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Antropofagia do desencanto: o cinema e as releituras do modernismo pós-1968


Vera Lúcia Follain de Figueiredo

Oswald é a possibilidade de uma cultura crítica, fora do oficialismo, do lirismo,


do romantismo político. É a devoração antropofágica de todos os mitos criados
para impedir este país de copular com a realidade e inventar sua história.
José Celso Martinez Corrêa

Surgido no final dos anos 50, o Cinema Novo, além de buscar uma linguagem
cinematográfica capaz de expressar a realidade brasileira, comprometeu-se com o projeto de
transformação do país segundo o ideário da intelectualidade de esquerda. Para os cineastas
engajados nas causas sociais, o cinema deveria utilizar elementos da “cultura popular”,
expressão que, naquele momento, significava tanto a produção cultural que vem do povo como
aquela que a ele se dirige assumindo a defesa dos seus interesses. Ao mesmo tempo, o sentido
de “popular” estava intimamente vinculado ao de “nacional”, e, em função disso, a quinta-
essência do povo era buscada naquele integrante da sociedade menos contaminado por
ingerências exteriores, isto é, o homem do mundo rural – o que explica o protagonismo deste
personagem na ficção cinematográfica da época e a extensão do espírito camponês para o
migrante favelado, já que a favela é vista como um ambiente semirrural.
No campo da arte, tratava-se, então, de encontrar o caminho mais adequado para
consolidar um estilo brasileiro, que expressasse o que havia de mais autêntico na nossa cultura,
sem deixar de denunciar as contradições da realidade, contribuindo para transformá-la. No
esforço para encontrar esse estilo brasileiro, o Cinema Novo, ainda que partilhasse com todo o
movimento modernista brasileiro o propósito de descolonização da cultura, vai tomar como
modelo principal a literatura modernista de 30, o que se confirma na seguinte afirmativa de
Glauber Rocha:
O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi
justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio
miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi agora fotografado pelo
cinema de 60; e se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido
como problema político. (2004, p.65)
As palavras de Leon Hirszman reforçam a declaração acima:
O Cinema Novo participava também do processo mais amplo da cultura brasileira
neste século, seguindo os caminhos abertos pela literatura regional dos anos 30, de
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cunho jornalístico, que correspondia, no plano político, à Revolução de 30.


Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Veríssimo tentaram cada
um a seu modo expressar a recuperação da realidade social e popular de suas regiões.
Essa literatura apresentava características universais, ao propor uma nova
representação do modo de ser brasileiro. (1995, p.25)
Se a recorrência à literatura de 30 era estimulada inclusive pelo contato dos
cinemanovistas com o neorrealismo italiano, o modernismo da década de 20 ficava em segundo
plano, gerando avaliações contraditórias. Assim, em entrevista concedida a Raquel Geber, em
fevereiro de 1973, Glauber Rocha dizia:
Eu chamo o movimento de 22 de estética liberal do café, é uma manifestação
exemplar do liberalismo burguês, pois em 22 além da Arte Moderna, há o tenentismo
e o surgimento PC, sem haver entre esses fatos nenhuma integração. Quando a
Coluna Prestes estava passando, os artistas, as pessoas cultas de São Paulo estavam
tratando da reforma do verso.” (1977, p.12)
Já num artigo incluído em Revolução do Cinema Novo, coletânea publicada em 1981,
que se constitui num balanço do movimento do Cinema Novo, Glauber afirmava: “O
tropicalismo, a antropofagia e seu desenvolvimento são a coisa mais importante hoje na cultura
brasileira” (2004, p.150). E acrescentava:
Tropicalismo é a aceitação, ascensão do subdesenvolvimento; por isto existe um
cinema antes e depois do tropicalismo. Agora nós não temos mais medo de afrontar
a realidade brasileira, a nossa realidade, em todos os sentidos e a todas as
profundidades. Eis por que em Antônio das Mortes existe uma relação antropofágica
entre os personagens: o professor come Antônio. Antônio come o cangaceiro, Laura
come o comissário, o professor come Cláudia, os assassinos comem o povo, o
professor come o cangaceiro. (2004, p.150)
Como se vê, antropofagia e tropicalismo1 são empregados, no trecho acima,
praticamente como sinônimos. Passado o período da euforia revolucionária, as ideias de Oswald
de Andrade são resgatadas por Glauber, mas num diapasão distópico. A devoração torna-se
sinônimo da contínua canibalização do homem pelo homem, ao contrário, por exemplo, do
resgate da antropofagia feito por Antônio Callado, em Quarup. No livro, escrito em 1966 e
publicado em 1967, ano em que tem início o tropicalismo, o protagonista atua nesses últimos

