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RESUMO Sob um enfoque junguiano, este trabalho pretende analisar, de modo especial, duas obras li- terérias de Yéda Schmaltz - A alquimia dos nos Atalanta ~ obras fortemente influenciadas pelas idéias do psicdlogo suigo. ‘A andlise se detém particularmente em E justa- mente a figura de Cristo, um espfrito de maravilhosa beleza, com docura celestial, irradiando uma claridade fulgurante (porque, segundo Jung, Ihe falta a SOMBRA) que completou o trabalho de Moisés, pelo poder do Eterno-Feminino, pela graca divina, pelo Amor perfeito. Este redimiu a mulher, e dela fez a companheira do Signética 2:1-24, jan fdez. 1990 homem. Resta ao homem assumir essa mulher redimida, coloc4-la a seu lado, para ambos construfrem a beleza “do verdadeiro, do total amor”’, ouro, pe- dra filosofal, dois corpos num s6 cor- po — “‘irmao meu trans-parente””.31 Retornemos a obra Atalanta, continuagéo de A alquimia dos nés, conforme afirmacdo de Yéda Schmal- tz, fato claramente constatével por qualquer pessoa que compare as di- versas seg6es dos dois livros e dete- nha algum conhecimento das teorias de Jung. Em vez de analisar cada uma de suas partes correspondentes ao opus alquimico — A SOMBRA (esta j4 analisada nas duas obras), A ANIMA, O ANIMUS e O SELF, tomaremos duas figuras miticas — Penélope e Ata- lanta — que, ao longo da obra de Yé- da, vaéo ganhando corpo até se crista- lizarem, nas duas obras ‘‘gémeas”, completando verdadeiro processo de individuagdo, segundo Jung, como tentaremos analisar. Se as imagens de barcos, via- gens, sereais, com teor mitico, como bem observou a Profa. Vera Maria Tietzmann Silva, aparecem com in- sisténcia desde os primeiros livros de Yéda Schmaltz,32 € em Miserere, se- gundo nos parece, no conto de abertu- ra, “Grangrena”,33 que se instala a Penélope de declarado teor mitico. Es- te conto tem a sua leitura mitolégica direcionada por uma pseudo-epfgrafe de Homero**, pois na realidade o fragmento parece de Yéda, que assu- me © discurso como se fosse Penélo- pe. “Os pretendentes urgem minhas mipcias, eu defendo-me com o tecido de minhas artimanhas.’” Homero Esta atitude feminista de Yéda, de no se contentar com © papel se- cundério de Penélope, embora se aga- salhando nesse arquétipo, comecou em Miserere. Exatamente no conto “Grangena”, cla afirma, referindo-se ao seu Ulisses, numa atitude de auto- valorizagio: “Que eu nao fico parada dei- xando 86 ele, em viajando, tecer todos os enredos ¢ ser personagem principal de toda a histéria. A minha terra € na- vegavel e grande — terra estdvel.""34 Em A alquimia dos nds, mais de uma vez, Yéda criou epfgrafes e as fez passar por de Homero, como se, na Odisséia, a narradora fosse Penélo- pe.35 As vezes aparece um discurso feminino-feminista ¢ emocional, longe do pretendido distanciamento épico. Outras vezes Yéda desvia intencio- nalmente os refletores sobre a figura de Penélope, como se na Odisséia ela fosse personagem mais importante que Ulisses.36 Alids isto se pode notar no Ultimo fragmento por nés transcrito acima — a evidente valorizacéo da mu- lher que se desprende do arquétipo. No conto Gangrena, como j4 dissemos, se instala uma Penélope, que € um arquétipo claramente reco- nhecfvel: a mulher fiel, que espera com dignidade 0 marido que partiu. Esta Penélope no tece uma mortalha: faz tricé (e fere 0 polegar esquerdo e cada dia o fere um pouco mais, ¢ 0 mal vai-se agravando até & Grangrena) enquanto espera 0 amado, que estava DENOFRIO, Darcy F. De Penélope a Atalanta — 0 processo de individuacio em Yéda Schmaltz 9 viajando. Ela “‘sabendo que ele viaja- va por corpos de muitas mil mulhe- res’’37, clara ressonancia do que jé se ouviu neste versos: “por cantos de se- reias/ todo, todo se perdeu.”38 Ao contrério do mito, o Ulisses de Yéda tem sempre como caracteristica a infi- delidade, opondo-se neste sentido & sua Penélope. Interessante neste conto é a sin- gularizagio do mito. Penélope, nao suportando mais 0 assédio dos preten- dentes, embora sabendo “que a obri- gacao temitica e histérica era dele [de Ulises], mas ele, além de viajando, estd errado de mito, ndo tem essa co- ragem na qual acredito. Pois bem, eu vendo que nao vinha ninguém para despachar os malditos, resolvi (.. .) maté-los todos.""39 E esta Penélope cresce em coragem e dignidade, pois destr6i sozinha todos aqueles que Ulisses, numa “cena grandilogiiente, praticamente 0 climax da Odisséia, s6 consegue fuliminar com a ajuda do fi- Iho Telémaco e da deusa Palas Atena. E mesmo assim foi uma luta sangren- ta, Essa Penélope rouba a tiltima cena a Ulisses e faz tudo de forma tao efi- ciente que dispensa ajuda: “Eu mes- ma. Mais a minha grandeza”, como dir4, mais de uma vez, na mesma nar- rativa. Neste conto, apesar da persona- gem feminina apresentar mais profun- didade psicolégica do que a do mito — que apenas tece e destece a mortalha de Laertes, usando isto de estratagema contra os seus pretendentes, retardan- do a escolha — mantém com 0 arquéti- po estreita ligacao. A fidelidade ¢ 0 seu maior predicado. Tanto que decla- - 10 “Eu vou continuar sozinha ¢ rainha da minha ilha, do meu lugar. Que amor é s6 um, € ficou o resto da vida viajando e 0 tempo escorrendo. E ‘© meu nome € sinénimo de fidelidade, nao de servidao ou de docilidade. Malditos, malditos! Debaixo da terra © seu lugar. Deles.’49 (Dos preten- dentes que matou). Analisando a evolugio de Pené- lope, seguindo a sua trajetéria na obra de Yéda, vamos constatar que ela rea- liza um tramite que compreende uma evolucdo que, por sua vez, € 0 simbo- lo da evolugéo da mulher. Esse per- curso € um longo caminho que vai de Penélpe a Atalanata. Dirfamos mesmo que seria uma maratona em cuja linha de partida se viu