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TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Copyright© Luciane Rangel

A violação de Direitos Autorais é crime, previsto na lei


9610/98 e conforme estabelecido no Art. 184 do Código

Penal Brasileiro. É proibida a reprodução total ou parcial


dessa obra, por qualquer meio, sem a prévia autorização
da autora.

Este e-book é uma obra de ficção. Embora possa ser feita

referência a eventos históricos reais ou locais existentes,


os nomes, personagens, lugares e incidentes são o
produto da imaginação da autora ou são usados de forma

fictícia, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas

ou mortas, estabelecimentos comerciais, eventos, ou


localidades é mera coincidência.

CAPA: LAYCE DESIGN

REVISÃO: INDEPENDENTE

DIAGRAMAÇÃO: LUCIANE RANGEL


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Sumário

Sinopse
Playlist
Aviso
Capítulo um
Capítulo dois
Capítulo três
Capítulo quatro
Capítulo cinco
Capítulo seis
Capítulo sete
Capítulo oito
Capítulo nove
Capítulo dez
Capítulo onze
Capítulo doze
Capítulo treze
Capítulo catorze
Capítulo quinze
Capítulo dezesseis
Capítulo dezessete
Capítulo dezoito
Capítulo dezenove
Capítulo vinte
Capítulo vinte e um
Capítulo vinte e dois
Capítulo vinte e três
Capítulo vinte e quatro
Capítulo vinte e cinco
Capítulo vinte e seis
Capítulo vinte e sete
Capítulo vinte e oito
Capítulo vinte e nove
Capítulo trinta
Capítulo trinta e um
Capítulo trinta e dois
Capítulo trinta e três
Capítulo trinta e quatro
Capítulo trinta e cinco
Capítulo trinta e seis
Capítulo trinta e sete
Capítulo trinta e oito
Capítulo trinta e nove
Capítulo quarenta
Capítulo quarenta e um
Capítulo quarenta e dois
Capítulo quarenta e três
Capítulo quarenta e quatro
Capítulo quarenta e cinco
Capítulo quarenta e seis
Capítulo quarenta e sete
Capítulo quarenta e oito
Capítulo quarenta e nove
Capítulo cinquenta
Capítulo cinquenta e um
Capítulo cinquenta e dois
Capítulo cinquenta e três
Capítulo cinquenta e quatro
Capítulo cinquenta e cinco
Capítulo cinquenta e seis
Capítulo cinquenta e sete
Epílogo 1
Epílogo 2
CONHEÇA OUTROS TRABALHOS DA AUTORA
Contatos da autora
Sinopse

Um CEO cafajeste

Uma mãe solo de uma garotinha que sonhava

em ter um pai.

Ele era o chefe dela...

Porém, ela não fazia ideia disso.

O playboy milionário Henrique Lizano estava

acostumado a ter todas as mulheres que quisesse.

E ele queria todas... até Luíza aparecer em seu

caminho.

Foi por uma aposta que Henrique a conheceu,


através de um desafio de seu irmão, que o provocou
dizendo que ele apenas conquistava garotas por causa do

seu dinheiro.

Agora, Henrique teria duas semanas para seduzir


Luíza, mas para isso precisava mentir sobre sua real

identidade, sem deixar que ela soubesse que ele era um

milionário, além de CEO da rede de lojas onde ela


trabalhava.

Porém, ele não imaginava que ela tivesse uma

filha... uma garotinha de seis anos, que ele havia

conhecido dias antes e que sabia de sua verdadeira


identidade.

Tudo começou com uma aposta... Mas com o

tempo passou a existir muito mais coisas em jogo...

Como o coração de Henrique, balançado não

apenas por Luíza, como também pela pequena Sofia.


Playlist

Heart Attack – Demi Lovato Alive – Sia

Rainbow – Kacey Musgraves Bet my Heart – Maroon 5

Say You Won't Let Go – James Arthur Story Of My Life –

One Direction It's Gonna Be Me – *NSYNC

I'm Like A Bird – Nelly Furtado She Wolf (Falling to

Pieces) – David Guetta (feat. Sia) Have It All – Jason Mraz

She's The One – Robbie Williams Imagine – Ben Platt Let Love

Lead The Way – Spice Girls We Belong Together – Mariah

Carey Drops Of Jupiter – Train Crazy for You – Adele I Bet my

Life – Imagine Dragons Bubbly – Colbie Caillat Locked out of

Heaven – Bruno Mars If I Let You Go – Westlife Put a Little

Love On Me – Niall Horan I Knew I Loved You – Savage Garden

Love Someone – Lukas Graham Someone You Loved – Lewis

Capaldi The game is over – Evanescence The Trouble with


Wanting – Joy Williams Unconditionally – Katy Perry A

Moment Like This – Kelly Clarkson Vulnerable – Roxette Like

I'm Gonna Lose You – Meghan Trainor (feat. John Legend) If I

Ain't Got You – Alicia Keys Never be Alone – Shawn Mendes A

Thousand Years – Christina Perri Everything Has Changed –

Taylor Swift Back At One – Brian Mcknight Wrecking Ball –

Miley Cyrus Who Knew – Pink

Love Song – Sara Bareilles Always – Bon Jovi Quit

playing games – Backstreet Boys I'm Not The Only One – Sam

Smith Broken-Hearted Girl – Beyoncé Hold my hand – Lady

Gaga Wrong Direction – Hailee Steinfeld I Try – Macy Gray

Wish You Were Here – Avril Lavigne Goodbye – Jessica

Lowndes One Call Away – Charlie Puth Fix you – Coldplay

Rise Up – Andra Day Already Gone – Sleeping At Last

Flashlight – Jessie J

You Are The Reason – Calum Scott Let Her Go –

Passenger If You're Not The One – Daniel Bedingfield All Of Me


– John Legend Never Be The Same – Camila Cabello I Get to
Love You – Ruelle Stand By Me – Seal

Ouça a playlist no Spotify:


https://open.spotify.com/playlist/3geZkHfNVni6GzKlE3YTQM?

si=9b4ec3455b384a1d
*****
Aviso

Este livro foi anteriormente publicado com o título


CORAÇÕES EM JOGO, assinado pelo meu antigo
pseudônimo LUNA SOARES.

Contudo, o conteúdo foi inteiramente revisado,


contando agora com trechos novos, cenas inéditas,

além de um epílogo extra.

Espero que se apaixonem pela leitura!

Com amor,

Luciane Rangel
Capítulo um

“Armando minhas defesas Porque não quero me

apaixonar Se alguma vez fizesse isso Acho que teria um

ataque cardíaco”

(Heart Attack - Demi Lovato)

Despertei sentindo o par de mãos femininas que

contornavam o meu corpo nu, o que logo me trouxe à


mente a lembrança de que a noite havia sido boa.

Havia sido ótima, para falar a verdade.


Abri os olhos e virei o rosto para o lado,

encontrando a bela morena que também parecia acordar


nesse momento.

Ela tinha olhos verdes, que coisa... Eu nem tinha

reparado nisso na noite anterior.

— Bom dia... — ela sussurrou, dengosa.

— Bom dia, princesa — respondi com o elogio

genérico.

Porque, afinal de contas, eu não lembrava do nome

dela.

Eu raramente lembrava dos nomes delas.

— Dormiu bem? — ela me perguntou, em um tom

de provocação.

— Como uma pedra, e você?

— Também. — Ela aproximou a boca do meu

ouvido. — Estou recarregada e pronta para nos


divertirmos um pouco mais.
A proposta de fato era tentadora.

Eu não me lembrava do nome dela, não recordava

a cor dos seus olhos, mas tinha lembranças bem nítidas

das coisas que ela tinha feito comigo na noite anterior.

Por baixo da coberta, meu amigo endureceu,

animado com a ideia de brincar um pouco mais. Mas fui

racional o suficiente para negar a oferta. Eu tinha um

conjunto de regras pessoais, e estas incluíam jamais

repetir a dose pela manhã com a mulher com quem passei

a noite. Isso apenas a faria ficar mais e, bem... eu não


tinha qualquer interesse nisso.

— Vai ter que ficar para outra vez, princesa. Tenho

um compromisso agora pela manhã.

Levantei-me, passando pelas roupas espalhadas

pela espaçosa suíte e indo diretamente para o banheiro.

Liguei o chuveiro e entrei embaixo da água morna,

tomando um rápido banho. Quando saí, ainda nu, a

mulher permanecia sobre a minha cama, agora já


sentada, com os fartos seios à mostra, olhando-me de

forma confusa.

— Tem certeza de que não quer mais? — ela me

perguntou.

A oferta era realmente tentadora demais, mas


precisei recusar, enquanto entrava no closet, escolhendo

as roupas que iria usar.

— Não posso, princesa. Tenho uma reunião

importante. Sabe que sou um homem de negócios.

— Mas... hoje é sábado.

— E um verdadeiro homem de negócios não para

nem mesmo aos fins de semana. — Tinha acabado de


vestir as calças e coloquei a cabeça para fora do closet,

sorrindo para ela. — Mas você não precisa ter pressa,


viu? Fique à vontade. A Joana vai preparar um café da
manhã para você.

Terminei de me vestir e fui até ela, depositando um

beijo em seus lábios.


— A gente se vê, princesa.

— Vai me ligar?

— É claro que vou.

Era óbvio que não iria.

Eu nunca ligava.

Eu nunca precisava ligar.

O cardápio à minha disposição era extenso demais


para eu me preocupar em repetir o mesmo prato.

Saí do quarto e desci as escadas enquanto

colocava o relógio no pulso. Joana passava pela sala


nesse momento, com seus cabelos negros e lisos, como
de costume, presos em um impecável coque.

Ao me ver, ela parou para me esperar.

— Devo chamar um táxi para a mocinha? — ela

perguntou.
Parei ao lado dela, dando um beijo em seu rosto.
Joana tinha trabalhado para os meus pais desde que eu
tinha uns dois ou três anos de idade. A parte mais difícil

quando me mudei para os Estados Unidos para estudar e


acabei permanecendo por lá gerindo a empresa de

Marketing que eu havia criado foi, de longe, ficar distante


de Joana. Eu era muito mais apegado a ela do que à
minha própria mãe – que, desde a morte do meu pai,

passara a morar em sua fazenda. Aquela casa ficara para


o meu irmão, e Joana acabou se tornando governanta

dele.

Agora, que eu estava de volta ao Brasil, me

perguntava como tinha conseguido viver tantos anos sem


aquela mulher.

— Bom dia para você também, minha deusa —


rebati. — Pode chamar um táxi, sim. Mas antes sirva um

café caprichado para ela, por favor. A noite foi longa, ela
precisa recarregar as energias.

— Você não tem jeito mesmo, Rique.


— Heitor já acordou?

— Ele ainda não voltou. Aparentemente passou a

noite na casa da Bruna.

Bruna era a noiva do meu irmão. Os dois


planejavam se casar em algumas semanas.

Contudo, minha volta ao Brasil não tinha sido

apenas para participar da festa. Os pais de Bruna

moravam nos Estados Unidos e o sonho dela era também


ir para lá, para ficar mais próxima deles. Heitor fazia de

tudo para atender às vontades de sua futura esposa, por

isso me perturbara tanto que acabei cedendo em sua ideia

de trocarmos os negócios pelo período de dois anos.

Ele iria para os Estados Unidos e assumiria o


comando da empresa de marketing – apesar de eu ser o

sócio majoritário, ele também tinha uma parte lá. Já eu,

passaria esse tempo cuidando das Lojas Lizano, criadas


pelo nosso avô há mais de meio século e grande orgulho

da família.
Por mim, sinceramente, não faria muita diferença.

Eu tinha uma vida estabilizada nos Estados Unidos, mas


nada que de fato me prendesse lá. No Brasil, tinha minha

mãe, Joana e bons amigos. Dois anos por ali seriam muito

interessantes.

— Não vai tomar café? — Joana perguntou, me


arrancando de meus pensamentos.

— Não. Vou deixar para comer algo lá na reunião.

— Reunião? Chame de ‘farra’, que é mais honesto.

— A farra é só a noite, Jojo. Agora durante o dia

será só uma reunião. Com piscina, bebidas e churrasco,


mas ainda assim uma reunião.

Dei outro beijo nela e saí.

Peguei meu carro conversível, dirigindo enquanto

sentia o vento em meu rosto. Por ser fim de semana, a

pista estava praticamente livre, o que me trazia uma


sensação maravilhosa de liberdade. E eu ainda

intensificava isso deixando o som em um volume bem alto.


Não menti quando disse que era um homem de

negócios. Aos vinte e nove anos, eu era, junto ao meu

irmão, herdeiro de uma rede de lojas de itens de


construção e decoração, a maior da região, tendo

inclusive uma grande fábrica para produção de itens

exclusivos. Negócio iniciado pelo nosso avô, assumido por

anos pelo nosso pai, e agora inteiramente nosso.

Eu não me envolvia muito, ao menos não até


aquele momento. Meu irmão era o CEO responsável pela

franquia, já que eu há anos me dedicava à empresa de

Marketing que criei nos Estados Unidos. Como o capital


para a criação veio em grande parte do nosso pai, com a

sua morte Heitor agora tinha direito a uma parte dela, e

veio daí a proposta de trocarmos os comandos por algum


tempo.

Muita coisa tinha mudado nos anos em que estive

fora. Agora já tínhamos vinte e cinco lojas por todo o país,

algumas já chamadas de “mini-shoppings”, e estávamos


prestes a inaugurar a vigésima sexta.
Eu era um bom administrador e pretendia, agora,

acompanhar todo o trabalho de perto. Sempre fui bem


responsável no que dizia respeito aos negócios.

Porém, fora do meio empresarial, eu era só um

cara que queria curtir a vida. Festas e mulheres eram

rotina para mim, não importava em que lugar do mundo eu


estivesse.

Dirigia a caminho da casa de um amigo, que estava

dando uma festa nesse dia. Desviei por um momento os

olhos para o rádio do carro na intenção de passar uma


música que eu não gostava e, quando voltei a levantar o

rosto me assustei ao ver alguém atravessando a pista na

minha frente.

Pisei com força no freio, parando apenas a poucos


centímetros de atropelar uma garotinha que andava com

um cachorro.

— Meu Deus! — praticamente gritei, nervoso. —

Você está bem?


Desci do carro, indo até a menina que,

provavelmente também devido ao susto, tinha

praticamente paralisado no meio da pista. Ela devia ter

uns cinco ou seis anos, tinha um cabelão loiro bem


comprido e trazia na guia um cachorro vira-lata caramelo

que era quase maior do que ela.

Ela me encarou por alguns segundos, com os olhos

arregalados, até que tomou fôlego e gritou: — Mas qual é


o seu problema, moço? Quase atropelou a gente! Olha

como o Joe está assustado!

Joe devia ser o nome do cachorro, obviamente.

Mas ele não me parecia assustado. Tinha se sentado e


olhava distraído para as pessoas passando na calçada.

— Desculpe, garotinha. Mas você deveria olhar

para os dois lados antes de atravessar.

— E você deveria respeitar o sinal vermelho!

Mas que sinal?


Ela apontou para algo atrás de mim e só então

avistei o semáforo que nesse momento mudava de


vermelho para verde.

Certo, ela tinha razão, eu não tinha visto. Mas não

era minha culpa. Aquele semáforo não estava ali na última

vez que eu tinha estado na cidade, há... uns três anos?

— Olha, está certa, eu sinto muito por isso. Mas


você não se machucou, não é? Então vá para casa,

porque crianças do seu tamanho não deveriam andar por

aí sozinhas.

— Não estou sozinha. Minha tia está bem ali. Ela


está trabalhando e eu vim trazer o Joe para passear um

pouco.

Ela apontou para o outro lado da rua, mas

especificamente para uma mulher sentada em uma mesa


na calçada em frente a uma lanchonete, conversando

animada com um cara.


Suspirei, pensando em algo para recompensar o
susto que dei à pobre menina.

Só consegui ter uma única ideia de como fazer

isso.

Abri minha carteira e peguei uma nota de cinquenta


reais, entregando para ela. Ela olhou para aquilo confusa

e franziu o cenho, me encarando como quem pergunta por

que eu estava fazendo aquilo.

— Isso é só um presente. Compre um doce para


você. É um modo de recompensar o susto que eu te dei.

— Você deu um susto no Joe também.

Voltei a olhar para o cachorro que, repito, não


parecia nada assustado. Mas permiti-me ser extorquido

por uma criança e peguei outra nota de cinquenta,


entregando as duas para ela.

— Compre algo para o Joe também. Mas volte para


perto da sua tia, é perigoso uma criança ficar andando

sozinha por aí.


Ela pegou as notas da minha mão e as enrolou,
colocando dentro de uma bolsinha de mão que carregava.

— E você, vê se presta atenção no trânsito. É


perigoso um motorista ruim como você ficar andando por

aí com um carro.

— Sofia! — ouvi a mulher a gritando. A tal tia

apenas agora parecia ter notado que a menina tinha se


afastado e vinha em nossa direção.

Quando me olhou, ela pareceu intrigada, e algo me


dizia que ela me reconhecia. Bem, não seria estranho. Eu

não era exatamente famoso ou uma celebridade, mas


aquela era uma cidade que não era tão grande assim,

onde toda a elite econômica se conhecia, e o restante da


população conhecia alguns nomes mais influentes.

Henrique e Heitor Lizano – eu e meu irmão –


éramos donos de uma grande rede de lojas nascida

naquela cidade e que alimentava boa parte da economia


local. Não é como se minha cara fosse conhecida, não era
nenhum pop star, mas sempre tinha um ou outro que já a
tinha visto antes em algum lugar.

E, bem... não seria estranho, também, se eu tivesse


dormido com aquela mulher durante os últimos dez dias

em que eu estava por ali, ou mesmo em alguma de


minhas rápidas visitas anteriores. Eu não me lembrava do

rosto dela, mas... eu geralmente não guardava rostos


mesmo.

A menina petulantezinha me deu mais uma olhada,


antes de seguir atravessando, indo para perto da tia.

E eu voltei a entrar no carro e segui meu caminho.


Aquele incidente não iria me desanimar.

Tinha inúmeros planos para o final de semana.

*****
Capítulo dois

"Eu queria tudo que nunca tive Como o amor que vem

junto com a luz Eu senti inveja e odiei isso Mas eu sobrevivi"

(Alive - Sia)

Sábados costumavam ser os dias mais puxados da

semana. Mas eu não reclamava. Se estava puxado, era

porque tinha trabalho para mim, e eu deveria me sentir


grata por isso, porque não era sempre que acontecia.

Esses dias geralmente eram ocupados por bicos

como garçonete em alguma festa. Conhecia a dona do


buffet há anos, e ela me ajudava muito me chamando para
esses eventos. Não era muito dinheiro, mas ajudava

demais. Às noites eu tinha o meu trabalho fixo como


atendente em um barzinho. O salário também não era

grande coisa – se fosse, eu não precisava pegar os extras

das festinhas aos fins de semana – mas era algo certo,


além das gorjetas, que ajudavam muito.

O intervalo entre um trabalho e outro representava

mais um momento corrido do meu sábado: a troca de

babás.

Minha prima Sara era dona de uma pequena


lanchonete, onde trabalhava de segunda à segunda,

mesmo assim aos sábados aceitava cuidar da minha filha

para mim, mas apenas durante o dia, porque à noite ela

não abria mão de suas saídas com os amigos. Porém,

como à noite o meu trabalho era fixo, eu tinha uma babá


contratada.

Desci do ônibus e do outro lado da rua avistei

minha filha sentada em uma das mesas que ficavam na

calçada em frente à lanchonete, parecendo distraída


desenhando algo em uma folha de papel, com o nosso
cachorro – Joe, um mestiço de labrador com vira-lata –
deitado no chão aos seus pés.

Eu terminava de atravessar a rua quando ela me

viu e largou o que fazia, vindo correndo em minha direção

e me recebendo com um abraço.

Sara veio logo atrás. Apesar de sermos primas,

éramos fisicamente muito diferentes. Sara tinha a pele

negra como a de seu pai – marido da minha tia –, os

cabelos crespos e curtos e devia medir uns dez

centímetros a mais do que os meus 1,60. A diferença de


altura junto à de idade – ela era cinco anos mais velha que

eu – contribuía para que ela sempre tivesse sido para mim

como um espécie de irmã mais velha super protetora.

Sinceramente, não sabia o que faria da minha vida


sem ela.

Já eu, tinha os cabelos compridos e lisos,

levemente ondulados nas pontas, em um tom claro de

castanho.
Antes de qualquer cumprimento, ela já veio logo

contando: — Você não sabe o que sua filha aprontou.

Estava já com Sofia no colo e olhei bem em seu

rosto. Por baixo dos óculos que usava para fazer


atividades escolares, ela desviou os olhos como fazia

sempre que aprontava algo.

— O que a senhorita fez? — questionei,


pausadamente.

— Pedi para ela ficar sentada e quietinha enquanto


eu conversava com um cliente, e ela decidiu atravessar a

rua sozinha.

— Eu tava levando o Joe pra passear! — a

pequena se defendeu.

Antes que eu pudesse dar qualquer bronca, Sara


prosseguiu: — Por pouco ela não foi atropelada.

— Meu Deus! — eu praticamente gritei, sentindo


meu sangue gelar só de imaginar tal hipótese. — Sofia,

por que foi fazer isso?


— Tia Sara já brigou comigo, mamãe. Eu não vou

fazer de novo, prometo.

— Não vai mesmo. Vamos ter uma conversa muito


séria em casa, mocinha!

Ela fez bico e desceu do meu colo, cruzando os


braços.

Olhei para minha prima.

— Como você não viu isso, Sara?

— Desculpa, Lu. Eu realmente me distraí por


alguns minutos. Os clientes querem atenção, não dá para
ignorar, você sabe.

É, eu sabia. Minha prima tinha o trabalho dela, e já

fazia muito por mim olhando Sofia – de graça – nos


sábados em que eu era chamada para trabalhar em
alguma festa.

De qualquer maneira, aquilo não era o ideal, e esse

era o meu grande sinal de que eu não deveria mais deixá-


la lá. O dinheiro, infelizmente, faria muita falta, mas a
segurança da minha filha vinha em primeiro lugar.

— E você não sabe quem era o motorista — ela


voltou a falar, agora com um tom de fofoca.

— Quem? — Imaginei que fosse algum conhecido.

— Henrique Lizano.

Em um primeiro momento, o nome não me disse

nada, mas levou apenas alguns segundos até que o


sobrenome me soasse familiar.

Como ignorar, se era justamente o nome da grande


loja tão importante na cidade?

A qual eu, particularmente, nutria uma grande

antipatia.

Contudo, o primeiro nome ainda seguia me

causando estranheza.

— Não era outro o nome do CEO de lá?


— Heitor? Ah, sim. Henrique é o irmão dele, parece
que veio do exterior para assumir os negócios, não sei
porque.

Bem, a verdade é que ela já sabia de coisa demais.

Eu mesma desconhecia que ela tinha todo aquele


conhecimento sobre os Lizano.

Voltei a focar no que interessava: o quase

atropelamento da minha filha. E meu sangue ferveu.

— Era só o que faltava. Esse estúpido não viu uma

criança atravessando a rua?

— Sofia disse que ele passou direto pelo sinal

vermelho.

— Típico desses ricos, acharem que podem tudo!

— Mas, por falar neles... Eu nem sabia que cara


esse sujeito tinha, mas na hora eu estava conversando

exatamente sobre eles com o Jonas, foi ele que o

reconheceu e me contou quem era.


Não pude evitar revirar os olhos, enfim entendendo

o motivo de tanta distração.

— O Jonas, né? Sei...

— Não é nada do que está pensando, Lu. Ele

trabalha para as Lojas Lizano, e tem certa influência lá.

Sabe que vão inaugurar uma nova loja semana que vem,
logo ali na rua da frente, e ainda estão contratando

vendedores? Falei de você, e ele disse que é só levar o

seu currículo, que ele garante que será contratada.

— Em uma loja da Lizano, Sara? Por favor! Você


sabe que eu odeio aquele lugar.

— E sei também que está precisando de um

emprego em horário comercial. Vive reclamando de ter

que trabalhar à noite e deixar a Sofia com uma babá.

Ela tinha razão, no fim das contas. Mas naquele


momento, eu não tinha nem tempo de pensar a respeito

daquilo. Precisava me organizar para ir para o trabalho.


Sendo assim, despedi-me dela, agradeci por ter

novamente cuidado de Sofia e, de mãos dadas com minha

filha, segui por duas quadras até a nossa casa.

*****
Capítulo três

"Quando chove, é torrencial Mas você nem percebeu Que não está

mais chovendo É difícil respirar quando tudo o que conhecemos é

A luta pra ficar por cima da linha de água crescente"

(Rainbow – Kacey Musgraves)

Logo que entramos, Sofia sabiamente se adiantou

em quebrar o silêncio, em uma tentativa de escapar da


bronca que ela sabia que estava prestes a receber: —

Não foi culpa minha, mamãe. Eu atravessei com o sinal


certo, como você me ensinou. O moço é que passou

direto pelo vermelho.


Suspirei, sentando-me no sofá e assim ficando com

os olhos à altura dos dela. Joe pulou para se deitar ao


meu lado, completamente despreocupado com a

conversa.

— Quando eu te ensinei a atravessar a rua, deixei

bem claro que você não pode fazer isso sozinha. Tem
sempre que ter um adulto por perto.

— Eu sei, mamãe. Não vou fazer mais, prometo.

— Acho bom que não faça mesmo. Podia ter se

machucado, Sofia.

— Eu sei. A tia Sara me falou. Ela ficou muito brava


comigo. E você também está.

— Eu não estou brava. Estou triste por você ter nos

desobedecido. É para ficar sentadinha enquanto a tia Sara

está atendendo.

Ela movimentou a cabeça em concordância e

pareceu se distrair por alguns instantes, pensando em

outra coisa.
— Mamãe, sabe o moço que dirigia? Ele parou o
carro e veio falar com a gente. Comigo e com o Joe.

— Pelo menos isso. Ele foi ver se você estava

bem?

— Não, ele deu isso aqui pra gente.

Ela colocou a mão dentro de sua bolsinha de

pelúcia cor de rosa e de lá tirou duas notas de cinquenta

reais.

Eu mal conseguia acreditar no absurdo que era

aquilo.

— Ele te deu... dinheiro?

— É. Acho que ele é rico. Tinha que ver o carrão

dele. A tia Sara disse que ele é dono daquele lojão que vai

abrir lá na outra rua.

— Ele tentou te levar a algum lugar? Te chamou

para entrar no carro?


Mil hipóteses assustadoras se passaram pela

minha mente, relembrando histórias horríveis que já tinha


ouvido sobre rapto de crianças para os mais horripilantes

propósitos. Na maioria das vezes os criminosos as


atraíam oferecendo doces, brinquedos, ou mesmo
dinheiro.

Meu estômago revirou, devido ao pânico de pensar

nas coisas que poderiam ter acontecido à minha


garotinha.

— Não, mamãe. Ele disse que era para.. como era


mesmo? Recom... recompi...

— Recompensar?

— Isso! Pelo susto que ele deu em mim e no Joe.

Apesar do alívio de descobrir que não se tratava de


um criminoso sequestrador de crianças, eu bufei, ainda
indignada.

— Era só o que me faltava. Avança um sinal

vermelho, quase mata a minha filha e tenta comprar as


desculpas dela com dinheiro. Arg, odeio esses playboys

idiotas que parecem estar se proliferando pela cidade!

— Não posso ficar com o dinheiro então, mamãe?

Ela fez um biquinho e aquilo quebrou o meu

coração. Óbvio que se eu estivesse com ela na hora não a


deixaria aceitar aquele dinheiro. Mas, agora, já era tarde

demais para devolver. E ela provavelmente não voltaria a


encontrar aquele idiota.

Ao menos, eu desejava que não.

— Não pode aceitar dinheiro de estranhos, Sofia.


Nem dinheiro, nem comida, nem brinquedos... nada,
entendeu? Em hipótese alguma!

— Quer que eu jogue ele fora?

— Não, né? Agora você já aceitou. Podemos


comprar com ele alguma coisa para você e uns petiscos

para o Joe.
— Eu conversei com o Joe e a gente teve uma
ideia melhor pra esse dinheiro, mamãe. Queremos que
você coloque no cofrinho da sua loja.

Por um momento, vi-me sem fala, emocionada com

a atitude da minha filha.

Há muitos anos que eu vinha juntando todo o

dinheirinho que sobrava no fim do mês – isso é: quando


sobrava – em uma poupança, com a intenção de realizar o

meu grande sonho, que era montar o meu próprio ateliê


para trabalhar com os móveis que eu reformava na
garagem; onde eu pudesse expô-los e comercializá-los.

Eu já os anunciava pela internet, onde as vendas

ocorriam mesmo que de forma lenta, mas ter o meu


próprio espaço era um sonho que eu trazia em mim desde
menina. Só que acabei sendo mãe antes do planejado, e

isso fez minhas prioridades mudarem drasticamente,


arrastando meu sonho cada vez mais para frente.

Cem reais não era um valor que faria uma diferença


tão significativa assim para a compra de um imóvel, mas
Sofia demonstrava acreditar nisso, e ela estar abrindo
mão de comprar algo para si própria me emocionava
demais.

— Você tem certeza disso, querida?

— Claro que tenho, mamãe. Nós vamos comprar a


nossa loja, e com isso você ainda vai ter que trabalhar

muito, mas eu vou poder ficar perto de você.

— Não acredito que o Joe vá querer abrir mão do


dinheiro dele. Sabe que ele gosta muito de petiscos —

brinquei.

— Ele quer sim, mamãe. Tanto que concordou na

hora com a minha ideia. Contei que você vai fazer uma

casinha de madeira pra ele, bem bonita e colorida, em um


cantinho da loja, pra ele ficar lá com a gente.

— Foi um ótimo argumento para convencê-lo,

então.

— Com essas notas já vai dar pra comprar a loja?


— Ainda não. Vamos precisar de mais ‘algumas’

delas.

— Mas elas vão ajudar muito, não vão?

— Vão sim, meu amor. Vão sim.

Coloquei-a sentada no meu colo, abraçando-a com

força. Ficamos em silêncio por alguns instantes, até que

ela, responsável demais para os seus seis anos de idade,


me lembrou: — Precisa trocar de roupa pra ir pro trabalho,

mamãe. Ou vai chegar atrasada.

Eu simplesmente odiava aquilo.

Trabalhando em um bar, eu tinha apenas uma noite


livre por semana. Nas outras, estava em casa no horário

em que minha filha estava na escola. Quando ela voltava,

eu saía para trabalhar. Chegava muito tarde, e já a

encontrava dormindo. Passávamos juntas apenas


algumas horas pela manhã, em que eu a ajudava nos

deveres de casa, preparava o almoço e a arrumava para

levá-la ao colégio.
Sentia que aquilo não era o suficiente e que estava

perdendo o crescimento dela. Perdendo coisas como

colocá-la para dormir e contar histórias, ou ficar ao lado


dela quando tinha pesadelos.

Andava distribuindo currículos em outros comércios

da cidade e torcia muito para logo ser chamada para

algum. Um trabalho em horário comercial era tudo o que

eu queria naquele momento.

Claro, nem perto do tanto que eu queria conseguir

comprar o meu próprio imóvel e construir nele o meu

ateliê. Mas este era um sonho muito mais difícil e distante

de se tornar real.

— Tem razão. Anda, venha me ajudar a escolher

uma roupa.

— Mas você usa sempre o mesmo uniforme,

mamãe.

— É, tem razão de novo. Vou te ajudar a escolher o


seu pijama, então.
Fiz cócegas nela, conseguindo uma deliciosa

gargalhada como resposta.

Aquilo me dava ainda mais tristeza em ter que sair

e deixá-la com uma babá.

Mas eu sabia que, de alguma forma, Sofia entendia

que era por ela que eu fazia aquilo.

Ela era tudo na minha vida. A principal razão para


tudo.

*****
Capítulo quatro

“Eu perderia se apostasse o meu coração em você?

Isso é real? É falso? Você iria embora? Você ficaria?

Será que a noite vai virar dia?

Será que ficaremos mais próximos?

Ou será que acabaria?”

(Bet my Heart - Maroon 5)

O meu sábado estava sendo aproveitado como

devia ser.
Durante todo o dia, curti a festa na mansão de um

amigo, com direito a piscina, muita bebida e mulheres


maravilhosas.

Depois dela, foi apenas o tempo de passar em

casa, tomar um banho rápido e trocar de roupa, e já segui

para a segunda rodada. Dessa vez, um programinha mais


leve: um barzinho, acompanhado por outro grupo de

amigos.

O lugar escolhido por Heitor, o amigo em questão –

que, aliás, também era meu sócio e, não menos


importante, meu irmão – era um barzinho mais ‘classe

média’, bem menos luxuoso do que os que costumávamos

frequentar, mas bem aconchegante. Eu nunca tinha ido lá,

e confesso que gostei do ambiente. Especialmente porque

era muito bem frequentado, cheio de mulheres


maravilhosas.

Para mim, a ‘caçada’ fazia parte da noite. Era só

escolher uma garota, certificar-me de que não estava

acompanhada, flertar por algum tempo, pagar um drink ou


dois, ainda à distância, enquanto curtia a conversa com os
amigos. Ao final da noite, vinha a finalização: a
aproximação, mais alguns flertes, mais um drink e um

convite para conhecer a minha casa.

Não falhava nunca.

— Olha aí o Rick já caçando a presa da noite —

Joca, um dos meus amigos, comentou em tom de

zombaria.

— Só se vive uma vez — rebati, erguendo meu


copo em um brinde.

Meu irmão Heitor, como de costume, não perdeu a

oportunidade de fazer uma crítica disfarçada de elogio: —

Se tem um cara que sabe usar bem os seus privilégios,


esse cara é o Henrique. — Ele também ergueu o próprio

copo. — Desde que ele voltou ao Brasil, toda manhã eu

me deparo com uma mulher diferente saindo da minha

casa.

A casa não era exatamente ‘dele’. Era herança do

nosso pai, e ele apenas a usara durante os últimos anos.


Agora, eu é que iria assumi-la.

Mas preferi não focar nisso.

— Ser um sujeito irresistível não deixa de ser um


privilégio — rebati, embora soubesse que não era a isso

que ele se referia.

— Você poderia ser horroroso, irmão. Não faria


qualquer diferença. As mulheres vão como moscas em
cima de você por conta de outros atributos seus, sabe

disso.

— Se fosse assim, creio que estariam também em


cima de você, Heitor. Temos o mesmo sobrenome e
somos sócios. Aliás, seu rosto é conhecido pela cidade, o

meu não.

Ele levantou a mão, exibindo a aliança de noivado.

Revirei os olhos. Heitor namorava com a mesma

menina desde os seus dezesseis anos. E era um


cordeirinho fiel. Nem sei por que ainda saía com a gente,
já que nunca se permitia esticar a noite com alguma

mulher.

Não que ele fosse tão bonito quanto eu, mas...


tinha lá o seu potencial. Era uma pena que não usufruísse
disso.

— Nunca entenderei essa tara por monogamia... —

respondi ao gesto dele.

— Para alguém como você, deve ser realmente

difícil entender o conceito de gostar de uma pessoa pelo


que ela é.

— Iiiih... já vão começar com as provocações? —


Paulo, outro amigo que estava à mesa conosco,

questionou.

Joca concordou com ele.

— Sempre assim. Esses dois parecem estar em

uma eterna competição.


Joca disse muito bem. Competição era a palavra
certa.

Desde crianças que meu irmão e eu estávamos


sempre competindo por alguma coisa. Nossa diferença de

idade era de apenas um ano e meio – sendo eu mais


velho – então até ele conhecer a Bruna, sua noiva,
disputávamos as meninas na escola.

Mas mesmo ele tendo saído do ‘mercado’ tão

jovem, ainda competíamos por qualquer outra coisa. De


campeonatos online de videogame a fechamentos de
contratos para as empresas, tudo virava uma disputa.

Absolutamente tudo.

Foi em uma aposta daquele tipo que acabei tendo


que aceitar a troca de comando das empresas com ele.
Não que eu tivesse qualquer objeção a passar algum

tempo no Brasil, mas o interesse principal era dele e eu


nunca estava disposto a ceder tão fácil a qualquer coisa

que ele quisesse. Nossas competições eram nesse nível.


E eu estava pronto para transformar aquilo,
também, em mais uma.

Calmamente, respondi:

— É a primeira vez que venho aqui, irmão. Pode


ser que nas festas nas casas de amigos logo corra a
notícia sobre quem sou eu, mas por aqui ninguém me

conhece se eu não disser o meu sobrenome. Escolha uma

mulher, qualquer uma, que vou te mandar uma selfie pela


manhã, acordando ao lado dela, sem que ela saiba quem

eu sou.

— Levando-a para a nossa mansão? Seria um

ótimo argumento.

— Ela é que vai me levar para a casa dela, mano.


Nem carro eu tenho, serei só um sujeito humilde.

Ele riu e tomou mais um gole da bebida, enquanto

percorria os olhos ao redor, à procura da garota ideal.

Eu já podia imaginar que ele faria uma escolha


muito aleatória apenas para me irritar.
— É melhor que eu escolha — intervi.

— Tudo bem, escolha. Mas eu terei que aprovar.

Fui com os olhos diretamente para o balcão, onde


uma atendente de cara chamou a minha atenção.

Era uma coisinha linda, com os cabelos castanhos

presos por um rabo de cavalo no alto da cabeça e usando

um uniforme que eu julgava muito sexy. Não via a hora de


tirá-lo.

— A mocinha do bar — declarei, enfático.

Heitor não pareceu aprovar a escolha.

— Bonita demais, irmão. Não quero dar essa moral

toda para você.

Bufei, mas aceitei escolher outra, embora meu foco


se mantivesse naquela gracinha de uniforme.

A duas mesas de nós, estava uma loira. Não era

tão gata quanto a garçonete, mas era muito bonita.


— Aquela ali, então?

— Ela sabe quem você é, Henrique.

— Como pode ter certeza disso?

— Porque o nome dela é Renata. Sei disso porque

ela se apresentou para mim na curta conversa que


tivemos, há uma semana, quando eu a vi saindo lá de

casa pela manhã.

Certo, como eu disse: eu raramente lembrava de

rostos ou de nomes. Ao contrário do meu irmão, que tinha


uma memória fotográfica.

— Se é assim, voltamos à garçonete. Parece uma

moça simples, não deve me conhecer.

— Tá... tudo bem. Vai fundo na garçonete.

— Ah, eu vou. Bem fundo mesmo. Pode ter

certeza.

Voltei a beber e nossos amigos – já um pouco

cansados das minhas apostas com o meu irmão – já


tinham até mesmo entrado em outro assunto paralelo.

Heitor e eu éramos assim, afinal: tudo virava motivo


para apostas. Eu tinha perdido a nossa última, e agora

estava ali. Não pretendia perder mais uma vez.

— Valendo o que dessa vez? — instiguei.

Se a vitória me era certa, eu queria saber o que eu

ganharia com aquilo.

— Quero o seu conversível.

No momento que ele falou eu levava o copo à boca,

então quase engasguei. Eu tinha comprado aquele carro

há duas semanas, logo que cheguei ao Brasil. Ainda

estava com cheirinho de novo.

— Qual é, Heitor! Você tem grana para comprar um

carro como o meu. Vai, em vez disso, gastar dinheiro

levando-o para outro país?

— Tenho e pretendo continuar tendo, jamais


gastaria tanto em um carro, maninho. Mas, se for ganhado
em uma aposta, será muito bem-vindo. Não pretendo levá-

lo comigo, mas sabe que voltarei ao Brasil duas ou três

vezes por ano, no mínimo. Ele estará na garagem me

esperando para eu usar quando estiver por aqui. A não


ser que você esteja com medo de perder, daí podemos

pensar em algo menor...

— Não tenho medo, porque não vou perder.

Obviamente, eu já tinha bebido demais, e meu


irmão também. Eram nesses momentos que nós

acabávamos nos excedendo nos prêmios das apostas.

Certa vez, em uma de minhas visitas ao Brasil, eu o

acompanhei na inauguração de uma loja em uma cidade


do interior e apostamos um cavalo bonito que

descobrimos que estava à venda. Eu venci, Heitor foi

obrigado a comprar o animal para mim. Acabou virando

um presente para o nosso pai, ainda vivo na época,


porque o deixei na fazenda dele. Afinal, eu não tinha como

levar um cavalo comigo para os Estados Unidos.


— Então, tudo acertado. Vá fazer a sua parte —

meu irmão concluiu.

O inferno que estava tudo acertado.

— Eu ainda não disse o que eu vou querer quando

eu ganhar.

— Se você ganhar.

— Quando eu ganhar. Já que você jogou alto na

aposta... sabe aquele quadro bem na entrada da sala lá


de casa?

O semblante descontraído dele deu lugar a uma

expressão séria. Ele sabia muito bem de que quadro eu

estava falando.

Nosso avô o havia adquirido em um leilão na Itália,


há umas três ou quatro décadas. Meu irmão e eu o

adorávamos quando éramos moleques, mas foi Heitor o

escolhido pelo nosso velho avô para ficar com tal obra, já
que ele supostamente apreciava arte bem mais do que eu.

Sabia definir períodos, estilos e tudo mais, enquanto eu


não sabia nem mesmo o nome do pintor. Só que ele era
bonito e, caramba, combinava muito com os móveis da

casa.

— Isso é golpe baixo... — Heitor resmungou. —

Sabe que pretendo levar aquele quadro comigo quando


me mudar. A Bruna também o adora.

— Você me parece tão certo da vitória, que não

deveria estar preocupado.