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O movimento tropicalista, que vigorou no período entre 1967 e 1972, expandindo-se por diferentes campos da
produção cultural, retirou seu nome de uma instalação do artista plástico Hélio Oiticica, realizada em 1967, mas
ganhou notoriedade, sobretudo, através da música popular. Caetano Veloso, José Celso Martinez Corrêa, além
do próprio Hélio Oiticica, partilhavam, naquele momento, a convicção de que era necessário formular um novo
projeto de vanguarda que desse conta das mudanças ocorridas na realidade brasileira.
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instantes da esperança de reverter a situação política, após a derrota com a instauração da


ditadura militar. Nas vésperas de partir para a luta armada, Nando organiza um banquete
antropofágico no qual devora a memória de Levindo, estudante morto na luta em defesa dos
camponeses. Em lugar dos mitos impostos pela cultura da classe dominante, ficará o mito de
Levindo, cujo nome será a palavra geradora, a ser soletrada, aprendida pelos oprimidos, porque
a partir dela se inaugura uma nova linguagem. Tendo completado o seu processo de
deseducação, livrando-se da cultura livresca que o separava do homem simples, Nando, vestido
de cangaceiro, engaja-se na guerrilha, anunciando um novo tempo, em que o brasileiro
começaria a construir sua história.
A partir de 19682, entretanto, as leituras tropicalistas da antropofagia serviriam a
diferentes propósitos, respondendo de maneiras diversas não só às mudanças no contexto
político e econômico ocorridas com a ditadura militar, mas também às mudanças na esfera da
cultura, decorrentes da perseguição aos artistas de esquerda e da censura, mas também dos
investimentos do Estado na área das telecomunicações – investimentos que permitiram à
televisão se consolidar como veículo de massa. Renato Ortiz (1988, p.186) lembra que em 1965
o Brasil se associa ao sistema internacional de satélites (INTELSAT) e que em 1967 é criado o
Ministério das Comunicações. Assinala ainda o fortalecimento do mercado de bens culturais
desde meados dos anos 1960. A modernização conservadora empreendida pelos governos
militares seguia, assim, o seu rumo.
Diante desse quadro, o espírito desconstrutor do modernismo de 20 e, particularmente
o pensamento de Oswald de Andrade, são resgatados, visando compor uma imagem dissonante
do Brasil que se contrapusesse à imagem harmônica que a ditadura tentava passar apropriando-
se dos mitos românticos. Nesse sentido, cabe lembrar a paródia do nacionalismo sentimental
e de sua linguagem idílica, feita por Gilberto Gil e Torquato Neto em Márginália II:
aqui o terceiro mundo
pede a bênção vai dormir
entre cascatas palmeiras
araçás e bananeiras
ao canto da juriti
aqui meu pano de glória
aqui meu laço e cadeia
conheço bem minha história
começa na lua cheia

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Em dezembro de 1968, o Ato Institucional Nº5 ou AI-5 autorizava o presidente da República a decretar o recesso
do Congresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares; suspender, por dez
anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; e suspender a
garantia do habeas-corpus. Inicia-se, então, o período mais repressivo do regime militar, considerado o golpe
dentro do golpe.
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e termina antes do fim


