grito de Metin’ 0 letor poderd, inclusive, ‘etomar alguns dos conceitos basicos que estruturam a pst Tologia unguiana, o desenvolvimento do individuo e os de Sefios por que passa neste percurso em diregao & sua propria srcatidade, Nessa sessio, tanto a figura mitologica de Merlin {quanto 2 personalidade de Catl Gustav Jung so emulacas Gino referenciais desta incessante pulsdo para a autorreal peso. Condigao esta também presente em cadaum denés,& espera de ser desenvolvida. ‘Na segunda entrevista, “Os sonhos e o destino’ a Dra. Marie-Louise ja se encontrava bastante acometida pela do- hea de Parkinson vindoafalecer dois anos mais tarde, Adi ee ascutha o material onirico que vislumbra outra demanda cwictencia relacionada @ etemidade, ou sea, & hipotese da continuidade da fruigBo da alma que talvez aconteca 2 des- petto da morte do corpo fisko. Sua voz entso, lui mais Parc ree niosa, o tom é grave e lento, tipificando a condiao de que a a eternidade, sendo atemporal, ndo pode prescindir do que fe constréi também no aqui e agora. A analista discute, nesse Fromento, portanto,a sua humanidade diante da eternidade! ‘Sendo, pois, material de Marie-Louise von Franz, sempre se esta diante de um elixir. "A despeito das minimas adaptagbes para o portugues {que manteve, inclusive, a repetitvidade de determinadas @ pressdes comuns no col6qulo, esta edio brasileira também Fidequou o referencial bibliogréfico, de acordo com as publi- ‘cages disponiveis na nossa lingua. Indcio Cunha, PhO Analista Junguiano Belo Horizonte, 2018 OGRITO DE MERLIN Entrevista transmitida em 18 de fevereiro de 1978 € 16 de julho de 1979 Claude Mettra (CM): lencia de Merlin fala desta cratur, filha ‘de uma virger e do diabo, que, ap6s medrar por um longo tem: po pelo mundo, fnalmente sucumbiu aos encantos de Niniane, He se torna prisioneiro de seu poder e, depois, desaparece de nosso munda por haver se perdido na mundo do lado de a, de inde nao se pode mais ter contato com ele, a ndo ser através de 1 grito.Entretanto eu creio, Marie-Louise von Franz, que tanto fesse grito de Merlin quanto a sua pessoa, propriamente dita, te rnham sido muito importantes para vocé! ‘Marie-Louise von Franz (MLVF): Sim, porque, para apsicalo- dia de Jung, o grande problema da modernidade é o proble- ‘ma do mal. Nao podemos mais escapar dessa questéo. Com todas as coisas que vém surgindo no mundo e tudo aquilo advindo das guerras mundiais, nfo podemos mais deixar de cconsiderar esse tema. Na teologia cristi, mas ndo na sua préti- ‘a, hé uma tendénciaa se negar o mal ou sea, a privatio bon Isto é um otimismo cristdo que empresta ao crente um gran- de lan, @ que 0 impede de considerar o problema do mal de ‘modo mais sério. A questao do mal em qualquer pessoa é 0 Yon Franz, MLC 6 Jang 5a ita em nosso dpca, So Paso: Cut 97, ap. ung on Fran L, Alenda do Gra, $30 Paul: Cur, 181 " problema da sombra; do mal que Ihe é proprio, de sua som- bra, Todos temos uma tendéncia a nao olhar para nossa som- ‘bra ou.a empregar eufemismos e desculps-a cam idealismos, Se vocé olhar a histéria do crstianismo, quantos milhdes de pessoas jé morreram por causa desse idealismo? Merlin, por ser filho do diabo, mas tendo como mae uma mulher crista e ‘muito piedosa, une em si préprio esses problemas. Nos nioss0s dias, o grande problema que pesa sobre nés 6 uma tendéncia a cedermos completamente a0 mal, a ser- ‘mos possuidos por ele, ncorrendo no risco de nos tornarmos totalmente identificados com esse dominio. Vocé se lembra do que disse 0 assassino Manson:*"Eu sou Sata’. um quadro doentio, mas é mais uma questo sintomatica, por assim di- 2zeF e, na nossa opinio, hd uma grande unilateralidade, pois num momento tudo se mostra branco e, no outro, tudo se ‘toma negro. Como podemos observar em nossos pacientes € ‘em nés mesmos, se prestamos atencao aos nossos sonhos € tentamos encontrar um equilibrio interior, verificamos que o inconsciente esta sempre procurando unir 0s opostos emnés , também, relativizar tals opostos,jé que, afinal, o mal pode também se revelar num bem. Devemos aprender a compre- tender que essa situacdo é algo sutil, bastante relativa, e que hha nisso um problema de intencao etc, e que tudo isso acaba servindo mais para agugar a nossa conscléncia, E necessatio verificar 0 que verdadeiramente seja o mal em nds e nos ou: {ros, buscando o melhor julgamento dessa questao. Nés ain- dda somos completamente primitivos. Merlin é 0 simbolo daquilo que une o mal e o bem em si mesmo. Ele necessariamente nao praticava o mal, mas apre- ciava bastante pregar certas pecas que interpretamos como sendo truques maliciosos. Esta era sua tragédia: ele via mais, além [..] era profeta e enxergava bem mais longe do que to- 2 charles Miles Manson, ciminoso amvsican, martore Me nec de sao aeuassinats noe UA 2 dos 0s seus contemporneos. Ele, frequentemente, pregava ppecas nas pessoas e elas sentiam que"isto é um truque diabé- lico, isto é maldoso”e, somente ao final, descobria-se que ele havia praticado o bem. Jung sempre dizia em conversas pri vadas: “Merlin, esta é a minha segunda personalidade; num certo sentido, isto sou eu’ E é por essa razao que me interesso por Merlin. isso também na vida de Jung. Ele quis participar de certas cortentes ideol6gicas, mas era bastante subestima- do, como o fot Merlin Por outro lado, Merlin desapareceu da vida nos bragos cde uma mulher. Esta é uma est6ria que Jung, frequentemen- te, citava em conexo com a lendla de Lao Ts8,0 grande sablo 18s, que também, ao fim de sua vida, partiu com uma dan- sarina e desapareceu deste mundo, Essa é uma estéria que se diria estar relacionada ao problema da anima, do feminino, E este € outro problema do nosso tempo:o arquétipo ferninino ‘emerge da superficie; nés nao podemos mais ignorar 0 ele- ‘mento feminino. Merlin, de certo modo, talvez tenha ido lon- ‘ge demais em dirego a um lado, mas ele mostrou o carinho: © tinico caminho é o desenvolvimento do sentimento e, para um homem, isso se traduz em se ocupar de sua anima, o que implica uma diferenciagao dos seus sentimentos e também, de sua consciéneia, (CM: Gostaria de retomar um pouco dois pontos que so muito importantes e fundamentais na visdo geral que Jung nos pro- oe, acerca da vida e da morte. O primelro, me parece, é 0 fato Je que Merlin reconhece em si proprio, jé no seu nascedouro, jueo mal nao se encontra fora dele, mas existenele, assim como m cada ser vivente. Em consequércia, essa zona de somba a que voce se referiu ha pouco deve ser primeiramente reconhe- ida como sendo nossa propriedade, de forma a possibilitar que ta seja integrada & nossa personalidade, e ndo exclulda. Caso a % ‘exclusio CO", Somos expastos a grandes desordens que nos, ConduzerM a profundas tormentos psicol6gicos. MivF:E justamente isso! Hé mesmo um texto francés da len- dda arturiana em que Merlin aparece a um heréi como som- ‘bra. Merlin incorpora em si préprio as caracteristicas daquilo, ‘que norieamos Como sombra, e nés a projetamos sobre ele. O grande Perigo, quando se ignora o mal, é que passamos a velo, sobetudo, nos outros (o que chamamos de projecao) - fu que, coma mao esquerda, se fagam agdes involuntérias e destrutivas. Tém-se boas inteng6es com a mao direita, mas a mao esauerda desfaz tudo; com pequenos truques o indivi- duo acaba enganando a si mesmo, (EM:Gostatla que voltéssermas ao problema da projegSo, porque tele é de capital import&ncla e, geralmente, mal compreendido, Muy: Esta € uma palavra da qual os freudianos também se utilizar. Para eles,a projecdo é aquilo que eu veo nos outros {e. desse modo, do lado de fora}; é alguma coisa em mim que reprimi por causa de um conflito neurético. J para Jung, tudo normalmente projetado da nossa alma, mesmo quandonao tiver havido repressio, Tudo que pertence a nossa psique © {que nao reconhecemos (ou ainda nao reconhecemos) nos ‘parece como que pertencendo ao lado de fora. Jung diz que S6 se pode falar em projecao quando é chegado o momento de se ecolhé-la, Hd alguns sintomas (que surgem] quando as, pessoas €stao inseguras, quando elas ficam fanéticas, quan- Go exager@m, quando tém emocbes e afetos exagerados. Es- See sao 05 sintomas que nos levam a dizer: “Por que o senhor Fulano de Tal me irita mais do que o normal? Pode ser que cle nao $22 Simpatico, mas nao preciso perturbar-me desse modo? $€ fico agitado demais sem que ele nada me tenha feito, nid hd razio alguma para estar t8o furioso, entao, isso 4 uma projecio, entéo aquilo que me irita nele esta ern mim, 6alguma coisa de mim mesmo que vejo nele. E sempre se vé ‘que, se a pessoa reconhece isso, se ela se recolhe numa medi- tacao.e ve, com muita vergonha, que aquela é uma qualidade dela mesma, entao 0 senhor Fulano de Tal exterior logo fica rnormalizado e as relagdes sao harmonizadas. ‘EM: Isso quer dizer que a desordem do mundo exterior esté em MLLvF: Ela esté em nds. Tudo esta em nés. N6s somos respon sveis pela guerra, nds somos responsaveis por tudo que lacontece de mal, nao é? [A tendéncia do homem é pensar: ‘Os outros s80 0s culpados! Eu tenho boas intencbes, nao faco nada, nao fago politica, fago meu trabalho, sou um homem, corajoso ou uma mulher corajosa..€hé, sell, 5 comunistas ou 0s capitalistas ou 0s outros “istas" que fazem tudo e que so a causa do mal. Esso é puramente uma projegéo. Se nos, liritamos demas, isso ¢ uma projecéo [.] Quanto a mim, per- cebo isso de forma bem simples, pela minha voz: minha voz se eleva ou tenho uma voz iritada quando falo de alguma coisa? Entdo digo para mim mesma: Aten¢ao, atengdo: pro- Jecao! ‘CM: Como dlferenciay,neste mundo que nos rodela, entre aqui lo que 6 bom para nés, para nossa personalidade, para nossa integridade, em relagao ao que devemos evitar? LVF: Se voce ainda nao é neurético, vacé tem o que chama mos de instinto: tem um sentimento semi-inconsciente, um sentimento latente, de que tal pessoa nao é simpatica.E sim. plesmente isso! Da mesma forma, nao comemos coisas das ‘quais ndo gostamos , geralmente, nés temos um bom instin to, Se somos neuréticos, ficamos inseguros. Entdo dizemos: 15 “Por que estou pensando isso?” etc. As pessoas se forcam a fazer coisas contra seu instinto ou vo contra seu instinto e, ‘entao, esse 6 0 momento em que elas devem ser corrigidas pelos sonhos, jé que os sonhos exprimem o instinto. De mi- ‘nha parte, se no sei, se nao tenho certeza, se me encontro em situagao em que digo para mim mesma: Esta situagao & feia, isso no me agrads|..J, mas ndo consigo colocar o dedo tem cima‘, se ndo sei o que ha [..J, devo me retirar ou sera que ‘minha tarefa ¢lutat, enfrentar essa situacao0? [..] entdo obser- ‘yo meus sonhos e, geralmente, os sonhos dao uma indicacao clara: "Retire-se” ou "Voce deve ter a coragem de se manter nessa dificuldade’ Todas as possibilidades. (CM: Quer dizer que os sonihos nos fornecem, conquanto pos samos lé-10s, decifé-los, as indicagGes sobre os caminhos que