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Adam Kuper A Reinvencao da Sociedade Primiti Transformacoes deum Mito ord en Alga (©) 2005 Adam Kuper (©) 2008 EDUFPE (versio brasileira) Capa: Sérgio Siqueira Foto da capa: **Mulher Mameluca, *Albert Eckhout** *1641, National Museum of Denmark Diagramacio: Gilberto José Revisio.final: Lady Selma Ferreira Albernaz Kuper, Adam ‘A reinvengio da sociedade primitiva : transformages de um mito / Adam Kuper ; tradugdo Simone Miziara Frangella ; tevisio Aécio Amaral. ~ Recife : Ed. Universitéria da UFPE, 2008. 340 p. I, fig, tab. Inclui bibliografia e indice ISBN 978-85-7315-481-8 (broch.) 1. Sociedades primitivas. 2. Evolugio social. 3. Totemismo. I. Titulo. 316.32 CDU (2. ed.) UFPE 3017 CDD (22. ed.) BC2008-022 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodugdo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gréficos, micro-filmicos, fotogréficos, reprogrificos, fonograficos ¢ videograficos. Vedada a memorizagio e/ou a recuperacio total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a inclusio de qualquer parte da obra em qualquer programa juscibemnético. Essas proibiges aplicam-se também s caracteristicas graficas da obra ea sua editoragio. Sumario Figuras e tabelas 9 Prefacio a edigao brasileira. 1 Prefacio. 15 PARTEI A idéia de sociedade primitiva 1 10 mito da sociedade primitiva 19 2 Barbaros, selvagens, primitivos. 41 PARTE II Lei antiga, sociedade antiga e totemismo.... 63 3A teoria patriarcal de Henry Maine.... 65 4 Lewis Henry Morgan e a Sociedade Antiga . gi 5A questao do totemismo.. 119 PARTE III Evolugao e difusao: Boas, Rivers e ........ 159 Radcliffe-Brown 6 Os boasianos ea critica ao evolucionismo 161 7 De Rivers a Radcliffe-Brown 187 PARTE IV Descendéncia e alianga 221 8 A teoria da descendéncia: uma fénix das cinzas... 223 g Rumoao intelecto: a teoria da alianga eo totemismo .... 245 PARTE V De volta ao comeco 273 10 O retorno do nativo. 275 11 Conclusaéo 297 Referéncias bibliograficas ..... 305 indice remissivo .. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Parte I A Idéia de Sociedade Primitiva Oarrogante desprezo que um povo civilizado nutre pelos seus vizinhos barbaros tem causado uma negligéncia singular nas observagSes sobre estes, e esta falta de cuidado tem sido agravada as vezes pelo medo, pelo preconceito religioso, e mesmo pelo uso destes proprios termos — civilizagao e barbarie — transmitindo as pessoas a impressao de uma diferenga néo somente em grau, mas também em espécie. (Henry Summer Maine, Ancient Law (1861), Ppp. 116-17)" ‘Todas as citagdes do presente livro foram traduzidas pela tradutora. As referéncias da pagina das citagdes, no entanto, sio das edigdes originais utilizadas pelo autor, cujas referéncias bibliograficas se encontram no final do livro. Capitulo 1 O Mito da Sociedade Primitiva sociedade primitiva foi considerada inicialmente um ssunto para estudiosos do Direito. O pai fundador da antropologia britanica, E. B. Tylor, comentou em 1865 que a investigagdo de questées tais como a forma do matriménio primitivo “pertence propriamente a este tema interessante, mas dificil e praticamente pouco desenvolvido, da Jurisprudéncia Comparativa de ragas inferiores; e ninguém que nao fosse versado em Direito Civil poderia lhe fazer justiga.”! Os estudos pioneiros foram escritos por juristas — Henry Maine, Johannes Bachofen, J. F. Mc Lennan, Lewis Henry Morgan. As questées que eles investigaram — 0 desenvolvimento do matriménio e da familia, da propriedade privada e do Estado — foram concebidas em termos legais. Sua fonte inicial, seus estudos de casos comuns foram fornecidos pelo direito romano. Se ha um livro a ser colocado a frente dos estudos vitorianos sobre sociedade primitiva, é provavelmente Ancient Law de Henry Maine, publicado em 1861, dois anos depois do A Origem das Espécies. A maior parte das idéias especificas de Maine foram logo descartadas; porém ele redefiniu uma nocio classica da condigéo humana original, e a fez parecer diretamente relevante para os interesses de seus contemporaneos. Maine supds que os primeiros seres humanos eram membros de um grupo coletivo familiar comandado por um pai des- \E.B, Tylor, 1865, Researches into the Early History of Mankind, p. 277. potico. Gradualmente, os patriarcas mais poderosos atrairam parias da sociedade para se juntar a eles. A associagao local se tornou cada vez mais importante.’ Por fim, as sociedades baseadas no parentesco foram substituidas por sociedades baseadas no territério. Esta transicao do sangue para a terra, do status para o contrato, foi a grande revolucdo na histéria humana. No mesmo ano em que Ancient Law foi publicado, um professor suico de dircito romano, Johannes Bachofen, releu os mitos gregos como um documeto sociolégico e chegou A surpreendente conclusio que a estrutura original familiar nao era patriarcal, mas sim matriarcal. Em 1865, um jurista escocés, J. F. Mc Lennan, reagindo 4s teorias de Maine, obteve semelhante conclusao 4 de Bachofen, mas aparentemente sem conhecer o trabalho deste. A publicagio de Primitive Marriage de McLennan por sua vez inspirou um advogado americano, Lewis Henry Morgan, a desenvolver a mais influente destas imagens novas de instituigdes sociais primordiais. Seu livro mais conhecido, Sociedade Primitiva, apareceu dezesseis anos depois de Ancient Law. O livro ecoou o titulo de Maine e pertenceu ao mesmo universo de discurso. Esses ndo eram textos convencionais de direito; mas o direito em si nfo era, naqueles dias, um campo restrito. Ele incluia a historia do direito, e prontamente deu espaco para histérias especulativas sobre a origem da lei na sociedade primitiva. Grandes questées filos6ficas foram levantadas para debates, os quais delineariam as recentes teorias sobre historia e sobre a natureza humana. A presenga maciga de Darwin pairou sobre todas as discussdes a respeito do desenvolvimento humano na Inglaterra vitoriana, mas os juristas geralmente se sentiam mais em casa com as idéias de Herbert Spencer e dos utilitaristas. Macaulay, Stubbs, Freeman, e Froude os confrontaram com novas teorias sobre as origens antigas da constituigdo britanica?. Eles também reagiram as descobertas da filologia alema, mediadas na Gra-Bretanha por Max Miiller. E eles trocaram idéias sobre as origens e a evolugdo humana nas novas sociedades “antropolégicas”. A Société d’Anthropologie de Paris foi fundada em 1859, ¢ iniciativas similares se seguiram em Londres em 1863 em Berlim em 1869 (cada uma, naturalmente, com sua propria revista). 2 Ver J. W. Burrow, 1981, A Liberal Descent: Victorian Historians and the English Past. 20 a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 5. Cada cla era concebido como descendente de um deus animal ou vegetal, que era reverenciado. Isto era “tote- mismo”. 6. As “sobrevivéncias” destas instituigdes poderiam ser identificados nas ceriménias ou em formas de linguagem das sociedades primitivas contemporaneas. 7. Finalmente, depois de uma grande revolugio, talvez a maior na histéria humana, os grupos de descendéncia definharam, os direitos de propriedade privada foram estabelecidos, a familia moderna nasceu, e um Estado territorial emergiu. A rapidez com a qual os antropélogos desenvolveram a idéia de sociedade primitiva estarrece. No entanto, sua persisténcia é ainda mais extraordinaria. As historias convencionais da antropologia transpassam uma sucessio de teorias quase filoséficas, mas todas estas teorias levaram 4 mesma idéia de sociedade primitiva. Este protétipo persistiu por bem mais de cem anos, apesar do fato de que a investigacéo empirica sistematica das sociedades “primitivas” remanescentes comegou a ser empreendida em todas as escalas apenas na ultima década do século XIX. Nada disso seria particularmente notdvel se a nocdo de sociedade primitiva fosse substancialmente pontual. Mas ela nao o é. O conceito como um todo é fundamentalmente débil. Nao ha nenhuma via sensata na qual se pode especificar 0 que é uma sociedade primitiva. O termo implica algum ponto de referéncia histérico. Ele presumivelmente define um tipo de sociedade que antecede formas mais modernas, andlogo a historia evoluciondria das espécies naturais. Entretanto, as sociedades humanas nao podem ser tragadas retroativamente até um ponto singular de origem. Tampouco ha algum meio de reconstituir formas sociais pré- histdricas, ou de classifica-las e alinha-las eu uma série temporal. Nao ha fosséis de organizagao social. O ponto inicial do Alto Paleolitico Os seres humanos plenamente modernos se desenvolveram na Africa ha cerca de 150.000 anos. Os primeiros migrantes foram para 0 Oriente Médio ha mais de 40.000 anos e entraram na Europa ha cerca de 22 35.000 anos. Aqui eles gradualmente deslocaram a populagéo de Neanderthal, que representava uma variagéo humana anterior, igual- mente de origem africana. Estes humanos plenamente modernos estado associados a uma grande revolucdo cultural. Os primeiros tracos desta foram achados no Oriente Médio. Ha cerca de 30.000 anos atras, chegou na Europa. Em termos arqueolégicos, a revolugio marcou a transigéo da longa era Paleolitica para o Alto Paleolitico. Nao foi uma revolugao veloz, e alguns arquedlogos sugerem que ganhou forga na Europa apenas 25-20.000 anos atras. Paralelamente, na Africa, a mudanca das sociedades da Média Idade da Pedra para as da Alta Idade da Pedra ocorreu ha apenas 20.000 anos. No entanto, apesar de lentas, modificagdes muito grandes aconteceram no modo de viver humano. Richard Klein julga que a transic&o para o Alto Paleolitico “sinaliza a mudanga mais fundamental no comportamento humano que o registro arqueolégico pode revelar” desde a invengao das ferramentas de pedra ha 1.5 milhdes de anos atras3. Lewis Binford enfatiza particularmente “a elaboracao do enterro; a arte; os ornamentos pessoais; os novos materiais, tais como 0 osso, os chifres e a pedra macia; 0 movimento de longa distancia e/ou a circulagao de bens; e uma variacdo crescente de tamanho, duragao e contetdo de lugares”. Esta quantidade de inovacdes levou Binford a concluir que uma revolucéo mais profunda aconteceu. A linguagem se desenvolveu, linguagem no sentido modemo, um veiculo criativo e flexivel, e foi a linguagem que criou as condigSes para a “aparecimento da cultura”, Tais mudangas fundamentais devem ter criado repercussdes na maneira pela qual as comunidades estavam organizadas. No entanto, é muito dificil dizer como eram as sociedades do Alto Paleolitico. Eram claramente de pequena escala. Sua economia era baseada na caca e na coleta. Havia provavelmente pouca estratificacdo. O fogo era controlado e utilizado para cozinhar, e ha sinais do que devem ter sido fogos domésticos, mas nenhuma conclusao pode ser tragada sobre estes terem 3 Richard Klein, 1989, The Human Career. 