minha terra tem palmeiras
onde sopra o vento forte
da fome com medo muito
principalmente da morte
ô lê lê lá lá
O humor e a irreverência dos textos de Oswald inspiram o tratamento derrisório
conferido ao nacionalismo ufanista da propaganda governamental. A tonalidade sério-
dramática da literatura dos anos 30 é substituída pelo tom jocoso e irônico da vanguarda dos
anos 203. No entanto, a diferença entre os dois momentos históricos empresta outros sentidos à
herança deixada pelo primeiro modernismo. Em algumas músicas e filmes do início do
tropicalismo, a antropofagia é relida sob o signo do ressentimento, da amargura decorrente da
derrota política sofrida com o golpe militar de 1964. A antropofagia de Oswald constituía-se
num projeto de descolonização da cultura através da canibalização das tradições europeias, que
abriria espaço para a elaboração de novas representações tendo como objetivo a erradicação do
nosso complexo de inferioridade. Através da antropofagia, redefinia-se a relação
colonizador/colonizado, atribuindo ao segundo o papel ativo de devorador da cultura imposta
pelo primeiro. Essa não é a visão que norteia, por exemplo, a adaptação de Macunaíma para o
cinema, realizada por Joaquim Pedro de Andrade, em 1969. Interessava ao diretor,
distanciando-se do utopismo de Oswald, filmar a história de um brasileiro devorado pelo Brasil,
com o objetivo de denunciar a antropofagia institucional, os mecanismos de devoração
camuflados na selva capitalista. Sobre o filme, diz José Carlos Avellar:
1969 – “o Brasil começava a comer mais numerosamente os brasileiros”, quando
Joaquim Pedro de Andrade filmou a história de Macunaíma, “um brasileiro que foi
comido pelo Brasil”, com o personagem a gritar , no meio da rua, o lema que definiu
bem o estado de coisas que se montou, então: “cada um por si e deus contra todos”;
com a deusa Ci do romance de Mário de Andrade transformada em guerrilheira
urbana; e com o herói num duelo com o vilão, o gigante Wenceslau Pietro Pietra,
sobre um imenso caldeirão de feijoada antropofágica – o feijão temperado com
pedaços de carne humana. (1986, p.144)
Passados os tempos de esperança, a obra de Mário de Andrade é resgatada porque, nela,
quem devora é o vilão: trata-se, no filme, de destacar a antropofagia dos mais fortes. Para
Joaquim Pedro, a película tematiza a permanência da antropofagia na sociedade brasileira, o

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Nelson Pereira dos Santos, que, em 1963, adaptara Vidas Secas, de Graciliano Ramos, para o cinema, dirige
Como era gostoso o meu francês (1971), sintonizando-se com a retomada da antropofagia pela estética tropicalista.
O filme faz uma leitura irreverente da história colonial brasileira, inspirando-se no relato do alemão Hans Staden,
que, em meados do século XVI, caiu prisioneiro dos tupinambás.
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que significa que “as relações entre as pessoas permanecem iguais desde os tempos em que
realmente se praticava a antropofagia direta, simples e selvagem até os dias de hoje em que esta
antropofagia ganha um aspecto civilizado” (Ramos, 2002, p. 56). Note-se que a antropofagia,
aí, é lida num diapasão negativo, afinando-se com a crítica corrosiva do país num momento em
que o sistema se apoderara de todos os signos do nacional-popular, colocando-os a serviço do
conformismo. Até o termo revolução fora apropriado pela ditadura que assim designara o golpe
militar. Além disso, começara a se consolidar, ao longo da década de 1960, uma cultura
nacional-popular de mercado, que tomara para si a missão de levar o povo para as telas,
levantando a bandeira da identidade nacional no combate ao inimigo externo, agora identificado
com o comunismo. Acrescente-se que a crença no caráter libertário do progresso industrial e
tecnológico que caracterizou as vanguardas dos anos 20 e 50 também foi abalada, já que o
regime se apropriara da bandeira da modernização.
Daí que o retorno ao paradoxo primitivo/moderno promovido pelos cineastas contrários
ao regime se realizará em outra perspectiva, diferente da assumida por Oswald de Andrade,
para quem a Antropofagia era a chave para superar tanto o idealismo ufanista romântico quanto
o pessimismo determinista que contaminou os intelectuais do final do século XIX,
influenciados pelo cientificismo etnocêntrico europeu. A fórmula encontrada, combinando
sentimento nacionalista e cosmopolitismo, elegendo o híbrido em detrimento das categorias
puras e excludentes, nasce da necessidade de criar novos parâmetros de pensamento que nos
permitissem ultrapassar as dicotomias que vinham balizando o pensamento sobre a cultura no
país e que atualizavam sempre o mesmo esquema: ou a defesa de um nacionalismo essencialista
e fechado ou a apologia de um universalismo modernizador que significava completa submissão
a modelos europeus. Oswald de Andrade valorizou o efeito singular das nossas misturas e
anacronismos, marcando como positivo aquilo que, entre nós, resistiu à aceleração do tempo e
que não necessariamente deveria ser visto como atraso, podendo, ao contrário, ser tomado como
resistência a uma modernização pautada pelo ritmo dos negócios, pela mentalidade pragmática
e competitiva do Norte. A convivência do arcaico e do moderno nos textos do modernista
apontava, então, para um anacronismo positivo, isto é, a permanência de traços arcaicos da
nossa sociedade era até certo ponto vantajosa, pois permitiria um contraponto crítico às leis
modeladoras da civilização europeia, contribuindo para a constituição de uma outra história,
paralela à do Ocidente.
Nos anos de 1970, a revivescência dos arcaísmos, pelo menos no que diz respeito a um
determinado setor da produção cinematográfica, tem sobretudo uma função desmistificadora: a
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justaposição arcaico/moderno serve à crítica da modernização de superfície que deixa intacta