Ele pareceu pensar por um instante e eu poderia


jurar que iria desistir. Mas se existia algo em que eu e meu

irmão éramos parecidos, era na teimosia. Portanto, ele

estendeu a mão, a qual eu apertei, selando nossa aposta.

Já começava a planejar mentalmente mudar o local


do quadro, colocando-o na sala de jantar. Achava que

combinaria bem mais.

Ali mesmo na mesa, iniciei o jogo. Lancei alguns


olhares para a garçonete, que ainda levou algum tempo
até parecer percebê-los, mas não me deu muita confiança.
Explicável, já que a todo tempo alguém encostava no
balcão pedindo alguma coisa. O trabalho parecia puxado,
pois ela não parava um só minuto.

Em um momento em que um garçom veio à mesa,

decidi usar a velha tática de escrever um bilhete em um


guardanapo e pedir para que o funcionário levasse até ela.
Quando ele assim o fez, eu tive a confirmação de que tal

estratégia nunca falhava, porque, ao terminar de ler, ela


olhou em minha direção e sorriu levemente. Mas logo
outro freguês chegou, pedindo uma bebida, e ela parou de

me olhar para atendê-lo.

A primeira isca já tinha sido jogada e foi


prontamente aceita. Eu não tinha mais qualquer sombra
de dúvidas de que ganharia aquela aposta.

Na verdade, nunca cheguei a ter. Se todo o status e

a influência do meu nome e do meu dinheiro tinham seu


peso, este ainda assim era só uma pequena fração de
todo um pacote. Eu me garantiria muito bem sem aquilo.
Paulo logo se levantou para conversar com uma
garota e, algum tempo depois, voltou à mesa apenas para
se despedir e foi embora com ela. Joca também não

demorou a se arranjar. Sobramos apenas eu e Heitor, e


ele, após mais algumas provocações, resolveu que

também estava na hora de ir.

— Vai logo antes que a Bruna venha com um rolo


de macarrão na mão para te levar para casa.

— Ela não faria isso, porque confia em mim.

— Ela sabe que você é um otário. Anda, vai logo e


aproveita para se despedir do seu amado quadro quando
chegar em casa.

— Melhor que você se despeça do seu carro.

— Não demore muito para ir dormir, porque vou te

acordar com uma foto minha acordando com aquela


gracinha ali ao meu lado.

— Se ela souber quem você é...


— Não vai saber. Vou jogar limpo, tenha certeza.
Sei ser um ótimo ator quando quero. Ah, e antes de ir,

pague a conta. Lembre-se que sou apenas o amigo pobre


do grupo.

Ele riu, assentiu e, após fazer o que eu pedi, foi


embora. Tomei o último gole do meu drink, dando uma boa

olhada na belezinha que seguia trabalhando atrás do


balcão.

Era hora de agir.

*****
Capítulo cinco

“Eu te conheci no escuro Você me acendeu Você me fez

sentir como se Eu fosse o suficiente”

(Say You Won't Let Go - James Arthur)

Ter um cara flertando comigo durante o expediente

não era algo novo para mim. E não havia nenhuma

presunção da minha parte em dizer isso, mas o meu


ambiente de trabalho era um local bem propício a esse

tipo de coisa.

Contudo, meu procedimento era sempre o mesmo,


o de não dar muita confiança a isso. Em geral, os caras
desistiam, e eu imaginei que fosse isso o que ele também

iria fazer. Mas percebi que era bem insistente quando um


colega chegou me trazendo um guardanapo com um

bilhete escrito.

Um mulher linda como você teria algum

impedimento em me acompanhar em uma bebida?

Eu o olhei novamente e a forma como ele me

encarava profundamente acabou fazendo com que um

sorriso bobo escapasse de meus lábios.

Oras, eu era uma profissional, mas, no fim das

contas, também era uma mulher. Ver o interesse de um

homem lindo como aquele por mim não deixava de mexer

com o meu ego.

Embora parecesse um pouco fazer o estilo playboy

– que eu detestava com todas as minhas forças – eu não

poderia negar que ele era realmente o que eu poderia

classificar como um homem lindo. Tinha os cabelos


castanhos e curtos, e uma barba curtinha que eu
considerava um charme.

Porém, infelizmente eu não podia me dar ao luxo

de deixar qualquer coisa rolar, por isso simplesmente

voltei ao meu trabalho. Achava que o bonitão iria fazer


como todos os outros: cismar com alguma outra mulher

bonita – estava cheio delas por ali – e encerrar a noite

com qualquer uma delas. Não contava que algum tempo

depois ele apareceria diante do balcão.

Cheguei a sobressaltar, surpresa ao dar de cara


com ele.

De perto, o filho da mãe conseguia ser ainda mais

bonito.

— Oi — ele falou, enquanto abria um sorriso.

Meu Deus, ele tinha dentes perfeitos. Era uma

ótima visão, no fim das contas.

— Boa noite — respondi, ativando o modo

profissionalismo. — Deseja beber algo?


Ele me mediu de cima a baixo e eu me senti como

se estivesse sendo despida por aquele olhar. Não era bom


um homem tão lindo me olhar de forma tão profunda. Eu

estava há muito tempo sozinha. Tempo demais para


conseguir ser indiferente àquela situação.

Bem, uma massagem no ego ia bem de vez em


quando, não é?

— Uma cerveja, por favor.

O pedido foi uma surpresa. Imaginei que ele fosse


pedir algum drink mais sofisticado. Pelo que pude

observar, era o que ele bebia quando estava na mesa.

Não que eu o estivesse observando.

Parecendo ler a minha mente, ele explicou: — Era

aniversário de um amigo que tem um padrão de vida bem


melhor que o meu, até vesti minha melhor roupa para vir
aqui. A conta da mesa foi toda dele. Agora que ele foi

embora, vou ter que consumir algo mais simples.


Eu não sabia por que ele estava me dando tal

satisfação. Sobre as roupas, notei que ele estava bem


vestido, mas sinceramente não saberia se seriam peças

de grife ou de uma loja de departamento, eu realmente


não me interessava e, consequentemente, não entendia

nada dessas coisas.

Apenas esbocei um sorriso de simpatia em

resposta e me virei para o freezer vertical, onde as


garrafas de cerveja ficavam, apanhando uma delas e

colocando sobre o balcão, onde a abri.

Em seguida percorri os olhos pelo balcão, vendo se

algum outro freguês faria um novo pedido. O bonitão


voltou a falar, chamando novamente minha atenção para

si: — Ainda estou esperando pela resposta ao meu


bilhete.

Recapitulei as palavras lidas naquele pedaço de


papel, antes de responder: — Desculpe, mas estou

trabalhando. Acho que isso conta como impedimento. O


lugar está cheio de mulheres jovens e bonitas, estou certa
de que alguma delas vai querer acompanhá-lo.
— Realmente, há outras mulheres jovens e
bonitas... Mas nenhuma delas chamou a minha atenção
como você.

Era lisonjeiro, mas confesso que a parte sobre ser

jovem e bonita me soou meio estranha. Não que eu não


me considerasse bonita, mas... apesar de meus vinte e
cinco anos, eu sentia como se houvesse em minhas

costas um peso dobrado dessa idade.

Ter sido, ainda bem nova, mãe solo fez com que eu
assumisse um mundo de responsabilidades e obrigações,
me obrigou a amadurecer vinte anos em seis. Coisas

como flertes descompromissados e namoros agora me


pareciam uma realidade muito distante.

Mas, bem... é claro que o carinha bonito não


precisava ouvir toda essa história.

— Eu sinto muito. Mas meu expediente vai até as

três da manhã.
Ele voltou os olhos para o relógio que decorava a
parede atrás do balcão, voltando a me olhar em seguida.

— Bem, temos pouco mais de uma hora até lá. Eu


não me importo de esperar.

Acho que ele não havia entendido.

— Quando acabar com tudo aqui, eu preciso ir para

casa.

— Entendo. Pais rígidos?

Isso era outra coisa que parecia bem distante da

minha realidade atual. Minha mãe morava em outra cidade


e meu pai já era falecido há alguns anos.

— Não, eu não moro mais com os meus pais.

— ...Um marido ciumento, então?

— Não, sou solteira.

Quando terminei de dizer tais palavras, vi um meio

sorriso surgir no rosto dele. Droga! Era tudo o que ele


queria saber.

Confesso que minha resposta tinha sido


completamente sincera e inocente. Como eu disse, há

tempos não dominava mais a arte do flerte.

— Eu apenas preciso ir para casa — completei,

ainda tentando soar simpática e educada, mas com um


tom de voz firme para não dar margens a insistências.

— Bem... posso te acompanhar, então. Até o seu

carro, ou até o ponto de ônibus, táxi, Uber, bicicleta...

como você fizer para ir embora.

— Daqui até o ponto de ônibus não são nem dois


minutos.

— Cada um deles valeria a pena.

Outro freguês me chamou, na outra ponta do

balcão, e eu quase agradeci por isso. Não que aquele

homem estivesse, de fato, me incomodando. Era


insistente e eu tinha um palpite de que era um cafajeste

sedutor, mas não era desagradável ou mal educado, como


muitos que já passaram por ali. Não parecia ser do tipo

que tentaria me seguir na rua ou me agarrar à força.

Bem, não que desse para saber disso apenas por

sua aparência ou por meia dúzia de palavras trocadas. Eu


não era uma pessoa que costumava confiar facilmente

nos outros. Especialmente em estranhos.

Quando me afastei para atender a outra pessoa,

outras acabaram me solicitando e, com isso, eu acabei


ficando por quase meia hora do outro lado do balcão.

Retornei para atender a um casal e me surpreendi

ao ver que o bonitão permanecia ali, agora com a garrafa

de cerveja já vazia, balançando em minha direção em um


sinal silencioso de que queria mais uma.

Ele realmente sabia ser insistente.

E confesso que havia uma parte de mim que

gostava daquilo.

*****
Capítulo seis

"Escritas nessas paredes estão as histórias Que eu não consigo

explicar Eu deixo meu coração aberto Mas ele fica aqui, vazio por

dias"

(Story Of My Life – One Direction)

Depois de atender o casal ao seu lado, eu apanhei

mais uma garrafa no freezer, entregando a ele.

Tentei ser o mais educada possível: — Se está


mesmo aguardando por mim, falei sério quando disse que

preciso ir embora.
— E eu também falei sério quando disse que não

me importo de só te acompanhar até o ponto. Até lá


podemos apenas conversar enquanto você trabalha.

Nenhum impedimento a isso, não é?

De fato, não havia nenhum. Se ele não me

atrapalhasse, não me distraísse ou não fosse


inconveniente, que problema teria? Mesmo porque, o

movimento no balcão já começava a cair um pouco.

Talvez fosse até agradável conversar com um

homem bonito e lisonjeiro, afinal.

— Tudo bem. Apenas não poderei lhe dar atenção

exclusiva. Estou trabalhando.

— É uma pena por isso, mas eu aceito as

condições. Meu nome é Henrique. E o seu?

— Luíza.

— Então, Luíza... trabalha aqui há muito tempo?

— Uns três anos. — E não via a hora de sair.


Meus patrões eram ótimos, mas o trabalho –
especialmente o horário – era desgastante. Mas,

novamente, não ia desabafar aquilo com um

desconhecido, por isso apenas repassei a pergunta: — E

você? Trabalha com o quê?

Ele pareceu pensar um pouco antes de responder:

— No momento eu estou desempregado. Como falei, só

vim hoje até aqui porque era aniversário do meu amigo e

ele bancou a mesa toda. Duas cervejas é tudo o que dá

para comprar com o meu dinheiro.

Detalhes demais, ao contrário de mim, que tentava

contar o mínimo possível da minha vida.

Mas não fui indiferente ao relato dele. Afinal, já

tinha passado na vida por algumas fases de desemprego


e sabia o quanto era angustiante. Ele, diferente de mim,

talvez não tivesse o agravante de ter um filho para

sustentar, mas... ainda assim, não era uma situação

agradável.
Com isso, acabei me lembrando do que minha

prima tinha me dito mais cedo: — Está procurando por


algo em alguma área específica?

— Ah, não... Já fiz muitas coisas na vida. Qualquer


emprego eu toparia. Mas está difícil, né?

— Não sei se você sabe, mas vão abrir uma loja

nova da Lizano. Parece que estão contratando


vendedores.

Ele deu mais um gole na cerveja e sorriu.

— Parece um lugar bom para trabalhar.

— Acha mesmo?

— Claro. É uma rede grande de lojas, que nasceu


na nossa cidade. Gosto muito dos produtos de lá, não

devem ser difíceis de vender.

Inconscientemente acabei revirando os olhos.

Eu tinha uma certa dificuldade em esconder meus

sentimentos com relação a coisas e pessoas, e isso era


muito ruim em alguns momentos. Naquele, eu tentei ser

discreta, mas percebi que não tinha conseguido quando


Henrique me perguntou: — Algum problema?

— Ah, não. Eu só não simpatizo muito com aquele


lugar.

— Comprou algo com defeito ou foi mal atendida

em alguma loja? Porque o atendimento de lá é em geral


muito bom. Bem, digo... é o que todo mundo fala.

— É só algo pessoal. Não gosto muito dessa coisa


de móveis feitos em escala industrial. Em geral têm má

qualidade e nada de originalidade. E a Lizano tem


fornecedores duvidosos e fábricas sem um mínimo de

responsabilidade social ou ambiental.

Ele arqueou as sobrancelhas, parecendo meio em

choque com o meu discurso. A mesma expressão que eu


já tinha visto milhares de vezes em outros rostos. Esse era

um motivo a mais para eu não gostar muito dessa coisa


de ser transparente em minhas opiniões.
Um cliente me chamou e me afastei para atendê-lo,
imaginando que naquele meio tempo Henrique
aproveitaria a minha distração para ir embora. A

sinceridade teria ido bem a calhar, no fim das contas.


Contudo, ele permaneceu lá, já com a garrafa vazia em

mãos, me olhando como se esperasse pelo meu retorno.

— Falta apenas meia hora agora — ele comunicou,

mostrando que seguia esperando pelo meu horário de


saída.

Sorri, cruzando os braços diante do corpo, me


permitindo a um pouco mais de leveza.

— Sério que vai ficar aí até as três da manhã só

pelo prazer de me acompanhar até o ponto de ônibus?

— Será realmente um enorme prazer.

— Será, na realidade, uma perda de tempo.

Acredito que nada vá rolar entre nós nesses poucos


minutos.
— Talvez. Mas quem sabe eu consiga o seu
telefone e a gente marque algo para outro dia em que
você esteja com um pouco mais de tempo?

— Sinceramente, eu ainda acho que seria mais

vantagem você tentar essa sorte com alguma outra


mulher. Deve estar procurando uma companhia para o

final da noite, e, reforço: eu não sou uma opção.

— Não estou interessado em tentar a sorte com


outra mulher. Quero, sim, a sua companhia, e é por isso

que estou usufruindo dela agora.

— Então está dizendo que apenas isso —

movimentei o dedo indicador entre nós — é o suficiente


para você?

— Não. Eu adoraria tentar algo mais. Mas saberei

ser paciente e, por ora, apenas a sua companhia em uma

conversa num balcão de bar está adorável.

— O que tem de adorável em uma garçonete


provavelmente com cara de cansada e acabada ao final
de um dia de trabalho, que precisa parar a todo momento

para atender outras pessoas e que problematizou uma loja


que você parece gostar?

— Eu realmente acho adorável a forma como você

faz tudo isso. E... você já se olhou no espelho? Se essa é

a sua versão cansada e acabada em um fim de noite, não


sou nem capaz de imaginar como é quando está

descansada.

Não consegui deixar de sorrir. O cara era realmente

um galanteador.

Era uma pena que ele estivesse perdendo o seu

tempo. Não ia conseguir nada de mim.

Decidida a, naquele primeiro momento, apenas

relaxar e deixar aquilo rolar, voltei ao freezer e peguei


mais uma cerveja, entregando a ele após abrir.

— Ah, não, espera... eu... — ele tentou me deter.

— Essa é por conta da casa. Na verdade, os

patrões deixam que a gente pegue uma bebida ao final do


expediente, mas as minhas estão meio acumuladas, já

que eu não bebo.

— Se é assim, vou aceitar. Não é todo dia que uma

mulher bonita me paga uma bebida. Devo encarar como


uma investida?

— Encare apenas como um “eu aceito a sua

companhia”. Mas sigo reforçando que não terá mais do

que isso.

— Já é um primeiro passo. — Ele tomou o primeiro


gole. — Sério que você não bebe? Isso é bom para quem

trabalha em um bar, não é? Não tem o risco de passar

vontade durante o expediente.

— É. Na verdade, eu nunca gostei. Meu pai bebia


muito quando eu era criança, então eu meio que peguei

ranço de álcool. Ele não ficava violento nem nada do

tipo... apenas bastante desagradável.

— Sei. Tenho alguns amigos desse tipo. Daí eu


preciso beber também, porque só dessa forma eu consigo
aturá-los. Lembro de uma vez que o Heitor tinha brigado

com a namorada, bebeu tanto e ficou tão louco que subiu


no palco do show de aniversário da cidade, e...

— Espera... foi no show há uns três anos? De uma

banda de pop-rock?

— É! Isso! Ouviu essa história?

— Não só ouvi, eu estava lá.

Ele tomava um gole nesse momento e, por


qualquer razão, engasgou, começando a tossir. Fiquei

preocupada e me aproximei, tocando de leve em seu

ombro.

— Ei, você está bem?

— Estou... eu só engasguei. Desculpe. Você disse

que estava lá? Viu a cara dele, então?

— Ah, não, eu estava super longe do palco. Eu

raramente vou a esses eventos, e quando vou sou a que


fica um pouco mais distante da multidão. Mas isso virou
notícia no dia seguinte. O cara não era um dos donos da

Lizano? Você é amigo dele?

Ele tossiu mais um pouco, tentando normalizar a

respiração.

— Ah, não exatamente amigo. Temos alguns


amigos em comum e às vezes nos encontramos em

algumas saídas. Uma vez ou outra, claro. O cara

frequenta uns lugares que eu não teria como pagar.

— Se tem amigos em comum, ele pode ver para


você a questão do emprego na loja nova.

— É, eu pensei nisso quando você me falou. Vou

ver isso durante a semana.

— Mas me diz... consegue se enturmar bem com

esse tipo de gente? Você parece um cara legal.

Ele fez uma expressão confusa, como se estivesse

lisonjeado pelo elogio e, ao mesmo tempo, intrigado com

algo que eu disse.


— Bem, obrigado, mas... os caras são legais

também. Digo, o Heitor nem tanto, mas o irmão dele é


bem gente boa.

— O tal que morava nos Estados Unidos? Não é o

que eu escuto falar. Como é mesmo o nome dele? ...Bem,

não importa. Mas o que dizem é que é um esnobe


esbanjador de dinheiro, um playboy viciado em farras e

que se envolve com um número interminável de mulheres,

as quais depois descarta como se fossem lixo.

— As pessoas falam demais.

— ...Acho que é Henrique, não é? O nome dele.


Como o seu.

— Ah... é... É meu xará. É um nome bem comum,

né?

Não dei muita atenção a isso, já que ele tinha razão


e aquele era um nome bastante comum.

— Talvez as pessoas exagerem mesmo um pouco,

mas não é tudo mentira. Hoje mesmo, aconteceu de... —


estava prestes a mencionar que o idiota Lizano quase
tinha atropelado a minha filha e decidiu ‘se desculpar’

dando dinheiro a ela, mas fui interrompida por um colega

que veio da cozinha, me informando que tinha uma


ligação para mim.

Eu sempre deixava o meu celular guardado na

minha bolsa, dentro do armário na cozinha, por isso

informava o número fixo da loja como contato de


emergência para algumas poucas pessoas.

Pedi licença e entrei, indo atender o telefone.

Era a babá da minha filha, contando que estavam

em um pronto-socorro, já que Sofia havia sofrido um


pequeno acidente.

Por mais que ela dissesse que não tinha sido nada

demais, eu entrei em desespero e precisei ser amparada


por alguns colegas. Um dos patrões se aproximou e, ao
ouvir do que se tratava, me liberou para ir embora, junto a

um colega que se ofereceu para me levar de carro até lá.


Saí pela porta da cozinha, que saía na parte de trás
do estabelecimento. No caminho cheguei a lembrar do
rapaz com quem conversava, e me senti mal por estar

indo embora sem dar qualquer satisfação a ele. Contudo,


lógico, a preocupação com minha filha sempre viria em
primeiro lugar.

Mesmo porque, eu acreditava que nunca mais

voltaria a ver aquele cara na minha vida.

E eu não poderia estar mais enganada com relação


a isso...

*****
Capítulo sete

"Está chegando o dia Em que você será minha Você

verá Que será..."

(It's Gonna Be Me - *NSYNC)

Ela foi embora.

Simples assim.

Passei horas naquele balcão esperando por ela... e

ela simplesmente se foi, como uma fugitiva.

Era oficial: eu tinha sido dispensado pela primeira


vez na minha vida.
Primeiro eu a xinguei mentalmente por uns nomes

que nem vale a pena repetir, mas logo consegui falar com
o funcionário que a havia chamado na cozinha para avisar

sobre um telefonema, e ele se limitou a me contar que ela

teve uma emergência familiar e precisou ir embora.

Eu queria acreditar que fosse verdade.

Não que eu desejasse qualquer mal a algum


familiar dela, longe disso, mas... se fosse mentira,

significaria que eu tinha sido despachado. O que

comprovaria a tese do meu irmão, de que meu sucesso


com as mulheres dependia do meu dinheiro.

Afinal, com o CEO Henrique Lizano nunca havia

acontecido algo sequer parecido com isso. Poucas horas


fingindo ser um pobretão e eu tinha sido dispensado como

se fosse um monte de nada.

Isso me faria perder a aposta, mas era algo muito

maior do que o meu carro em risco. Seria uma derrota


moral e isso eu não conseguia admitir.
— ‘Emergência familiar” é a senha para se livrar de
embustes, maninho — Heitor provocou, já na segunda-

feira, sentado em uma poltrona na sua sala do escritório

da empresa.

Em breve, seria minha sala.

Ele tinha saído cedo no domingo para ir à casa da

noiva, fazer mais uma das intermináveis listas de sei lá o

quê para o casamento. Antes que ele retornasse, fui eu

que saí para beber com outro grupo de amigos. Quando

retornei, ele já estava dormindo. Então, apenas na


segunda-feira fomos nos reencontrar para eu dar

satisfações a respeito da minha vergonhosa derrota.

— Ela realmente pareceu nervosa quando a

chamaram para atender o telefone — argumentei.

E nem era uma desculpa esfarrapada, eu realmente

tive essa impressão.

— Mulheres são ótimas atrizes, Henrique. Você

precisa aprender isso.


Será que ela também estava sendo atriz nas

críticas feitas ao CEO da Lizano, sem fazer ideia de que


estava falando com o próprio? Talvez.

Mas não perdi a chance de devolver a provocação


ao meu irmão: — Bruna está incluída nessa

generalização?

Ele fechou a cara e eu quase ri por deixá-lo sem


resposta. Ao menos algo bom eu estava tirando daquilo.
Ele realmente acreditava que Bruna fosse especial e

outras baboseiras do tipo. Bem, eu a achava uma garota


legal e tudo mais, mas... no fundo, ela não devia ser tão

diferente assim. Na minha opinião, não que as mulheres


fossem todas iguais, mas... elas eram bem parecidas.

Tirando as diferenças físicas, em sua essência elas


seguiam o mesmo padrão.

— Não mude de assunto, Henrique, e entrega logo


as chaves do carro. Não esquenta, eu te dou uma carona

até em casa.

Eu não ia entregar os pontos. Não tão facilmente.


— E quem disse que a aposta está encerrada?

— Como não estaria? Você não conseguiu

conquistar a garota.

— Mas não estipulamos um prazo. Podemos fazer

isso agora, se você desejar.

— E de que vai adiantar? Não conseguiu nem ao


menos o telefone dela.

— É, mas sei onde encontrá-la. Vou voltar ao bar e


tentar novamente.

Ele me analisou em silêncio por alguns instantes, e


eu poderia apostar que estava pensando em algo para me

massacrar.

Curiosamente, quando ele disse algo, foi o extremo


oposto disso.

— Tem quinze dias. Contando a partir de seu


próximo encontro com ela.
— O quê? Pelo amor de Deus, Heitor. Eu não
preciso de tudo isso.

— Eu quero que você tenha tempo. Pratique bem a


arte da conquista.

— Eu não preciso praticar nada.

— Não, porque as mulheres voam para cima de


você como moscas em um bolo só por você ser quem
você é. A garçonete não vai poder saber, é justo que você

tenha mais tempo.

— Que seja. Essa noite mesmo eu consigo. Não,


espera, hoje o bar não abre. Mas amanhã...

— Em uma terça-feira?

— Ela estará trabalhando.

— Ela vai pensar que você é um maníaco, além de

um desocupado. Aguarde até o final da semana.

— Sério que você está tentando me ajudar?


— Considere como uma pequena vantagem. Não
quero que sua derrota seja tão humilhante assim. Nem
que a mulher chame a polícia para te prender, imagine

como isso seria péssimo para os negócios.

Eu ri. Embora ainda preferisse recusar o auxílio dos


conselhos dele, vi-me obrigado a aceitar porque, no fim

das contas, ele tinha razão. Eu esperaria até a sexta-feira


para então retomar o plano.

Dessa vez, eu não pretendia perder.

E não era só pela aposta em si, mas um desafio

pessoal.

A garota se fez de difícil, o que era algo

praticamente inédito em minha vida.

Mas como negar que isso tinha o seu encanto?

Talvez o dinheiro fosse realmente um fator decisivo na

hora das conquistas fáceis, como o meu irmão dizia, mas

algo me dizia que não era assim com Luíza.


Antes de eu me aproximar dela e fazer meu

discurso de homem simples, desempregado e ferrado de


grana, ela me viu em uma mesa consumindo drinks caros

e, se o dinheiro de um homem fizesse alguma diferença

para ela, talvez ela tivesse respondido ao meu bilhete ou


sido um pouco menos difícil em um primeiro momento,

mas não foi o que aconteceu.

Luíza parecia ser um tipo que realmente precisava

ser conquistada aos poucos e que não iria simplesmente


se jogar na minha cama logo na primeira noite.

E a vida inteira eu procurei exatamente pelo tipo

que me poupava de maiores esforços. E era por isso que

ela representava um desafio para mim.

E eu jamais fugia de um bom desafio.

*****
Capítulo oito

"Eu sou como um pássaro, Eu simplesmente voarei embora Não sei

onde está minha alma, Não sei onde está meu lar"

(I'm Like A Bird – Nelly Furtado)

Com todas as coisas que eu precisava aprender e

organizar para assumir o comando da empresa, a semana


foi bastante corrida.

A loja nova estava prestes a inaugurar, então ainda

havia muito o que ser feito. Com isso, teoricamente, eu


não deveria ter tido tempo livre para pensar naquela

maldita aposta. Mas minha mente parecia encontrar

brechas para tais pensamentos.


Por vezes eu me pegava planejando como iria me

aproximar de Luíza quando voltasse ao bar, o que era


estranho em incontáveis níveis. Nunca antes eu havia

ensaiado mentalmente como chegar em uma mulher,

assim como eu raramente me lembrava dos nomes delas


em um hipotético segundo encontro.

Claro que creditei aquilo tudo ao fato de eu querer

muito vencer aquela aposta, para alimentar o meu lado

competitivo. Mas, no fundo, era estranho perceber que


existia algo mais, já que eu não pensava apenas na

situação, mas também na mulher.

Ela era linda, uma delícia, para falar a verdade. Eu

realmente estava louco para deslizar minhas mãos por

aquele corpinho escondido embaixo do uniforme. Mas

preciso confessar que também gostei de nossa breve


conversa. Não estava mentindo quando disse que ela era

uma boa companhia.

Mas não iria me focar nisso. Tudo o que me

importava era vencer aquela aposta.


Na quinta-feira, dois dias antes da nossa grande
inauguração, Heitor e eu fomos realizar a visita final à loja,

que já estava com tudo preparado para abrir. O espaço

era enorme, aquela já era a maior filial, e, além de loja,

tinha uma pequena praça de alimentação, um espaço de

jogos e, em breve, pretendíamos inaugurar ali também

duas salas de cinema. Seria praticamente um pequeno


shopping.

E eu estava orgulhoso do resultado final. Embora

Heitor fosse o maior responsável pelo progresso dos

últimos anos, eu, como um dos donos, também participava

de muitas decisões, mesmo que à distância. Apesar de


ser o cara festeiro e mulherengo, eu me dedicava muito ao

trabalho.

No momento, Heitor e eu éramos guiados pelo

Carlos, gerente geral da loja, para ver o andamento das


coisas. Tínhamos já visitado os depósitos, o

estacionamento, a praça de alimentação e, agora,

fazíamos um tour pela loja em si.


Era ainda bem cedo e os novos funcionários ainda

começavam a chegar para seguirem com a organização


dos últimos produtos nas prateleiras, bem como a equipe

de limpeza iniciava os trabalhos para deixar tudo


impecável para a inauguração.

Paramos para conversar sobre os eventos que


ocorreriam no sábado, quando passou um grupo de

vendedores sendo guiados por um gerente de vendas.

Aparentemente, estavam em treinamento para o

trabalho que assumiriam dali a dois dias. Heitor e eu logo


conversaríamos com eles, em uma palestra de uma hora.

Era uma formalidade feita em toda loja que abríamos, e


poderia representar algo chato, mas eu sinceramente

adorava. Achava motivador, para falar a verdade. Os


vendedores eram a base principal dos negócios, e tudo
dar certo dependia em grande parte deles. Eu valorizava

muito aquele trabalho.

Contudo, o que era para ter sido uma olhada rápida


acabou levando mais tempo que o previsto quando meus
olhos bateram em uma mulher em meio ao grupo, usando
o mesmo uniforme que os demais, com os cabelos

castanho-claros presos por um coque.

Levei menos de um segundo para reconhecê-la.


Depois mais meio segundo para me certificar.

Não era possível...

— É ela... — sussurrei.

— O quê? — Heitor me olhou, confuso.

Recuei, indo para trás de uma prateleira, de modo

que os funcionários não pudessem me ver.

Heitor me seguiu, sem entender nada.

— É ela — falei.

— O quê?

— É ela, Heitor!

— De quem você está falando?

— A vendedora.
— Qual delas?

— A de coque.

Heitor inclinou o corpo para o lado, voltando a olhar


para o grupo, e levou alguns segundos percorrendo os

olhos por eles até localizar a pessoa de quem eu falava.

— Certo... o que tem ela? — ele questionou.

— É ela, Heitor. A garçonete! — expliquei.

Heitor olhou para o grupo mais uma vez,

parecendo, enfim, reconhecê-la.

— É ela mesma. O que ela está fazendo aqui? —

ele questionou, intrigado. Parecendo compreender a


situação, sorriu. — Quem diria... Ela é nossa funcionária

agora?

— Tudo indica que sim — respondi entredentes.

— Romance entre chefe e empregada? Que

clichezão, hein, irmão?


— Cala essa boca. Não vai ter romance nenhum se
ela me vir aqui.

— Bem, é óbvio que ela vai te reconhecer...

— Não se eu me esconder.

— Como vai se esconder? Vamos palestrar para os


vendedores, lembra? É óbvio que ela vai te reconhecer.

Acho que isso significa que a vitória da aposta é minha.

Mas nem fodendo!

Eu não ia entregar os pontos tão fácil. Não havia

nada no mundo que me fizesse desistir de uma aposta


com tanta facilidade.

O gerente veio até nós, perguntando se existia

algum problema. O coitado devia estar no mínimo confuso

com o fato de eu ter praticamente me escondido.

Bem, mas eu não me importava com o que ele iria

pensar. Tudo o que me importava era levar meus planos

adiante.
Porque, sim... eu tinha um plano.

— Carlos, eu preciso de um uniforme — informei,


causando surpresa não apenas ao gerente, mas também

ao meu irmão.

— Perdão, senhor Henrique... um uniforme?

— É. Um uniforme de vendedor. Do meu tamanho.

E quero que você pare de me chamar de senhor e me veja


como apenas mais um dos novos funcionários. — Olhei

para Heitor e sorri. — Aparentemente, irmão, você terá

que assumir a palestra sozinho.

Ele movimentou a cabeça em uma negativa,


incrédulo.

Eu realmente não estava disposto a perder.

*****
Capítulo nove

"Você me perseguiu Como um lobo, um predador Senti-

me como um cervo nas luzes do amor"

(She Wolf (Falling to Pieces) - David Guetta (feat. Sia))

A noite de sábado foi encerrada no pronto-socorro,

indo buscar minha filha depois de ela ter acordado no

meio da noite e decidido que era uma boa ideia se manter


acordada para esperar que eu chegasse, porque queria

me contar sobre um sonho legal que teve.

Para espantar o sono, a estratégia encontrada foi


pular na cama, acompanhada pelo Joe (sempre cúmplice!
Eu já nem sabia mais qual dos dois era uma péssima

influência na vida do outro).

E foi nessa brincadeira que ela acabou caindo e


batendo a cabeça na quina da escrivaninha. Com isso,

ganhou quatro pontos bem no meio da testa.

Mas, graças a Deus, nada além disso. Poderia ter

sido fatal.

E por isso eu nem havia conseguido dormir naquela


noite, de tanto que tremia pelo pavor do que poderia ter

acontecido.

Fabíola, a babá, considerou o ocorrido como a gota


d’água para pedir sua demissão. Ela já havia reclamado

sobre Sofia ser teimosa e por vezes um tanto

desobediente, e... que inferno, eu sabia que ela estava

com a razão. E era impossível deixar de mentalizar o

quanto a culpa de tudo aquilo era inteiramente minha.

Não dava mais para seguir daquele jeito. Eu

precisava largar aquele emprego noturno.


E foi por isso que, no dia seguinte, fui falar com a
Sara e disse que aceitava a ajuda com o meu currículo

para eu passar a trabalhar na Lizano.

Por mais que eu não gostasse nem um pouco

daquele lugar, aquela seria a melhor decisão. O salário


era o mesmo do bar, com a diferença de que eu não teria

gorjetas, o que, no fim das contas, significava que eu iria

ganhar menos e ficar ainda mais longe do meu sonho de

comprar a minha própria loja. Mas o bem estar de Sofia

sempre viria em primeiro lugar na minha vida.

O Jonas – crush da minha prima – tinha um cargo

grande na central das Lojas Lizano e encaminhou meu

currículo diretamente para o responsável pelas

contratações. Dois dias depois, eu recebia uma ligação

informando que eu estava contratada.

Começaria na quinta-feira, seriam dois dias de

treinamento antes da abertura da loja. Assim, Sara

cuidaria de Sofia pela manhã, e a tarde a van escolar

passaria para pegá-la. E eu estaria em casa quando

minha filha retornasse do colégio e, à noite, iria poder


conversar com ela, ouvir sobre o seu dia e contar sobre o

meu, ajudá-la nas lições de casa e colocá-la para dormir.

Nenhum dinheiro no mundo pagaria por isso.

Na quinta-feira, lá estava eu, naquela loja onde eu

nunca costumava entrar nem como cliente.

Usando o uniforme de vendedora – calça e camisa


cinzas, com detalhes em vermelho – eu estava junto a
uma equipe de mais de setenta vendedores fazendo uma

tour pelo espaço, sendo guiados pelo senhor Geraldo –


sim, ele fazia questão do ‘senhor’ antes do nome, embora

fosse um homem relativamente jovem, de pouco mais de


quarenta anos.

Enquanto nos mostrava cada um dos setores da


loja, ele explicava minunciosamente sobre cada tipo de

produto à venda, citando os argumentos que deveríamos


usar para vender cada um deles, explicando as diferenças
entre as marcas e modelos.
Aquela loja era enorme, e eu achava muito pouco

provável que ele conseguisse nos apresentar a tudo que


havia ali, com tanta riqueza de detalhes, em apenas dois

dias.

— Estou quase dormindo... — ouvi uma voz

feminina comentando ao meu lado. Olhei, encontrando


uma moça que deveria ter a minha idade, negra, com os

cabelos compridos e trançados.

Sorri. Em parte, para ser simpática com uma nova

colega de trabalho. Em outra, por concordar com o que ela


dizia.

— E o dia apenas começou... — respondi, com a

voz baixa, lembrando que eram ainda pouco mais de nove


da manhã.

A partir de sábado, começaríamos a trabalhar em


turnos alternados, mas nos dias de treinamento o

expediente de todos era igual e seríamos liberados


apenas às dezessete horas.
— E será um longo dia... — Ela suspirou e eu fui
obrigada a concordar.

Parecendo ouvir nossa breve conversa, senhor


Geraldo se calou e percorreu os olhos pelo grupo,

tentando encontrar quem teria falado. Como


aparentemente não achou, jogou uma bronca coletiva: —
Preciso que fiquem atentos a tudo, e conversas paralelas

não ajudarão nisso. Quem não estiver interessado em


aprender sobre o trabalho, também não está em ser um

vendedor da Loja Lizano, então, pode ir embora, se quiser.

Revirei os olhos, achando o discurso

completamente arrogante e desproporcional. Éramos


adultos ali, não um bando de crianças indisciplinadas em

uma turma de ensino fundamental. E tampouco éramos


robôs que precisássemos ficar completamente calados.

Porém, é claro, o que eu achei que a Loja Lizano


pudesse esperar de seus funcionários?

Quando eu tivesse a minha loja, definitivamente,


jamais trataria meus vendedores daquela forma.
Voltei a tentar focar minha atenção àquele chato,
embora por dentro estivesse pensando em mil outras
coisas diferentes das que ele discursava.

O falatório sobre o design inovador das mesas de

escritório era substituído em minha mente por comentários


sobre como aquilo era mal feito e de um material

extremamente ruim. Uma placa de papelão seria mais


resistente que aquela imitação vagabunda de madeira,

com certeza.

Percebi uma certa movimentação ao meu redor e vi

que todos voltavam o rosto para trás. Segui os olhos na


mesma direção, vendo que se tratava de uma pessoa,

usando o mesmo uniforme que nós, que se juntava

subitamente ao grupo.

Eu mal pude acreditar quando o reconheci. Era o


carinha do bar.

Aquele bonitão com ares de cafajeste.

*****
Capítulo dez

"Bem, um brinde aos corações que você vai quebrar Um brinde às

vidas que você vai mudar Um brinde às infinitas maneiras possíveis

de amar você"

(Have It All – Jason Mraz)

— Isso são horas de chegar? — Geraldo indagou,


nada cordial.

— Desculpe, senhor. Recebi o telefonema de

aprovação apenas hoje de manhã e precisei correr para

cá — ele respondeu, enquanto ajeitava as roupas.


Percebi que estava meio ofegante, mostrando que

realmente havia corrido até ali.

Mas o nosso superior não pareceu satisfeito.

— Achei que todos os telefonemas tivessem sido


feitos no máximo até ontem. Aliás, achei também que

estivessem todos já aqui. Diga, qual é o seu nome? — Ele

levantou sua prancheta à altura dos olhos para verificar a


lista com os nomes dos novos funcionários.

— Ah, meu nome é Henrique... Henrique Alves da

Silva. Mas meu nome não deve estar na lista, senhor. Fui

contratado além da cota estipulada. Sou amigo de um

amigo de Heitor Lizano, e...

— Ah, o velho esquema de indicações... — Geraldo

o interrompeu, revirando os olhos.

Ouvi alguns buchichos ao meu redor, o que

demonstrava que os outros contratados também não


haviam gostado muito disso. Henrique, de fato, deveria ter

guardado tal informação apenas para ele.


Geraldo prosseguiu:

— Não pense que isso vai te trazer qualquer

vantagem aqui dentro. Todos terão que mostrar

produtividade para se manterem no trabalho, e fiscalizarei

de perto um por um.

— Sim, senhor... — Henrique respondeu.

E quando Geraldo voltou a falar sobre os móveis,

ele olhou para mim e em seu rosto surgiu uma expressão


de surpresa, como se não esperasse me encontrar ali.

Acenou para mim e eu acenei de volta, ainda um pouco

sem graça pela forma como o deixei sozinho há alguns

dias.

Voltei a me focar nas explicações sobre os

produtos, por mais que fosse bem difícil conseguir manter

os olhos abertos durante aquele lenga-lenga. Até que,

enfim, chegou o horário de almoço e fomos todos para a

praça de alimentação, onde alguns estabelecimentos já

estavam funcionando para atender aos funcionários.


A moça ao meu lado – que agora eu sabia que se

chamava Beatriz – seguiu puxando assunto e logo nos


enturmamos, juntamente a outra, uma loira chamada

Carla, que já era um pouco mais velha que nós – devia ter
algo em torno de trinta e poucos anos. Dividimos as três
uma mesa durante o almoço.

Em determinado momento, olhei ao redor,

percebendo que Henrique estava sozinho em uma mesa


próxima. Flagrando meu olhar em sua direção, ele sorriu e
acenou novamente, o que eu correspondi.

— Conhece o carinha bonito? — Carla perguntou.

— Não exatamente. Ele esteve semana passada no


bar onde eu trabalhava, conversamos um pouco, nada

demais.

— Ele não parece ter muita facilidade para se


enturmar — ela opinou, e Beatriz concordou.

— Também, né... Todo mundo sabe o quanto é


difícil conseguir um emprego e ele já chega contando que
entrou por indicação? E jogando ainda aquela carteirada

ridícula de que é “amigo de um amigo” do dono? Podia ter


ficado quieto.

Ela não deixava de ter razão.