Penélope timidamen- te empunhando um facho e, na linha de chegada, Atalanta com o pomo de ouro. No canto, ‘Grangrena”, j4 ou- vimos de Penélope: “meu nome & sinénimo de fidelidade, nao de ser- vidéo ou de docilidade”. A mulher que diz isto j4 comegou o seu proces- so de individuagao, comegou a har- monizar 0 consciente € 0 insconscien- te, a conviver conscientemente com tendéncias opostas, irreconcilidveis, inerentes @ sua natureza, tragam estas as conotacées de bem ou mal, sejam escuras ou claras.41 Mas € s6 um co- meco e desta Penélope, pois a mitica nao chegou sequer a defrontar-se com a SOMBRA. Mesmo essa Penélope de Yéda ainda no integrou 0 ANIMUS, mas jé esté a um passo dele, no seu limiar, pois j4 comega a sua capacida- de de reflexao, de auto-conhecimento, coisa que s6 acontece, de fato, se Signotica 2:1-24, jan./dez. 1990 © animus for atentamente cuidado e integrado pelo consciente. Nao € demais lembrar 0 que Jung considera animus. Do mesmo modo que no corpo do homem existe uma minoria de gens femininos, no corpo de cada mulher existe uma mi- noria de gens masculinos. Assim ani- mus € a masculinidade insconsciente existente no psiquismo da mulher.4? E importante a integragdo do principio masculino na consciéncia da mulher como € desastrosa a sua hipertrofia. Isto veremos depois. Em A alquimia dos nés, vamos encontrar Penélope mais avangada no seu processo de individuagio. Temos varios poemas com o titulo Espelho ¢ sub-titulo “‘Tentativa de Reconheci- mento”.43 E até um denominado ““Esséncia do Reconhecimento”.44 e 0 mais denso deles: “Process de Reco- nhecimento pela Cicatriz”.45 Todos estes tftulos ja revelam a capacidade de reflexio, de auto-conhecimento, que denunciam um esforgo de inte- gragao do animus por essa Penélope, que € a propria mulher na sua evo- lugéio, nao nos esquegamos. Por isso no poema “‘Espelho II (Tentativa de Reconhecimento)’"46 ouvimos uma Penélope, que pelos milénios j4 cami- nhou um longo percurso, declarar 0 estado de posse do préprio corpo: Esse € meu corpo. Passei a vida inteira pra reconhecé-lo. (Ea vida toda © meu corpo passava rente a mim eeu sem vé-lo) DENOFRIO, Darcy F, De Penélope a Atalanta A dentincia de que j4 passou an- teriormente por uma das etapas do processo de individuacao — a sombra, ou, segundo 0 opus alquimico, pelo nigredo (estado de massa confusa) — encontra-se no mesmo poema, nos versos seguintes, de muita lucidez: Esse € 0 meu corpo. Encontrei-o em beleza, fenda e inteireza — imagem no espetho em negativo, (. . .) Para Jung, a primeira etapa do processo de individuagdo serd 0 des- vestimento das falsas roupagens da persona, arquétipo que Yéda nao menciona nas segdes de suas obras. Para adaptar-se as exigéncias do meio em que vive, o homem assume uma aparéncia que geralmente ndo est4 de acordo com o seu modo de ser autén- tico. Apresenta-se (melhor seria repre- senta) mais como os outros esperam que ele seja ou como ele préprio dese- jaria ser, do que como de fato €. A es- ta aparéncia artificial, Jung chama persona, nome que os antigos empre- gavam para designar a mdscara que o ator usava, conforme o papel que ia representar. Em geral os profissionais (professor, médico, militar, etc.) usam uma mdscara, usam uma fachada, pois h4 uma expectativa quanto ao seu mo- do de falar, agir. O perigo € 0 indivi- duo fundir-se ou identificar-se com os scus titulos ou cargos, de tal modo va- lorizando a persona que 0 seu ego consciente venha identificar-se com ela.47 Por dentro nao ser4 nada. Ser4 apenas o verniz. © processo de individuagoem YédaSchmaltz 11 Talvez Yéda no tenha integrado apersona ao seu projeto estético, porque a sua obra demonstra que cla, como representante da mulher de seu tempo (mas no evidentemente de to- das as mulheres) j& havia queimado esta etapa preliminar do processo. Por exemplo, no seu conto “‘Grangrena”, de Miserere, demonstra nao dar a mf- nima importancia para a expectativa dos outros, para 0 que dela pudessem pensar, importando, isto sim, 0 que ela pensava de si mesma. Vejamos: “E ele viajando e o tempo escor- rendo e os malditos, malditos me cer- cando, E todo o mundo pensando que. Mas nao, Eu sempre grande assim, me merecendo. E me esquivando, me es- quivando. Mas todo o mundo podendo continuar pensando, porque eu néo ligo para todo 0 mundo. Mas nao. Eu sempre grande assim, me merecen- do,""48 (Grifos nossos). Se em Miserere a Penélope de Yéda (ou a Penélope Yéda, ou ainda as Penélopes através de Yéda) retirou a sua mfscara de ator, € em A alqui- mia dos nds que, num gesto de cora- gem, ela vai olhar no espelho que re- flita cruamente a sua outra face des- conhecida — 0 lado escuro, a sombra: “imagem no espelho em negativo” (como o negativo da fotografia, que € preto). Varios sio os poemas denomi- nados Espelho (1, I, Ill, IV, V) prova de que Penélope j4 travou conheci- mento com a prépria sombra (sabe conviver com pequenas fraquezas, as- pectos imaturos e inferiores, comple- xos reprimidos e até com negrumes assustadores)*? © esté de fato pronta para a confrontagéo com 0 animus, mediador entre 0 insconsciente © 0 consciente, que lhe dard, se integrado, capacidade de reflexéo, auto-conhe- cimento e gosto pelas coisas do espiri- 10.59 A nogéo de bissexualidade de todo 0 humano, que é também uma i tuigéo antiqiifssima, bastando lem- brar-nos do mito dos Andréginos, aparece claramente na segao O BOR- DADO DE PENELOPE, ainda no poema “Espelho I”, E uma clara as- sungdo do animus por parte da Pené- lope que aparece com um misto de qualidades masculinas e femininas ou com a fusdo das duas: Este & meu corpo que estava sem mim e que eu revejo e reconheco pela face externa: as minhas unhas chatas, os meus calos, @ minha barba, © meu estrabismo a minha cicatriz na viri- tha, ndo na perna. E estes sao os enfeites do meu corpo: sandélia, calea camisa. Porque esse é meu corpo: nddegas, seios, saias ocabelo liso. GG.) Isto & 0 meu sangue um elemento, insisto, que por nds derramo. Nele, ab-o misto, somos. Vimos a clara incorporacéo do animus por esta Penélope que, além de arquétipo, € 0 corpo antropolégico Signética 2:1-24, janJdez. 