4 Lewis Binford, 1989, ‘Isolating the transition to cultural adaptations’ in E.Trinkhaus (ed.) The Emergence of Modern Humans, pp. 35-6. 23 sido unidades domésticas; e, se o eram, quem as habitava, ou se mulheres e homens possuiam tarefas diferentes. As pessoas enterravam seus mortos, talvez uma indicacgao de sentimentos religiosos. Alguns acadé- micos especulam que a arte das cavernas reflete crencas em um mundo espiritual. Entretanto, pode-se dizer pouco além sobre as idéias cosmo- légicas correntes durante o Alto Paleolitico com seguranga. Em todo o caso, nio se pode supor que todas as sociedades do Alto Paleolitico eram similares. Ao contrario, havia provavelmente variagdes locais em crengas e costumes. Afinal, havia diferencas tecnoldgicas significativas entre assentamentos vizinhos, o que levou a troca de bens, em alguns casos através de longas distancias. Em suma, a evidéncia arqueolégica pouco pode nos dizer sobre a natureza das sociedades do Alto Paleolftico, tampouco sobre a extensao da conformag3o dessas a um padrao comum. E£ apenas com o desen- volvimento da escrita, em torno de 7.000 anos atrés, que uma pré- histéria sociologicamente informada se torna possivel. H4, no entanto, uma estratégia alternativa para a reconstrugao do passado remoto. O proprio Darwin comparou variagées entre espécies vivas a fim de fazer dedugdes sobre seus ancestrais comuns. Os antropélogos sempre foram tentados, em uma visdo mais ingénua, a tratar populacées vivas como substitutas das sociedades da Idade da Pedra. Para os antropdlogos vitorianos, 0 povo mais préximo a Idade da Pedra eram ou os cacadores- coletores americanos ou os aborigenes australianos, mas os represen- tantes da Idade da Pedra mais famosos na antropologia moderna sao os bosquimanos !Kung do deserto do Kalahari. Estes devem sua proemi- néncia aos estudos conduzidos nas década de 1960 e de 1970 por Richard Lee e seus associados. Seu objetivo explicito era encontrar equivalentes vivos das primeiras populacées forrageadoras nas planicies da Africa Oriental. Mas eles imaginaram estar descobrindo o estado natural da humanidade. “Nao podemos evitar a suspeita de que muitos de nés foram levados a viver e trabalhar entre os cacadores por sentir que a condigao humana tendia a ser mais claramente delineada aqui do que entre outros tipos de sociedades”.s 5 Richard Lee and Irven DeVore (eds) 1968, Man the Hunter, p. ix. 24 Os pesquisadores dos !Kung participavam de um novo movi- mento na antropologia americana, que deu particular atengao as maneiras pelas quais pequenas populagGes de cagadores-coletores se adaptavam a ambientes naturais. Os !Kung nao possuiam ferramentas além de bastdes de cavar, recipientes de Agua feitos de casca de ovo de avestruz, roupas e bolsas de pele ¢ arcos e flechas simples, e eles tinham que sobreviver em um semi-deserto.6 No entanto, eles se sustenta- vam com uma quantidade surpreendentemente pequena de trabalho. Os adultos trabalhavam em média o equivalente a dois dias e meio por semana, e ainda assim a sua dieta era mais que adequada, de acordo com a maior parte dos padroes nutricionais estabelecidos. Isso contradisse a antiga visao de que cacadores-coletores viviam uma existéncia marginal. Marshall Sahlins aclamou os !Kung como uma sociedade afluente original’, que deviam estar a beira da hipérbole, mas pareceu razodvel supor que 08 antigos cagadores-coletores, que habitaram ambientes mais brandos, devem ter experenciado uma prosperidade ainda maior que os !Kung. A economia dos !Kung se baseava na divisdo de trabalho. Ambos homens e mulheres colhiam alimentos plantados, embora as mulheres gastassem mais tempo nesta atividade que os homens. No entanto, apenas os homens cagavam. A caca era, de algum modo, uma atividade paradoxal: arriscada, consumia tempo, era custosa em termos de gasto de energia. Era também menos confidvel que a coleta, ¢ os alimentos vegetais forneciam o cerne da dieta !Kung. Durante a maior parte do ano, apenas vinte por cento do influxo de alimentos era proporcionado pelos cagadores. Mas a carne era apreciada, e em estagdes de maxima producio a caca providenciava até noventa por cento da comida para o acampamento, e durante 0 ano um/uma !Kung garantiria entre trinta e quarenta por cento de suas calorias através da carne. Alguns teéricos entdo argumentaram que o desenvolvimento da caga teve um papel crucial na evolugdo humana. Macacos africanos & RB. Lee, 1979, The !Kung San: Men, Women and Work in a Foraging Society. > Marshall Sablins, 1972, ‘The original affluent society’ in Sablins Stone Age Economics, Capitulo 1. 25 a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. metade do século XIX acreditavam que estavam testemunhando uma transigéo revolucionaria. Marx definiu uma sociedade capitalista emergindo de uma sociedade feudal; Weber estava para escrever sobre a racionalizacao, a burocratizacdo, o desencantamento do velho mundo; Ténnies sobre a mudanca de comunidade para associacéo; Durkheim sobre a transformagdo das formas mecnicas para as orginicas de solidariedade. Cada um concebia 0 novo mundo em contraste com a “sociedades tradicionais”, mas por detrés desta “sociedade tradicional” eles discerniam uma sociedade primitiva ou primeva, a qual configurava a verdadeira antitese da modernidade. A sociedade moderna era definida, acima de tudo, pelo Estado territorial, a familia monogamica e a propriedade privada. A sociedade primitiva deve ter sido, portanto, némade, ordenada por lacos de sangue, sexualmente promiscua e& comunista. Houve também uma progressio na mentalidade. O homem primitivo era ilégico e supersticioso. As sociedades tradicionais eram submetidas a religido. A modernidade, por sua vez, era a idade da ciéncia. Mas, ainda que a sociedade primitiva fosse boa para pensar, produzia mais uma mitologia que uma ciéncia. Isto nao significa que nao houvesse desenvolvimentos na teoria, mas mesmo as mitologias também nao s&o estaticas. “Um mito, assim que passa a existir, j4 é modificado através da troca de narrador”, de acordo com Lévi-Strauss. “Alguns elementos saem, e sao substitufdos por outros, as seqiiéncias mudam de lugares, e a estrutura modificada se move em uma série de estados, variagdes das quais, no entanto, ainda pertencem ao mesmo conjunto”. Essas transformagdes nio resultam simplesmente em mudancas peque- nas, em diferengas que podem ser reduzidas a “pequenos incrementos negativos ou positivos”. Antes, as transformag6es sao realizadas por manipulagées sistematicas do mito como um todo, e elas produzem “relacionamentos distintos, tais como contrarios, contradicées, inversdes e simetrias”. Nao havia nada particularmente primitivo sobre essa forma de pensamento. “O tipo de légica no pensamento mitico é téo rigoroso quanto o da ciéncia moderna”, insiste Lévi-Strauss, “e a diferenga reside + Claude Levi-Strauss, 1961, The Naked Man, p. 675. 30 nao na qualidade do processo intelectual, mas na natureza das coisas ao qual este é aplicado”.") Em 0 Pensamento Selvagem, ele desenvolveu 0 tema de que a imaginacao “selvagem” (ou inculta, nao domesticada) trabalhava em formas comparaveis ao pensamento cientifico sofisticado, € aos processos que produzem grande arte, Até aonde ele esta correto, teorias cientificas podem ter muito em comum com os mitos amazénicos, cientistas podem pensar de algum modo como artistas, e talvez nés todos pensemos, ao menos as vezes, como os indios amazénicos. E, ainda assim, ha certamente uma grande diferenga entre o ideal estabelecido de pensamento cientifico e o que Lévi-Strauss chama de “a légica do concreto”. As teorias cientificas deveriam ser aperfeigoadas. O entendimento deveria avancar. Nao se volta atras na ciéncia. Mas, colo- cando de forma simples, se um argumento avanca virando um argumento anterior de cabeca para baixo, entio em algum momento alguém ird efetuar uma transformagdo seguinte colocando-o na posicao inicial. Uma série de transformagées estruturais tende a acabar onde se iniciou. E parece que modelos sucessivos de sociedade primitiva representam transformagdes diretas, mesmo mecanicas, de seus predecessores. De fato, este livro 6 em grande medida uma consideracao das transformacées de uma ilusao dentro de um discurso cada vez mais hermético. Entra Darwin E freqiiente ver a rejeigaéo da realidade da sociedade primitiva como uma negacao do Darwinismo. Nada poderia ser menos verdadeiro. As teorias darwinianas direcionam a atengao para variagdo, para a adaptacao a condicées locais e, conseqiientemente, para a diversificagao. Uma das poucas coisas que pode seguramente ser dito sobre as primeiras sociedades humanas é que elas devem ter representado uma variedade de adaptacdes. Uma vez que as variacdes ecoldgicas restringem a organiza- cdo social, especialmente quando a tecnologia é simples, haveria dife- rengas considerdveis na estrutura social. Em base puramente teérica, um darwiniano poderia relutar em acreditar que as primeiras sociedades Claude Levi- traUuss, 1963, Structural Anthropology, p. 230. 