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NACAO E DEFESA ANO IN ZERO —ABRIL DE 1976 REDACGAO DA SECCAO DE ESTUDCS POLITICOS DO GABINETE DE ESTUDOS E PLANEAMENTO DO ESTADO-MAIOR DO EXERCITO ISSN 0870-757 Depésito Legal n° 54 801/92 REEDICAO LIMITADA — 1992 A DOUTRINA DOS _ ARTIGOS. E DA RESPONSABILIDADE DOS AUTORES. ee EDITORIAL —NUMERO ZERO Os escritos que ora se editam — e se seguem — precedem-se de algumas consideragoes cuja oportunidade se hé-de relacio- nar a circunsténcia nacional. Assim, se dadas as actuais, ¢ singulares, condigées de con- centracéo geogrifica, politica e social, haveremos a pensar uma nova realidade portuguesa, néio é menos verdade, ¢ urgente, termos a agir um trabalho definidor dos interesses da Nagao, em paralelo a uma consciéncia capaz da sua Defesa. As necessidades gerais nao permitem que debitemos, alic~ nando, a responsabilidade de servir a Nagao a um organismo ou a um grupo restrito de homens. A responsabilidade é de todos, embora se imponha um sentido de disciplina ao tempo das decisées. Surge a (1970); elwiciagdo ao Filosofars (1970 ¢ 1974); histérico, libertando-nos, na medida em que isso va sendo possivel, dos complexos mecanismos nos quais as colinias € 0 colonialismo se inscreveram como uma das suas pegas fundamentals, E s6 hi —ao que supomos — um processo de o tentar: € concentrarmos ‘as energias que nos restaram num projecto vidvel de futuro. A nossa medida, ou seja: com fealismo mas, simultancamente, na convicgio de que 0 povo portugués ¢ senhor de enormes virtualidades que importa efectivar, algumas das quais 36 agora poderio vir A superficie se... Se formos capazes de nos libertar dos enleios do passado, rumando, decididamente, para um futuro nosso. ‘Valew a pena ter esse povo partido, ha séculos, para as terras de além- -mar? Em boa verdade, nfo ha resposta pertinente para tal pergunta, des- tituida de sentido em termos de compreensio histérica. O que importa, isso sim, € desmentir, criticamente, 05 mecanismos de toda a ordem — desde os socio-econémicos aos mentais ¢ culturais —que condicionaram dado trajecto histérico. B que s6 € possivel enterrar 0 passado, compreendendo-o e expli- cando-o; ¢ tal tarefa, em grande parte ainda por levar a efeito, se exige trabalho drduo ¢ persisiente e adequada preparagio cientifica, no depen- der menos do projecto futuro que, desde ja, sejamos capazes de ir formu- lando, assumindo-o & medida do que for sendo possivel. ‘Assim, sejz-nos permitido propor alguns temas de reflexio, umas tantas prioridades indispensiveis, segundo cremos, a0 desbravamento das dificul- dades em que nos encontramos € nos encontraremos por largos anos ainda. Eis erro em que néo cairemos: 0 supor que as estruturas de um pals como ‘0 nosso se redefinirZo num Apice mediante qualquer «milagre», O caminho seri longo mas precisa de principiar a ser percorrido. Eis 05 temas ¢ as prioridades, tais quais as entrevemos. Se, acaso, forem considerados pertinentes, continuaremos a dar o modesto contributo que nos for possivel A generalizagio do debate em termos nacionais. I — Reformulagéo politica do Pais, em termos de liberdade ¢ de jus- tiga, E, neste ensejo, lembremos tio-s6 que liberdade e justica nio sio, por sua natureza mesma, ideias que se excluam, embora na pratica histérica antiga ‘ou mais recen:e, por vezes, tenham assumido carcter disjuntivo, Com efeito, segundo pensamos, nio se trata de sacrificar a justica inadidvel a liberdade, oa de adiar a liberdade de iniciativa & justiga decretada, por uma vez. [A liberdade © a justiga elo modiagées interconexas na transfarmacin das realidades socio-econémicas ¢ culturaismentais que enfrentamos, hoje, entre nbs. IL —Alteragéo das esteuturas socio-cconémicas do Pais, em termos de tum projecto socialista, A histéria do capitalismo portugués est em boa parte por fazer. Todavia, algo parece certo: ele jamais conseguiu impulsionar, deci- sivamente, 0 Pais — e daf a necessidade do recurso ao fascismo ¢ as guerras coloniais; nio logrou levar por diante certo desenvolvimento industrial, efec- tivamente verificado na década de 60, sem destruir, ao mesmo tempo, a agricultura, cujos problemas jamais se articularam, coerentemente, com o3 do sector secundério; a cindustrializagio> portuguesa desencadeou, assim, 0 éxodo emigratério a que temos assistido nos iltimos anos... Se assim 6, 0 capitalismo nao chegou a estruturar-se solidamente em Por- tugal, o que liberta 0 Pafs, na sua aposta de futuro, de metas a alcangar que 36 so validas nas sociedades industrializadas que se encontram adiantadas 80 ou mais anos relativamente a nds... Estamos condenados, pelo que parece, 1a niio sermos senio um subproduto do grande capitalismo. Vale a pena? Por outro lado, isso mesmo nos abre ¢ facilita as vias da experitncia socialista. Que socialismo? Aquele que for possivel, a partir das forgas sociais fem presenga e das capacidades que revelarem de subsumirem os pequenos particularismos na busca em comum do interesse nacional. III — Alteragio das estruturas culturais-mentais da gente portuguesa, em termos de um projecto nacional de edueacio. Da escola infantil as Univer- sidades, dos docentes aos discentes, 0 esforgo a empreender & enorme, Sem ele, porém, nada ser4 possfvel, ou tudo acabaré por ficar aquém, na apagada e vil tristeza de se no ser capaz do paso decisivo. Nao é dificil definir, um tanto abstractamente, os alvos que, af, importa aleangar: 1) A cfectiva democratizagio do processo educative: que cada jovem portugués, a pattida, tenha possibilidades de prosseguir os estudos até aos limites das suas condigées naturais. Ora, tal propésito s6 seré vidvel, a par- tir do momento em que a nossa sociedade se transforme, de facto, de acordo com um projects nacional de socialismo. 