1990 da mulher ao longo de sua histéria, carregando as experiéncias que viven- ciou nos seus encontros com o homem no curso dos milénios.5! Esta etapa do processo € claramente perceptivel pela capacidade reflexiva desta Penélope: a espera nao € passiva, como a daquela do mito — é inconformada e esta Pené- lope questiona o sentido da espera, ja que 0 amor acabou; esta, diferente- mente da outra, nao tem d4nimo inque- brantével, alias chega declarar: “eu nao tenho certeza de nada;’’5? 0 tom é de revolta, nao de conformismo com a longa espera, por isso se léem versos como estes, do poema ‘*Nés”: “Nao me conformo”’. (...) “Mas nao me conformo”’. (...) “E eu nao me con- formo”.S3 A capacidade de auto-avaliagao € reflexdo se aguca e atinge o maximo de suas potencialidades no poema “Processo de Reconhecimento pela Cicatriz” (As Penélopes Atuais)’”.54 Associando a cicatriz deixada por um javali na perna de Ulisses (sinal que propiciou o seu reconhecimento pela ama que o criou, quando, disfargado em mendigo, retornou ao palécio para destruir os pretendentes) a possivel cicatriz de uma cesariana ou da ferida deixada por um homem, de alguma forma, simbélica ou nao, Yéda realiza um poema engajado, com preocupacao nitidamente social (ou feminista?). Primeiro questiona para ver se, de fato, pode divisar, naquelas mulhe- res, 0 arquétipo: Somente deste 0 amor completo como o retrato claro da verdade? Geo Mulher, te deste inteira ¢ pura e entregada? Identificadas as Penélopes, Yéda as conclama: Muther, abandona o desti- no de cais @ espera de marinheiros retardados e olha por dentro tua grandeza que é bem mais! Tua imagem é melhor que teu retrato. Num poema eminentemente in- terrogativo, Yéda vai questionando as raz6es do sofrimento daquela Penélo- pe e expondo a face do vilao — “que mentiu até & exaustéo”’ — chantageou, tripudiou, “lavou as maos”, ¢ p6s um “rétulo latino’? na testa da mulher. “Sairés dele como um Deus da Cruz?”, interroga a poetisa. Entretan- to, pondo em destaque a grandeza da mulher — “‘J4 percebeste, mulher, 0 quanto/ és grande, 0 quanto!” — Yéda cruamente Ihe fere o brio e apela para sua dignidade: “‘J4 aprendeste a traba- Ihar, mulher,/ ou ainda vives de me- sada?”” Ha um nitido momento em que Yéda insiste na idéia de que as Pené- lopes remanescentes devem realizar 0 seu processo de individuagdo, crescer, completar-se: E preciso que descubras a mulher que hd em ti, que a tecas, que a reco- nhecas feud DENOFRIO, Darcy F. De Penélope a Atalanta ~o processo de individuagio em Yéda Schmaltz 13, Fala de uma nova mulher, com qualidades e defeitos (e no santa) que saberé conviver com os seus as- pectos claros e escursos, harmonizan- do, assim, consciente e insconsciente, tornando-se ela mesma — O SELF — um ser completo, mas jamais perfeito, fechando 0 processo de individuagao, pois “‘a grande mulher ressurge”’. Detenhamos agora no simbolis- mo da cicatriz. O poema é dedicado as Penélopes que ainda existem em nos- sos dias. E no momento em que a poe- tisa interroga — “*A cicatriz € na per- na/ no joelho, na virilha?”” — vem-nos a certeza de que ela fala da cicatriz de Ulisses, deixada pela mordida do ja- vali. Por associagéo, nos lembramos do herdi grego, mas o paralelismo equivale-se por antitese, por oposigao. A cicatriz do herdi mftico ndo ¢ um estigma, € um sinal de vitéria — ele sobreviveu a fera. A cicatriz desta mulher € oprébio e principalmente marca de dor, como se percebe: Ea cicatriz das sete facas trespassadas no teu peito? Coad) E uma cicatriz que acua os caes dormentes no teu ser: a cicatriz é nele a ferida é tua. Assim a cicatriz, como marca de vit6ria sobre a presa, € de Ulisses (ou do homem). J4 a ferida — da ceséria, da curetagem, da humilhagio, do abandono — é sé de Penélope. E assim como Ulisses péde ser reconhecido pela cicatriz, a poetisa exorta as Pené- lopes atuais que reconhecam o homem eleito pela sua propria cicatriz (dele e dela). Ele deve ter uma espécie de marca de Caim, um estigma que o tor- ne reconhecivel a seus olhos: Mas podes reconhecé-lo pela cicatriz, sim podes reconhecer 0 que te lembra a dor. Quando as Penélopes forem ca- pazes de reconhecer 0 homem pela ci- catriz, elas saberio que o homem NAO E ESTE, mas 0 outro “que em sendo outro,/ esté em ti crucificado.”” Ainda! Mas esta sendo preparado nu- ma espécie de opus alquimico per- ceptfvel na palavra ouro anagramati- zada em outro, em destaque no texto. Daj as palavras proféticas de Yéda: Tu nunca 0 vislumbraste, tu nem o escolheste, mas ele existe, mulher. Reconhecer 0 homem de antes ¢ © novo homem, espécie de doce mes- sias com a sua anima integrada, seu sentimento repatriado (homem que pode chorar), é tarefa para uma Pené- lope metamorfoseada em Atalanta, quando se completa 0 processo de in- dividuagao. Nao é sem razio que Yéda afir- mou que A alquimia dos nés continua- ria em Atalanta. Nota-se que a estru- tura do primeiro € circular, apresen- tando um opus alquimico que evolui nao de nigredo & pedra filosofal, mas de nigredo a nigredo, reprisando ‘‘o estado de massa confusa”’, porque no se encontrou © amor em termos ideais. Signotica 2:1-24, jan./dez. 1990 Também o livro abre-se ¢ fecha-se com 0 mesmo poema — “Bicho de Se- da’’55, reprisando “mais um ciclo de dor,/ o ciclo intermindvel”’ do amor. O amor, como o mito do eterno retor- no, é lembrado pela