devemos seguir? MLVF: Sim, absolutamente, CM: E qual é, na perspectiva junguian a fungao do pesadelo? Vocé me diz que talvez seja absurdo separar 0 sonho do pe: delo, mas, MLvF: Um pesadelo é um eletrochoque da natureza. € quan- do se esta em uma situacéo muito perigosa e nao se tem. ‘compreensao; entao 0 inconsciente grta, por assim dizer, 20 seu ouvido: ‘Acorde, vocé est em perigo!” Imagine se voc8 tivesse este pesadelo: vocé esté em uma casa que pega fogo endo encontra a saida, Voce corre e desperta em desespero, Conscientemente, vocé nao sabe o que se passa. [sso significa justamente o que o sonho quer dizer:"Vocé esté em uma casa que esta pegando fogo e nao se da conta disso" Portanta, sso quer dizer que vocé esta em um perigo psiquico (nao exterior, 16 ‘mas psfquico) que néo fol percebido. Isso éa natureza dando- the um eletrachoque. CME, nesse sentido, Jung ampliou consideravelmente a pers- bectiva para uma compreensdo do pesadelo ou do sonho, uma ez que ele extrapola em muito © ponto de vista sexual para abordar toda a totaldade existencial. Enfim, para lung, o sexo do tem o lugar predominante que tem pata Freud. MILvF: Sim. Por exemplo: se quisermos fazer desse instinto a base das reacées psiquicas, delxamas de levar em conta que hha também impulsos espirituais no inconsciente. Mas, mes- ‘mo se vocé considerar apenas o plano dos instintos, simples- mentea fome ea necessidade de nutrigio sao, segundo Jung, ‘ertamente muito mais primordiais do que a sexualidade. En {te 0s primitivos, ou seja, o homem natural que vive na natu: ‘87a, 80% do contetido das conversas gira em torno da comi- {da, e no em tomo de mulheres, Eles nlo tém inibico, no 10 pudicos, mas a comida & o que se revela um problema, € {que logo se tornaré um problema de novo. Nao se falaré mals de sexo com a superpopulacao que temos! ‘Ah! Hd ainda o instinto de dominacéo de Adlet a salien- tar, Agora, sabe-se também que o instinto de poder, oimpul- 50 da dominacao, 0 poder, ¢ um fato importante. Assim, ja te ‘mos trés; Ha ainde, para Jung, 0 impulso da individuacdo, de :fornar vocé mesmo, que é mesmo mais marcante do que 10s 05 outros. O impulso mi camente.A totalidade dos Instintos de uma raposa é ser uma raposa e viver a vida de luma raposa; e o homem deve ser homem na sua totalidade, Jung dizia sempre: “Somos muito infelizes, a0 passo que os Ainimais nao tém problemas: um tigre nao come magés!" Mas homem é um pervertido, sua curiosidade, que herdou ” dos seus ancestrais primatas, o faz desviar de seus instintos, Anite corrige isso pelos sonhos. E por isso que damos tanta importancia aos sonhos. ‘EM: Mas em relagdo a noite, que voce evocou, 0 sonho queabre 180 amplamente as portas do inconsciente, abre as portas que, na realidade, sdo de dois reinos. Hé iniciaimente, 0 reino muito ~antigo do inconsciente coletiva, enfim todas as lernibrancas de ma vida pertencente & tibo, da vida antes mesino que, talvez, ‘© homem fosse homem: e, depo's, hd o conjunto da vida cor- rente, desse rio que é 0 de nossa vida pessoal, Como se podem separar essas duas partes do sonho? MLvF: Na prética, é um pouco misturado. Raramente voc® tem sonhos puramente arquetipicos (como Jung os denomi- na, quer dizer, que vem do coletivo ou que sejam puramente ppessoais;sio misturados, Mas a maioria dos sonhos é pessoal endo se pode compreendé-los a ndo ser que se considerem as associacdes pessoais e se conhesa a historia, abiografia do sonhador. Digamos que alguém deteste a cor verde. Nao é preciso saber 0 que os simbolistas pensam do verde, mas é preciso procurar saber se, na sua juventude, alguma coisa the ‘aconteceu em que a cor verde desernpenhiou um papel nega tivo: ele quardou essa lembranca. Isso é 0 que se chama asso- ciagdo pessoal que vern do inconsciente pessoal. Se ele sonha com a cor verde em um contexto negativo, isso faz alusdo a ‘esse problema que ele uma ver viveu. Mas vé-se, muito fre~ ‘quentemente também, que as pessoas sonham com motivos “arquetipicos. Quando thes perguntamos: “O que voc tem a vver com essa figura?”, elas se assustam. Posso he dar um exemplo, Analisei um médico mexicano catélico, Um colega enviouro a mim dizendo: “é um homem, ‘muito simpatico, mas ndo © compreendo e nés nao avanga- ‘mosnaandlise’, Um homem simpatico entdoveloa mim enao ude estabelecerligacdo. Ele me sorria e sempre dizia: Mm. 18 fmm.s5 ele me sorria e, a tudo que eu dizia, ele murmurava: “sim, sim"; eu perguntava:"Entao isso faz sentido para voce? Voce no demonstra reacio, no me dé retorno; voce ests compreendendo o que eu digo?"; "Sim, senorita, sim” Em Seguida, ele me fitava desse modo, sem me olhar nos olhos. (04 me dizia:“Mas, meu Deus, ou bem é ele que esté louco ou ou eu Ele tinha muitos sonhos pessoals. Como ele jé havia sido analisado antes, ee fazia tudo muito bem; trazia-me seus sonhos ¢ os interpretava. Mas eu me sentia muito mal, tinha a Sensagao de que nés ndo nos compreendemas'E eis osonho, ‘que ele teve: ele vé uma pedra, uma obsidiana, em uma drvore. Uma pedra enorme. € @ obsidiana salta da drvore e comeca a ‘persequi-o, Ele core, corre e a peda o segue. De repent, ele vé ‘lguns trabalhadores que fazem um buraco quadrado na terrae ‘que lhe dizem: “Venha, depressa, aqui, coloque-se no meio, que ianquilo: & assim ele o faz. Entao a obsidiana torma-se muito ‘pequena e rola aos seus pés muito suavemente, Sem querer eu disse: Meu Deus, [sic], o que vocé tema Ver com o deus Tezcatlipoca?” Porque, vocé sabe, a obsidiana ©osimbolo desse deus. Ele me olhou inteiramente aturdido, \depois disse: Aht...ndo sei’, mas logo apareceu a histéria: ele fra trés quartos asteca, até mesmo falava o navatle em sua Juventude, mas, como no México ainda ha racismo, ele repri- niu completamente esse aspecto.O ato de ser indio era uma, {questo de foro intimo, era um problema reprimido que en: {io apareceu nesse momento, Mas de Tezcatlipoca ele nada Conhecia, néo tinha associagbes, Foi apenas depois disso {ue foi pesquisar. Eu sabia mais do que ele. Apés encontrar 4s informagées nos livros, ele se tornou americanista. Ficou de tal modo apaixonado pelos deuses de seus ancestrais que lescreveu trés bons livros sobre o assunto, Mas tudo velo des- se sonho puramente arquetipico dessa obsidiana que 0 as- Americans aqui se fee ao estudleso de assur rls 8 Amica. No ‘asm aqua Mesaaméra, 19 sombrava, © sonho Ihe dizia:"Os deuses de seus ancestrais 0 perseguem!” (EME: Quer dizer que as sonhos arquetipicos s80 téo perigosos, quanto os individuas; também carregados de tisco de cisso? ML¥F: Sim, sim. 0 inconsciente & algo como a eletricidade de alta voltagem. Deve-se tocé-lo com precaucao e, sobretudo, ‘com compreenséo. CM: Vocé falou sobre o principio da individuagso, e o trajeto desse principio é restabelecer a comunicacao entre o conscier tee vinconsciente MLvF: Sim, (EM: Efetivamente, se lermos a historia de Merlin dessa maneira, perceberemos sem duivida que Merlin, constantemente, insere ra sua vide consciente os elementos que tanto fazem parte de sua vida ancestral camo da vida de sua tribo. MLvF: Sim, absolutamente. Esso é uma caracteristica cultural do homem ocidental,Jé analisel coreanos e, agora, este me- xicano aqui, ¢ eles nao tém essa cisdo. Mais ou menos desde (05 tempos de Descartes, adquirimos esse racionalismo e uma ceesura que nos isola do inconsciente. Merlin é 0 profeta que sempre tenta fazer 0s outros permedvels ao instinto, a0 in- ‘consciente, as imagens, aos sonhos.. CM: Sim. Entdo Merlin ilustra mufto bem o que Jung vai eto- ‘mar mais tarde sob o nome de imaginacao ativa. Quer dizer que, fem uma situago dic, complicada, Merlin continua a inventar ‘aminhos que Ihe permitam contornar as dificuldades e criar, 20 ‘BAIA Universo nos quais possa se sentir A vontade e, em cor sna constr constantemente uma stuacso de iversao Num dos textos medieval, ele aparece com duas 189 redor do pescogo, o que mostra, no fundo,@ como ocaduceude Hermes ele une os opostos. 10 caminho da serpente que ndo val em lina eta esis que sao vi da natureza. A natureza faz ito. do desenvolvimento da imaginacio ativa, que do desenvolvimento da personalidade, como € que sta deve lidar com pessoas em sofrimento, para que tal linento possa ser colocado em pratica? Voltanclo ao caso do mexicano, eu the disse:*Fale com alpaca!" e Tezcatlipoca apareceuhe em meditacéo deus, ent20, desemppenha o papel de Merlin; ele 6 0 eu, | desde entao nao tive mais nada a fazer. Esse homem, #@ Visita porque esta ligado a mim e eu a ele. NOs nos Ppequenas visitas matuas porque temos uma gran- la um pelo outro, mas ele no precisa mais de mim lista, € se ele esta com algum problema eu Ihe digo: f Tezcatlipoca’ Esta a rota da individuacso, Ele posicio de meditacdo (ele construiu um pequeno nto Ihe pergunta:“Tezcatlipoca, diga-me..” e en- lisse e & inacreditavel, Naturalmente, io ¢ Tezcatlipoca, é o seu simbolo do Self, aquilo ‘chama de Self que 6 a personalidade total, supe- a, Ou superposta 20 ego. Para nés, 0 ego é apenas aquena parte da personalidade. € como no tomo. 0 ‘© centro do dtomo, 6 0 Self o ego seria somente um Hétrons que gira em torno do centro, Merlin é uma per- 21 sonificacio do simbolo do Self. Ele une os opostos, sabe o fu- turo, encontra uma saida quando a situacao esta bloqueada; ‘mas trata-se também do inesperado, do irracional e, sobretu- do, €0 grande desbloqueador. Sempre se vé como 0s cavale' ros da Idade Média, com seus idealismos e seus principios, se colocavam em situagdes sem saida, e Merlin, entéo, aparecia ali na esquina, na hora certa, indicando-lhes 0 caminho que 1ndo havia sido pensado. (CM: Vocé fala muitas vezes no seu livioe na sua pesquisa (assim coma Jung) sobre a busca do Graal, O que é impressionante na busca do Graal, contudo, &2 multipicidade das visdes, sonhos & _aparigdes. Que papel voc® atrbui a essa transformagéo da reai- ddade,a essa mistura de uma realidade aparente com uma itea~ Tidade real? Para vocé, qual é 0 sentido, portanto, dessas visdes relatadas na época medieval? MLVF: Esse é 0 outro mundo; é o que chamamos de incons- Ciente, E nés podemos nos treinar a vé-lo com novos olhos se observarmos as pequenas sincronicidades, e nos atentar- ‘mos para o problema das coincidénclas. Se, ao invés de pas- sear por uma rua de Paris simplesmente dizendo: ‘As 9h30, devo estar em tal e tal lugar! pensando apenas em ter que comprar rapido @ minha passagem de Gnibus et, e, 20 in- vés disso, me colocar num estado de humor um tanto quanto sonhador e dizer a mim mesmo: *O que est por vir ao meu encontro hoje?" e abservar, nesse sentido, as coincidéncias [ul € como se voce estivesse realmente numa situacao onir- ca. A mim, J aconteceu coisas que, na realidade, tive que me beliscar para me certificar de que nao estava sonhando. Mas, naturalmente, é preciso ter outra atitude consciente, é preci- so observar,é preciso estar aberto a todas as possbilidades e, entio, veremos