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ma JOSELUIZ be Be FIORIN | oo hae Ca ; José Luiz Fiorin Argumentacdo Conietho Académica Teiveira de Cascilho uardo Lins da Silva reprodusio roral ou parcial em qualquer midia in escrita da editora slo sujeitos as penas da Ii responsivel pelo contetido da Obra, vessariamente concorda, O Autor conhece os fatos narrados, «lox quais ¢ responsdyel, assim como se responsabiliza pelos juizos emitidos, \ O " editoracontexto ‘orate nosso carlogo completo €Ultios langamentos em www.editoracontexto.com be Sumario Copyright © 2015 do Autor ~ PREFACIO Todos os direitos desta edigio reservados & Editora Contexto (Fditora Pinsky Lida.) Str "ARTE I PROBLEMAS RAIS DE ARGUMENTAGAO Mustragto de cap Cesare Maccati, Cicero demoncia Catilina, 1888 (aftesco) ie aie agri. ARGUMENTAGAO E DISCURSO, Gustavo S. Vilas Boas Preparerdo tk texte ARGUMENTACAO E IN FERENCIA .. Lilan Aquino A inferéncia logica Revisie A inferéncia semantica.. Ana Paula Luccisano A inferéncia pragmatica. Dados Internacionais de Catalogagzo na Publicago (cw) ary (Camara Brasileira do Livro, tm Basi) eZ FORMAS DE RACIOCINIO «0.0.00 : B.dOWUG HO renrnrnonrnsne 1. ed., 4" reimpressio, — A indugao. n, José Luiz Atgumensagio/ Joxé Luie Fiori Sto Paulo : Contexco, 2018. Aanalogia... Bibliografia, ISBN 978-85-7244-886-4 OS FATORES DA ARGUMENTACAO |. Argumentagio 2, Figuras de retrica 3. Linguagem 5 ies Tale mes O Ethos do eNUNCiAdOF eo nrnnrennninnnnnn 4, Linguistica I. Titulo M1358 epp-410 Oauditorio......... scan Sonlides pare cauflogo seserdtion: O discurso argumentativo: dominio do preferivel.... Pepper 110 Argumentagao e linguagem........ Ambiguidade e vagueza da linguagem 208 Objetividade, imparcialidade ¢ neutralidade. WW Ainda a ambiguidade linguistica oe ACL ae Marcadores argumentativos... scat Diretor edivorial: Jaime Pinsky Rua Dr, José Elias, 520 ~ Alto da Lapa A linguagem politicamente correta, 05083-030 = Sto Paulo = se ace i peer 0 acordo PrEVi0 socsnonn di scontexto,com.br Ainda sobre 0 acordo prévio Valores ¢ lugar-comum.. PAR’ OS ARGUMENTOS OS ARGUMENTOS QUASE LOGICOS scan Os argumentos fundados no principio da identidade. . 7 A tautologia 7 A definigao ls A comparagao vo a 122 A reciprocidade....... omen enninnmemmnnnaanminasn 12S A transitividade sss 126 A inclusio ea divistio vos ereneemmepnchel Ainda sobre 0 todo ¢ as partes... 130 Argumentum a pari Regra do precedente. 136 Argumentum a contrario... 137 Argumento dos inseparaveis 138 Argumentos fundados no principio da n&io contradigao 139 Autofagia ¢ retorstio 0. 1AL Reductio ad absurdum.. 143 Argumento probabilistico . 144 Argumentos fundados no principio do terceiro sexcluldo.. 145 Argumento do terceiro excluido. wainasctsh woe LAS O dilema......... 146 ARGUMENTOS FUNDAMENTADOS NA ESTRUTURA DA REALIDADE... 149 Implicagao e concessio... cacao aestasmapsaacaatateast tamale TAQ) 151 Causalidade..... Causas necessarias e suficientes... Causalidade e sucessao.. Os fatos.. Argumento do 158 159 164 165 167 Argumentum ad consequentiam.... Argumentos fundados nas relagées de sucessao. O argumento do desperdicio... 168 O argumento da diregao....... Bianca 169 O argumento da ultrapassagem.....nmmmunnsn wi 169 170 Argumentos de coexisténcia........0. Argumentum ad hominem wo. 174 Argumentum tu quoque. Argumento de autoridade ou argumentum ad verect dan Argumentum ad ignorantiam AB Argumentos a fortiori. ARGUMENTOS QUE FUNDAMENTAM A ESTRUTURA DO REAL wooo. 185 Os argumentos indUtiVvOS ..e.snmnn me O argumento pelo exemplo. rnremeiretccu ee co. 188 O modelo ¢ 0 antimodelO esmunmmsnsen so 189 19M O argumento por ilustr Argumentum a simili.... A DISSOCIACAO DE NOGOES.... Relagdo esséncia e aparéneia . Outros pares... Distingao.... OUTRAS TECNICAS ARGUMENTATIVAS. O recurso aos valores........ O recurso aos Tugares-comuns ¢ lugares especificos .. A argumentagao por implicitos As perguntas capciosas...... Secundum quid Petigdio de principio Ignoratio elenenii......... ne A distoreao do ponto de vista do adversario ou 0 argumento do 2 aspera 216 Ainda a distorgdo do ponto de vista do adversario........ os Paradoxos, ironia e siléncio.. O argumento do excesso.. Argumentos que apelam para o pdthos.. Argumentum ad populum Argumentum ad misericordiam, Argumentum ad baculUM sooo O recurso ao dthos do enuneciador Pal I A ORGANIZACAO DO DISCURSO A DISPOSITIO NA RETORICA ANTIGA A ORGANIZACAO DOS TEXTOS DISSERTATIVOS 241 A introduga0 vas. 242 O desenvolvimento wn 242 Plano dialético.. sata : 242 Plano de problema, causas ¢ solugées.. 244 Plano de inventario. Plano comparativo Plano de ilustragao e explicitagao de uma afirmacao Combinagao de diferentes planos...... A conclustio PARA FINALIZAR: TEORIAS DO DISCURSO E ARGUMENTACAO...........259 BIBLIOGRAFIA O AUTOR Prefdcio A vida em sociedade trouxe para os seres humanos um aprendizado extremamen- todas as questdes pela forga, era preciso usar te importante: ndo se poderiam reso! a palayra para persuadir os outros a fazer alguma coisa. Por isso, o aparecimento da argumentagiio esté ligado a vida em sociedade e, principalmente, ao surgimento das primeiras democracias, No contexto em que os cidadaos eram chamados a resolver as questdes da cidade ¢ que surgem também os primeiros tratados de argumentagdo, ‘les ensinavam a arte da persuasao. Todo discurso tem uma dimensao argumentativa. Alguns se apresentam como. explicitamente argumentativos (por exemplo, 0 discurso politico, o discurso publici~ trio), enquanto outros nao se apresentam como tal (por exemplo, 0 discurso didatico, o discurso romanesco, 0 discurso lirico). No entanto, todos so