Eu também havia conseguido a vaga por uma


indicação, embora fosse de uma forma um pouquinho

diferente. A pessoa que me colocou na vaga era apenas


um intermediário, não tinha qualquer autoridade ali na loja
e não me garantiria qualquer proteção se eu não fizesse o

meu trabalho de forma correta. Mas Henrique era


conhecido direto do dono de tudo aquilo, e a forma como

contou isso diante de todo mundo mais soou mesmo como


uma carteirada.

E ninguém gostava muito disso.

Terminamos de comer e logo voltamos ao trabalho.


Dessa vez, Henrique se aproximou, passando a caminhar

bem ao meu lado enquanto éramos guiados pela loja.


Sério que ele de novo ia tentar alguma coisa
comigo?

Coitado, estava perdendo tempo.

— Não esperava te encontrar por aqui — ele falou.

— É. Precisei pedir demissão no bar.

— Espero que não tenha sido por causa daquele


telefonema naquele dia.

Ai, claro... o telefonema.

Isso voltava a me lembrar da forma como eu o


havia deixado sozinho sem dar qualquer satisfação. Por

mais que eu, de fato, não desejasse dar qualquer


esperança a ele, minha saída súbita podia ter lhe parecido

com uma fuga.

— Mais ou menos. Aliás, desculpe por ter ido

embora daquele jeito. Realmente, rolou uma emergência,


e...
— Não, não precisa explicar. Eu entendo. Só
espero que esteja tudo bem agora.

— É, está.

Henrique sorriu e eu sorri de volta, grata pela sua


compreensão. Ele não era apenas bonito, também parecia
ser um cara legal. Além de esforçado. Tinha comentado

com ele sobre a vaga na loja e ele de fato tinha corrido

atrás e conseguido. Estava feliz por isso.

Mas eu sabia, muito bem, que o inferno deveria

estar abarrotado de “caras legais”. Aquilo não me

convencia.

Voltamos a fazer silêncio por conta dos olhares de

reprovação do senhor Geraldo, mas volta e meia ele


cochichava alguma coisa para mim, geralmente algo

engraçado relacionado a alguma instrução recebida ou a

algum trejeito do nosso insuportável superior. Confesso


que isso fez com que o tempo passasse de forma mais

leve e descontraída.
Às cinco da tarde encerramos a tour do dia para

nos dirigirmos ao estacionamento, onde Heitor Lizano nos


aguardava para seu discurso motivacional de boas-vindas.

Já iniciou pedindo desculpas pela ausência do

irmão, que segundo nos disseram, era para estar ali com

ele. Diziam que Heitor Lizano estava deixando a função de


CEO da empresa e esse lugar passaria a ser ocupado

pelo seu irmão. Achei meio descaso da parte dele não ter

ido se apresentar aos funcionários de sua nova loja,


porém, o que esperar de uma porcaria de um playboy?

Dessa vez, eu é que não me aguentei em fazer

alguns comentários com Henrique, em voz baixa, de forma

que apenas ele pudesse ouvir: — Então, esse daí é o seu


amigo milionário?

— Amigo de um amigo. Na verdade, ele é amigo do

amigo de um amigo meu, uma relação bem distante.

Quem sou eu para me relacionar de forma tão próxima


com gente tão rica?
— Não perde muito com isso. Não acho que sejam

as melhores pessoas desse mundo.

— Sério? Bem, digo... também não são as piores.

O Heitor até que é gente boa.

— Não foi ele quem deu o vexame no palco


daquela festa de aniversário da cidade?

Ele abriu um meio sorriso, como se achasse graça

em recordar a cena.

— Estava bem bêbado, tinha terminado com a


namorada. Acabaram voltando depois e, até onde sei, ele

não deu mais vergonhas por conta de bebidas. Mas, no

fim das contas, ele é mesmo um bom sujeito.

— Bem, dizem que o problemático mesmo é o


irmão dele. Que, aliás, disseram que viria aqui também.

Achava que ele fosse só um playboy irresponsável em seu

dia a dia, mas aparentemente também é com a própria

empresa.
Percebi que Henrique ficou calado por alguns

instantes, o que me fez pensar que sua ‘relação distante’


com os irmãos Lizano talvez não fosse tão distante assim.

A palestra seguiu até as cinco da tarde, quando

enfim fomos liberados. Seguimos para a área de

funcionários, onde ficavam os armários onde


guardávamos nossas coisas, e Henrique continuou a

caminhar ao meu lado.

— E então, será que hoje eu posso te acompanhar

até o ponto de ônibus?

O rapaz era insistente, isso eu não poderia negar.


Assim como não poderia negar, também, que isso fazia

uma certa massagem no meu ego.

— Não vou pegar ônibus hoje. Moro a quinze

minutos a pé daqui. Aproveito para fazer uma caminhada,


já que não resta muito tempo para praticar exercícios

físicos.
— Uma atividade física seria ótimo. Seria bom te

acompanhar até lá.

Ele não parecia ser do tipo que precisava de

artifícios para encaixar atividades físicas em sua rotina.


Pelos braços bem torneados visíveis sob as mangas

curtas do uniforme, dava para perceber que ele malhava.

Bem, não que eu estivesse observando, mas... Ah,

que droga, não tinha como não reparar!

— Novamente: se estiver planejando algo, eu


adianto que...

— Não planejo nada que não seja te acompanhar

até em casa. Quinze minutos conversando com você sem

ter que disfarçar com os olhares reprovadores do chato do


Geraldo.

— E o que ganha com isso?

— Também já te disse: a sua companhia. É só o

que eu quero. Confie em mim.


Confiar... Eu mal o conhecia, mas, sinceramente,

ele não me dava motivos para desconfianças. Mesmo


porque, seria apenas uma caminhada por ruas que

costumavam ser bem movimentadas naquele horário.

Portanto, acabei aceitando a oferta.

Afinal, ele era uma companhia agradável, no fim

das contas.

*****
Capítulo onze

"Eu era ela, ela era eu nós éramos um, nós éramos

livres E se há alguém me chamando É ela"

(She's The One - Robbie Williams)

Era incrível o tanto que a sorte estava ao meu lado.

Reencontrar com Luíza era algo totalmente inesperado,


mas uma oportunidade que eu não iria deixar que me

escapasse.

Mas, no processo, algumas coisas inusitadas

aconteceram.
A primeira é que, eu sempre soube, eu era um cara

muito legal. Nunca tive qualquer problema ou dificuldade


para me enturmar em nenhum ambiente. Fazia amigos

com facilidade em todos os lugares do mundo por onde já

passei. Mas ali, na loja... na minha própria loja, as


pessoas pareciam não gostar de mim.

Isso dava uma leve vantagem ao discurso do meu

irmão de que as pessoas se aproximavam de mim pelo

meu dinheiro. Contudo, eu queria acreditar que aquilo era


só por ainda não me conhecerem o suficiente.

No que dependesse de mim, infelizmente, nem

chegariam a conhecer, já que o plano quando me ofereci

para acompanhar Luíza até em casa era encerrar a aposta

ainda naquela noite.

A segunda era que, por qualquer razão, Luíza não

parecia gostar nem um pouco da minha versão milionária.

O pouco caso com que ela falava a meu respeito –


sem saber que eu era o Henrique Lizano – era um tanto

desconfortante.
Eu sabia que muita gente se referia a mim como
um playboy festeiro e cafajeste, mas sempre via isso

como sendo dito em um tom de voz brincalhão ou até

mesmo de admiração. Mesmo quando eram críticas, eram

como algo leve e sem importância.

Mas com Luíza não era assim. Ela realmente

parecia rejeitar o que a minha imagem representava. E eu

já não sabia se isso significava que ela fosse a mulher

certa para a aposta, já que o dinheiro de um homem

definitivamente não parecia ser um fator positivo para

suas escolhas.

Acreditava que, se viesse a descobrir a verdade,

ela ficaria furiosa. Seria também a primeira vez que uma

mulher não iria querer que eu ligasse para ela no dia

seguinte.

Bem, mas, se isso ocorresse, seria apenas depois

de eu conseguir vencer a minha aposta, e, nesse caso...

sinceramente, não faria qualquer diferença na minha vida

se ela ficaria zangada ou não.


Apesar de ela ser uma garota legal...

Na verdade... bem legal.

Enquanto saíamos da loja fazendo a pé o caminho


para a sua casa, ela me explicava pacientemente os

motivos de os demais funcionários terem me tratado tão


mal.

— Então eu não podia ter falado sobre alguém ter


conseguido a vaga para mim? — questionei, perplexo.

— Não é só sobre isso. Eu também me beneficiei

de uma indicação para entrar, e acho que muitos outros lá


também, mas... é diferente, sabe? Não só por, no seu
caso, a indicação ter sido feita por um dos donos, mas

pela forma como você falou isso, daquele jeito, na frente


de todo mundo.

— Mas de que forma? Eu apenas... falei.

— Parecia que você estava tentando contar com


alguma vantagem diante dos demais. Sabe, como se
fosse superior a nós e fosse ter privilégios lá dentro. Era o

que o seu tom de voz dizia.

— Mas o quê? Não, de forma alguma foi isso. Eu


só estava respondendo ao Geraldo.

— Então, você devia ter deixado para contar isso


apenas depois, a sós com ele, não na frente dos colegas.

Mas, de qualquer forma... estou certa de que essa


primeira impressão que você deixou logo vai passar. As
pessoas vão perceber que você é um cara legal.

Era meio bobo, mas eu me senti feliz com o elogio.

Tanto que sorri.

— Acha mesmo que sou um cara legal?

— Eu não estaria deixando que você me

acompanhasse até a minha casa caso achasse que é um


maníaco ou coisa parecida.

Ok, eu estava planejando ser um pouco mais


incisivo para apressar as coisas entre nós. Depois disso,

pensei que seria mais seguro pisar um pouco no freio.


Imagine, se eu tentasse beijá-la, e ela cismasse que eu
era mesmo um maníaco?

Tudo a seu tempo. Meu prazo para levá-la para a


cama era de quinze dias, mas eu não pretendia fazer uso

de nem metade disso. No entanto, naquele primeiro dia,


podíamos realmente apenas conversar enquanto eu a
acompanhava até sua casa, e ir ganhando um pouco mais

da sua confiança.

Talvez conseguisse um beijo de despedida... o que


já abriria caminho para, no dia seguinte, conquistar o
prêmio máximo, que era ter aquele corpinho todinho para

mim.

Meu pau chegava a doer apenas com aquela


imagem mental. Mas tentei desviar o foco do meu
pensamento.

— E então... você foi tão firme quando disse que

não gostava das Lojas Lizano. Não imaginei que fosse


querer trabalhar em uma.
— Eu não quero. Mas, infelizmente, na vida adulta
nossas vontades nem sempre valem muita coisa.

— Foi demitida do bar?

— Não. Eu é que pedi minha demissão. Gostava


muito de lá, mas... o horário é ruim, especialmente porque
me faz passar pouco tempo com a minha filha.

Parei de andar, em choque com a revelação.

Filha?

Ela era mãe?

Parando alguns passos à minha frente, ela me


olhou, parecendo curiosa com a minha reação, mas não

surpresa, no fim das contas.

— Mudou de ideia sobre querer ‘apenas a minha

companhia’? É o que os homens geralmente fazem


quando descobrem que uma mulher tem filhos.

Não, era claro que não era isso. Falando daquela

forma, parecia uma coisa completamente estúpida, e...


bem, eu não era um estúpido, era?

Só precisaria tomar alguns cuidados. Eu não ia


querer uma mulher alimentando a esperança de ter

comigo algum relacionamento sério, me vendo como um

substituto para o pai de sua filha. Seria só uma noite, nada

mais. Não queria deixar ninguém sofrendo no fim dessa


história.

Era apenas uma questão e eu evitar conhecer a

criança.

— Claro que não. De onde tirou isso? Eu só estou


surpreso, porque... bem, você é tão jovem.

— Minha filha tem seis anos. Fui mãe aos

dezenove. E, não, eu não acabei com a minha vida.

— Eu não disse isso.

— É o que todo mundo diz ou ao menos pensa.

— Não pensei em nada disso, Luíza. É sério. Vai,


me fala mais sobre ela.
‘Me fala mais sobre ela’?

Era sério que eu tinha pedido isso?

Ao menos foi um pedido que aparentemente a

deixou feliz.

Abrindo um enorme sorriso, ela começou a contar


sobre a Sofia, sua garotinha de seis anos. Voltamos a

caminhar lado a lado rumo à casa dela e, confesso,

apesar de conversas sobre crianças não estarem

necessariamente no ranking dos meus assuntos favoritos,


o papo não foi nada tedioso.

As histórias sobre a menina eram até mesmo

engraçadas. Parecia ser bem levada, e muitas de suas

artes me lembravam coisas que eu próprio fazia quando


era moleque.

Parecia ser uma criança bem divertida.

Logo paramos em frente a uma casa simples, de

muro verde e portão de madeira.


— Então... é aqui que eu moro — ela anunciou,

enquanto colocava a chave no portão e o destrancava.

Ouvi um latido do outro lado do muro, o que me

indicava que ela tinha um cachorro.

Pensei que, obviamente, com a novidade sobre a

criança, não era nada viável me convidar para entrar.

Precisava começar a armar um novo plano para o dia


seguinte.

— Viu? E tudo o que eu queria era a sua

companhia — declarei.

— Sei... Bem, espero que tenha gostado dela.

— Foi simplesmente perfeita. Nos vemos amanhã


na loja, então?

— Sim, nos vemos amanhã.

Aproximei-me, tocando estrategicamente a cintura

dela com uma das mãos enquanto depositava um beijo


em seu rosto. Demorei com os lábios colados à sua
bochecha por um pouco mais de tempo que o habitual e

pude perceber que a pele dela se arrepiou com aquele

contato.

Pensei em usar a velha artimanha de me afastar


apenas um pouco, mantendo meus olhos fixos ao dela e

atrai-la para um beijo, mas sequer tive tempo de iniciar tal

processo porque uma van escolar parou diante de nós, a

porta dela se abriu e uma garotinha chegou correndo,


puxando uma mochila de rodinhas, que largou no chão

para se jogar nos braços de Luíza.

— Mamãe! — ela gritou, empolgada.

Olhando a cena, eu não pude evitar sorrir.

Luíza havia me contado que trocara de emprego


porque precisava voltar a viver momentos simples, como

receber sua filha na volta da escola. Meus pais nunca

tiveram interesse em coisas como aquela, mas lembro que


a Joana sempre nos buscava na porta da escola, e que

sempre era uma alegria sair e encontrá-la lá nos

esperando.
Do lado de dentro da casa, um cachorro latiu e, por

cima dos ombros da mãe, a menina puxou o portão,


deixando que o animal de cor caramelo saísse, pulando

feliz sobre as duas.

Era ridículo, eu sei, mas vi-me sentindo uma leve

inveja daquilo. Chegar em casa e ser recebido por uma


família parecia algo bom, no fim das contas.

Não que um casamento, filhos ou mesmo um

cachorro fizessem parte dos meus planos. Eu era bem

feliz sozinho. Uma boa companhia durante as noites (uma


diferente a cada noite) já era o resumo da felicidade para

mim.

— Seja educada, Sofia. Mamãe está acompanhada

por um colega do trabalho, você já o cumprimentou?

A menina se virou para mim e seu rostinho pareceu


congelar, ao mesmo tempo em que seus olhos se

arregalaram logo que ela me viu.


Levei ainda alguns instantes até compreender
aquela situação ao, enfim, reconhecê-la.

A única coisa nova era o curativo da testa,

provavelmente protegendo os pontos do tombo que Luíza

me contou que ela havia sofrido há alguns dias, mas eu


conhecia aquela criança.

E aquele cachorro também.

Como não conhecer? Tinha sido extorquido pelos

dois apenas alguns dias antes.

Eu não podia acreditar que fosse mesmo aquela


pestinha!

Ela era a filha de Luíza?

Quais as chances disso?

*****
Capítulo doze

"Seus olhos dão um novo significado à vida É como se eu

tivesse encontrado a Luzes do Norte Eu nunca soube o que eu

precisava Até eu encontrar sua mão segurando a minha, sim"

(Imagine – Ben Platt)

O cachorro latiu e deu um pulo sobre mim, o que


fez com que eu me desequilibrasse e acabasse caindo no

chão. Usei as mãos para tentar amortecer a queda, e

nisso uma delas acabou esfolando em uma falha do


asfalto.
— Joe! — Luíza repreendeu o animal, tirando-o de

cima de mim. — Meu Deus, o que você fez? Ai, Henrique,


me perdoe por isso. Sofia, leve o Joe lá para dentro, sim?

A menina me olhou em silêncio por um momento e

eu temi que fosse contar para a mãe que já me conhecia.

Para o meu alívio, ela optou por apenas obedecer à


ordem, entrando com o cachorro.

Consegui me levantar e só então percebi que

minha mão estava sangrando.

— Desculpe mesmo por isso. Está ferido! Anda,

entra, precisa limpar essa mão e passar algo para não

infeccionar.

Ela abriu mais o portão, fazendo um sinal para que

eu entrasse, e eu pensei se deveria mesmo fazer isso.

Contudo, qual seria a outra opção? Fugir como um

covarde, com medo de uma garotinha?

Acabei aceitando e entrei. Era um quintal pequeno,

mas com um gramado bem cuidado. Subi os dois degraus


da varanda, adentrando a pequena sala. Sobre o sofá,
estavam a pestinha, sentada ao lado do cachorro

igualmente peste.

— Vou pegar a caixa de primeiros-socorros no meu

quarto e já volto. Por favor, fique à vontade. E, Sofia, não


deixe o Joe pular nele novamente, hein? E seja boazinha!

Dito isso, ela subiu as escadas que iam para o

segundo andar da pequena casa. Encarei a menina em

silêncio, pensando em como deveria iniciar aquela

conversa, mas ela se adiantou: — Você não pode ser


colega de trabalho da mamãe. Eu vi o seu carrão naquele

dia.

Merda! Por que ela tinha que ser tão esperta?

— Mas eu sou — argumentei. — Naquele dia eu

estava usando um carro emprestado.

— Tava nada! Tia Sara contou que você é muito


rico, e que é dono de todas as lojas Lizano. É patrão da
mamãe e não colega dela. Tá só fingindo ser, porque

patrões não usam uniformes.

Abaixei-me no chão diante dela. Precisaria usar de

todo o meu poder de persuasão porque, apesar da pouca


idade, aquela menina parecia realmente ser bem esperta.

— Olha... talvez eu esteja mesmo fingindo, mas...

— Está mentindo pra minha mamãe! — ela me


interrompeu, com um tom de voz mais alto do que deveria.

Fiz um sinal para que ela falasse baixo.

— Não, não é exatamente uma mentira. Mas eu


precisei fingir porque... sua mamãe não gosta dos donos

da Lizano, né?

— E você quer que minha mamãe goste de você?

— Ela olhou para o alto das escadas e voltou a olhar para


mim, baixando o tom de voz como quem conta um

segredo. — Como namorados?


— Depende... O que você acharia de sua mamãe

ter um namorado?

— Eu acharia legal. Mamãe sempre foi sozinha, e


todo mundo diz que namorar é legal. Mas só se você for
um adulto, né? Mamãe diz que crianças não podem

namorar.

— É, não podem. Mas sua mamãe é uma adulta,


não é? E eu ia gostar de namorar com ela, mas se ela
souber quem eu sou, vai brigar comigo.

Ela cruzou os bracinhos diante do corpo, me

olhando de forma desafiadora.

— Eu disse que seria legal a mamãe ter um

namorado. Mas não tem que ser um playboy como você.

Criaturinha difícil...

Mas eu precisava apelar. Usar todos os argumentos

possíveis até que algum convencesse aquela pestinha. E


rápido, antes que Luíza retornasse.
— Olha, podemos fazer um acordo. Tem alguma
coisa que você queira? — O cachorrão ao lado dela latiu,
me dando um susto. — Alguma coisa que você e o vira-

lata queiram?

— O nome dele é Joe! — ela me corrigiu, irritada.

Era o que faltava... Agora o cachorro fazia questão

do nome?

Corrigi minha fala:

— Tem alguma coisa que você e o Joe queiram?

— Tá querendo sunorbar a gente?

Levei ainda alguns segundos para compreender o


que ela estaria querendo dizer.

— É ‘subornar’. E não é isso que eu quero. Só fazer


uma troca. Você guarda esse nosso segredo e eu te dou

um presente. E pensa que é para o bem da sua mamãe,


não disse que seria legal ela ter um namorado?
— Mas você tá mentindo pra ela! E mentir é feio,
muito feio!

— Não é uma mentira. É só... uma surpresa. Eu


vou convencê-la de que a Lizano é uma loja bem legal, e

quando ela acreditar em mim... surpresa! Eu conto toda a


verdade.

Ela inclinou a cabeça para o lado, observando-me

em silêncio, como se analisasse minhas palavras.

— Se for assim... tem uma coisa que Joe e eu

queremos.

— Diga, o quê? Qualquer coisa!

— Aquelas notas que você nos deu outro dia...

Queremos juntar várias delas, para comprar uma coisa


muito cara e muito importante.

Quem estava subornando quem, no fim das

contas?
Ouvindo os passos que pareciam vir do corredor no

alto das escadas, agi rápido e peguei minha carteira,


pegando duas notas de cinquenta e entregando-as à

menina, que as amassou e enfiou no bolso da mochila.

— Temos um acordo? — questionei.

— Por hoje, sim.

Por hoje?

Aquela menina pretendia me cobrar diariamente,

era isso?

Voltei os olhos para as escadas, vendo que Luíza já

as descia. Tentei disfarçar, fingindo que estava brincando


com o cachorro, mas mal aproximei minha mão dele e o

vira-lata rosnou, mostrando-me todos os seus dentes.

Eram cúmplices aqueles dois...

Cúmplices e aliados contra mim.

*****
Capítulo treze

"O que o seu futuro reserva?

Isso é uma história desconhecida Ela descobrirá

através de seus dias?

Deixe o amor mostrar o caminho"

(Let Love Lead The Way - Spice Girls)

A caixinha de primeiros socorros pareceu ter sido


tragada por algum buraco negro dentro do meu quarto.

Passei algum tempo procurando, até que a encontrei


dentro do meu guarda-roupas. Saí com ela do quarto e

desci as escadas.

Cheguei na sala no momento em que Joe rosnava


para Henrique. Mas o que tinha dado naquele cachorro?

Sempre foi tão dócil com todo mundo. Era estranha a sua

mudança de comportamento.

— Desculpe, eu juro que ele não costuma agir


assim — desculpei-me com Henrique, que apenas sorriu

compreensivo.

— Imagine, é normal isso. Até porque, essa é a

primeira vez que ele me vê, não é, cachorrinho? — Ele

olhou para o cão, que voltou a mostrar-lhe os dentes.

Sério, o que estava acontecendo ali?

— O nome dele é Joe! — Sofia rebateu. Percebi

que ela também demonstrava um pouco de antipatia com

Henrique. — Mamãe, vou para o meu quarto porque hoje


tenho muita lição de casa para fazer.
Estranhei aquilo. Sofia não era de agir assim. Muito
pelo contrário, ela costumava adorar tagarelar com as

visitas.

Mas não insisti e deixei que ela fosse para o seu

quarto, acompanhada pelo Joe. Ficando a sós com


Henrique, fiz um sinal para que ele se sentasse no sofá e

me sentei ao seu lado para que eu cuidasse do ferimento

em sua mão.

Limpei tudo com água oxigenada e passei um

medicamento antisséptico. Ao final, prendi uma gaze com


esparadrapo, apenas para proteger melhor.

Quando encerrei esse trabalho, percebi que ele

estava olhando fixamente para mim. Senti meu rosto

esquentar, tímida com aquilo, mas tentei disfarçar.

— Prontinho. Não foi nada demais, mas é bom

proteger para não correr o risco de infeccionar.

— Você é muito boa nisso. Eu não saberia fazer um

curativo nem se minha vida dependesse disso.


— Faz parte das coisas que a gente aprende

depois que tem filhos.

— Deve precisar muito disso com Sofia, né?

— Com bastante frequência. Ela é muito agitada e

está constantemente se machucando.

— E o cachorrinho não fica atrás.

— Desculpe pelo Joe. Repito que ele não é assim.

Nunca o vi rosnando para ninguém.

— Deve estar com ciúmes da dona. Acontece.

Ciúmes...

Talvez Sofia estivesse se sentindo assim também.


Será que pensava que Henrique seria meu namorado?

Depois do pai dela, não voltei a me relacionar com


ninguém, por isso não sabia como ela iria reagir caso isso

viesse a acontecer.

Eu precisava conversar com ela e explicar que não

era nada daquilo.


Que coisa... a gente cresce, vira adulto, e não

precisa mais dar satisfações da vida aos pais, mas se vê


fazendo isso com a filha de seis anos.

Henrique se levantou.

— Bem, você deve estar cheia de coisas para fazer


e precisa dar atenção à sua filha. É melhor eu ir.

Pensei em insistir para que ele ficasse mais um


pouco. Pensei em oferecer um café, chamá-lo para fazer

um lanche com a gente. Porém, refleti melhor, e talvez


isso servisse apenas para dar mais estímulo a qualquer

investida dele.

Eu não era mais criança, percebi muito bem suas

intenções no beijo que me deu. Mesmo sendo no rosto e


teoricamente inocente, havia uma intenção ali. Eu podia

estar ‘fora de prática’ há algum tempo, mas certas coisas


não mudavam.

Sendo assim, seria melhor cortar aquilo pela raiz.


Mesmo porque, embora ele tentasse se mostrar como um
cara legal, sabia bem como homens viam mulheres
solteiras com filhos: um sinal vermelho para
relacionamentos sérios.

Não que eu estivesse procurando por um, mas

também não estava disposta a ser a diversão de uma


noite de um homem.

Ofereci-me para acompanhá-lo até o portão.


Quando chegávamos na varanda, percebi que ele voltou

os olhos para a mesinha redonda de madeira rústica, que


era acompanhada por duas cadeiras.

— Nossa... — ele sussurrou, parecendo encantado.


— Que linda. Posso ver?

— Claro!

Ele se aproximou, tocando levemente a mesa e


percorrendo os olhos pelos detalhes talhados a mão.

— Se importaria de me contar onde comprou?


Nossa, é linda!
— Na verdade, receio que não vá encontrar outra
exatamente igual para comprar. É uma peça única.

— Você mandou fazer? Teria o contato da pessoa?


É um trabalho lindo.

— Bem, posso te levar ao local de trabalho dela.

— Sério? Adoraria.

— Então vem.

Percebi que ele ficou confuso quando fiz um sinal

para que ele me seguisse e desci os degraus da varanda,

indo para a lateral da casa, no espaço do terreno dedicado


a uma garagem. Eu não tinha carro, então eu fazia do

pequeno espaço o meu cantinho de trabalho.

Olhei para Henrique, que vinha bem atrás de mim,

e era visível a surpresa em seus olhos ao ver o local com


uma mesa de serra, pedaços de madeira e outros

materiais em um canto e, em outro, algumas carcaças de

pequenos móveis antigos; uma das paredes era toda


tomada por prateleiras onde guardava ferramentas,
pregos, parafusos, latas de tintas e vernizes, pincéis e

mais todo o tipo de coisa que eu poderia precisar no meu


trabalho.

Após analisar todo o ambiente, ele me olhou, ainda

confuso.

— Você fez aquela mesa?

— Na verdade, a estrutura dos pés dela era de


outra mesa velha, que uma vizinha queria se desfazer e

perguntou se me interessava. A parte de cima veio de

outra que eu já tinha encostada há alguns anos, mas ela


não tinha os detalhes talhados, isso fui eu que fiz. Lixei,

envernizei... enfim juntei tudo, montando um móvel novo.

— Mas isso é... Luíza, isso é sensacional. Como

você faz tudo isso em um espaço tão pequeno?

— É o espaço que tenho.

— Mas se você vender essas peças, pode comprar


um espaço maior.
Ele fazia tudo parecer fácil demais. Tanto, que até

sorri.

— Eu vendo. Tenho um Instagram onde anuncio as

coisas que vou fazendo. Como eu não tenho uma


estrutura que me permita realizar entregas em locais

distantes por um valor de frete acessível, acabo

restringindo as vendas apenas dentro da cidade. Mas,

ainda assim, além de não serem muitas vendas, minha


margem de lucro é bem pequena. As pessoas não querem

pagar caro por um móvel reformado.

— Como não? Seu trabalho é lindo, e é único.

— E daí? Sempre existe a opção de ir a uma loja


Lizano e comprar uma mesa de fabricação em larga

escala por um preço em conta. Não faz diferença se as de

lá foram cortadas por máquinas e na minha eu passei

semanas fazendo um trabalho único a mão. Poucas


pessoas dão valor a esse tipo de coisa.

— Eu não acredito nisso. E se você falar com os

responsáveis pela Lizano? Eu posso intermediar isso para


você. Pode colocar alguns móveis seus lá em

consignação, e...

— Isso não vai acontecer. Aqueles milionários

estão interessados em altas margens de lucro, não em

valorizar o trabalho de alguém. E, de qualquer maneira...

Estou juntando um dinheiro e espero em breve conseguir


comprar um espaço para montar um ateliê e uma loja. É

meio complicado conseguir juntar dinheiro quando se é

uma pessoa assalariada criando sozinha uma criança,


mas... Eu tenho fé de que vou conseguir.

Ele manteve seus olhos fixos em mim, e sequer

piscou mesmo quando eu terminei de falar.

Estaria ainda tão impressionado com a minha

mesa? Sem falsa modéstia, aquele nem era o melhor dos


meus trabalhos. Eu tinha alguns – poucos, mas fiéis –

clientes, para os quais eu já havia feito algumas coisas

das quais eu realmente me orgulhava.

— Você é incrível... — ele falou, ainda com os olhos


fixos em mim.
Senti-me levemente envergonhada, não apenas

com o elogio, mas com a intensidade com que as palavras

foram ditas.

Pareciam sinceras.

Ele balançou a cabeça, parecendo sair de algum


tipo de transe, e explicou: — Digo... o seu trabalho. É

incrível, de verdade.

Sorri em agradecimento, mas ficamos em silêncio.

Dessa vez, eu também vi meus olhos presos aos

dele, e novamente reforcei em minha mente o quanto ele


era um homem bonito. Os olhos castanho-claros tinham

um toque sedutor que na certa deveriam ser fatais em

muitas mulheres, embora eu meio que fosse vacinada


contra homens tão perigosamente sedutores, ainda que

eles parecessem serem caras legais.

O último bonitão que aparecera na minha vida

também parecia gente boa, conseguiu tudo de mim e


simplesmente sumiu quando eu contei que estava grávida.
Meu coração já havia sido suficientemente partido nessa

ocasião, e eu não estava disposta a repetir a dose.

E, agora, já não restava mais dúvidas de que aquilo


estava novamente prestes a acontecer. Isso se confirmou

quando ele aproximou um pouco o rosto do meu, na nítida

intenção de me beijar.

Por alguns milésimos de segundo eu me deixei


levar, mas logo despertei para a realidade quando os

lábios dele já estavam tão próximos aos meus que eu

conseguia sentir sua respiração.

Afastei-me bruscamente, evitando que aquele beijo


acontecesse.

— Já está tarde, é melhor você ir.

Ele concordou, e voltou a sorrir, embora parecesse

um tanto frustrado.

— Te vejo amanhã na loja?

— Sem dúvidas. Até amanhã.


Ele assentiu e deixei que saísse. Fiquei ali parada
até ouvir o som do portão se fechando. Só então voltei a

entrar em casa e subi as escadas, indo até o quarto de

Sofia.

Ela estava sentada na cama, folheando o livro da


escola, e Joe estava deitado ao seu lado. Fui até eles,

sentando-me na ponta da cama.

— Ele foi embora? — ela questionou, parecendo

desconfiada.

— É, ele foi. Sabe que ele é só um colega de

trabalho da mamãe, não é?

Ela ainda pareceu pensar a respeito da pergunta,

levando alguns segundos para movimentar a cabeça em


uma afirmação.

— Eu sei, mamãe.

— Mas você pareceu não gostar muito dele. O que


foi? Ele te disse algo ruim enquanto eu subia para pegar a

caixa de primeiros socorros?


— Não. Na verdade mesmo, quem não gostou dele
foi o Joe. Mas eu gostei, até.

— Gostou? Mesmo?

— Gostei. Ele parece ser legal. Você acha ele legal,


mamãe?

— É... eu acho. Agora, que tal a gente fazer um


lanche? Daí depois eu te ajudo com o dever de casa, e

depois faremos o jantar.

Ela abriu aquele sorrisão lindo que derretia o meu


coração.

— Agora vai ser assim todo dia, mamãe?

Levei a mão ao cabelo loiro dela, tirando uma


mecha que caía sobre seus olhos castanhos e

depositando-a atrás de sua orelha. Não havia nada no


mundo que pagasse um momento como aquele.

— Vai, meu amor. Será assim todos os dias.


Animada, ela ajoelhou-se sobre a cama e se jogou
sobre mim, enroscando os braços ao redor do meu
pescoço.

*****
Capítulo catorze

“Eu só penso em você em duas ocasiões De dia e de

noite Eu poderia quebrar Se pudesse estar com você”

(We Belong Together - Mariah Carey)

O dia começou meio... confuso.

Primeiro, pela mudança de rotina. Abandonei os

ternos do dia a dia para vestir aquele odioso uniforme


cinza.

Já fazia parte dos meus planejamentos, logo que

tudo aquilo acabasse e eu voltasse a ser o CEO da


Lizano, solicitar à equipe responsável que mudasse

aquelas roupas horrorosas. Meus vendedores mereciam


vestir algo que não abalasse tanto suas autoestimas.

Descia a escadaria da minha casa no momento em

que Joana passava pela sala. Ela parou, me olhando de

forma confusa.

— O que é isso, garoto? — ela indagou, me


olhando de cima a baixo.

Ela sempre me veria como uma criança, no fim das

contas.

Dei um beijo em seu rosto e apenas respondi: —


Nem queira saber, Jojo. Nem queira saber...

Enquanto seguia em direção à porta, ainda a ouvi

perguntar: — Não vai tomar café?

— Não posso, estou atrasado.

— “Atrasado”? Tem alguma reunião para a parte da

manhã?
Ela sabia que, se não fosse por algum
compromisso do tipo, eu não tinha motivos para me

preocupar com horários, afinal, eu era o chefe. Mas aquilo,

também, não seria facilmente explicável, por isso apenas

mudei de assunto: — Capricha no jantar hoje que tenho

certeza de que chegarei cheio de fome. Te vejo à noite.

E saí, deixando-a provavelmente sem entender

nada.

Ainda sobre a mudança de rotina, nesse dia eu

precisei deixar meu carro na garagem. Não chegaria à loja


em um conversível, obviamente. Optei por pedir um carro

de aplicativo, que me deixaria em frente à loja e, caso

alguém me visse, eu poderia argumentar que tinha

pegado uma carona com algum amigo.

Provavelmente ninguém argumentaria nada porque,

afinal, meus colegas de trabalho não simpatizavam

comigo.

E isso era algo que eu pretendia mudar. Eu não


podia sentir que era um homem que só conquistava
amizades por causa do dinheiro. Iria aproveitar aquela

aposta para provar a mim mesmo que eu era um cara


legal em todas as esferas.

Exceto com cachorros.

Aquele vira-lata da Luíza era a prova disso.

A segunda razão que tornava aquele dia confuso


era qualquer coisa ligada aos meus pensamentos. Porque
havia em mim uma certa ansiedade de reencontrar com

Luíza. E nem era para seguir investindo em tentativas de


beijá-la para que o beijo nos levasse a outras coisas e à

minha vitória na aposta.

Era só porque eu queria... estar com ela.

Queria saber mais sobre aquela coisa de reformar

móveis – confesso, estava admirado demais com aquele


trabalho dela – queria as conversas aleatórias
sussurradas nos momentos em que Geraldo não nos

vigiava como um cão de caça; queria saber mais a


respeito dela... o máximo que pudesse vir a saber.
E, é claro, a coisa da aposta seguia forte, mas até

mesmo nisso o foco da minha mente me pregava peças.


Eu realmente queria beijá-la. Realmente queria fazer tudo

com ela. Não apenas pela aposta, mas porque eu queria.


Aquela mulher tinha se tornado um desafio alto para

mim... porque eu de fato a desejava.

Assim como no dia anterior, cheguei à loja quando

o grupo inteiro já estava reunido, e novamente fui


chamado a atenção por Geraldo e todos ali me olhavam

pelo canto dos olhos, enquanto se iniciava um burburinho


visivelmente de críticas a meu respeito.

Assim como o cachorro de Luíza, eles pareciam


realmente não gostarem de mim.

Carlos, o gerente geral da loja, me observava à


distância, ainda parecendo confuso com o fato de o patrão

ter se camuflado no meio dos funcionários. Ele tratou de


informar outros dois gerentes da loja – que já me

conheciam – a meu respeito, para que não corresse o


risco de eu ser reconhecido por algum deles.
Aparentemente, Geraldo não tinha sido avisado,
mas, para a minha sorte, ele não me conhecia antes.
Achava até melhor que fosse assim, já que não correria o

risco de ele me tratar de forma diferenciada por saber que


eu era o seu patrão. Queria ser tratado como todos os

outros ali.

Queria me aproximar de Luíza, mas ela já havia se

enturmado, desde o dia anterior, com outras duas


mulheres, e estava bem no meio delas, então eu

simplesmente não tinha como me enfiar ali para ganhar


um pouco de sua atenção.

Aguardei pacientemente por cerca de uma hora, até


que Geraldo nos deu um tempo para olharmos livremente

o setor de ferramentas para ver se teríamos alguma


dúvida a respeito das cansativas explicações que ele
havia dado a princípio – as quais eu não havia prestado a

menor atenção.

Nesse momento, o grupo se dispersou pelos


corredores do setor. E foi apenas então que consegui

flagrar Luíza sozinha por um momento, o qual aproveitei


para me aproximar, parando ao seu lado enquanto fingia
olhar a prateleira cheia de chaves de fenda.

— E aí, está bem descansada? — perguntei. Ela


me olhou, parecendo não entender a razão da pergunta,

por isso fui mais específico. — Dormiu bem essa noite?

— Dormi, e estou descansada sim. Por quê?

— Só para conferir se era essa a sua melhor

versão. Não perde muito para a de cansada no fim de um


dia de trabalho. Achei as duas igualmente muito

satisfatórias.

Ela sorriu, provavelmente se recordando do diálogo

que eu citava, e eu sorri de volta, sentindo uma faísca de

animação por ver aquele sorriso lindo.

E isso, também, me trouxe um certo alívio ao

perceber que, aparentemente, sua filha não havia contado

nada do que sabia a meu respeito.

Tinham sido os cem reais mais bem gastos da


minha vida.
— Toda essa coisa de ferramentas deve ser bem

simples para você, não é? — indaguei, apontando para a


prateleira.

— Algumas, sim. Uma grande parte, para falar a

verdade.

— De onde veio o seu amor por mexer com


madeira?

— Meu pai era marceneiro. E ele era um pai legal,

quando não estava bêbado. Aprendi muito com ele, e

acabei herdando a paixão por madeira.

— Ele deve ter muito orgulho de você.

Pude perceber um brilho de tristeza em seus olhos,

o que denunciava que eu tinha feito um comentário

indevido.

— Talvez estaria, não sei. Já tem dez anos que ele

morreu. Como eu falei, ele bebia muito e isso trouxe


consequências para a saúde dele.
— Poxa, eu... eu sinto muito. Desculpe por ter te

feito lembrar disso.

— Não se preocupe. E os seus pais, fazem o quê?

— Eu também perdi o meu pai. Há três anos.

Ela tocou levemente a minha mão com a sua, numa


demonstração de pesar. Era estranho como um toque tão

sutil e inocente parecia causar descargas elétricas na

minha pele.

— Sinto muito, Henrique.

— É... assim é a vida.

— E a sua mãe?

Eu havia escapado da pergunta a respeito do pai,

não saberia que trabalho atribuir a ele caso fosse

perguntado o que ele fazia em vida. ‘Dono da Lizano’ não

seria uma opção de resposta.

Com a minha mãe talvez fosse mais simples.


— Ela mora em uma fazenda. Digo, é caseira...

trabalha como caseira lá. — Apenas a primeira parte da


informação era verdadeira, no fim das contas.

Ela era a dona da fazenda. De uma enorme

fazenda, diga-se de passagem. Mas isso era só um

detalhe, não era?

— Tem irmãos?

— Apenas um — respondi quase que no

automático, em seguida me lembrando de inventar alguma

história rápida — Ele mora com a minha mãe na fazenda,

também trabalha lá.

— Então foi só você que abandonou as raízes da

família?

— Eu sempre quis morar na cidade. Tinha sonhos

altos demais para uma vida na roça.

Ela sorriu e percebi que estava admirada pelo


homem humilde e esforçado que eu fingia ser.
Parecia estúpido, mas, naquele momento, eu me

senti, pela primeira vez, culpado por mentir para ela. Se a

intenção era seduzi-la com a pessoa que eu era e não

pelo que eu tinha, talvez eu estivesse trapaceando em


inventar tanto um personagem que, no fim das contas, não

era eu.

Porém, tal culpa logo se dissipou quando mudamos

de assunto, passando a falar de coisas triviais.

Nem sei como, mas o assunto foi parar em cinema

e descobrimos que tínhamos vários filmes favoritos em

comum. Assim como eu, ela era muito fã de “O Clube da

Luta”, mas, diferente de mim, também tinha lido o livro. Eu


não era muito de ler ficções, mas ela começou a citar

outras obras que também viraram filmes que eu gostava, e

a falar sobre as diferenças nas adaptações, e eu achei


aquilo tão incrível que decidi que queria conhecer aqueles

textos.