que, ainda hoje, a vida esta cheia de milagres, 2 €M:Coma o analista pode ajudar o outioa realizar aimaginagso ava? MILvF: Comegamos, quase sempre, somente com os sonhos ¢;lentamente, os sonhos mostram seu cardter arquetipico e, i estamos na mitologia. Depois de se ter trabalhado por bastante tempo com os sonhos pessoas, a mitologia apa- rece, como demonstrei no caso do mexicano. Nesse caso, 0 Inconsciente coletivo fez presente seu mito, por assim dizer, Nesse momento, foi seu mito pessoal que surgiu e, com ele, ia ctiatividade, uma vez que se tornou americanista e ago: Fa se encontra verdadeiramente criativo. Ele achou seu lugar ‘a historia, no mundo e, agora, sabe o que deve fazer. Nesse sentido, ele foi curado porque 2 neurose, a pior neurose néo. 50.08 sintomas, mesmo que sejam muito desagradéveis, mas ‘a pior neurose é ter o sentimento de que minha vida nao tem sentido. Hoje em dia, tem muito mais gente que sofre disso do que de sintomas verdadeiramente neuréticos, ou seja, de sintomas compulsivos ou algo assim. Eu tenho muitos ana- lisandos que nao apresentam sintomas psiquitricos ou psk- Copatolégicos, mas que vém simplesmente porque dizem: ‘Minha vida ndo tem mais sentido, est vazia’ 'No inicio, comegamos sempre pelos sonhos, por precau- Gd0, € porque a imaginacao ativa é algo Intenso. Esta é uma pratica um tanto quanto forte, cheta de eletricidade, e numi- ‘nose. Portanto, comecar com os sonhos é uma forma menos perigosa, pois, com eles, vé-se logo do que é que se trata, Podemos, enti, fazer uma reeducacio com essas pessoa ode-se reduzir-Ihes o racionalismo, ou mesmo dar-thes um ouco de razao, se necessério for, jd que, naturalmente, nao somos antirracionalistas. € somente uma questao de recon- ciliar 0 irracional da vida com a vida da razio. A razio tem seu lugar na vida, hd momentos em que se deve empregar 8 razBo. Mas ha momentos em que se deve deixar viver 0 23 sentiment, a fantasia, a fantasia criativa, sobretudo para se encontrar um sentido, Vocé se lembra de que, nas Memérlas, Jung disse: "Eu fiz esse livto sobre a mitologia, mas quando 0, terminel, disse a mim mesmo:'Tudo isso esta muito bem, mas qual é 0 meu mito, qual é 0 mito no qual eu vivo?" E, entdo, ele comecou a fazer a imaginagao ativa;iniciou um descen: 0, permitindo que os simbolos do inconsciente emergissem para que, topando com eles, encontrasse seu mito." (CM: Ha muita gente que diz: ‘Claro, eu tenho sonhos; mas, a0 mesmo tempo, arma que no consegue se lemibrar deles En: to, essa auséncia de memoria do que foi vivido no espaco no- turno representa um tipo de censure que ¢ imposta a si mesmo. paraimpedir que o sonho penetre a vida real? MLvF: Sim, sim, em geral, sobretudo, se a pessoa vive uma vida extrovertida demais, muito voltada para o exterior, e faz muita coisa. Eu mesma, se fago muitas coisas, se vejo gente demais 0 dia todo, se nao tenho um momento de tranquil dade, minha tendéncia é nao sonhar. € também um proble- ma energetico: a energia esta totalmente direcionada para a adaptacdo externa, mas o inconsciente tem necessidade de certa energia para engendrar um sonho. Entdo, se gasto toda a minha energia, quando acordo, tenho um sentimento vago: "Tive um sonho, mas no posso mais me lembrar’ Ao passo que, sempre quando me retiro e vivo muito tranquilamente fe pouce falo, tenho grandes sonhos chelos de cor. Mas, 3s vezes, eu também os tenho, se eles so necessirios, no melo dda confusdo. Isso depende, mas, em geral, pode-se dizer que essa éa regra, E, também, isso acontece quando as pessoas nao gos- tam de seus sonhos. Frequentemente tenho analisandos que dizer: “Ah, sempre tenho esses pequenos sonhos pessoais, “Jae A Memos Sons, Reletes, io de ance: Nova Front 2006 24 ‘absurdos. Eu fico com inveja. Lemos nos livros sobre os mag- hificos sonhos que outras pessoas tém, mas o que tenho 530 ‘apenas esses pequenos sonhos bobos e absurdos” Mas Jung sempre diz: "Nao ha sonhos bobos, ha somente pessoas to- las que nao os compreendent’. Sempre digo que devemos ter a humildade de analisar esses pequenos pedacos de so- nnho absurdos. E se vocé emprega a energia, se os analisa e se obedece a0 que dizem, entdo, geralmente, os sonhos se tomam mais ricos. € como se o inconsciente dissesse: Ah, se voce quiser me escutar, eu tenho muito a Ihe dizer! Mas, se nao o escutamos, ele nada diz. Pouco a pouco, as pessoas tem. mais sonhos, mais interessantes, desde que, verdadeiramente tenham a atitude de dar atengao aos seus sonhos, Tive como analisando um homem que me disse: “Sra, vvon Franz, quero fazer uma anélise porque tenho depressio, mas vocé nao poders trabalhar com os sonhos, pois eu nunca sonho' Eu rie Ihe disse:"Até agora, isso nunca fol um proble- ma. E na primeira conversa, nés somente tocamos nos pro- bblemas pessoais. Vi um pouco onde estavam os complexos. A gente nota isso na voz: quando a voz muda, isso nos fala dos omplexos, ndo €? Depois de fazer minhas anotacées, ele dis- se: "0 que vamos fazer se nao tenho sonhos?" Respondi-ihe: "Ea mesma coisa, agora vamos falar de outras coisas, nao se preocupe. Sempre se tem um sonho!” EM: Quando nos lembramos de um sonho,é possivel reconst TuHo.com fielidadl,primeiro na sua integridade e, depois, em Luma sucessio de imagens, tals como apareceram no sonho? MLvF: Para o primeito ponto a resposta é ndo, absolutamen fe! No podemos controlar isso. Nos laboratdrios de sonho, ‘quando a pessoa comeca com os REM ela & acordada ime Shc sie amerana para Rp Ee Merny, que em ponges sca ‘nninertopcodosoner ia eimai 25 dlatamente e & convidada a contar sonho enquanto esta ainda inteiramente fresco, por assim dizer. E depois disso deixam-na dormir novamente e, de manha, Ine perguntam se teve um sonho ea deixam contévlo, Assim se pode comparar ‘como eles 540 relatacios no momento em que foram sonha- dos e como sao informados depois, em uma situacdo normal ‘quando se acorda de manha. As diferencas nao sao grandes. AAs vezes, hd epis6dios esquecidos ou o sonho ¢ encurtado.. Tive um colega que receava que (neste tipo de experimento} as cenas desagradaveis do sonho fossem reprimidas e que ‘apenas as boas fossem lembradas. Ele conduziu varios experi- mentos esso nao se confirmou. Em geral, areprodugio é fel. ‘Mas o problema do tempo é de fato real. Fol isso que le- ‘you Jung, entre outros, postular a ideia de que, nas camadas pprofundas do inconsciente, hi uma relatividade do tempo, ‘como no mundo microfisico dos étomos. Os sonhos so, 3s vezes, como pacotes de imagens, mas, quando vamos conts~ -los, € necessério transformé-los numa sequéncia discursiva de cenas, Entdo, mesmo que eu tenha verdadeiramente so- inhado:"Estou em uma catedral e vejo uma imagem; e, depos, eu entro em uma catedral’, pela manhai vai ser contado: "Eu lentro em uma catedral, (e depois) estou em uma catedral, instintivamente nés colocamos ordem. Mas isso nos chega {quase todo dia; 0 individuo diz a0 analista:’Ainda tenho um. equeno fragmento, mas ndo sei onde ele se encaixa, nao sel se est no comeco, no fim ou no meio... Enfim, vou conté-lo" Entao, se vé que nao se pode colocé-lo instintivamente numa ssequéncia, a imagem veio no pacote. (CM: E como se pode sonhar, por exempio, em um milésimo de segundo cu um centésimo de segundo alguma colsa que leva ‘mos alguns minutos para relatar? Quer dizer que a imager é cextremamente violenta e répida, e no pode ser contada a no seem um tempo muito longo. 26 im. E como Poincaré, que viu as solugbes das equa- {goes fucsianas em um segundo, eisso Ihe tomou trés quartos de hora em sequida para escrevé-las. Ele estava simplesmen- {tno seu sofa (ele explica em Science and Method) e viu assim (estalando os dedos), num flash, em um momento. Esta é uma funcao da intuigdo, que é uma percepgio através do incons- lente em que, as vezes, se vé, por assim dizer, as coisas em bloco, em conjunto. Nas mitologias dos primitivos, por exemplo, se voce festuda as linguas primitivas, as palavras tém vinte sentidos, tlas nao so de modo algum fixas em um sentido. As palavras {..] nas grandes palavras primitivas hd todo um cosmo que & Lesignado por essa palavra, Ainda é desse modo na visdo do Inconsciente, por assim dizer. O inconsciente tem uma visio hintética das situagées, pode-se dizer. A esséncia do simbolo sinda é assim, segundo Jung. O simbolo nao tem um sentido, Nao se pode dizer:"A cor verde é a esperanca’ Cada simbolo tem um sentido absolutamente complexo que nao se pode Jamais esgotar; de acordo com Jung, nao podemos jamais fesgotar[..J. Com a linguagem e com 0 argumento racionel, nao pademos jamais esgotar o sentido de um simbolo. Fica Sempre um resto, nao conhecido, do qual ainda se poderio deduzir algumas coisas, (EM: Quer dizer que a figura simbolica tira seu significado parti: fear de outras figuras simbolicas as quais ela se acha assoclada? MLvF: Sim. Entao, para nao nos perdermos nesse oceano de sentidos diferentes, observamos sempre 0 contexto, nao é? Por exemplo, o ledo as vezes tem a ver com o poder, com 0 Sexo; € a realeza, é 0 sol, ¢ aquilo que devora, é aquilo que faquece. Veja, isso jé é uma mistura: a realeza € 0 sol se mi turam. 0 calor e 0 sol se misturam, mas o calor e o rei nao se ‘misturam. Voce vé que hd um monte (porassim dizer todo um a campo) de sentidos diferentes. Por conseguinte, se alguém, durante anoite, sonha com um leo, 0 que escolher? Entre to- dos.o5 sentidos, qual escolher? Entio observamos o contexto. Observamos se 0 ledo é perigoso: nesse caso, a tendéncia é ‘optarmos pelo lado devorador, do poder. O leao & também simbolo do diabo no cristianismo; ¢ se o ledo é positivo, se no sonho é, por exemplo, um guia que conduz, ou algo neste sentido, diremos entdo que se trata da realeza, algo relative & {qualidade solar, com a lluminagio etc. E por isso que a interpretacao dos sonhos néo ¢ algo puramente racional, é uma arte, que necesita de uma sen: sibilidade artistica; é necessério um sentimento, Mas é tam- bem um problema de linguagem: como se pode dizé-lo a0 ‘outro? Se vocs esta lidando com uma pessoa culta, pode fazer alusBes poéticas e sutis. Se for uma pessoa ingénua, deve ser preciso. Se for uma pessoa do povo, alguém do pov |}, en ‘do eu digo: 0 ledo, isto que esta em voce, ele faz AARRH, pertence a vocé" Se analiso alguém que nao tem educacao. ‘alguma, eu fago uma encenacao do ledo para expressar aqui- lo que desejo dizer. (EME é essa riqueza de figuras simbélicas que, em parte, explica a atengdo que Jung deu @ alquimia. Porque, para alguém que. entra pela primeira vez nesse territerio alquimico,é bem eviden- tea prodigiosariqueza das imagens utilizadas pelos escritos dos alquimistas, o que é impressionante, MLvF: € isso que impressiona; mas poderla dizer que, se voce colecionar todos os contos de fada do mundo, teré também. uma enorme riqueza de simbolos. E isso € o que também se ‘mostra especial com a alquimia— e creio que é por isso que a alquimia é 0 mito dos tempos futuros, é o mito profético da era de Aqusrio: a alquimia &3 linguagem...da matéria. Ea lin- ‘guagem de um tertitrio onde a psique e a matéria se tocar, 28 © € por iss0 que especialmente, uma linguagem criadora, E voce vé agora que, em toda a fisica moderna, investigam- se problemas que os fisicos americanos dizem existr na re- \cd0 entre a matéria ea mente, entre, digamos, a materia & 8 psique. Agora, por exemplo, apareceu na América um livro fexcelente, O Tao da fisca, de Fritjof Capra, que tenta provar que a fisica moderna se aproxima das ideias hindus e que, no fundo, 0 cosmo é uma enorme estrutura viva que é tanto mental quanto materia. Capra nada sabia sobre a alquimia e ‘por isso que ele procurou 0 Oriente. Ele buscava um mito da matéria, entdo ele foi ao hinduismo. Mas, se nao quisermos ir to longe, nés temos um mito da matéria que é, precisamen- 2 alquimia. E af vocé tem de tudo, tem aquilo que aborda- mos no comego. A alquimia se ocupa da problema do mal. A lquimia é, essencialmente, feminina e se ocupa do problema {da matéria e do principio feminino. Portanto, as duas coisas ‘que faltaram até o presente no crstianismo se encontram de forma compensatéria na alquimia.