argumentativos: de um lado, porque o modo de funcionamento real do discurso € 0 dialogismo; de outro, por que sempre 0 enunciador pretende que suas posigdes sejam acolhidas, que ele mesmo seja aceito, que o enunciatario faga dele uma boa imagem. Se, como ensinava Bakhtin, 0 dialogismo preside a construgdo de todo discurso, ent&o um discurso seré uma VO2 nesse dialogo discursivo incessante que € a histéria. Um discurso pode concordat com outro ou discordar de outro. Se a sociedade ¢ dividida em grupos sociais, com interesses divergentes, ent&o os discursos so sempre 0 espaco privilegiado de luta entre vozes sociais, 0 que significa que sio precipuamente o lugar da contradigio, ou seja, da argumentagao, pois a base de toda a dialética é a exposigdio de uma tese © sua refutacao. Se a argumentagao é uma caracteristica basica do discurso, poderfamos pergun- tar-nos se os trabalhos sobre argumentagéo so abundantes. A resposta é nao. Isso poderia gerar certa perplexidade. Afinal, depois de Ducrot e Anscombre, a questilo da argumentagao parece ter-se tornado moda nos estudos da linguagem. No entanto, nao é da argumentagao na lingua, que € © que se faz na esteira desses dois autores franceses, que deve tratar uma teoria do diseurso, Ao contrario, ela deve estudar discursivamente o problema da argumentigho, 10 Arqumentagio Este livro tem 0 objetivo de discutir as bases da argumentago e de expor as principais organizagSes discursivas utilizadas na persuasio, isto &, os principais tipos Para isso, revisitamos, principalmente, o Organon, de Aristételes, ¢ 0 Tratado da argumentagao, de Perelman e Tyteca. Introdugdo a retérica, de Olivier Reboul, ¢ Rhéiorique et argumentation, de Jean-Jacques Robricux, forneceram sugestdes de catalogagdo e descrigdio dos argumentos. Varios textos deste livro jé foram publicados: o primeiro capitulo, intitulado Argumentacdo e discurso, apareceu na revista Bakhtiniana (v. 9, n, 1, 2014), outros trechos foram publicados na revista Lingua Portuguesa, da Editora Segmento, € no Manual de Portugués (Funag), de José Luiz Fiorin ¢ Francisco Platao Savioli. Outros de argumento algums fragmentos ainda foram retirados de diversos trabalhos meus, como, por exemplo, (em Arnaido Cortina e Renata Coelho Marchezan, Razbes e sensibitidades: a semidtica em foco, Araraquara/Si0 Paulo, Laboratério Editorial da rt da Unesp/Cultura Académica, 2004, p. 117-38); b) “O pathos do enunciatario” (em Alfa — Revista de Linguistica, Sao Paulo, Unesp, n. 48, p. 69-78, 2004); c) “Identidades e diferencas na construgao dos espagos ¢ atores do novo mundo” (em Diana Luz Pessoa de Barros (org.), Os discursos do descobriment: 500 e mais anos de discursos, 80 Paulo, Fapesp/Edusp, 2000, p. 27-50). No entanto, tudo foi ampliado ¢ reorganizado para ganhar a exaustividade e a coeréneia que a publicacdo deste livro exigia. Os exemplos foram garimpados em textos literarios ¢ textos da midia impres- a, No caso dos tiltimos, eles foram retirados de jornais ¢ revistas do periodo em que Os textos estavam sendo escritos. Por isso, este autor pede que nao se infira nenhuma posigao politica dele a partir da escolha dos exemplos. Eles referem-se pura e simplesmente a assuntos que estavam em discussdo nos momentos diversos 2m que esta obra foi escrita, Os exemplos retirados de obras literarias ndo ser&o citados remetendo a uma pagina de determinada edigo. Como queremos que todos possam encontra-los, ndicamos a localizagdo do texto na obra: num dado capitulo, numa determinada arte, numa certa estrofe. Nesses casos, nao se cita uma determinada edig’o na »ibliografia, $6 citaremos a pagina, quando a obra nao apresentar uma divistio em artes que permita facilmente verificar onde um texto se encontra. Por outro lado, a) “O ethos do enunciado: 1as referencias bibliograficas, estdo listados livros publicados originariamente em ingua estrangeira que tenham mais de uma tradugéio em portugués, bem como obras los séculos XVI a Xvi, cuja ortografia modernizamos, como 0 caso dos relatos dos Hajantes, Nesse caso, informamos a edigio de que o texto foi extraido, por haver livergéncias entre as diversas edigdes, Preface V1 em parte O aparecimento da argumentagaio, seu uso intensivo, sua codificagaio atéria do ser humano, da extraordindria aventura do homem sobre da marcha civi 1, Ao abdicar do uso da forga para empregar a persuasdo o homem se torna , cabe a constatagao de Riobaldo a Ter efetivamente humano. Nesse momento da histori que encerra 0 Grande serido: veredas, de Joao Guimaraes Rosa: “Nonada. O diabo se for... Existe é homem humano. Travessia.” nao ha! E 0 que eu digo, Chaucer, ao final do Prologo de Os Contos de Cantudria, pede que 0 perdoem se, em sua obra, ele ofender alguém ou cometer algum erro. Ele diz 4 guisa de ex- plicagaio: “Meu talento ¢ insuficiente, vés bem podeis entender.” Fago minhas as palavras do grande escritor inglés. Na capital paulista, numa ceriilea manha do outono de 2014, José Luiz Fiorin PARTE | Problemas gerais de argumentacao Argumentagao e discurso E um lugar-comum na linguistica atual a afirmagao de que a argumentatividade ¢ intrinseca a linguagem humana e de que, portanto, todos os enunciadas so argu- mentativos. Essa posig&0 deve-se aos trabalhos de Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre, que operam com as nogdes de retorica e de argumentagdio. Deve-se, no entanto, considerar que esses termos tém, na obra dos dois linguistas franceses, um sentido muito diferente daquele que eles tém na tradig4o retorica que vem de Aristoteles. Para eles, a argumentagio € o estudo das orientagdes semanticas dos enunciados e dos encadeamentos que