31 tiveram todas a mesma forma, muito menos que elas foram orientadas por alguma dindmica interna para gerar uma série comum de transformagées. Isto era 6bvio para alguns dos antopdlogos vitorianos. Foi por estas razdes que Henry Maine, um ndo-darwiniano, rejeitou a idéia que todas as sociedades tinham passado pelos mesmos est4gios. Até onde eu saiba, nao ha nada na histéria registrada da sociedade que justifique a crenca de que, durante 0 vasto capitulo de seu crescimento, © qual nao esta ainda totalmente escrito, as mesmas transformacdes da constituigao social sucedessem uma a outra em todos os lugares, de forma uniforme, sendo simultinea. Uma grande forca residindo nas profundezas da natureza humana, e nunca estagnada, deveria sem diivida, ao longo do tempo, produzir um resultado uniforme, a despeito das grandes variedades que acompanham a luta inexoravel pela existéncia; mas é um tanto inacreditavel que a acao desta forga fosse uniforme do inicio ao fim. Aorigem do homem “Origem do homem agora provada. — A metafisica deve florescer. — Ele que entende baboon faria mais pela metafisica do que Locke.”'s. Darwin colocou esse famoso silogismo em seu “Notebook on the Man”, que ele expds em 1838. Seu tema central era que todas as atividades mentais podem ser reduzidas a processos neurais. Mesmo o amor divino era uma funco da organizagiio do cérebro — “oh, seu Materialista!"'6 Huxley havia demonstrado que os cérebros humanos eram estrutu- ralmente similares aos de outros primatas, embora fossem maiores e presumivelmente mais complexos. “Se as varias faculdades mentais gradualmente se desenvolvessem, 0 cérebro quase certamente se tornaria maior”, concluiu Darwin. “Ninguém, eu presumo, duvida que a grande proporcao que o tamanho do cérebro do homem ocupa em seu corpo, comparado com a mesma proporcao no gorila ou no orangotango, esta claramente associada com seus poderes mentais maiores””” “Henry Maine, 1883, Dissertations on Early Law and Custom, pp. 218-19. '5 Howard E. Gruber, 1974, Darwin on Man, p. 281. Adrian Desmond and James Moore, 1991, Darwin, p. 250. Charles Darwin, 1871, The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, p.81. 32 A especializacao do cérebro foi uma conseqiiéncia da selegio natural. Os selvagens viviam nas mesmas condigdes que os outros animais. A sobrevivéncia era extremamente incerta. “Sabe-se que os selvagens sofrem severamente de fomes recorrentes; eles nao reforgam sua comida por meios artificiais. Eles raramente abstém-se do casamento, e geralmente se casam jovens. Conseqiientemente, eles devem estar sujeitos a ocasionais lutas severas pela existéncia, e os favorecidos sobreviverao sozinhos”'®, Estes individuos favorecidos também se reproduziriam fora do grupo. “Podemos ver que, neste estado mais rudimentar de sociedade, os individuos que eram mais sagazes, que inventavam e usavam as melhores armas ou armadilhas, e que eram os mais habeis ao se defender, criariam um némero maior de filhos. As tribos que inclufam 0 maior namero de homens dotados dessa forma, cresceriam em namero e suplantariam outras tribos.”” O desenvolvimento do cérebro também promoveria qualidades sociais e morais (as quais Darwin reconheceu serem de uma importancia maior que a simples inteligéncia). Um senso moral podia ser encontrado entre outros animais, mas seu alto desenvolvimento entre seres humanos foi o resultado de uma selecéo natural “auxiliada pelo habito adquirido”.?° Inteligéncia e principios morais se desenvolveram juntos. E, 4 medida em que as sociedades avancaram, elas ficaram progressiva- mente adeptas a assimilar valores morais. “As causas mais eficientes do progresso parecem consistir de uma boa educacaio durante a juventude, quando o cérebro é inculcavel, e de um um alto padrio de exceléncia, impresso pelos homens mais habeis e melhores, incorporado nas leis, nos costumes e nas tradicées da nacio, e Darwin, Descent of Man, p. 96. Darwin, Descent of Man, p. 196. Darwin, Descent of Man, p. 199. 33 reforgados pela opiniao puiblica.”* “Assim, as qualidades morais e sociais tenderiam a avancar lentamente e a serem difundidas pelo mundo.” Havia um paradoxo aqui. As “qualidades morais” se desenvol- veram e se espalharam através da selecao natural. Porém, ainda que elas tenham sido um sucesso para a comunidade, isto aconteceu com algum custo ao individuo. Nao deve ser esquecido que, embora um alto padrdo de moralidade garanta pouca ou nenhuma vantagem ao individuo e seus filhos sobre os outros homens da mesma tribo, ainda assim um aumento no numero de homens bem-dotados e um avanco do padrao de moralidade certamente dara uma vantagem imensa de uma tribo sobre a outra. Uma tribo incluindo muitos membros, os quais, por possuir em alto nivel o espirito de patriotismo, fidelidade, obediéncia, coragem e simpatia, estive-ram sempre prontos a ajudar um ao outro, e por se sacrificar pelo bem comum, seriam vitoriosos sobre a maioria das outras tribos: e isso seria selegio natural.23 Mas isto é selego natural? Parece mais com o que hoje é desdenhosamente descrito como “selegao grupal”. A doutrina de Darwin tratava da selecao natural funcionando sobre os individuos. No entanto, ele achava que os seres humanos haviam se tornado espécies domes- ticadas, e nas espécies domesticadas 0 reprodutor impée suas proprias exigéncias, selecionando por qualidades que podem nao funcionar muito bem na natureza. Darwin observou com preocupacdo que os ganhos da selecdo natural estavam sendo dissipados inconseqiientemente nas sociedades modernas mais avangadas. Riqueza e poder cram herdados, mesmo se os herdeiros fossem inaptos. As pessoas protegiam seus parentes mais fracos e até os encorajavam a se reproduzir. Tampouco os individuos mais adequados eram necessariamente recompensados com vasta prole. Darwin lamentava que os homens agora escolhiam suas mulheres com critérios frivolos, e que homens ambiciosos e bem- 2 Darwin, Descent of Man, p. 220. Darwin, Descent of Man, p. 200. 23 Darwin, Descent of Man, p. 203. 34 sucedidos tendiam a adiar 0 casamento e ter poucos filhos, enquanto que os pobres reproduziam como coelhos. Darwin concluiu que, 4 medida em que a tecnologia avangava, a selecdo natural tornava-se menos decisiva. Sobre esse assunto, ele citou as visdes de Alfred Russel Wallace, co-autor da teoria da selecdo natural: Sr Wallace... argumenta que o homem, depois de ter adquirido par- cialmente aquelas faculdades morais ¢ intelectuais que os distingiie de animais inferiores, teria se tornado pouco propenso a modificagdes corporais através da selecio natural ou quaisquer outros meios... Ele inventa as armas, as ferramentas e varios estratagemas para procurar comida e se defender. Quando migra para um clima mais frio usa casaco, constréi abrigos e faz 0 fogo; e, com a ajuda do fogo, cozinha o alimento que seria indigesto de outra foma. Ele auxilia seus companheiros de muitas maneiras e antecipa eventos futuros. Mesmo em um tempo remoto ele praticava alguma divisao do trabalho.24 “Evolucionismo” ou Darwinismo? Nas duas décadas que se seguiram a publicagao da Origem das Espécies, em 1859, surgiram uma série de monografias que lidavam de uma maneira nova e urgente com a sociedade primitiva, a evolucao do casamento e da familia, e a elevagdo da ciéncia em detrimento da magia e da religiio. Os autores destes livros (que incluiam mais notavelmente Maine, Tylor, Lobbock, McLennan e Morgan) desenvolveram um discurso coerente novo. Referindo-se mutuamente aos seus trabalhos, e a despeito das diferengas sobre muitas quest6es que pareciam ser para eles de importancia decisiva, eles geralmente concordavam (embora Maine tenha tido suas diividas) que um avanco direto poderia ser estabelecido a partir da sociedade primitiva, através de varios est4gios intermediarios, até a sociedade moderna. Quando a antropologia se estabeleceu nas universidades no século XX, e as histérias da disciplina comecaram a ser escritas, esses antropélogos pioneiros foram convencionalmente agrupados como “evolucionistas”. No entanto, J.W. Burrow protestou contra a invocagao 24 Darwin, Descent of Man, p. 195-196 35 ritual do nome de Darwin para explicar a natureza da antropologia vitoriana. Em termos de profissio, os antropélogos pioneiros eram juristas, classicistas e tedlogos. Eles estavam mais suscetiveis a influéncia de historiadores e filésofos do que aos achados dos cientistas naturais, e estavam mais impressionados pelas ligdes de filologia comparativa que pela biologia darwiniana. “Darwin foi sem ddvida importante”, concluiu Burrow, “mas é um tipo de importancia impossivel de estimar precisa- mente. Ele nao foi certamente o pai da antropologia evoluciondria, mas possivelmente foi seu tio rico.”