as bases da desigualdade social, chamando-se a atenção para o avanço predatório do capitalismo
brasileiro. Por outro lado, combate-se também a idealização de um Brasil profundo, autêntico,
que caberia resgatar para, a partir dele, construir um país moderno, como propunha o ideário
nacional-popular. Assim, em 1974, momento em que a ditadura militar, com a finalidade de
reforçar o patriotismo ufanista e conservador, incentivava a realização de filmes históricos e
adaptações da literatura brasileira, prometendo prioridade no planejamento orçamentário da
Embrafilme, Jorge Bodansky e Orlando Senna vão reler, num registro profundamente cáustico,
a trajetória da personagem de Alencar, em Iracema, uma transa amazônica.4
O filme é realizado num contexto político em que se vende a ideia de um país que vai
para frente, tendo recuperado, após a ameaça desintegradora do comunismo alienígena, o rumo
do progresso. Se, no discurso da ditadura militar, vencer distâncias espaciais, construindo a
Transamazônica, significava levar o futuro para as regiões longínquas, o diretor vai optar por
um road movie para retratar os efeitos devastadores provocados pela modernização de fachada
no Brasil do interior. O personagem Tião Brasil Grande é um caminhoneiro que percorre o país,
vendendo madeira e levando aos lugares mais distantes o discurso de exaltação do projeto
modernizador da ditadura militar, através do qual enaltece também sua própria atividade
comercial. Entretanto, a dicção cínica e o tom provocador que pontuam sua verbalização da fé
no futuro, juntamente com as imagens desoladoras dos lugares por onde passa o caminhoneiro,
captadas por uma câmera documental, denunciam a falácia da retórica do poder. Essa
atualização debochada do drama de Iracema, em meados do século XX, tem, como efeito,
chamar a atenção do espectador para uma história que não avança, mas, ao contrário, se repete
de maneira degradada.
Como a personagem romântica, a Iracema de Jorge Bodansky e Orlando Senna também
se desloca no espaço e, afastando-se dos referenciais de origem, é obrigada a deixar de ser o
que era sem conseguir pertencer, em condições de igualdade, à cultura dominante: para se virar
em meio às adversidades, torna-se prostituta. Trata-se, outra vez, da terra-mulher oferecida em
sacrifício em nome de um modelo de modernização trazido de longe, que não foi sedimentado
paulatinamente a partir dos interesses locais. Só que, na releitura realizada pelos diretores, a
relação erótica mediada pelo dinheiro e não pelo amor romântico, é estéril, não gera fruto. Sem
Moacir, o sacrifício de Iracema no altar das “práticas civilizatórias” é em vão, não engendra o