£ por isso que, na alquimia,, ltemos uma linguagem para encontrar solucdes para esses ols grandes problemas que ainda nao resolvemos. EM: Porque o projeto alquimico consiste, em esséncia, er fazer surgit da matéria espirta que all se encontra escondido. MILvF: Sim. Para eles, a matéria nao é morta, ndo é uma ma- {éria inanimada: eles tém inclusive a ideia da anima mundi, 4 ideia de que a matéria tem uma psique. E agora, o bidlogo Rensch, por exemplo, diz que a psique, provavelmente, no fomecou a existir num dado momento da evolucio; diga- ‘mos, com os vertebrados ou algo assim. Ele diz que a psique seve ter sempre existido e, para nao empregar o nome psi ue, falou de protopsique. Ele prope que ja deve haver uma Dprotopsique no étomo. Vocé vé que ai também ha uma ten. {ntiva de retornar as ideias da alquimia, de reunir aquilo que 29 Co cartesianismo de tal forma separou: sujelto e objeto, ratio e ‘matérla morta, EM: Sim, born, ai nds nos encontramos no plano da eneria Catia, quer dizer, er um universo que é, essencialmente, de~ finido pela sua capacidade de metamorfose. E ¢ preclsamente’ ‘o-homem que aqui esté para manifestar essa possibildade de transformagao do mundo. E, num certo sentido, justarnente por sera crlatuta,torna-se mesmo maior do que seu proprio criador, esse criador inominado que vive nur dominio do lade de la MIF: por isso que 0 alquimista sempre diz: "Aquilo que 2 natureza debxou imperfeito, a arte da alquimia completa, portanto, ele continua a obra de Deus, ela a coloca naquele ‘mundo do lado de Is. (CM: Entdo, no didlogo entre Jung #2 alquimia, hd un ponto que ‘me parece muito interessante. £ que 0s alouimistas sempre de~ fenderam que no conhecimento, que é 0 fundamento de suas ppesquisas, permanece, ainda secreto, um conhecimento, const derando que uma grande quantidade de mentes era bastante ‘obscura para acomodar @ que eles tinham a dizer E essa vocar (do esoterica da alquimia debsoura a maigem e a protegeu, em: Certo sentido, das incursBes que pudessem ti-la do caminho| mas.ao mesmo tempo impediura de fecundar como poderia ter sacontecido.. MILF: As ciéncias.. ‘CM: Com todas as civilizagées em que vivernos. Nesse caso, ‘como Jung via o problema aberto pela alquimia? [ML¥F: Para Jung, isto era um problema de coragem, porque cle sabia que se publicasse livros sobre a alquimia, diriam que 30 ‘le era esotético, que era ocultista. 4 se comentava que ele ‘era confuso, que ere mistico[. entao, ainda por cima, falar de ‘lquimia.. Além disso, ele me dizia:*Eu sabia que estaria aca bado no mundo cientifico’ e:*Mas é a verdade, entdo eu hes respond: Tanto faz!”. As geragées que virgo mais tarde nao Setdo to limitadas e verdo que isso nao é de todo irracional, que se pode compreender 2 alquimia, que nao é totalmente fculta ou obscura, mas que necessita ainda de certo desen- \olvimento, sobretudo das cléncias naturas, para se juntar a (CM: Mas ele ndo teria visto na alquimia a imagem daquilo que os é proposto? Diferentemente de um grande numero de te- blogos ou fildsofos que fugiram da matéria ese refugiaram nas lbsttagbes, os alquimistas procuraram a natureza, Eles olhiaram hatureza e procurerem na sua esséncia material 0 segredo ‘Ja existéncia. Eles votaram a ela e confrontaram-na como nés Jamnbém deveriamos alhar para nés préprios, votando-nos para nossa zona sombsla para lumina MIF: Sim, absolutamente, e voc vé agora essa tendéncia (eral que se pode verificar pelo modo como se trata o corpo tualmente. Tudo isso interessa ao corpo e a psicologia. Ha fscolas de psicologia na América onde tudo o que se faz é to- far 05 pacientes: eles sao abracados, emputradios, acolhidos com tapinhas nas costas etc. Sao tratados fisicamente [..] A oda agora é:treinamento sensorial e todos esses processos. | existe uma ideia de que nossa psique esta ligada a materia 1 eles procuram a psique no corpo, mas no sabem (e é por Js50 que empregam meios tao primitives e, para nés, barba- fos) que 0s alquimistas, através de uma meditacao interior, sempre entraram em contato com a matériae, também, com seus corpos. Por exemplo, se voce pensar em Paracelso, sua ‘slquimia é centrada no firmamento interior que é, por assim 31 dizer a visdo interior ou a visio psiquica do corpo material Poderiamos dizer que o corpo material tem um aspecto psi {uico € is0 0 Oriente sempre viu: ioga & entrar em contato ‘com seu corpo gragas & introspecco. 80 6 a alquimia. A ak ‘quimia €a mesma coisa que aioga taista~ sobretudo aioga taofsta chinese, que &a mais préxima, que é pura alquimia. Al 16s compreendemos o que ela é. $6 que, como Somos mai extrovertidos,apesar de vermos a importincia do corpo e do ue esté dentro dele, trtarnos o corpo como um outro, como se com ele lutdssemos, ao invés de nos [solarmos, de meditar+ mos e de falarmos com o corpo. E s6 assim ento que apren- deriamos 0 que ¢ a alquimia, A alquimia é uma via introver- tida, consiste em contatar a matéria, ndo a partir dos meio extrovertidos, a0 exterior, no a medindo, mas contatandox como interior de si proprio. CM: Vocé evocou essa admirével imagem de Paracelso, que] fala do céu interior, Tudo se passa, pois, como se nossa psique| estivesse bloqueada por elementos subjetivos que a impeder cde penetrar o mundo que ela prGpriacarrega. Da mesma foray {que no conseguimos nos desvencillar do barro que nos macus la, e que estamos fadaclos a carregar todos 0s dias. MLvF: Sim, sim, justamente. € por isso que é t8o importante trabalhar também com a sombra.£ somente depois que voc tiver passado por essa porta desagradavel, através da qual s ‘observa a sombra, que voce pode penetrar o céuinterior, quer dizer, as camadas da psique que funcionam no estado pur fe que no s4o aviltadas ou neurotizadas pela sombra qui se reprimiu. Nesse caso, Freud tinha absoluta razao: ha um: ‘camada de repressio em multas pessoas, fatos reprimidos desagradaveis etc. que impedem a psique de se manifestar, Ha repressées mesmo para as pequenas preocupacoes did rias. Se vocé se perguntar: “Por que isso me incomoda tant 32 assim? geralmente vocé ji vé que existem colsas Id atras. A pessoa se preocupa com coisas que nio séo absolutamente ‘importantes e ha problemas que geralmente so muito exa- jerados. Os outros dizem: “Vamos, ndo se importe, seja um. ouco filésofot", mas ndo se consegue, o afeto esta fixado no omplexo. Os complexos so 0s pequenos diabos que nos tormentam durante a vida. Acreditamos que esto no exte- Flot, mas na realidade é o complexo. De minha parte comeco. or ai e digo: "Nao, isso nao esta em orden’, Depois eu me pperqunto:*O que hé por detrés, por que isso me perturba de al modo?" Assim vocé penetra como que por camadas,entra ‘ada vez mais fundo e, quando tiver passado por essas ca- medas de pequenos problemas, disputas, conflitos maritals fc, problemas com as criancas, problemas com impostos, voce alcanga lentamente o que esta Id atrés, mais profundo, F por isso que jamais rejeitarei essa camada suja. Entre 0s al ‘quimistas, alguns dizem que se deve eliminasla, mas muitos ffirmam: "Nao. € nessa camada que se deve agarrar, é nela fue se encontra a cura’ Estes pertencem raca de alquimistas {ve privilegiam o cozimento e dizem que "é preciso pegar 0 homer 1a onde ele se encontra” Se ele tiver problemas com Jmpostos, esse € o seu problema, 6 ai que o encontraremos, thas logo se vé que isso é um subterfigio e que, no ceme, 0 problema & muito mais profundo, é tal e tae tal etal Assim desce lentamente em diregao as camiadas mals profundas. IM: Crelo que vocé fotlevada, ultimamente, a estudar 0 proble- Ny da bruxaria e o problema dos exoicismos. O mal revelado praticas de bruxariapertence 8 zana de somibya de que voce oy ILvF: Sim, mas era também, sobretudo, porque a sombra era yojetada, considerando-se a repressao que havia em relagéo. i principio feminino. Tudo que se reprime se torna daninho, 33 | snsem nos tedlogos que nao eram casados, que reprimira ‘a Imagem da mulher neles, a feminilidade. Como esses h ‘mens teprimiam a anima, o feminino neles proprios, natural: mente eles projetaram essa feminilidade (que fot reprimid: €¢, consequentemente, nao estava em bom estado) sobre a ‘mulheres externas. Entdo, se uma mulher se comportava dé ‘um modo um pouco diferente das outras, socialmente falan do, projetava-se sobre ela. Quando se leem historias em qu se queimavam as bruxas, vé-se que eram, geralmente, mu theres um pouco patolégicas ou dificeis, mas, por outro lad ppoderiam também ser grandes personalidades e superiores ‘mulheres extremamente inteligentes ou algo assim, Entao, o Inguisidores tinham medo e, quando lemos sobre o assunt vemos que era seu proprio problema de anima que eles pro jetavam. E, naturalmente, o povo sempre ama as persegui ‘gbes dos pobres. (€M:0s sacrficios ML¥F: Os sacrificios,é isso. (CM::Gostaria que volt#ssernos ao nosso Merlin, que é um petsa rnagem tao atraente, Voce disse, nda agora, que ele encontio sua tealizagdo definitiva na sua ligago com Niniane, ou Visia porque ele val encamar no feminino, quer dizer que sua ani vai, enfim, encontrar sua forma. Como ele tomou consciénci dessa anima? MLVF: Tem-se um ntimero infinito de poetas que falaram ‘muiher interior e, para eles, isto era uma visdo interna, por assim dizer. Pensem neste poema de Baudelaire,"A uma pa sante' no livro As flores do mal. Ele vé uma mulher de luto qui passa e ele diz:‘um relémpago [| depois a noite” ele é ent tomado por uma emogéo enorme; ela foge e ele diz:*O tu qui 34 tetia amado, 6 tu que bem o sabias Esse é um encontro IN a anima; é uma magnifica descricéo. Uma vez Jung contou como ele tomou consciéncia da lina pela primeira vez. Um dia, sua amiga, Srta, Wolf, men- luvthe @ ele ficou de tal modo furioso que teve vontade de minar a relagao. Ele voltou para casa ¢, de repente, se per- juntou:*Mas, meu Deus, por que estava tao certo de que ela, ‘0 me mentiria? Por que tenho essa exigéncia de que ela juica mentira? Ela é outra pessoa que tem o direito de fazer fjue quiser. Por que tenho essa exigencia imperiosa de que ln jamais minta?” E, nesse momento, tomou conhecimento le que era o seu préprio sentimento, que ele nao suportava a jentira no amor e que isso era algo nele. E isso Ihe permitiu iconhecer que ele tinha, em si proprio, a imagem de uma ullher que nunca mente no amor e que ele a impunha a sua ‘niga. Ele tiranizava sua amiga, pedindo-the que desempe- asse esse papel. Esso que os homens ainda fazem até hoje, Imaior parte dos homens nao sabe, mas eles tentam forcar amiga ou sua mulher a se comportar de acordo com a jagemn que tém delas, que ¢, por assim dizer, o simbolo de Wy estilo amoroso, J ssa face do amor, do qual a anima &0 reflexo, 0 espelho,é, identemente,dificl de se colocar anu, WF: Sim, & muito difcl, porque é muito evanescente. IE por isso que hé tantos amores mal resolvidos? WvF: Exatamente. E muito evanescente porque hi vitios as- 05; 0 sentimento se modifica e também se altera no de- ser da vida. Se vocé pensarna Beatriz de Dante, estaé uma lizacao da anima, ou a Laura de Petrarca. H& homens que heceram sua anima, Bom, ela ainda est projetada em 35 'uma mulher exterior, mas, pelo menos nos poemas, observa: se que eles sabem que ¢ algo interior neles mesmos, e com: ppreenderam mais ou menos. Jung colocou os pingos nos "is" Ele verdadeiramente percebeu: & um fator feminino no ho: ‘mem que representa sua propria feminilidade e que ele pro jete sobre as mulheres. Se um homem assimila a anima entao com 0 tempo, sobretudo na segunda metade da vida, ela se ‘torna uma Fungo de relagao com o inconsciente, ela desapa rece. Torna-se uma parte dele mesmo, como disse, seu estilo de amor. Nao persiste como uma personificacio, A anima na aparece mais. € entao, geralmente, o Self, como velho sabio, {que o guiara. A anima nao aparece mais com frequeéncia nos sonhos de um homem que a assimilou. Mas, pode-se vé-la na seu ser: ha certa feminilidade, certo estilo de amor, ‘CM: Muitas desordens psiquicas vérn do fato de que grande nil mero de pessoas recusa essa parte de ferinildade, MLV: Existem muitos homens que reprimem a anima entao, se tornam efeminados. O que é engracado é que, eles reprimem o feminino, tornam-se efeminados, Se eu tiv que tratar um homem que é efeminado demais, devo sem pre Ihe dizer: Entao, vocé deve se ocupar mais do femi = nao menos", por exemplo, um erro que se comete vatias vvezes quando se cré que um homem efeminado deva ir para ‘oservico militar, e que la vi se tornar um homem por repri sua feminilidade. Isso nao deve ser feito. Ele deve cultivar sual feminlidade conscientemente, ¢ ai ele se tornara mais vii Porque se ele reprime a anima, ela 0 ataca eo torna feminino, (0u, quando a anima negativa é reprimida, essa se traduz, po exemplo, em mau humor ou o tora fofoquelro. A anima primida 6 uma mulher inferior. Com muitos hamens é mui divertido, porque vacé logo vé quando eles esto na anima Eles tém uma voz bem mais alta. As vezes, isto me dive 36 de tepente meus pacientes falam, eles ficam emotivos e de epente: Hil” imitacdo da voz alta, aguda), eles tém uma voz Inteiramente alta, nao ? Entao eu thes digo: “Escute, escute, voce esta na anima, Nao esté escutando sua voz?" As vezes, deveriamos ter um gravador (risos) ¢fazé-los escutar. Pode-se \yerdadeiramente escutar na voz quando a anima fala. Mas, aturalmente, sso é negativo, porque é inconsciente. Aa pas- 0 que, quando a anima é consciente, entao é algo mais; des- {e modo, isso quer dizer que o homem se tornou mais artist £0, mais sensivel, mais cultivado no seu amor. Naturalmente, fambém ha muito mais chances de ter relacdes felizes do que Infelizes coma mulher. FEM: Encontraremos também as mesmas desordens em uma mulher que recusa seu animus? MILVF: Sim, o animus, que 6 a masculinidade. € por isso que Jung era tao ferninista num tempo em que isso no era ain- fin moda, Ele sempre disse que as mulheres deveriam estudar ‘que era preciso lhes abrir as portas do espirito, que néo é Ajgncando-se a mulher na cozinha que ela se toma feminina, © contrario, vé-se, muitas vezes, mulheres casadas que tém ihos e cozinham mostrando aninv inacreditaveis. A mulher ve trabalhar sobre seu proprio espirito masculino. |: Vocé poderia me dar exemplos particularmente significat bs dessa incapacidade de uma mulher assurmir sua parte mas- ILVF: Sim [..] eu me lembro do caso de uma mulher que era ito inteligente, mas ndo pode terminar seus estudos e ti- ia um complexo de inferioridade. Estava sempre nervosa & hava em todos 0s exames. A investigacdo pessoal mostrou ie 0 pai sempre Ihe dizia:"Ah, vacé nao é capaz; uma mulher a 130 € capaz, voce é uma boba’ Ela quisaprender grego quay do era jovem e ele Ihe disse: Nao, néo escolha 0 grego nal escola, vocé nunca seré capaz, vocé nunca vai conseguir pal estava morto havia muito tempo, mas ela mesma tinh este disco arranhado que the dzia dia e noite, com a voz da pal cada vez que ela tentava fazer alguma coisa |..:"Vocé nao} capaz"Is0 se tornou um animus negatvo nela propria. No eta mais o pai exterior, que estava morto, mas era uma negativa, uma opinio. E por isso que Jung diz:“O animus 5 mostra nessas opinides congeladas’ Ela tina a idela fica d ‘que nao era capaz de aprender o que quer que foss. Como vocé disse, temos o mundo celta, temas o mediten feo, 0 judaico-cristo. Em certo sentido, isso nos enriquece, Mas, por outro, hé petigo da desorientacéo. Nao vivemos Mais em um cosmo mitico que nos dé um sentido. E por isso Jue Jung disse: "Entao qual 6 meu mito?" Parece-me que, 49 nao estivermos mais contidos dentro de um mito coletivo, flualquer que seja ele, se nao estivermos mais dentro dessa ‘orclem (e muitos homens madernos nao estao mais dentro de fol ordem), aié chegado o momento de encontrar seu proprio ‘mito. Entdo devemos descer aos infernos, devemos descer em. ‘ios mesmos e encontrar qual é a imagem que nos guia. Os Hindus diriam: *Vocé deve encontrar seu guru interior (que, ‘para Jung, foi Merlin) e encontrar seu mito” E isso é o que fa femos na andlise, uma vez que nao se trata apenas da cura de siniomas, Nas grandes analises,trata-se sempre de encontrar mito dessa pessoa e, também, o sentido, a criatividade ou © lugar em que se possa ser criativo na sociedade. O grande problema & que um mito é algo que nunca é somente pesso- i, € coletivo, devemos dividi-lo com os outros. E por isso que mos hoje muitos grupos com simbolismos diferentes. Mas i} ainda um problema que se coloca com todas essas super- osigdes de mitos, (CM: A psicologia de Freud, aliés, como a de lung ea de todos: seus companheltos, fo fortemente fascinada pela mitolagia, Fal No interior dos mitos que, finalmente, a psicandlse enconto seus primeiros fundarnentos, Serd interessante ver, de acordd com Jung, como essa figuras miticas se encarnaram, quai for ‘aselas pegarem ¢ como elas foram vividas. Porque. mitologid um mundo complexo e nés somos os herdelos de uma mito logia que &, de uma s6 vez, a mitologia do Mediterraneo antio ‘edo mundo judaico cristao;e ainda tudo que fol adquirido da mitologias vindas do Oriente ou da América; e, enfin, dos poval a1caicos, Entdo, como essa sintese mitoldgica é alcangada? Sim, porque, nas sociedades antigas, a comunidade vivia Bb certo riimero de caracteres comuns, de crengas comuns ip davam a tibo, 8 comunidade, a sua coeréncia, MIL¥F: Sim, isso é um dos nossos problemas: nés nao somo ‘mais como uma tribo indigena que tem seu mito e seu mun do e, mais ainda, seu cosmo. Assim, se vocé pensar neste ‘magnifico livro de Marcel Griaule, Dieu deau, onde veré qui (0s dagons ainda viviam (isso sera destruido agora tambér ‘em um cosmo completo, onde tudo tem um sentido, até me mo a colher que eu uso, nao ha diferenca entre religioso profano. Tudo, tudo tem um sentido mitol6gico, religioso. Iss 0 estado ideal. Mas, entre nés, temos todas as superpos ‘Goes de culturas e as transposigdes de culturas que fizemo \vF: Uma forma coerente. JE, de alum modo, a comunidade nutra 6 espirito de cada Agora, todos os deuses decairarn, nds nos encontramos em mundo em destocamento, em que o espiito & deivado 3 propria solic. Em consequiéncia, somos langadios a uma 8 39 sigantesca aventura da consciéncia e 6 essa consciéncia pessoal que deve criar inventar aquilo que anteriormente era encarna do pelo mito. sse € 0 projeto de Jung. MILvF: Eu nao diria criar. Nao podemos criar um mito cons cientemente. Mas vocé pode inventé-lo, se vocé tomar inven= tar no sentido profundo da palavra encontrar. Ns podemos ‘encontré:lo ao descer em nés mesmos. Ele esti em nds e po demos pescé-o na profundeza. Ou, se colocarmos a pergunta, se dissermos:"Qual é 0 meu mito?" entaio através dos sonhos, vvém as indicagées.€ por isso que Jung fol sempre, e de novo, acusado de querer fundar outra religido, ou uma seita, ou alga assim, Mas, na realidade pratica, o que o analisando encontray € de tal modo diferente em cada caso, eos mitos pessoais qua ele descobre sao tao diferentes que nunca se poderia formar uma seita. € a resposta da profundeza, pessoal, pessoa, E Por iss0 que, se alguém encontrou seu mito, ele nao vali é-lo aos outros. Ele ndo iré suas dizer: “Agora tenho uma nova religiao, um novo mito e voces dever crer nelat, mi dira:"Esta é a minha verdade’. Eu, por exemplo, quando tinhs dezenove anos, tive meu grande sonho que eu dia inicitica Nunca tive um sonho ta0 grande e esse sonho é meu mito. me perguntassem: "Qual é seu mito?’, eu diria:“E o que me fol dito naquele sonho” Nele havia muita alquimia, CM: Voc® pode nos cantar? ML¥F: N3o vou impor isso a voces, Nao é a verdade para ‘outros, mas é a minha verdade, é minha obrigacéo, é aqui} que. sei que devo viver.