2) Democratizar significa, além do mais, conceder-se a cada portugués © dircito ao trabalho. Nao discutamos isso, Mas é necessdrio insistir em que a contrapartida desse direito é o dever de trabalhar. £ tempo de se fazer um esforco para tomar claro a todos —e especialmente aos mais jovens — que o trabalho é um privilégio do homem livre, naturalmente céntestado pelos mendigos, pelos parasitas sociais e por todos quantos se nfo libertaram ainda 10 dos hébitos atévicos de viver do império de além-mar... Algumas das rafzes da preguiga ¢ da ineficiéncia de tantos de nés mergulham nesse substractum hist6rico que, sabemo-lo bem, terminou. As escolas ou serio locais de tra- balho efectivo, em que se aprende a trabalhar trabalhando, ou serio ape- nas pouco mais que poleiros destinades a eternizar, entre nés, 0 mando de dados grupos sociais privilegiados pelo nascimento. E enquanto professores @ alunos néo compreenderem isso e no pautarem a sua acco pela com- Preensio que disso mesmo alcangarem, o fermento democratizador nao terd comegado ainda a afectar de maneira nova a educagio que se pratica em Portugal. 8) A pritica do espitito cientifico, o sentido do problema, o treino na busca das solugées, o fomento da imaginagao criadora... E demasiado ficil Proclamar que esses deverdo ser os objectivos a alcangar nas tarefas escolares. Bem mais dificil seré institu-los na prética docente-discente. Mas esse € um dos desafios que a todos, neste momento decisivo da vida nacional, é langado. © futuro do Pafs dependeré, imediata ou mediatamente, das capacidades que revelarmos na assungo de tal desafio. Joel Serrito PARA UMA EXPLICACAO DE PORTUGAL Joaquim Barradas de Carvalho, mascido em Lisbon (1920). — Licenciado em Historia e Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1946). Doutor em Estudos Ibéricos (3.° Ciclo) pela Faculdade de Letras e Citncias Humenas da Univer- sidade de Paris, Sorbonne (1961). Diplomado pela Escola Pritica de Altos Estudos da Universidade de Paris, Sorbonne (1970). Doutor de Estado em Letras « Cibncias Humanas pela Faculdade de Letras ¢ Cidncias Humanas da Universidade de Paris IV Sor- bonne (1975).—Bolsas de estudo, em Paris (1950-1962): — ‘Relations Cultureliess do Ministério dos Negdcios Estrangeiros da Franga, Fundacéo Calouste Culbenhian, Association Marc Bloch, Centre National dota Recherche Scientifique — como professor ‘estrangeivo convidado —, Professor Titular contratado da Facul- dade de Filosofia, Letras ¢ Cidncias Humanas da Universidade de ‘So Paulo, Brasil (1964-1960). — Cursos e conferdncias na Uni- versidade de Paris (Vincennes, Pavs-IV-Sorbonne, IV* e Vis Sec- (bes da Escola Pritica de Altos Estudos) (1972-1973). «Attachis 12 «Chargé de recherches no «Centre National de la Recherche Scientifiques, Paris (1970-1916). Actualmente Professor Catedrd- ico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. — Mais de wma centena de publicacées cientificas, no Brasil, em Portugal, em Franca ¢ em Espanha, 13 PARA UMA EXPLICACAO DE PORTUGAL INTRODUGAO Entre 23 de Margo e 9 de Abril de 1974, escrevemos em Paris, ainda no exilio, uma sétie de artigos que vieram a ser publicados, jé depois do dia 25 de Abril, no Brasil, no Suplemento Literério d'O Estado de S. Paulo (*), fe em Lisboa, em pequeno livro da Colecgdo Horizonte, Livros Horizonte (+). Tanto os artigos, quanto o livro, apareceram com o titulo: Rumo de Portugal, A Europa ou o Allantico?. Na Introducdo anunciévamos um estudo que era ‘um projecto j& ce ha alguns anos, Ora chegou 0 momento de dar realizagio completa a esse projecto, que é também ¢ sobretudo um projecto para Portugal. ‘Como dizfamos entio, na primeira e na segunda parte do nosso estudo, procurariamos, procuraremos agora, dar aquilo a que poderemos chamar A Exxplicagio de Portugal daqueles historiadores, ensaistas da Histéria, socié- logos, portugueses, brasileiros, ou estrangeiros, que, de maneira explicita ou ‘implicita, deram uma maior ou menor contribuigéo para essa Explicagio. Em pequeno livro de ainda néo ha muito, Da Histéria-Crénica a Histé- ria-Ciéncia (*), defendemos, entre outras, a tese de que Alexandre Herculano foi o primeiro bistoriador portugués, pois tudo 0 que se fez antes de Her- culano néo ia aiém da Crénica, no transcendida no fundo os cronistas me- dievais ou renascentistas ¢ estava até talver aquém do que escreveu esse cronista mpar, ‘alver sem paralelo que foi Fernio Lopes (*). ()) Sio Paulo, 4-11-18-25 de Agosto, © 1 de Setembro de 1974. () Julbo de 1974. (0) Coleegio Horizonte, Livros Horizonte, Lisboa, Maio de 1972. () Vero excelente livro de Maria Litcia Perrone de Faro Passos, 0 Herdi na Cronica de D. Jota I de Ferndo Lopes, Ed. Preto, Lisboa, 1974, 4 Assim, numa primeira parte, trata-se de por de pé aquilo a que pode- remos chamar A Explicagio de Portugal de historiadores ¢ ensafstas da His téria, como Alexandre Herculano, Antero de Quental, Oliveira Martins, Depois, numa segunda parte, as contribuigdes de_historiadores, ensaistas da Historia, soeiélogos, como Jaime Cortesio, Anténio Sérgio, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Robert Ricard. Finalmente, numa terceira e dltima parte, 0 nosso ensaio de Explicagdo de Portugal, a que se seguird o nosso projecto para Portugal. Ao referirmos Antero de Quental lembramo-nos quase que exclusivamente da sua célebre conferéncia do Casino Lisbonense sobre As Causas da Deca- déncia dos Povos Peninsulares nos iiltimos trés séculos (*). Ao referirmos Oliveira Martins pensamos na Hist6ria de Portugal (*), na Histéria da Civili- 2acéo