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Como o filme esvaziava a proposta do governo, ao assumir uma postura crítica em relação ao discurso oficial,
foi impedido de ser lançado no Brasil, sendo liberado apenas em 1980.
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futuro. O progresso anunciado pela publicidade do governo passa pelas pequenas localidades
como o caminhão de Tião Brasil Grande: não as fertiliza, deixando um rastro de destruição. O
Brasil de Tião devora as iracemas.
Por outro lado, o tropicalismo, assumindo-se, pouco a pouco, como um movimento
crítico cuja ênfase não se colocava numa militância de oposição, recorrerá ao binômio
originalidade nativa e técnica para combater a arte nacional-popular, cuja excessiva
preocupação com o conteúdo teria contribuído para a pobreza estética, para o desleixo no que
diz respeito aos aspectos formais das obras, ao mesmo tempo em que teria também fracassado
na sua estratégia de conscientização do público através da identificação emocional com o
oprimido. Terra em transe, filme de 1967, por exemplo, marca a mudança de postura de
Glauber Rocha em relação ao nacional-popular, através da figura quixotesca do personagem
Paulo Martins.
Na música, a vanguarda tropicalista levantava, então, a bandeira da revolução estética,
associada à mensagem rebelde e anárquica, sem, no entanto, deixar de flertar com a cultura de
massa, visando a atingir um público maior: tratava-se de conciliar “antropofagicamente” as
inovações musicais com a popularidade midiática. O elogio do progresso técnico e dos
hibridismos contra os ideais de pureza, promovido pelo modernismo brasileiro, tornava-se
bastante conveniente para alguns artistas nessa época em que o mercado de bens culturais se
ampliava e a televisão abria novos horizontes de trabalho. Por esse viés, a antropofagia, no
processo de revisão cultural que ocorria a partir do final dos anos 60, passava a servir também
à integração do artista no mercado em expansão. A justaposição de elementos díspares nas
canções, colocando lado a lado o “cafona” e a modernização trazida pela técnica, justificava-se
como reação “ao banquete aristocrático da inteligência brasileira”, para usar as palavras de Luiz
Carlos Maciel (Favaretto,1979, p.12), trazendo à tona elementos da cultura popular desprezados
pelas elites. No entanto, a mistura tropicalista no campo musical, com seu caráter lúdico e
cosmopolita, enfatizando o efeito de humor, num dos momentos mais ferozes da repressão
promovida pela ditadura militar, teve resultados ambíguos, em função, inclusive, de seu
impacto na cultura de massa. Distanciava-se, assim, em vários aspectos, do projeto cultural de
Oswald de Andrade. Neste, a concepção aberta de cultura, a absorção e a transformação de
elementos alheios visavam ao aperfeiçoamento da cultura brasileira, isto é, a perspectiva crítica
não perdia de vista o horizonte utópico: a técnica servia à libertação, o bárbaro tecnicizado é o
homem que, adquirindo o domínio da técnica sem abrir mão de suas características culturais,
tornava-se livre. O Manifesto Antropófago, visto por esse ângulo, era um canto futurista: a
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agitação do contexto interno, ainda que mais concentrada em São Paulo, a exigir mudanças
políticas e econômicas, a industrialização crescente, suscitavam a esperança de que poderíamos
“acertar o relógio com a contemporaneidade”. Entretanto, ao valorizar aquilo que, entre nós,
não se compatibilizava com o modelo racional dos países hegemônicos era também um canto
primitivista. Ao assumir o paradoxo primitivo-modernista, Oswald adotava uma ótica
culturalmente descentrada: o reconhecimento da importância da técnica servia para neutralizar
a tentação de interpretar comodamente o atraso como manifestação de uma força criadora
original, não contaminada pelos vícios europeus. Com esse espírito, o modernismo brasileiro
imprimiu novo vigor ao nacionalismo, revendo criticamente os mitos românticos para criar uma
imagem do Brasil que permitisse reconciliar a nação real com a nação ideal.
No movimento tropicalista, a postura crítica em relação ao nacionalismo não significava
rejeitá-lo radicalmente, o que estava em sintonia com o ideário do modernismo de 22, mas tal
postura crítica tinha, no campo cultural, um alvo mais imediato: o romantismo nacional-
popular das esquerdas dos anos 60. Nesse sentido, “não se tratava de resistir à indústria cultural
e à ditadura encastelando-se no passado, mas de mergulhar a cabeça nas estruturas para
subvertê-las por dentro”, como observou Marcelo Ridente (2000, p.284). É nesse ponto que o
vanguardismo tropicalista se tornava mais ambíguo: afirmando-se cada vez mais como um
movimento acima das ideologias, crítico, mas também despudoradamente festivo, propunha-se
a devorar o mercado estando dentro dele. A antropofagia, agora, abria espaço para a integração
contraditória do artista na outra cultura nacional-popular – a de mercado –que tinha na Rede
Globo seu grande expoente, e, ao fazer o elogio da livre competitividade, preparava também o
caminho da abertura para o mercado internacional.
A problemática relação entre o mercado cultural interno e o externo, entretanto, já
constituía uma preocupação para Oswald de Andrade, na década de 40, quando se refere a um
novo fenômeno: a “invasão” da cultura de massa norte-americana. Em “Carta aberta a Monteiro
Lobato”5, publicada como artigo de jornal, volta ao passado para assinalar a oposição, que se
estabelecia em 1918, entre os avanços tecnológicos que encurtavam distâncias e o nacionalismo
de Lobato, em Urupês – livro editado, naquele ano, no qual surge a figura do Jeca Tatu. Oswald
declara então: “E mal suspeitávamos – eu e você e os outros frequentadores daquele refúgio da