*5 Admitamos, um tio rico nao deve ser desconsiderado. No entan- to, a teoria darwiniana ofereceu um nimero de pistas distintas, e foi possivel selecionar dentre elas. A tese de que os seres humanos tinham evoluido dos macacos africanos perturbou profundamente muitos contemporaneos. “Meu querido e velho amigo” escreveu o capitéo aristocratico Robert Fitzroy, outrora do HMS Beagle, para o companheiro de um das suas viagens, Charles Darwin, “eu, ao menos, nao posso achar nada ‘enobrecedor' na idéia de ser um descendente mesmo do mais antigo primata” 2° Fitzroy estava suficientemente preocupado a ponto de comparecer ao famoso debate sobre A Origem das Espécies de Darwin, 0 qual ocorreu em Oxford, em junho de 1860. O Bispo Wilberforce quis saber se Huxley descendia de um macaco pelo lado da famflia de sua avé ou da de seu avé. “O Senhor o entregou em minhas maos”, Huxley murmurou ao seu vizinho, e respondeu: “Se eu tivesse que preferir um primata miserével como avé ou um homem altamente dotado pela natureza e possuidor de grandes meios ¢ influéncia, mas que emprega estas qualidades com um mero propésito de trazer 0 ridiculo para uma discussao cientifica séria — eu afirmaria sem hesitagio minha preferéncia pelo primata’. Houve uma comogio na sala, durante a qual Fitzroy se levantou, agitou uma cépia da biblia, implorou a audiéncia para acreditar na palavra sagrada de Deus, e expressou seu arrependimento por ter dado a 25 J,W.Burrow, 1966, Evolution and Society, p.114 2% Janet Browne, 2002, Charles Darwin: the Power of the Place, p.94 36 a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Ernst Haeckel era téo darwiniano quanto lamarckista. Um movimento neo-lamarckista floresceu nos Estados Unidos durante a década de 1880, quando adquiriu uma tendéncia fortemente teolégica. Na Gra-Bretanha, o mentor de Darwin, Charles Lyell, havia publicado toda uma critica a respeito de Lamarck, e o proprio Darwin olhava a teoria com desprezo. “Que os céus me protejam”, escreveu ele devotamente, “do absurdo de Lamarck da ‘tendéncia ao avango', ‘adaptagdes a partir da lenta disposigao dos animais’, etc’33 Mas o tratamento de Lyell foi tao suave que ele converteu o filésofo social Herbert Spencer ao Lamarckismo, e Spencer por sua vez influenciava um ntimero de pensadores sociais, incluindo varios dos antropdlogos vitorianos. Burrow est4 certamente correto: a influéncia direta da teoria darwiniana sobre 0 pensamento das primeiras duas geracées de antropélogos foi difusa e freqiientemente superficial. Para Tylor, Morgan, Frazer e Marret, Darwin oferecia a garantia de que a histéria dos seres humanos era uma, mesmo se pudesse ser conferida maior ou menor importinciase a diferenciagdo racial. Ele também propiciou uma explicagao biolégica para o progresso gradual de racionalidade - na medida que os seres humanos se desenvolviam, seus cérebros se tornavam maiores. Mas ele nao perturbou as idéias sobre progresso cultural que os vitorianos herdaram dos filésofos do século XVIII.34 Ao contrario, Darwin estava confiante que a civilizacéo havia progredido, e a moralidade junto com ela. Nos deveriamos olhar para tras e exultar: Dificilmente poderia haver divida de que os habitantes de... quase todo 0 mundo civilizado, estiveram alguma vez em uma condigio de barbarie. Acreditar que o homem foi civilizado de forma aborigene e depois sofreu degradagao completa em tantas regides, é ter uma baixa ¢ desprezivel visio da natureza humana. E aparentemente uma visio mais verdadeira e mais animadora a de que o progresso tem sido muito mais amplo do que 0 retrocesso; de que o homem tem emergido, ainda que em passos lentos e interruptos, de uma condig&o baixa para um padrao mais alto até agora obtido através do conhecimento, na moral e na religiao.35 3 Citado em L.J. Jordanova, 1984, Lamarck, p.106 4 George W. Stocking, 1987, Victorian Anthropology, Capitulo 5 3% Darwin,Descent of Man, p.224 39 Capitulo 2 Barbaros, Selvagens, Primitivos mito dos antropélogos é ele préprio uma transformagao de mitos filoséficos mais antigos. O discurso ganhou um novo impeto nas décadas de 1860 e 1870, mas ele é a continuacdo de uma conversa bem mais longa, um antigo debate, de cujas pressuposicdes subjacentes nem Darwin escapou completamente. Essas premissas estao encapsuladas em trés palavras inglesas ainda potentes, as quais tém sido utilizadas para descrever populagdes além dos limites da civilizagao: barbaros, selvagens e primitivos. Tucidides afirmou, em sua Histéria da guerra do Peloponeso, que Homero nao chamava seus herdéis de gregos. “Ele tampouco usa 0 termo barbaro”, adicionou, “provavelmente porque os helenos nao haviam sido ainda separados do resto do mundo por uma designacio distinta”) Um senso de unidade grega foi forjado apenas quando as cidades-Estado isoladas se juntaram para enfrentar a ameaga apresentada pela Pérsia, sob comando de Dario e seu filho Xerxes, nos primeiros anos do século V a.C. Os gregos adotaram entao a descrigio “barbaro” para seu inimigo comum. Eles diziam que os barbaroi gaguejavam como idiotas, ou que balbuciavam como nenéns, ou ‘Thucydides, 431 ace, History of the Peloponnesian War, Book 1, Chapter 1. (Trans. Richard Crawley.) Simon Hornblower, no entanto, mostra que Carians falantes das linguas barbaras’ sio mencionados na Iifada (ii.867). Ver Hornblower, 1991, A Commentary on Thucydides, Vol 1, p.17. 41 grunhiam como animais — bar bar. Dai o nome. Termos mais refinados e corteses para estrangeiros, heterophone, “outra fala” e allogloss, “outra lingua”, insistiam igualmente na primazia dos gregos. A marca inicial dos barbaros era uma deficiéncia de linguagem. Como um nascimento de gémeos, os conceitos novos de gregos e barbaros estavam inextricavelmente conectados. “A escrita grega sobre os barbaros é, em geral, um exercicio de auto-definigdo”, Edith Hall escreve em seu estudo, Inventing the Barbarian, “porque o barbaro é freqiien- temente retratado como o oposto do grego ideal”. Os atenienses eram os gregos ideais, naturalmente, e os persas eram os protdtipos dos barbaros. Ainda assim, ambos os tipos opostos eram facilmente generalizados, e as diferengas obliteradas. Um viajante contestara, em Politico de Platao, que somente porque os gregos definiam os helenos como uma espécie, eles agrupavam todas as outras nagdes como barbaras, independentemente das diferengas de lingua. “Porque eles tinham um nome eles supdem serem igualmente de apenas uma espécie”. Contudo, uma vez admitido que havia tipos diferentes de barbaros, as variantes podiam ser invocadas a fim de representar os gregos de forma mais sutil, através de um jogo mais complexo de oposigées. O mestre desta estratégia era Herddoto, um contemporaneo um pouco mais velho de Tucidides, e o autor de outra grande narrativa das guerras persas. Herédoto era ele proprio meio-barbaro; sua mie era uma cariana da Asia Menor ocidental. Plutarco se referiria a ele em 100 d.C. como philobarbus, amante barbaro,3 e ele [Herédoto] ofereceu relatos geralmente simpaticos sobre um numero de povos barbaros, a quem ele atribuiu uma série de costumes. No entanto, Frangois Hartog demonstra que Herddoto trabalhou com dois contrastes basicos: gregos versus persas, e citas versus egipcios4. O povo mais antigo, os suaves egipcios, habitava a terra mais quente ao sul. O mais jovem, os duros citas, vivia no’ norte congelante, as margens do mundo habitado. 2 Edith Hall, 1989, Inventing the Barbarian: Greek Self-definition through Tragedy, p.1 3 Ver Simon Hornblower, 2004, “Herodotus” in Adam and Jessica Kuper (eds) The Social Science Encyclopaedia, 3" Edition. + Francois Hartog, 1988, The Mirror of Herodotus: The Representation of the Other in the Writing of the History. 42 a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. de serviddo, nem ricos nem pobres, sem contratos, sem sucessées, sem divisdes, sem ocupagoes a nao ser a de lazer, nenhuma preocupacao além do parentesco comum, sem roupas, sem agricultura, sem metal, sem utilizago de vinho ou trigo. As exatas palavras que significam mentira, traigio, dissimulagdo, avareza, inveja, menosprezo, perdio — nunca se ouviu. Quio longe desta perfeicio ele veria a repdblica que ele imaginou... Ha de se admitir que os brasileiros fizeram coisas terriveis, como por exemplo, matar e comer seus prisioneiros, mas, em meio 4 meméria viva, os franceses estavam torturando seus inimigos, ou queimando-os vivos. Isto era menos terrivel que comer o inimigo depois de sua morte? Nés podemos chamar os outros de barbaros se os julgarmos pelos padrdes da razdo pura, concluiu Montaigne, mas nao se os compararmos com nés mesmos, “que os ultrapassam em todo 0 tipo de barbaridade”.13 Montaigne sabia mais que Plato sobre os barbaros, e nao apenas porque ele estudara os relatos de exploradores, material a respeito do qual ele era cético. Cristoviao Colombo havia retornado ao velho mundo com sete indigenas raptados, que eram amplamente exibidos, e no século XVI os indios escravos e exibigdes eram banais na Europa. Quando Henrique II e Catarina de Médici fizeram uma entrada cerimonial na cidade de Rudo em 1550, eles foram recebidos por cortejos caracterizando gladiadores e elefantes, uma imitacao de batalhas marinhas, e um desfile de prisioneiros. Havia também uma reproducdo, em tamanho natural, de uma aldeia brasileira com trezentos habitantes nus, cingiienta deles eram indios genuinos, que tinham sido trazidos para a Franca por um mercador local. Eles exibiram danga e combates.’4 Montaigne afirmou ter encontrado alguns destes brasileiros em Rudo em 1562, ¢ ter conversado com um deles. O intérprete nao era confidvel, mas ele péde constatar que o indio tinha sido um lider resistente em sua terra natal. Escolhido por seu valor, seu privilégio era marchar para a batalha a frente de seus homens. Em tempo de paz, no entanto, sua tnica recompensa era ‘3 Montaigne, “Of cannibals”, p. 156 4 Michael Wintroub, 1998, “Civlizing the savage and making a king: the royal entry festival of Henri Ii”. 