Toérica ('), no Portugal nos Mares (*), n'O Brasil ¢ as Colénias Por- suguesas (*), no Portugal Contempordneo (°*). O caso de Herculano & menos simples, pois o que poderemos chamar a sua «Explicagio de Portugal» esté disperso por tola a sta volumosa obra, desde a Histéria de Portugal (*%), & Histéria da Origem ¢ Estabelecimento da Inquisigéo em Portugal (#2), as Car- Jas sobre a Hitéria de Portugal (*), a alguns outros dos seus Opésculos, & até & sua resposta a Cardenas sobre o problema do feudalismo na Peninsula Ibérica, Da Existéncia ou ndo Existéncia de Feudalismo nos Reinos de Leio, Castela ¢ Portugal (*). Ao mencionarmos Jaime Cortesdo, Ant6nio Sérgio, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Robert Ricard, lembrames, para 0 caso de Anténio Sérgio, a sua pequena, mas sempre viva Histéria de Portugal, da Coleccio Labor ('*), escrita no seu exilio de Patis, em 1929, ¢ agora publicada na versio portuguesa original, sem autocensura, com o titulo Breve Interpretacao () Prosas, Volume 1, Lisboa, #/4. () 1 ed., 1879, Guimaries Baitores, Lisboa, 1968. () Bbid., Lisboa, 1954, (3) 1 ed, 1889. roid. () 18 ed., 1880. Thid., Lisboa, 1959, (*) Le ed, 1881, Tbid, (8 Volumes). (*) 8 Volumes, 8 ed. () 8 Volumes, 9.* ed (8) Opstcutos, Vol. v, 1842 (4) Opusculos, Vol, vi, 1876-1877, (*) Barcelona-Buenos Aires, 1829, 15 da Histéria de Portugal ('*). Para além desta sintese ainda nao igualada, ¢ muito menos ultrapassada, devemos ainda mencionar a sua Histéria de Por- tugal (Introdugao Geogréfica), Volume 1 (#7), logo impedida de cisculagio em Portugal, e também, e sobretudo virios dos seus ensaios, que se tornaram auténticas chaves para uma compreensio global da histéria de Portugal. En- saios como: A Conquista de Ceuta (#*), As Duas Politicas Nacionais ("), 0 Reino Cadaveros> ou 0 Problema da Cultura em Portugal (**), 0 estudo sobre A Revolugéo de 1383-1385 (*), 0 opisculo Em torno da designagao de monarquia agraria dada a primeira época da nossa histéria (**). De Jaime Cortesio lembramo-nos especialmente d'0s Factores Democré- ticos na Formagio de Portugal (33). De Gilberto Freite, O Mundo que 0 Por- tugués criow (*), Casa Grande ¢ Senzala (**), Aventura ¢ Rotina (**). De ‘Sérgio Buarque de Holanda, as Raizes do Brasil (**), a Visio do Paraiso (**). Finalmente, de Robert Ricard, 0 seu extraordindrio ensaio sobre La Dualité de la Civilisation Hispanique et Histoire Religieuse du Portugal (*). Todo este projecto nasceu no Brasil, onde, entre 1964 ¢ 1969, regemos, na Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Citncias Humanas da Universidade de Sio Paulo, o curso de Histéria da Civilizagdo Ibérica, e, nos tiltimos dois anos, também, um curso de Historia da Cultura Portuguesa, Tudo isto como que a comprovar que a melhor maneira de conhecer Portugal ¢ ir para o Brasil (*) Clissicos $4 da Costa, Lisboa, 1.* od., 1972, (©) Livraria Portagilia, Lisboa, 1961, (°) Ensaios, Tomo 1, Livraria Sé da Costa, Esitora, Lishos, 1° ed. 1971 (0) Bbid., Tomo a, Tbid., 9/4, ) Thi, Tid (*) Preficio a corra atris de nés... Partames assim mesmo do presente, entremos no passado, no passado de muitos séculos atrés, para voltarmos ao presente em condigdes de podermos chegar a uma opsio verdadeiramente fundamentada. ‘Como jé dizia o grande Michelet, em pleno stculo XIX, caquele que quiser ater-se ao presente ndo compreenderé nunca esse mesmo presenter. Sio pa- lavras a fazer meditar economistas ¢ socidlogos... ea chamar @ meditacdo, se ruitos deles forem disso capazes, os chamados shomens politicos». ‘Mas meditemos também nds, historiadores, pois Michelet esqueceu-se de eescrever a sua frase substituindo a palavra presente pela palavra passado: eaquele que quiser ater-se apenas ao passado no compreenderd nunca esse ‘mesmo passado> (°°). Se seis anos no Brasil nos fizeram ganhar uma nova dimensio como cida- dio portugues, também as interrogagées que nos iam surgindo ao longo desses ‘anos no Curso que ministravamos na Universidade de Sio Paulo — ¢Histéria da Civilizagio Ibérica» — nos Jevavam a por o problema da existéncia de uma Civilizagio Tbérica... Existe uma Civilizagio Ibérica, ou existe uma Dualidade, ou mesmo ume pluralidade de Civilizagies Ibéricas? Porqué agora e néo de hé muito a viruléncia dos Movimentos Naciona- listas? A Catalunha? O Pa‘s Basco? E porque no amanha a Galiza? Porque agora o Pafs Basco de além Pirineus? Porqué —nio desmaiemos...—a Bretanha? E ete., ete., ete. Porqué tudo isto, agora mais do que munca, na época dos internacioralismos? Ainda h& pouco a minha geracZo sonhava (pelos anos 40) com uma lingua universal, 0 cesperantor... Enfim, parece-nos que nunca teve de certo uma tio grande actualidade a discussio, a definigio, de conceitos, tais como: os de Estado, Nagdo, Civili- 20sa0, CivilizarBes, Lingua ¢ Cultura. (0%) Ver 0 nosso estado, Da HistériaCrénica a Historia Cidncia, Coleco Horizonte, Livros Horizonte, Lisboa, 1972, pp. 76-86. 7 Sio estes ¢ outros pontos sobre que acabaremos de nos debrugar, na discus- sio final do nosso projecto para Portugal, projecto que pretendemos seja alicer- sado em rafzes muito profundas... a longa histéria, e porque longa bem espect- fica, da nossa Civlizagao ¢ Cultura. I ALEXANDRE HERCULANO 1 — A EXPLICAGAO DE PORTUGAL a, —A wlilidide da Histéria Para Alexancre Herculano a Histéria ndo era, nem uma recreagio para © espirito, nem um ramo do conhecimento destituido de qualquer utilidade. Ele proprio afirmava que: buscava na histéria do passado doutrina para o presente» (' ‘Numa carta a Oliveira Martins, dizia: <0 ‘nico intuito do que escrevi foi deixar As geragSes futu- as om Portugal alguns meios para uma coisa que me parece hio-de algum dia tentar fazer, isto ¢, tormar as instituigdes mais harmné- nicas, mais consequentes com as tradijGes ¢ indole desta familia portuguesa...» (). Alguns anos antes, quando da publicagio da 3.