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A respeito dessa mesma carta, ver o ensaio “Literatura e cultura de massa”, do livro O cosmopolitismo do
pobre, de Silviano Santiago (Belo Horizonte: UFMG, 2004).
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cidade, que nos parecia vulcânica nos tímpanos ainda recentes da Light and Power – que uma
oposição começava entre o seu livro e o avião (1991, p. 33).” E mais adiante afirmava:
Mas em torno de você entrou a subir a toada mecânica de trilos e buzinas da
cidade moderna, começou o cinema a passar, a pisca-piscar o anúncio
luminoso, o rádio a esgoelar reencontros e gols. E a meninada pouco a pouco
se distraiu. Um foi ver os Esquadrões da Madrugada. Outro o Império
Submarino, um terceiro, com os dentinhos em mudança, abriu a boca porque
o Leônidas tinha machucado o dedão do pé esquerdo (1991, p. 36).”
Em seguida, concluía: “Lobato, trava-se uma luta entre Tarzan e a Emília”. A luta a que
se referia Oswald era decorrente da modernização desigual, que impulsionava o progresso de
São Paulo, tributário da Light and Power, e deixava de fora o Brasil do interior. A cultura de
massa norte-americana entrava no Brasil com toda força através do cinema e das revistas em
quadrinhos, atropelando os empreendimentos de Monteiro Lobato orientados para a criação de
um mercado editorial interno, para a divulgação da cultura letrada nacional. Ou seja, o escritor
modernista assinalava o problema da não sincronicidade entre o nosso ritmo de produção
industrial e de distribuição de bens culturais e o ritmo dos países hegemônicos.
O embate entre Tarzan e Emília sinalizava, para Oswald, o confronto num campo mais
vasto, isto é, o embate entre dois projetos opostos de modernização: um que nos deixava à
mercê do “capitalismo de vistas curtas e unhas longas” (1991, p.37) e outro, em que o país
tomaria as rédeas do ritmo de suas mudanças, ou seja, de sua própria temporalidade. Era preciso,
então, ficar fora do alcance da “pata gigantesca e astuta dos interesses excusos” (1991, p.36)
que ameaçavam os empreendimentos editoriais de Lobato e, ao mesmo tempo, enviavam o
Jeca, habitante do mundo rural, excluído do processo de modernização, à guerra, convocando-
o a participar da conjuntura internacional como soldado. Ou seja, ia dar o sangue pela redenção
da Europa, pegar em armas, enquanto lhe negavam o acesso aos livros e às benesses do
progresso técnico.
Homem urbano, cosmopolita, Oswald não era um entusiasta incondicional da cultura
técnica em expansão, embora reconhecesse nela um potencial emancipador. Preocupava-se com
o destino do Jeca, essa figura que, na verdade, nem chegava a participar do embate entre Tarzan
e Emília, pois não fora alfabetizado e não ia ao cinema, mas, como disse Oswald, “trabalhou o
sertão e a cidade”, fez o Brasil. Na carta a Monteiro Lobato, nosso modernista procurava pensar
a experiência de atropelo vivida pelos países periféricos face à aceleração das inovações nos
campos industrial, tecnológico e científico. Por um lado, o avanço da técnica poderia permitir
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que acertássemos o relógio com a contemporaneidade, acenando com a possibilidade de se