as expressam. Inicialmente, Ducrot propde que se introduza um “componente retérico” nos. modelos destinados a explicar 0 uso da linguagem. Esse médulo ocupar-se-ia do sentido do enunciado em uso, isto é, numa situagdo de comunicagdo, Ao mesmo tempo, postular-se-ia um componente linguistico (semantic) que trataria do sentido atribuido a proposigao na lingua, Dessa forma, ele incorpora a questao da retorica ¢ da argumentagao no dominio pragmatico-semantico. Um primeiro componente, isto é, um conjunto de conhecimentos (deseri¢do seméntica linguistica de L ou, abreviadamente, componente linguistico) atribuiria cada enunciado, independentemente de qualquer contexto, uma certa significagao Exemplificando: a A corresponde a significagio A’. Caberia ao segundo componente (0 componente retérico), considerando a significagao A’ ligada a A e as circunstancias X nas quais A ¢ produzido, prever a significagdo efetiva de A na situagdo X. (Ducrot, 1987: 15) Assim, por exemplo, 0 componente semantico conferiria ao enunciado chovendo demais a significagao de que, no momento da enunciagao, ocorre 0 fe- némeno meteorolégico da chuva numa quantidade muito grande, No entanto, esse enunciado poderia ser usado em diferentes situagdes de comunicagito: por dois viajantes num aeroporto, aguardande a partida de um avido; por um juiz de futebol durante uma peleja esportiva; por umd mile a.um filho que se prepara para fazer sua ) Argumentacao rida matinal. O componente retdrico atribui a esse enunciado, em cada uma dessas uagdes, uma significagdo efetiva, que poderia ser parafraseada, respectivamente, exemplo, da seguinte maneira: a) O avido deve atrasar-se, pois no hi teto para a colagem; b) Vou paralisar a partida, pois no ha condigdes de continuar; c) Acho elhor vocé nao fazer sua corrida agora. A postulagao de um componente retorico “pressupde que as circunstancias enun iio slo mobilizadas para explicar o sentido real de uma ocorréncia irticular de um enunciado, somente depois que uma significagio tenha sido ribuida ao proprio enunciado, independentemente de qualquer recurso ao yntexto” (Ducrot, 1987: 16). Cabe notar que as leis utilizadas no componente torico nao serao leis “linguistica ” em sentido estrito, mas “sero justific: sis, independentemente de seu escrigio mprego na eméntica, ¢ poderiam r autenticadas, por exemplo, pela psicologia geral, pela légica, pela eritica erdria, etc,” (Ducrot, 1987: 17). Se a retérica concerne ao sentido do enunciado em uso, ou seja, numa situagao irticular de enunciagao, retérica torna-se sinénimo de pragmatica. Anscombre e Ducrot passam a privilegiar a nogaio de argumentacado. No lanto, seu conceito de argumentagao nada tem a ver com a discursivizagao, ymo entendia a milenar tradigdo retérica, que a considerava uma estratégia scursiva com a finalidade de persuadir 0 auditério (o enunciatario, diriamos yje). Para cles, “um locutor produz uma argumentagao, quando cle apresenta n enunciado El (ou um conjunto de enunciados) destinado a /evar a admitir n outro (ou conjunto de outros) E2” (1988: 8). Ora, se todo enunciado orienta ia determinada conclusao e essa orientagao faz parte do sentido, a argumen- ello é um fato de lingua e nao de discurso. Por isso, nesse segundo momento, ystula-se uma pragmatica integrada, ou seja, aquela que é indissociavel da mantica. O componente retérico nao é algo que se acrescenta ao componente mantico, mas ele faz parte deste componente. Dizem os autores no prefacio | obra L ‘argumentation dans la langue: © sentido de um enunciado comporta como parte integrante, constitutiva, essa forma de influéncia que ¢ denominada fora argumentativa. Significar, para um enunciado, é orientar. (1988: 5) Essa questio da orientagiio para determinada conclusio ¢ minuciosamente explicad: A utilizagaio de um enunciado tem uma finalidade ao menos to essencial quanto a de informar sobre a realizagaio de suas condigdes de verdade, que é a de orientar 0 destinatirio para certas conclusées ¢ nao para outras. (Anscombre ¢ Ducrot, 1988: 113) Argumentagdo ¢ discurso 17 Assim, quando a mae diz.ao filho que se prepara para sair O sol estd muito forte, esse enunciado orienta para conclusdes tais como Nao saia agora, va mais tarde; Leve um guarda-sol para se proteger, mas nao orienta na diregdo de conclusGes do contra 0 sol; As condigdes climdticas estéo como Nao leve nenhuma prote étimas para andar pelas ruas. Esses autores tomam da ret6rica clissica a nogdo de sépoi. No entanto, os tépoi repertoriados por Aristételes nos Tépicos, que faziam parte da inventio, guardam ténue relagdo com a nogdo que Anscombre, por exemplo, empresta esse termo. Para o Estagirita, 0 tépos & uma espécie de modelo com que muitos argumentos podem ser construidos. Veja-se, por exemplo, os fopoi da quantidade e da qualida- de, Na pragmtica integrada, os ‘poi sio “principios gerais que servem de apoio aos raciocinios, mas nfo sao raciocinios” (Anscombre, 1995: 39). No caso dos enunciados Agasathe-se bem, pois esté muito frio, 0 tépos & que o frio & propicio a pegar uma gripe. Se, para essa pragmatica integrada, a argumentagao é 0 encadeamento dos. enunciados que conduz a certa conclusio, seu dominio preferencial 6 0 estudo dos conectores que realizam esse encadeamento. Além disso, estuda a orientagdo argu- mentativa dos enunciados, bem como os fépoi que esto na base dos encadeamentos, realizados na superficie pelos conectores. As teorias do discurso, quaisquer que elas sejam, nao se podem limitar a essa microandlise lingufstica, embora, eventualmente, possam servir-se dela. Paul Ricoeur dizia que o sentido do texto € criado no jogo interno de