* edigZo da Histéria de Portugal, jf ele dissera no preficio que (1) Opssculos, Volume vm, A Escola Politéenic p. 220. . () Cartas, Volume Carta a Oliveira Martine, Val de Lobos, 1872, 1. ed., p. 229-226 (© Monumento, 1843, 8.% ed, 1B estinava o encetada trabalho para estudo de um prin- cipe, entio aa puericia, que em futuro remoto, quanto a incertera das coisas bumanas peritia ajuirtlo, devia reinar em Porte Bb (). E destinave-o para estudo do principe spersuadido de que 0 conecimento da vida anterior de uma aagio 6 o principal auxilio para se poder e saber usar, sem ofensa dos bons principios do influxo que um rei de homens livres tem forgosamente nos destinos do seu pais...» (*) E na sua propria Histéria de Portugal que Herculano nos diz: Coligir esses factos, que constituiram o desenvolvimento © a vida colectiva dos pavos, 0 mister principal da historia; porque, ordenados ¢ expostos, a convertem numa ciéncia ati) pela sua ‘aplicasdo as graves questées que abalam os fundamentos das so- ciedades modernas> (). E continua Herculano: 4B sobretudo com este iiltime intuite que procuraremos de- linear agora a situagio interaa de Portugal na primeira época da sua histérias (1). E de acordo com estas afirmagdes de Herculano acerca da utlidade dos seus estudos histéricos na resolugSo dos grandes problemas do nosso séeulo XIX, que iremos agora tentar compreender como é que o grande historiador cbuscava na histéria do passado doutrina para o presenter (") (©) Histéria de Portugal, Volume 1, Preficio da 8 ed., 84 ed. p. 7 () Toidem. () Tbidem, Volume v1, 84 ed., p. 12 (Sublinhados meus) () Toidem. () Este parkgrafo segue © nosso tlvro sobre As Wels pulltiay © sociais de Ate sandre Herculanc, Lisboa, 1949, no Capitulo O Historicismo, pp. 72-14; 2. ed., Lisboa 1971, pp. 69-70. 19 b—A historia de Portugal Herculano dé-nos elementos para a resolugéo deste problema em varios passos da stia obra: aas Cartas sobre a Histéria de Portugal de 1842, na parte final dos Apontamentos para a Historia dos Bens da Coroa e dos Foraes de 1849-1844, nas Cogitacdes soltas de um homem obscuro de 1846, ¢ finalmente na Histéria de Portugal (Volume vt), obra que comegou a ser publicada em 1846 e cuja publicagio se arrastou até 1853. Nas Carlas sobre a Histéria de Portugal, Herculano divide a historia patria fem dois grandes periodos: «Em dois ciclos me parece dividirse naturalmente a histéria portuguesa, cada um dos quais abrange umas poucas de fares t0- cals, ou épocas:.. © primero é © da idade-média; © segundo ¢ do renascimentor (*) Para Herculano, a Idade-Média fora o periodo em que a nagio portuguesa, teve as insttuigdes que estavam na sua indole. O Renascimento foi um per‘odo de decadéncia, embora uma analise superficial nos possa deixar chegar & con- clusio contréria. Diz Herculano: «A geraglo a quem verdadeiramente pertence tanta gléria— fa do renascimento— foi educada pelo stculo anterior. Os grandes homens do reinado de D. Manuel tinbam conhecido © nosso ditimo rei cavaleiro; tinham sido educados na época da robuster moral da nagio, O séeulo décimo-sexto nada mais fer que aproveitar a heranga da Tdade-Médias (*) Como & a Idade-Média, a época em que Portugal vive de acordo com a sua indole, como é a Idade-Média a época em que Portugal se fortalece ¢ pro- agride, 6 & Idade-Média que Portugal deve ir procurar o remédio pata 05 males ‘que, pela histéria afora, o apoquentem. nesta linha de raciocinio que cle nos di ‘Mas, se a histéria nfo @ um passatempo vio; se, como toda ‘ cigocia humana, deve ter uma causa final objectiva..., «se 20 ') Opuisculos, Volume v, Cartas sobre a Histéria de Portugal, Carta v, 1842, 40 ed., pp. 128-129. : ) idem, p. 128. estudo da histéria pitria cada povo vai buscar a razio dos seus costumes...», «go na indole da sociedade antiga queremos ir vigo rar 0 sentimento na nacionalidade..r, eno € por certo naquela Dyrithante época que havemos de encontrar esses importantes re sultados do extudo da histéria; porque a virlidade moral da nagio portuguesa completou-se nas fins do século xv e a sua velhice, a sua decadéncia como corpo social, devia comesar imediata- mente ( ‘Mais adiante, continua: ‘Nem descobrimentos, nem conguistas, nem comércios esta boelecidos pelo privilégio da espada, nem o luxo © magestade de jum império imenso, nos podem ensinar hoje a sabedoria so- cial» ("). «A existéncia enfim intelectual, moral e material da Tiade Média ¢ que pode dar proveltosas ligSes A sociedade pre- ente, com a qual tem muitas e mui completas analogias» (*) Algumas piginas adiante, volta a insistir: ‘ta ideia fundamental sobre que tenho procurado fixar a atengio do leitor, isto 6, sobre a convenitncia de se estudar exclu sivamente, ou pelo menor com preferéncia, a historia da Idade- “Média, se do estudo da histdeia queremos tirar aplicagdes para a vida presente» (! Nos Aportamentos para a Histéria dos Bens da Corca ¢ dos Foraes e nas Cogitagées soltas de um homem obscuro, Herctlano nada acrescenta ao que dissera, nas Cartas sobre @ Histéria de Portugal. 