escapar de uma visão da história sucessiva e linear, que nos condenava a ter de viver com atraso
cada etapa já vivenciada pelas nações hegemônicas. Por outro, a tecnologia invasora, em ritmo
irrefreável, criava novos ambientes, alterando os rumos da cultura local, como os aviões que,
sobrevoando São Paulo, afetavam, sem que se percebesse, a recepção de Urupês.
Para Oswald de Andrade, naquele momento marcado pela II Grande Guerra, o mais
importante era não deixar o Jeca à mercê da tecnização que vem de fora, pois isto significaria
condená-lo à exclusão, sacrificá-lo em função dos interesses do mercado financeiro
internacional. A época da fotomontagem, trazendo uma nova maneira de perceber o tempo -
como convergência de momentos, como simultaneidade dos instantes – deveria ser aproveitada
de modo que nos permitisse beber de um trago só nossa independência técnica e, então, seria a
vez do Jeca falar, fazendo valer, em vez das oposições excludentes que balizaram o pensamento
moderno, a lógica acumulativa: isto é, a floresta e a escola, a álgebra e a química logo depois
do chá de erva-doce. O Jeca, não mais mulambento e verminado, como o descreveu Lobato, e,
sim, como cidadão que conceberia as inovações tecnológicas como fruto de uma escolha e não
como fatalidade. O Jeca, que devoraria tanto a Emília, boneca falante, como o Tarzan, rei da
selva africana, sem ter de esquecer “o dorme nenê que o bicho vem pegá”, a sábia preguiça
solar, a reza e o carnaval. Enfim, o Jeca antropófago, consciente de que há uma não-
sincronicidade positiva.
Depois do modernismo, a convivência do arcaico e do moderno, assim como a
possibilidade de superarmos os nossos descompassos temporais através do avanço técnico,
questões discutidas por Oswald de Andrade, serão retomadas ao longo do tempo tanto no
campo da reflexão teórica quanto no campo da arte. A permanência do tema da nossa não
sincronicidade – seja para destacar que é preciso dar um salto no tempo, seja para assinalar a
contrapartida vantajosa dos descompassos – aponta para a desconfiança numa modernização,
que, a reboque de interesses externos ao país, seria sempre de fachada, mascarando problemas
de base. Assim, em livro de 1996, o geógrafo Milton Santos marca positivamente a resistência
ao que ele chama de “sincronização despótica”, de “relógio do mundo instigado pela
competitividade em escala global”, que penalizaria quem com ele não acerta o passo. Daí seu
elogio ao homem lento. Segundo Milton Santos, os homens lentos, os pobres da cidade,
escapariam ao totalitarismo da racionalidade, aventura vedada aos ricos e às classes médias. A
carência levaria à criação de novos usos e finalidades para objetos e técnicas, pois o consumo
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imaginado, mas não atendido, produziria o desconforto criador. O choque entre cultura objetiva
e cultura subjetiva tornar-se-ia instrumento de uma nova consciência (1996, p.52).
No cinema mais recente, o filme Cinema, aspirinas e urubus (Brasil/2003), de Marcelo
Gomes, retoma o tema das relações do homem do interior com a técnica. A história narrada
pelo filme situa-se no sertão nordestino, em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial. As
aspirinas do título, distribuídas no Brasil por um alemão fugido da guerra, são vendidas pelo
sertão, com o auxílio de um pequeno filme publicitário, como panacéia capaz de curar todos os
males. O aparecimento abrupto do cinema naquela região inóspita, sem que tivesse qualquer
vínculo com a cultura local, sem que houvesse conhecimento do seu contexto de produção, mais
do que o conteúdo do filme publicitário exibido, envolve o povo do lugarejo numa atmosfera
mágica que acaba por legitimar o milagre prometido com a ingestão dos produtos da Bayer. O
efeito surpresa decorrente da distância cultural entre o objeto técnico e o meio em que é
introduzido cria em torno dele um mistério, faz com que deixe de ser um simples objeto,