— Talvez eu encontre alguém que me empreste. —

Não era uma indireta para que ela me emprestasse,


apenas mais uma fala de meu personagem fodido que não

deveria ter grana sobrando para comprar muitos livros.

— Olha, se eu fosse você, procuraria em um sebo,


ou esperaria uma promoção em livrarias. Essa coisa de

emprestar livros é complicada.

— Sério? Complicada por quê?

— Digamos que, para um leitor, emprestar um livro


é o ápice da confiança completa em uma pessoa. Porque

é muito comum livros emprestados voltarem danificados,

ou não voltarem nunca.

— Entendi. Então você é do tipo que não empresta


seus livros?

— De forma alguma.

— Nem para alguém em quem você tenha... como

é mesmo? O ápice da confiança completa?

— Acho que não cheguei nesse nível com

nenhuma pessoa. Ao menos não para emprestar os meus


livros. Isso é inegociável, desculpe. Mas posso te indicar
uns bons sebos online.

— Tudo bem, eu aceito a indicação.

Quando vi, já era hora do almoço, e ela me

convidou para me sentar na mesma mesa que ela e suas


duas colegas – que eram bem simpáticas e não pareciam

terem (tanta) implicância comigo como os demais

vendedores.

Voltamos para o trabalho e, dessa vez, consegui


passar o tempo inteiro ao lado dela. O mala do Geraldo

não nos deixava livres para conversas paralelas, mas

ainda assim a gente vez ou outra cochichava algo.

Ela tinha muito senso de humor.

E eu adorava isso nela.

Para falar a verdade, eu já adorava coisas demais


dela.

*****
Capítulo quinze

"Ela age como o verão e anda como a chuva Me lembra que há


tempo para mudar"

(Drops Of Jupiter – Train)

Quando o expediente chegou ao fim, eu novamente

me ofereci para acompanha Luíza até a sua casa, ainda


que soubesse que aquilo não seria eficaz.

Tendo ela uma filha pequena em casa, fatalmente

seria muito improvável que eu conseguisse consumar a


minha aposta. Mas eu realmente queria a companhia dela.
Engatamos em uma conversa sobre a franquia de

“Velozes e Furiosos” (sim, ela também amava filmes de


ação, assim como eu) e aquela era provavelmente a

primeira vez que eu conversava assim com uma garota...

sobre assuntos banais, sobre gostos em comum, bobeiras


como opiniões a respeito de um personagem de um filme.

Acho que eu nunca tinha antes me dado esse

direito. Porque conversas com mulheres que não fossem

alguém da família ou contatos de trabalho eram sempre


centradas na arte da conquista, sempre com o único

objetivo de terminar em uma cama com elas.

Mas com Luíza era tão diferente...

Justo com ela, não deveria ser. Eu precisava me


manter firme no meu objetivo. Não estava passando o

meu tempo disfarçado de vendedor de loja à procura de

amizades ou romances. Meu foco era seduzir aquela

mulher, e era isso o que eu deveria fazer.

Estávamos ainda no estacionamento da loja

quando ela parou de repente, olhando para algo mais à


frente. Antes que eu pudesse ver o que era, ela me pediu
para esperar e correu até uma das entradas da loja.

Segui-a com os olhos, até compreender o que ela estava

indo fazer.

Havia um senhor já de idade avançada, cadeirante,


tendo sua carreira empurrada por uma senhora que devia

ter a mesma idade e, portanto, tinha um pouco de

dificuldades para subir a rampa de acesso. Luíza os

cumprimentou com um sorriso e ofereceu-se para

empurrar a cadeira até o alto da rampa.

O casal então conseguiu entrar na loja, ambos

agradecendo-a pela ajuda. Vendo a cena, eu sorri, como

um bobo, admirando-a pela atitude.

Voltei a andar até alcançá-la.

— Isso foi bem legal... — comentei, parando ao

lado dela, que ainda olhava para a rampa.

— O quê? — ela questionou, parecendo realmente

não entender ao que eu me referia.


— Isso, oras.

— Ah, não. Isso é horrível! — Ela apontou para a

rampa, revoltada. — Olha a distância que essa entrada

com acessibilidade fica da entrada principal da loja. É um


absurdo!

Ok, lá estava ela, arrumando motivos para criticar a

minha loja.

Daquela vez, eu precisava defendê-la.

— Mas existe a acessibilidade, não é o que

importa? Além disso, se as rampas fossem colocadas na


entrada principal, ia prejudicar o estilo da fachada.

Ela me olhou, assustada, e foi só então que eu


recapitulei a frase que eu mesmo havia dito e percebi o

quanto aquilo soava estúpido e até mesmo cruel.

Passados alguns instantes, Luíza riu.

— Nossa, Henrique, você falou tão sério que eu até

demorei para compreender a ironia. Mas é exatamente


assim que esses milionários da Lizano devem pensar.

Ela voltou a andar e eu a segui, deixando que ela

continuasse achando que eu havia sido meramente


irônico.

Porque, caramba, ela tinha toda a razão. Para mim


tudo era apenas uma questão distante e prática: as regras

mandam ter entradas acessíveis, nós as tínhamos em


todas as nossas lojas, mas sem qualquer preocupação se
aquilo estava realmente da forma mais adequada que

poderia estar.

Quando aquela aposta chegasse ao fim e eu


voltasse a ser apenas CEO da Lizano, veria junto aos

responsáveis pela arquitetura das lojas se seria possível


realizar algumas mudanças.

Novamente, Luíza parou de andar, olhando para


qualquer coisa diante de nós. Segui os olhos na mesma

direção e não vi nada além de um caminhão sendo


descarregado com caixotes de mercadoria.
— Se eu pudesse ter alguns daqueles, seria
ótimo... — ela falou, quase como um pensamento em voz
alta, olhando fixamente para a cena.

Não compreendi muito bem.

— Você queria ter... um caminhão, é isso?

— Não! Claro que não. Falo do que estão tirando lá


de dentro, olha.

Ela queria comprar o conteúdo da carga, era isso?


Mas como ela poderia saber do que se tratava, se estava

tudo encaixotado?

De qualquer maneira, não resisti em fazer uma

provocação: — Mas não é você mesma quem diz que a


Lizano vende produtos de qualidade duvidosa?

— De péssima qualidade. E os estilos não ajudam


muito. Tudo ‘padrão’ demais.

— Se você acha isso, por que está cobiçando tanto

a carga daquele caminhão?


— Não são os produtos que quero. Não estou nem
aí para eles.

— Ué... Não foi você mesma que falou que seria


ótimo se pudesse ter alguns daqueles.

— Sim, mas não me refiro aos produtos. São os


caixotes que eu quero.

— Como é? — Eu tinha dúvidas se teria ouvido

direito.

Ela queria... Caixotes? Aqueles troços que seriam


descartados no lixo logo que os produtos fossem

colocados nas prateleiras da loja?

— Sabe de uma coisa? — ela voltou a falar. — Vou

conseguir alguns. Anda, vem comigo!

Ela fez um movimento para que eu a seguisse e


voltou a andar, indo devagar pela lateral do caminhão,

como uma criminosa prestes a realizar um furto.


E percebi que era exatamente o que ela planejava

fazer.

E, meu Deus, aparentemente eu seria cúmplice

dela daquilo.

*****
Capítulo dezesseis

“Me encontrei hoje Cantando seu nome Você disse que

eu sou louca Se eu sou Eu sou louca por você”

(Crazy for You - Adele)

— Eu sou um criminoso... — Henrique murmurou

ao meu lado, aparentemente ainda em choque por ter me

ajudado a pegar alguns dos caixotes em um momento em


que não havia ninguém por perto.

Ele novamente me acompanharia até em casa,

dessa vez para me ajudar a levar os vários caixotes que


havíamos recolhido.
Recolhido. Era o que tínhamos feito.

Não roubamos nada. E expliquei isso a ele: — Tudo

isso iria para o lixo. Aliás, é uma pena eu não ter como
recolher e armazenar tudo, porque é um verdadeiro

desperdício de material.

— Mas é um material da loja. Não é certo pegar

assim sem pedir autorização. Não acha que os patrões


podem não gostar de ter suas coisas ‘recolhidas’ desse

jeito?

— Caguei...

Ele pareceu meio chocado. Seria com o meu


vocabulário, por eu ser mãe e tudo mais? Oras, quando

minha filha não estava por perto, eu poderia usar alguns

“termos feios”.

— Além do mais... — prossegui — Já disse que

tudo isso iria para o lixo. E, o pior: em um descarte


completamente indevido. Você sabia que a Lizano não
tem qualquer preocupação ambiental com o descarte de
seu lixo? Nada de lá é reciclado, um absurdo!

Olhei para ele e o vi surpreso com a minha

informação. Ao mesmo tempo, a culpa pelo suposto furto

pareceu se dissipar.

— Se é assim... você está certa. Você está

novamente certa, aliás. Temos que ver algum meio de dar

uma destinação correta ao lixo de lá.

— “Temos”? Henrique, você é um cara legal, e acho

que não entende ainda muito bem como essas coisas

funcionam. Entendo que é ‘amigo de um amigo’ dos donos

de lá, mas não há diálogo com essa gente, não nesse

sentido. Tudo o que eles visam é o lucro.

— Não é bem assim, Luíza. Olha, eu tenho certeza

de que se eu conversar com eles a respeito disso, eles

podem...

Eu estava prestando atenção ao que ele dizia, mas

tinha virado por um instante o rosto para van escolar, que


em segundos passou diretamente por nós.

Meu Deus, quanto tempo eu tinha perdido para

pegar aqueles caixotes?

— Ai, não... — resmunguei.

— O que foi? — Henrique questionou, confuso.

— Corre! — foi a única coisa que consegui dizer


antes de iniciar uma corrida atrás do veículo.

Henrique me seguiu, aparentemente ainda sem


compreender o que acontecia.

— O que foi? É a polícia? Eles estão atrás da

gente?

— O quê? — Ainda levei alguns instantes para

processar a pergunta. Ele estava levando aquela ideia de


ser um criminoso a sério demais. — Não, é a van escolar.

Minha filha vai chegar e eu não estarei em casa para


recebê-la.

— Ah... Você vai. Vai estar, sim! Vamos acelerar.


Para ele era fácil falar. Pelos braços torneados

aparentes nas mangas curtas da camisa, ele fazia um tipo


que se exercitava com frequência. Provavelmente tinha

um condicionamento físico muito melhor do que o meu. Se


eu já não era muito ágil em situações normais, imagine

tendo que correr carregando aquele monte de caixotes?

Porém, Henrique pareceu se dar conta disso e, sem

parar de correr, conseguiu amontoar a maior parte dos


caixotes que carregava em apenas uma das mãos,

usando a outra para pegar os meus.

Livre do peso, eu ganhei um fôlego a mais e

consegui acelerar um pouco. Ele seguiu pouco atrás de


mim, já que não caberia ao meu lado na calçada

carregando aquele monte de tralha, mas mantendo uma


velocidade parecida com a minha.

Antes de entrar na minha rua, a Van fez uma


parada de uns dois minutos em um sinal, e isso foi

essencial para que nós conseguíssemos alcançá-la.


Ela parou diante do meu portão, e cheguei lá no
mesmo momento em que a porta se abria e Sofia saía,
vindo animada me abraçar. Nem sei como consegui ainda

força para pegá-la no colo.

— Mamãe, eu vi você correndo! — ela comentou,


admirada, como se estivesse achando aquilo o máximo.

— É... — respondi, ainda ofegante, respirando


profundamente para tentar recuperar a respiração.

Olhei para Henrique e percebi que ele não parecia


tão menos cansado do que eu. Por mais que tivesse um

condicionamento físico bem melhor, tinha corrido como um


louco carregando sozinho todo aquele peso.

Apesar disso, percebi que ele segurava o riso, e


isso me contagiou, fazendo com que eu me adiantasse em

explodir em uma gargalhada. Ele me acompanhou nisso.

— Por que vocês estão rindo? — Sofia questionou,


curiosa. — E o que são essas caixas? — Apontou para os
caixotes que Henrique havia deixado sobre a calçada.
Em seguida ela me olhou, e pelo brilho em seus
olhos eu reparei que ela tinha entendido do que se tratava.

— Não lembra para o que a mamãe estava


querendo encontrar alguns caixotes iguais? — indaguei a

ela, confirmando suas suspeitas.

Ela abriu um enorme sorriso.

— É para a minha estante, mamãe? A estante

colorida pro meu quarto? Aquela que a gente viu na


internet e você prometeu que ia fazer uma igual pra mim?

— Igual nada. A sua vai ficar muito mais bonita!

Vamos começar hoje mesmo. Pronta para muito trabalho

nesse fim de semana?

— Mas no domingo a gente vai no parque, mamãe!


Você não esqueceu, né? Pra eu andar de bicicleta.

Uma das coisas que tinha prometido a Sofia, agora

que teríamos mais tempo juntas, era que na minha

primeira folga – que seria no domingo – eu a levaria para


o Parque Municipal. Era um programa simples, mas muito
esperado por ela. Nosso quintal era muito pequeno e ela

adorava andar de bicicleta. O parque tinha uma área


perfeita para isso.

— É claro que não esqueci. Vamos poder fazer tudo

isso no fim de semana. Vamos dessa vez tentar andar na

bicicleta sem as rodinhas?

Ela fez bico.

— Não, melhor não. Gosto das rodinhas.

Ela me abraçou com força, mas logo me soltou,

descendo do meu colo.

— Abre o portão, mamãe, eu preciso contar as


novidades pro Joe. Ele vai ficar muito feliz.

Atendi ao pedido, pegando a chave na bolsa e

abrindo o portão. Ela entrou correndo, sendo recebida no

quintal pelo nosso labra-lata.

Voltei a respirar fundo e olhei para Henrique, que


ainda me fitava sorrindo. Estava suado depois daquela
corrida e, preciso confessar, achei-o altamente sensual

daquele jeito. Mas, obviamente, lutei para tirar tal

observação da minha cabeça.

— Desculpe por isso — pedi. — Além de te fazer


‘roubar’ caixotes, você ainda teve que correr até aqui

comigo.

— Desculpe? Está falando sério? Acho que essa foi

uma das coisas mais divertidas que fiz nesses últimos


tempos.

Ele só podia estar brincando.

— Sua vida deve ser meio monótona, né?

— Não tanto, mas... furtos e perseguições nunca

costumaram fazer parte da minha rotina.

— Bem, como você pode imaginar, na minha isso é


meio comum. Ah, mas não a parte do ‘furto’. Isso ia para o

lixo, já disse.
— Não tinha ido ainda, então, teoricamente, ainda é

um furto.

— Vai ganhar uma destinação muito melhor.

— Sei... uma estante, não é?

Sorri, animada. Era algo realmente muito simples,

mas Sofia viu o modelo comigo e ficou muito empolgada.

Queria muito encontrar aquele estilo de caixotes para dar


aquele presente a ela.

— É, para organizar melhor os livrinhos e o material

escolar da Sofia. É algo bem simples, na verdade, mas

não tinha ainda encontrado a quantidade certa de caixotes


que fossem do mesmo material. Hoje mesmo já começo, e

provavelmente até amanhã estará concluída.

— Não deixe de me convidar para ver quando

estiver pronta.

Tomei fôlego para responder, mas fui impedida por


Sofia, que voltou à calçada acompanhada por Joe –

provavelmente depois de contar a ele a novidade. Ela


agarrou um dos caixotes, mal conseguindo levantá-lo do

chão, e começou a entrar com ele, na tarefa de me ajudar

a levar tudo para a garagem. Ela certamente estava

ansiosa para começarmos os trabalhos.

Henrique e eu nos entreolhamos e rimos e ele

voltou a pegar alguns caixotes, sinalizando que iria me

ajudar. Também peguei alguns – embora ele já tivesse

pegado a maioria – e entramos no quintal, seguindo para


a garagem que servia como meu ateliê temporário.

Deixamos tudo em um canto e eu dei uma boa

olhada neles, já pensando em o que faria com os que

sobrassem. Tinha aproveitado a oportunidade para pegar


uma quantidade maior do que a que eu precisaria para a

estante.

Mas antes de iniciar o trabalho, eu precisava

urgente de um bom banho e um copo grande de água


gelada, para me recuperar um pouco daquela corrida

insana.

Ah, é claro! Que educação a minha!


— Vou pegar água, você deve estar morrendo de

sede, não é? — perguntei a Henrique.

Ele concordou, passando a mão pela testa.

— Na verdade, eu já estou de saída e não queria

dar trabalho, mas vou aceitar a água, sim.

— Eu já volto. Sofia, por que não vem comigo e já

vai adiantando o seu banho para começarmos o trabalho?

— Eu já vou, mamãe. Vou depois que o tio


Henrique for embora. Enquanto você pega a água, eu e o

Joe vamos ficar aqui conversando um pouquinho com ele.

Ela sorriu, daquele jeitinho que derretia o meu

coração. E, na verdade, confesso que achei muito fofo da


parte dela querer fazer companhia para o Henrique.

Ela não havia se comportado muito bem quando o

conheceu no dia anterior, mas agora se mostrava tão

educada, que fez o meu peito se encher de orgulho da


minha menininha.
Anunciando que já voltava, segui para a parte de
dentro da casa. Entrei pela porta da sala e segui

diretamente para a cozinha.

Enquanto pegava os copos no armário e uma

garrafa de água na geladeira, não conseguia deixar de


pensar no comportamento da minha filha. Sempre me

perguntava como ela reagiria caso algum dia eu me

relacionasse com alguém.

Ela teria ciúmes? Implicância? Raiva? Ou ficaria


animada?

Lógico, esse não era um caso assim. Henrique era

apenas um colega de trabalho, nada mais do que isso.

Até porque... eu não tinha planos de iniciar um novo


relacionamento. A verdade é que eu não tinha tempo para

sequer pensar nisso. Toda a minha vida estava


completamente focada em ser mãe, em trabalhar para
pagar as contas e no sonho de um dia poder viver da

venda dos meus móveis.


Um sonho que parecia a cada dia mais distante...

Mas, naquele momento, por qualquer razão eu me

vi povoada por aqueles pensamentos.

Talvez fosse o jeitinho fofo como Sofia chamou


Henrique de ‘tio’ e demonstrou querer fazer companhia
para ele.

Ou, talvez... só talvez... fosse algo com o próprio

Henrique. Algo no sorriso dele, nas nossas conversas, nos


nossos gostos em comum, na forma como me olhava... ou
como correu comigo na rua carregando um monte de

caixote.

A última lembrança me fez sorrir, como uma boba.

Mas balancei a cabeça, forçando-me a me livrar de


tais pensamentos.

Nada iria acontecer entre nós.

*****
Capítulo dezessete

“Estive ao redor do mundo E nunca nos meus sonhos

mais loucos Eu viria correndo para você Te contei um milhão

de mentiras Mas agora lhe conto uma única verdade: Tem um

pedaço de você em tudo que faço”

(I Bet my Life - Imagine Dragons)

Eu já estava arrependido de ter aceitado a oferta da

água. Se eu tivesse pensado um pouco mais e


compreendido que aquilo significaria ficar a sós com

aquela pequena peste, eu na certa teria recusado.


Sim, era isso. Eu estava com medo de uma

garotinha de seis anos.

Aliás, uma garotinha de seis anos e seu vira-lata


caramelo.

O quão ridículo isso era?

O fato é que os dois estavam agora diante de mim,

ambos com as cabeças inclinadas para o alto para

poderem me olhar. Logo que Luíza saiu, levou menos de


dois segundos até que Sofia começasse a falar.

— Então, tio... Já contou a verdade para a minha

mãe?

Tio...

Eu não estava muito acostumado a ser chamado

daquela maneira. A garotinha já se achava bem íntima,


aparentemente.

Lógico, como não iria, depois de todo o dinheiro

que vinha arrancando de mim.


— Não, eu ainda não contei — respondi. — E
espero poder continuar contando com o nosso trato, de

que você vai guardar esse segredo.

— Mas, tio... Hoje é outro dia.

— O que quer dizer com isso?

— Que, se é outro dia, está na hora de outro trato.

— Outro trato?

— É. Com outro pagamento.

O quê? Aquela pequena peste queria tirar mais

dinheiro de mim?

— Eu não já te dei o bastante?

— Aquilo foi ontem, tio. E eu guardei o segredo

ontem. Mas pra eu guardar hoje, preciso do pagamento de

hoje.

Aquilo era um absurdo em muitos níveis.


Como podia uma criaturinha tão pequena ter tanta

inteligência e tanto jeito para tirar proveito próprio das


situações?

Ela com certeza daria uma ótima empresária...

Eu não admita ficar refém de uma garotinha.


Contudo, que escolha eu tinha? Luíza tinha ido apenas até

a cozinha pegar água, não demoraria para voltar. Eu não


podia correr risco de ter meus planos estragados daquela
maneira.

Sendo assim, peguei a carteira no bolso, tirando

dela uma nota de cinquenta e entregando-a para a


menina.

Logo que o fiz, o cachorro latiu, me dando um leve


susto.

— Falta o pagamento do Joe — Sofia explicou,


mantendo a mãozinha esticada para que eu entregasse

outra nota.
Se eles não eram uma dupla perfeita de

chantagistas...

Fui obrigado a pegar mais uma nota e entregá-la à


menina. E nem era apenas para que ela não contasse
nada para a mãe, mas desconfiava fortemente que aquele

cachorro fosse realmente capaz de me atacar.

Ela amassou as notas, colocando-as, como no dia


anterior, em um dos bolsos da mochila de rodinhas.
Depois cruzou os braços, continuando a me olhar como

quem tirasse satisfações.

— Mamãe não costuma trazer colegas de trabalho


em casa, e você já veio duas vezes, ontem e hoje.

— E o que acha que isso quer dizer?

— Eu não sei. Só tenho seis anos, não entendo


dessas coisas de adultos.

— Então, quando você entender, não deixe de me


contar, tudo bem?
Ela mexeu os ombros, logo desviando a atenção
para os caixotes, nos quais começou a mexer, curiosa.
Aquilo chamou a minha atenção.

— Quer dizer, então, que sua mãe vai fazer uma

estante para o seu quarto?

Ela me olhou e sorriu, seus olhos brilhando de

empolgação.

— Ela vai! E vai ser uma estante bem grandona e

bem colorida. Meus livros ficam em uma cesta, agora vão


ficar bem bonitos na minha própria estante. Ela vai

parecer um arco-íris de tão linda.

Por qualquer motivo, eu também sorri.

A animação dela era contagiante, no fim das

contas. E por algo tão simples.

Pensei na minha própria infância, onde eu sempre

tive de tudo, e lembrei que todas as minhas coisas vinham


de forma tão fácil, que era preciso muito mais que uma

simples estante para me causar tamanha animação.


Aliás, eu nem sabia se algum dia, quando criança,
eu tinha vivido alguma empolgação naquele nível. Quando
as coisas vêm fáceis, elas tendem a ser banais aos

nossos olhos.

Olhei para os caixotes e senti uma ponta de orgulho


ao pensar que o ‘ato infrator’ que eu ajudei a praticar

contra a minha própria loja tinha valido muito à pena, no


fim das contas.

Aliás, pensei ainda em algo além. Era um absurdo

que toneladas de materiais como aquele fossem

descartados de maneira imprópria todos os dias pelas


minhas lojas. Não era apenas o problema do lixo que

aquilo gerava, mas também no tanto que aquele tipo de

material poderia ser útil para muitas pessoas. Tanto para

as que ganhavam algum dinheiro fazendo a venda dele


para reciclagens quanto para quem transformava o que

seria descartado em coisas novas... Como Luíza fazia

com seus móveis.

Eu poderia simplesmente culpar Heitor por isso, já


que ele era o CEO até então e eu estava assumindo
apenas agora. Mas eu sabia que aquela também jamais

teria sido uma preocupação minha, porque eu nunca havia


sequer pensado a respeito.

Era grato por Luíza ter me aberto os olhos para que

eu fizesse alguma mudança.

E por falar na Luíza, ela logo voltou, trazendo a


minha água. Após bebê-la, eu me despedi e fui logo

embora. Sabia que a pequena Sofia estava louca para

começar a fazer sua estante, e que Luíza queria muito ter

aquele momento especial com sua filha.

Caminhei por uma quadra, até me sentir longe o

suficiente para chamar um carro por aplicativo sem correr

o risco de ser visto com Luíza (já que eu já tinha contado

para ela que dali para a minha casa eu pegaria um


ônibus).

Fui para casa recapitulando o dia.

O trabalho na loja, as risadas trocadas com Luíza

quando Geraldo não estava nos observando...


Nosso “furto” de caixotes que iriam para o lixo, a

corrida pelas ruas tentando alcançar uma van escolar...

Tudo o que eu a vi fazer. Tudo o que fiz com ela...

Todas as coisas para as quais ela me abriu os

olhos naquele dia.

Por fim, não lamentei o fato de ter deixado passar

mais um dia sem vencer a aposta. Eu ainda teria mais

treze de prazo, e queria aproveitar bem cada um deles.

*****
Capítulo dezoito

"Eu sinto um arrepio num lugar bobo Começa na ponta dos meus

pés Me faz enrugar o nariz Não importa onde vai Eu sempre sei Que

você me faz sorrir"

(Bubbly – Colbie Caillat)

Apesar de estar há anos fora do país, eu já tinha


ido a algumas inaugurações de lojas da Lizano.

Especialmente quando criança, lembro de achar tudo

aquilo uma coisa que extrapolava todos os limites da


cafonice, mas meu pai dizia que o público gostava dessas

coisas, e com o tempo tínhamos aprendido que ele estava

com toda a razão.


E lá estava, a vigésima sexta loja sendo inaugurada

com o mesmo estilo piegas de todas as vinte e cinco


anteriores.

Os balões cinza e vermelhos, a bandinha na

entrada tocando músicas, o locutor no microfone

anunciando as promoções especiais do dia para a


multidão que se aglomerava na entrada, esperando a

abertura da loja.

Como CEO, eu provavelmente deveria estar

chegando lá na hora da abertura, passearia por todo o


local, cumprimentaria cada um dos funcionários... aquela

coisa solene de praxe. Porém, meu irmão é que teria que

mais uma vez fazer isso no meu lugar, já que eu estaria

camuflado entre os vendedores, fazendo o trabalho

pesado.

Trabalho que já começava antes mesmo de a loja

abrir, com o discurso entediante de Geraldo. Ele contava

toda a história das Lojas Lizano, desde a criação da

primeira... tudo de forma meio fantasiosa, exagerando em


algumas partes.
Oras, meu avô nunca tinha sido “um humilde
agricultor”, era um filho de fazendeiros. E ele também não

tinha ido para a cidade para “tentar a vida”, e sim para

fazer faculdade. E ele apenas abriu sua primeira loja

depois de terminar os estudos.

Com dinheiro emprestado, esta parte era era

verdade. Mas o empréstimo foi feito pelo meu bisavô, não

de um banco.

Se eu ouvisse tudo aquilo como Henrique Lizano, o

CEO da empresa, talvez achasse tudo muito poético e até


emocionante. Estando do outro lado, ali como um

Henrique anônimo qualquer, em meio aos vendedores, eu

percebi que nada daquilo estava sendo bem recebido.

E os comentários de Luíza ao meu lado me traziam


a confirmação disso.

Eu até mesmo ri em alguns deles. Porque estar do

lado daquela mulher era sempre divertido, ainda que o

tema das piadas fosse a empresa da minha família.


Era curioso... acho que eu nunca na vida havia me

divertido tanto com uma mulher estando os dois vestidos.


Luíza me fazia rir com uma facilidade assustadora.

Enfim, o discurso chato terminou, as portas se


abriram e se iniciava oficialmente a inauguração da nova

loja. Adoraria poder continuar perto de Luíza, mas o


grande volume de pessoas que entrou nos obrigava a

dispersar.

Não havia se passado nem dez minutos e eu não

fazia mais ideia de para onde ela tinha ido. Eu tinha


acabado de guiar um casal de clientes até o setor de pisos

e azulejos, mas eles logo dispensaram minha ajuda,


dizendo que estavam por enquanto apenas pesquisando e

vendo os modelos e não iriam comprar nada naquele dia.

Eu precisava admitir: meus vendedores mereciam

ganhar no mínimo o dobro do que recebiam. Que trabalho


mais chato dos infernos! Além de extremamente

cansativo.
— Você trabalha aqui? — perguntou-me uma

senhora que surgiu do nada na minha frente.

Não, senhora. Estou usando esse uniforme ridículo


porque é a moda do momento.

Claro, não expressei tais pensamentos em voz alta.

— Trabalho, sim. No que posso te ajudar?

— Eu quero trocar o meu sofá. Você pode me

ajudar a escolher um novo?

Sofás... claro. Estávamos no setor de pisos e


azulejos. Os móveis ficavam na outra ponta da loja. Bem
longe. A uma distância que custaria uns trinta reais de

UBER.

Minha recente experiência na vida de pobre havia


me ensinado uma série de novas medidas de distância.
Essa era uma delas.

Claro que eu estava exagerando um pouco. Mas,

ainda assim, era bem longe.


Mas aquele era o meu trabalho e, ainda que fosse
uma farsa, seria bem vergonhoso para mim ser demitido
por justa causa da minha própria empresa, por isso eu

atendi ao pedido da senhorinha, guiando-a pelo longo


trajeto até os benditos sofás.

Chegávamos lá quando eu avistei Luíza.

Apenas vê-la me trouxe vontade de sorrir, mas tal


desejo morreu quando vi que ela trocava sorrisos com um

cliente, com o qual conversava de forma muito


descompromissada.

— Qual o preço desse daqui? — a voz da velhinha


chegou aos meus ouvidos.

Sequer a olhei e apenas balancei a mão,


respondendo: — Tem uma etiqueta de preço bem grande

colada nele, senhora.

O cara que conversava com Luíza disse algo do


qual ela pareceu achar graça, pois voltou a rir.
Definitivamente não deveria estar relacionado ao preço
dos pufes.

— Tem dele em outras cores? — a vovó voltou a


falar.

Enfim eu a olhei, um tanto impaciente: — Que


cores desse modelo a senhora está vendo aqui?

— Esse amarelo e aquele branco ali.

— Então, temos nas cores amarelo e branco.

Bufei, voltando a prestar atenção aos dois que

ainda conversavam de forma animada.

Luíza o guiou alguns passos até os suportes para

TV, e parecia estar mostrando os produtos a ele. Mas eu

conhecia bem aquele tipinho. Ele não queria saber de

pufes nem de suportes. Os olhos dele percorriam o corpo


de Luíza a todo instante.

Filho da puta dos infernos!


— A moça bonita é sua namorada? — a voz da

velhinha novamente chegou aos meus ouvidos.

Virei o rosto em sua direção, vendo que ela tinha

parado ao meu lado, olhando para a mesma cena que eu

observava até então.

— Não, é só minha colega de trabalho. — Eu


poderia ter parado por aí, mas não resisti. Precisava

colocar aquilo para fora. Voltei a olhar para os dois. —

Olha como aquele panaca olha para ela.

— Ele só está olhando, isso não tira pedaço. Ela é


uma mulher muito bonita. Tem certeza de que não é sua

namorada?

— Não, ela não é. Não tivemos nada.

— Mas você parece interessado em ter, não é?

— É, eu tenho tentado há alguns dias. Sem

sucesso.
A que ponto eu tinha chegado? Estava

desabafando com clientes da loja?

— Está tentando como? Não se importa de eu ser

tão enxerida, não é?

Eu não me importava. Novamente, era bom ter


alguém com quem conversar. Tudo o que eu falava com

Heitor sobre Luíza dizia respeito a provocações a respeito

da aposta, nada além disso.

— Eu a acompanho todos os dias até em casa, sou


gentil...

— Mas, com isso, você está sendo apenas um

rapaz educado.

— Faço elogios...

— Elogios a gente escuta até de estranhos na rua.


E vamos concordar, meu rapaz, uma moça bonita como

aquela sabe que é bonita, não precisa de alguém para

contar a ela.
— Não é só isso. Eu também invisto em uma boa

conversa, em bons olhares... As mulheres não costumam


resistir aos meus olhares. Mas ela resiste. Bravamente.

— Daí você está sendo um galanteador barato. Não

é assim que se conquista uma mulher, meu filho.

Eu a olhei novamente. Ela já devia ter seus quase

oitenta anos, tinha experiência de vida. Devia saber do


que estava falando.

— Então o que devo fazer?

— Mostre a ela que você se importa. Que você

sabe do que ela gosta de fazer, dos lugares que gosta de


ir... e faça junto, vá junto. Mostre que presta atenção nas

coisas que ela diz. Atitudes que provam que você se

importa dizem mais do que palavras.

Pensei a respeito daquilo e algumas ideias logo


começaram a povoar a minha mente.

E pareciam ser boas ideias.

*****
Capítulo dezenove

“Nunca botei muita fé no amor ou em milagres Nunca

quis pôr meu coração em jogo Mas nadar em seu mundo é

algo espiritual”

(Locked out of Heaven - Bruno Mars)

Eu pouco havia dormido naquela noite.

No sábado, cheguei esgotada da inauguração da

loja, mas fui cumprir minha promessa de trabalhar na


estante de Sofia. Ela, é claro, ficou o tempo todo ao meu

lado, para me ajudar.


No dia anterior ela já tinha se animado muito com a

pintura dos caixotes, nas cores que ela escolheu – azul,


amarelo, rosa, verde e roxo, e agora passara a me

‘auxiliar’ pegando as ferramentas que eu pedia, enquanto

falava sem parar sobre suas expectativas para o domingo


no parque.

Seguimos assim até umas dez da noite, quando ela

já não se aguentava mais de sono e eu a levei para o

quarto, contando uma história até que ela dormisse.

Joe, como sempre, a acompanhou, e eu voltei a


descer para a garagem, agora sozinha, onde fiquei até

bem tarde, para concluir o trabalho. Faltaria apenas a

montagem final, que faria nos próximos dias, já no quarto

de Sofia.

No dia seguinte, eu mais parecia um zumbi, mas

precisei acordar cedo. Fiz uma faxina rápida na casa e

preparei os lanches que levaríamos em nosso passeio.

Logo que Sofia também acordou, eu a ajudei a se

arrumar e também tomei meu próprio banho, colocando


uma roupa leve para o dia quente que fazia – camiseta
baby look e bermuda jeans, junto a um tênis, já que

teríamos uma caminhada até lá.

O parque municipal ficava quase em frente à loja

onde eu trabalhava. Consequentemente, a poucos


minutos a pé da minha casa. E lá fomos nós, eu levando a

guia de Joe em uma mão e a mochila com os lanches nas

costas, enquanto Sofia ia ao meu lado empurrando sua

bicicleta amarela ainda com rodinhas.

Chegando ao parque, escolhemos um local na


grama, embaixo da sombra de uma grande árvore, e eu

abri a mochila, tirando de lá uma canga que estendi no

chão.

Tirei a guia de Joe para permitir que ele andasse


mais livre, já que ele costumava ser um cão bem

obediente e não se distanciar muito de nós.

Sofia me ajudava a tirar os potes e pacotes de

lanches da bolsa, quando seus olhos se desviaram para a


área calçada onde as pessoas costumavam correr e andar
de patins ou bicicleta. Uma pista que circulava a extensa

área gramada onde estávamos. Segui meus olhos na


mesma direção, para ver o que chamava a atenção dela.

E fiquei surpresa com o que eu avistei.

Vestido no melhor estilo ‘atleta de fim de semana’,


Henrique vinha correndo pela pista. Parecia distraído, até

que seus olhos se focaram em nós e ele sorriu, acenando


e passando a vir em nossa direção.

— Oi! Vocês por aqui? — Ele parou diante de nós,


tirando os fones dos ouvidos.

A surpresa dele, em um primeiro momento, me


soou estranha, mas recapitulei para tentar me lembrar se

não havia comentado com ele a respeito do planejamento


de levar Sofia ao parque no domingo.

Lembrei que a própria Sofia havia falado isso


comigo, na frente dele, no dia em que ele me ajudou com

os caixotes. Porém, é claro, tinha sido apenas um


comentário solto, ele talvez nem tivesse prestado atenção.
Nossa, eu devia estar meio paranoica. Só assim

para imaginar que um homem lindo como aquele iria se


preocupar em armar um ‘encontro por acaso’ entre nós

dois.

Claro que era uma coincidência.

E nem era das mais surpreendentes, já que aquele

parque, além de ser o único da cidade, também era muito


frequentado aos fins de semana por famílias, casais,
pessoas passeando com seus cachorros ou se

exercitando, como parecia ser o caso dele.

— Está explicado o seu bom condicionamento para


correr atrás de vans enquanto carrega caixotes —

brinquei.

Ele balançou a cabeça e riu, enquanto passava a

mão pelo pescoço, limpando uma trilha de suor. Eu não


deveria ficar observando aquele tipo de coisa, mas foi

impossível deixar de achar a imagem incrivelmente


sensual.
— É o tempo que sobra para fazer alguma
atividade física, não é? Com toda a correria do dia a dia.

— Ao menos te sobra algum — brinquei.

Ele riu e olhou para Sofia, que o fitava com

desconfiança.

— E você, princesinha, como está?

— Não sou uma princesinha boboca — ela rebateu,

fazendo bico.

— Sofia! — chamei a sua atenção.

Cruzando os braços e com um bico ainda maior, ela

resmungou em resposta a ele, tentando aplicar os bons


modos que eu sempre tentava lhe ensinar: — Estou bem,

e você?

— Melhor agora que encontrei vocês — ele

rebateu, sem perder o bom humor. Olhou para Joe. — E


você, cachorrinho? Está de bom humor hoje?
Nosso cão respondeu apenas mostrando-lhe todos
os seus dentes. Aquilo me assustou.

— Joe! Meu Deus, o que está acontecendo com


você? Eu juro, Henrique, ele nunca agiu assim com

ninguém.

— Não se preocupe com isso. Cães, assim como

crianças, precisam ser conquistados aos poucos. Todo

mundo precisa, no fim das contas, não é?

Concordei, convidando-o para se sentar conosco, o

que ele aceitou imediatamente. Como já era quase hora

do almoço, combinei com Sofia que primeiro iríamos

comer alguma coisa, e apenas depois ela poderia andar


de bicicleta.

A intenção era comprar algo por lá, já que eu tinha

levado apenas alguns lanchinhos mais leves como

biscoitos, frutas e alguns sanduíches que pretendia deixar


para a tarde.
Comentei a respeito disso e Henrique logo se

levantou, dizendo que compraria hamburgueres para nós.


Eu disse que ia lhe dar o dinheiro, mas ele negou, logo se

afastando e indo até um trailer que vendia os lanches.

Tinha um mais próximo, mas, por qualquer razão, ele foi


até outro um pouco adiante.

— Ele até que é legal... — Sofia comentou,

sentando-se ao meu lado, também olhando para

Henrique.

Eu a olhei e sorri.

— Acha mesmo?

— É. Mas não conta pra ele que eu disse isso —

ela cochichou, como quem conta um segredo.

Achei graça, mas não contestei o pedido.

— Pode deixar, eu não vou contar. Mas por que

você o acha legal?

— Ah, ele deixa você feliz.


— O quê? De onde tirou isso, Sofia?

— Ué, mamãe, você tá sempre sorrindo quando tá

perto dele.

Fiquei sem resposta, pensando a respeito daquela

afirmação que, por mais que tivesse vindo de forma


inocente, me fazia refletir a respeito. De fato, nas vezes

em que Sofia havia visto Henrique perto de mim, eu

realmente estava sorrindo na maior parte das vezes,


mas... era só uma coincidência, não? Afinal, quando ela

não estava por perto, eu...

Que droga, eu também estava sorrindo. Até mesmo

no trabalho na loja, que era algo que eu jurava que seria


um martírio fazer, por não gostar nada daquele lugar.

Henrique tornava o clima leve. Eu me sentia bem na

presença dele, essa era a verdade.

Voltei a olhá-lo, vendo-o trazer algumas sacolas


com os lanches e latas do que parecia ser refrigerante.

Era impossível deixar de me sentir hipnotizada por aquela

beleza.
Logo que parou diante de nós, ele se abaixou,

apoiando as compras sobre a canga e tirando uma coisa


por vez para nos entregar.

— Para a Sofia, um cheeseburguer com salada

sem tomates.

Minha filha arregalou os olhos, surpresa.

— Eu não gosto mesmo de tomate... — ela


comentou.

— É, eu sei, sua mãe comentou comigo outro dia.

Forcei a mente, tentando me recordar em que

momento eu teria dito aquilo. Enfim, lembrei que foi em

uma conversa durante o almoço na loja, um comentário


rápido, enquanto comia uma salada, sobre Sofia odiar

tomates e sempre me pedir para tirá-los do hamburguer.

Tinha sido algo tão simples... por que ele tinha

guardado tal informação?


— E para a Luíza... — ele continuou, me

entregando outro hamburguer — um com carne de frango.

Você gosta mais do que da bovina, não é?

Movimentei a cabeça em concordância, embora


não me recordasse de ter comentado qualquer coisa a

respeito.

— Como você sabe?

— Você sempre pede frango no almoço. Por isso fui

ao outro trailer, sei que esse mais perto só vende


hamburguer de carne vermelha.

— Você reparou?

— É, uma vez dei uma parada ali e queria um

hamburguer de frango, mas não tinha.

— Não estou falando disso. Falo de eu sempre


pedir frango no almoço.

— Eu reparo tudo em você.


A frase, dita com tanta naturalidade, não apenas

me pegou de surpresa, como fez com que eu sentisse


uma leve alteração nos meus batimentos cardíacos.