0 pensamento & 0 mesmo, ‘embora menos claro € menos desenvolvido, pois néo € o motivo central destes trabalhos. Esquematizando: divide a histéria portuguesa em dois grandes pe- riodos, a Idade-Média e o Renascimento; afirma a Idade-Média como a grande ‘poca de Portugal e o Renascimento como a época de decadéncia; diz ser a Tdade-Média 2 época da variedade, e o Renascimento a época da umidade; diz que na époce moderna reagimos contra a unidade renascentista © tentamos (%) idem, p. 190-191, () idem, p. 140 (8) Toidem. () Ibidem, p. 150. a1 aproximar-nos da variedade medieval, Aponta em consequéncia o estudo das instituigBes medievais como 0 mais adequado a quem queira resolver os pro- blemas portugueses do seu tempo, A designagio de unidade e unidade absoluta com que classifica a época renascentista, parece-nos significar centralizagéo do poder real, monarquia absoluta. A desigmgio de variedade, que di Idade-Média, parece-nos ter 4 sua justificagio 1a existéncia dos concelhas, das comunas, dos feudos () (que segundo Herculano néo & 0 caso de Portugal) que descentralizavam a vida da nagio, tomavam-na diferenciada, variada, Na Idade-Média os eele- ‘mentos feudal ¢ municipal davam variedade & vida da nagio. Com o Re- nascimento <0 elemento monirquico foi gradualmente anulando ot ele ‘mentos aristocritico e democritico, ou, para falar com mais pro- priedade, os elementos feudal e municipal, anulando-os nio como fexisténcias sociais, mas como forgas politicas>, até «que o prin- cipio monirquico se toma a daica fora politica, que a unidade absoluta se caracteriza rigorosammente e, sem aniguilar ax classes socials, as dobra, subjuga ¢ priva da acgio plblica. Servas, elas se corrompem ripidamente; a gangrena eiva por fim © proprio (1) Herculano, quando se refere A Tdade-Média com as suas instituigdes, @ sua onganizagio social, refrese & Mdade-Média portuguesa que ele distingue da cldssica Ida- de-Média feudal, Diz-nos: «Muitas vezes, falando da Tdade-Média portuguesa, costumamos servir-nos da expressio tempos feudais: estas palaveas I8em-se em escritos graves, retum- bam dentro do parlamento, e quantas vezes més mesmos as teremnos escrito e repetide! ‘Todavia, em relagdo so velho Portugal nio hi frase mais inexactas (Apontamentor para 4 Histéria dos Bens da Coroa ¢ dos Foraes, 1843-1846, Opdscatos, Volume vi, 2.* 04, Pp. 247). eEmbora maitos costumes dos paises da feudalidade se introdusiseem entre nnés, a esséncia da organizagio feudal nunca vingou na sociedade portuguesa: opunha- ssehe a indole dela» |Tbidem, p. 248), «Vimoe a sociedade portuguesa desenvolvendo-se, logo na sua origem, fora das condigSes comuns das outris sociedades nos stevlos XIE e XII vimo-la fugir, nag relagies mituas das diversas classes, ¢ principalmente nas estas com o rei, das normas feudaisy (Ibidem, p. 259).— Flerculano escreveu um trabalho (Da Existéncia on Néo-Existéncia de Feudalismo nos reinos de Laie, Castela ¢ Portugal 1875-1877, Opiisculos. Volume vi) de resposta e refutasio de um trabalho de Cardenas (Historia da Propriedade Territorial em Expanha) onde este bistoriador, mem- bro da Academia da Histéria de Madrid, sustentow a existéscia de feudalismo na Pe- insula, Herculano, no trabalho referido, seguindo de perto a conceituagio de Guizot sobre o feudalismo, acaba por concluir’ pela ao existéncia de feudalism em Leio, Castela © Portugal. 2 trono; e, etm menos de um steulo, a nagio portuguesa desaparece ‘debaixo das ruinas da sua naciovalidade ¢ independéacia> (*) Pela ordem cronolégica e também pela ordem de elaboragio ideol6gica, depois das Castas sobre a Histéria de Portugal, dos Apontamentos para a His- téria dos Ben: da Coroa ¢ dos Foraes ¢ das Cogitagdes soltas de um homem obscuro, surge-nos a Hisléria de Portugal, onde, segundo o Prof. Paulo Meréa ('*), «a filosofia € outray. E, na realidade, a filosofia 6 outra. Nestes primeiros trabalhos — Cartas sobre a Histéria de Portugal, Aponiamentos para Histéria dos Bens da Coroa e dos Foraes, e Cogitagses soltas de um homem obscuro — Hezculano nio faz mais do que uma apreciagio de duas épocas his- A6ricas e incitar ao estudo de uma delas, assegurando-nos que era a que estava ‘mais profundamente de acordo com a indole da nagdo, afinal a que nos levou a perda da independéncia tinha caracteristicas bem diferentes, fora esta que aniquilara aquela. Na Histéria de Portugal nfo hd apenas uma apreciagio es- tatica de duas épocas hist6ricas. Na Histéria de Portugal, a filosofia ¢ bem diferente: os fundamentos com que aconselha a volver 0s olhos para a Idade- “Média obedecem a toda uma interpretagio geral da hist6ria, Diz Herculano nna Historia de Portugal: Na essencia de todas as associagSee humanas © em todas as dpocas ¢ por toda a parte actvam dois principios: wm de ordem ‘moral, intima, subjectivo; outro de ordem material, visivel, objec~ tivo, #0 primeira o sentimento inato da dignidade ¢ liberdade pes- soul; € 0 segundo o facto constante ¢ indestrutivel da desigualdade mire os homens, As revolugies anteriores das sociedades, as suas {tas externas, as mesmas mudangas lentas e pacifcas da sua Indole ¢ organizagio constituem fases mais ou menos perceptiveis do ascendente que toma um ou outro desses dois princtpios em uta perpétua entre si, Cavando até ao Amago de qualquer grande facto histérico, 14 vamos encontrar ease perpétuo combates (""). Herculano fala-nos da existéncia de dois princ’pios que sustentam uma lta eterna: o principio da liberdade e o principio da desigualdade ("). (0) Opsscutos, Volume v, Cartas sobre a Histria de Portugal, Carta v, &* ed.» pp. 122-133. (*) © Liberatismo em Portugal, in Biblos, Volume xvit, Tomo 1, 1941, p. 740. (0) Historia do Portugal, Volare vt, 88 ed.. pp. 86:87 (Sublinkados meus). (C*) 0 liberalism politico de Herculano tem como base estes mésmos dois prineipios, 0 da lberdade ¢ 0 da desigualdade, Ver 0 nosso livro sobre As ideias politicas ¢ sociais 23 A historia das sociedades bumanas redus-se dg linhas gerais da uta entre o& dois Principios que slo da esstncia de todas as asso- ciagdes humanas de todas