estrutura circular do livro e reforcado por “Esse bicho de seda (0 amor)” que tece sobre si mesmo, em movimento circular, ¢ que € também “Esse bicho de Yéda (a poesia)"’, ambos realizando uma “tra- ma incontrol4vel”” em perpétuo imbri- camento, nutrindo-se reciprocamente. Na obra Avalania, a estrutura no € circular e o proceso de indivi- duag&o, anunciado no projeto estético ou sumério, é realizado pela persona- gem hom6nima que, na sua metamor- fose progressiva, completa-se. Desta forma, sio as seguintes as segdes da obra: A SOMBRA, A ANIMA, O ANIMUS, O SELF. A fase preliminar — A PERSONA — nio aparece, suge- rindo uma etapa j4 vencida pela mu- lher contempordnea, representada pela escritora. Observa-se, contudo, com a per- sonagem Atalanta, “‘o ciclo intermind- vel do amor”, girando sempre, para ela (com Joao, Rafael, Peter, Dérian, Liicio) como num moto continuo, mais e ‘mais um ciclo de dor’’. Neste aspecto temos af a ressonancia do primeiro livro. Diferentemente do que poderfa- mos esperar, Atalanta nao aparece completa no conto homénimo, fe- chando o ciclo de individuagéo da mulher contemporanea, de quem é 0 simbolo. Tal como se apresenta nos relatos gregos, Penélope € a alegoria da mulher que nao assumiu o animus. O mito, como se sabe, séo “relatos sob forma as vezes alegérica, referen- tes a uma ordem do mundo anterior a atual, nos quais se procura representar e explicar um fenémeno ou uma lei organica das coisas”.56 Assim o mito de Penélope comporta uma leitura gue a identifica com a mulher no princfpio de sua evolucdo. E quanto a Atalanta? Em O livro de ouro da mitolo- gia,57 temos determinadas caracteristi- cas de Atalanta que a tornam incon- fundfvel, sendo 0 oposto de Penélope, € © arquétipo da mulher que comple- tou © seu processo de individuacéo. Vejamos tragos de sua caracterizacio: “Em seu rosio, a beleza feminina combinava-se com as gracas da juventude marcial’. (...)"uma jovem cujo rosto poder- se-ia dizer, com seguranga, que era muito masculino para uma mulher e, ao mesmo tempo, muito feminino para wan homem.”" Nao temos diivida de que esta figura arquetfpica é 0 simbolo da mu- Iher que incorporou 0 animus, ou seja, a masculinidade existente em seu psi- quismo, ¢ est4 pronta para uma forma simbélica nova — O SELF — tiltima etapa do processo de individuagao. Mas como j4 dissemos, Atalanta no aparece pronta, acabada no livro ou no conto homénimo.5§ Acompa- nhando-a, vemos, como numa tela de cinema, recapitulada, retrospectiva e prospectivamente, a caminhada mile- DENOFRIO, Darcy F, De Penélope a Atalanta ~ 0 processo de individuacao em Yéda Schmaltz 1S nar da mulher no seu processo de in- dividuagéo. Elegendo a metéfora da borboleta, na sua nsia de atingir as suas quatro asas, simbolo de plenitu- de, Yéda faz sua personagem reprisar sua caminhada no curso dos milénios, passando por um processo de meta- morfose que vai progressivamente do estagio de ovo para larva, atingindo o estado de pupa (que € repetido na forma de crisélida, reforgando o esta- do de laténcia em que se encontra a mulher nessa etapa) até alcancar o estdgio final, o ser completo: imago (ou, se quisermos, 0 SELF). Todas es- sas palavras, correspondentes aos di- versos est4gios da metamorfose (sim- bolos também do processo de indivi- duagdo) aparecem claras no texto de Yéda. Assim se pode depreender uma etapa preliminar, em que o ser € ape- nas uma casca (lembrada pela casca do ovo, possivelmente a PERSONA, mas que, tal qual 0 ovo, é também um embriio, um projeto de ser: “Querer voar, sendo somente um ovo, uma lar- va, pensava”’. Mas “‘Atalanta nao acredita em destino: “Cada um faz o seu, vive repetindo.”” Tendo no corpo “os horménios da metamorfose”’, su- porta o “Estado de pupa: a imobilida- de”. E curioso notar que Yéda reforga © longo periodo de imobilidade da mulher, através dos milénios, cerceada no seu desenvolvimento, enunciando por duas vezes (s6 variando a nomen- clatura) 0 est4gio de pupa, ou da laténcia, que ¢ a fase intermediaria en- tre a larva e a forma adulta, enfim, a fase do casulo ou da clausura nos fios. Por isso afirma: “Estado de pupa: a imobilidade”. Depois reafirma: “‘Im6é- vel, uma crisdlida isolada”’. Finalmen- 16 te, sugerindo a ultima etapa do pro- cesso de individuacio, Yéda enuncia a Ultima fase da metamorfose da bor- boleta — imago — quando o inseto (a mulher nao passava de um) adquire a sua forma definitiva, apés as suas su- cessivas metamorfoses ¢ se lhe define © sexo. Isto nos parece muito signifi- cativo, pois, de fato, s6 fechando o ciclo da individuagao, a mulher é de fato uma mulher e néo uma larva ou uma crisélida. Assim, deixando entre- ver que a mulher jé alcangou a reta de chegada de uma longa maratona — a perfeita integragdo dos aspectos mas- culino ¢ feminino da mente, que resul- ta no equilfbrio psfquico — Atalanta se mostra com uma agressividade calma: “Mas ela nao: senhoreou-se de tudo Uma forca interior, uma agressivi- dade mansa, wma resistencia. Imago."59 Reservando para a conclusio a mensagem aberta que Yéda deixa para © leitor no final do conto, falemos so- bre a metamet4fora que ela magistral- mente constréi em ‘‘Atalanta’’, re- criando o mito. E bom lembrar que, tendo em vista os seus propdsitos e a singularizag’o do mito, a autora cria uma Atalanta que, diferentemente daquela figura mitolégica, perde va- rias corridas, passando por um proces- so de aprendizagem, como se pode ver neste excerto: “‘Outra corrida perdida! ela observandé um pomo de ouro jogado ao chéo.’"60 Signética 2:1-24, jan./dez. 1990 Com o tempo, Atalanta aprende que “Quem se abaixa para colher um fruto na hora errada, perde a corri- da’”’.61 E chega o instante em que o re- crudescimento da postura de Atalania em nao ceder