46 “que quando ele visitava as aldeias que dependiam dele, eles lhe abriam caminho através dos arbustos, os quais ele podia atravessar bem confortavelmente”. “Tudo isso nao é de todo mal”. comentou Montaigne, “mas qual é a utilidade? Eles nao usam cal¢as”.'s Montaigne iniciou esse ensaio sobre os canibais com outro conjunto de exemplos, os quais foram também escolhidos para deses- tabilizar a conviccao de seus leitores de que eles reconheceriam um barbaro se vissem um. Quando o Rei Pirro passava pela Itélia, apés ter feito um reconheci- mento da formago do exército que os romanos estavam enviando para enfrenté-lo, ele disse: “eu nao sei que barbaros sao esses” (porque assim ‘os gregos chamavam todas as nacdes estrangeiras), “mas a formacdo deste exército que estou vendo nao é barbara de modo algum”, Os gregos falaram 0 mesmo do exército que Flaminius trouxera para seu pais, assim também disse Filipe, vendo de uma colina a ordem e a distribuigéo do campo romano, sob reinado de Publius Sulpicius Galba. Portanto, deveriamos ter cuidado ao nos apegarmos a opinides vulgares, e julgar as coisas pelo meio da razio, nao pelo dizer popular.'6 Estes exemplos chegaram facilmente a um europeu educado do século XVI, bem versado em textos classicos. Porém, todas as anedotas de Montaigne falam de quanto os gregos eram forgados a reconhecer uma classe de barbaros, os romanos, como seus iguais no campo de batalha. Estes sao certamente mitos romanos. De acordo com Gibbon, os romanos a principio “se submeteram ao insulto, e deram a si mesmos livremente o nome de barbaros”. Mas, eventualmente, “eles reivindicaram isengao para Italia e as provincias submetidas a ela; e finalmente, transferiram a denominacio vergonhosa para as nacées hostis ou selvagens além do limite do império”.»7 Eles chamavam a costa norte da Africa de Barbarie (‘merecidamente', diz Gibbon). Urbanos e polidos, de mentalidade civica, Montaigne, “Of cannibals”, p. 159 % Montaigne, “Of cannibals”, p. 150 Edward Gibbon (1741 edition), The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, capitulo §1, p. 464, nota de rodapé sobre a discussdo dos berberes. a 47 disciplinados, poderosos, os romanos se passaram a se ver como estando lado a lado com os gregos contra os barbaros nas fronteiras. Respeitosos dos modelos gregos, os intelectuais romanos uti- lizaram os barbaros em novos experimentos conceituais. Aristételes havia esbocado uma histéria do desenvolvimento politico. A primeira sociedade fora a familia, cada famflia comandada por um homem mais velho. (“Como diz Homero: 'Cada um administre a lei para seus filhos e suas esposas”). Com o tempo, familias aparentadas juntaram-se em aldeias. Quando varias aldeias se unirem em uma comunidade completa anica, grande o bastante para ser auto-suficiente, o Estado comega a existir, originando-se nas necessidades simples da vida, e continuando a existir para manter uma vida boa. E, portanto, se as formas anteriores de sociedade sao naturais, assim também o é o Estado, pois é o fim delas, e anatureza de algo é seu fim. “Conseqiientemente, é evidente que o Estado é uma criacio da natureza, e que o homem é¢, por natureza, um animal politico”. A natureza pode ser uma garantia da razdo, e ha uma longa tradigo de preferir a natureza e os habitos naturais ao artificio.9 No entanto, as disposigGes naturais podem ser transcendidas por uma razao mais sofisticada. No segundo pardgrafo de De Inventione, publicado em 55 a.C., Cicero imaginou um tempo no qual as pessoas vagavam pelos campos como animais, apoiando-se em sua forca fisica e sem usar sua razao. Eles nao tinham noc&o dos deuses, ou de dever publico; nao havia casamento legitimo, nao havia lei. Entéo um grande homem apareceu e persuadiu um numero de pessoas a viverem unidas e a juntar trabalho stil e honroso. A principio eles estavam resistentes, mas sua sabedoria e eloqiiéncia os tornaram gentis e corteses. Ainda assim, a linguagem podia ser uma faca de dois gumes. Um tirano podia usar a retorica para enganar o povo simples. Neste mito, os barbaros sio ainda definidos em relagdo A linguagem: nao simplesmente lingua grega em si, mas ao discurso racional concebido mais amplamente. 8 Aristotle, Politics, Book 1, Part 1. AO. Lovejoy and G. Boas, 1935, Primitivism and Related Ideas in Antiquity. 48 a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Entra o selvagem Os barbaros foram um objeto de fecunda reflexao por mais de dois milénios, mas as viagens de descobrimento do fim do século XV trouxeram na volta novidades sobre uma figura ainda mais estranha: meio animal, meio homem, de acordo com alguns relatos. Ele foi batizado de selvagem. O adjetivo francés sauvage significava rastico, ndo culti- vado ¢ nao domesticado. Foi mais tarde utilizado para descrever pessoas grossas e violentas. Ao surgir na consciéncia da Europa com os primeiros telatos sobre os habitantes da América, o selvagem se misturou com os monstros da Idade Medieval, que combinavam tragos humanos e animais, e possuiam até mesmo atributos dos demGnios”?. No que foi talvez sua ultima peca, A Tempestade, escrita em 1610 ou 1611, aproximadamente trinta anos apés 0 ensaio de Montaigne sobre os canibais, Shakespeare apresentou 0 personagem Caliban, Seu nome é um acréstico de canibal. Meio homem, meio animal, o Gnico nativo da ilha, Caliban vive em um buraco na terra. Préspero assim o descreve: Um deménio, um deménio de nascenga, sobre cuja natureza jamais péde atuar a educacio... Caliban nao 6 apenas a antitese da pessoa civilizada. Ele é contrastado com outra criatura, Ariel, meio homem, meio espirito, que vive no ar. Caliban mal consegue falar, Ariel canta encantadoramente. Ambos esto presos, ao servico de Préspero, o mestre da ilha, mas enquanto Préspero se refere a Caliban como “meu escravo”, ele chama Ariel de “meu criado”. Prospero tratava Caliban a principio com gentileza, tentando ensiné-lo, e até mesmo compartilhando seus aposentos de dormir. Entao Caliban tentou estuprar a filha de Préspero, Miranda, e foi expulso. O nobre Prospero repreende Caliban por nao se beneficiar da sua instrugao: Tive piedade de ti; no me poupei canseiras, para ensinar-te a falar, nao se passando uma hora % Ver Pagden, The Fall of Natural Man, and Margaret T. Hodgen, 1964, Early Anthropology in the Sixteenth and Seventeenth Centuries, 50 em que no te dissesse o nome disto ou daquilo. Entao, como selvagem, nao sabias nem mesmo o que querias; emitias apenas gorgorejos, tal como os brutos; de palavras varias dotei-te as intengdes, porque pudesses tomé-las conhecidas... Ao que Caliban responde: A falar me ensinastes, em verdade. Minha vantagem nisso, é ter ficado sabendo como amaldigoar. © tom politico de A Tempestade parece ser bem diferente da visio cética de Montaigne a respeito da autoridade. Os nobres sio julgados de acordo com sua fidelidade ao rei verdadeiro. Seus criados e marinheiros bébados brigam entre si e sio subjugados apenas pela forga. Os selvagens esto além do limite da sociedade. Caliban tem de apanhar e ser torturado para ser submisso. O bom Ariel é um agente dedicado, embora Préspero tenha que lembra-lo (Ariel nao consegue se fazer lembrar) que ele tinha sido anteriormente o escravo de uma bruxa perversa, Sycorax, a mie de Caliban. Porque Ariel se recusou a cumprir seus desejos diabélicos, Sycorax o aprisionou em uma 4rvore, aonde ele permaneceu até Prospero libertd-lo. Ainda assim, ambos Ariel e Caliban clamavam constantemente pela sua liberdade. Caliban tenta escapar de Préspero para, no entanto, colocar-se 4 servigo de um marinheiro bébado, que lhe da licor. Ariel é finalmente libertado, pelo seu agradecido mestre, para voar afora o mundo da natureza (“Onde as abelhas sugam o mel, 4 sugarei eu... Alegremente, alegremente vou viver/ sob os ramos da selva florescente.) No entanto, o endosso de hierarquia e ordem da pega é ambiguo. O bom conselheiro, Gonzalo, olha por sobre a ilha de Préspero e imagina uma Utopia que ecoa 0 relato de Montaigne sobre o Brasil: Na repiiblica faria tudo pelos seus contrarios, Nio admitiria espécie alguma de comércio; nem o nome de magistrados; oestudo ficaria ignorado de todo: ricos e pobres 51 € 0s servicos, nenhum; Nenhum uso de metal, milho, vinho ou dleo. Nenhuma ocupacdo. Todos os homens, ociosos, todos. Eas mulheres, também; mas inocentes e puras. Faltaria, de igual modo, soberania... (‘Ainda assim ele seria o rei”, afirma um cortesio cético) Caliban e Ariel eram eseravos que podiam ser libertados pelo seu mestre, mas outros dramaturgos representaram o selvagem como um homem livre. Um pouco mais de meio século apés Caliban, um indio herdi proclama na pega de John Dryden, The Conquest of Granada: Sou tao livre quanto o primeiro homem feito na natureza aqui a base das leis de serviddo comecaram Quando incivilizado na floresta o nobre selvagem correu. Porque ent&o perdemos esta liberdade nativa? No século XVII, os filésofos se inspiraram em Cicero e imaginaram uma alternativa a narrativa biblica das origens humanas, que explicaria porque homens livres deviam sacrificar sua liberdade para seguir um rei. Um plano humano, um contrato social original, tomou 0 lugar de um pacto divino. Ao invés de uma queda do paraiso, seres humanos haviam avangado de uma condicdo aborigene proxima aquela dos animais em estado de natureza. Eles podiam ser livres, mas estavam desprovidos do conforto e da seguranca de uma existéncia social. Guiados pela luz da razio, individuos independentes mas vulnerdveis se juntaram, portanto, para formar uma sociedade. Thomas Hobbes, um refugiado da guerra civil € do regicidio na Inglaterra, refletiu sobre aqueles dias andrquicos. “Quando os homens vivem sem um poder comum para manté-los amedrontados, eles estéo