at dpocas # de todos os Iugares. Na Jota entre eles, algumas vezes um sobrepSe-se ao outro ¢ predomi ‘mas este predominio é efémero, pois as eociedades em todas as Epocas ¢ em toda a parte tendem para o compromisso @ @ coexi tincla, dos dois principios eternos. Este compromisso © coexis- tincia, este equilbrio, dé a formula poltico-social perfelta, aquela para que toda a sociedade tende, aquela que era a das instituigies modievais «na verdade birbaras ¢ incompletas, mas que, apesar da sua imperteigfo e rudeza, continham os elementos de equilbrio entre a desigualdade e a liberdade> (*). Quando qualquer dos dois prinefpios predominar, teremos uma das duas tiranias possiveis para Herculano, ou a tirania do maior mimero ou a firania de um s6, 42 democracia absoluta, que desmente a lel natural das desi- gualdades bumanas, ou a oligarquia oprestora © materialista. que 50 ri das aspiragdes do coragio, que nio cré na conscitncia das multidées, que confunde 0 facto da supsrioridade com 0 direito de coprimir as classes populares, cujos meinbros sio para ele simples miquinas de procugio destinadas a proporcionar-Ibes os cémodos ‘goras da vida» (") Pelas préprias palavras de Herculano, a harmonia entre os dois prin- cfpios € uma lei eterna que nio & leito ofender impunementer pols munca a liberdade e & paz poderio subsist enquanto concessies rmiituas néo tomarem possivel a coexisténcia e simultancidade dot dois prinelpiosy Na Histéria de Portugal néo h4 apenas, como j4 dissémos, uma aprecia- Gio estitica de daas épocas histéricas, mas, pelo contrério, hé a nogio de mo- de Alexandre Hercalano, Lisboa, 1949, pp. 21-40; ou, 2. od., Lisboa, 1971, pp. 25-4 Escrevemos neste livro, p. 2 ou p, 35 da 2 ed.: «Para Hereulano, a liberdade © a desigualdade sio dois’ principios extreitamente ligados, eternos e imutiveis. Para o dlemocrata, ..., em ver da desigualdade, junta-se & lberdade a igualdade>. (Cr) Histone ce Portugal, Volume v1, 8. 02., p. 89 (Subliuhadyy meus). () Tbidem, p. 88. 2 vimento, de devir, integrada numa ordenagdo légica a partir da qual todo 0 arbitrério parece desaparceer. Aparecem-nos dois principios de todos 0s tempos € de todos os lugares, isto 6, dois principios absolutes, a liberdade ¢ desigual- dade, A luta pelo predominio de qualquer deles desenrola-se através de toda a hist6ria. Mas 0 estidio ideal € aquele em que haja coexisténcia, estédio esse para que sempre se tende e que ¢ o da férmula politico-social perfeita. Qualquer estédio que nio seja este, embora necessério (*), & efémero, transitério, cor- responde a férmulas pol'tico-sociais imperfeitas, seja a democracia igualitéria, © despotismo das massas, ou seja o despotismo absolutista, 0 despotismo de um s6, A Idade-Média foi a época da coexisténcia dos dois principios, do equi- brio entre a desigualdade e a liberdade. Daf a preferéncia que Her- culano Ihe d. ‘A mudanga permanente, 0 devir perpétuo da filosofia de Herculano, nko 6 um devir circular em que tudo caminha sempre para o mesmo alvo, pasando sempre pelas mesmas fases. E em espiral e, como tal, cada nova fase ¢ cada novo alvo aparecem sempre em estidios novos de desenvolvimento, A volta que Hereulano preconiza & Idade-Média no pode confundir-se com uma volta pura e simples aos séculos XII ou XIII, mas com uma volta a alguns principios ge- (*) Em varie passos da obra de Herculano se pode ver clarsmente quanto o contingente e 0 arbitrdrio andam arredados da sua filosofia da historia, 0 necessério 4 dela critério fandamental, Como exemplo, vejamos estes textos, ainda anteriores & sua acabada filosfia da Histéria de Portugal: «Esta interrupyio das formas exteriores a vida politica moderna foi, absolutamente falando, um mal ou foi um bem? Nio 0 i; mas sei que fo uma necessidades (Opdsculos, Volume v, Cartas sobre a Historia de Portugal, 1842, Carta v, 4 ed., p. 145); «Porque cumpre confessar que, v 0 absol ‘smo pesou duranente na Europa, tarabém facilitou de um modo admirivel a ligasio fe barmonia do corpo social» (Ibidem, p, 145-148); «Foi por isso que j& confessei ignorava se esse grande acontecimento tinha sido um mal ou um bem, contentando-me com saber que hivia sido uma necestidades (Ibidem, p. 160); (*) 2 AS FONTES QUE HERCULANO CONHECEU a—A utilidade da Histéria Jé vimos quanto Herculano olhava para os estudos histéricos como alguma coisa de stil, algumra coisa em que procurava doutrina para o presente, alguma coisa que um dia mais tarde viesse a transformar-se numa ciéncia que, pela sta aplicago, pudesse vir a resolver mais de um problema de organizagao social futura, E sobre este assunto que Guizot escreve: ‘eBtudile dans cot esprit de constance et de liberté, Vhistoire evient une science applicable, pleine de lumitres sur les intéréts du présent et les chances de Vavenit, I'dcole de la vie, comme pprlle Cieéron, I'école pratique des affaires publiques, comme la concevait el I'a écrite Polybe> (") Herculano chega a afirmar, numa carta a Oliveira Martins: <0 sinico intuito do que escrevi fol deixar As geragSes futuras ‘em Portugal alguns meioe para uma coisa que me parece hio-de algum dia tentar fazer, isto é, tornar as instituigdes mais harmé- nicas, mais consequentes com as tradigées e indole desta familia portuguesa» (*) (*) Histéria de Portugal, Volume vi, 8 02., p. 90—Fste segundo parigrafo segue © nosso liveo sobre As ideiag politicas e sociair de Alexandre Herculano, Lisboa, 1949, no capitulo O Historiciomo, p. 7484; ou, p. 70-72 da 2 ed., Lisboa, 1971 (©) Bssais sur histoire de France, 9.* of., Paris, 1867. Préface, p. ¥- () Cartas, Volame 1, Carta a Oliveira Martins, Val de Lobos, 18% . 