aos impulsos interiores diante desse simbélico pomo de ouro (ou maga), que mais nos parece, con- trariando © que registra a Biblia, a maga que Adio teria oferecido a Eva, vem segerido no texto, Vejamos: “Atalanta ndo se virou, ndo se abai- xou: houvesse mil pomos de ouro ao al- cance de sua mao, nao mais a atrai- ria a casca da filigrana com miolo podre ~ voar era mais importan- te."62 A metéfora dessa corrida, em- preendida pela mulher, que da mitica s6 tem a pertindcia, pois perde e re- comega sempre, até ndo mais se abai- xar para apanhar 0 pomo de ouro (ou de Adio), se sobrepée aquela da me- tamorfose da borboleta, passando por todas as fases do processo — do ovo & imago. Esta metéfora que, como num processo de montagem, se cons- tréi sobre a outra, pode ser considera- da uma metametéfora. Mas 0 processo usado por Yéda é mais complexo. Temos uma terceira metéfora conco- mitante © nao subseqiientemente, co- mo qualquer leitor poder4 observar no texto: a do véo da borboleta. Enquan- to essa inovadora Atalanta corre ¢ perde e recomeca, ao longo do tempo, seu lento exercfcio de aprendizagem, até alcar v6o (‘“‘voar era mais impor- tante”), vai-se desenvolvendo grada- tivamente também a aprendizagem do véo, partindo ‘‘dos ensaios de véo”, com a ‘Asa em panico”, passando pe- los ‘‘véos concéntricos”, pelo “véo (...) incerto”, sendo capaz enfim de sair “‘para 0 mundo em véo rasante”, voltando alguma vez ao “V6o concén- trico sem arribagdo”, afundando em seus sucessivos desenganos, até atin- gir “um v6o veloz e seguro." Como dissemos, so trés metéforas fundidas. Atalanta vai-se metamorfoseando em borboleta, aprendendo a correr (ou a competir) ¢ também a voar, tudo ao mesmo tempo. Estas imagens se su- perpéem na reiteragéo de uma nica idéia — 0 processo de individuagao, conforme as concepgdes de Jung. Chamamos ainda a atencio do leitor para a “metamorfose” que se nota a nfvel estrutural da narrativa. O texto, num relance, é um épico em prosa, afinal é uma hist6ria que se conta: 0 relato de cinco experiéncias de amor frustradas, de cinco desenga- nos amorosos. Entretanto, assumindo © aspecto de um camelao, 0 texto, mal nele se firma os olhos, é uma flor hf- brida, pois af néo comparece o distan- ciamento épico e, ao invés, 0 que te- mos € uma linguagem emocional, liri- ca, carregada de subjetividade, com altissima quota de metéforas ¢ simbo- los. H4 uma Atalanta épica e uma Atalanta lirica. Uma capaz de audé- cias de herdi, outra cheia de deva- neios € sonhos, Ainda podemos observar um tempo cronolégico ligado ao épico, escoando no nfvel da narrativa, en- quanto duram as cinco experiéncias dolorosas que propiciam o crescimen- to psicolégico de Atalanta. Mas este DENOFRIO, Darcy F. De Penélope a Atalanta —o processo de individuago em Yéda Schmaltz 17 se esvai entre nossos dedos ¢ perce- bemos um tempo psicolégico, ligado ao Ifrico, criado pela emocio e subje- tividade da autora. Finalmente, se ins- taura no conto um tempo mitico ou do ser. Atalanta paira num outro tempo, o dos arquétipos, que nao se confunde com 0 cronolégico ou psicolégico. Est4 “‘Acima ou fora do tempo hist6- rico ou do tempo psicolégico, embora possa neles inserir-se ou por meio de- les revelar-se. (. . .) tempo ontolégico por exceléncia, anterior a Histéria e & Consciéncia, identificado com o Cosmos ou a Natureza’’.64 Assim, como se depreende de MendilowSS, em considerag6es acerca do tempo mf- tico, Atalanta nao € apenas uma per- sonagem vivendo 0 scu tempo, mas também uma configuragéo de uma sé- rie intermin4vel que recua até o sur- gimento da humanidade. Assim temos diante dos olhos uma mulher particu- lar, vivendo uma experiéncia singular, uma outra mulher, ou um arquétipo, que vive uma experiéncia no curso dos milénios, metamorfoseando-se na mulher de nosso tempo que vem as- sumindo 0 risco de sua liberdade, ja que, na voz de Atalanta, ‘‘a liberdade é um peso para ser carregado.”” Como se péde observar, um cor- po contemporineo, metamorfoseado, desprende-se de um corpo antropolé- gico. A personagem de nosso tempo vive um conflito que recua a expe- riéncia das primeiras mulheres, talvez aquelas dos clas (ou anteriores) gracas a presenca do corpo mitico. E cla o vive em dois espagos: um fisico, onde Atalanta vive a sua est6ria particular e tinica © um atemporal, onde se instala © arquétipo. E hé duas ordens de con- 18 flito: um na superficie do conto — os desencantos de uma mulher, vivendo suas experiéncias amorosas, sempre trafda pelos homens, passando por um processo de aprendizagem; outro na profundidade — a luta da mulher na conquista de sua liberdade, de sua in- dividuagdo, de seu lugar na histéria entre os homens, enfim de sua re- deng: Ao imbricamento dos géneros (pico ¢ Ifrico), dos tempos (cronolé- gico, psicolégico e mitico), do espaco (fisico, psicolégico e atemporal), das personagens (mitica e a dos nossos dias), do conflito (na superficie e na profundidade), soma-se a complexida- de do foco narrativo. Temos uma ter ceira pessoa que se equivale a uma primeira e depois uma terceira que se transforma em primeira, quando a au- tora se nomeia, num ritual de identifi- cago com aquela Atalanta, que “se desprendeu de suas maos”, ¢ também com aquela mitica, das quais se tora uma espécie de porta-voz: ( E.até eu que estou contando a Atalanta e que me chamo, as vezes Yéda, e que nao estou na conta (. . .) Houve tum momento em que ela se apoderou de mim —a cagadora — falando por minha boca’? (. . .)