naquela condicéo chamada guerra.” Eram desprovidos de industria, agricultura, navegacdo, construcdes. Eles nado “tinham conhecimento da superficie da terra; nenhum registro de tempo; nenhuma arte; nenhuma escrita; nenhuma sociedade; e, o pior de tudo, 52 com medo continuo e perigo de morte violenta; e a vida do homem, solitaria, pobre, repugnante, bruta e curta.”23 Para homens em condicgdes desesperadas, a sociedade oferecia seguranga. Na visao de Hobbes, foi isto que garantiu uma base racional para o poder absoluto da soberania. No entanto, o mesmo mito poderia ser utilizado para mostrar que a autoridade legitima deve depender do desejo do stidito. O contrato havia sido quebrado, Rosseau argumentou, o povo traido pelos lideres a quem eles haviam confiado seus privilégios e seus bens. Estas nogdes de “um estado de natureza” e um “contrato social” eram experimentos conceituais, mas Hobbes supunha que alguns selvagens ainda viviam nessa condigo original. “Pois os povos selvagens em muitos lugares da América, com excecao da autoridade de pequenas familias, das quais a harmonia depende do desejo natural, nao possuem nenhum tipo de governo, e vivem hoje em dia daquela maneira irracional”*4, Ao menos neste ponto, John Locke concordava com ele. “Assim, no inicio, todo o mundo era a América”*s Os relatos etnograficos deviam, portanto, ser incorporados em nossa propria histéria. Em 1724, Lafitau publicou seu Mouers des sauvages américains comparées aux mouers des premiers temps, no qual ele comparou sua prépria infor- magao sobre os indios do Brasil, parcialmente de primeira mao, com as crencas e costumes de povos separados deles por muitos séculos. E vivendo em continentes diferentes. “O taitiano esté em contato com a origem do mundo”, Denis Diderot concluiu uma geragdo mais tarde, “o Europeu, com o seu amadurecimento”.*6 Na segunda metade do século XVIII, um género de histérias universais se tornou moda. A cosmologia medieval da Grande Cadeia do Serf ganhou impulso, historicidade. Houvera um avanco de um estado # Thomas Hobbes, 1660, Leviathan, Ill, 14. % Hobbes, Leviathan, Parte 1, Capitulo XIU, 11 5 John Locke, 1690, The Second Treatise of Civil Government, Capitulo 5, paragrafo 49. 26 Denis Diderot, 1773, Supplement au Voyage de Bougainville. * A Grande Cadeia do Ser (The great chain of being ) é uma concepedo que teve origens com os filésofos neo-platénios na antigitidade classica, a qual teve grande influéncia no mundo medieval ocidental até o século XVIII. Trata-se de um sistema hierrquico que explica a ordem dos elementos que compdem o universo (seres vivos € elementos da natureza), (N. da T.) 53 original de selvageria, através da barbarie, para a condicao humana mais elevada, que agora era nomeada como civilizagao. Em francés, os termos civilité, politesse, e police (significando obediente a lei), remetem ao século XVI. Durante 0 século XVII, os povos com estas caracteristicas eram contrastados com os “selvagens” e os “barbaros”. Mas foi apenas em meados do século XVIII que o termo civilisation foi cunhado. Ele se tornou corrente, ao mesmo tempo que a palavra progresso adquiria seu sentido moderno, e dois neologismos foram logo estreitamente associados um com o outro.?7 O progresso foi caracterizado sobretudo pelo avanco da razo, e a razao foi encarregada em uma batalha épica de superar a resisténcia de sociedades tradicionais, com suas supersticdes, seus preconceitos irracionais, e a lealdade cega aos governantes cinicos. A vitéria final da civilizagdo era certa, pois ela podia chamar a ciéncia para auxilié-la: a expressio mais alta da razio, o conhecimento verdadeiro e eficiente das leis que informam sobre ambos natureza e sociedade. Quando a palavra civilisation foi difundida, o selvagem tornou-se sua antitese mais comum. A selvageria representava a condicao original da humanidade. A civilizacéo marcava o climax do progresso humano. Mas que estagios haviam se interposto? Na visdo grega, os povos antigos eram desprovidos da instituicao civil fundamental, a cidade. Cicero sugeriu que os primeiros seres humanos eram errantes solitdrios. Fles foram entio persuadidos a seguir um lider e formar uma sociedade. Montesquieu identificou ainda uma outra revolugdo, que marcou a transigéo da selvageria para a barbarie. “Ha esta diferenca entre as nagées selvagens e as barbaras”, escreveu ele no seu Espirito das Leis em 1748, “os primeiros sao clas dispersos, os quais, por alguma razdo particular, nao podiam ser agrupados em conjunto; e os tltimos eram, em geral, nacdes pequenas, capazes de se unirem. Os selvagens sao geralmente cacadores; os barbaros sao criadores de gado e pastores.”?8 Jacques Turgot, um economista pioneiro, e principal adminis- trador financeiro no governo de Luis XV na Franga, publicow seu Sur le 27 Ver Jean Starobinski, 1993, ‘The word civilization’ in Blessings in Disguise. 28 Montesquieu [1748] 1914, Spirit of the Laws, Book XVIII, 11 54 progrés successif de l'esprit humain em 1750. Este documento enfatizava o fator econémico e o desenvolvimento dos direitos de propriedade, cuja usufruto havia sido colocada por Locke na propria esséncia da liberdade. Turgot tracou um modelo de quatro estdgios de progresso econémico e social, marcados pelo avanco da caga para, primeiro, 0 pastoreio e, em seguida, a agricultura; e daf para 0 comércio e o mercado e a divisio de trabalho. Em 1755, em seu segundo Discurso sobre a desigualdade, Rousseau esbocou uma série similar de revolugées. Primeiro, individuos viviam espalhados entre os animais, com os quais eles estavam em competicao. Gradualmente, alguns homens desenvolveram ferramentas, domesticaram outras espécies, e comegaram a formar associagGes vagas uns com os outros. Uma grande revolucdo proporcionou a fundagao de familias e introduzin nogées de propriedade. Familias aparentadas se juntavam para formar comunidades e a linguagem foi inventada. Uma segunda revolucio veio com o desenvolvimento da metalurgia, da agricultura e a divisdo de trabalho. Foi acompanhada pelo crescimento das guerras, e levou inexoravelmente a ditadura dos mais fortes. O proprio Turgot havia adotado uma visio mais otimista do progresso. Os arranjos politicos e morais melhorariam 4 medida que formas mais avancadas de vida econémica se desenvolvessem. Havia também uma progressio paralela do teolégico para o metafisico e, portanto, para o raciocinio empirico. Uma geracdo mais tarde, Augusto Comte propés “uma grande lei fundamental... que cada uma de nossas concepgdes condutoras - cada ramo de nosso conhecimento — passa sucessivamente por trés diferentes condigdes tedricas: a teoldgica, ou ficticia; a metafisica, ou abstrata; e a cientifica, ou positiva.”29 Os escritores do iluminismo escocés se basearam de forma diligente nestes fundamentos. O modelo de quatro est4gios de Turgot forneceu a eles a sua estrutura. (“os quatro estagios de sociedade sao a caga, o pastoreio, a agricultura e o comércio”, citando a conclusdo concisa de Adam Smith.)3° Toda a histéria era uma sé, todas as sociedades = Auguste Comte [1839] 1983, Auguste Comte and Positivis P.7i. 2 Citado por Ronald L. Meek, 1976, Social Science and the Ignoble Savage, o qual discute os desenvolvimento da teoria dos quatro estagios. : The Essential Writings, 55 tiveram um ponto comum de origem. No romance satirico de Thomas Love Peacock, Crotched Castle, um escocés é provocado — “Rogo-lhe, Sr. MacQuedy, porque é que todos os cavalheiros de sua nago iniciam tudo o que escrevem com ‘a infancia da sociedade'?” A resposta era ébvia. Nossas circunstancias atuais podiam ser entendidas uma vez que compreendéssemos nossas origens. Os selvagens representavam um ponto inicial de nossa histéria. Além disso, eles ainda podiam ser observados, em partes remotas da Australia, das Américas e Africa. Os escoceses achavam que isso lhes dava vantagem sobre os fildsofos antigos, que nada sabiam sobre “os homens no estado mais inicial e rustico”. Os académicos poderiam agora tratar dos relatos da América, onde ainda havia sociedades “tio extremamente incultas a ponto de desconhecer as artes as quais sdo as primeiras tentativas da criatividade humana no seu avango em diregSo ao progresso”s!, “EE na sua presente condigaio,” escreveu Adam Ferguson, “que nés observamos, como em um espelho, as caracteristicas de nossos proprios progenitores”.s* Darwin e os selvagens3 Essas eram as idéias com as quais os exploradores ingleses viajaram no inicio do século XIX. Em 1830, Robert Fitzroy, o capitdo aristocratico e conservador do HMS Adventure, desembarcou para a Terra do Fogoe confidenciou em seu diario: Desagradavel, doloroso na verdade, é a reflexdo mental de um selvagem e, relutante como podemos estar de nos considerar mesmo que remotamente descendente de seres humanos em tal estado, a ponderacdo de que César encontrou os Bretdes pintados e vestidos de pele, como estes da Terra do Fogo, nao deixa de aumentar um interesse 3 William Robertson, 1777, The History of the Discovery and Settlement of America. ® Adam Ferguson, 1767, An Essay on the History of Civil Society, Parte 2, Seco 1. 3% Para um relato completo do encontro entre Darwian e os fueguinos, Ver Nick Hazelwood, 2000, Savage: The Life and Times of Jemmy Button. 56 instigado pela sua ignorancia infantil a respeito de questdes triviais ao homem civilizado, assim como pelo seu estado de existéncia independente e saudavel.