223.224, Lea. Repare-se bem: 0 tinico intuito do que escrevi... Para Herculano a His- téria era uma arma na sua Tuta pela instauragdo da organizagio politco-social ‘que julgava adaptar-se melhor & vida do seu pais. Nao devemos esquecer-nos que Hereulano, antes de ser historiador, fugiu de Portugal, langando-se na incé- moda aventura da emigragio, para ndo ser obrigado a conhecer as masmorras ow a forca miguelistas. Thierry diz no preféicio de uma das suas obras: «Bm 1817, privccupt d'un vif désir de contribuer pour ma part au triomphe des opinions constivutionnelies, je me mis & chercher dans les livres d'histoire des prouves et deg arguments & ‘appui de mes croyances politiques» (*). E conclui: «En me livrant & ce travail avec tout I'ardour de la jeunesse, je m'aperjus Dientot que U'bistoire me plaisait pour elle-méme, comme tableau du temps passé, et indépendamment des inductions que j'en tirais pour le présent> (*) Como se vé, certa semelhanga existe na maneira como ambos, Herculano e Thierry, encaram a Histéria e a sua fungio na vida das sociedades humanas. 4 outro texto de Thierry, onde ele explica como chegou & sta concepgio da Histéria, como se afastou da Histéria exclusivamente erudita, Diz Thierry: Toujours préoceupé d’idées politiques et du triompbe de 1a ‘cause a laquelle avais dévoud ma plume, i je songeais & devenir histori, c'état A la manitre des écrivains de I'école philosophique, pour abstraire du récit un corps de preuves et d'arguments syst inatiques, pour démontrer sommairement, et non pour racconter avec détails (") E ainda nio é neste ponto que deixa de existir certa semelhanga com Herculano, Thierry toujours prévceupé d'idées politiques», Guizot ccm uma vida cheia de acgio politica, Herculano se durante quase toda a sua vida pareceu afastado da acco politica, o que € certo é que nunca dei- 7, G2., Paris, 1842, Avertisement, p. 2. (*) Dis ass d'études historiques, 4. €d., Paris, 1842, Préface, 10 nov. 1894, p. 12. 2 xou os negécios politicos, embora quase que permanentemente atris dos basti- dores: ele no aparecia, mas quase sempre alguém aparecia por ele, aconse- Thado por ele, por ele doutrinado ("*). b—A historia de Portugal Vimos que Herculano tinha como que duas filosofias, a das Cartas sobre a Historia de Portugal ¢ a da Histéria de Portugal, No primeito destes traba- Thos, Herculano aconselhava a que todos volvessem os olhos para a Idade- “Média, pois fora essa a época da robustez moral da nagéo portuguesa. Fora 1a época da variedade que se contrapunha 4 do Renascimento, a da wnidade. A descentralizacao opunha-se & centralizagao. Os elementos feudal ¢ municipal davam variedade & nossa vida medieval que nio se pode confundir com qual- quer outra, pois, a esséncia da organizagio feudal nunca vingou na sociedade portuguess> ("). E 6 ao municipalismo, aos concelhos, que Herculano vai buscar o que hé-de sera liberdade moderna, chegando até a pensar que o grande meio de resolver ‘os mais complexes problemas da nossa época, seré ‘restauras, em barmonia com a ilustragio do aéculo, as ins- titwijSes municipais, aperfeigoades sim, mag acordes na sua indole, nos seus elementos com as da Idade-Média> (*). ‘Também Thierry afirma que nas comunas medievais estava o bergo da liberdade moderna. Diz o historiador francés: (0%) Este pargrafo segue © nosso livro sobre As ideias politicas ¢ sociais de Ate sandre Herculano, Lisboa, 1949, no Capitulo Fontes do Historicismo, pp. 154-156; 02, PP. 140-142 da 2 ed., Lisboa, 1971 (©) Opisculos, Volume vs, Apontamentos para a Histiria dos Bens da Coroa e dos Forags, 1843-1844, 2.9 ed, p. 248, . (C°) Histéria @e Portugal, Volume vt, 84 @3., p. 90. Vers lo méme temps, je commensai A me pricccuper dune autre idée historique, dont Vinfluence 1'a pas été moins grande sur ‘mes travaux postéricurs; c'est celle de la révolution communale, Sar la simple lecture crivaing modernee de I'bistoire de France, il me parut que Vaffranchissement des communes était toute autre chose que ce qu'ils en raccontaient; que c'était une véritable révo- lution sociale, prélude de toutes celles qui ont élevé graduelement 1a condition du thiers état; que ld so trouvait le berceau de notre lUberte moderne, et qu’aiasi la réture, aussi bien que 1a noblesse de France, avait une histoire et des ancttres» (*). Na Histéris de Portugal Herculano fundamenta melhor, como vimos, a sua interpretagao da historia de Portugal. Pode sintetizar-se a sua filosofia da historia, inserta na Hibtéria de Portugal, por estas palavras que sio dele préprio: “Na esstncia de todas as associagées humanas ¢ em todas as épocas e por toda a parte actuam dois prineipios: um da ordem ‘moral, {atimo, eubjectivo, outro da ordem material, visivel, objec- tivo. #0 primeiro 0 sentimento inato da dignidade e liberdade pessoal; € 0 segundo o facto constante e indestructivel da desigual- dade entre og homens. As revolugées interiores das sociedades, as suas lutas externas, ag mesmas madangas lentas e pacificas da sua indole organlzagio constituem factos mais on menos percepti- vis do ascendente que toma um ou outro desses dois princtpios em luta perpétua entre si. Cavando até ao Amago de qualquer grande facto histérico, 4 vamos encontrar esse perpétuo com: ater (* Guizot no preficio da 6.