Será que aquele homem fazia alguma ideia do

efeito que ele causava em uma mulher dizendo algo

daquele tipo?

Lindo daquele jeito, aliás, seria difícil se não


soubesse.

Pegando seu próprio hamburguer, ele se sentou ao

meu lado. Joe geralmente ficaria por perto pelo fato de

estarmos comendo, mas ele gostava tanto de ir ao parque


que, em vez disso, estava se divertindo rolando sozinho

na grama um pouco adiante de nós, parecendo bem feliz.

E eu precisava confessar que ele não era o único

por ali. Estava realmente feliz pelo fato de Henrique ter


nos encontrado.

Enquanto ainda comíamos, ele apontou para a

bicicleta de Sofia.
— Bicicleta nova? — indagou.

Sofia estava com a boca cheia, por isso eu me

adiantei em responder: — Na verdade, ela já a tem há

quase um ano.

— Ué... então por que as rodinhas?

— Só sei andar assim — Sofia respondeu,


parecendo quase insultada com a pergunta.

Eu achava curioso como ela, na ausência de

Henrique, dizia que ele era legal, mas na frente dele

demonstrasse um certo ar de implicância.

— Mas é questão de aprender a andar sem elas —

ele contestou.

Sofia fez bico e eu respondi por ela.

— Já tentei convencê-la disso, mas ela tem medo.

— Medo de quê? Não tem razão para isso. Vamos,


Sofia, eu vou te ensinar.
Ela olhou para Henrique, desconfiada, mas foi
enfática na resposta.

— Não. Tô bem com as rodinhas, elas não me


incomodam.

— Sério mesmo? Sei lá, é porque rodinhas em


bicicleta parece uma coisa que uma princesinha usaria. E

você me disse que não é uma.

Ele tinha chegado ao ponto certo. Vi os olhos de


Sofia faiscarem em direção a ele, e ela rebateu: — Não
sou uma princesinha boboca, já disse. Sou uma super-

heroína corajosa e destemida.

— Eu não imagino a Super Girl andando por aí com


uma bicicleta de rodinhas.

— Dã, claro que não. Porque ela sabe voar!

Segurei o riso, querendo ver até onde aquela


discussão iria. Henrique logo perceberia que tentar

argumentar com Sofia era um exercício de paciência.


Minha filha tinha resposta para tudo, e por vezes
conseguia ser bem convincente. Acho que ela daria uma
ótima advogada quando crescesse.

— Mas e quando ela não está combatendo o crime


e se disfarça como uma pessoa normal? Acha que ela

anda em uma bicicleta com rodinhas?

Incrivelmente, ela ficou sem resposta, o que era um


grande ponto para Henrique. Ela deu mais uma mordida
em seu hamburguer e mastigou lentamente, parecendo

tentar ganhar tempo para contra-argumentar. Quando


enfim o fez, foi sincera: — Mas e se eu cair?

— Eu não vou te deixar cair. Anda, termina de


comer que eu vou te ensinar a não depender mais

daquelas rodinhas de princesinha boboca. Enquanto isso,


vou ver se consigo alguém que me empreste uma chave

para eu tirar as rodinhas.

Dito isso, Henrique se afastou, indo abordar

algumas pessoas que estavam com crianças com


bicicletas no parque. Aquele era justamente o local onde

os pais costumavam levar seus filhos para aprenderem a


andar sem as rodinhas, mas ainda assim eu achava difícil
que encontrasse alguém que estivesse com uma chave

que pudesse nos emprestar.

Sofia permaneceu calada e apenas continuou a


comer um pouco menos devagar do que fazia antes.

E isso me dava uma boa dica de que havia


aceitado a proposta de Henrique.

*****
Capítulo vinte

“Eu continuo procurando, mas eu não consigo achar A

coragem para mostrar, para te dizer Que nunca senti tanto

amor antes E mais uma vez eu fico pensando Em pegar a

saída mais fácil”

(If I Let You Go - Westlife)

Aquele tinha se tornado mais um desafio pessoal

da minha vida. E eu nunca fugia de um.

Se me perguntassem por que eu fiz aquilo, de


cabeça fria e tentando ser pragmático, eu provavelmente
argumentaria que era mais uma estratégia para ganhar a

confiança de Luíza, conquistando sua pequena filha.

Tanto, que eu já estava com tudo preparado. Tinha


levado já comigo uma chave de roda. Meu plano era me

distanciar, parar em um dos trailers para fazer qualquer

pergunta aleatória ao atendente, e depois retornar para


perto delas dizendo que tinha sido lá que eu tinha

conseguido a chave emprestada. E a ideia funcionou bem.

Porém, a grande verdade é que quando iniciei a

conversa sobre a bicicleta e me ofereci para ensinar Sofia


a andar sem as rodinhas, eu verdadeiramente me animei

com aquilo. Eu achava, realmente, que seria divertido para

ela.

Lembrava de minha própria infância e de como o

meu pai tinha me ensinado a andar de bike. Ele não era

um pai tão presente assim, já que estava sempre

envolvido com a empresa, mas aquele foi um dos

momentos que tive junto a ele e que trazia vivo na

memória até hoje. A sensação tinha sido tão boa, que eu


ainda seria capaz de sentir aquilo apenas vendo outras
crianças fazendo o mesmo.

Sofia iria adorar, eu tinha certeza.

No entanto, não nego que tudo até ali tinha sido

previamente planejado. Lembrava do comentário de Sofia

sobre irem ao parque no domingo, e só havia um em

nossa cidade, que era o municipal, próximo à loja. Fui

cedo para lá e fiquei perto da entrada, camuflado atrás de

uma árvore, como se fosse uma porra de um bandido

armando um sequestro ou coisa parecida, aguardando até


que as duas chegassem – acompanhadas pelo vira-latas.

Não podiam ter deixado ele em casa?

Dali eu as segui, vendo onde elas parariam e

achando o ponto perfeito. Ficava próximo ao trailer que

vendia hamburgueres de frango. Isso porque, no dia

anterior, tinha solicitado a um funcionário meu um

mapeamento do parque, com detalhes sobre cada um dos

pontos de venda de comida.


Talvez Heitor não aprovasse muito se soubesse

que eu havia desviado um funcionário do escritório da


empresa para essa função, mas... era uma competição,

não era? Valia tudo!

Porém, para as demais descobertas eu não havia

necessitado de nenhum espião. Eu me lembrava bem


sobre a história do tomate, e também tinha de fato

observado que Luíza preferia frango à carne vermelha.


Sem contar que sabia que ambas gostavam de
hamburguer, porque ela já havia comentado comigo que

em suas noites de folga, quando ainda trabalhava no bar,


pedia os lanches por delivery para comer com sua filha

enquanto assistiam desenhos na TV.

Para um sujeito que não conseguia sequer se


lembrar do nome de uma mulher depois de ter passado a
noite com ela, eu recordava de detalhes demais a respeito

de Luíza. E o mais curioso é que nem precisava fazer


muito esforço para isso.

E Sofia aparentemente preferia as super-heroínas


às princesas. Disso eu ainda não sabia, mas agora que tal
informação tinha chegado até mim, não pretendia

esquecê-la.

Quando terminamos de comer, ela se levantou e


colocou o capacete amarelo, combinando com a cor da
bicicleta. Luíza permaneceu sentada, juntando o lixo em

uma sacola e guardando os lanches que sobraram na


mochila.

Enquanto ela organizava tudo, Sofia e eu nos


adiantamos e seguimos na frente. Eu empurrava a

bicicleta e seguia para a pista ao lado da garotinha.


Quando já estávamos a uma distância relativa de sua

mãe, ela me surpreendeu com um comentário: — Tá me


devendo o pagamento de ontem e de hoje. A mim e ao

Joe.

— Você é uma pequena agiota, não é?

— Uma agi o quê?

— Esquece. Mas você é muito pequena para


querer tanto dinheiro.
— Estou juntando tudo para um investimento. —
Certo, eu estava sendo extorquido, mas não pude deixar
de rir com o tom de voz que ela usou ao dizer aquela

frase.

Vamos ser sinceros? Eu estava começando a


gostar daquela menina.

Mas não deveria, já que, em alguns dias, eu sequer


a veria mais.

— Vamos fazer o seguinte? — Paramos, já na


calçada, e eu me curvei para ficar com os olhos na mesma

altura dos dela — Vou te ensinar a andar de bicicleta, isso


não conta como o pagamento?

— Talvez conte como o de hoje.

— Acho que é uma coisa muito valiosa. Deveria


valer por ontem e por hoje.

Ela revirou os olhos, quase convencida.


— Tá legal. Mas você não está ensinando nada ao
Joe, então ainda continua devendo o pagamento dele.

— Fechado.

Abaixei-me, começando a tirar as rodinhas de


apoio. Quando terminei de fazer isso, Sofia olhou para a
bicicleta e depois para mim, cruzando os braços.

— Eu não vou subir aí.

— Se não subir, como vai aprender?

— Mas eu vou cair. — Ela apontou para a cicatriz

em sua testa. — Eu levei uns pontos na cabeça outro dia


e doeu muito. Não quero me machucar de novo.

— E quem disse que você vai se machucar? E nem

vai cair. Eu vou estar o tempo todo segurando você.

— Eu prefiro aprender usando as rodinhas. Eu


gosto delas.

— Com as rodinhas você já sabe. Para aprender a

andar sem elas, precisa tirá-las. Anda, seja corajosa! Olhe


todas essas crianças andando já sem as rodinhas. Não

quer ser como elas?

Ela olhou para a pista. Havia muitas crianças ali,

mas os olhos dela se fixaram diretamente em um

garotinho que devia ser um pouco mais velho que ela e

que pedalava sua pequena bicicleta ao lado de outra


maior, onde havia um homem. Os dois riam de qualquer

coisa engraçada, enquanto aparentemente apostavam

uma corrida. O garoto chamava o mais velho de ‘pai’, o


que não deixava dúvidas sobre o parentesco entre os

dois.

Voltei a me focar em Sofia e percebi um traço de

tristeza em seus olhos olhando para a cena. Luíza nunca


falava nada sobre o pai da menina, mas tudo me levava a

crer que ele não era nem um pouco presente na vida da

filha.

Eu só conseguia pensar que ele era um grande


idiota, que não fazia a menor ideia das coisas

maravilhosas que estava perdendo.


— É, eu quero — Sofia respondeu, por fim,

voltando a me olhar. — Eu quero aprender a andar sem

rodinhas, tio Henrique. Mas você promete que não vai me


soltar? Porque se soltar, eu vou cair.

— Eu prometo que não vou deixar você cair.

— Então tá.

— Assim é que se fala.

Estendi a mão em sua direção. Ela me fitou com

desconfiança por alguns instantes, até que, vencida,


acabou batendo sua pequena palma contra a minha. Luíza

chegou nesse instante, acompanhada pelo vira-lata.

— E então, filha, vai mesmo fazer isso? — ela

questionou. Percebi que ali havia um leve tom de medo,


talvez um instinto de superproteção por temer que a filha

pudesse se machucar.

Sofia a olhou com determinação.


— Vou. Sou corajosa. Além do mais, o tio Henrique

prometeu que não vai me deixar cair.

— E não vou mesmo.

Enquanto Sofia ia verificar a bicicleta, junto ao seu

cachorro, Luíza se afastou alguns passos, fazendo um

sinal para que eu a seguisse, e então sussurrou: — Tem

certeza de que isso é seguro, Henrique? Ela ainda é muito


pequena.

— Ela já tem seis anos, Luíza. Eu já andava sem

rodinhas na idade dela.

— É, eu também, mas... Sei lá... Foi o meu pai que


me ensinou a andar de bicicleta, e... como eu já te contei,

quando ele não estava bêbado e chato, ele era o melhor

pai do mundo, e me passava muita confiança. Já eu,

sempre fico nervosa achando que a Sofia vai cair e se


machucar, e com isso acabei que nunca a incentivei a

fazer isso, entende?


Balancei a cabeça, dizendo que entendia. Bem, eu

não tinha filhos, então, em teoria, não teria como

compreender aquilo com perfeição. Mas eu sabia que

também não queria que Sofia se machucasse e que


tomaria todos os cuidados para que isso não acontecesse.

E também sabia de outra coisa, que expus: — Ela

parece confiar em mim.

Luíza seguiu com os olhos em direção à filha e


esboçou um sorriso.

— É. Ela confia mesmo. Só por ter topado isso...

— Então confie em mim também, vai dar tudo certo.

Ela voltou a me olhar e, por um instante, vi-me

completamente preso aos olhos dela. Desviei por um

instante para seus lábios, que pareciam me chamar para


tomá-los com os meus.

Como eu desejava por aquilo...


Contudo, obviamente, não era o momento

adequado, por isso eu apenas a puxei levemente para


mais perto, depositando um beijo em sua testa. O gesto

tão inocente, no entanto, pareceu tão significativo. Havia

um sentimento ali naquele ato. Mas logo forcei meus

pensamentos a deixarem isso de lado e focar em outra


coisa.

O foco ali era ensinar Sofia a andar de bicicleta.

E era o que eu faria.

*****
Capítulo vinte e um

"Coloque um pouco de amor em mim Quando as luzes se acendem


e não há sombras dançando Olho em volta enquanto meu coração

está desabando Porque você é a única pessoa que eu preciso

Então coloque um pouco de amor em mim"

(Put a Little Love On Me – Niall Horan)

Quando Sofia subiu na bicicleta, eu segurei na


parte de trás, seguindo-a enquanto ela pedalava devagar,

nitidamente desconfiada.

O papo sobre ela confiar em mim, no fim das

contas, não era algo tão absoluto assim. Claro, ela estava
com medo de que eu a soltasse a qualquer momento. E

era justamente esse medo que eu precisava eliminar para


que ela conseguisse fazer aquilo.

Passamos muito tempo assim, parando em um

momento para fazermos um lanche com os sanduíches

que Luíza tinha levado. Ela durante todo o tempo


incentivava a filha e tirava fotos. Nós três ríamos muito, e

até mesmo o vira-lata parou de rosnar para mim, parecia

que tinha me dado uma trégua.

Por aquelas horas, eu esqueci completamente da


aposta que me motivou a estar ali. E em nenhum

momento lamentei por passar um domingo em um

programa tão leve, abrindo mão das minhas festas

regadas a álcool e mulheres.

Eu estava, de fato, feliz.

Já no final da tarde, percebi que, enfim, Sofia tinha

ganhado confiança e já pedalava mais rápido e com


equilíbrio, parecendo por vezes até mesmo esquecer que

eu segurava a bicicleta por trás.


Eu era grato por toda a minha rotina de anos de
academia, para conseguir ter condicionamento físico de

aguentar o ritmo daquela criança.

Estávamos quase completando uma volta inteira na

pista e voltando a passar por onde Luíza e Joe estavam,


quando senti que aquele era o momento e soltei.

Passávamos por Luíza nesse momento e a vi levar as

mãos à boca, em um misto de susto e surpresa. Sofia

seguiu pedalando, sem perceber que agora estava

sozinha, e eu continuava a correr atrás dela, sentindo um

inusitado orgulho por ela ter conseguido.

Passou-se alguns segundos até que ela percebeu o

que acontecia. Aumentei o ritmo, passando a correr ao

lado dela.

— Você me soltou! — ela gritou, enquanto ainda

pedalava. — Mentiu pra mim!

— Não. Eu prometi que você não iria cair. E não

caiu. Está pedalando sozinha.


Só então ela pareceu ter se dado conta do que

fazia e a expressão de medo em seu rosto se dissolveu,


dando lugar a um enorme sorriso de empolgação.

— Eu tô pedalando sozinha, e sem as rodinhas! —


E passou a gritar mais alto. — Mamãe, eu tô pedalando

sozinha! Tá vendo, mamãe?

Eu não achava que Luíza poderia ouvi-la, devido à


distância, mas me surpreendi ao ouvir um grito ao longe,
em resposta: — Estou vendo, meu amor! Você é incrível!

Olhei para trás, e vi que Luíza corria atrás de nós,

ao lado de Joe. Por estar levando a mochila, o ritmo dela


era bem mais lento que o nosso, então ela ficava cada vez
mais para trás, mas não desistia. Poderia ter

simplesmente esperado até que déssemos mais uma volta


e passássemos novamente por ela, mas, na empolgação,

não devia ter pensado nisso. Ou até pensara, mas queria


correr até a filha, como uma forma de comemorar e

mostrar o quanto estava orgulhosa.


Em determinado momento, Sofia tentou frear, mas,

por ainda não ter muita prática, acabou se desequilibrando


quando a bicicleta começou a parar.

Eu a amparei antes que viesse a cair, mas a parada


brusca fez com que eu próprio derrapasse e fosse ao

chão, levando Sofia e sua bicicleta junto comigo. Porém,


consegui segurar a menina com meus braços, evitando

que ela se machucasse. Eu ralei um pouco a perna, mas,


na hora, não senti qualquer dor.

Apenas gargalhei junto a Sofia. Eu a coloquei de pé


e me ajoelhei diante dela, já me preparando para também

me levantar. Então, ela me surpreendeu com um abraço.

Um abraço... Um simples abraço de uma criatura


tão pequena. E meu coração pareceu ter parado de bater
por um instante.

Recuperando-me daquela emoção súbita, decidi

fazer uma brincadeira para descontrair: — E então, acho


que isso realmente valeu pelo pagamento de ontem e de
hoje, não é?
Ela se afastou um pouco e me olhou nos olhos.
Parecia analisar em sua cabecinha as coisas que diria a
seguir: — Eu sei como você pode pagar os próximos dias.

Todos eles, até você contar a verdade para a mamãe.

Olhei rapidamente para Luíza, apenas para garantir


que ela estava longe o suficiente para não ter conseguido
ouvir aquela proposta. Ela estava a alguns metros de nós,

mas tinha parado, aparentemente porque o Joe resolveu


que seria um bom momento para usar o banheiro. Ela

alternava o olhar entre nós dois e o vira-lata, já com uma


sacolinha na mão, preparada para recolher as fezes logo
que ele terminasse.

Ela parecia emocionada ao ver o nosso abraço, e

vê-la assim também me deixou subitamente sem ar.


Sentia algo dentro de mim que não seria capaz de
descrever.

Voltei a olhar para Sofia, dando prosseguimento à

conversa.

— Então diga, como posso fazer esse pagamento?


— Vai ter uma festa na minha escola. Na sexta-
feira. Mamãe vai pedir pra trocar o horário dela, pra entrar
mais cedo e sair mais cedo, assim ela vai poder ir.

— Entendi...

Na verdade, não havia entendido. Meu primeiro


pensamento foi que, com aquilo, ela quisesse me pedir

para, como dono da loja, cuidar para que o pedido de

troca de horário de sua mãe fosse aceito. Mas, por mais


que Sofia fosse bem esperta para a pouca idade,

provavelmente ainda não seria capaz de formular algo

assim, não deveria compreender as complexidades


desses requerimentos. Para ela devia parecer bem

simples que seria apenas pedir, que Luíza teria sua troca

de horários garantida.

Bem, mas ela teria, de qualquer maneira. Porque


eu me certificaria de garantir isso.

Tomando fôlego, Sofia continuou a falar: — Nós

vamos apresentar uma peça. Vai ser legal. Eu vou fazer o

papel de uma das árvores e a chata da Júlia fica


implicando dizendo que é um papel bobo. Mas não é!

Porque as árvores vão cantar no final. E, além de tudo, eu


amo as árvores, elas são muito importantes pra natureza,

você sabia?

— É, eu estou sabendo. Você tem razão, o papel

de árvore é bem legal. — Na verdade, não devia ser tão


legal assim. Mas eu não iria desiludir a criança, não é? —

Mas o que você vai querer que eu faça?

— Eu quero que você vá à festa, junto com a

mamãe. Você vai, não é? Promete que vai?

Luíza nos alcançou nesse momento, me safando

de ter que dar aquela resposta.

Como eu iria prometer uma coisa daquelas?

Faltava quase uma semana, o que significava que

até lá o meu prazo para a aposta estaria em seus dias


finais. Tudo o que eu tinha que fazer era levar Luíza para

a cama, garantindo que antes disso ela não soubesse

sobre eu ser um milionário, e então tudo estaria acabado.


Eu iria ganhar a minha aposta, seguiria com a minha vida,

e Luíza com a dela, e fim.

Construir laços fortes com a filhinha dela não

ajudaria em nada nesse processo. Uma coisa era eu


passar uma tarde junto com ela e ajudá-la a andar de

bicicleta – apesar de, no fim das contas, aquilo ter sido

mais significativo do que era na minha intenção inicial.

Outra, completamente diferente, era eu fazer uma


promessa como aquela.

Luíza se abaixou diante da filha, abraçando-a com

força e vibrando, emocionada, por ela ter conseguido

pedalar sozinha sem as rodinhas. A pequena se


empolgou, narrando para a mãe os detalhes de sua

aventura.

E eu fiquei ali, olhando para as duas, sentindo meu

coração bater forte, querendo guardar para sempre aquela


imagem...

E, pior... querendo reviver mais e mais momentos

como aquele, ao lado delas duas.


Mas o que estava acontecendo comigo, afinal?

*****
Capítulo vinte e dois

“Não há nenhuma rima ou razão Apenas essa sensação

de plenitude E em seus olhos Eu vejo as peças perdidas Que

eu estive procurando”

(I Knew I Loved You - Savage Garden)

O dia tinha sido maravilhoso. Faltavam palavras

para que eu pudesse descrever o tanto de felicidade que


preenchia o meu peito quando voltei para casa.

Henrique tinha nos acompanhado até lá, mas não

ficou por muito tempo e logo foi embora.


Eu compreendia, afinal, quando ele saiu de casa

pela manhã, provavelmente planejava apenas fazer sua


corrida de fim de semana pelo parque e retornar, mas, em

vez disso, havia passado o dia inteiro conosco. O sol já

tinha se posto quando fomos embora.

Reparei que, ao contrário da primeira vez que ele


tinha me levado em casa, ele não voltou a insinuar que

queria me beijar.

Aliás, por mais sutil que fosse, eu percebia que o

comportamento dele vinha mudando dia após dia. No


início, ele fazia a linha mais sedutor, usando um tom de

conquista nítido em sua voz, mas aos poucos isso foi se

dissipando e se tornando mais... natural, talvez. Embora

eu ainda fosse capaz de perceber, na forma como me

olhava, que havia um traço de desejo ali.

— Mamãe! — Pelo tom de voz de Sofia, percebi

que não devia ser a primeira vez que ela me chamava.

Acabávamos de entrar na sala de casa.


— Desculpe, querida. Falou comigo?

— Parece que você tá com a cabeça no mundo da

lua, mamãe — ela riu ao usar contra mim a mesma

expressão que eu volta e meia usava quando ela se

distraía.

— É, parece que eu estava mesmo. Mas me diga,

por que me chamou?

— A tia Sara vem mesmo aqui hoje?

Ah, é claro! Eu tinha esqueci completamente!

Minha prima tinha combinado de ir lá para casa


nessa noite. Tinha estreado a nova temporada de uma

série que ambas amávamos, e sempre que isso acontecia

marcávamos de assistir juntas. Por sorte eram apenas oito

episódios, então conseguíamos sempre assistir em uma

tacada só, ainda que isso fosse até de madrugada.

Seria mais uma noite com poucas horas de sono,

mas por uma boa razão. Seria ótimo me distrair um pouco


das obrigações do dia a dia maratonando uma série em

companhia de uma amiga.

— É, ela vem... Aliás, preciso avisar a ela que já

estamos em casa. — Apanhei o celular, digitando


rapidamente uma mensagem, que enviei para Sara. —

Prontinho. Que tal a senhorita ir tomando um banho


enquanto eu arrumo as coisas por aqui? Pode fazer isso

sozinha?

Ela estufou o peito, orgulhosa.

— É claro que posso, mamãe. Já sei até andar de

bicicleta sem rodinha. Rodinhas são para bebês!

Mordi os lábios em uma forma de controlar o riso.

— Mas você ainda precisa praticar, para melhorar o

equilíbrio.

— Tio Henrique falou que, depois que a gente

aprende a andar sem as rodinhas, pra ganhar equilíbrio é


molezinha.
No fim das contas, não é que os dois estavam se

dando bem?

Balancei a cabeça, tentando parar de pensar nisso


e insisti para que ela fosse para o banho.

Enquanto isso, limpei as patas do Joe para que ele


pudesse subir no sofá e esvaziei minha mochila, lavando e

guardando os potes que tinha levado com lanches.

Logo Sofia desceu, de banho tomado, quase no

mesmo momento em que a campainha tocou. Era Sara,


como sempre trazendo algumas sacolas com petiscos de

sua lanchonete.

Deixei as duas arrumando tudo sobre a mesa de

centro da sala, enquanto subia para tomar o meu banho.


Quando voltei a descer, tudo já estava arrumado e as

duas dividiam um dos sofás da sala. O outro era


totalmente ocupado pelo Joe, que não tirava os olhos dos

petiscos da mesa.
Sofia estava muito animada, contando a Sara sobre
o seu dia e sobre como tinha aprendido a andar de
bicicleta.

— ...Daí, quando eu percebi, estava pedalando

sozinha, ele tinha me soltado e eu nem vi! Eu ainda não


sei frear muito bem, quando tento acabo ficando sem
equilíbrio e quase caio. Mas tio Henrique falou que é muito

fácil pegar o jeito, é só praticar. Já quero tentar de novo no


domingo que vem. — Ela me olhou. — Podemos ir ao

parque de novo no outro domingo, mamãe?

— Vou pensar no caso — rebati.

Era certo que eu acabaria cedendo, ainda que meu

corpo implorasse por um dia de descanso.

— E o tio Henrique pode ir de novo com a gente?

Pra ele me ajudar a praticar.

Deixei de sorrir, começando a ficar preocupada com


toda aquela aproximação.
Henrique era apenas um colega – certo, talvez já
quase um amigo – e um carinha bonito que flertava
comigo de vez em quando, mas provavelmente não

passaria disso. Tinha medo de que Sofia estivesse


começando a projetar nele uma figura paterna e isso a

fizesse se ferir no futuro.

— O tio Henrique tem a vida dele, querida. Hoje ele


passou o dia com a gente e foi bem legal, mas isso não

vai acontecer sempre. — Antes que ela pudesse retrucar,

olhei para Sara e mudei de assunto. — Conseguiu fechar

a lanchonete na hora hoje?

— Amém por isso. Hoje não tinha nenhum freguês

chato enrolando para ir embora no final do expediente.

— Se ao menos fosse o Jonas, né?

Ela arremessou uma almofada contra mim,

atingindo-me bem no peito, e isso fez com que Sofia


gargalhasse.
— Não vai acontecer nada entre o Jonas e eu. Te

contei que ele está com uma namoradinha nova?

Aproximei-me, sentando-me no sofá. Sofia se

ajeitou no meio de nós duas, deitando com a cabeça no

meu colo e as pernas no de Sara. Então respondi: — Você

me contou isso na semana passada. E na retrasada


também. E acho que também na anterior. Jonas troca de

‘namoradinha’ toda semana.

— Com essa parece que o lance é sério.

— Você também disse isso nas últimas vezes.


Sério, Sara, ele é louco por você, qualquer um vê isso. E

vocês dois não saem desse chove-não-molha, é irritante.

— Olha só quem fala. A Sofia me contou sobre o

seu novo ‘amigo’.

As duas riram juntas, cúmplices. E eu não gostei


nada daquilo. Não queria colocar falsas ideias ou

esperanças na cabecinha da minha filha.


— Vamos ver a série ou não? — desconversei,

pegando o controle e ligando a TV.

Olhei para Sofia, vendo que ela já estava com seu

tablet na mão, plugado aos fones de ouvido. Sara e eu


assistiríamos a uma série de suspense, que apesar de

não ter cenas de sexo ou violência muito explícita,

continha um enredo adulto que seria um tanto chato e sem

sentido para uma criança de seis anos. Por isso, ela


assistiria a uma programação que ela própria escolhesse.

Claro, sob minha supervisão.

Ela logo ficou entretida no desenho que assistia,

enquanto Sara e eu comentávamos sobre os


acontecimentos da série. Ao final do primeiro episódio,

minha prima pausou, chamando a minha atenção.

— Ela dormiu — Sara sussurrou, apontando para o

meu colo. Olhei para baixo, vendo Sofia adormecida


usando minhas pernas como travesseiro. — E ainda não

são nem nove da noite. Geralmente a gente tem o maior

trabalho insistindo para que ela aceite ir para a cama


antes das dez.
Minha pequena parecia de fato estar exausta.

Com cuidado, tirei os fones de seus ouvidos e


peguei o tablet que estava já quase caindo de suas

mãozinhas, entregando tudo a Sara, que o deixou sobre a

mesa de centro.

— É. Mas hoje ela está cansada — expliquei,

enquanto afastava delicadamente uma mecha do cabelo


loiro que caía sobre o seu rosto. — O dia foi bem agitado.

— Então... Aproveitamento que ela dormiu... fala

mais sobre esse tal de “tio Henrique”.

— Não é nada demais. É só um colega lá da loja.

— Sei. Nunca te vi convidando colegas de trabalho


para passeios familiares.

— E eu não convidei. A gente se encontrou lá por

acaso.

— E foi por acaso, também, que ele passou o dia


todo com vocês? Sem ter qualquer interesse em você?
Movi os ombros, pensando um pouco a respeito.

— Ainda que ele tenha algum interesse, Sara, será

frustrado. Porque eu não estou interessada.

— Não é o que a Sofia me contou. Ela disse que

você está sempre sorrindo quando está perto dele.

Aquela menina! Além de muito observadora, ela

também era bem fofoqueira.

— Gosto da presença dele, não nego. Mas não vai

passar disso.

— Por que não, prima? Nem venha me dizer que é


por causa da Sofia. Ser mãe não te fez deixar de ser uma

mulher. Além do mais, ela o adora.

— Ela disse isso, é?

— Disse. E também me contou que ele é bem

bonito e que parece gostar de você.

— Ele faz o tipo sedutor. Deve agir assim com

todas as mulheres.
— Será que ele passa o dia inteiro em um parque

ensinando aos filhos de todas essas mulheres a andar de


bicicleta? Ele não faria isso se não gostasse de você.

— Ou se não estivesse muito empenhado em ter

sucesso em mais uma conquista.

Sara estendeu a mão, levando-a até a minha de

forma carinhosa.

— Lu, não é porque o pai da Sofia era um canalha

que todos os homens serão iguais a ele.

Eu sabia que ela tinha razão, mas eu não estava

disposta a arriscar.

O pai de Sofia havia sido uma paixão avassaladora


na minha vida, e era um cara em quem eu confiava com

os meus olhos fechados.

Até que eu fiquei grávida e ele me largou, fugindo

como um rato, tornando-se um ser humano bem diferente


daquele homem que namorou comigo durante mais de um

ano e que tanto dizia que me amava.


Desde então, meu coração se encontrava
absolutamente fechado para o amor. Mesmo porque, eu

passei a ter outros focos em minha vida. E cuidar de

minha filha sempre seria a maior das prioridades.

Antes de começarmos a assistir ao segundo


episódio, anunciei a Sara que iria levar Sofia para a cama.

Com cuidado para não a acordar, peguei-a nos

braços e subi as escadas até o seu quarto. O cesto de

livros já estava separado bem no local onde sua estante


nova ficaria, e relembrar da felicidade dela com a estante

colorida que ela tanto queria fez o meu coração se

aquecer.

Coloquei-a na cama e a cobri, sentando-me

devagar ao lado dela e fitando em silêncio aquele rostinho


tão lindo, que conseguia ficar ainda mais encantador
enquanto ela dormia.

Eu a amava tanto, que seria capaz de passar a

noite inteira ali, velando o seu sono.


Estava com o meu celular no bolso da calça de
moletom que eu usava, e ele nesse momento vibrou, no
alerta de uma mensagem recebida. Peguei-o e destravei a

tela. Não consegui evitar que um sorriso bobo surgisse em


meu rosto quando li aquelas palavras enviadas a mim.

Henrique: Pode parecer bobagem, mas hoje foi

um dos dias mais incríveis que já vivi.

Obrigado por tudo.

Diga a Sofia que estou muito orgulhoso dela.

E que ela tinha razão: É uma verdadeira super-


heroína.

Que droga. O que eu sentia ali ia na contramão de


tudo o que eu jurava a mim mesma há seis anos. Eu não
iria me apaixonar novamente.

Não podia me apaixonar novamente.


Contudo, agora já parecia ser tarde demais.

Talvez eu já estivesse apaixonada.

Eu ainda olhava para a tela do celular quando mais


uma mensagem chegou:

Henrique:

Estou ansioso para te reencontrar amanhã na


loja.

Muitos beijos e tenha bons sonhos.

Nos vemos amanhã.

Quando dei por mim, meus dedos já se moviam


sobre a tela, digitando uma resposta rápida.

Luíza: Eu é que agradeço.

Por tudo.

Beijos.
Até amanhã.

Realmente... parecia já ser tarde demais para ainda


insistir em não me apaixonar.

*****
Capítulo vinte e três

“Porque você ainda continua perfeita com o passar dos

dias Mesmo nos piores, Você me faz sorrir Eu pararia o

mundo se isso nos desse tempo”

(Love Someone - Lukas Graham)

Neste dia, eu começaria a trabalhar em um horário

diferente de Luíza. Enquanto o expediente dela começava


às oito, o meu teria início às onze e, consequentemente,

eu sairia mais tarde que ela, o que significava que não

teria como acompanhá-la mais até a sua casa.


Obviamente que eu poderia falar com o Carlos para

mudar isso, mas daí esbarraria em outra questão: eu


precisava de pelo menos umas duas horas da parte da

manhã livres para tratar de assuntos importantes da

empresa. Já me bastava ter adiado todas as reuniões que


ocorreriam naquele espaço de quinze dias, e deixado um

monte de pendências nas costas do Heitor.

No momento, eu conferia alguns relatórios, quando

a porta do escritório se abriu e meu irmão entrou, já


implicando: — Tic-tac... o tempo está passando, meu

irmão. Já se foi quase uma semana do seu prazo, e até

agora nenhum progresso?

Que ódio. Não havia tido mesmo nem um mísero

progresso. Nem uns amassos, nem ao menos um mísero

beijo... um inocente selinho já contaria alguma coisa.

Mas nada, absolutamente nada havia acontecido.

Porém, é claro, eu não comentaria a respeito com o


meu irmão. Não daria essa moral para ele.
— Tive muitos progressos. O terreno está sendo
preparado, e tudo se encerrará antes mesmo do final do

prazo.

— Se você quer se enganar, o problema é seu.

Bufei, preferindo deixar o assunto de lado.

Voltei a tentar me concentrar nas planilhas exibidas

na tela do computador, mas meus pensamentos já haviam

se deslocado completamente para Luíza.

Por qualquer razão bizarra eu não conseguia deixar

de pensar no nosso final de semana. Tinha sido tudo

muito bom, mas não perfeito. Porque eu ainda estava

louco para sentir o sabor dos seus lábios. Para senti-la por
completo.

Nunca uma conquista tinha sido tão árdua e, ao

mesmo tempo, tão desejada por mim.

Eu poderia ter aproveitado a minha noite de

domingo para ir à alguma festa. Não seria nada difícil

conseguir uma companhia para encerrar a noite na minha


cama e suprir aquele desejo, mas não era disso que eu

precisava.

Ou melhor, até era. Uma boa noite de sexo era tudo

o que eu mais queria, mas sentia que essa vontade não


seria sanada se fosse com qualquer outra mulher que não

fosse a Luíza.

— Terra chamando Henrique — ouvi a voz de


Heitor já bem próxima e só então percebi que ele havia se
sentado na poltrona do outro lado da minha mesa, bem à

minha frente. — No que tanto você pensa?

Pisquei algumas vezes, voltando a olhar para a tela


do computador. Não tinha nada a ver com a temática dos
relatórios, mas algo me veio à mente e, quando percebi, já

estava expondo em voz alta.

— Precisamos rever a questão de acessibilidade


das nossas lojas.

Heitor fez uma cara de confuso, mostrando que de


fato não esperava por tal comentário.
— Como é? Temos rampas de acesso, não temos?

— Não na entrada principal. As pessoas precisam

dar uma volta grande para chegar até lá. Ah, e outra
coisa... Você sabia que o lixo produzido nas nossas lojas é
simplesmente descartado sem qualquer cuidado maior?

— Não produzimos lixo hospitalar ou nuclear —

rebateu.

— Não importa. É um material que deveria receber

uma destinação mais apropriada. Sabe, ser separado para


reciclagem, e muita coisa ali pode ser reaproveitada por...

associações de artesãos, por exemplo.

— Henrique, você está se ouvindo falar?

“Associações de artesãos”? Você por acaso conhece


alguma?

— Não, mas elas devem existir. Muitas pessoas


fariam maravilhas com coisas como caixotes, ou móveis

quebrados ou com defeitos de fabricação, que


simplesmente mandamos para o lixo. Tem coisas que
poderiam ser até mesmo doadas a instituições como
asilos ou abrigos de menores.

Heitor sacudiu a cabeça, parecendo realmente


confuso.

Pensando um pouco a respeito, como eu poderia


culpá-lo por isso? Eu realmente nunca fui um cara que se

preocupava com qualquer uma daquelas questões.

Porém, meu irmão logo pareceu refletir um pouco a

respeito do que eu dizia, enfim percebendo que era uma


boa ideia.

Embora as motivações dele fossem bem diferentes

das pensadas por mim.

— Você não deixa de ter razão, Henrique.

Preocupações sociais e ambientais garantem likes em


redes sociais, e isso obviamente ajuda no nosso negócio.

Podemos ver com a equipe de marketing para criarmos


alguma campanha nesse sentido. Talvez para o Natal.
— Não estou falando de marketing, Heitor. Nem de
uma campanha. Mas de uma mudança sólida na política
da empresa. E precisamos falar também sobre os

uniformes dos vendedores.

— Sobre... os uniformes? Qual o problema com os


uniformes?

— São feios.

— Como assim são feios, Henrique? São básicos e


funcionais.

— Falou o cara que raramente repete uma gravata.

Ninguém gosta de ser básico e funcional, Heitor.

— Quer vesti-los com trajes de festa?

— Claro que não. Mas podemos ver algo menos

enjoativo do que aquilo. E por falar em vendedores... Você


sabe quanto eles ganham?

Heitor arregalou os olhos, em choque com o meu

discurso.
— É claro que eu não sei, Henrique. Temos

milhares de funcionários em infinitas funções. Existem


responsáveis por cuidar dessa questão de gastos com

pessoal e de definir os salários.

— Eis o problema, meu irmão. Como você quer que

tudo funcione bem se você nem sabe quanto os


vendedores, que são o pilar principal dos ganhos de

nossas lojas, recebem por mês?

— E você sabe quanto ganha cada um dos seus

funcionários da empresa nos Estados Unidos?

— Não sei, mas logo que você for para lá quero

que se inteire a respeito disso.

— Tudo bem, Henrique. Me conta, o que está

acontecendo? Está gostando daquela mulher e quer dar


mais dinheiro para ela, é isso?

Bufei, tentando mostrar que não era nada daquilo.

— Eu estou em contato direto com os outros

vendedores, agora sou um deles. Compreendo de perto


suas angústias e seus anseios.

— Carlos me disse que ninguém lá gosta de você.

Que tirando a tal Luíza e mais umas duas amigas dela,

ninguém te dá nem bom dia.

Nisso ele tinha razão. Mas eu, obviamente, não


admitiria isso.

— O ritmo de trabalho é tão insano que não sobra

muito tempo para fazer amizades, de fato. Mas eu não

quero “dar dinheiro para a Luíza”. O que quero realmente


é rever toda a questão salarial. Funcionários bem pagos

são mais felizes e, consequentemente, realizam melhor o

seu trabalho.

— Você nunca se preocupou com isso. Alguns dias


vivendo uma vida de vendedor já te fez levantar tantas

questões assim, sozinho? Ou realmente tem alguma

influência daquela mulher nisso?

— Influência nenhuma. Bem, nós vamos discutir


tudo isso com calma em outro momento. Agora eu preciso
ir, ou chegarei atrasado.

— Você é o patrão, Henrique. Está só fingindo.


Nada vai acontecer se você chegar atrasado.

— Como se o Geraldo soubesse disso. Aliás...

precisamos conversar também sobre o Geraldo.

— Como é? Geraldo não é o gerente de vendas?

Você não contou a ele sobre quem você é?

— Não. De lá, só quem sabe quem eu sou é o


Carlos e mais uns dois sub-gerentes que já me conheciam

antes, e espero que continue assim.

— Mas o Geraldo é o gerente de vendas, ele é seu

superior direto.

— Exatamente por isso. Quero ser tratado como

todos os outros vendedores lá, sem qualquer privilégio.

— Qual a necessidade de tudo isso?

Na realidade, eu não sabia. Mas confesso que

estava sendo uma experiência interessante isso de ser


olhado como uma “pessoa normal”.

Minha vida inteira eu sempre fui o riquinho, o

herdeiro, o playboy, o patrão, o CEO... pela primeira vez,

eu era só “um sujeito qualquer” e isso, ao mesmo tempo


em que era um tanto assustador, também tinha seu lado

bom.

E a melhor parte, sem dúvidas, era saber que Luíza

sorria para mim apenas por me achar um homem


agradável, sem fazer qualquer ideia do que eu tinha ou de

quem eu era.

A filha dela me extorquia, mas... ainda assim, os

sorrisos de Sofia eram verdadeiros. Eu já gostava daquela


menininha, no fim das contas.

Fechei as planilhas e me levantei, anunciando

novamente ao meu irmão que estava de saída.