(Hesitagao.) Sim, se voces quiserem, Isso comega de uma maneira um pouco pessoal, se ber quel devo dar as associacoes. Eu no estava muito satisfeita cor ‘meus estudos, estava um pouco decepcionada porque, des de 0 comeco, estudel linguas cléssicas com uma inclinagdo 40 4ecreta: no fundo procurava uma nova religido. [.] no es {va verdadeiramente consciente disso, mas estava decepcio- ‘hada com a filologia classica porque essa ndo era uma nova {oligido. Era simplesmente sobre gramatica, ea seca etc, Em Flacio ao que eu procurava de espiritual, a universidade me secepcionou. Era ingénuo de minha parte desejé-o. Entao, Somecei a me interessar pelo simbolismo na arte e comecei 8 pintar por mim mesma, mas meu talento era pequeno: isso hho foi suficiente para que eu sentisse que verdadeiramente fazia alguma coisa. Comecei a ver que era desse jeito e fiquei muito deprimida, E entao sonhei que ia para a universidade e que, diante do universidade, acendia um fogo como os camponeses na Fscandinavia 0 fazem no meio do verdo para cultuar 0 sol. fu saltel sobre 0 fogo, nao sel por que fazia isso no sonho. Num dado momento, eu passava perto da agua e um peixe me capturou e me engoliu. Ele me engoliu até o peito e so- mente minha cabega ainda estava de fora, mas pude sair e Yoltar para a terra. Eentao, quando pude ver, havia um pintor Ave estava la, diante de uma pintura quase pronta, tertivel- mente deprimido. Eu he disse:“O que vocé faz? O que tem?", ele disse:*No posso mais pintar’,Vocé vé que al é o animus tava Ia, estava em mim, a atividade de pintar. Mas eu pro- fava algo diferente; no fundo, algo de espiritual: a procura ppirtual pegou o problema da pintura, Entao eu Ihe disse: Voce quer que eu encontre para voce o porqué de voce nao nseguir pintar™ Ele respondeu: "Sim, eu the serei muito ato, eu mesmo nao posso encontré-lo" E entao a pintura se fnnsformou em uma paisagem real @ eu entrei nela e cami hei nessa paisagem que era agora em trés dimensdes. De re- inte, cheguel as cavermas e isso se tornou sombrio. L4 eu vi ima enorme mesa redonda de pedra e sobre essa mesa esta- #9 um menininho, mas tinha aproximadamente cinco metros le altura e de largura. Era enorme, embora com as formas de 4 ‘um bebé bem pequeno. Uma mulher 0 amarrava e eu disse: "Mas vocé nao deve amatté-lo”e ela retornou: ‘silencio, é 0} novo deus. Eu tenho medo’ Ea cena mudou. Continuel e des-| i mais para o fundo e ainda via as cavernas, isso se tornava. sempre mais sombrio. De repente, olhei para uma caverna e! ‘vi um homem bem peludo, como um homem neolitico com uma maga. Ao lado dele, ura mulher com um bebé. Eles ess ‘tavam la, assim, na obscuridade, e uma voz dizia: "Sao Adio @ Eva, 0s ancestrais da humanidade'. Eentao ouv os gritos e os prantos de desespero nas outras cavernas (era, na verdade,, um pouco dantesco}, eeu sabia que havia milhoes de pessoas ‘que estavam amarradas e que estavam na obscuridade e de= sesperadas. Vocé vé que ainda é um motivo alquimico porque lg ha aqueles que dormem no subterraneo e que procuram al redengao. Eu estava completamente desorientada, entao eu disse para mim mesma:"Irei sempre para a esquerda; simples- ‘mente irei constantemente sempre mais para a esquerda e| ‘mais para o fundo',Fui para a esquerda, que é o lado do in-| consciente, para 0 fundo, até que eu soube que entrara numa: sala que era 0 centro da terra, Eu sabia que havia a algo de a solutamente terrivel e que ninguém poderia sobreviver a essa: Visio, mas que eu devia passar por Ié e seria um terror hort vel. Eu sabia que la dentro nao havia nada que matasse: voce 6 seria morto pelo medo. Entao, olhei sem ver o que havia Is Ole sé um pouco para dentro da sala e vi que, do outro lad hhavia uma porta e que ls havia uma barra de ferrona altura: ‘abega @ que as pessoas, quando viam essa coisa, tinham ta ‘medo que corriam e, batendo a cabeca, elas mesmas se ma tavam, tomadas de panico. Entdo, em vez de entrar, eu dis: ‘a mim mesma: "Qual é a distancia?’ e respondi: "S40 quatr Passos’ entéo eu falek: “Quatro passos e depois vocé se incl nna, quatro passos e depois vocé se inclina’, mecanicament até que tive o sentimento de que o tinha assimilado, de qu © faria automaticamente. Depois, entrei e olhei, e era Deus 2 {hu vi Deust E entrel em panico e cori, mas fiquel inclinada, Quando sai do outro lado, havia gigantes que carregavam os kadaveres das pessoas que haviam perecido, E ele disse: Ah, océ bem que escapout” Eu respondi:"Sim, mas vocé nao iria me poupar se eu ndo estivesse inclinada” E entdo, continuei sempre caminhando, e chequei a uma sala. Ed eu vi uma pin- ‘ura de um pintor com a paleta na mao e, embaixo, havia um oema:"Morte e destruicao ao pintor porque ele nio venerou ‘© menino vermelho que sai do fogo" motivo alquimico. Entdo (0 pensei:"Agora eu sei por que esse homem ndo pode mais, pintar, agora minha missdo terminou, e agora devo sait da- Sui’ Entao, continuei eeu sabia que agora eu iriasair do outro lilo da terra, Eu dei o préximo passo [sic] e cheguei a uma Sola enorme, onde havia uma multidao de homens: eu sabia ‘ue eram todos 0s soldados mortos e tados os marinheiros ‘mottos de todos os tempos. Eu estava no reino dos mortos, f cles comiam e havia um grande jantar, e eles bebiam. Esta: vam sentados a mesas compridas, e bebiam e comiam, e eu Babia que era o motivo dos Lot6fagos na Odisseia. Eu sabia five, se eu bebesse ou mesmo se falasse com eles, eu nao sa- fia mais dali. E eu disse a mim mesma:"Agora eu vou muito uavemente |a, para que eles ndo me vejam e eu saio nova- jente do outro lado e continuo’ Eu experimentei, atravessel sala, ninguém me percebeu e, no momento em que eu ja cava a porta, um deles se voltou e disse:"Ah, ai, vacél eele vantou seu copo de vinho e disse:"Vocel Vocé nao podera jis voltar a vida se ndo encontrar a agua que foi feita da Vir jem e que éa Aqua sagrada’ ainda sobre aalquimia. E eunao ‘mais do que dar um salto e sai, Euestava do outro lado, na luperficie da tera, tinha atravessado toda a terra e estava fati- jada. No pequeno bistrd onde me encontrava, olhel no espe- 10 € vi que eu estava palida e que o terror se estampava em jeu semblante, e que estava absolutamente extenuada, En- 43 ‘to eu me disse:‘Agora o que é preciso fazer?" Eu falel a mim mesma: "Primeiro vou tomar um banho para me esquentar’, pois estava com frio. Vi que, defronte, do outro lado da rua, havia um saldo de cabeleireto, banho e massagem, e pensel “Bom, vou lé ¢ vou tomar um banho' Eu entre [J € era uma fatmécial Entrei, havia um homenzinho muito desagradavel que me disse: ‘Sim, venha sozinha, senhorita’ Ele queria me conduzir para a parte de trds. E eu The disse: "Nao, nao — isso nao é confortavel -,ndo vou entrar af" Eu estava muito infeliz porque eu sabia que devia fazer alguma coisa por mim e isso indo funcionava, se bem que eu desmaiel no sonho. Depois de Certo tempo, voltel & consciéncia e, no momento em que abr 105 olhos, vi sobre uma prateleira da farmacia um pequeno vi- dro com um liquido claro, eeu sabia que era aquela agua que: deveria procurar. Vire-me e havia um farmacéutico com uma) ‘camisa branca a quem eu disse: “Quero isto, eu the dou tod © dinheiro que tenho’ Tire! minha bolsa e tinha mil francos (de repente eu tinha mil francos) e disse: “Eu Ihe dou os mil francos, eu the dou tudo que tenho por isto” Ele disse: "Isto? E agua ordinaria, isto nao é nada, vocé pode levé-la de gracal, tentio tive medo de que ele mudasse de opinido e Ihe joguel (8 mil francos, e pulet fora da farmécla com meu tesouro. Eo sol nascia nesse momento, Nesse preciso segundo, ele nascia @ estava no zénite; é ainda um motivo alquimico, ele estava) ‘no zénite. E havia ao meu lado um homem que eu amava e! ue era, no sonho, meu marido e, subitamente, compreen- diz*Mas fol ele quem matou aquela Virgem, da qual se fez a ‘gua’ Eu 0 olhei horrorizada. Ele disse:"Sim, mas ela ressusc': tou’ Entéo foros embora descendo juntos, de bracos dados, econtinuamos descendo até uma pequena cidade italiana ou: francesa ~ a0 sul ~ em direso ao mar. Quando chegamos ak ‘mar, havia grandes vagas e, de repente, quatro cavalos saira das vagas com uma carruagem e, sobre essa quadriga, havi 44 slguma coisana espuma. Eu penset:"€ ofalo, do qual Afrodite, # ceusa do amor, nasceu’ o falo de seu pai Nesse momento cordel Esse € 0 meu sonho e, como vem, é todo alquimia. Quando comecei a traduzir textos para Jung, ele me deu um lrotado em latim e, na primeira noite, nao quis comecar do Inicio. Disse para mim mesma que era preciso me familiarizar fom 0 texto, Abri em qualquer pagina do livro, pois os tex- {0s alquimicos séo muito confusos e curiosos. Eu era jovem #racional, tinha acabado de sair do ginésio e tinha todos os ppreconceitos que se tem contra a alquimia, Abri, pos, o livia ‘em uma pagina qualquer, simplesmente assim, me dizendo: ‘ssa noite no trabalharei, vou apenas ler para me familia- fizar com o estilo da alquimia’. Abri em uma pagina onde se Hlzio:"Nosso flho que sai do fogo 6 o rei que precisamos ve- Nerar Ele € feito da agua da Virgem. Pode-se encontré-la nas Jinmactas, mas as pessoas deste mundo a desprezam’ E voce sabe 0 que me veio? Eu pensei:"Vocé é louca’ Tive um cho- sue medonho, pensei que estava alucinando, Entéo, eu disse: ‘Meu Deust Vocé ficou louca; esté alucinando!” Entdo fui a0 Inheiro, peguei gus fra (isos), molhei a cabeca com égua 0 e voltei para o livo: ele ainda estava ld, Entao eu disse: /} para a cama, voce est louca, vi para a cama, vi, vé para ama, durma, o melhor é que vocé durma’ Ful para a cama dormi. De manha, acordei e me lembrel de tudo. Eu disse mim mesma: Pelo menos agora estou completamente s6- lla, sei que estou ~ repeti meu nome, minha idade -, ndo ju louce, vejo tudo normalmente’ Voltel 4 mesa e olhei texto. Ainda estava isI’Devo contar isso para Jung!” (isos), 0 & 0 que se chama de sincronicidade: 0 interior e o exte- jor coincidem J simbolicamente, Quando conteia Jung, ele ono @iguatmeee rao em Von Franz ML, Cu seu mito em 0 epaco, S80 Paul: Cult 1875, p 191A sonhedora a © apresertae mamente:"0 sono de uma ove etcores mode 45 disse: “Quando a encontrei pela primeira ver, sabia que voce! tinha algo @ ver com a alquimia, mas nao sabia que era a esse ;ponto’€ por isso que nés trabalhamos juntos sobre a alqui- la 6 por causa desse sonho, (CME: A alquimia representa uma heranca fabulosa na nossa cul tura, uma vez que aise encontra um conjunto de imagens reu- nidas de tal maneira que é uma gigantesca celebracao do esp Tito, Ao lado desse tesouro alquimica, hé também esse tesourg} que nos foi entreque pela cultura. Esse tesouro, que encontray Particular testemunho na mitologia e tudo 0 que surgiu dessa mitologia, €o que se vé na maioria das obras de arte que nos er- volvem. Consequentemente, esse desenvolvimento da pess03) lesa construrao, essa realizagao do ser, essa conquista do Sel 530, evidenterente, em grande parte, favorecidos por tudo que} affui da cultura da qual somos herde'ros; e ao mesmo tempo essa cultura se mostra, pols, um pouco entulhada MLvF: Sim. Pode-se ter bastante cultura e, entao, 0 passado. the pesa: pode-se sufocar em um passaclo cultural. Perdemos © futuro se ficamos parados no passado. Mas, veja, se voce encontrar seu proprio mito, & sso que lhe da um futuro. Para ‘mim, a tarefa era trabalhar sobre a alquimia, isso nunca me ‘ansou. Sempre fui apaxonada, Ainda hoje, quando toco | texto alquimico, meu coracio bate [.., pois €0 meu mito. Isso imagens ao mesmo tempo, ela se afoga. Devo me perguntar {quais sao as imagens que me concemem, e isso nao pode set encontrado sendo pelo viés de nosso inconsciente. Ha ima ‘gens que vivem em certas pessoas e outras que nao vivem: elas. jas. essa conqulsta do Seifse ope aquilo que, dentro dal ser humano, tende sem cessar a nos dividir, anos