+ Alguns anos mais tarde, um jovem cientista que Fitzroy havia convidado para navegar com ele a bordo do HMS Beagle, foi até mais direto. “O espanto que senti a principio observando uma festa do povo da Terra do Fogo, em uma praia deserta e quebrada, eu nunca esquecerei” Charles Darwin escreveu, “pois a reflexao veio imediatamente em minha mente ~ assim eram nossos ancestrais”.25 Durante o primeiro encontro de Fitzroy com os fueguinos, houve roubos em seu navio. Fitzroy tomou alguns nativos como reféns, prometendo solta-los quando os bens fossem devolvidos. A tatica falhou e ele restou com trés fueguinos em suas mos. Um quarto homem foi comprado pelo seu tio em troca de um broche de pérola e foi chamado de Jeremy (Jemmy) Button. Fitzroy decidiu levar os fueguinos com ele em seu retorno para a Inglaterra, onde eles seriam educados, ele decidiu, “em inglés, ¢ as verdades mais simples do Cristianismo seriam um primeiro objetivo; e, como segundo, o uso de ferramentas comuns, um leve conhecimento sobre cultivo, jardinagem e mecanismos”.s¢ Em suma, eles seriam instruidos nos elementos da sua [Fitzroy] civilizacao: linguagem, religido, e tecnologia. Um deles (0 favorito de Fitzroy) morreu de variola, mas os sobreviventes, sob a orientacao do reitor de Walthamstow, foram instruidos na religido crista, na lingua e nos costumes ingleses. Fitzroy apresentou os fueguinos ao Rei e 4 Rainha. Um fundo foi langado para financiar atividades missiondrias em suas ilhas, e um missiondrio se juntou A segunda expedigdo do Beagle. © Beagle retornou com os trés fueguinos para suas casas, onde se esperava que eles servissem de intermediarios para o missionario. Darwin fez amizade com eles durante a viagem, mas seu primeiro encontro direto com 0 que ele chamou de “indomados selvagens” fueguinos aconteceu em Robert Fitzroy (ed.) 1839, Narrative of the Surveying Voyages of H.M.S. Adventure and Beagle Between the Years 1826 and 1836, pp. 120-2 % Charles Darwin, 1974, The Descent of Man, 2nd edition, pp. 919-20. ® Nick Hazelwood, 2000, Savage: The Life and Times of Jeremy Bution, citationp.67. 57 uma manha de Dezembro de 1832, e ele afirmou, em seu didrio e em cartas enviadas a casa, que o impressionou profundamente. Escrevendo do Beagle para sua irma Caroline, Darwin listou “os trés espetaculos mais interessantes que ele havia visto desde que deixou a Inglaterra — um selvagem fueguino ~ a Vegetagio Tropical — e as ruinas de Concepcién”.” “Vendo tais homens, mal se pode acreditar que eles sao criaturas semelhantes vivendo no mesmo mundo, As casas dos fueguinos eram rudimentares; eles dormiam no chao tmido, enrolados como animais”; sua comida era miseravel e escassa; eles estavam em guerra com seus vizinhos disputando os meios de subsisténcia. “Capitao Fitzroy nunca conseguiu se certificar se os fueguinos tinham qualquer particular crenga na vida futura. Seus sentimentos pelo lar eram mediocres. Suas imaginagées nao eram estimuladas, suas habilidades eram “como o instinto dos animais”, nao “melhoravam com a experiéncia.”39 “Embora essencialmente as mesmas criaturas, 0 quao pouco deve a mente de um destes seres se assemelhar a de um homem educado”. “Que escala de avanco esta compreendida entre as faculdades de um selvagem fueguino e Sir Isaac Newton”4°, E, ainda assim, Darwin notou que os fueguinos iam bem em alguns testes. “Nao h4 razao para supor que a raga dos fueguinos esta desaparecendo; nés devemos, portanto, assegurar que ele aprecie uma quota suficiente de felicidade (seja qual for o tipo) para fazer com que a vida valha a pena. A natureza, ao fazer o costume onipotente, adaptou os fueguinos ao clima e as produgées de seu pais”. Havia pouca distinc&o entre as ponderagdes do jovem Charles Darwin e as do Capitéo Fitzroy. Ambos concordaram que os selvagens eram, de fato, muito diferentes dos ingleses vitorianos, mas capazes, no entanto, de rapido progresso. Darwin observou que, “em contradigao com o que havia sido afirmado constantemente, trés anos seriam suficientes para transformar os selvagens, no que concerne os habitos, em europeus » F. Burckhardt and S. Smith (eds), 1984, The Correspondence of Charles Darwin, Vo\. 1 (1821-1836), p. 434. 38 R. D. Keynes (ed.) 1979, The Beagle Record, pp. 222-3. 2% Charles Darwin, 1839, Journal of Researches into the Geology and Natural History of the Various Countries visited by H.M S. ‘Beagle’, Capitulo X. 4 R.D. Keynes (ed.), 1988, Charles Darwin's Beagle Diary, p. 223. 4 Keynes, Beagle Record, pp. 222-4. 58 completos e voluntarios”4. De fato, ele expressou a preocupacao de que os fueguinos nao teriam condigées de se reajustar as Asperas condigées da ilha. Quando o Beagle revisitou o acampamento dos fueguinos, os ingleses notaram que Jemmy Button estava bem mais magro. No entanto, este assegurou ao capitao que ele estava “sinceramente, senhor, melhor do que nunca” e que ele estava contente e que nio tinha vontade de alterar seu modo atual de vida. “Eu espero ¢ tenho poucas diividas [Jemmy] estaré tdo feliz como se ele nunca tivesse deixado seu pais”, Darwin escreveu em seu diario, “o que é muito mais do que eu pensara anteriormente”.43 Fitzroy, no entanto, foi encorajado a supor que a civilizagao havia deixado sua marca. Ele descreveu o sinal de fogo de adeus que Jemmy acendeu quando o Beagle zarpou, e comentou que a familia de Jemmy “estava se tornando consideravelmente mais humanizada que qualquer selvagem que ele havia visto na Terra do Fogo. Um dia um marinheiro naufrago poderia ser salvo pelos filhos de Jemmy, estes “movidos, como nio poderia deixar de ser, pelas tradigdes que eles terao ouvido falar de homens de outras terras; e, por uma idéia, nao importa quao débil, de seu dever a Deus, assim como aos seus vizinhos”44 Darwin e Fitzroy concordavam que os fueguinos se situavam inferiormente na escala de desenvolvimento - no degrau mais baixo, Darwin acreditava. No entanto, nao havia razao intrinseca pela qual os fueguinos nao poderiam ser rapidamente “civilizados”. “Estes indios parecem ter uma facilidade para aprender Iinguas”, Darwin notou, “o que contribuiré grandemente para a civilizagio ou para a desmoraliz uma vez que estas duas vias parecem andar lado a lado”. Falta de inteligéncia nao parecia ser a explicagao do seu retrocesso. Os austra- lianos podiam ser vistos como tendo realizagdes superiores as do fueguinos, mas Darwin duvidava que eles fossem mais inteligentes. Notavelmente, a Unica especulacao que Darwin fez sobre a causa do retrocesso desse povo foi puramente de natureza sociolégica. Os fuegui- nos faziam permutas livremente e compartilhavam tudo — “mesmo um ‘do, * Keynes, Beagle Record, pp. 141-2. 4 Keynes, Beagle Record, pp. 221. 4“ Fitzroy, Narrative, pp. 323~ 4 Keynes, Beagle Record, pp. 221. 59 pedaco de tecido dado a um era rasgado em tiras e distribuido; e nenhum individuo se tornava mais rico que o outro.”46 Esta insisténcia na troca (que atormentou tanto os ingleses, os quais os acusaram de roubo) era baseada na suposicao de igualdade. E, na visao de Darwin, foi precisamente esta igualdade que os manteve para tras. A igualdade perfeita entre os individuos que compéem as tribos fueguinas devem protelar por um longo tempo sua civilizacdo. Como vemos, aqueles animais, cujo instinto os compele a viver em sociedade e obedecer a um chefe, sao muito capazes de progredir, assim é com as ragas humanas... Por outro lado, é dificil entender como um chefe pode surgir até que haja uma virtude tal pela qual ele deve manifestar sua superioridade e aumentar seu poder. Inversamente, Darwin atribuia a sofisticagao relativa dos Taitianos a sua ordem social hierdrquica. “Se 0 estado no qual os fueguinos vivem devesse ser fixado como ponto zero na escala de autoridade, receio que a Nova Zelandia teria uma posicao alguns nfveis acima, enquanto o Taiti, mesmo no inicio quando foi descoberto, ocuparia uma posicio respeitavel”.47 A Evolugio e a invengao do primitivo O modelo de quatro estagios do Iluminismo escocés se manteve influente por mais de um século. Mas, apés ponderar sobre suas observacées feitas na viagem do Beagle durante duas décadas, Darwin acabou dando a Inglaterra vitoriana uma visio rival da historia que, em retrospecto, foi chamada de evolucionismo. Ela deu a luz a uma nova concepeao cientifica: o homem primitivo. + Darwin, Journal of Researches, Chapter X. Keynes (ed.), Diary, p. 384. 60 As palavras derivadas do latim primitivus foram comumente usadas em muitas linguas européias para denotar algo que era o primeiro ou o inaugural daquele género; ou a condicao original de uma instituicdo; ou para descrever os primeiros habitantes de um pais. Chamar alguém de primitivo nao era necessariamente pejorativo. O Oxford English Dictionary [OED] fornece dois exemplos dos didrios do século XVII de John Evelyn. A “igreja primitiva” referia-se a igreja cristi dos primeiros tempos, e Evelyn afirmou que: “A Igreja Anglicana é, certamente, de todas as profissdes de fé cristis na Terra, a mais primitiva, apostdlica e excelente”. Primitivo poderia também implicar uma condicdo natural humana, e Evelyn descreveu a virtude inocente de uma “donzela de vida primitiva” que “por muitos anos tem se recusado a casar, ou a receber qualquer assisténcia da paréquia”. Usos mais especializados se desenvolveram nas ciéncias. Na ma- temitica, a descrico primitiva se aplicava aos ntimeros primos ou a expressdes axiomaticas. Na biolo; estruturas rudimentares, ou para tecidos ou orgios que foram formados nos estagios mais primordiais do crescimento. Finalmente, na segunda metade do século XIX, os cientistas comecaram a falar do homem primitivo, e da sociedade primitiva. Populacdes primitivas eram selvagens, mas vistas agora em uma perspectiva diferente, como um ponto de partida de todos os seres humanos. Elas tinham um lugar intimo na nossa histéria. Nos pertenciamos 4 mesma familia. Elas eram nossos ancestrais vivos. Isto nao era