Entrei no banheiro do escritório, onde meu –

horroroso – uniforme já esperava por mim. Tirei o terno,


vestindo aquela coisa cinza e sem graça, e então saí.
Ao passar por Heitor, ele novamente tentou insistir

para compreender os motivos das minhas ideias de


mudanças nas políticas da Lizano, mas disse a ele que

em outro momento conversaríamos, ou eu iria me atrasar.

De lá, segui para a loja, novamente indo por um

carro de aplicativo.

E durante toda a distância que separava a empresa


da loja, eu segui o caminho inteiro sentindo um leve frio na

barriga, algo como uma ansiedade para...

Para rever Luíza, era isso?

Se fosse, não deveria ser. Porque isso era o


mesmo que admitir para mim mesmo que eu estava

perdido.

*****
Capítulo vinte e quatro

"Eu preciso de alguém para curar Alguém para conhecer Alguém


para ter Alguém para abraçar É fácil dizer Mas nunca é igual Acho

que gosto do jeito que você anestesiava toda a dor"

(Someone You Loved - Lewis Capaldi)

E foi quando eu cheguei à loja que a certeza veio.


Estava mesmo completamente perdido.

Logo que entrei, eu me deparei com ela, e foi como

se uma porra de um raio de sol a iluminasse.

Ah, cara... eu estava ficando maluco, além de

extremamente piegas.
Ela atendia pacientemente um jovem casal,

mostrando a eles os móveis de cozinha. A forma com que


ela sorria enquanto falava a respeito de um conjunto de

mesas e cadeiras nem dava para desconfiar sobre as

reais opiniões dela a respeito daqueles “móveis de


fabricação industrial feitos com material barato e sem

qualquer qualidade ou preocupação socioambiental”.

Eu sabia que Luíza não era feliz estando ali, mas

ainda assim ela se empenhava em seu trabalho, dava o


seu melhor e tratava todos – dos colegas aos clientes –

com carinho e simpatia. Eu só conseguia pensar no

quanto ela era uma mulher incrível.

Em determinado momento, ela enfim percebeu a

minha presença ali e me olhou, acenando discretamente

para mim, mas logo voltando sua atenção ao casal.

Um homem me abordou, pedindo auxílio para a

compra de ferramentas, e eu o guiei até o setor,

mostrando a ele as opções e informando os valores.


Para a minha sorte, ele parecia entender daquilo.
Graças a Deus, porque se fizesse qualquer pergunta mais

técnica eu fatalmente não saberia responder. Eu era uma

verdadeira negação como vendedor da minha própria loja,

e isso não deixava de ser vergonhoso.

O homem decidiu que ia pesquisar os produtos em

outros lugares antes de decidir a compra, e foi embora.

Dei meia-volta para vagar pela loja à procura de outros

clientes perdidos e, ao final do corredor, eu voltei a me

deparar com ela. Dessa vez, seu sorriso era direcionado

totalmente a mim e ela vinha caminhando devagar em

minha direção.

Que inferno, como ela conseguia ser linda até

mesmo dentro daquele uniforme horroroso? Lá estava

novamente a porra do raio de sol imaginário a iluminá-la.

Eu estava muito fodido...

— Bom dia — ela me cumprimentou, parando

diante de mim.
Sorri de volta, porque era impossível resistir ao

sorriso daquela mulher.

— Bom dia, linda.

Pela primeira vez, meu elogio não tinha uma

intenção galanteadora. Era mais como uma simples


constatação do óbvio, junto a uma expressão de carinho.

Saiu de forma automática e natural.

O sorriso dela pareceu aumentar, mas talvez fosse

uma mera impressão minha.

Ela colocou a mão no bolso de trás da calça,


tirando de lá duas folhas de papel dobradas, as quais me
entregou. Peguei-as, sem entender.

— Sofia acordou cedo hoje e ficou desenhando

enquanto eu preparava o café. Ela fez essas duas


“cartinhas” para você, pediu para que eu te entregasse.

— Para mim? — questionei, curioso.


— É. Não sei o que ela desenhou aí, porque ela me

fez jurar que eu não ia olhar, disse que era só para você
ver.

Foi inevitável rir por conta daquilo.

— Sua filha é uma figura, Luíza. Diga a ela que


agradeço pelas cartas. Talvez eu mande uma resposta,

mas já alerto que não sou um bom desenhista.

— Tudo bem, ela vai entender. Como eu te disse,

eu não vi, mas estou certa de que é um agradecimento ao


dia de ontem. Ela não para de falar sobre agora saber

andar de bicicleta sem as benditas rodinhas de apoio.

— Ela só precisava de um empurrãozinho, porque

ela realmente é muito corajosa, como as super-heroínas


que tanto gosta.

— É, ela sem dúvidas é. Não merecia ter uma mãe


tão medrosa. Como você disse, ela já devia ter aprendido

a andar de bicicleta, mas a verdade é que eu é que estou


sempre com medo de que ela possa se machucar, e
acabei passando esse medo para ela.

— Não é um simples medo. É preocupação


materna. Isso é natural.

Como um cara que não tinha – nem nunca pensara


em ter – filhos, eu não possuía nenhuma propriedade para

falar sobre aquilo, mas parecia ser óbvio o que acontecia


ali. Luíza nunca falara nada a respeito, mas eu estava

certo de que algo – ou alguém, para ser mais exato – já a


havia machucado muito no passado.

Toda a história sobre o pai de Sofia era mantida


como um segredo, mas era algo que parecia machucar as

duas. Eu nem conhecia aquele homem, mas já o odiava


por isso.

Apesar de que... será que o que eu pretendia fazer


com ela também não poderia machucá-la profundamente?

Antes que eu pudesse pensar mais a respeito, ela


voltou a falar.
— Bem, mas eu também quero te agradecer pelo
dia de ontem. Sofia ficou muito feliz pela sua presença lá
com a gente. Bem... na verdade, não apenas ela.

Vi-me sem resposta e, por alguns segundos,

ficamos presos em uma troca silenciosa de olhares.

Até que uma voz feminina chegou aos nossos

ouvidos, interrompendo aquele silêncio confortável.

— Ei, moça, você trabalha aqui? Pode me ajudar?

Luíza imediatamente se virou, indo atender a


mulher que a chamava. E eu fiquei ali parado no meio do

corredor, como um idiota, tentando colocar em ordem

tantos pensamentos que inundavam a minha mente.

Tentando voltar à realidade, atentei-me às duas


folhas dobradas que ainda estavam nas minhas mãos.

Desdobrei uma delas, deparando-me com um desenho de

uma garotinha loira sobre uma bicicleta, com um homem a

olhando logo atrás.


Sorri, sentindo-me emocionado com a

representação infantil do momento vivido no dia anterior.


Parecia realmente uma carta de agradecimentos, embora

eu achasse, por qualquer razão, que era eu quem deveria

agradecer por aquele domingo.

Passei para o outro papel, desdobrando-o. Senti


minha testa franzir com o que eu encontrei ali.

Era o desenho de algo amarelo que parecia ser um

animal – um cachorro, possivelmente. Sobre a cabeça

dele estava um balão de pensamento, e, dentro dele,


algumas notas desenhadas, pintadas da mesma cor dele.

Inclinei a cabeça, mal conseguindo acreditar no

significado daquele desenho. Uma nada sutil carta de

cobrança às notas de cinquenta reais que eu ainda estava


devendo “para o Joe”.

Por fim, acabei rindo.

Eu já adorava aquela menina, essa era a grande

verdade.
*****
Capítulo vinte e cinco

“Respiro fundo e tento seguir o jogo, mas Eu sou uma

péssima mentirosa Eu sinto o mundo como um tijolo em meu

peito E a festa só começou”

(The game is over - Evanescence)

Embora passássemos a maior parte do dia juntos,

nossos horários de entrada e saída agora eram diferentes,


o que significava que eu não tinha mais a companhia dele

até a minha casa, como ocorreu na semana anterior.

Sofia havia sentido falta, chegou da escola

perguntando pelo “tio Henrique”. Ele havia mandado um


envelope para ela, com a resposta de sua carta, e, assim

como ela, também me fez prometer que eu não abriria e


que entregaria direto para ela.

Atendi ao pedido, mas, como uma mãe zelosa (e

curiosa), após entregar pedi para que Sofia me mostrasse.

Ela inicialmente correu com o envelope para o

quarto, dizendo que primeiro ia ver sozinha, e voltou


alguns instantes depois, para me mostrar o desenho, que

disse ser a única coisa no envelope.

Ao contrário do que me dissera, Henrique

desenhava relativamente bem, mas eu não compreendi a

ilustração feita com uma caneta bic preta, que a gente

usava na loja.

Era um cachorro – parecia ser o Joe – usando

óculos escuros e um colar com um enorme pingente de

um cifrão, com umas notas de dinheiro caindo ao seu

redor.
— O que isso quer dizer? — perguntei, franzindo a
testa.

— Ih, mamãe, não sei. Tio Henrique é meio louco.

Mas fala pra ele que eu gostei, e o Joe também.

— Só veio isso mesmo dentro do envelope?

— Só! — foi toda a resposta que ela deu, antes de

pular no sofá e ligar a televisão.

Não insisti e fui apenas fazer o jantar.

No dia seguinte, confesso que, novamente, fui para

a loja mais animada do que achei que estaria por trabalhar


naquele local. Teria três horas de trabalho antes que

Henrique chegasse, e esse era o período do dia que mais

se arrastava para passar.

Que droga, eu parecia até mesmo uma adolescente

apaixonada. Aliás, a última vez que eu me sentira assim


foi quando eu de fato era apenas uma adolescente.
As primeiras horas de trabalho foram bem

tranquilas, embora a loja estivesse um pouco mais cheia


que o habitual. Em geral, boa parte das pessoas

dispensava a oferta de ajuda dos vendedores, até que um


homem me chamou, solicitado o meu auxílio.

Logo que bati meus olhos nele, fui tomada por um


pressentimento ruim. Talvez fosse por conta da

implicância natural que eu tinha com os riquinhos da


cidade, que era exatamente o que aquele cara – que devia
ter a minha idade ou um pouco mais – parecia ser. Vestia-

se e se comportava como um perfeito playboy.

Mas isso, por si só, não teria sido o suficiente para


me incomodar. O pior de tudo foi o jeito como ele me

devorou com os olhos, de forma tão descarada que me


deixou terrivelmente sem graça.

— Pois não? — joguei para ele, de forma


automática.

Geralmente emendaria com um “no que posso


ajudá-lo?”, mas detive-me, pressentindo que a frase
educada poderia levar a alguma resposta completamente

inapropriada.

Ele desceu os olhos até a altura dos meus seios,


dando uma olhada geral antes de se fixar no meu crachá.

— Luíza, não é? Trabalha aqui há muito tempo?

Forma ridícula de puxar um papinho. Mesmo


porque, ninguém trabalhava ali há muito tempo, tendo sido
a loja inaugurada há apenas alguns dias.

— Uma semana — respondi simplesmente, sem

sorrisos ou tom de simpatia. — Está procurando algo em


especial?

Ele ignorou a minha pergunta.

— Você é bonita demais para trabalhar em um


muquifo desses.

Assim como eu, ele não parecia gostar daquele


lugar, embora aparentemente por razões bem distintas. As

Lojas Lizano tinham um público-alvo focado em


consumidores de classe média, e o estilo daquele cara me
dizia que ele não deveria comprar os móveis de sua sala
ali.

— Procurando por algo em especial? — repeti a

pergunta, para ver se ele iria direto ao ponto do que


procurava por ali.

— Minha mãe me ligou dizendo que minha


madrinha apareceu de surpresa lá em casa e quer me ver.

Seria educado eu levar alguma coisa para ela. Estava


passando aqui em frente e decidi parar para ver se
encontro algo, estou sem tempo de procurar um lugar

melhor.

Aparentemente, ele não fazia ideia do que iria


comprar. Esse costumava ser o tipo mais complicado de
cliente. Embora, até o momento, nenhum deles tivesse

sido tão cara de pau na forma como olhava para os meus


peitos.

Isso acontecia constantemente no bar, embora


tivesse dois fatores diferentes.
O primeiro, era que geralmente os caras que faziam
isso estavam tão bêbados que logo mudavam o foco para
outra coisa ou acabavam desmaiando no balcão antes

disso.

O segundo era que, com os que seguiam a insistir,


eu simplesmente lançava um olhar para o meu patrão, que

era um cara de quase cinquenta anos, mas com dois


metros de altura, um físico super bombado e um instinto

paternal para defender seus funcionários, todos na faixa

dos vinte e poucos anos, a mesma idade da filha dele. Ele

apenas se aproximava, perguntava ao engraçadinho qual


era o problema dele, e isso geralmente resolvia tudo.

Mas, ali... eu duvidava muito que Geraldo fosse

exercer seu poder como gerente para encarar um cliente e

proteger um funcionário.

— Tem ideia do que a sua tia iria gostar de ganhar?

Ela gosta de itens de decoração com uma pegada mais

mística? Temas florais? Artigos de cozinha? Arranjos de

plantas?
— Planta, isso! Aquela velha tem um matagal em

casa. E ela não é uma pessoa de muito luxo, gosta de


qualquer porcaria.

Controlei-me para não revirar os olhos, indignada

com a forma como ele se referia à tal madrinha. Embora

ele fosse um homem adulto e minha filha uma garotinha


de seis anos, como mãe eu não conseguia deixar de

pensar que aquilo ali era fruto de uma péssima educação.

Pedi que ele me acompanhasse e, enquanto

caminhava à sua frente, guiando-o para o setor de jardim,


suspirei profundamente, desejando que ele escolhesse

logo qualquer coisa e fosse embora.

Quando chegamos ao nosso destino e eu me virei,

reparei que ele olhava descaradamente para a minha


bunda.

Desagradável... para dizer o mínimo.

— Esses arranjos têm saído bastante para presente

— comuniquei, na esperança de que ele apenas


escolhesse um deles e fosse embora.

Ele sequer olhou para os produtos e manteve-se

me encarando em um silêncio constrangedor de alguns

segundos, até que perguntou: — E quanto vai me custar


essa belezinha?

— Depende. Eles têm valores diversos. De qual o

senhor gostou mais?

— De você.

— O quê? — Foi impossível evitar a indagação


automática.

Fiquei ainda imaginando que eu deveria ter

entendido errado.

— Me diz qual o valor da sua hora de trabalho, que

eu te levo para um lugar bem mais legal que esse daqui.

— Não estou interessada em mudar de emprego,


senhor.
Eu tinha entendido muito bem o que ele estava

querendo dizer, mas ainda assim banquei a desentendida.


Era uma forma mais sutil de mostrar a ele que não estava

interessada em nenhuma proposta engraçadinha.

Minha vontade real era a de levar a mão à fuça

dele, mas precisava manter aquele emprego.

— Já escolheu o arranjo para a sua madrinha?

— Esquece a minha madrinha. Estou agora

interessado em algo muito melhor.

Ele tentou pegar a minha mão, mas eu a puxei

bruscamente, notando que ele pareceu meio surpreso


com isso.

— Se o senhor não quer levar nada da loja, pode

se retirar, e tenha um bom dia.

— Já disse que quero levar algo da loja. Vem

comigo, vai. Já falei que vou te recompensar muito vem.


Ninguém vai te demitir. Meu pai é parceiro de vários

negócios com os Lizano. Um telefonema meu e amanhã


você volta ao trabalho como se nada tivesse acontecido,

nem vão descontar o seu dia nem nada. Mas se você não

quiser ir... eu posso dar um telefonema também, mas aí

não garanto que será tão legal.

Enquanto ele falava, vi-me subitamente sem

reação, mal acreditando que estivesse mesmo ouvindo

aquele monte de merda.

— Senhor, não me interessa quem é o seu pai e


nem os telefonemas que o senhor pretende dar. Eu não

sou uma mercadoria e não estou à venda, então, por

favor, pode se retirar? Ou serei obrigada a chamar um

segurança da loja?

Ele abriu a boca, prestes a retrucar, mas sua voz foi

abafada por outra: — Ouviu o que a moça disse? Faça o

favor de se retirar.

Virei o rosto na direção em que vinha a voz,


deparando-me com Henrique, que vinha pelo corredor

lateral, caminhando em nossa direção.


O playboy babaca, no entanto, sequer o olhou e

continuou a me secar com os olhos, como um animal


faminto obcecado por um pedaço de carne.

— Garota, você não vai querer mexer com alguém

de família importante como a minha. Não estou te pedindo

nada demais, apenas para que me acompanhe. A gente


vai se divertir um pouco.

Enojada, preparei-me para responder, enfim

perdendo toda a educação que eu ainda me forçava a ter.

Para o inferno com as chances de eu ser demitida, eu não


iria abaixar a cabeça para um playboy de merda.

Contudo, antes que eu dissesse qualquer coisa,

Henrique parou ao meu lado, encarando aquele idiota.

— A moça já disse que não tem qualquer interesse

em te acompanhar, agora vá embora daqui.

— Cala a boca, seu monte de bosta! — ele retrucou

sem sequer olhar para Henrique.


Deu um passo à frente e novamente tentou agarrar
a minha mão. Dessa vez, o movimento tinha sido tão

rápido que eu não tive o reflexo de recuar e ele acabou

conseguindo segurar o meu pulso.

Mas tal contato durou poucos segundos, pois ele


logo me largou ao ser atingido por um soco certeiro no

rosto.

— Não ouse encostar nela de novo! — Henrique

advertiu, apontando-lhe o dedo indicador.

Recuperando-se do impacto que quase o levou ao

chão, o playboy voou para cima de Henrique, tentando

contra-atacar.

Até conseguiu acertar um soco, mas levou


novamente a pior, sendo de novo atingido, dessa vez com

mais força. Ele cambaleou e acabou caindo.

Ouvi vozes femininas próximas, as quais


identifiquei como sendo de Carla e Beatriz, dizendo que
iriam chamar um segurança.
Pessoas se aglomeravam ao nosso redor, mas eu
não prestava qualquer atenção a elas, olhando apenas
para aqueles dois.

Estava nervosa com a situação, com medo de que

Henrique se machucasse ou que se prejudicasse


gravemente por ter batido naquele imbecil.

Especialmente se ele fosse mesmo de uma família


com dinheiro, aquilo poderia trazer consequências a

Henrique. Ao mesmo tempo, havia um sentimento


inusitado em mim ao pensar que ele se arriscava daquele
jeito para me proteger.

Henrique desferiu mais um soco e uma trilha de

sangue voou do nariz daquele idiota, sujando o piso


branco da loja.

Por mais que eu tivesse aquele sentimento quase


primitivo de sentir-me lisonjeada por um cara fazer aquilo

por mim, eu sabia que não era certo. Mesmo que aquele
playboy realmente merecesse aquilo.
Por isso, aproximei-me, segurando os ombros de
Henrique.

— Pare, por favor. Deixa esse imbecil ir embora, ele


já teve o que merecia.

Nesse momento, o babaca parou de se debater

para tentar se soltar e olhou diretamente para Henrique,


parecendo reconhecê-lo de algum lugar.

— Ei... você? Mas você não é o...

— Cala a sua boca e dá o fora daqui — Henrique o


interrompeu, furioso.

O outro cara parecia ter reconhecido um demônio

no rosto de Henrique, pois se levantou e, como um rato,


saiu de lá correndo em desespero. Mas isso, obviamente,
não amenizaria a situação. A confusão já estava mais do

que armada.

Uma multidão se aglomerava ao nosso redor.


Dentre os rostos que fitavam Henrique de forma confusa,
havia um que o encarava com verdadeiro ódio.
Aproximando-se alguns passos, Geraldo ordenou:
— Vá para a sala da gerência. Agora.

*****
Capítulo vinte e seis

“Alma errante Mente errante Imaginando o que

aconteceu de errado comigo”

(The Trouble with Wanting - Joy Williams)

Como eu já mencionei, nomes e rostos nunca

foram o meu forte.

Por isso que, em um primeiro momento, eu não


reconheci aquele verme. Mas agora eu me lembrava bem.

Jonatas Vieira era filho de Ricardo Vieira, dono de

inúmeros negócios, dentre eles uma empresa de


eletrodomésticos da qual a Loja Lizano era a revendedora

oficial.

Na verdade, a família dele precisava muito mais da


nossa do que vice-versa, e provavelmente por isso ele

ficou tão apavorado ao me reconhecer. Mas isso não me

importava, ele poderia ser o homem mais poderoso do


mundo, que eu da mesma forma não hesitaria em dar a

ele a lição que mereceu por ter tratado Luíza da forma

como tratou.

Porém, o que mais me embrulhava o estômago era


lembrar que nós dois, apesar de não sermos amigos nem

nada próximo a isso, frequentávamos os mesmos lugares.

No dia em que conheci Luíza no bar, por exemplo,


eu tinha estado mais cedo em uma festa em que ele

também estava. Sempre o achei meio idiota, mas agora

era assustador pensar que talvez eu fosse mais parecido

com ele do que imaginava.

O que Luíza iria pensar de mim se soubesse disso?


Fui para a sala da gerência e Luíza insistiu em me
acompanhar, embora eu tivesse pedido que ela não

fizesse isso. Seria muito mais simples resolver a situação

– já que Carlos também estaria lá – se ela não fosse junto.

Mas ela não apenas foi, como também tentou me


defender da fúria de Geraldo.

— Aquele homem me assediou bem aqui, no meu

local de trabalho, e Henrique agiu como um bom colega e

tentou me defender — ela argumentou.

Em um canto da sala, Carlos me olhava em

silêncio, como se me perguntasse se queria que ele

resolvesse aquela situação. Sem que Luíza percebesse,

movimentei rapidamente a cabeça para ele, em uma

negativa, de forma com que ele compreendesse que eu


não queria qualquer tratamento diferenciado.

Desde o início eu tinha deixado claro para ele que,

ali, eu seria apenas um vendedor, e deveria ser tratado

com qualquer outro deles.


— Aquilo não foi uma defesa, senhorita — Geraldo

argumentou, irritado. — Foi um ataque de fúria, um


comportamento animalesco e imperdoável. Como pôde

tratar assim um cliente, rapaz?

— Você deveria perguntar ao cliente por que ele

tratou a Luíza daquela forma.

— Ele é um cliente. Ela é uma vendedora. Tem que


se colocar em seu lugar e aprender a lidar com esse tipo
de situação sem perder a calma. Pelo que me contaram,

era o que ela estava fazendo, até você decidir interferir e


agir como um selvagem.

Ia retrucar, mas Luíza foi mais rápida do que eu.

— Quem te contou fez uma análise bem superficial.


Porque eu estava a ponto de perder a linha com aquele

sujeito. Ele não foi só inconveniente. Ele me ameaçou!

— Isso você resolveria da porta daqui para fora.

Durante o seu expediente, tem que ser paciente e


educada com os clientes. Sempre.
Dessa vez, eu não aguentei e precisei me

manifestar: — Você tem razão quando diz que ele é um


cliente e ela é a vendedora. É a sua vendedora. Você é

gerente dela, devia prezar pela sua segurança acima de


tudo. Uma loja não é nada sem os seus vendedores. Uma

empresa não é nada sem seus funcionários.

— O que você entende de empresas, moleque? É

só um coitado que não tem onde cair morto, precisou de


uma indicação para entrar aqui. E se tivesse realmente

alguma ligação com Heitor Lizano, como afirmou ter, teria


entrado em um cargo decente. Não como uma porcaria de
um vendedor.

“Porcaria”?

Mas qual era o problema daquele sujeito? O que o


fazia achar que poderia falar daquele jeito com qualquer

pessoa?

Eu estava preparado para colocá-lo em seu devido


lugar, mas Carlos acabou fazendo isso por mim.
— Já chega, Geraldo. Não tem qualquer
necessidade, nem mesmo o direito, de falar com ele dessa
maneira. Ser superior direto dele não te dá esse poder.

Assim como eu sou o seu superior e não me lembro de ter


te tratado dessa forma em momento algum.

O covarde logo colocou o rabinho entre as pernas,


mostrando que toda a sua moral era apenas para quem

ele julgasse inferior a ele.

Ah... se ele soubesse que bastaria uma ordem


minha e ele iria para o olho da rua...

Contudo, aparentemente, o demitido ali não seria


ele.

— Perdão, senhor Carlos, eu me exaltei. Bem, mas


a decisão cabe ao senhor, não a mim. Mas preciso

lembrar que agredir um cliente ou qualquer pessoa dentro


da loja é considerado uma infração gravíssima. E sabe

qual é a pena para isso.


Olhei para Carlos, sabendo que Geraldo tinha toda
a razão. Era a política da empresa.

Óbvio que meu papel ali como vendedor era um


grande teatro e, oficialmente, eu não teria como ser

demitido da minha própria empresa – mesmo porque,


sequer era formalmente contratado. Mas eu tinha deixado

claro a Carlos que, para manter bem a minha farsa, eu


deveria ser tratado do mesmo modo que todos os outros

funcionários.

Eu tinha mesmo agredido uma pessoa – embora

não tivesse qualquer remorso por isso. Para defender


Luíza, eu faria de novo quantas vezes fossem

necessárias. E tive muitas testemunhas da minha ação.

Todos os demais funcionários sabiam do ocorrido e, caso

eu não fosse punido da forma correta, eles saberiam que


havia algo errado com a minha situação ali. Portanto, eu

apenas suspirei e disse: — Faça o que deve ser feito,

senhor Carlos. Pelo que eu fiz, eu devo ser demitido, não


é?
Ele movimentou a cabeça em uma afirmação,

embora aparentasse estar nitidamente desconfortável em


ter que fazer aquilo.

— Sim, Henrique. Eu sinto muito. Mas vou ter que

demiti-lo.

— Não! — Luíza entrou na minha frente, furiosa. —


Isso é injusto. Ele se excedeu ao bater naquele filho da

puta, mas fez isso para me defender.

— Que vocabulário inadequado para falar com seus

superiores... — Geraldo resmungou, sendo prontamente


rebatido por ela.

— Ah, vá à merda! — ela rebateu.

Sabia que o momento era tenso, mas foi inevitável

rir da cara de choque de Geraldo. Não devia estar

acostumado a ser tratado assim por aqueles que julgava


inferiores a ele.

Luíza voltou a olhar para Carlos e prosseguiu.


— Por favor, senhor Carlos, não é justo que ele

seja demitido por tentar defender uma colega que estava

sendo assediada.

— Eu sinto muito, Luíza — Carlos respondeu. E,


realmente, parecia sentir. — Mas é a política da empresa.

— Mas é uma política burra! — Ela bufou. Nesse

caso, eu concordava com ela. Precisava urgentemente

rever aquela porcaria de regulamento interno. — Mas...


quer saber? O que esperar dessa loja de merda? Que

enfiem a política de vocês no...

— Calma, Luíza... — Toquei o ombro dela, tentando

acalmá-la.

Além de ser demitido da minha própria empresa, o


que eu menos queria para finalizar aquele dia era ter que

levá-la para um pronto socorro depois de sofrer um ataque

cardíaco, que era o que parecia estar prestes a acontecer


ali.
— Bem, eu vou ficar calma. A partir de agora, já

que também não trabalho mais aqui. Eu me demito dessa


filial do inferno!

Após dizer essas palavras, ela saiu da sala, furiosa.

Fiquei ainda paralisado por alguns instantes, em choque,

pego de surpresa por aquela reação dela.

Eu não esperava por aquilo.

E eu não poderia permitir aquilo de forma alguma.

Assim, enfim tive uma reação e saí dali correndo,

indo atrás dela, na esperança de fazê-la mudar de ideia.

Mas eu já a conhecia o suficiente para saber que

eu não teria sucesso nisso.

E, de fato, não tive.

*****
Capítulo vinte e sete

"A aceitação é a chave para ser Para ser verdadeiramente livre

Você fará o mesmo por mim?"

(Unconditionally – Katy Perry)

De herói do dia eu fui rebaixado no meu próprio

conceito a um grande merda.

A verdade é que eu não era muito acostumado a ter


muitas reflexões a respeito das consequências dos meus

atos. E, ao socar aquele imbecil, especialmente por estar


movido pela raiva, eu não tive nem um milésimo de

segundo de reflexão. Mesmo depois, tendo como

consequência a “demissão”, que me faria ter que me


afastar de Luíza, eu tinha zero arrependimento pelo que

eu fiz.

Mas, agora... tudo mudava radicalmente de figura.


Era Luíza quem tinha perdido um emprego do qual ela

precisava muito.

— Você não devia ter feito isso... — repeti isso a

ela pela milésima vez.

Andávamos lado a lado pela rua, a caminho da sua


casa. Talvez fazendo aquele trajeto pela última vez.

Ela se manteve calada, por isso eu insisti: — Ainda

dá tempo de você voltar lá, Luíza.

— Eu me demiti, Henrique.

— Mas o Carlos vai entender que você disse aquilo

no calor do momento e vai ignorar seu pedido de


demissão.

— Henrique, eu já disse: não volto para aquela loja.

— Mas...
— De forma alguma.

— Luíza, escute...

— Nunca mais colocarei meus pés naquele lugar


dos infernos! E fim de assunto!

Pronto... se ela antes já odiava a minha rede de

loja, agora esse ódio parecia ter triplicado.

E eu não queria que fosse assim, porque... sei lá!

Eu não me importaria se fosse qualquer outra pessoa,

mas me entristecia que justo Luíza tivesse tanta raiva do

negócio da minha família.

E eu estava tão disposto a melhorar as coisas

erradas da Lizano, para fazê-la mudar de opinião...

— Além do mais — ela prosseguiu. — Eu tenho o

meu emprego antigo no bar esperando por mim, sei que

meus antigos patrões vão me aceitar de volta. Minha


maior preocupação é com relação a você.
A mim? Ela estava sem emprego e tinha uma filha

pequena para criar, mas se preocupava comigo? Aquela


mulher era realmente incrível.

— Eu vou dar um jeito. Tenho uma grana guardada,


não se preocupa comigo, Luíza, é sério. Mas, sobre o

bar... Aquele horário de trabalho é horrível para você.


Além de cansativo, te faz perder muito da companhia da

Sofia, e te faz ter que deixá-la com uma babá.

— É, eu sei disso. Mas é o que me resta, né? A

vida adulta não nos dá muitas opções.

Ela já tinha me falado algo parecido da outra vez.

O que me lembrava que nada daquilo fazia parte

dos sonhos de Luíza. Nem o bar, nem tampouco a loja.


Ela tinha sonhos e talentos muito maiores que tudo aquilo.

O que ela fazia com seus móveis era encantador, e


ela merecia ter o seu trabalho reconhecido e poder ganhar

a sua vida com aquilo que ela fazia tão bem. E não me
importava mais que rumos aquela maldita aposta

tomasse, eu estava disposto a ajudá-la naquilo.

Mas como faria isso sem que ela soubesse quem


eu realmente era?

Porque se ela soubesse, fatalmente não aceitaria


nada de mim. Engraçado que há até alguns poucos dias,

pensar sobre isso não me trazia aflição alguma. Agora, eu


sentia um medo enorme da reação dela quando
descobrisse a minha mentira.

Paramos em frente à casa dela. Preparei-me para

me despedir, mas ela fez um convite inesperado.

— Vem, entra um pouco.

— Ah... não... — neguei.

Ainda estava bem cedo, levaria horas até que Sofia


retornasse. Em qualquer outro momento eu vibraria com a

possibilidade de ficar a sós com ela. Mas, por qualquer


motivo, agora eu não me sentia mais assim.
— É melhor você descansar um pouco, o dia foi
pesado — completei.

— Não vou te deixar ir embora assim, Henrique.


Precisa colocar um gelo nesse rosto o quanto antes, ou

vai inchar muito amanhã.

Eu já tinha até mesmo esquecido que, em meio à

confusão, aquele filho da puta tinha conseguido me


acertar um soco bem abaixo do meu olho esquerdo.

Provavelmente por ainda estar com o sangue quente, eu


não sentia qualquer dor. Mas era certo que aquilo ficaria
roxo. Se já não estivesse.

— Isso não é nada, sério — falei.

— Como não é nada?

— Bem... a cara daquele babaca ficou muito pior.


— Não resisti em abrir um leve sorriso ao me lembrar

daquilo.

— A sua vai ficar também. Se não colocar gelo, seu

olho vai inchar e sua cara vai ficar horrorosa.


— Até parece que minha cara é capaz de ficar
sequer perto de horrorosa — brinquei, tentando usar o
pouco de charme que me restava.

Ao menos, isso serviu para que Luíza também

sorrisse. Embora fosse um sorriso leve e breve. Ela mal


consegui disfarçar sua apreensão.

— Sério, Henrique. Você fez muito hoje por mim.

Não vou te deixar ir embora assim. Você mesmo disse que


é péssimo em primeiros socorros. Me deixa te ajudar, por

favor.

Eu não resisti àquelas últimas palavras, ao tom de

apreensão e preocupação na voz dela. Por isso,


movimentei a cabeça em concordância.

Ela abriu o portão e deu espaço para que eu

entrasse. Acabei aceitando a oferta.

Ainda no quintal, o vira-lata veio até mim, rosnando

e me mostrando os dentes de forma ameaçadora, antes


de ir pular sobre sua dona para recepcioná-la.
Luíza e eu não estaríamos tão sozinhos assim,

afinal.

*****
Capítulo vinte e oito

“Algumas pessoas esperam a vida inteira Por um

momento como este Algumas pessoas procuram para sempre

Por aquele beijo especial”

(A Moment Like This - Kelly Clarkson)

Henrique tinha toda a razão quando disse que

aquele dia tinha sido bem pesado. Foi tanta emoção em


um intervalo tão curto de tempo, que eu nem saberia

determinar qual sentimento estava mais forte dentro de

mim, porque... eram tantos...

Era nojo daquele playboy babaca...


Raiva do Geraldo e da forma como achava que

poderia tratar outras pessoas por se achar superior...

Raiva, também, da Lizano e da forma como via


seus funcionários como lixos.

Preocupação por estar agora desempregada.

Porque, mesmo que eu soubesse que minha vaga no bar

ainda estaria esperando por mim, aquilo era voltar um


passo em uma decisão que tinha melhorado

consideravelmente a minha rotina com Sofia.

Tristeza, por pensar em como contaria a Sofia que

voltaria a trabalhar durante a noite e a passar menos

tempo com ela.

Mas, ao mesmo tempo, eu também sentia alívio.

Porque eu não gostava da Lizano, e por mais que

meus dias trabalhando lá tivessem sido agradáveis, eu

não conseguia tirar da minha mente o fato de estar


trabalhando para uma empresa da qual eu discordava de
tantas coisas. O ato de me demitir tinha sido incrivelmente
libertador.

E... sobre o Henrique... Como descrever o que eu

sentia?

Ele tinha me defendido. E isso fez com que ele

próprio perdesse o seu emprego.

Por mim.

Eu não podia negar o quanto aquela atitude dele

tinha mexido com o meu coração em tantos níveis.

Culpa, gratidão, carinho... era tanta coisa se


agitando dentro de mim.

Deixei-o na sala enquanto ia até a cozinha. Peguei

algumas pedras de gelo e embrulhei em uma sacola

plástica, levando de volta para a sala.

Quando cheguei lá, Henrique estava sentado no

sofá, ao lado de Joe que havia subido e se acomodado.

Sorri com a cena.


— Impressão minha, ou vocês dois estão

começando a se entender?

— Estou tentando convencê-lo de que eu sou um

humano legal, mas ele ainda não parece gostar muito de


mim.

Entreguei a Henrique a sacola com gelo,

orientando-o a pressionar levemente sobre o ferimento.


Ele assim o fez, soltando um baixo gemido de dor quando
o frio do gelo tocou a sua pele.

Eu me sentia tão culpada por mais aquilo... Além de

perder o emprego, ele ainda estava ferido. Tudo isso por


me defender.

Dei um leve toque na cabeça de Joe, que ele logo


compreendeu como um sinal para que descesse do sofá

para que, assim, eu pudesse me sentar ali. Ele foi se


sentar no tapete, mas ainda manteve os olhos fixos em
Henrique.
— Tá vendo? — Henrique aprontou para o

cachorro. — Ele realmente não gosta de mim. Está


planejando o melhor momento para me morder, tenho

certeza disso.

Eu ri.

Como se compreendendo que estávamos falando

sobre ele, Joe se levantou e subiu as escadas,


provavelmente indo para o quarto da Sofia. Ele amava
dormir na cama dela quando ela não estava em casa, e eu

imaginava que fosse por causa do cheiro dela na roupa de


cama, que devia aliviar um pouco a sua saudade.

— Joe é um cão muito dócil e amigável, mas nem

sempre foi assim. Quando o adotamos, ele era meio


desconfiado também. Sofia tinha só três aninhos, mas
chorava dizendo que ele não gostava dela.

— Tá brincando? O Joe não gostava da Sofia? Mas

ele é louco por vocês duas.


— Porque nós ganhamos a confiança dele. Ele já
tinha pouco mais de um ano e teve outros donos antes de
nós, que o abandonaram. Ele ainda foi adotado e

devolvido ao abrigo outras duas vezes. Provavelmente


temia que isso acontecesse novamente.

E eu o compreendia perfeitamente. Era difícil se


permitir voltar a confiar em qualquer pessoa depois que

uma te fez algum mal. Especialmente se fosse alguém a


quem você amou incondicionalmente.

Acho que foi por isso que, no dia que levei Sofia a
uma feira de adoção, ao ouvir a história de Joe, decidi que

era ele que eu queria levar para casa, mesmo que já fosse
praticamente um cão adulto e considerado no abrigo como

‘um caso difícil’.

— Se é assim, seguirei tentando ganhar a

confiança dele — Henrique declarou. — E a sua também.

— Talvez a minha seja um pouquinho mais difícil


que a do Joe.
— Tudo bem. Posso ter um pouquinho mais de
insistência com você do que com ele.

Sorri, mas logo mudei de assunto, voltando para


aquele que tanto me incomodava: — Eu sinto muito por

tudo isso. Você perdeu o emprego, está aí com o olho


roxo... por minha causa.

— Não foi por sua causa, Lu. Foi por causa daquele

babaca. E eu já te disse: vou conseguir outro trabalho, e


até lá eu tenho umas economias guardadas, vou ficar

bem. O olho roxo logo vai curar... a cara arrebentada dele

é que vai demorar bem mais para voltar a ficar decente.

Voltei a rir, sendo obrigada a concordar. Contudo,


algo no que ele disse chamou mais a minha atenção. Algo

tão bobo, mas que não pude deixar de comentar: —

Gostei da forma como me chamou.

Ele pareceu pensar um pouco, mostrando que o


apelido tinha sido usado de forma intuitiva e não

proposital.
— De “Lu”? Você gosta?

— É. É como o meu pai me chamava. É como


minha mãe, minha prima e meus amigos me chamam. As

pessoas que eu gosto, de forma geral.

— Isso quer dizer que você gosta de mim?

— Talvez mais do que deveria.

A sinceridade da resposta pareceu tê-lo deixado


surpreso. E talvez tenha surpreendido até mesmo a mim.

Não que eu fosse uma pessoa que costumasse

esconder sentimentos. Na verdade, era o mais completo

oposto disso. Mas fazia muito tempo que eu não me


permitia sentir aquele tipo de coisa por alguém.

E isso era um tanto assustador.

Na verdade, deixava-me apavorada. Mas, ao

mesmo tempo, também era algo bom de sentir. Era como

uma comprovação do que minha prima tinha me dito há


alguns dias: que ser mãe não tinha me feito deixar de ser

uma mulher.

E foi por isso que, naquele momento, eu não quis

mais lutar contra aquilo.

Quando Henrique levou delicadamente a mão ao


meu rosto e lentamente começou a se aproximar, eu

apenas fechei os olhos, aguardando o instante em que

seus lábios tocassem os meus.

E quando isso aconteceu... por Deus, foi mágico!

Um arrepio percorreu a minha coluna, ao mesmo

tempo em que uma onda de calor pareceu envolver cada

uma das células do meu corpo.

Entreabri os lábios, deixando o caminho livre para


que a língua dele explorasse a minha em movimentos

inicialmente lentos e delicados, mas que aos poucos

foram se tornando mais profundos e intensos.

Fui inclinando o corpo para trás e ele veio sobre


mim, sem afastar por nenhum momento a sua boca da
minha. Uma das mãos dele levantou suavemente a minha

camiseta, deslizando pela minha cintura. Aquele toque da


pele dele contra a minha fez com que as ondas de calor

ficassem mais intensas, como se um verdadeiro incêndio

estivesse ocorrendo dentro de mim.

Naquele momento, mandei toda a prudência para o


inferno. Eu não fazia ideia do quanto eu precisava daquilo

até ter aquela boca devorando a minha, aquela mão

roçando suavemente a pele da minha barriga... o cheiro


dele, o gosto dele... E aquele volume duro sob suas

calças, que provava que ele desejava aquilo tanto quanto

eu.

Deslizei também a minha mão por baixo de sua


camisa, sentindo os músculos firmes e definidos de seu

abdômen. Aquele homem era uma perfeição, e parecia

mentira que, além de tão lindo, também fosse um cara tão

incrível e, junto a tudo isso, ainda estivesse ali, comigo.

Parecia um sonho do qual eu não queria acordar.


Mas acordei quando ele mesmo parou, deixando-

me confusa.

— É melhor não, Luíza... — ele falou, voltando a se

sentar e abaixando a camiseta que eu havia levantado.

Fiquei por alguns segundos parada, sem


compreender a atitude dele. Eu poderia achar que fosse o

caso de ele não me querer, mas eu não era nenhuma

criança inocente. Desde o primeiro olhar que ele me


lançou naquela noite no bar, estava claro para mim que

era aquilo o que ele desejava. E, ainda que restasse

qualquer dúvida, o volume de sua ereção ainda estava

visível sob a calça do uniforme.