dependéncias estruturais & nas relagdes com 0 que esta fora dele (1986). Isso significa que as teorias do dis- curso devem levar em conta dois aspectos: de um lado, a organizagao das unidades discursivas transfrasticas; de outro, 0 modo de funcionamento real do discurso, ou seja, seu cardter dialégico. Para isso, é necessario revisitar a tradigdo Classica. Aristoteles, seguindo uma longa tradigAo, divide os raciocinios em necessirios € preferiveis (1991, 1, 2, 1356b-1358a; 2005b, 1, 1; 1, 27). O primeiro & aquele cuja conclustio decorre necessariamente das premissas colocadas, ou seja, sendo verdadeiras as premissas, a conchisao nao pode nao ser valida. As premissas so as proposigdes, as ideias, de que se parte para chegar a uma conclusio. O tipo perfeito de raciocinio necessario era, para o filésofo, o silogismo demonstrativo: ‘Todas as grandes cidades tém trinsito pesado. Ora, Sao Paulo é uma grande cidade. Logo, Sao Paulo tem transito pesado, Se é verdade que todas as grandes cidades tém transito pesado ¢ que Sdo Paulo éuma grande cidade, nilo pode niio ser yerdade que SAo Paulo tem triinsito pesado, Argumentagéo: Nesse caso, a conclusaio nao depende de valores, da visio de mundo, de posigdes: religiosas, de sentimentos, etc. Os raciocinios preferiveis stio aqueles cuja conclusio € possivel. provavel, plausivel, mas nao necessariamente verdadeira, porque as premissas sobre as quis ela se assenta nao stio logicamente verdadeiras. O silogismo dialético ou retérico é um exemplo desse tipo de raciocinio. Todo professor é dedicado. Ora, André 6 professor. Logo, André ¢ dedicado. Nesse caso, é possivel, é provavel, € plausivel que André seja dedicado, mas niio ¢ logicamente verdadeiro, uma vez que nem todos os professores siio neces- sariamente dedicados. Nesse caso, a admissao de certas premissas e, portanto, de determinadas conclusdes depende de creneas ¢ de valores. Os raciocinios necessirios pertencem ao dominio da légica e servem para demonstrar determinadas verdades. Os preferiveis sfio estudados pela retérica e destinam-se a persuadir alguém de que uma determinada tese deve ser aceita, por- que ela é mais justa, mais adequada, mais benéfica, mais conveniente e assim por diante. Nos negécios humanos, nao ha, na maioria das vezes, verdades légicas, Por exemplo: o aborto é um direito ou um crime; 0 casamento de pessoas do mesmo sexo & a consequéncia da igualdade de todos perante a lei ou a violacdo de uma lei natural? Nenhuma dessas conclusdes é logicamente verdadeira, porque elas depen- dem de valores, de crengas, de temores, de anseios, etc. Camilo Castelo Branco, no capitulo x do Livro Quarto de Misiérios de Lisboa, avalia que uma questo moral é sujeita a controvérsias: A condessa de Santa Barbara, nas cartas ao seu filho, em estilo aseético, revelava uma transfiguragao moral, que, gragas ao frade franciscano, também desfigurava os sentimentos exaltados que lhe vimos pelo seu filho, Metade da sua alma tinham-tha fanatizado: a outra metade, votada para 0 mundo, era de padre Dinis Pedro da Silva, porém, nao compreendia semelhantes distingdes. Retirado de Portugal, o ressentimento ia com ele, Sua mae, pelo facto de ser virtuosa vitiva do conde de Santa Barbara, nao a julgou ele obrigada ao sacrificio dos deveres contraidos com seu pai antes de ser esposa do algoz, que sé a beira do tumulo fora honrado. Se 0 jovem tinha razao nao o diremos nds. A questo é toda moral. Que a resolvam 08 moralistas como devia de ser aquele estranho capucho, de cuja instrugao duvidava padre Dinis. A persuasiio faz-se, segundo Cicero, pelo convencimento, quando se mobili- 4M argumentos para levar a aceitar uma tese; pela comogao, quando isso é feito Argumentagao @ diseurso 19 insuflando o estado de espirito do destinatario, suas paixd (1972, 1, 28, 121). No plebiscito sobre a proibigdo da venda de armas de fogo, a campanha para o sim foi feita fundamentalmente pelo convencimento; a campanha para o no foi realizada basicamente pela comogao, jogando com a sensagdo de inseguranga da populagao. Os argumentos sao os raciocinios que se destinam a persuadir, isto 6, a convencer ou a comover, ambos meios igualmente validos de levar a aceitar uma determinada tese, A ret6rica é a arte da persuasio, a “arte do discurso eficaz”. Para Aristételes, a retorica € “a faculdade de considerar, para cada questo, aquilo que ¢ proprio para persuadir” (1991, 1, 2, 1355b). ARetorica de Aristételes compreende trés livros. O primeiro trata do enunciador, de como ele concebe os argumentos, de como consiréi seu éhos na enunciagloy © segundo analisa o enunciatario, como ele recebe os argumentos em fungaio do péthos; 0 terceito estuda a mensagem, 0 /égos, como se expressam os argumentos, Cada um deles estuda um tipo de prova. Afirma Aristételes: Seus preconceitos, ete, As provas inerentes ao discurso sao de trés espécies: umas residem no cardter moral do orador; outras na disposig: curso, quando ele é demonstrativo ou parece ser. (1991, 1, 2, 1356a) ‘io do auditorio e outras, enfim, no préprio dis+ A retérica antiga continha cinco operagées, embora somente as trés primeiras fossem realmente objeto de estudos mais acurados: 1. inventio —héuresis _invenire quid dicas (= encontrar o que se dird) 2. dispositio taxis inventa disponere (= dispor o que for encontrado) 3. elocutio lexis omare verbis (~ omar com palavras) 4. actio hypocrisis agere et pronuntiare (= atuar e enunciar) 5. memoria mnéme —_ memoriae mandare (= confiar 4 meméria) (Barthes, 1975: 182).! Se ¢ clara a distingao entre légica e retérica, a diferenga entre a retorica e a dialética variou ao longo do tempo. Aristételes