®6 No fim do conto Atalanta, per- cebe-se que a personagem de mesmo nome completa o processo de indivi- duagdo. Sugere-nos isto a referéncia que Yéda faz & imago, tltima etapa do processo de metamorfose e, por ex- Signética 2:1-24, jan/dez. 1990 tens&o, do processo de individuagio. Também nos leva 8 mesma conclusdo a referéncia ao mticleo de uma estrela. Os personagens Joao, Rafael, Peter, D6rian, Liicio morrem e se transfor- mam numa figura mandélica — sao as “cinco pontas de uma estrela cumpri- da, Mais 0 nticleo”. Essas pontas su- gerem as cinco experiéncias por que passou Atalanta, propiciando o seu crescimento psicolégico, e que simbo- lizam as cinco ctapas do processo de individuagao. Tanto a imago, como a figura mandélica, quanto 0 nticleo da estrela referem-se ao SELF, ‘Quando, depois de duras lutas, desfazem-se as personoficagées da anima ou do ani- mus, 0 inconsciente muda de aspecto © aparece sob uma forma simbélica nova, representada pelo SELF, o nu- cleo mais interior da psique’67, Se- gundo Jung, quando se atinge esta etapa, em que consciente e incons- ciente se ordenam’em torno do SELF, © homem torna-se ele mesmo, um ser completo, incluindo aspectos claros ¢ escuros, masculinos e femininos. A mandala, palavra de origem sAnscrita, que significa cfrculo ou cfrculo magi- co, representa muito bem a idéia da totalidade psfquica, porque, ao com- pletar 0 seu processo de individuagao, © individuo alcanga, conseqiientemen- te, a totalizagéo do ser, sua esferifi- cagao.68 Outro aspecto que nos leva a in- ferir que Atalanta integrou satisfato- riamente o princfpio masculino, na sua consciéncia de mulher, é que ndo apa- rece, ao final do conto, o humor que- relante, resultado da hipertrofia do animus (muito comum em certa litera~ tura feminista). O que h4 € uma Ata- lanta reflexiva, buscando auto-conhe- cimento. Sendo, vejamos: Muito dificil, talvez imposstvel estabelecer a posigéo correta dessa Atalanta competidora nas corridas. Ela quer ganhar ou quer perder? Quem sabe? Se ganhar, fica sozinha, morre 0 amor ¢ ela comeca tudo de novo. Se perder a corrida, distraida com 0 pomo de ouro, ganha o amor, esse procurado. Endo, como & isto? Vocé entende? Sabe? Entao me explique. Porque ew nunca vi uma competigio em que se perdendo, ganha-se; em que, se ganhando, perde-se.® (Grifos nossos) Nao pude ver, até entao, um tex- to feminista que, de forma tao femini- na, pde a nu a questio do relaciona- mento do homem e da mulher em nos- sos dias, Parece que Yéda pensa como Virginia Woolf, sua companheira de offcio que, num ensaio de 1929, es- creveu: Toda essa rinha de sexo contra sexo, de qualidade contra qualidade; toda essa alegacdo de superioridade e imputacéo de inferioridade, pertencem ao estagio da escola particular da existéncia humana, onde hd “lados” e é necessério que um lado venga 0 outro lado (...) A medida que amadurecem, as pessoas deixam de crer em Jados (.. .).79 DENOFRIO, Darcy F. De Penélope a Atalanta — 0 processo de individuacio em Yéda Schmaltz 19 No excerto de Yéda hé uma voz que avalia, julga. E que pode muito bem estar falando por si mesma e por Atalanta (a mitica € a de nossos dias, que preenche o esquema vazio do ar- quétipo, naquele conto). E é curioso notar que esta reflexao s6 aparece imediatamente depois que Atalanta atinge o Ultimo esta4gio de sua meta- morfose: Imago (correspondendo, me- taforicamente, ao self, si mesma). Por isso “‘senhoriou-se de tudo. Uma forga interior, uma agressividade mansa, uma resisténcia”.7! Completando o processo de individuagéo, a persona- gem de Yéda traz as nitidas marcas da Atalanta mitica, para nés, o arquétipo da mulher que incorporou 0 animus, harmonizando os aspectos masculinos de sua mente. Por isso ndo apresenta 0 4nimo acirrado de exacerbadas femi- nistas. Sopesa, avalia, porque ndo en- tende 0 sentido de uma competicao “em que se perdendo, ganha-se; em que, se ganhando, perde-se”’. Sabe-se que foi longo e sofrido © caminho percorrido pela mulher através dos milénios e da histéria, que mal a registra, e isto a marcou como um ferro em brasa. Sabe-se, por exemplo, que ‘‘a melhor dentre as mu- lheres era considerada intelectualmen- te inferior ao pior dentre os homens”, sendo consideradas incapazes e vazias de cabeca; que, sendo propriedade do marido, podiam ser surradas — isto era um direito Iegitimo do homem — que nao tinham direito de voz ¢ viviam em reclusio; que o marido era seu verda- deiro amo e senhor; que mal sabia so- Jetrar e que sé recentemente na histé- ria adquiriu o direito de propriedade e de voto. Tudo isto levou uma mulher da nobreza, que era também uma poe- tisa, Margareth de Newcastle, a per- ceber todas essas injustigas e clamar: “As mulheres vivem como morcegos ou corujas, trabalham como bestas e morrem como vermes”’.72 Contudo Yéda parece que co- munga outra idéia de V. Woolf, ou se- ja, deve supor que ‘“‘a culpa de tudo isso, caso se esteja ansioso por atri- buir culpas, ndo recai mais num sexo do que no outro (...) Todos os que Ppromoveram um estado de consciéncia do sexo devem ser culpados’’.73 Além do mais, como matrizes, ajudamos a gerar 0 homem que af esté e compete a nés colaborar no projeto do ou(t)ro homem, que NAO E ESTE, como dis- se a poetisa, sonhando com um novo “opus alchymicum” bem logrado. Virginia Woolf, no ensaio men- cionado, indagou-se se haveria dois sexos na mente, correspondentes aos dois sexos do corpo, ¢ se eles também precisariam ser unidos para se conse- guir completa satisfagdo e felicidade. Sao reflexdes que envolvem a bisse- xualidade do homem e da mulher, re- sultante das duas espécies de gens que carregam, com predominancia de um deles. Amadoristicamente (segundo suas préprias palavras) Virginia ten- tou esbocar uma planta da alma, de sorte que, em cada um de nés, presidi- riam dois sexos: um masculino e outro feminino. No cérebro do homem, o homem predominaria sobre a mulher ¢, no cérebro da mulher, a mulher predominaria sobre 0 homem. Entéo ela conclui que o estado normal