— O que aconteceu? — perguntei, confusa, ainda

sem me mover.

— Aconteceu que estamos indo rápido demais.

“Rápido demais”? Era sério aquilo?

— E não era isso o que você queria quando me

conheceu no bar e insistiu tanto que desejava a minha


“companhia”? Ou você acha que eu realmente acreditei

que você só estava a fim de uma conversa?

— Mas aquilo foi antes.

— Antes de quê?

Ele passou as mãos pelos cabelos em um gesto de

nervosismo.

— Antes de te conhecer, Luíza. Antes de

chegarmos a esse ponto.

— Qual ponto? — No fundo, talvez eu soubesse o


que ele queria dizer. Mas tinha medo de estar enganada,

de me iludir.

Ele me olhou diretamente nos olhos e percebi que

também parecia um pouco confuso com relação ao que


sentia. Percebi sinceridade em sua resposta: — Talvez eu

pudesse dizer que também gosto de você mais do que

deveria. Mas seria errado, porque... na verdade, eu


deveria, sim. Porque é impossível conviver com você e
não se encantar por você. Mas você merece muito mais
do que um homem como eu tem a oferecer.

Senti como se meu coração estivesse se

derretendo diante daquela declaração, por mais simples

que fosse. Porque havia sinceridade ali, eu podia sentir


isso.

— Você é um homem maravilhoso, Henrique.

Qualquer mulher seria feliz ao seu lado.

— Não, Luíza. Você merece muito, muito mais.

— Se sua preocupação for o fato de estar


desempregado, sei que isso por vezes nos traz uma

sensação de inferioridade, mas saiba que isso não define

você. Além do mais, sei que vai encontrar algo logo.

— Você também. Digo, algo diferente do bar. Algo à


sua altura. Eu juro. Vou dar um jeito nisso.

Eu não queria rir, mas foi impossível segurar,


porque achei fofa a forma como ele falava, como se
houvesse algo que ele pudesse fazer para me ajudar
naquele sentido.

No fim das contas, estávamos em uma situação


bem parecida por ali.

Mas não era aquilo o que importava. E sim o que


parecia estar começando a nascer entre nós.

— Acho melhor eu ir... — ele anunciou, já se

preparando para se levantar.

— Não, espera! Tenho uma coisa para você!

Apressei-me em me levantar antes dele e corri,


subindo as escadas até o meu quarto.

Peguei algo em minha estante e voltei a descer,


entregando a Henrique, que se levantou e o pegou, sem

entender.

Ele leu o título em voz alta: — O Clube da Luta?

— Tome cuidado com ele! — adverti.


Por mais que minha edição já estivesse meio gasta,
eu tinha um enorme apresso por ela.

— Espera... Você está me emprestando um livro


seu, é isso?

— É. Mas não se anima, não. Vou colocar a polícia

atrás de você caso não me devolva.

Ele olhou para o livro, voltando a olhar para mim


em seguida.

— Mas você me disse que... emprestar livros era...


como é mesmo?

— O ápice da confiança em uma pessoa? É. Mas

você fez por merecer.

— Mesmo?

— Claro. Levou um soco no olho e perdeu o


emprego por minha causa.

— Poxa... Achei que eu merecesse isso por beijar


tão bem.
Lá estava, novamente, o carinha metido a
conquistador que conheci naquele bar. E eu também,

confesso, gostava um pouco dessa versão.

— Bem... talvez por isso também.

Ele sorriu e se aproximou, beijando-me novamente.


Dessa vez, foi mais suave e mais breve, mas igualmente
bom.

Então nos despedimos e ele foi embora, levando o

meu livro, a minha confiança... e um pedaço do meu


coração.

*****
Capítulo vinte e nove

“Ela é tão vulnerável, como uma porcelana em minhas

mãos.

Ela é tão vulnerável e eu não entendo Eu nunca poderia

magoar a quem amo Ela é tudo que tenho Mas ela é tão

vulnerável...”

(Vulnerable - Roxette)

Tinha passado a noite tentando ler o livro que Luíza

me emprestou, mas não conseguia terminar um mísero

parágrafo sem que tivesse perdido totalmente a atenção


no meio do caminho. Não que a leitura fosse ruim, mas eu
não conseguia desfocar meus pensamentos de todo o

ocorrido.

Eu me aproximei de Luíza com um foco certo: levá-


la para a cama em um prazo, para vencer uma aposta

estúpida feita com o meu irmão.

Passei todos aqueles dias me empenhando em

conquistar a sua confiança e em preparar o terreno para


isso. Até o momento em que a tive de mãos beijadas em

meus braços... e simplesmente não quis ir adiante.

Sim, Henrique Lizano tinha dito não a uma mulher

que estava completamente entregue para ele.

Quais as chances, em mil anos, de algo assim

ocorrer?

Na hora, isso pareceu o certo a ser feito. Por mais

que meu pau estivesse dolorido de tão duro, por mais que

eu não visse a hora de possuir aquela mulher... e por mais


que esse tivesse sido o meu único objetivo durante todos

aqueles dias.
Mas... para o inferno com aquela aposta. Meu
irmão tinha feito uma pequena viagem com Bruna, para

levar os convites do casamento às tias dela que moravam

em outro estado, e apenas estaria de volta na sexta-feira à

noite. E quando ele voltasse, eu conversaria com ele e

entregaria a chave do meu carro.

Que ele fizesse bom proveito, tanto do veículo

quanto do prazer da vitória.

No dia seguinte, fui ao escritório da empresa e

passei o dia inteiro lá, focado nas inúmeras pendências


que eu havia deixado nos últimos dias. Ou, ao menos,

tentando focar, porque novamente só conseguia pensar

em Luíza.

Ela me enviou uma mensagem pela manhã,


perguntando como estava o meu olho, e respondi com

uma foto, mostrando que estava roxo, mas bem menos do

que achei que estaria.

Ela contou que tinha ido ao bar e que conseguiu o


emprego dela de volta, e que começaria na terça-feira da
semana seguinte, porque assim teria alguns dias para

procurar por uma nova babá. Percebi que ela estava bem
preocupada comigo, e a tranquilizei dizendo que neste dia

faria entrevistas em vários lugares.

Lá estava eu, contando mais mentiras para ela.

Quantas mais eu ainda diria antes de revelar a verdade?

Já no final da tarde eu voltei para casa. Entrava na


sala quando encontrei Joana sentada no sofá, escrevendo
algo em um caderninho. Provavelmente alguma lista de

compras para casa ou coisa do tipo.

— Voltou cedo hoje, Rique.

Balancei a cabeça em resposta. Eu vinha chegando

mais tarde por conta do horário da loja, mas Joana ainda


não sabia nada a respeito disso.

Ela desviou os olhos do caderno, enfim olhando


para mim. Vi uma expressão assustada surgir em seu

rosto.
— Meu Deus, Rique, o que aconteceu com o seu

olho?

Ah, é... No dia anterior eu cheguei em um momento


em que ela estava no jardim, dando orientações ao
jardineiro, e fui direto para o meu quarto. Ela chegou a

bater na porta mais tarde, perguntando se eu estava bem,


e apenas disse que estava com dor de cabeça e ela não

insistiu. Só agora ela via a marca da minha luta na loja.

— Eu caí — menti.

— Com a cara no punho de alguém?

Era óbvio que eu não conseguiria enganá-la. Mas


também não iria insistir naquilo. Joana era como uma mãe

para mim e já tinha me dado inúmeros conselhos na vida,


especialmente na época da adolescência.

E já que eu agora me sentia como uma porra de um


adolescente apaixonado, acho que tinha chegado o

momento de voltar a pedir a ajuda dela.


Sentei-me ao seu lado, iniciando o assunto: —
Preciso te contar uma coisa.

— Pois conte, menino. Estou ficando preocupada.

— Talvez eu tenha feito uma aposta com o Heitor...

— Meu Deus, de novo um cavalo?

— Não. Não, Jojo, sem cavalos dessa vez. O


problema agora não é o prêmio da aposta, mas ela em si.

Eu apostei que eu ia levar uma mulher para cama.

— E você não faz isso todos os dias? Ou quase


todos. Tem já algum tempo que não vejo nenhuma garota
saindo daqui pela manhã, o que está acontecendo?

— Então... É que não é apenas levar uma mulher

aleatória para a cama. Seria uma mulher específica e ela


não poderia saber sobre eu ser o Henrique Lizano,
entende?

— Sei. E bonito desse jeito você teve algum

problema com isso?


— Acontece que... não rolou nada na primeira
noite, e... a gente meio que prorrogou por um prazo de
quinze dias.

Ela piscou, parecendo processar aquelas

informações.

— Espera... está dizendo que está há dias saindo

com uma mesma mulher e... mentindo para ela?

— Basicamente é isso.

— Henrique! Uma coisa é você sair uma noite e


dormir com uma mulher que também está à procura de

sexo casual, sem mencionar a ela o seu sobrenome.

Seriam duas pessoas buscando por sexo e conseguindo

apenas sexo, e tudo bem. Outra coisa completamente


diferente é você passar duas semanas mentindo para uma

moça e tentando conquistá-la para transar com ela e ir

embora. Garoto, o que você tem na cabeça?

Ouvir tudo aquilo assim tão claro, dito em voz alta,


fazia eu perceber que a ideia era, desde o início,
completamente estúpida e cruel.

— É, eu sei, Jojo. Mas era para ser algo casual, eu


juro. Eu não esperava que fosse conhecê-la tão bem...

que fosse frequentar a casa dela, conhecer a filhinha dela,

e...

— Ela tem uma filha? E o que essa menina acha de


você?

— Não parecia gostar muito no início, mas agora

me chama de ‘tio’, e... eu até a ensinei a andar de

bicicleta.

— Você está iludindo uma pobre moça e uma


criança, Henrique? Repito: o que você tem na cabeça?

— Tá, Jojo... não briga comigo. Eu me meti nessa

confusão e agora preciso sair dela.

— Para você será fácil sair, né? E deixar mãe e

filha sofrendo pelas suas mentiras.


— Eu não quero deixá-las, Jojo. Essa é a maior das

questões.

Ela arregalou os olhos, como se custasse a

acreditar nas minhas palavras.

— Está dizendo que... está apaixonado por ela?

— Apaixonado pela mãe e encantado pela filha. É,

eu estou. Completamente.

— E... em que nível de relacionamento vocês

estão?

— Nós nos beijamos, e... nada muito além disso.


Podíamos ter ido além, mas eu não quis. Não me pareceu

certo. Isso foi ontem. E hoje a gente... trocou mensagens

algumas vezes.

— Então, basicamente, vocês estão namorando.

Namorando? Era isso?

Eu sempre fugi da palavra namoro como um

demônio fugindo de um crucifixo, mas... pensar em viver


isso com Luíza não me parecia mais uma coisa ruim.

Joana prosseguiu:

— Não pode continuar mentindo para a moça,


Rique. Converse com ela e conte a verdade. Diga que

gosta dela e que quer ficar com ela. Você quer ficar com

ela, não é?

Surpreendentemente, não precisei pensar muito


para responder: — Quero. Quero ficar com ela, cuidar da

filha dela... quero até mesmo ficar amigo daquele cachorro

dela, que nem gosta muito de mim.

— Então... apenas seja sincero e diga isso. Diga


toda a verdade. A pior forma de começar um

relacionamento é com mentiras.

Eu sabia que Joana estava com a razão, apesar de

também saber que as coisas não seriam tão simples


assim.

Eu não fazia ideia de como contar a verdade para

Luíza, de como iniciar o assunto. Ela iria me odiar, eu


tinha certeza. Precisava antes preparar um terreno para

isso.

Dei um beijo no rosto de Joana e me levantei.

Ia me afastar, quando ela me chamou.

— E... Henrique... Leve um petisco para o tal


cachorro. É uma forma de começar a ganhar a confiança

dele.

Sofia dizia que Joe gostava muito de petiscos.

Talvez aquela fosse uma ótima ideia, no fim das contas.

— Obrigada, Jojo. Vou subir para o quarto, não vou


jantar hoje, pretendo ficar lendo até o sono vir.

— Boa noite, meu querido. E boa leitura.

Trocamos um sorriso e eu subi para o meu quarto.

*****
Capítulo trinta

"Então eu vou te amar como se eu fosse te perder Eu vou te

abraçar como se eu estivesse dizendo adeus Onde quer que

estejamos, eu vou te valorizar Pois nunca sabemos quando Quando


o nosso tempo irá acabar"

(Like I'm Gonna Lose You – Meghan Trainor (feat. John Legend))

Meu quarto era bem grande. Contava com um

closet que devia ser maior do que a sala da casa de Luíza,


e um banheiro também enorme, com uma banheira dupla

de hidromassagem.

Um cômodo tão grande, mas, ao mesmo tempo,


terrivelmente solitário.
Tomei um banho e me deitei na cama, levando

comigo o livro que Luíza tinha me emprestado, mesmo


sabendo que não ia conseguir prestar muita atenção na

leitura. Minha mente dava voltas e mais voltas na

conversa tida com Joana, tentando definir o que eu


deveria fazer dali em diante.

Foi então que meu celular tocou, anunciando a

chegada de uma série de mensagens.

Enviadas justamente pelo alvo principal dos meus

pensamentos.

Luíza: Oi!

E aí, como foram as entrevistas?

Estou na torcida para que tenham sido ótimas.

Me conta quando chegar em casa.

Beijos.
Apesar de um sentimento inicial de felicidade por
ela ter me mandado aquelas mensagem, e do inusitado

calor no peito por ver a preocupação que ela demonstrava

comigo, eu odiava o fato de ser obrigado a, mais uma vez,

mentir para ela.

Eu me sentia um merda por isso, para falara

verdade.

Afinal, não tive entrevista alguma.

O que eu diria? Que foram boas? Que foram ruins?

Que eu acabei não indo? Qualquer uma dessas opções

representava mais uma mentira.

E eu não suportava mais mentir para ela. Era como


se a cada pequena inverdade que eu contava, mais

aumentasse o abismo que eu estava cavando entre nós.

Fiquei alguns minutos pensando a respeito do que

eu deveria responder, quando o aplicativo de mensagem


exibiu uma chamada para ligação de voz.
O rosto de Luíza sorrindo na foto do contato fez o

meu coração acelerar e acho que minha mão até tremia


um pouco quando deslizei o dedo pela tela para aceitar a

ligação.

— Luíza? — atendi, mal escondendo a minha

animação.

No entanto, não foi a voz dela que ouvi do outro


lado da linha.

— Minha mãe foi tomar banho, tio. Peguei o


telefone dela pra falar contigo, mas ela não pode saber,

tá?

Não pude evitar sorrir.

Aquela pestinha não tinha jeito mesmo... Pegando

o celular da mãe escondido, onde já se viu?

Mas eu já era incapaz de ficar zangado com ela.

— Como está a minha mini-super-heroína favorita?


— Eu tô nervosa, tio. É amanhã a peça e eu tô com

medo de errar tudo.

É claro... a peça; o papel de árvore; a festa na


escola. Só então me dei conta que isso já seria no dia
seguinte.

E eu ainda não tinha respondido ao convite dela

para ir. Ainda não sabia se seria correto fazer aquilo.

— Não precisa ficar nervosa, Sofia. — respondi. —

Você vai se sair muito bem, vai ver só.

— Tio Henrique, você vai me ver, não vai?

Fui sincero:

— Eu ainda não sei.

— Como não sabe! Você tem que ir! Lembra que é


o pagamento pra eu não contar nada pra mamãe.

Lá estava seu modo pestinha exploradora de

volta...
— Sabe, talvez eu mesmo conte tudo em breve
para a sua mãe.

Ela fez um instante de silêncio, provavelmente


surpresa com o meu comentário.

— Tio, você disse que ia fazer isso quando a


convencesse de que a sua loja é muito legal. Mas acho

que ela ainda não pensa assim, não. Hoje mesmo ela
estava xingando a Lizano. Xingando muito, e de nomes

muito feios.

Eu imaginava que estivesse mesmo. Talvez eu

ainda fosse demorar muito para conseguir começar a


mudar a opinião de Luíza a respeito da Lizano... Bem,

para isso, antes eu ainda tinha que mudar muita cosia nas
minhas lojas. Porém, não poderia esperar esse tempo
todo para contar a ela a verdade.

— Vou precisar de mais alguns dias, Sofia. Pode

continuar guardando esse segredo para mim? Eu vou


continuar te pagando, prometo.
— Mas eu não quero mais dinheiro, tio. Quero que
você vá à festa, pra me ver na peça fazendo o papel da
árvore. Eu ensaiei muito pra fazer tudo direitinho.

Como eu poderia dizer a ela que não achava

prudente ir à tal festa?

Não sabia se conseguiria encarar Luíza sem ter

contado a verdade para ela. Mas também não estava

certo de que conseguiria contar naquele momento.

Havia outras coisas que eu precisava fazer antes

daquilo. As mudanças na Lizano seriam o primeiro passo.

Queria mostrar a Luíza que eu agora era outra

pessoa – graças a ela. E queria também ajudá-la com

seus móveis, pondo em prática a ideia que tinha


comentado a respeito com ela certa vez: de colocar suas

peças à venda na Lizano, como parte de uma coleção

especial de itens exclusivos.

Apenas depois de tudo isso, eu poderia contar a


verdade e torcer para que ela me perdoasse.
— Escuta, Sofia, eu acho que... — comecei a falar,

mas ela me interrompeu.

— Tio, a minha mãe tá vindo, preciso desligar. Te

vejo amanhã lá na escola, tchau.

E ela desligou, sem me dar qualquer chance para

responder.

Voltei a olhar para a tela do celular, onde a


mensagem de Luíza voltava a ser exibida.

Eu precisava responder alguma coisa. Qualquer

coisa. E decidi que não iria pensar muito mais a respeito

daquilo.

Sendo assim, digitei:

Henrique: Te conto amanhã, pessoalmente.

Na festa da escola da Sofia.

Beijos.

Tenha uma ótima noite, linda.


Bem, agora não tinha mais como voltar atrás.

Eu iria à festa.

E encontraria o melhor momento e o melhor jeito de

contar a verdade à Luíza.

*****
Capítulo trinta e um

“Algumas pessoas querem tudo Mas eu não quero nada

Se não for você, querido Se eu não tiver você, querido”

(If I Ain't Got You - Alicia Keys)

Ele iria à festa na escola da Sofia.

O que, afinal, aquilo poderia significar?

Oras, as pessoas que iam a festas em escolas

eram, na maioria das vezes, parentes muitos próximos à


criança, como pais, avós... às vezes uma tia ou madrinha.

Era algo considerado chato para a maioria das pessoas,


embora eu, como mãe, sempre morresse de orgulho com

cada apresentação da minha filha.

Mas não esperava que Henrique fosse querer


participar daquilo.

Na verdade, eu nem ao menos fazia ideia de como

ele sabia sobre a festa.

Sofia me disse, quando a perguntei a respeito, que

ela havia contado a ele e que ele próprio tinha


demonstrado interesse em ir.

Do jeito que eu conhecia a minha filha, eu poderia

apostar que ela o tinha convidado descaradamente.


Porém, ainda assim, ele não tinha qualquer obrigação de

ir. Poderia dar qualquer desculpa, quem o condenaria por

isso?

— O tio Henrique não disse que vinha? — Sofia me

perguntou pela milésima vez, sentada no meu colo,


durante um intervalo entre as apresentações das turmas.
Já que era uma festa da Primavera, todo o pátio
estava decorado com flores.

— Ele disse, meu amor. Mas pode ter tido algum

imprevisto. Ele ontem fez várias entrevistas de emprego.

Quem sabe não o chamaram para algo hoje?

— Mas ele disse que vinha... — ela insistiu,

dengosa.

Como se para me salvar, a melhor amiga dela,


Gabriele, chegou nesse momento correndo, sendo

seguida pela mãe.

— Sofia, Sofia, falei com a minha mãe de você

dormir lá em casa hoje e ela deixou!

Sofia sorriu, empolgada com a notícia. Depois

olhou para mim com o seu melhor olhar de gato de botas.

— Eu posso ir, mamãe? Por favor! Por favor!

Antes de responder, olhei para a mãe de Gabi que

se aproximava e me levantei para cumprimentá-la com


dois beijos no rosto. Gabriele e Sofia estudavam juntas

desde a creche, onde ambas entraram aos dois anos.


Assim como eu, a mãe da Gabi também criava a filha

sozinha e não tinha com quem deixá-la por conta do


trabalho, e por causa disso acabamos desenvolvendo
também uma amizade. As meninas volta e meia dormiam

uma na casa da outra.

— Deixa ela ir, Luíza. Como hoje é sexta-feira,


vamos fazer uma noite de cinema — a mãe, Daniela,
falou.

Eu sabia que esse era um enorme defeito meu,

mas eu era apegada demais à minha menina, e a ideia de


passar uma noite sem ela não era algo exatamente

simples para mim. Especialmente porque a partir da


próxima terça eu voltaria a trabalhar durante a noite e a
passar muitas noites longe da minha pequena.

Porém, ao mesmo tempo, eu me esforçava para

pegar leve naquele apego. Daniela morava a duas ruas da


minha, eu a conhecia bem e Sofia já tinha dormido lá
outras vezes. E, além de tudo, minha filha parecia muito
animada em assistir filmes com a amiguinha. Que mal

haveria nisso?

Permiti, embora fizesse uma observação à Sofia: —


Mas a senhorita prometa que vai se comportar e obedecer
a tia Dani.

— Prometo, mamãe!

Voltei a olhar para Daniela.

— Podemos passar lá em casa no caminho para


pegar as coisinhas dela?

Antes que Daniela pudesse responder, Gabi o fez


por ela: — E vamos pegar o Joe também, não é, mamãe?

— Ah, é... — Daniela riu. — O convite também é

para o Joe, como da última vez.

Certo, eu seria abandonada naquela noite pela

minha filha e pelo meu cachorro. Mas não iria reclamar.


Gabi também adorava o Joe, e a verdade é que ele ficaria

muito triste sem a Sofia em casa.


Concordei e passei alguns minutos conversando
com Daniela, até que uma das professoras veio chamar as
meninas para que elas fossem se preparar para sua

apresentação, que seria em breve. Gabi foi na frente, mas


antes de segui-la Sofia me olhou com seus olhinhos

cheios de tristeza.

— Poxa, mamãe, o tio Henrique mentiu. Disse que

vinha e não veio.

Antes que eu respondesse qualquer coisa, ela se


virou e correu para alcançar a professora. Daniela também
se despediu, anunciando que ia voltar para o seu lugar,

perto do ex-marido que tinha ido para assistir à


apresentação da filha. Por mais que não fosse o mais

participativo dos pais, ele era minimamente presente na


vida da Gabi.

Voltei a me sentar e peguei meu celular para olhar


se havia alguma mensagem de Henrique. Foi nesse

momento que senti um par de mãos taparem meus olhos


por trás, obstruindo minha visão.
Tateei-as, percebendo que eram mãos masculinas.
Talvez fosse a textura da sua pele ou o seu cheiro, mas eu
sorri ao reconhecê-lo.

— Henrique? — pronunciei.

Ele destampou meus olhos e se sentou na cadeira


vaga ao meu lado, dando-me um beijo na bochecha.

— Desculpe o atraso, peguei um trânsito horrível

até aqui. Cadê a Sofia?

Olhei para a mão dele, encontrando ali duas rosas


e um livro, cuja capa eu não conseguia ver. Mas não

comentei nada a respeito e apenas respondi: — A

professora acabou de vir chamá-la para se preparar. Logo

será a apresentação da turma dela.

— Que bom que cheguei a tempo. Ah, aqui,

provando que sou um homem digno de sua confiança. —

Ele me entregou o livro, que só ao pegar percebi que era o

meu exemplar de “O Clube da Luta”.

— Você já leu?
— Já, e temos muito a conversar a respeito dele.

Mas mais tarde. Tome, isso aqui também é para você. —


Ele me entregou uma das rosas.

Achei o gesto tão lindo que não pude deixar de

sorrir.

— Obrigada. E essa outra? Pretende tentar seduzir


alguma outra mãe solo?

— Não. Já conquistei a que eu queria.

— Ah, é? E quem disse que eu fui conquistada?

— E não foi?

Talvez eu tivesse sido.

Droga, eu realmente tinha sido, sem a menor

sombra de dúvidas.

Sem esperar por respostas, ele explicou sobre a

outra flor.

— Essa aqui é para a estrela do dia.


— Ah, a Sofia vai adorar.

— Sabe o que pensei? Quando terminar a peça,

podíamos ir a algum lugar para comemorar, o que acha?

Nós três. Uma pizzaria ou coisa do tipo.

Sorri mais uma vez. Meu Deus, eu era uma boba


sorridente quando estava na presença daquele homem.

— Somos dois desempregados, Henrique. Não

podemos ficar gastando dinheiro com pizzaria.

— Como assim dois? Você não conseguiu voltar


para o bar?

— É, mas vou trabalhar um mês inteiro até receber.

— Mas você deve... digo, nós devemos receber

algo da Lizano, né? Pelo tempo trabalhado. Não

marcaram para você ir até lá resolver isso?

— É, ligaram para mim hoje de manhã. Vou na


terça à tarde, antes de ir para o bar. Mas... Foram só
alguns dias, Henrique. O que vamos receber é uma

mixaria, não vai dar para nada.

— Entendo. Cancelada, então, a ideia da

comemoração.

— Além do mais, a Sofia vai dormir fora essa noite.

Vai para a casa de uma amiguinha.

Ele ficou subitamente sério. Eu diria que até mesmo


um pouco... preocupado.

— E você conhece os pais dessa menina? São

pessoas de confiança? O lugar é seguro? E ela pode

sentir medo de noite e querer voltar para casa... é perto


para você ir buscá-la caso isso aconteça?

— Ei, relaxa. Sim, eu conheço a família. Ela mora

apenas com a mãe, aliás. E, sim, é uma pessoa de

confiança. E não vai acontecer de Sofia ficar com medo no


meio da noite, porque ela já dormiu na casa dessa menina

várias vezes. Ela também já cansou de dormir lá em casa.

São amigas desde bebês.


— Tudo bem. Eu só perguntei por... curiosidade,

nada demais.

— Mas... você pode ir lá para casa. Eu tenho pizza

congelada no freezer, é só esquentar.

— Opa... sério? Só nós dois? ...digo, nós dois e o


Joe, né?

— Na verdade, só nós dois mesmo. O Joe também

foi convidado, junto com a Sofia, para passar a noite fora.

— Só nós dois mesmo então? Eu não sou nem

louco de recusar isso.

Ele aproximou o rosto do meu, mostrando a

intenção de me beijar. Meu Deus, eu estava louca para

sentir os lábios dele sobre os meus mais uma vez, mas

precisei resistir àquilo.

— Tem crianças aqui, Henrique — sussurrei. — E

eu não quero ainda que a Sofia saiba. Quero conversar

com ela com calma sobre nós. E, na verdade... nós dois

também precisamos conversar sobre isso.


Ele manteve o rosto perigosamente perto do meu,

respondendo também com a voz baixa.

— Temos muito o que conversar, sim. Mas... Sobre


nós dois, parece muito claro o que está acontecendo.

— Tem algumas coisas que você precisa pesar.

— Por exemplo?

— O fato de eu ter uma filha. Não existe um

relacionamento simples comigo. Não sou apenas eu, é um


combo, que inclui uma criança.

— Talvez eu queira exatamente o combo completo.

Mas... você tem razão, mais tarde podemos conversar

sobre tudo isso. Eu tenho muito também para te dizer.


Mas agora, vamos apenas curtir a apresentação da Sofia?

Onde ela está? Será que eu posso falar com ela antes de

ela subir no palco? Ela deve estar nervosa com a peça.

— Ela está. E também está triste por achar que


você não viesse. Seria mesmo bom que fosse falar com

ela.
Indiquei o caminho para a sala de aula da Sofia,
onde as crianças iriam com a professora para se

arrumarem. Antes de ir, no entanto, ele me surpreendeu

com um breve selinho em meus lábios.

Foi tão rápido, que eu sequer tive tempo de piscar.


Então ele se levantou e seguiu na direção que eu indiquei.

Eu fiquei ali sentada, olhando para a rosa em

minhas mãos, sentindo ainda o toque dele nos meus

lábios, como uma adolescente apaixonada.

A última vez que eu tinha me sentido daquela

maneira, não acabou nada bem. Mas, ainda assim, pela

primeira vez eu sentia vontade de voltar a arriscar.

Esperava não me decepcionar.

*****
Capítulo trinta e dois

“Eu sei que existem algumas coisas Que nós

precisamos conversar E eu não posso ficar Então me deixe te

abraçar um pouco mais, agora”

(Never be Alone - Shawn Mendes)

Segui o caminho que Luíza havia me indicado,

chegando ao corredor de salas de aula.

Na porta de uma delas, uma mulher meio


desesperada tentava alternar sua atenção em uma ligação

pelo celular e na sala cheia de crianças.


Odiaria causar mais uma distração a ela, mas

precisei perguntar: — Desculpe, essa aqui é a turma da


Sofia? Uma menininha de seis anos, loirinha, e...

— É, sim! — ela me respondeu, parecendo até

animada pela minha presença ali. — Por favor, estou em

uma ligação importante e não consigo ouvir nada por


conta desse falatório, você poderia dar uma olhada nas

crianças para mim? Será rápido, eu juro!

Sem aguardar por respostas, ela voltou a falar no

celular, afastando-se no corredor. Fiquei ali parado, sem


compreender muito bem o pedido.

— Como assim olhar as crianças? — questionei,

com a voz mais alta para ela conseguir me ouvir, já que já


tinha se distanciado um pouco.

Ela virou o rosto para trás e sacudiu a mão,

respondendo apenas: — É só não deixar que nenhum

deles se mate. Será rápido, prometo.

Não deixar que eles se matem...


Em um primeiro momento, imaginei que existia um
certo exagero naquele pedido. Especialmente quando

olhei para dentro da sala e os vi. Apesar do falatório,

ninguém parecia correr risco iminente de vida por ali.

Eram só crianças de seis anos, o que poderiam fazer?

Logo descobri quando um garotinho passou

correndo por mim, sendo seguido por outro que o

ameaçava usando um lápis como se fosse um punhal.

Segurei-o e o levantei no colo, evitando que alcançasse o

outro e alguém ali acabasse com um olho machucado.

Tipo eu, com aquele roxo ainda visível na minha

cara.

— Ei, o que está fazendo? Pare já com isso, que

coisa!

— Quem é você? — o moleque perguntou, curioso.

— Eu vim falar com a Sofia, onde ela está?

— Mas você não é o pai dela.


— Como você pode saber disso?

— Porque ela não tem pai.

Juro que minha vontade foi jogar o moleque no


chão, sem nenhuma gentileza. Sei que o que ele disse

não era nenhuma mentira, mas não foi a frase em si, mas
o tom de desdém com que ela foi dita.

Encheu-me de raiva a ideia de que Sofia poderia


enfrentar algum tipo de bullying na escola por não ter um

pai.

Ódio seria a palavra certa. Pelo estúpido que teve a


covardia de negligenciar uma mulher incrível como Luíza e
uma menininha maravilhosa como Sofia.

— Onde ela está? — voltei a perguntar, descendo

devagar com o garoto e colocando-o no chão, embora


permanecesse segurando-o para deixar claro que
esperava uma resposta.

Minha intenção não era amedrontar o menino, mas

acho que acabei fazendo isso, porque ele simplesmente


apontou em uma direção, sem dizer uma única palavra.

— E pare de tentar matar o seu colega — ordenei,

soltando-o.

Reparei, então, que a sala era bem grande e

possuía uma meia-parede que a separava em dois


ambientes. Fui até lá, e ao me aproximar ouvi uma voz

que logo reconheci como sendo de Sofia.

— Eu não sou mentirosa!

— Claro que é! — rebateu outra voz de menina.

Parei atrás da parede, olhando por cima dela.

Encontrei Sofia usando um macacão colante


marrom escuro, com uma espécie de chapéu enorme que

envolvia seu rosto, fazendo o formato da copa de uma


árvore.

Diante dela estava outra garotinha um pouco mais


alta do que ela, usando um vestido longo cor de rosa e
cheio de fru-fru, com uma coroa sobre os cabelos loiros e
cacheados.

— Não sou! — Sofia rebateu.

— É, sim! O pai de todo mundo da peça veio,

menos o seu! Você nem tem pai!

— Mas o tio Henrique me disse que vai vir. E ele vai


ser o meu pai por hoje.

Aquilo foi como um tiro acertando em cheio o meu


peito.

Então era por isso que Sofia queria tanto que eu


fosse à sua apresentação? E aquelas crianças maldosas

realmente implicavam com o fato de ela não ter um pai?

Eu não podia deixar aquilo daquele jeito. Para o


inferno com toda a prudência que o lugar de adulto me
exigia. Estavam mexendo com a minha menina. E eu não

ia deixar que aquilo prosseguisse.


É, eu disse “minha”. Para o inferno com isso
também! Mais tarde eu pensaria melhor a respeito das
palavras, aquele era o momento de proteger a Sofia.

— Eu disse que vinha e vim — anunciei.

As duas meninas levantaram seus rostos em minha


direção. A ‘princesinha’ abriu a boca, surpresa. Já Sofia

abriu um enorme sorriso.

— Tio Henrique! — ela vibrou.

Dei a volta pela divisória dos dois ambientes,


ajoelhando-me no chão. Sofia veio até mim e se jogou em

meus braços, me abraçando com força.

— Você veio mesmo! — ela vibrou.

Aquela felicidade dela foi como um segundo tiro.

Não sabia se meu coração aguentaria tudo aquilo em um


dia só.

— É claro que eu vim. Eu disse que viria, não

disse?
— Mas você não é o pai dela — a outra garotinha

retrucou. Olhei para ela, vendo-a nos encarar com os


braços cruzados diante do corpo.

— Você não ouviu o que ela disse? Eu serei o pai

dela por hoje — rebati. Voltei a olhar para Sofia e

entreguei a ela a rosa que trazia em mãos. — Aqui, trouxe


para você.

— Que linda! — Os olhos dela brilharam e ela

pegou a rosa, cheirando-a com força. — Você vai ver a

peça, tio Henrique?

— É claro que vou. Não falei? Vim especialmente

para isso. Aliás, você está linda vestida de árvore.

— Você acha? — Ela se afastou alguns passos

para que eu a visse melhor. — Vamos ser várias árvores e


vamos cantar juntos uma música linda.

— Que besteira! — a outra menina voltou a falar,

revirando os olhos. — Que graça tem em ser uma árvore?


Sofia tomou fôlego para rebater, mas fiz isso por

ela: — Tem muita graça. Eu amo as árvores. Elas são

muito úteis, não é mesmo, Sofia?

— São mesmo! — Sofia concordou. Agora era ela


quem cruzava os braços. — Elas dão frutinhas para a

gente comer.

— Sim. E fazem... fotossíntese.

Sofia me olhou, confusa.

— Foto quê?

Decidi que não seria um bom momento para tentar


explicar aquilo, então apenas mudei o argumento: — Elas

dão sombra.

— Sim! — Sofia concordou, enfim ouvindo um

argumento que ela já conhecia. — E são muito bonitas!

— Não tanto quanto você.

Ela abriu um sorriso lindo, e esse foi o terceiro tiro.


Eu já estava completamente derrotado por aquela

pestinha.

Já a outra menina não pareceu nem um pouco feliz

com aquilo e bufou, dando meia volta e se afastando.

— A Júlia é uma chata, tio — Sofia me explicou. —

Está sempre implicando comigo. Ela todo dia joga na

minha cara que ela vai ser a princesa da peça e eu só


uma árvore.

— Nossa, não faz sentido nenhum. Árvores são

mais legais que princesas.

— Né? E ela tem um cachorro de uma marca cara...

— Quer dizer raça?

— Isso. E ela diz que ele é mais bonito que o Joe.

Mas o Joe também é bonito, além de ser muito legal.

Eu discordava um pouco sobre a simpatia do

cachorro dela – pelo menos no que dizia respeito a mim –


mas ainda assim concordei.
— É claro que é! Joe é o melhor cachorro do

mundo.

— E ela também implica porque o pai dela é bonito

e tem um carro legal. E eu... eu nem pai tenho.

— Bem... Eu também tenho um carro muito legal —


Em breve não teria mais, já que iria perder a minha aposta

com Heitor, mas isso era o de menos.

— Sim, o seu é muito mais legal que o do pai dela.

Posso um dia dar uma volta nele com você?

— Claro que pode. E, olha, modéstia à parte,


duvido que o pai dela seja mais bonito que eu.

Ela levou as mãos à boca, contendo uma risada.

Mas logo voltou a ficar séria.

— Mas você não é meu pai, tio Henrique. A não ser


que comece mesmo a namorar com a mamãe.

— E você ia gostar se isso acontecesse?


Ao invés de responder, ela fez um comentário que,

mesmo em sua inocência infantil, era bastante pertinente.

— Mas pra isso você tem que contar a verdade pra


ela. Que você é o dono da loja. A mamãe não gosta de

mentiras, diz que é uma coisa muito feia.

— E ela tem razão. É por isso que eu vou contar a

verdade. Só preciso de mais alguns dias. Você acha que


pode guardar esse segredo mais um pouco? — Ela

movimentou a cabeça em concordância. — Boa garota.

Mas... independente do que aconteça, você disse para


aquela princesinha que hoje eu seria o seu pai, não é?

Então, eu vou ser. Hoje e sempre que você precisar.

Ela voltou a sorrir e mais uma vez se jogou em

meus braços, me apertando com força.

A professora retornou à sala e eu saí, voltando para


a plateia de frente ao palco e me sentando novamente ao

lado de Luíza.
Outras duas turmas ainda se apresentaram antes
da de Sofia, e confesso que eu já começava a ficar um

tanto entediado com aquelas dancinhas.

Até que chegou o grande momento. Foi então que

me vi como um bobo, admirado com a desenvoltura de


Sofia no palco, ainda que a personagem dela quase não

tivesse movimentos ou falas.

A parte mais significativa de sua apresentação foi

na última cena, quando as árvores juntas entoaram o


refrão de uma música cantada pela princesa chatinha.

Não importava que a participação tivesse sido tão

pequena. Eu poderia jurar ter visto nuances na atuação de


Sofia e comentei inúmeras vezes com Luíza que aquela

menina tinha muito talento para ser uma atriz. Até sugeri
um curso de teatro.

Eu não tinha qualquer dúvida de que ela era a


árvore mais linda que já tinha visto na vida.
A apresentação da turma dela encerrou a festa.
Depois de trocar de roupas e tirar aquela fantasia de
árvore, ela veio até nós e me apresentou à sua melhor

amiga, Gabi, contando que dormiria na casa dela nessa


noite. Também conheci a mãe da menina, que seguiu com
a gente até a casa de Luíza, onde Sofia pegou algumas

roupas, seu travesseiro e sua escova de dentes.

Joe também foi convocado a passar a noite com as


meninas, mas antes que ele saísse, eu o chamei. Ele,
como de costume, mostrou os dentes para mim e se

preparou para rosnar, mas eu o surpreendi pegando um


biscoito canino no bolso da minha calça e entregando-o a
ele. Embora meio desconfiado, ele aceitou o agrado, antes

de sair atrás de sua pequena dona.

Aparentemente, Joana tinha razão. Mais alguns


petiscos daqueles e, eu estava certo, ganharia a confiança
dele.

Agora, eu precisaria descobrir como reconquistar a

de Luíza, que eu já tinha, mas já previa perder muito em


breve, quando eu lhe contasse toda a verdade.
*****
Capítulo trinta e três

“O tempo todo eu acreditei que te encontraria O tempo

trouxe o seu coração para mim Eu te amei por mil anos Eu te

amarei por mais mil”

(A Thousand Years - Christina Perri)

Sofia estava simplesmente radiante.

Parecia que a presença de Henrique em sua

apresentação tinha sido realmente muito importante para


ela.
Era inegável que estava acontecendo alguma coisa

entre Henrique e eu, embora eu não pudesse ainda


precisar se seria uma coisa séria ou só um lance

passageiro. De qualquer forma, era importante que Sofia

aprovasse isso e me deixava muito feliz que, além de ter


sua aparente aprovação, Henrique também tinha o carinho

dela.

Mas era inevitável sentir medo de que ela se

apegasse a ele e fosse apenas algo passageiro. Eu não


queria que minha filha sofresse. Bem, e eu própria

também não queria sofrer mais uma decepção. Porque já

sentia que gostava demais dele para querer somente um


caso momentâneo.

Depois que Daniela levou as meninas e o Joe para

sua casa, ficamos os dois a sós, e acho que aquele era o


momento decisivo para termos todas as conversas

necessárias.

Mais cedo eu tinha conversado com Sara a respeito

disso e, na opinião dela, eu estava complicando demais


coisas que deveriam ser simples, e devia apenas deixar
tudo rolar. Talvez ela estivesse com a razão.

Como combinado, aqueci no forno a pizza que tinha

no freezer. Servi para nós na mesa da sala e comemos

sentados lado a lado sobre o tapete.

— Não tem como pedir à direção da escola para

trocar aquela Júlia de turma? — ele questionou, após me

contar que presenciou a menina implicando com Sofia. —

Ela não é só uma criança chata. Ela é cruel.

— A Sofia já tinha reclamado comigo sobre ela,

mas nunca me disse que essa menina praticava bullying

por ela não ter pai. Meu Deus, eu não fazia ideia de que

minha garotinha passasse por isso.

— O que ela tinha te contado?

— Que Júlia a provocava com coisas tipo... ter um

caderno mais bonito ou um cachorro mais bonito...


ultimamente com o fato de ela ter sido escolhida para ser
a protagonista da peça de hoje. Mas ela nunca me contou

nada sobre isso do pai.