diz que a retorica é uma parte da dialética (1991, 1, 2, 1356a), pois esta ¢ a légica do que é provavel, ou seja, 0 procedimento racional nao demonstrativo (2005a, 1, 1). E por isso que os t6poi, OU seja, Os lugares-comuns, silo centrais na retori mas sobre os quais se funda a ageitagho geral, fundamento do que ¢ provavel (1991, 1, 2, 1358a). Os édpicos, Como ji se disse, cram parte da inventio. Assim, aristotélica: eles silo esques 40 Argumentagoo pode-se pensar que a dialética é a arte que descreve os meios empregados na demonstragao e na refutagaéo. A retorica conhece grande importancia em Roma, com Cicero, Quintiliano, etc, Na Idade Média, a base de toda a educagao é 0 septennium, que prepara para a teologia, que reina soberana sobre as sete artes liberais, stimula do conhecimento humano desinteressado. Essas artes sfo divididas em dois grupos: um que estuda a linguagem, 0 trivium (gramatica, dialética e retérica) e outro que perscruta a natureza, © quadrivium (misica, aritmética, geometria ¢ astronomia). A retérica é, como ja se disse, a “arte do discurso eficaz” (ars bene dicendi).3 Ao longo do tempo, muitos autores comecam a fazer uma distingo no que era um conjunto indi le um lado, havia uma teoria da argumentagiio, que levava em conta as operagdes da invengao ¢ da disposigio, onde estariam os elementos issociavel: destinados a convencer e persuadir (a topologia); de outro, havia uma teoria das figuras, que se ocupava da elocugao (a tropologia, a teoria dos tropos). A palavra grega trdpos significa “direcdo”, “maneira”, “mudanga”. No caso da linguagem, pensa-se em “mudanga de sentido, de dirego semantica”. Assim, comecou-se a pensar em duas retéricas: a da argumentagio e a dos tropos. Genette mostra que, ao longo da histéria, houve uma restrigio da retorica: primeiramente, amputou-se-lhe a teoria da argumentagao e da composigao ¢ ela ficou restrita a teoria da elocugao; depois, a elocugao reduziu-se a uma tropologia, ou seja, a uma teoria das figuras (1975: 129-46), E 0 que ele vai denominar “retorica restrita”. O autor francés diz que uma teoria do discurso deve herdar a retorica em sua integralidade. Segundo Cicero, no De oratore, quatro sio as qualidade da elocugaio (virtutes elocutionis): a corregao (Jatinitas), a clareza (planum), a ornamentagao (ornatus) & a adequagao do discurso as circunstaneias (aptum) (1972, m, x). Lausberg, em Elementos de retorica literdria, da essas virtudes, respectivamente, os nomes latinos de puritas, perspicuitas, ornatus ¢ aptum (2004: 119, § 102). As tes pri- meiras caracteristicas da elocugdio estao a servico da quarta. Sao elas que criam a adequagiio. Isso significa que uma qualidade como a corregao nao ¢ algo intrinseco a lingua, mas depende do tipo de discurso, de seu género, etc, Também a clareza tem um papel discursive. Distingue Vieira, na quinta parte do Sermdo da Sexagésina, a ordem que “faz influéncia” daquela que “faz lavor”: O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat firmamentum — diz. David, Suposto que 0 céu & pregador, deve de ter sermées ¢ deve de ter palavras. Sim, tem, diz o mesmo David: tem palavras ¢ tem sermées; ¢ mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum., E quais s&o estes sermbes ¢ estas Biblioteca palayras do céu? ~ As palavras sto as estrelas, 08 sermBes so a composigho, a ordem, a harmonia e 0 curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com 0 estilo que Cristo ensinou na terra, Um ¢ outro ¢ semear; a terra semeada de trigo, 0 céu semeado de estrelas. O pregar hd de ser como quem semeia, e néio como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas esto por sua ordem; mas € ordem que faz influéncia, ndo é ordem que faga lavor. Nao fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem © sermio em xadrez de palayras, Se de uma parte ha de estar branco, da outra ha de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hao de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hao de dizer subiu. Basta que nado havemos de ver num sermao duas palavras em paz? Todas hao de estar sempre em fronteira com o seu contririo? Aprendamos do céu 0 estilo da disposigao, e também o das palavras. As estrelas siio muito distintas e muito claras. Assim ha de ser o estilo da pregagiio; muito distinto € muito claro. E nem por isso temais que parega o estilo baixo; as estrelas sfio muito distintas e muito claras, e altissimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; to claro que 0 entendam os que nao sabem e tao alto que tenham muito que entender os que sabem. Nao cabe discutir, neste capitulo, todas essas caracteristicas da elocugio, Interessa-nos a ideia de ornatus, que foi entendido como embelezamento da lin- guagem com figuras, com tropos. A figura era vista como um enfeite e, como tal, desnecessiria, como um “luxo do discurso” (cf. Lausberg, 2004: 128, § 162). Com isso, esvazia-se a dimensao tropolégica da retorica de sua fungdo argumentativa. Kuentz, ao estudar a efocutio em Ramus, alerta-nos: Mas, em Ramus, afirma-se mais claramente que nunca que a retorica foi a ciéncia do omamento. Se a gramitica é a “arte do bem falar”, a retérica, como afirma o preficio da Dialectique, ensina a“ornar a palavra”. E importante observar que, ao afirmar isto, Ramus, apesar das aparéncias, diz 0 contrdrio do que afirmavam os tratados latinos sobre a teoria do ornatus. Encontramos aqui um exemplo da ilusio nominalista, ja destacada por M. Fichant. A constancia do vocabulario técnico da retérica dissimula a modificagao profunda dos conceitos [...]