* edigéo da Histoire de la Civilisation en Europe, esereve: «Deux grandes forces et deux grands droits Vautorité et la Liberté, coexistent et se combattent naturelement au sein des so- ciétés humaines. Dans le monde ancien, jusqu’A I'Europe cheé- tienne, et quoique nulle part Tune de cos deux puissances n'ait jamais pleinement aboli autre, ce que Dieu ne permet pas, la Gomination, une domination décidée et permanente avait toujours appactenu 4 I'une ou & l'autre; les mations avaient vécu, tantdt C!) Dix ons études historiques, 4°, 64., Paris, 1842, Prétace, 10 nov. 1834, P56, : (*) Historia de Portugal, Volume vt, 8. od., p, 86°87, sous le joug presque absolu de Mautorté, tantOt en tinuele orages de la liberté, Crest le glotieux et or de a civilisation europlenue, depuis qu'elle vest développse sous influence évidente ou obscure, acceptée ou méconnue, de I'Evan- fille, que Y'autorité et Ia Liberté y ont véeu et grandi ensemble, céte A céte, Iuttant toujours sans jamais ge réduire mutuellement A Vimpuissance, aujetter, Yune et l'autre & des oscillations, & des retours de fortune qui ont fait, A travers une longue stride sitces, le destinge des gouvernements et des peuples. L’Europe cheétienne n'a jamais subi Vempire incontesté de tun des deux principes ivaurs; le vainen est toujours resté en état de ge défendre et avec des chances de redevenit vainqueurs (*). E acrescenta: «En rtragant les origines et le cours de la civilisation européenne, len al ressortir ce grand caracttre; mais je Vai fait ressortir fen historien, non en avocat, sans prendre parti pour I'un ou contre Vautre des deux principes qui ont présidé simultanément & cette histoires (°) Para Herculano a histéria das sociedades humanas reduz-se as linhas gerais da Iuta entre dois principios, de todos os tempos ¢ de todos os lugares: ‘© principio da liberdade, e 0 principio da desigualdade. Na sua luta, algumas veres um deles predomina, mas esse predominio & efémero, pois as sociedades, nna sta evolugio, tendem sempre para o compromisso e coexisténcia dos prin- cipios citados, Guizot pde 0 problema em termos muito semelhantes no extenso texto citado. Hereulano fala-nos do principio da liberdade e do principio da desi- gualdade, Guizot fala-nos de sdeux grandes forces et deux grands droits, Vautorité et 1a liberté> que «coexistent et se combattent naturellement au eein des socistés bumainess Também a ideia da coexisténcia dos princfpios ressalta da doutrina de Guizot: e.-Tantorité et la bert y ont véeu ct grandi ensemble ete A cbte, Tuttant toujours sans jamais se réduire matueliement de la Civilisation en Europe, Préface de la 6 éd., nov. 1855, p. xusav. ‘ () Boidem, 30 A Vimpuissance, sujettes I'une et l'autre & des oscilations, & des retours de fortune qui ont fait, A travers une longue série de sibcles, la destinée des gouvernements et des peupless. Certa identidade, com se vé, existe entre a filosofia de Herculano ¢ a de Guizot. Mas uma dificuldade surge: este preficio da 6.* edigio da Histoire de la Civilisation en Europe & de 1858 e cerca de 1853 Herculano tinha toda 4 sua Histéria de Portugal nao s6 estruturada, mas até publicada. Este facto parece, a primeira vista, intransponivel, tanto mais que este prefacio nao aparece em mais nenhuma das obras de Guizot que possam ter influenciado Herculano, No entanto, parece-nos que, se Hereulano no leu este preficio, leu muitas obras de Guizot ¢ a propria Histoire de la Civilisation en Europe, que afinal é orientada por esta filosofia. 0 préprio Guizot nos diz, em texto atris citado, que “Ein retragant les origines et le cours de la civilisation euro- penne, jfen al fait ce grand caractie;..» E, a confirmar estas palavras, podemos citar um texto deste trabalho de Guizot, onde nos aparece a luta dos principios de autoridade e liberdade, ou seja, para Herctlano, a luta dos principios da desigualdade e da liberdade. Diz Guizot: (*). A tirania para Guizot, provinha sempre do predom{nio de um dos prin- cipios, tal como para Herculano, Era precisamente deste predom‘nio que (9) Toidem, © 4, 2 Legon, p. 40. 31 nascia, segundo Herculano, ou a tirania de um s6, 0 absolutismo, ou a tirania de muitos, a democracia ignalitaria. Tanto para Guizot como para Herculano, fa coexisténcia dos prinefpics da a ordem social perfeita, a ordem social em que € preservada a liberdade humana, em suma, a ordem liberal, oposta, para um lado, ao absolutismo e para o outro a democracia. Guizot fala-nos também «de la variété des éléments de la civilisation», que é, nem mais nem ‘menos, a variedade medieval que Herculano desejava tornar a ver aparecer nna sua época, embora com as modificagdes que os novos tempos exigissem. E nesta linha de pensamento que o romantismo olha muito para a Idade- Média bergo da liberdade, glosando as palavras célebres de Madame Staél. Thierry di Crest Mindépendance qui est ancienne, c'est le despotisme qui est modeme, a dit énergiquement Madame Stail; et dans ce seul mot elle a retract toute notre histoire, et V'istoire de toute YEurope> (") Ja piginas atris o mesmo autor dissera que oct Mberté n'y est pas née a'biers (*) Herculano, no Opisculo sobre Mousinko da Silveira ou la Révolution Portugaise, afirma: <.en étudiant les institutions de notre moyen-Age on y ‘Adcouvre presque tous les principes de liberté, qu'on croit avoir Aéecouverts de noe jours. (*) ‘Noutro trabalho ainda, Herculano nos diz: Bim Portugal 0 despotismo é que & moderne, ¢ a liberdade antiges (*) (1) Die ans d'études histovigues (Coup doeil sur histo! Frangais, 6 nov. 1820), 4* 64., Paris, 1842, p. 376. () Ibidem, Sur les Libertés Locales ct Municipales Censeur Européen, 2 {&v. 1820, p. 298. (°) Opiseulo, Val. 18, Mousinko da Silveira ou la Révolution Portugaise, 185 d., brasileira, p. 212 ) Ibidem, Vol. vu, O Pais ¢ a Nagéo, 3 ed, p. 112. —Este parigrafo segue © notea livra aobre At ideine politieas « encinic de Alevanden Hevealann, Usbos, 1949, no Capitulo Fontes do Historicimo, pp. 170-178; ou, na 2 ed., Lisboa, 1971, pp. 154-160. @'Eepague Courrier 1

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