imprimindo-lhe uma espécie de força oculta. No filme de Marcelo Gomes, chama-se a atenção
para a maneira como os objetos técnicos vindos de fora interferem nas formas de vida de um
lugar e, ao mesmo tempo, para o modo como cada lugar vai se relacionar com esses objetos a
partir de seu sistema de referências.
Johann, o alemão, e Ranulpho, o sertanejo, personagens principais do filme, se cruzam
no momento fugaz, anterior à tomada de direções radicalmente opostas. Assim, se Johann vem
para o Brasil, fugindo de um modelo de modernização que, aliando o culto da tecnologia com
um nacionalismo de bases míticas, levou seu país à guerra, em sentido inverso, Ranulpho, o
sertanejo, vai abandonar a terra natal, o lugarejo onde nasceu, e sair em busca do progresso,
fascinado com suas promessas. A guerra interioriza o alemão Johann, que foge dos campos de
batalha, e, indiretamente, fornece as condições para que Ranulpho se encaminhe para a cidade
grande, guiando o caminhão que ganha de presente de Johann. Ranulpho procura aquilo de que
o alemão quer escapar: “No Brasil, nem guerra chega!”, reclama ele.
O retrocesso de Johann em direção à natureza, que culminará com sua ida para a
Amazônia, e o avançar de Ranulpho rumo à “civilização” se, de um lado, propiciam o encontro
e as trocas, por outro, se realizam sob o signo da violência dos cortes abruptos nas histórias
individuais. São tempos diferentes que se cruzam, mas ambos os personagens estão em fuga –
fuga dos desmandos da racionalidade ocidental que usa a técnica para aperfeiçoar armas
mortíferas e fuga das agruras do meio hostil, não dominado pelo homem. A ruptura com o
passado, com as origens, mergulha os personagens na solidão. Na estação de trem, a partir da
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qual as trajetórias cruzadas se afastam, a focalização do céu cortado por urubus deixa claro que
nem o retorno à natureza nem tampouco o espaço urbano e a racionalidade tecnológica são
garantias de um futuro promissor para aqueles indivíduos isolados em suas buscas.
A ficção cinematográfica brasileira tem, dessa forma, destacado que a simultaneidade e
unicidade das tecnologias, atingidas ao longo do século XX, não se realizaram na direção da
criação de um mundo mais igualitário, no qual se reduzisse o abismo entre países periféricos e
países hegemônicos, porque, apesar de todas as crises, ainda são estes últimos que detêm o
conhecimento científico e tecnológico. Como se vê, se as questões levantadas pelo modernismo
brasileiro são recorrentemente retomadas, o teimoso utopismo de Oswald de Andrade parece
ter ficado para trás. Está longe o tempo em que se poderia endossar a seguinte afirmativa do
nosso modernista:
Atingindo o clímax da técnica, o calvinismo, que foi, com a doutrina da Graça, o
instrumento do progresso, tem que ceder o passo a uma concepção humana e
igualitária da vida - essa que nos foi dada pela Contra-Reforma. A técnica passa da
fase de aperfeiçoamento à conquista de mercados, indo levar à Africa mais remota
ou às ilhas da Oceania o mesmo livro e o mesmo ferro de engomar, a mesma
televisão que marcavam de superioridade os países mecanizados. Passa-se a
socializar e a universalizar o produto da máquina. (1970, p.152)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Brasileira, 1970.
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HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde:
1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1981.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São
Paulo: Brasiliense, 1988.
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RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos fracos. Bauru: EDUSC, 2002.


RIDENTE, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000.
ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
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Hucitec, 1996.

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