. Entre 0 ornamento ramista e 0 ornamentum latino vai grande distancia que separa o adorno do instrumento, 0 plaqué do funcional, (1975: 117) Tentemos entender 0 significado do termo em latim. O ornatus latino cor responde ao grego kdsmos, que é 0 contririo do caos. Ornamentum significa “aparelho, tralha, equipamento, arreios, coleira, armadura”, $6 depois quer dizer “insignia, distingao honorifica, enfeite”. No De Bello Gallico, deve-se traduzir a passagem naves [...] omni genere armorum ornatissimae (Mi, x1V, 2) como “navios equipadissimos de todo tipo de arma: ornatus em retorica ndo era “enfeite”, mas “bem argumentado”, Isso significa que o sentido inicial de bem equipado 22 Argumentagio para exercer sua fungdio”, 0 que quer dizer que nao ha uma cisdo entre argumen- tagdo e figuras, pois estas exercem sempre um papel argumentativo. O ornatus, no dizer de Vieira, é a ordem das estrelas, “mas é ordem que faz influéncia, ndo é ordem que faca lavor” (= enfeite). A Retérica a Herénio diz que a ornamentagaio serve para realgar, amplificar aquilo que se expde, ou seja, o ornato é um con- junto de operagdes enunciativas que atua nos eixos da intensidade e da extensaio (Exornatio est, qua utimur rei honestandae et conlocupletandae causa, confirmata argumentatione (= O ornamento é 0 que usamos, apés a confirmagao, para dar a argumentagiio relevo e amplitude) (11, xvilt, 28)). Nao podemos esquecer-nos de que a palavra argumento & formada com a raiz argu-, que significa “fazer bri- thar, cintilar” e que esta presente nas palavras portuguesas argénieo, argenidrio, argento, argeniar, argeniaria, argentifero, todas provindas do latim argentum, “prata”. O argumento é 0 que realga, 0 que faz brilhar uma ideia. Muitas ciéncias tm seus mitos fundadores. Conta Roland Barthes que a retérica surge, por volta de 485 a.C., depois que uma sublevagao democratica derrubou os tiranos da Sicilia Gelon e Hieron, que, durante seu governo, tinham expropriado muitas terras coma finalidade de distribui-las a seus soldados. Depois da vitoria dos insurretos, os proprietarios espoliados reclamaram a devolugao de suas propriedades. Esses processos mobilizavam grandes juris populares, que precisavam ser conven- cidos da justiga da reivindicagao. A eloquéncia necessaria para impelir 0 animo dos jurados tomou-se objeto de ensino. Os primeiros professores foram Empédocles de Agrigento, Cérax, seu aluno em Siracusa ¢ 0 que inaugurou a cobranga pelas ligdes ministradas, e Tisias (1975: 151), Foi Cérax quem comegou a codifieagao das partes da ratio, criando uma “retérica do sintagma” (Barthes, 1975: 151). Ele estabeleceu 0 polo sintagmatico da retdrica, que ¢ a ordem das partes do discurso, a taxis ou dispositio (Barthes, 1975: 153). A retérica é, sem davida nenhuma, a disciplina que, na historia do Ociden- te, deu inicio aos estudos do discurso. Tira ela seu nome do grego rhéseis, que quer dizer “agio da falar”, donde “discurso”. Rhetoriké € a arte oratéria, de convencer pelo discurso. A emergéncia da primeira disciplina discursiva traz consigo a consciéncia da heterogencidade discursiva. Com efeito, desde o seu principio, estava presente nos ensinamentos de Cérax que todo discurso pode ser invertido por outro discurso, tudo o que ¢ feito por palavras pode ser des- feito por elas, a um discurso opde-se um contradiscurso. Conta-se que Corax dispOs-se a ensinar suas técnicas a Tisias, combinando com ele que seria pago em fungao dos resultados obtidos pelo discipulo. Quando Tisias defendesse a primeira causa, pagar-lhe-ia se ganhasse; se perdesse, nao the deveria nada. Terminadas as ligdes, © aluno entra com um processo contra o mestre. Nessa Argumentagdo @ diseurso 23 primeira demanda, ele ganharia ou perderia, Se ganhasse, ndo pagaria nada por causa da decisdo do tribunal. Se perdesse, nao deveria nada em consequéncia do acordo particular entre eles. Cérax constréi seu contradiscurso, retomando 4 argumentagtio de Tisias, mas invertendo-a. Se Tisias ganhar 0 processo, deve pagar em razao do acordo particular; se perder, deve pagar em virtude da decisiio do tribunal. Nos dois casos, deve pagar (Plantin, 1996: 5). Os sofistas é que impulsionam a nova disciplina. Deve-se a eles quatro nogdes discursivas: o prinefpio da antifonia, o estudo do paradoxo, a nogdo do provavel e 4 da interagao discursiva (Plantin, 1996: 6-7), O principio da antifonia mostra que toda “verdade” construfda por um discurso pode ser desconstruida por um contradiscurso; uma argumentagao pode ser inver- tida por outra; tudo o que é fe caso do acordo entre Cérax e Tisias, trata-se do conflito entre as obrigagdes que se originam de um contrato particular ¢ de uma decisao da Justiga. A tarefa maior da argumentagao ¢ tentar resolver situagdes a que se aplicam normas provindas de 0 por palavras pode ser desfeito por palavras, No sistemas distintos e conflitantes. No caso da permis: io para a realizagdio do aborto, uns so contra porque invocam preceitos religiosos; outros sao a favor porque se basciam, por exemplo, em principios relativos a satide. Confrontam-se razdes sobre 08 limites da religido ¢ do poder do Estado. A antifonia ¢ a colocagao de dois discursos em oposigao, cada um produzido por um ponto de vista distinto, cada um projetando uma dada realidade. Essa ainda € a base da Justiga, © principio do contraditério. Nossa Constituigdo assegura 0 respeito a esse principio em todas as ages judiciais. Uma casa, construida num morro, desmoronou, quando, por ocasido de fortes chuvas, houve um deslizamento de terra. Ponto de vista 1: 0 Estado deve indenizar os moradores, porque nao ergueu muros de contengao para evitar o deslizamento e, por isso, é responsavel pelo que aconteceu. Ponto de vista 