e con- fortdvel seria quele em que os dois convivem juntos em harmonia, coope- rando espirititualmente.74 Signética 2:1-24, jan Jdez. 1990 E extraordinério como esta ad- mirével escritora inglesa fala com tan- ta lucidez sobre a satisfatéria inte- gragéo da anima pelo homem e do animus pela mulher. Sem se referir a Jung, ela expée certos pontos funda- mentais de sua teoria, De certa forma, eles foram contempordneos: Jung nas- ceu em 1875, ela em 1882, sendo sete anos a diferenca de idade entre eles. Entretanto ele viveu muito mais do que cla. Virginia morreu (ou suici- dou-se) em 1941, com 59 anos; Jung veio a falecer em 1961, com 76 anos de idade, vivendo, portanto, 20 anos a mais do que ela, Teria a extraordinéria escritora inglesa intufdo esses conhe- cimentos ou jd teria ouvido falar de- les? O fato é que é uma enorme coin- cidéncia receber diretamente de Vir- ginia Woolf pensamentos como estes: “Quando se € homem, ainda assim a parte feminina do cérebro deve ter in- fluéncia; e a mulher deve também manter relages com 0 homem no inte- rior. Coleridge talvez tenha querido referir-se a isso quando disse que as grandes mentes s&o adréginas. E quando ocorre essa fuséio que a mente € integralmente fertilizada e usa todas as suas faculdades.”75 Ela se refere ao processo de criacéo, supondo que uma mente puramente masculina ou pura- mente feminina nao consiga criar. En- tretanto o seu pensamento vale igual- mente para os propésitos desta andli- se. Esta digressio foi necessaria. ‘Yéda Schmaltz, em seu mais recente livro de poesia, A ti Athis, fala do homem por exceléncia, como uma “flor anémala, / como se fosse anemé6na/ como se fosse Ad6nis”.76 E propée “a decifraco/ (. . .) do andré- gino/ © terceiro inimitavel/ 0 subli- me.”77 Cremos que metaforicamente ela, tio impregnada das idéias de Jung, deva estar se referindo a este homem de mente andrégina (no senti- do que Ihe conferiu V. Woolf ou Co- leridge) © que deverd surgir para subs- tituir os Hitlers e os Mussolinis do co- tidiano de muitas Penélopes que ainda tecem sobre si mesmas a trama de um casulo, se nao a propria mortalha. Certamente refere-se aos homens “masculinamente femininos", de que fala a famosa ficcionista inglesa, aqueles no castrados em seus senti- mentos. Cingiienta e nove anos passados, depois daquelas maduras reflexdes de V. Woolf, nos parecem tempo sufi- ciente para que surja Atalanta, a mu- Iher “femininamente masculina”’, de- pondo aquelas mulheres extremadas, de animus hipertrofiado, e venha ao encontro desse novo homem — “esséncia de alquimia/ ¢ amor”,78 por isso “‘principe-princesa (.. .) Osfris, fsis”79, fuséo e harmonia dos opostos, bodas alquimicas. Esta Atalanta de Yéda (que séo todas as mulheres de hoje que j4 lo- graram completrar 0 seu processo de individuac4o) nao vé mais sentido em ganhar do homem uma competigao ¢ perdé-lo enquanto companheiro. E nem ganhar 0 homem e perder a sua corrida (ou carreira), sacrificando suas aspiragées, despojando-se de seus so- nhos. Chegou 0 momento em que jé se pode sonhar com a cooperagio dos dois sexos, com a uniao do homem e da mulher, no verdadeiro casamento DENOFRIO, Darcy F. De Penélope a Atalanta ~ 0 processo de individuagio em YédaSchmaltz 21 dos opostos que s6 a verdadeira al- quimia dos nés — de dois seres que se amam c se respeitam em inteireza c ver- dade — poderia levar a termo. Isto nos conduziria certamente ao encontro de um estagio de plenitude afetiva que se poderia denominar a pedra filosofal. Mas isto s6 ser4 possfvel para a Ata- lanta que souber, como aquela do tex- to, reescrever a sua histéria. Entéo a mulher j4 teré percorrido um longo caminho — da prisdo no casulo (0 sig- no de Penélope) a aquisigao das qua- tro asas (0 signo de Atalanta); da lar- va a borboleta. E cumprindo a sua ma- ratona, a mulher tera passado se Sfsifo — que apenas rola a pedra de seu tra- balho doméstico didrio, fadado ao eterno recomeco — a Prometeu®®, por- que rouba o fogo dos deuses e vivifi- ca-se, como Deus ao barro. Enfim, teré, num gesto atrevido de desafio aos deuses, mudado a sua prépria condigéo de estétua. Alids “Atalanta nao acredita em destino’’.8! Agora, como agente de sua prépria histéria, ela poderd, gesto unicamente seu, até apanhar 0 pomo de ouro ou perder, quando quiser, como fez a mitica Ata- lanta. Pois, como disse tantas vezes a profética Atalanta de Yéda, destino “Cada um faz 0 seu’’8?; o destino de “um girino, réptil que se arrasta no caminho do batréquio”’83, ou o de uma borboleta de vOo seguro e veloz que conquista © seu préprio espago, osten- tando “um brilho nas cinco pontas a cumprir: estrela de fogo"’.84 S6 uma escritora como Yéda Schmaltz, que transitou pela Mitologia © penetrou nos secretos caminhos do esoterismo alquimico e rosacruciano, poderia to bem absorver as idéias de Jung ¢ utilizar, em sua obra, os arqué- tipos em todas as suas manifestagdes. A complexidade de sua obra, mal to- cada pelo lampejo de nossa andlise, aguarda os grandes iniciados no as- sunto para que, como seu luzeiro, possam conduzir o leitor aquelas mais secretas clareiras que ainda dormem intocadas na floresta dos signos. Goiania, 18 de setembro de 1988. NOTAS 01-SHCMALTZ, Yéda. A alquimia dos nds. Goinia, Unigraf, 1979, p. 175, poema “Ou- ro”. 2-SILVEIRA, Nise da. Jung vida e obra. Rio, José Alvaro Editor S.A., 1968, p. 137. 03 — Idem, ibidem, 04 —Todas estas idéias estio desenvolvidas na obra supracitada ¢ em outras que sero indi- cadas na bibliografia. 05 — SILVEIRA, Nise da. Op. cit. p. 88. 06 ~ GUERIN, Wilfred L. et alii. Introducion a la critica literdria. Buenos Aires, Marymar, 1974, p. 159, 160. 07 ~ Jung vida e obra. Op. cit. p. 137. 08 — Cf. p. 19 daop. cit. 09 — Op. cit. pp. 23-24. 10 ~ Op. cit. p. 29. 