destruir es 46 Ino. Enfim, aquilo que Freud exprimiu quando falou do instinto fde morte, instinto este que, para a maioria dos seres, se mani festa por uma grande sede de autodestruicia Entretanto, o que f signficativo na autodestruicdo & que ela & verdadeiramente Inisteriosa,é que a pessoa destroi a si mesma sem se dar conta, F onde esta o né dessa autodestruigao? Por que tantos seres sia Sempre tentados pela necessidade de erodir de algum modo seu proprio ser? MLvF: Hé multas camadas. A neurose ji & certa destruicdo, ela se combate asi mesmo, se constroem amadithas para_ ‘> duals se carina com 0s préprios pes. As causas da neu- ose so, muitas vezes, pessoais: historias dainfancia também 00 frequentes, como Freud, muito justicadamente, vu, mas lombém experiéncias raumatizantes, influéncas negativas, Fintio a pessoa se torna neuréticae causa dano a si mesma, neurose, contudo, penetra sua propria luz e,entio, isso & sudvel. Pode-se instar luz eraz8o Ia centro e, portanto,po- th-se ajudar a pessoa a sir desse estado. Ha casos mais graves, 05 casos patolégicos, que agora joo menos nds junguianos) pensamos poder também Wotar a psicoterapia,e ndo somente com a quimica. Ma se quisercurar_uma esquizofienia, deve contar com dez nos de trabalho verdadelramente duro. Ai se batalha com Jcmonios verdadeiramente destrutvos [J € um comba, corpo a corpo: como o velho exorcist que lutava contra ciabo, Batalhamos com a patologia desseindividuo; com Je, juntos travamos a batalha como dlabo, No fundo,essas prmas medievais que dramatizam a coisa toda de forrna sogica exprimem muito bem esta dindmica. Multas vezes, Jando tatel esquzofrenas, sobretudo as paranoides, dik uma batalhacom o diabo que varnos travar juntos Eu za isso 20 paciente, mas com precaugéo, Com muito tempo dlevogso, pode-se ainda curéa, Mas ainda ha, mais além, © que néo compreendemos, aquilo que a lgreja Catélica chama de mistério do mal, myste- rium iniquitats. € um mistério divino que nds, 0s junguianos, indo temos a pretensdo de entender. E apavorante; é algo de terrivel;é raro. Encontra-se a face absolutamente nua do mal absoluto. € algo muito raro de se encontrar, mas se o encon= tra, Eai (eu the digo a verdade}, quando o encontro, eu fujo, faco o sinal da cruz efyjo. Isso seria a hubris, a inflagao em se. ‘entar compreendé-lo. Eu me digo: Isso & Deus, é uma face de Deus que eu, como ser humano, no compreendo..: S@ meu destino ¢ ter que encontré:lo, naturalmente nao fugitel, mas, se puder, eu fujo. E aterrador! Posso Ihe dar um exempio em que tive esse sentimento, Um colega me disse:"Vocé imagina que interpreta bem 0s so: Inhos' Ele era muito cético e nao acreditava na interpretacda, dos sonhos. Entéo, ele disse:"Escute, agora eu vou the contar ‘osonho de uma pessoa, mas vou Ihe dizer somente que é um homem de quarenta e cinco anos e diga-me o que isso quer dizer. Ele contou o sequinte sonhorele estava emum parquede| diversbes, assentouse numa gangorra e comecou a se balancer cada vez mais alto, e mais alto, e sempre mais longe. Ele estava completamente no espaco, muito alto. Nao via mais os seres hus ‘manos, nada. Deu mais um impulso ao balango e, de repente, «alu no vazio’ E eu tive um susto horroroso e disse a0 me colega:*Meu Deus, meu Deus (eu pensei que era um paciente ‘que ele queria accitar para analise), ndo aceite esse homem, 6 um caso patol6gico, 6 catastrafico, eo sonho nao tem sol ‘G20. Ele nem mesmo esté assustado’. Se ele tivesse sonhadoy "EU caio no vazio e acordo com um gtito de horror isso se normal, estaria em ordem, seria um pesadelo tipico, mas ele nao teve reacio, ele caiu no nada e isso Ihe era indiferente, entéo 0 colega disse:"Agora vou Ihe dizer quem é:é um assa sino a respeito do qual fiz o diagnéstico para a justica e que j tinha matado oito pessoas, absolutamente a sangue fri 48 simplesmente pelo dinheiro” Entao, 2i se vé um caso em que nada se pode fazer. Eu nao trataria tal homem, no aceitaria tessa andlise, a ndo ser que eu tivesse tido um sonho, Entao eu disse: "Este seria um destino misterioso, se eu tiver que fazer lgquma coisa com esse homent” Mas se eu nao tiver, por as- sim dizer, um apelo interior pessoal me incitando afazé-1o, eu evitarel tal caso porque nao ha prognéstico, ndo ha esperanga de se fazer alguma coisa. Esse foi, por exemplo, um momento fem que tive 0 sentimento: estou olhando a face do mal abso: lito, 0 assassino que matou sua propria alma. Mas nem todo fs5assino [uJ], existem muitos assassinos que tém alma e que [..Lenfim, que sio neuréticos ou patolégicos, ou que tiveram uma infancia infeliz ou ndo sei mais o que, e que se pode tra- lar mas nao aquele. (EM: Voce falou muito da fungao do sonho no desvelamento sdo.ser, mas a inguagem também tem uma funda, a palavra tal (como nas foi dada, MLvF: Sim, naturalmente. Sei que agora, na psicanalise fran- ‘65a, alinguistica, Lacan etc, desempenham um papel enor: ‘me, mas (isos) voces riem de mim se sou um pouco ingénua, Mas acho que, no fundo, é um pouco trivial. Naturalmente, a {ingua é a nossa comunicagso, Temios um enorme espectro de pmunicago e crelo que a comunicacéo verbal, na analise, & penas uma parte muito pequena. Quando se ri, quando se scam os alhos, quando se coca, influencia-se muito mais 0 iciente. As vezes, um paciente me diz: "Mas vocé fez uma ade quem duvida do que eu disse!" e, na verdade, eu tinha nsado:"Sera que ele est4 mentindo? Sers que esta dizendo ‘yeidade?: Nenhuma palavra foi dita, mas estava na minha fra. Portanto, ha uma grande amplitude; nds somos animais ®ciais, temos um enorme aparelho de comunicacéo: fisico, i 0s sinais, com a voz (se a voz sobe, se a vor desce etc) 49 ‘e também a linguagem. Creio que a linguagem é somente ~ ddigamos, sim ~ uma parte muito importante, mas nao é de mado algum tudo na terapia. Frequentemente, com pacien- ‘es que progrediram mais na analise, ndo interpreto mais os sonhos muito verbalmente, eu rio umn pouquinho e digo: issot’ vimos a mesma coisa ao mesmo tempo, nao é preciso. verbalizar. A outros, tudo deve ser explicado. Acho que agora: se exagera um pouco a importancia da linguagem. Jung semn= pre diz:"A terapia se faz ndo com o que se diz nem com o que se faz, Faz-se a terapia com o que se (EM: Na perspectiva do zen, creio, do exercicio interior, 0 exerci: ‘do de conquistar o Self deve conduzi, se 0 incividuo cumpri bem o canjunto da meditacao, 8 supressso do sonho [.], como) se tudo que o sonho nos trouxesse pudesse estar contido na ‘meditagao cotidiana. Por outro lado, 0 zen € outras dsciplinas ofientais se abrem para aquilo que se chama de grande vazio, isto 6, trata-se de libertar completamente o ser humano de tudo ‘que ele traz consigo para que possa se deixar agambarcar pelay cosmo, Entretanto, crelo que, aes olhos de Jung, essas perspec tivas orientals que encontram tao grande ressonancia hoje no} ‘so adaptades & nossa estrutura mental, a nosso psiquismo. E todavia, o Oriente fascinou Jung? MLvF: Sim. Primeiramente, a propésito dessa insisténcia dos] zen-budistas modernos em dizer que é preciso ignorar 0s so rnhos, que eles pertencem ao mundo das ilusées e dos pensa: mentos perturbadares, as coisas quendo se deve dar atencéo, ‘ou mesmo que melhor seria deixé-las de lado por meio de un oan. Isso nem sempre fol assim. Descobri que ha um grande} rmestre zen, Han Shan, do século XVI na China, que escreveu} uma autoblografia e, no quarto trecho, ele diz:“E ent, tive um sonho.x,e ele conta os sonhos e diz:"€ desse sonho cor lui, E dé uma interpretagéo. E a respeito do ultimo sonha) 50 le comenta: “Eu conclui que o sonho era bom e que Buda, cle proprio, disse: ‘Quando vocé estiver na caminho justo, seus sonhos sero bons” Ent, vocé vé que mesmo no zen, (a0 menos na China mais antiga) eles trabalhavam com 0s so- ‘nhos - a0 menos Han Shan trabalhou com os sonhos, prestou atengao aos seus sonhos e pensou que eles eram um sinal de Buda, Eu creio, portanto, que é um pouco um desenvolvimen- to modemo do zen no Japao (na China no conheco, mas no apo) ignorar os sonhos. Encontrei um mestre zen em Hong Kong, quando estive li, ediscuti com ele:folele quem me deu ‘essa biografia dizendo:*Ndo, nés nao trabalhamos com os so- ‘nhos, eu nao 0 fago mais. Nos nossos exercicios, ignoramos os sonhos. Mas eu the confesso que ha essa biografia e que, no passado, isso era feito’ Essa tepressio do sonho é, pois, uma evolugéo moderna, E quando vocé pensa: 0 oriental que vive no mosteiro, ‘que faz seus exercicios durante vinte ou trinta anos e que vive uma vida inteiramente organizada ao redor dessa meditacso, Iss0 nao € como entre nés. 0 historiador Toynbee mostrou muito bem que se se exportam partes de uma cultura ou c- vilizagao, e nao todo (e 0 todo nunca pode ser exportado), tentéo é um virus destruidor, isso tem um efeito malévolo. Eu analisei um homem, um europeu, que tinha praticado o zen ‘muito seriamente, treinado 0 zen muito seriamente durante {és anos, e obteve inclusive o titulo correspondente a ros? ‘nofinal de seu treino. Em sequida, ele velo a mim para andlise, © resultado foi que ele estava completamente desconectado tle seus sentimentos @ de sua espontaneldade: ele estava ‘congelado. E isso, pelo que sei, nao acontece com os mestres brientais, eles so completamente flexiveis,e um mestre ilu ninado reage completamente com seu sentimento, com seu. + Aoshi um erm japon empragaée no zenbucsmo como ttle henorco ppt designar um inhvun qu, do's de er seguido um tenamenta sd, Se omau apo a ser, el prim profesor, 51 afeto, nao fica congelado. Portanto, observa-se um aspecto negativo sobre o europeu. € é por isso que Jung sempre dizia: “E tipico da raca branca: nés somos ladrSes. Queremos rou- bar tudo’, Observe nossos museus, nés roubamos os deuses de todas as populacoes. Observe os museus etnolégicos. 0 COrlente fez um esforco enorme para adquitiros valores psico- égicos interiores e, agora, nbs, depressa, queremos roubs-los também. Mas tudo isso é baseado em experiéncias psicolégi- ‘cas milenares no Oriente, e nés devemos comecar do come- {60.