mais um conceito vago, mas uma _ proposta genealogica precisa, Em 1862, Darwin escreveu a um simpatizante, Charles Kingsley: , a palavra passou a ser usada para Isto € uma questdo notavel € quase terrivel a respeito da genealogia do homem... Nao ¢ tao terrivel e dificil para mim... em parte pela familiaridade e em parte, creio, por ter visto muitos bons barbaros. Eu assumo que a sensagdo, quando eu inicialmente vi na Terra do Fogo um medonho selvagem nu, pintado, trémulo, de que meus ancestrais deviam ter sido de alguma forma seres similares, foi revoltante para mim naquele momento; nado mais revoltante que minha crenga atual de que 61 a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. a You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Capitulo 3 A Teoria Patriarcal de Henry Maine Neste em 1822, criado em condicées de nobreza medfocre, Henry Maine foi para Cambridge em 1840 onde ele teve um brilhante curso de graduagdo, destacado pelo prémio da medalha de Chancellor para a poesia inglesa (por um poema sobre 0 nascimento do Principe de Gales), e pela eleigdo para a sociedade secreta de elite de Cambridge, os Apéstolos.' Na graduagdo, ele se tornou um membro do Trinity Hall, uma faculdade de Cambridge notdvel pelos seus juristas, e comecou a se especializar em Direito Romano. Aos vinte e cinco anos, ele se tornou Professor” Régio de direito civil em Cambridge. Isto parece + © perfodo mais jovem dq vida de Maine € pouco documentado. A Senhora Maine destruiu os textos de seu marido e jogou fora suas cartas apés cortar as assinaturas que estavam nelas ¢ vendé-las. Nao havia um “Life and Letters” tipico vitoriano. O Life and Speeches of Sir Henry Maine de W. Stokes contém apenas uma breve biografia como preficio as longas extragées de scus discursos. No entanto, uma biografia moderna excelente foi publicada em 1969 por George Feaver: From Status to Contract: A biography of Sir Henry Maine, 1822 ~ 1888, Sua contribuigio para a academia do direito € descrita por K.C.J. Cocks em Sir Henry Maine: A Study in Victorian Jurisprudence (1988). Uma conferéncia foi promovida para marcar o centenario de Maine em 1988, 0 que resultou em um livro editado por Alan Diamond e publicado sob o titulo The Vicorian Achievement of Sir Henry Maine (1991). Apresenta avaliagdes de varios aspectos de sua carreira. Nas universidades britanicas, os titulos docentes obedecem a uma certa hierarquia: Professor é reservado apenas a docentes seniores em universidades. Inicia-se a carreira docente como Lecturer (em geral recém doutores), tendo em seguida os titulos de Senior Lecturer, Reader ¢, finalmente Professor, este ultimo atingido apenas por um niimero muito pequeno de individuos que normalmente so chefes de departamentos académicos ou detém uma cétedra pessoal. (N da'T). 65 mais suntuoso do que realmente era. Seu amigo, James Fitzjames Stephen, descrevia a docéncia como uma “sinecura mal paga”, e logo Maine se mudou para uma vaga de professor em Direito Romano em Middle Temple. Em Londres, ele se tornou um jornalista politico ativo, e foi um dos fundadores do The Saturday Review. Um “Peelite’ teimoso.... com um gosto pela retérica burkeana”:, cle apoiou as formas aristocréticas de governo e se opds extensio do sufragio. E ficou fascinado pela questao Indiana. Os utilitaristas e a India © futuro da india foi talvez a questao politica central na Gra-Bretanha no final dos anos de 1850, e levantou grandes questaes legais e filoséficas.? Em 1858, no desfecho da Rebelido de Sepoy, o parlamento privou a Companhia das Indias Orientais de seus poderes politicos restantes, e transferiu o governo da india para a Coroa. Mas nao havia consenso sobre as diretrizes. Os administradores de uma crenga burkeana eram relutantes em fazer grandes reformas, e estavam inclinados a colaborar com as autoridades locais. Enquanto isso, uma coalizio de evangélicos, comerciantes auténomos, construtores do Império e radicais filos6ficos pressionavam por mudancas radieais. Os utilitaristas eram proeminentes neste partido “anglicizante”. Seu profeta, Jeremy Bentham, ha tempos tinha um interesse especial nas questdes da fndia. Junto com seu discipulo John Austin, Bentham desenvolveu cédigos legais elaborados, designados a promover ambas a felicidade coletiva e a liberdade individual racional. Eles nao conseguiram persuadir nenhum governo a legalizar seus cédigos, mas Bentham Faceio dissidente do Partido Conservador Britanico. Esta fragio durou de 1846 @ 1859. Foi liderado inicialmente por Sir Robert Peel, dai o nome do partido. (N. da T.) 2 J. W, Burrow, 1974, ‘The village community and the uses of history in late 19th century England’, in Neil McKendrick (ed.) Historical Perspectives: Studies in English Thought and Society, p. 255. 2 Eu me utilizei bastante de E. Stokes (1959), The English Utilitarians and India, Ver também Gordon Johnson, ‘India and Henry Maine’, eC. A. Bayly" Maine and change in nineteenth century India”, ambos em Alan Diaw The Victorian Ackievement of Sir Henry Maine. 66 morreu com a esperanca de que estes pudessem se tornar lei na india. Ele sabia que podia contar com o suporte de um dos homens mais poderosos no Gabinete da India, James Mill. “Mill serd 0 executivo vivo,” Bentham declarou, “e eu serei o legislative morto da India Britanica”.4 Mill estava certamente propenso a isto. Sua pesquisa sobre a historia da [ndia 9 convenceu de que “tomando o despotismo e o sacerdécio juntos, os hindus, em espirito e corpo, eram a porgéo mais subjugada da raga humana”.s Era tarefa clara da Gra-Bretanha reformar as instituigdes indianas. A prioridade era o cédigo legal. “Assim como acredito que a {ndia necessita de um cddigo legal mais que qualquer outro pais no mundo”, escreveu Mill, “eu também creio que nao ha pais no qual este grande beneficio possa ser mais facilmente outorgado. Um cédigo é quase a tinica béngio ~ sendo a tnica béncdo — A qual os governos absolutos sio mais adequados a outorgar sobre uma nacio que os governos populares”.¢ O protegido de Mills, Thomas Babington Macaulay, tornou-se um membro legal do Conselho do Vice-rei, e em 1835, ele planejou um cédigo penal para a India, o qual se baseava em principios puros de Bentham. No entanto, o movimento de reforma perdeu seu impeto. Mill morrera. Somente com a transferéncia dos poderes para a coroa os antigos debates foram revividos, e desta vez foi dada uma grande atengao para a questao da reforma legal e, em particular, para a reforma do direito de posse da terra. De volta a Londres, Maine seguiu esses desdobramentos de perto. O governo indiano finalmente legalizou o codigo penal de Macaulay, mas Maine nao estava interessado em c6digos penais, comentando desdenho- samente que “ninguém se importa com a lei penal, com excecado dos tedricos e os criminosos comuns”?: Porém, as propostas para a codificagao da lei civil eram um assunto completamente diferente. Foi aqui que o direito se tornou politico. Maine publicou uma série de artigos no The Saturday Review castigando os seguidores de Bentham. Qualquer 4 Stokes tomou este impressionante afirmagio como um lema para seu English Utilitarians and India. James Mill, 1817, The History of British India, Vol. 2, p. 167 Citado por Stokes, English Utilitarians and India, p. 219. Citado por Feaver, From Status to Contract, pp. 102-3. 67 reforma do sistema legal e da posse de terra deveriam ser tratados com cuidado, para que as fundagdes da sociedade indiana nao fossem colocadas em risco. Sua obra prima, Ancient Law, foi um veiculo de peso para esses argumentos, Fontes para uma critica conservadora Maine ensinava Direito Romano, que era dominado naquele tempo pelos académicos alemaes, notadamente Savigny e Jhering.® Friedrich Karl von Savigny, um nobre prussiano conservador, conseguiu fama cedo com um panfleto, publicado em 1814, que atacava a proposta para codificar a lei civil. Savigny objetou que um sistema legal era uma producao histérica complexa. Como uma lingua, a lei se desenvolve a partir da experiéncia histérica de uma nacio. Ela expressa 0 que veio a ser chamado de Volksgeist. Inconsisténcias aparentes podem ser tapeacdes desnecessdrias. Qualquer reforma deveria ser gradual ¢ res- peitosa da tradigio estabelecida. O tema central da obra de sua vida, 0 multivolume Die Geschichte des Rémichen Rechts in Mittelalter, iniciado em 1834 € finalizado apenas em 1850, foi que a introducao da lei romana na Alemanha medieval fora bem sucedida porque no alterou o espirito do direito nacional. Os doctores juris haviam apenas permitido inovacdes que se adequassem 4 tradicfo alema Os criticos nacionalistas, os entéo chamados “Germanistas”, contestavam 0 valor que Savigny dava A recepgao do dircito romano. Eles eram também “Romanistas”, particularmente Jhering, que desenvol- yeu uma versio da tese menos nacionalista e, de modo geral, mais pragmatica. As diferengas internas dos académicos alemaes nao eram cruciais, no entanto, para o empreendimento de Maine. O que interessava aele era os paralelos ente a Alemanha antiga e a India moderna, e entre 0 * © débito de Maine para com esses autores é discutido em Vinogradoff, 1904, The Teaching of Sir Henry Maine, Cocks, 1988, Sir Henry Maine: A Study in Vietorian Jurisprudence, e Peter Stein, 1980, Legal Evolution: ‘The Story of an Idea, Para um relato lacido da carreira e das idéias de Savigny, ver Kantorowicz, 1937, “Savigny and the historical school of law’, e também M. Smith, 1895, "Four German Jurists” que discute Jehring. Ver P. Atiyah, 1979, The Rise and Fall of Freedom of Contract, para uma avaliagdo dos argumentos centrais. 68

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