11 — Cf. poema “Sereias”, op. cit., p. 34. 12 ~Cf, ““A beleza do homem e seus apetrechos”, op. cit., p. 35-40. 13 ~"*Navios", op. cit. p. 52. 14— CE. “Vestide de légrima’’, op. cit.. p. 53. 15—Cf. “Espelho V (Tentativa de desconheci- mento)", op. cit. p. 66. 16-SCHMALTZ, Yéda. Atalanta, Rio/Brasilia, José Olympio/INL 1987, p. 7-18. 17 ~ Op. cit., p. 10. 18— Op. cit. p. 12. 19, ~ SILVEIRA, Nise de. Op. cit. p. 137-138. 20~ Op. cit. p. 93. 21 - Op. cit. p. 69. 22 — Carta XII, op. cit. p. 90. 23 ~ Carta, op. cit. p. 72-73. 24 — Cf. Jung vida e obra, op. cit. p. 97 onde isto & explicitado. 25 — Idem, ibidem. * Op.cit. p.96. 26 ~“Cantiga selvagem”’, op. cit. p. 106. Signétiea 2:1-24, jan /dez. 1990 27 "A flor”, op. cit. p. 107. 28 - BACHELARD, Gaston. A psicandlise do fo- go. Lisboa, Editorial Estidios Cor, S.A. R.L., 1972, p. 94. 29- Op. cit. p. 175. 30-SCHURE, Edouard. Os grandes iniciados (volume 1). Rio Ed. Cétedra, 1984, p. 179. 31 —“Espelho I”, op. cit., p. 59. 32-Cf. O ensaio “Penélope Questionada — O Tema do Fio em Yéda Schmaltz” da Profa, Vera Tietzmann Silva. Cadernos de Le- tras, Série: Literatura Goiana, n° 1, 1987. 33-SCHMALTZ, Yéda. Miserere. Rio, Anta- res/INL, 1980, p. 21. ** Nao conhecemos esta traducao. Além disto a Odisséia é narrada em 3! pessoa. 34—Op.cit. p. 24. 35 — A Professora Vera Tietzmann Silva chama a atencio para este fato (ou semelhante) no en- saio citado. N6s pudemos observar outros ca- sos no mencionados, de priticas semethan- tes, por exemplo, nas epigrafes das p. 31, 23, 47657. 36 ~ Confira as epigrafes das piginas 23 ¢ 57. 37 -Cf. op. cit. p. 23. 38 ~A alguimia dos nds, op. cit. p. 34 39 ~Miserere, op. cit. p. 24. 40 ~ Op. cit. p. 25. 41 Jung vida e obra, op. cit. p. 88. 42 - Op. cit. p. 96. 43 — Ct. p. 59.063. 44 — Op. cit. p. 65. 45 - Op. cit. p. 191200. 46 - Op. cit. p. 61. 47 ~ Cf. Jung vida e obra, op. cit. p. 90. 48 - Op. cit. p. 24 49 ~Cf. as idéias de Jung apud SILVEIRA, Nise da, op. cit. p. 92. 50 Idem, p. 98. SI — Idem, p. 97. 52 — A alquimia dos nds, op. cit. p. 75. 53 - Idem, p. 33. 54 Idem, p. 191 a 200, 55 — Idem, p. 17 ¢ depois 201. 56~PIRES, Antunes. Manual de teoria ¢ técnica lierdria. Rio, Presenga, 1985, p. 67 57 - BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mi wologia. Rio, Tecnoprint, 1965, cap. XVIIL p. 120. 58 - Op.cit. p. 07a 18. 59— Op. cit. p. 17 60 -Op.cit. p. 13 61 —Op.cit. p. 16. 62 —Op. cit. p. 17. 63 —Todos os excertos entre aspas sio do conto “Atalanta” 64— MOISES, Massaud, A criacao literdria, Sto Paulo, Cultrix, 1982, p. 109. 65 ~MENDILOW, A. A. 0 tempo e 0 romance. Porto Alegre, Globo, 1972, p. 157. 66 ~ Op. cit. p. 17. 67 ~ SILVEIRA, Nise da. Op. cit. p. 99. 68 — Estas idéias esto desenvolvidas na op. cit. p. 100. 69 — Op. cit. p. 17 70 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio, Nova Fronteira, 1985, p. 138. 71 Op. cit. p. 17. 72—Todas as informagées sobre a situacio da mulher expressas neste pardgrafo esto con- tidas na obra Um teto todo seu, de Virginia Woolf, citada, as paginas 41, 56, 70, 82, 147, passim. 73 — Op. cit. p. 135. 74 — Op. cit. p. 128 129. 75 ~ Idem, ibidern. 76 — SCHMALTZ, Yéda. A 1i Athis. Goidnia, pu- blicagao da Secretaria da Cultura da Prefei- tura de Goiania, 1988. p. 83. 17 ~ Idem, p.95. 78 — A tiAthis, op. cit. p. 27 79 — Idem, p. 55. 80 — Yéda, no conto Atalanta, associa a imagem de Penélope & de Sisifo reiterando a idéia de que 0 trabalho feminino é fadado 20 eterno recomeco: (.. .) “lavava, passava, cozinha- ‘va, recebia e despachava ¢ ia correndo para 0 espelho” (. . .). Este excerto aparece na pégi- na O8 € € repetido na 15. Ao final do conto, Yéda funde a imagem de Atalanta com a de Prometeu: “Essa mulher rebelde, desafiado- ra(_. .) prometéica (p. 17). 81 — Op. cit. p.07 82—Expressio reiterada vérias vezes no conto “Atalanta” 83 -Op.cit. p. 16. 84—Op.cit.,p. 14. ABSTRACT Under a jungian approach, this work inten ds to analyse, in a special way, two literary pieces by Yéda Schmaltz ~ A alguimia dos nds (The al- chemy of the knots) and Atalanta ~ books of poms which carry much influence of the swiss psychologist, Jung, This analysis is particularily concerned wi- th two mytical characters strongly present throu- ghout the author's work —Penclope and Atalanta ~ true archetypical patterns of women in different stages of their psychological maturing. DENOFRIO, Darcy F. De Penélope a Atalanta ~ 0 processo de individuagio em Yéda Schmaltz 2B ‘Through the performance of these two my- thological antithetis models, one can observe the uprise of women, in thousands and thousands of years,in their “process of individuation’, hindde- red so many times. Penelope turns to be the ar- chetypical image of the woman who has not in- corporated the animus in herself, while Atalanta, a competitive one, represents the woman who has incorporated in herself that animus, finally com- pleting, in a satisfactory way, her process of psy- chological maturation. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS SILYEIRA, Nise da, Jung vida e obra, Rio, José Alvaro Editor sd. JUNG, Carl Gustav. O homer e seus stmbolos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1964 Arquétipos e inconsciente colectivo. Bue~ nos Aires, Paidds, 1977. CARVALHO, Eide M. Murta, O pensamento vive de Jung. Si Paulo, Martim Claret Editores, 1986. BACHELARD, Gaston. A psicandlise do fogo. Lisboa, Editorial Estiidios Cor, 1972. SCHURE, Edouard. @s grandes iniciados. Rio de Janeiro, Cétedra, 1984. v. 1. GUERIN, Wilfred L. et alii. Introduci6n a ta crtt- a lteraria Buenos Aires, Ediciones Marymar, 1974, MENDILOW, Adam Abraham. O tempo ¢ 0 ro- ‘mance. Porto Alegre, Globo, 1982. MOISES, Massaud. 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