2: 0 Estado nao tem qualquer obrigagao de indenizar os moradores, pois, como existem leis que proibem construir em encostas de morros, 08 que edificaram ilegalmente nesse lugar é que siio responsiveis pelo ocortido. O confronto desses dois pontos de vista constitui o processo ¢ é com base neles que o juiz deve decidir quem tem razio. O jornal 0 Estado de S. Paulo publicou, durante certo tempo, aos domingos, no caderno Alids, uma segao intitulada A questdo é, em que formulava uma pergunta, que era respondida de maneira divergente por especialistas, bem como por leitores: por exemplo, Vocé concorda com a reserva de cotas para professores universitérios negros?, A cidade de Sao Pauto é um bom lugar para viver?, A geragdo de Ronaldo vai superar ade Pelé? 24 Argumentacd O paradoxo mostra que, diferentemente do que pensa o senso comum, a lingua- gem nao ¢ transparente, sua ordem nao é homéloga a do mundo, ela tem uma ordem propria, auténoma em relacao a realidade. Ea linguagem que categoriza o mundo, que daa ele uma ordem. O paradoxo torna clara essa autonomia do funcionamento da linguagem em relagao a realidade. Todos os estudiosos da retérica dedicaram-se a estudar minuciosamente 0 paradoxo. Cicero apresenta, nas Académicas, 0 paradoxo do mentiroso, mostrando que, se ele diz que mente, ou esté dizendo a verdade e entao esta mentindo, ou esta mentin- do e, nesse caso, est dizendo a verdade (2012, 1v, 29, 95). Na linguagem, pode-se mentir, quando se fala a verdade, e falar a verdade, quando se mente. Camées, para expor a contraditoriedade inerente ao sentimento amoroso, constrdi um belo soneto, co Amor é um fogo que arde sem se ver, € ferida que d6i e nao se sente; é um contentamento descontente, € dor que desatina sem doer. E um nao querer mais que bem querer; é um andar solitario entre a gente: um nunea contentar-se de contente; um cuidar que ganha em se perder. E um querer estar preso por vontade; servir a quem vence, o vencedor; & ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor nos coragdes humanos amizade, se tao contririo a si é 0 mesmo Amor? O poeta tenta, nos || primeiros versos, definir 0 amor. Para isso, em cada verso constréi uma metdfora. Cada uma delas encerra, em seu bojo, um paradoxo (por exemplo, contentamento descontente; dor indolor), 0 que inviabiliza o ato definitorio, pois uma definigdo nao deve conter contradigées. No ultimo terceto, 0 poeta renuncia adefinir o amore explicita sua perplexidade por meio de uma interrogagao: como os homens buscam tanto 0 amor se ele ¢ algo tao contraditério? O poema comega com a palavra amor e termina com ela. E como se ao final da tentativa de delimitar esse sentimento 0 poeta dissesse: amor é amor. Sd0 os oximoros que permitem deixar patente a impossibilidade de precisar o sentimento amoroso, pois o amor é algo para ser sentido e viyido e n&o para ser objeto de um discurso racional. Argumentagho @ discurso 25 A probabilidade diz respeito ao fato de que, no que concerne as realidades humanas, nao existe o verdadeiro e o falso, 0 certo ¢ o errado. Quando tratamos dos negécios humanos, pensamos no que € provavel, porque jogamos com os esteredtipos a respeito das agdes dos seres humanos e com os tipos de pessoas que imaginamos existir. Esses esteredtipos so o resultado de uma reflextio sobre © comportamento dos seres humanos nas mais variadas situagdes. Assim, diante de um determinado acontecimente, fazemos um calculo sobre que 0 que julgamos provavel para chegar a uma conclusao. O raciocinio com base no provavel pode Jevar a novos paradoxes. O caseiro Francenildo Santos Costa desmentiu o ministro da Fazenda, Antonio Palocei, que afirmara numa cri que nunca frequentara uma casa, onde a chamada Reptiblica de Ribeirao Preto unia prazeres ¢ negdcios. Tmediatamente, foi vazada para a imprensa informagées sobre suas contas bancarias. E provavel que quem tenha quebrado clandestinamente o sigilo bancArio do caseiro tenha sido o governo, porque ele é que punha em duvida a honestidade das acusagées de Francenildo, uma yer que este recebera 25 mil reais de janciro a margo. Essa éa probabilidade de primeiro nivel. No entanto, como a oposicao sabe que, em virtude da probabilidade 1, as suspeitas vao recair sobre 0 governo, que deverd suportar o Gnus da prova, foi ela quem, por intermédio de um funciondrio simpatizante de um partido oposicionista, quebrou o sigilo bancario do caseiro. Essa é uma probabilidade de segundo nivel, No exemplo que segue, nota-se 0 uso do que é provavel como instrumento de luta politica: Maduro responsabilizou partidarios da oposigao pela depredagao de algumas lojas ‘em cidades como Valencia e Caracas. O lider antichavista, Henrique Capriles, por seu lado, disse que & 0 governista Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) quem tumultua as filas para responsabilizar a oposigdo. “Pego ao povo paz, que no caia em provocagées”, disse Maduro. “Se vocé vir um parasita amarelo (referéneia chavista 0s opositores) quebrando uma vidraga, entregue-o as autoridades.” Capriles respondeu as acusagdes por meio do Twitter, “Todos os focos de saques, 8 sto dirigidos pelo PSV para depois jogar a tesponsabilidade em cima escreveu (O Estadio de §. Paulo, 14/11/2013, A19).. Adialética conduz a tese de que a interagao discursiva é a realidade em que se estabelecem as relagdes sociais. Ao longo. de dez séculos, a proeminéncia passou de uma para outra das disciplinas do trivium. No entanto, sempre se manteve uma consciéncia da heterogeneidade discursiva ¢ do sentido da interagio social, Por exemplo, a disputatio, com seus sic et non, sed contra, respondeo, & 0 exercicio interativo de construgdo de discursos eontraditérios sobre uma dada tese, é um exercicio em que um discurso se constrl em oposigio a outro discurso, 26 Argumentagao Aretérica 6, de certa forma, filha da democracia. Nas ditaduras, nao se admitem pontos de vista divergentes. E na democracia que floresce a contradigao, base da re- trica, As relagGes sociais est&o sempre fundadas na heterogeneidade ea democracia 60 respeito ao dissenso. 