€ por isso que, segundo Jung, 6 melhor que comecemos do comeco com aquilo que podemos fazer, com nossas po- tencialidades, em vez de ir roubar os resultados dos outros. ‘Maso Seffa experiéncia do Seifno zen, é idéntico a expe- riencia do Self entre nds. Ha uma diferenca, endo é somente porque empregamos os sonhos. Entre nés, ha uma aproxima: Gio completamente gradual do Self num processo analitico, tembora muitos pacientes nunca encontrem o Self. Nés nao vamos pela via direta, vamos a pequenos passos, téo longe ‘quanto 0 individuo possa ir e, ld onde ele quiser parar, ele ppara; enquanto no zen é programado, é preciso cumprir tudo @, se no se cumpre tudo, ndo se tem nada. é, por assim i- ze, um salto para 0 Self, enquanto, entre nés, se alguém nao ‘quiser ter experiéncias misticasinteriores, nao somos nés que ‘vamos impor-Ihe. N6s curamos a neurose e vamos t30 longe quanto suas necessidades interiores o guiarem, E muito interessante, Eu tenho um aluno que é médico, ‘um coreano que fez um longo treinamento zen e que, agora, estuda psicologia junguiana conosco em Zurique. Ele fez sua tese comparandora com 0 caminho zen coreano. Ele tomou. lum mestre coreano que conhecia muito bem e a psicologia de Jung. A principio ele nada compreendeu. Mais tarde ele me disse: “Ah! Mas Jung é um oriental, ele pensa como nds, fico admirado de que vocé o compreendal” (rsos). Ele estava ‘exaltado e, depois de algum tempo, falou:"Devo Ihe dizer que 52 seu caminho é melhor, pois 0 zen pode ajudar somente uma elite; mas se vocé tiver uma clinica psiquistrica, 0s pobres dia bos com obsessdes, e ndo sei mais o que, estes nao poderso ser tratados com 0 zen!” ‘CM: Hé no Oriente uma imagem que muito atralu Jung e a res: peito da qual ele sonhou rmuitas e muitas vezes, Ea mandala MLV: Sim, naturalmente, mas ele ndo a descobriu no Oriente. Hea descobriu em simesmo e (risos),na verdade, numa situa- «cao bem curiosa, quando ele estava no servico militar durante ‘ guerra, a Primeira Guerra. Ele conta nas suas Memdrias que omegou com o que agora se chama na América droodles, isto 6, garatujas, vocé sabe, esses pequenos desenhos que se faz ‘quando se esté entediado. Ele era médico de uma companhia Je prisioneiras canadenses que ndo estavam doentes; assim, nao tinha nada a fazer! Portanto, Jung ficava morto de t&dlio, ai ele comecou, todo dia, a fazer as garatujas. Ele notou que tle fazia pequenos circulos, sempre pequenos circulos. De- pois, ele notou que os crculos refletiam seu estado de espi o: que quando ele estava fora de si, infeliz, nao em si mesmo, 0 citculos eram irregulares ou quebrados e que, quando ele Se sentia bem € em harmonia, os circulos eram completos, Fol isso que logo chamou sua atencéo. Ele disse:“Olhel Isso parece ser um espelho do estado interior total’ e fol assim que ele descobriu a mandala.’ Entao, naturalmente, quando fem seguida ele viu que no Oriente era o simbolo do centro ‘onde 0 divino e o humano se encontram na psique, o centro essencial, também 0 centro do cosmo, isso o impressionou nuito, e viu que havia uma analogia. Depois, ele comecou a observar e viu a mesma coisa entre seus pacientes, sempre, quando as mandbalas se quebravam. € por isso que ele fez um. ng le, Meni aos, flrs dene: Nova Frome, 53 Jongo estudo? em que comparou aproximadamente cinquen- ta mandalas, mostrando que elas sempre retratam diferentes, condicoes. £ um espelho no qual se pode ver onde se esta no seu caminho, embora no Oriente jé tenha sido codificado hha muito tempo e se tornado um instrumento de meditacio ‘muito suti, com ritos ete, No fund, jé setornou uma teologia., Eu encontrei um professor japonés que também prati ‘cou muito 0 zen. E ele teve experiéncias de iluminacao. Ele, havia, pois, no fundo, encontrado 0 Buda interior, mas pade~ cla de uma tlcera no estomago. Eu Ihe disse: "Mas, se voce G iluminado e se vocé encontrou a mente de Buda em voce, ‘mesmo. Ele disse que ia de um médicoa outro e que ja fizera todas as dietas e que Isso nao funcionava, a ulcera ngo me~ Ihorava. Eu disse: "Mas entdo, pergunte ao espirito de Buda ‘0 que vocé deve comer!’ Ele me olhou completamente es: ‘tupefato, Mas eu emendei:”Mas, por Deus, [sc] isso € real, se essa iluminaco é real, se esse centro interior que é a mente, de Buda em voc® mesmo ¢ real, entao vocé pode the fazer a pergunta e,jé que a questo que 0 atormenta é a dieta,faca- “a! Entéo, como os japoneses si0 muito polidos, ele dis “Sim, sim, naturalmente’,e sorry Eu no tinha a menor ideta se ele o faria ou nao. Ele partiu e depois de quatro semanas eu recebi uma carta do Japso: ee tinha perguntado e recebi- do uma resposta e sua Uilcera estava quase curada. Ento ele) disse:"Ah, eu vejo, voces junguianos unem uma dimensio da) realidade humana aquilo que nés chamamos de religiao’ Ay teligio tinha se tornaclo uma coisa abstrata para ele, nio €? O ‘espirito de Buda era toda a metafisica, as grandes ideias, mas ‘essa pequena tragédia pessoal da dicera, ele nao conseguia conciliar, Entdo eu Ihe disse:“O que me vale ser iluminado se) sung. C6 sola e regio crn OC 1/1 PetrSpols: Edtora Vozes, 1963 ‘orepSsto do sinbolsmo da mandala e"Manéaas ung CS. Os arqutipse ‘coset cleto, OC 8/1 cap.12 cla equi, OC 12,1981 cap. 23 ‘smbalimo dos manele 54 tiver uma ticera no est6mago? Conailie isso! (risos) Iso ainda 6a alquimla, a reintegragao do corpo. Ai, vocé vé 0 quanto a alquimia 6 moderna’ OS SONHOS E O DESTINO Entrevista transmitida nos dias 1°, 2 3 de dezembro de 1986 (CM: Desde a origer dos tempos, 0s homens tém procurado interpretar seus sonhos para saber 0 que o amarihéIhes reserva, H3 muito tempo, Marie-Louise von Franz tem percorrido esse mundo dos sonhos. Colaboradora priveglada de Carl Gustav Jung, ela nao cessou de viajar por esse continente incerto onde o visivel eo invsivel se encontrar, tanto para se perder um no ‘outta, quanto para aparecer como figuras irrecanciliévels de nosso destino, Seu vitimo ensaio, Os sonhos e a morte tenta dca, través dos sonhos, oquea vida tem a nos dizer sobrea ppassagem para o além, Estamos hoje er Kisnacht, perto de Zurique, na residéncia de Marie-Louise von Franz, e para comecar nossa entrevista, eu ‘gostaria de insistr primeiro sobre © que se pode chamar de 0 caréter profético do sonho, pois, no siléncio da noite, 0 futuro procura seu camino, MLvF: E uma funcio de antecipacdo do futuro, E como se, quando os sentidos néo funcionam mais, durante a noite, quando no escutamos mais, no vemos mais, nés nos vol- ‘amos para o interior: é lé que 0 cérebro esboca as possi lidades de solugdes futuras. Recentemente, fol descoberto, no Instituto Max Planck de ColOnia, que o cérebro trabalha durante o sono com trinta por cento de energiaa mais do que durante o dia. Mesmo se Einstein, com a maior coneentracao, calculasse suas formulas, ele empregaria menos energia ce- rebral do que durante um sonho, 0 sonho é, portanto, o mé- | on ran ML, Os senha mate, $80 Pal: Eo Cutrix 1984, No decorer desta eves, Mane Louise von Fane fz alusio seu lo, tetase Jo langamert da bra 57 ximo de aprimoramento cerebral no ser humano, e sso tem um sentido. Sabemos que, seimpedimos a pessoa de sonhar, ela morre ou se torna esquizofiénica, Isso tem, portanto, uma fungao vital Essa funcio vital sempre foi conhecida por todos e, ainda ra Idade Média, entre nés, a Igreja Catolica falava do somnia ‘Deo missa, isto 6, os sonhos enviados por Deus. Jung redes- cobriu esta velha verdade, que sempre existiu: que o sonho, no fundo, tem uma sabedoria maior do que a nossa sabedo- ria diurna e que, quando estamos com um problema dificil, devemios nos voltar para os sonhos. O sonho tem um efeito benéfico, mesmo se no 0 compreendemos. Mas, se susten- tamos seu sentido gracas a compreensdo, entdo ele se torna mais eficaz. € por isso que, pelo menos entre os junguianos, empregamos, sobretudo, 0s sonhos no proceso terapéutico, Se um paciente se encontra numa situagao dificil esem saida, nds nas voltamos para seus sonhas la frequentemente, des- cobrimos 0s esbosos de uma solugio futura. € como se uma Intuigao do futuro estivesse contida no sonho. Nao se pode manipular o sonho. Devo admitir que exis- tem pessoas que dizem poder manipular os sonhos; que, se estiverem sonhando algo desagradavel, podem contorné-1o ‘ou algo assim. Mas isso nao é verdade. Eu nunca [..| mesmo investigando bem, nunca encontrei uma prova disso, Normal- ‘mente, temos mesmo medo de sonhar certos motivos, temos medo de alguns pesadelos, mas eles vem de qualquer jeito, sem que possamos influencis-los, Portanto,o sonho, paranés, 6 um fendmeno natural. € como urinar ou...) uma produgao vital do conjunto do nosso ser, da qual no conhecemos a5 raizes. Mas vernos que existe um instinto profundo e salutar que se exprime no sonho, ¢é por isso que 0 empregamos na terapia. Porque, se alguém segue seus sonhos, esta seguindo seu instinto, a0 passo que a pessoa que recuse seus sonhos. val contra si mesma, val contra seu instinto mais profundo. 58 Pra mim, é natural dizer, depois de tudo que ja se co- 'mentou sobre a morte ~ se hi ou nio vida apos a morte depois de toda literatura que temos agora sobre a morte:"Por que a pessoa ngo olha para seus sonhos? O que os sonhos dizem sobre a morte?" E quando conheci Jung, eu sabia que ele era muito interessado nos sonhos que tratam do moti- vo da morte, da propria morte (da morte do sonhador), mas. ‘também da morte das pessoas proximas. vemos, se analisar- ‘mos as pessoas, que os sonhos levam em conta o assunto da ‘morte muito seriamente. E, com frequéncia, pode-se prever a ‘morte imediata. Eu mesma, no meu livo, conto 0 caso de um, ‘médico que teve um sonho inicitico durante a andlise. Era ‘um homem ainda relativamente jovem, nos seus cinquenta ‘anos, e 0 sonho predizia que ele iria morrer, Naturalmente, nada Ihe disse, mas guardei na meméria e pensei"Meu Deus, do ha futuro" € fatal. De fato, depois de algum tempo, ele morreu de gripe, de forma bastante repentina, Portanto, de uma infeccao que ele ainda nao tinha. Iso ndo era como ses tivesse um cincer secreto que ninguém soubesse, Portanto,o inconsciente sabe o futuro, as vezes, 0 prediz nos sonhos e & Por isso que nés nos voltamos para os sonhos. Entéo, reflito comigo mesma; “O que é a natureza... Mas fem vez de ter uma opiniso que sejareligiosa, ateia ou mate rialsta, em vez de dizer que com a morte tudo esta acabado ou que hé uma vida futura depois da morte, eu deixei essas questoes de lado para indagar:*O que a natureza nos diz a respeito da morte? O que os fatos relatados nos sonhos nos dizem sobre ela?” E ai descobri, confirmando 0 que Jung ja ‘mencionara oralmente e também nas suas cartas, mas nao os seus escritos oficiais, que o inconsciente cré numa vida futura, que os sonhos apontam tados para a continuagso da vida, Jung encontrou uma forma bem objetiva [.J, a0 invés de fazer teorias sobre os sonhos ~ voce sabe, existern muitas 59 escolas de psicologia que propdem diferentes teorias sobre ‘0s sonhos -; portanto, ao invés de uma teoria, Jung decidiu simplesmente amplificar 0 sonho. Isso quer dizer, expandir ‘05 temas: se hé um motivo acerca de planta, deve-se, entéo, procurar qual é 0 papel simbélico que a planta desempenha has fantasias, nos mitos de toda humanidade, Se ha um pas- saro, 0 que o passaro sempre representou nas religides, nos rmitos, no folelore, nos sonhos das outras pessoas etc. Trata-se, ‘muito simplesmente, de comparar varios motivos. Se os ex- ppandirmos {amplificar quer dizer expandir, tornar mais amplo 2 partir de associacdes gerais), se amplificarmos os motivos, tentio, de repente, recebernos uma intuigdo, vemos para onde todo vai Se vocé se lembra, por exemplo, do sonhobem curto que

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