86 pela palavra antifOnica se podem resolver as situagdes conflitantes sem aniquilar fisicamente 0 adversdrio, O principio — sempre traba- Ihoso ~ da democracia é a discussao exaustiva das opinides divergentes com vistas 4 tomada de decisdes. Alguns prefeririam calar as vozes dos oposicionistas, mas a marcha da humanidade mostra que os momentos de apogeu da retérica coincidem com os periodos de maior liberdade, de maior seguranga, de maior paz. Se a retérica estudou, de um lado, a construg{o discursiva dos argumentos ¢, de outro, a dimensao antifonica dos discursos, os estudos do discurso devem herdar a retérica. Que quer dizet, no entanto, herdar a retorica? Lé-la a luz dos problemas tedricos enunciados na atualidade. Quando se disse que a concepgtio da heterogeneidade linguistica j4 estava presente na criag&o da retérica, ndo se quis dizer que a retérica é uma prefiguragdo, por exemplo, do dialogismo bakhtiniano, pois uma visio teleolégica da ciéncia nao se sustenta, O que se estava f ler os temas abordados pela retérica sob a dtica das questdes tedri endo era s modernas. Herdar a retérica significa, pois, de uma parte, levando em consideragao séculos de estudos j4 realizados, descrever, com as bases dos estudos discursivos atuais, 0s procedimentos discursivos que possibilitam ao enunciador produzir efeitos de sentido que permitem fazer o enunciatario crer naquilo que foi dito; de outra, ana- lisar 0 modo de funcionamento real da argumentatividade, ou seja, o dialogismo presente na argumentagao. Tomemos um exemplo de descricao da construcao discursiva da argumentagao: a redugdo ao absurdo (em latim, esse procedimento argumentativo é denominado reductio ad absurdum ou reductio ad impossibile) ou argumento apagdgico (do grego apagogé, que significa “ago de desviar do caminho certo” e dai, “mudanga da base da argumentagaio”). Em légica formal, a reductio ad absurdum é 0 raciocinio no qual uma contradig&o é derivada de uma premissa, o que permite concluir que ela é falsa. Por exemplo, alguém afirma que nada existe. Nesse caso, outra pessoa pode replicar: Entéio, vocé nada disse acerca da existéncia. Ora, ¢ evidente que vocé acabou de dizer alguma coisa. Se nada existe, vocé n&o disse o que disse. Portanto, é falso que nada exista. Observe-se que a reductio ad impossibile se vale de dois principios basilares da ldgica formal: 0 da no contradigaio (uma proposigao nado pode ser verdadeira e falsa 40 mesmo tempo) ¢ o do tetceiro exeluido (ou uma proposigao é verdadeira ou é falsa; no ha uma terceira possibilidade), Arqumentagde @ diseurso 27 Em retorica, 0 argumento apagdgico consiste em assumir uma determinada proposig’io como verdadeira, para dela tirar conclusdes cujas consequéneias silo absurdas, isto é, impossiveis, ilégicas, ridiculas, contrarias ao bom senso ou a um prinefpio anteriormente admitido e, assim, mostrar a falsidade da premissa. Tome- mos alguns exemplos: a) Uma mie pergunta a um filho por que ele comecou a fumar, Ele responde que todos os seus amigos o fazem. A mie diz entdo: Se todos se jogarem do alto da ponte Rio-Niterdi, vocé também o fara? b) — 0 principio central da homeopatia diz que a gua retém a meméria das substancias nela dissolvidas, mesmo quando a solucao é tao fraca que ne- nhum trago da substancia original estd nela presente, — Se esse principio é verdadeiro, os remédios homeopiticos nao prestam, pois a Agua adquire todas as substancias quimicas benéficas, mas também as maléficas das diferentes substincias. Se as figuras de retérica nao devem ser consideradas enfeites do discurso, ento precisam ser analisadas em sua dimensfo argumentativa. Os tropos e as figuras, isto é, as figuras em que ha alteragdo de sentido e aquelas em que nao ha, sao ope- ragdes enunciativas para intensificar e, consequentemente também, para atenuar o sentido, O enunciador, visando a avivar (ou abrandar) o sentido, realiza quatro operagdes possiveis, j4 analisadas pelos retores antigos: a adjungdo ou repetigdo com o consequente aumento do enunciado; a supress%io com a natural diminuigao do enunciado; a transposi¢%io de elementos, ou seja, a troca de seu lugar no enunciado; ea mudanga ou troca de elementos. Os tropos seriam uma operagao de mudanga de sentido. No entanto, como os tropos sio uma nao pertinéncia semantica, que cria uma nova pertinéncia, niio se pode considerd-los, pura e simplesmente, uma troca semantica. Na verdade, 0s tropos realizam um movimento de concentragao seman- tica, que é caracteristica da metéfora, ou um movimento de expansiio semantica, que é a propriedade da metonimia f Exemplifiquemos com uma operagao de redugaio do enunciado. Chama-s anacoluto, do grego anacélutos, que significa “sem sequéncia”, a figura em que se topicaliza um termo qualquer, para enfatiza-lo, mas, ao realizar essa operagtio, omite-se um conector que rege 0 elemento topicalizado e, por essa razao, ele fica sem fungao sintatica na frase. Ele torna-se entio apenas o topico de um comentario, Normalmente, a topicalizagao, ou seja, & operagdo que faz de um constituinte da frase 0 tépico, isto é, o tema, que seri comentado, é marcada pelo algamento desse

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