— Acho que ela sabia que faria você sofrer, por

isso não quis te contar.

É claro que me fazia sofrer, porque minha filha


estava sofrendo. Ela não podia ter guardado isso sozinha.

Pouquíssimas vezes na vida Sofia tinha me


questionado a respeito do pai e eu sempre tentei, da

forma mais sutil possível, dizer a verdade para ela, que o


pai tinha ido embora antes de ela nascer, mas que isso

não importava, porque eu a amava demais, porque ela era


o presente mais maravilhoso da minha vida. Mas não
havia sutileza no mundo que fizesse uma criança

compreender que seu próprio pai simplesmente não quis


sequer conhecê-la.

E eu agradecia pelo fato de ela poucas vezes


questionar qualquer coisa a respeito disso. Dava-me uma

ilusão de que eu era o suficiente para ela.


Mas talvez não fosse.

— Ela não deveria estar preocupada com me

poupar de nada. Ela tem seis anos e eu sou a mãe dela.


Eu é que devo protegê-la e não o contrário. Ela só tem
que se preocupar em ir para a escola e em brincar.

— Ela só tem seis anos, mas... você é tudo no

mundo para ela, Lu. É claro que ela se preocupa, do jeito


dela.

Isso me lembrou uma história, que só então me dei


conta de que ainda não tinha contado a Henrique.

— Sabe que... Outro dia ela quase foi atropelada


por aquele traste daquele Henrique Lizano.

Ele começou a tossir, parecendo ter engasgado

com algo. Fiquei preocupada, passando a mão nas costas


dele.

— Ei, está tudo bem?


— Tudo... cof... ótimo... — ele pegou o copo de
refrigerante sobre a mesa, tomando um gole. — Foi só um
engasgo. Pode continuar.

Percebendo que não era nada sério, prossegui na

história: — E se não bastasse quase atropelar uma


criança, aquele playboy achou que podia se livrar da culpa
dando dinheiro para ela. Você acredita nisso? Ele deu

dinheiro para ela.

— Nossa... Isso é... ruim, né?

— Péssimo! Mas como ela já tinha aceitado, eu

disse que ela poderia comprar algo para ela. Mas sabe o
que ela fez? Ela me deu o dinheiro. Disse que era para

colocar no “cofrinho da loja”. É como ela chama a


poupança que abri para tentar juntar dinheiro e comprar
um espaço para o meu ateliê.

Ele pareceu surpreso com a história.

— Ela fez isso?


— Fez. Tinha que ver que fofa, ela me perguntou se
aquelas duas notas de cinquenta reais seriam o suficiente
para comprar a loja. Para ela isso é muito dinheiro, né?

— E o que você respondeu?

— Disse que a gente precisaria de mais ‘algumas’


notas como aquela, mas deixei que ela sentisse que a

ajuda dela foi importante. E foi, né? Não que tenha muito

dinheiro nessa poupança, mas... Esses cem reais são de


longe os mais importantes de todo esse valor.

— A sua filha é maravilhosa, Lu. Como você. Você

se importa se eu... perguntar sobre...

— O pai da Sofia? — eu me adiantei.

Já tinha percebido que ele tinha curiosidade a


respeito disso.

— É. Mas só se não te incomodar falar sobre esse

assunto..

Não incomodava. Não mais.


— Eu o conheci no ensino médio. Já tinha tido

outros namorados antes, mas... com ele foi mais sério,


sabe? Foi com ele que tive a minha primeira vez, e...

ficamos juntos por mais de um ano, e eu acreditava que

seria para sempre. Eu era uma boba apaixonada, e ele um


canalha que dava corda para isso. Até que eu fiquei

grávida, contei a ele, e... primeiro ele tentou me convencer

a abortar, e como eu não queria, ele simplesmente sumiu.

Depois de um tempo descobri que ele tinha até ido


embora da cidade.

— Que filho da puta...

— Mas sabe que eu hoje entendo que foi melhor

assim? Porque... o que um traste como esse teria a


oferecer para a minha filha? Que tipo de educação daria a

ela? Que merda de pai seria?

— Mas você o amava.

— É. Mas isso não é o pior, sabe? Porque descobrir

que ele era uma pessoa diferente do que eu achava que


fosse me ajudou a superar esse amor. Esse sentimento
acabou completamente, não resta mais nada dele. Mas...

eu entreguei a minha confiança para ele. E ele a jogou

contra uma parede, como um vaso frágil de porcelana, e a


destroçou. E essa dor da confiança quebrada é algo que

nunca cicatriza. E não é difícil voltar a amar alguém

porque eu amei e me desiludi. Mas porque a confiança é a

base do amor. E uma vez que você a entrega a alguém e


essa pessoa a quebra, é muito difícil aprender a confiar

em outra pessoa novamente.

Ele ficou em silêncio por alguns segundos, apenas

olhando para mim de uma forma que eu não seria capaz


de desvendar no que ele estava pensando.

Quando enfim disse algo, sua voz saiu baixa.

— Você me disse outro dia... quando me emprestou

o livro... que confiava em mim. Posso perguntar por quê?

— Bem... além de ter ganhado um olho roxo e ter


sido demitido por minha causa... E ter me ajudado a

roubar caixotes e... ensinado minha filha a andar de

bicicleta... e hoje ainda ter ido vê-la em uma festinha chata


de escola... tem algo em você que... eu não sei, mas me

passa sinceridade.

— E você sente isso desde que me conheceu?

— Ah, não. No início você não me passou nada

disso. Naquele dia no bar, eu te achei muito bonito, mas...

só isso. Na verdade, achei até que você fosse um tipo

meio cafajeste.

— Sério?

— É. Para você ter uma ideia, no segundo dia,

quando você apareceu lá na loja... eu cheguei a ter uma

sensação de que você tivesse se infiltrado lá para


continuar dando em cima de mim, olha que louco!

Eu ri, porque, de fato, dito em voz alta, aquilo era

completamente insano. Ele continuou me olhando de

forma séria, então eu prossegui: — Acho que só a partir


do terceiro dia eu comecei a sentir algo diferente em você,

e... com o tempo fui vendo que aquela primeira impressão


tinha sido completamente equivocada. E que na verdade

você é um bom homem.

— Talvez eu nem seja tão bom assim, Lu. Mas... a

partir desse momento eu realmente quero que você confie


em mim. Nesse Henrique que está aqui agora e que está

sendo totalmente sincero quando diz que você é uma

mulher maravilhosa. E que eu sinto por você algo que eu

nunca senti antes por ninguém.

— Eu confio — sussurrei, sincera.

Ele segurou minhas mãos junto às dele e olhou

profundamente nos meus olhos.

— Tem algo muito importante que eu preciso te

contar sobre mim, mas... Eu não sei se consigo fazer isso


agora.

Eu compreendia. Afinal, eu própria, apenas naquele

momento, tinha contado a ele sobre o pai da minha filha.

Sabia que todo mundo tinhas suas histórias, seu

passado e seus traumas. Henrique contava vir de uma


família humilde de trabalhadores de uma fazenda, e tinha

se esforçado muito no sonho de vir para a cidade e


conseguir ganhar a sua vida. Eu sabia que ele teria um

futuro brilhante pela frente, porque eu estaria ao seu lado

para apoiá-lo no que fosse preciso.

Era certo que sua vida trazia muitas histórias, e


talvez algumas fossem dolorosas e precisassem de tempo

para serem verbalizadas. Pensei que talvez fosse de

algum passado seu com alguma mulher, ou mesmo algo

relacionado à família. Não importava. Ele me contaria


quando se sentisse pronto para isso.

— Não precisa ter pressa — eu o tranquilizei. — E

eu também tenho algo para te contar. Na verdade, para te

mostrar. — Levantei-me, puxando-o pela mão para que


ele fizesse o mesmo.

Então o guiei para o lado de fora da casa, até a

garagem que eu usava como ateliê improvisado.

Bem no centro do espaço estava a peça em que eu


estava trabalhando. Era uma mesa de madeira, bem
parecida com a que ele tinha visto em minha varanda.

Percebi os olhos de Henrique brilhando quando viu

aquilo e ele foi até o móvel, passando a mão sobre os

detalhes que eu tinha começado a talhar.

— Nossa! Você vai fazer outra como aquela?

— Não vai sair igual. Como eu te disse, cada peça


é única. Modéstia à parte, acho que essa ficará mais

bonita que a minha. A madeira tem uma qualidade muito

melhor.

— Roubou de alguma loja? — ele implicou.

— Não. Essa eu comecei do zero. Já tinha a

madeira guardada nos fundos do quintal há algum tempo,


mas nunca tinha tempo para mexer nela. Aproveitei esses

últimos dias desempregada para isso. Já está


praticamente pronta, estou agora talhando os detalhes.

— Vai ficar linda. Foi encomenda de algum cliente?


— Não. Na verdade, é um presente para uma
pessoa especial.

Ele voltou a me olhar, parecendo em dúvida se


havia compreendido direito. Sorri e movimentei a cabeça

em uma confirmação.

— Não, Lu, nem pensar. Não é justo, esse é o seu

trabalho. Eu vou pagar por ela.

Achei graça. Às vezes ele falava como se não


estivesse provavelmente tão ferrado de grana quanto eu.

— Se você me pagar, vai deixar de ser um


presente. E eu quero te presentear com uma peça minha.

Ele voltou a se aproximar de mim, parando bem à

minha frente. Então, sem qualquer anúncio, fez aquilo que


eu desejava que ele fizesse desde que nos encontramos
mais cedo no pátio da escola. Ele me beijou.

O que começou de forma lenta logo se aprofundou.

Nossas línguas se exploravam de forma aflita e ele puxou


meu corpo para mais junto do dele. Pude sentir
novamente seu membro enrijecido por baixo da calça, e
isso voltou a acender em mim o desejo de nos tornarmos
um só.

Era o que teria acontecido dias antes, no sofá da

minha casa, se ele não tivesse agido com a razão e


decidido que devíamos esperar. Mas eu queria mandar a

razão para o inferno, e agora ele também parecia estar


bem disposto a isso quando subiu a mão pela minha coxa
por baixo do vestido.

Eu não queria ter prudência, nem esperar por

nenhum ‘momento especial’. Porque aquele momento,


para mim, já estava mais do que perfeito. Ali mesmo, no
meu ateliê pequeno e improvisado, mas que representava

o local onde meus sonhos tomavam vida através dos


meus móveis.

E com ele, com Henrique, o rapaz simples que


havia conquistado o meu coração.

*****
Capítulo trinta e quatro

“Tudo o que sei é que seguramos a porta Você será

meu e eu serei sua Tudo o que sei desde ontem é que tudo

mudou”

(Everything Has Changed - Taylor Swift)

Sem parar de beijá-lo, desci as mãos entre nós, até

alcançar o fecho de sua calça jeans. Abri-a e, ousada,


enfiei a mão em sua cueca, encontrando aquele volume

grande e duro como uma pedra.

Eu estava longe de ser uma mocinha virgem, mas

também não podia me dizer altamente experiente no sexo.


Tinha feito apenas com meu ex-namorado, e era sempre o

mesmo papai-e-mamãe certinho e recatado sobre uma


cama.

No dia que perdi minha virgindade, insisti tanto que

queria que fosse algo especial, que ele tinha me levado à

sua casa e “feito amor” comigo em uma cama previamente


preparada, cheia de pétalas de rosas.

Romântico, mas, ao mesmo tempo, vazio. Porque

tal lembrança, que deveria ser tão bonita, tinha se tornado

um borrão sujo nas minhas memórias.

Agora, eu não queria mais romantismo e perfeição.

Os sentimentos me bastavam.

Trouxe o seu membro para fora das roupas e o

massageei com vontade. Ele correspondeu, enfiando a

mão por dentro da minha calcinha, enquanto

continuávamos a nos beijar com cada vez mais fúria.

Fui recuando alguns passos, até minha bunda

encontrar a mesa que eu preparava para ele. Henrique me


suspendeu, colocando-me sentada ali. Pude então abrir as
pernas, deixando o caminho mais livre para os dedos dele

me explorarem.

Eu estava tão desesperada por aquilo que senti que

não ia demorar a explodir de prazer. Contudo, ele parou


com os movimentos e interrompeu o nosso beijo. Afastou

o rosto apenas alguns poucos centímetros, de modo com

que eu podia ainda sentir sua respiração sobre a minha

pele. Uma respiração profunda, que dava mais uma prova

de que ele também queria continuar.

— Lu, é melhor a gente... — ele começou a falar,

mas eu o interrompi.

— Eu estou há muito tempo sem isso, Henrique. Só

me fode, por favor.

Em qualquer outro momento, eu teria até mesmo

me surpreendido com o meu próprio vocabulário. Mas

agora, eu pouco me importava. Eu só queria voltar a me

sentir como uma mulher, no sentido mais físico e


selvagem da coisa.
— Eu não estou com camisinha aqui — que inferno,

aquilo era hora de ser o cara certinho?

Bem, eu não poderia reclamar por ele

aparentemente ser o responsável da situação.

— Eu tomo remédio. Só me fode, Henrique. Agora.


Por favor...

Eu sempre tive a menstruação desregulada, por


isso que, depois que Sofia nasceu, eu passei a tomar

anticoncepcionais mesmo não precisando deles para a


sua finalidade principal, que era a de evitar uma gravidez.

Já fazia sete anos desde a última vez que um homem


havia me tocado daquele jeito.

E, para a minha satisfação, ele atendeu ao meu


pedido. Sequer percebi em que momento arrancou a

minha calcinha, e eu o senti entrando dentro de mim.

Céus, como aquilo era bom!

Quando Henrique começou a se mover, indo e

voltando de forma cada vez mais profunda, eu me


perguntei se antes era tão gostoso assim, ou se era o

jejum de tanto tempo que fazia o prazer ser tão intenso.

Então, ele levou novamente uma das mãos ao meio


das minhas pernas, usando o polegar para massagear
meu clitóris em movimentos circulares. Não consegui

segurar o gemido alto que escapou pela minha garganta.


Depois mais outro, e mais outro.

Henrique aumentou o ritmo e a pressão das


estocadas, levando-me pouco a pouco a um estado pleno

de loucura.

Até que uma onda intensa de prazer me tomou e eu


arqueei o corpo, completamente entregue. Ainda sentia os

espasmos do orgasmo quando ele também gozou, dentro


de mim, preenchendo-me por completo.

Fiquei ali, estirada sobre mesa, com meu vestido


levantado e nua apenas da cintura para baixo, tentando

regularizar a minha respiração, com os olhos fixos no teto,


sentindo o sangue circular depressa pelas minhas veias e
meu coração acelerado.
Sentindo-me plena. Satisfeita. Viva.

Se eu achava que tal sensação não poderia

melhorar, percebi que estava enganada quando Henrique


se debruçou sobre mim. Seu rosto surgiu diante do meu e

ele me beijou de forma lenta, profunda e apaixonada.

Quando nossos lábios se afastaram, no entanto, ele

disse algo que eu não esperava ouvir.

— Desculpe...

— Por atender ao meu pedido?

— É que... não era para ser assim. Foi a nossa


primeira vez, você merecia muito mais.

Será que aquilo era mesmo real? Eu tinha medo de

acordar de repente e perceber que tudo não passava de


um sonho. Aquele homem parecia maravilhoso demais
para existir fora de livros de romance ou de filmes clichês.

Mas eu não queria mais sentir medo. Tinha sido

atormentada por ele durante tempo demais. Agora, eu só


queria viver.

E se a vida tinha me proporcionado um homem tão

maravilhoso como Henrique, eu iria me jogar naquela


oportunidade de ser feliz. Sem medo.

— Bem... a gente pode, então, entrar em casa,


tomar um banho... e recomeçar. Podemos ter outra

primeira vez.

O olhar dele sobre mim foi de pura luxúria. Ele


pressionou o quadril sobre o meu. Seu membro, do lado

de fora da calça, me dizia que ele já começava a se

recuperar para mais uma rodada.

— Com uma condição... — ele falou. Sua voz

estava rouca, carregada de desejo. — Que depois desse


recomeço, a gente possa recomeçar de novo.

— Teremos a noite toda para muitos recomeços.

E ele me beijou mais uma vez. Fui erguendo o

corpo até me sentar e ele ficar de pé, então enrosquei


minhas pernas ao redor de sua cintura. Ele segurou em
minhas coxas e, sem interromper o beijo, me levou para

dentro da casa.

Subimos para o meu quarto e tomamos um banho

juntos. Foi então que tiramos toda a roupa e pudemos ver

e explorar melhor nossos corpos.

Ele era... incrível.

O corpo parecia ter sido minuciosamente esculpido.

Ele não falava de outras mulheres, mas um homem

jovem e lindo como ele obviamente já devia ter se deitado

com inúmeras. Por isso, senti um pouco de vergonha de

me despir diante dele. Eu já tinha uma filha, por isso meus


seios já não eram mais tão firmes e, apesar de magra,

meu corpo era marcado por algumas sutis marcas de

estrias.

Mas a forma como ele me olhou, cheio de desejo,


me dizia que gostava do que via.

Embaixo da água morna do chuveiro, nós

acariciamos o corpo um do outro. Se na primeira vez eu


tinha agido como um animal no cio, exigindo urgência,

agora eu me deliciava com cada toque.

Ele me deu outro orgasmo, usando apenas as

mãos. Enquanto meu ex tinha uma dificuldade surreal de


até mesmo encontrar o meu clitóris, Henrique parecia

conhecer bem não só o caminho até ele, mas a forma e a

intensidade certa para tocá-lo. Depois nos secamos e

fomos para a minha cama.

Então, cumprimos o nosso acordo e recomeçamos,

tendo uma nova primeira vez Dessa vez, não foi só sexo.

Dessa vez, fizemos amor, no sentido mais pleno da

palavra.

*****
Capítulo trinta e cinco

“Um: você é como um sonho se tornando real Dois: só

quero estar com você Três: garota, é evidente que você é a

única para mim Quatro: repita os passos de um a três Cinco:

fazer você se apaixonar por mim Uma vez que eu achar que

meu trabalho está feito, então volto ao passo um”

(Back At One - Brian Mcknight)

Os raios de sol penetravam através das frestas da


cortina, iluminando aquele corpo despido da mulher que

dormia serenamente ao meu lado naquela cama.


Lembrei-me da timidez em seus olhos ao se despir

para mim e pensei no quanto ela era boba por se sentir


assim. Seu corpo era lindo, perfeito com cada uma de

suas marcas. E tinha sido meu naquela noite. De várias

formas. E eu ainda conseguia pensar em várias outras


que queria experimentar com ela.

Porque eu queria que ela fosse minha não apenas

por aquela noite. Mas para sempre.

Mas eu sabia que não seria tão simples. Eu não

conseguia parar de pensar em como iniciaria aquela


conversa com ela. Porque eu precisava dizer toda a

verdade. Luíza merecia isso.

Pensava a respeito quando ouvi o som do toque


familiar de um celular. Comecei a olhar ao redor, aflito,

tentando descobrir onde eu tinha deixado o aparelho,

quando percebi que o som baixo vinha do banheiro do

quarto. Próximo o suficiente para que eu pudesse ouvir,

mas não o bastante para acordar Luíza.


Levantei-me e corri até o pequeno cômodo,
fechando a porta. Peguei o aparelho no bolso traseiro da

minha calça jeans que tinha ficado, como as outras peças

de roupas, espalhadas pelo chão No visor era exibido o

contato do meu irmão. Atendi, falando o mais baixo

possível para evitar que Luíza ouvisse: — Isso são horas

de me ligar, Heitor?

— Sei que hoje é sábado, irmãozinho, mas já são

quase onze da manhã. Em que farra você se meteu para

achar que ainda é cedo? Estava dormindo até agora?

Já havia algum tempo que eu estava acordado,

mas confesso que sequer tinha percebido o tempo passar,

achava que ainda deveriam ser oito ou no máximo nove

da manhã.

Luíza provavelmente também não estava habituada

a dormir até tão tarde. Não pude conter um sorriso de

satisfação em meu rosto ao pensar que ela deveria estar

bem exausta das atividades da noite.


— O que você quer? — questionei, querendo que

ele fosse direto ao assunto.

— Hoje tem festa na casa do Joca. Está todo

mundo aqui te esperando. Já vieram umas cinco gostosas


diferentes perguntar por você.

Festa? Casa do Joca? Mulheres?

De repente, tudo isso parecia fazer parte de uma


encarnação passada. Não pertenciam mais a mim.

— Você não dormiu em casa, né? — Heitor

prosseguiu. — Disse pelo telefone que queria conversar


comigo quando eu voltasse ontem, mas fiquei até tarde
acordado te esperando e não te vi chegar.

— É... nós temos que conversar, sim. Mas não dá

para ser pelo telefone. De noite nos falamos em casa. Não


me liga mais, senão a Luíza pode ouvir.

Falei aquilo de forma automática, mas mal as


palavras saíram da minha boca e me arrependi
profundamente, dando-me conta da merda que eu tinha

revelado.

— Você passou a noite na casa da garçonete? —


Ele gargalhou. — Seu grande filho da puta! Não acredito
que conseguiu ganhar a aposta!

— De noite a gente conversa, Heitor.

— Não, nem pensar! Isso é histórico, você levou


mais de dez dias para conseguir trepar com uma mulher.

Vai ter que me contar como tudo aconteceu. Conta aí,


para fazer tanto doce, ela era virgem?

Eu queria, sinceramente, dar um murro na cara


dele, sem me importar com o fato de ser meu irmão. Mas

tentei me acalmar. Primeiro, porque ele não estava ali


para eu socá-lo, e segundo porque qualquer alteração na

minha voz poderia chamar a atenção de Luíza.

— Cala essa boca, Heitor.

— Ela era mesmo virgem? — o panaca insistiu.


— É claro que não, seu estúpido. Não te contei que
ela tem uma filha?

— Ah, é verdade. Então, cara, dá logo o fora daí


antes que a pirralha acorde. Não vai querer ter uma

coisinha te chamando de papai, não é? Mas não esquece


a foto para provar sua vitória. Tira de um bom ângulo, viu?

— Me faz um favor, Heitor... Vá para o inferno.

Desliguei a ligação, praticamente jogando o celular

sobre o lavatório. Passei as mãos pela cabeça e me olhei


no espelho, vendo ali o reflexo de um cara que não era

nada menos que um merda.

Eu realmente, quando fiz aquela maldição de


aposta, cheguei a acreditar que aquilo fosse minimamente
aceitável? Que eu iria fazer sexo com Luíza, tirar uma foto

dela nua ao meu lado como prova, e sair de sua casa à


espreita para simplesmente desaparecer da sua vida?

— Você é um bosta, Henrique... — resmunguei


para o meu reflexo, ainda encarando-o fixamente. — Um
grande saco de bosta.

Eu não iria magoar aquela mulher. De maneira

alguma.

*****
Capítulo trinta e seis

"Nós arranhamos, acorrentamos nossos corações em vão

Pulamos, sem nunca perguntar por quê Nós nos beijamos, eu cai

no seu feitiço Um amor que ninguém poderia negar"

(Wrecking Ball – Miley Cyrus)

Joguei um pouco de água no rosto e saí.

Encontrei Luíza já acordada, agora com o corpo

coberto por um lençol, olhando-me com o sorriso mais


lindo do mundo.

Meu coração pareceu se partir em mil pedaços. Eu

realmente planejava magoá-la com as regras daquela


merda de aposta?

— Bom dia... — ela sussurrou.

Sua voz doce era como um conforto para a minha

alma.

Ela percorreu os olhos pelo meu corpo, só então


me fazendo me dar conta de que eu ainda estava nu.

Eu me aproximei, voltando a me deitar ao lado dela


e tomando seus lábios com os meus em um beijo breve.

— Bom dia, linda!

— Já é de manhã?

Achei graça da pergunta.

— Já passam das dez, Lu.

— O quê? — Os olhos dela se arregalaram e ela

levantou o tronco, sentando-se na cama. O lençol

escorregou até a sua cintura, deixando aqueles seios

lindos à mostra. — Daniela disse que ia trazer a Sofia na


hora do almoço, porque ela vai levar a Gabi para almoçar
com o pai.

— Ainda falta um pouco para a hora do almoço,

não acha?

— Ela me disse que seria em torno de meio-dia.

Mas eu ainda preciso começar a preparar o almoço.

— Calma, eu vou te ajudar. Temos tempo.

Ela me olhou, parecendo estar cheia de dúvidas.

— O que Sofia vai pensar se descobrir que você

dormiu aqui essa noite?

— Não sei. Mas o que você quer que ela pense?

Porque, assim... ela me contou uma vez que acharia legal

se a mamãe dela tivesse um namorado.

Ela sorriu.

— Ela disse isso para você?


— É, ela disse. Eu não sei se ela consideraria o tio

Henrique um namorado ideal para a mamãe dela, mas...

— Talvez ela considere. E talvez eu devesse contar

isso a ela. Mas... acho melhor conversar antes com ela,


sabe? Só nós duas. Para meio que preparar o terreno.

— Eu entendo.

E provavelmente, antes disso, eu é que devesse


conversar com Luíza e enfim contar toda a verdade.

Mas também tinha um terreno para preparar...

Na segunda-feira já começaria a implantar


mudanças na empresa. Como eu disse uma vez a Sofia,

contaria a verdade à sua mãe quando pudesse convencê-


la de que a Lizano é “uma loja legal”. Depois disso,

poderia mostrar que ela me ajudou a abrir a minha visão a


várias questões que eu antes não via, e com muito jeito
contaria primeiramente sobre ter mentido sobre ser um

cara pobre e escondido ser o CEO da Lizano.


Talvez, em um primeiro momento, eu ainda

ocultasse a motivação disso, que foi a aposta. Essa seria


a parte mais difícil de contar, com toda a certeza.

Mas não ia pensar naquilo naquele momento. Não


enquanto eu estava em uma cama junto à mulher mais

maravilhosa desse mundo.

Ali, eu iria me empenhar apenas em fazê-la feliz.


Especialmente porque eu já sabia de coisas que ela
gostava...

Tomei sua boca devagar, inicialmente em um beijo

inocente que aos poucos foi se tornando mais ousado. Em


determinado momento ela conseguiu se livrar dos meus

lábios, mas não parecia disposta a sair dali, especialmente


quando comecei a beijar seu pescoço.

— Henrique, é melhor não... Sofia vai chegar daqui


a pouco.

— Temos mais de uma hora até lá. Já disse que te


ajudo a preparar o almoço.
— Eu sei, mas... você não vai querer tomar café?

— Vou. Vou querer você como meu café da manhã.

Desci devagar, tomando um de seus mamilos com


a boca, enquanto acariciava o outro com a mão. Luíza

jogou a cabeça para trás e soltou um gemido baixo que


fez o meu pau endurecer por completo.

Desci lentamente a outra mão, afastando o lençol


com o qual ela ainda se cobria. Encontrei-a já molhada,

macia e quente, esperando por mim. Mais um gemido


escapou de seus lábios e eu não mais resisti. Precisava

prová-la.

E foi o que eu fiz. Ela voltou a se deitar e eu usei as


mãos para abrir mais as suas pernas, afastando-as, me
dando o caminho livre para a minha refeição matinal.

Comecei passando lentamente a língua, vendo-a remexer


o quadril em resposta.

— Está delicioso... — falei. — Posso provar mais


um pouco?
Levantei o rosto para olhá-la e a encontrei com a
respiração entrecortada, olhando-me como se suplicasse
para que eu prosseguisse.

Minha garota gostava disso...

E eu gostava de poder chamá-la de minha.

Voltei a passar a língua por toda a sua intimidade,

usando também os dedos para a explorar. Enfiei primeiro

um, devagar, em seguida penetrando outro. Ela arqueou


para trás, mas os gemidos ainda não eram tão deliciosos

quanto os que ela começou a soltar quando iniciei o vai-e-

vem dos dedos ao mesmo tempo em que minha boca se

deliciava com o seu clitóris.

— Henrique... mais, por favor... mais... — Meu


nome dito entre gemidos com a sua voz era a coisa mais

excitante que eu já tinha ouvido.

Ela rebolava em minhas mãos e boca, e meu pau

ficava a cada instante mais dolorido de tão duro.


A respiração dela foi ficando mais descompassada,

até que um gemido mais alto foi ouvido, enquanto ela


arqueava o corpo. Deitei-me ao lado dela, apoiando o

peso do corpo em um dos braços, enquanto admirava seu

rosto.

Os olhos fechados, a respiração ofegante, o meio-


sorriso entre os lábios, a expressão de satisfação.

Eu tinha dado isso a ela.

Engraçado que eu já tinha proporcionado prazer a

tantas outras mulheres, mas Luíza era a primeira que me


deixava naquele estado. Meu pau doía, desesperado pelo

seu próprio prazer, mas era o dela que me deixava tão

satisfeito.

— Como estava o café da manhã? — ela


sussurrou, abrindo as pálpebras e me encarando com

aqueles olhos castanhos sedutores.

Ela sabia bem como me enlouquecer.


— Quente e doce, exatamente do jeito que eu

gosto.

— Chegou a minha vez de provar, então.

Antes que eu pudesse responder, ela desceu até o

meu pau, abocanhando-o sem qualquer cerimônia.

Passei as mãos pelos seus cabelos, olhando-a,

sentindo aqueles lábios macios e aquela boca faminta a

me devorar. Tentei me controlar ao máximo, ou acabaria

gozando em sua boca. E não era isso o que eu queria.

Com todo o pouco autocontrole que ainda me

restava, eu a afastei. Estendi minhas mãos para que ela

as segurasse, mostrando o que ela deveria fazer.

Ela olhou para o meu membro e em seguida para


mim, mordendo o lábio de forma incrivelmente sedutora,

embora eu pudesse notar em seus olhos uma certa

confusão que me deixou completamente louco.

— Nunca ficou por cima? — Não resisti em


perguntar.
Quando ela movimentou a cabeça de forma

negativa, meu coração pareceu que ia explodir dentro do


peito e, como se fosse possível, meu pau doeu ainda

mais.

Ela tinha tido experiências apenas com um único

cara... ou, na verdade, um moleque, ainda na


adolescência. Não duvidava que fizessem apenas da

forma como ele queria e estava acostumado.

Pensar nisso me encheu de um ódio insano.

Ele era um merda, que não valia nada. Seria eu a

ensinar Luíza todas as formas de se sentir prazer.

— Vem, linda... Agora você ficará no comando.

Hesitante, ela segurou em minhas mãos e se

ajoelhou sobre mim, com uma perna de cada lado do meu

corpo. Apertei suas mãos e olhei fundo em seus olhos, em


um sinal para que ela fizesse o que queria fazer.

Devagar, ela foi se abaixando, sentando-se sobre

minha ereção. A forma como ela inspirou e fechou os


olhos enquanto meu pau a penetrava me fez, novamente,

me controlar para não acabar gozando antes da hora. Eu

estava já em desespero, e tudo, cada gesto dela me

excitava ainda mais.

— E agora? — ela sussurrou, já completamente

sentada sobre mim, meu pau a preenchendo até o fundo.

— Agora faça o que quiser fazer, linda.

E ela fez. Começou a cavalgar sobre mim. No

início, de forma ainda um pouco desajeitada e fora de


prática, mas logo foi pegando o jeito e aumentando o

ritmo.

Eu a vi levar as mãos aos próprios seios, ávida por

intensificar o próprio prazer. E eu a ajudei nisso, usando


minha mão para massagear o seu clitóris.

A cavalgada dela foi se tornando mais acelerada,

até que gozamos juntos e ela deixou seu corpo cair sobre

o meu, enquanto ambos normalizávamos nossas


respirações.
Ficamos ali calados e eu beijei seus cabelos,

sentindo-me mais em paz do que nunca.

Até que essa paz era tumultuada quando a


realidade voltava à minha mente e eu me lembrava de que

era uma merda de um mentiroso.

— Agora preciso mesmo levantar — ela anunciou,

levantando a cabeça para me olhar nos olhos. — Vou


tomar um banho e preparar o almoço.

— Posso te ajudar nas duas coisas.

— Nem pensar. Aceito a ajuda para o almoço. Mas

você pode tomar o seu banho no banheiro lá de baixo e eu


no do meu quarto. Senão fatalmente será mais do que um

simples banho e vamos demorar ainda mais.

— Sabe que a ideia era exatamente essa, não é?

— Muito engraçadinho. Anda, vamos logo. Tem

toalhas limpas e sabonete no armário embaixo do


lavatório.
Ela se levantou e eu fiz o mesmo. Fui até o
banheiro dela e peguei minhas peças de roupa

espalhadas pelo chão. Quando passei por ela, voltei a

beijá-la, e ela novamente precisou me empurrar para que


eu não acabasse me empolgado e prolongando aquele

beijo mais do que deveria.

— Serei rápida. Te encontro na cozinha em dez

minutos — ela falou.

E eu aceitei, sabendo que aquele tempo ia demorar


uma eternidade para passar.

Pelo amor de Deus, eu era um idiota apaixonado.

Logo eu, que vivia implicando com o meu irmão por

isso.

Desci, indo para o banheiro social. Tomei um banho


sem muita pressa e, quando saí, imaginei que Luíza já

estaria até mesmo me esperando na cozinha.

Mas ela não estava.


Sentei-me no sofá e fiquei ali por uns cinco
minutos, impaciente, e nada de ela descer. Preocupado
com a demora, decidi subir.

— Lu? Está tudo bem aí? — perguntei, enquanto

abria a porta do quarto. A do banheiro estava meio aberta,


por isso fui até lá. — Você disse que o banho seria rápido,
não foi? — brinquei, mas o ar de diversão foi

completamente sufocado com a cena que encontrei.

Ela estava parada diante da pia, com um olhar aflito


voltado para o celular em suas mãos. Em um primeiro
momento, fiquei preocupado achando que pudesse ser

alguma notícia de algo com Sofia, mas, ao olhar


novamente, percebi que não era o celular dela que estava
em suas mãos. Mas o meu.

Eu tinha esquecido a porra do aparelho lá.

Durante todo o tempo de convivência, eu nunca

mexia no celular na frente de Luíza, porque, se eu queria


representar o papel de um rapaz humilde e assalariado,
eu jamais poderia ter um aparelho que custasse quase um
ano de salário de um vendedor da loja. E eu achei que
fosse esse o motivo da surpresa dela.

Mas logo percebi que não era apenas isso quando


o telefone em sua mão soou um alerta de mensagem

recebida, que provavelmente surgia nas notificações da


tela.

Algo na expressão do rosto dela me dizia que


aquela não deveria ser a primeira.

Ela me olhou e vi confusão e tristeza em seus

olhos. Os lábios dela se abriram, mas sua voz não chegou


a sair, porque foi interrompida pelo som da campainha.

Como se quisesse usar aquilo para fugir da


situação, ela empurrou o celular contra mim e saiu do

banheiro e do quarto.

Ouvi que descia as escadas correndo e aguardei


que chegasse ao último degrau para enfim criar coragem
de ler as mensagens recebidas.
Heitor: Não acredito que você conseguiu
realmente seduzir a mamãezinha.

Para de me enrolar e manda logo foto dela,


Henrique!

E faça o favor de focar bem nos peitinhos.

Sem foto você não ganha a aposta!

Senti como se o sangue tivesse congelado em


minhas veias.

Luíza não podia ter lido aquilo. Não era daquela

forma que ela deveria descobrir a verdade.

*****
Capítulo trinta e sete

“Você pegou minha mão Você me mostrou como Você

me prometeu que ficaria por perto Eu absorvi suas palavras E

eu acreditei em tudo que você me disse”

(Who Knew - Pink)

Há muito tempo que eu tinha desenvolvido um

medo patológico de ter felicidade na vida amorosa.

Eu buscava a minha realização em outras formas.


No meu trabalho, no sonho do meu próprio ateliê, nos

momentos passados com a minha filha, nas maratonas de

série com minha prima, nos passeios no parque com o


Joe... em diversas outras coisas que me faziam

verdadeiramente feliz.

E por muito tempo tudo isso me bastou, até que


chegou Henrique e, em apenas alguns dias, tumultuou

tudo no meu emocional.

Quando entrei no banheiro para tomar o meu

banho, no entanto, eu já não sentia mais esse medo. Ele


tinha ido embora com a noite de amor que tivemos, com a

redescoberta do meu próprio prazer, com o turbilhão de

sentimentos crescendo dentro de mim... com a confiança


que eu agora depositava no Henrique.

Separei uma roupa bem leve para vestir, algo no

melhor estilo ‘sábado em casa’, porque obviamente


Henrique ficaria para almoçar comigo e com a Sofia. A

expectativa de passar o dia inteiro com eles dois – e com

o Joe, claro – acendia em mim uma nova faísca de

felicidade.

Tomei um banho rápido, conforme havia prometido

a Henrique, e logo saí do box, me enxuguei com uma


toalha e vesti a roupa que havia separado.

Aproximei-me do espelho para secar e pentear os

cabelos, quando meus olhos se detiveram no objeto sobre

a pia. O símbolo do I-phone reluzia sobre a capa dourada

e, curiosa, peguei para ver do que se tratava.

Porque, bem... nem em mil anos eu teria um

aparelho daquele, e me pareceu óbvio também que

Henrique não tivesse um.

Em um primeiro momento, cogitei ser alguma

réplica ou um brinquedo de Sofia que eu não me

recordava de ter visto antes, mas logo constatei que era

exatamente o que parecia ser: um celular.

Pensei em simplesmente descer e entregá-lo para

Henrique, quando o aparelho tocou um alerta e a tela

acendeu. Eu realmente não tinha qualquer intenção de

invadir a privacidade dele, mas a mensagem

simplesmente surgiu na tela e foi impossível ignorá-la.


Especialmente, porque ela parecia falar a meu

respeito.

Não acredito que você conseguiu realmente


seduzir a mamãezinha.

Bem... homens às vezes são meio idiotas, pensei

comigo mesma. Era certo que Henrique tinha comentado


a meu respeito com algum amigo babaca com uma

péssima escolha de palavras.

Era assim que eu pensava, quando o aparelho

voltou a tocar e outra mensagem surgiu na tela.

Para de me enrolar e manda logo foto dela,


Henrique!

Foto?

Uma foto... minha?


Henrique havia combinado de enviar uma foto

íntima minha? Que merda era aquela?

Mais uma mensagem chegou, embrulhando o meu


estômago de vez:

E faça o favor de focar bem nos peitinhos.

— Lu? Está tudo bem aí? — a voz de Henrique


chegou aos meus ouvidos, distante, como se viesse de

algum plano paralelo.

Porque o homem que havia passado a noite comigo


não parecia ser o mesmo que recebia aquelas mensagens
a meu respeito.

— Você disse que o banho seria rápido, não foi? —

Agora a voz já estava mais próxima, me indicando que ele


estava já na porta do banheiro.

Mas eu não consegui olhá-lo. Sequer conseguia


desviar os olhos do celular, relendo a última mensagem e

tentando colocar aquelas informações em ordem.


Então, mais uma chegou:

Sem foto você não ganha a aposta!

Aposta? Ele tinha feito uma aposta sobre... me

seduzir?

Mas... por quê?

Por que eu?

A troco de quê?

Enfim reuni coragem para levantar o rosto e olhá-lo.


Ele parecia tenso, o que me dava uma dica de que nada

daquilo seria um mero engano.

Eu tentei falar alguma coisa, embora nem soubesse

o que deveria dizer, quando o som da campainha chegou


aos meus ouvidos.

Praticamente empurrei o celular contra ele, também


o empurrando no processo para tirá-lo do meu caminho.
Quando saí daquele quarto e desci correndo as escadas,
foi praticamente uma fuga.

Talvez já fosse Daniela levando Sofia para casa e,


nesse caso, eu precisaria me controlar na frente da minha

filha.

Porém, quando abri o portão, vi que era outra

pessoa. Sara estava lá parada na calçada.

E eu não tinha qualquer condição de atendê-la


naquele momento.

— Desculpa, Sara. Eu agora não posso conversar

com você porque...

— Estou desde ontem tentando te ligar! — ela me

cortou, parecendo preocupada.

Bem, na verdade eu nem sabia onde tinha largado


o meu celular quando cheguei em casa e...

As lembranças da noite fizeram a minha cabeça

doer. Aquilo não podia estar acontecendo.


Sara prosseguiu, iniciando o assunto que tinha ido

tratar: — Uma freguesa lá da lanchonete tem um filho que


estuda na mesma escola que Sofia, e...

— Sara, por favor! — eu a interrompi. — Se veio

fazer alguma fofoca ou coisa do tipo, reforço, não é o

melhor momento.

Ela pareceu um pouco ofendida com o meu

comentário e eu não a culpava por isso. Sara não era

necessariamente uma fofoqueira. E ela realmente parecia

preocupada com alguma coisa. Por isso, respirei fundo.

— Desculpe, prima. É que não é um bom momento,

mas... Aconteceu alguma coisa?

— Por que não é um bom momento, Lu? Eu é que

te pergunto, o que aconteceu?

— Em outra hora eu te conto. Até porque... eu


também estou precisando entender. Mas, diga, o que a

freguesa da lanchonete falou?


— Lu, eu te liguei ontem de noite e você não

atendeu, mas achei que tivesse... sei lá, ido dormir cedo,

ou se distraído nos trabalhos na garagem e deixado o


celular dentro de casa. Mas com o que me contaram

hoje... eu realmente temi que algo tivesse acontecido com

você. Porque nada mais justificaria você ter saído da

escola ontem acompanhada por aquele homem que você


odeia se não fosse por alguma ameaça ou coisa do tipo.

Homem que eu odeio?

Ameaça?

Do que ela estava falando?

Então, a voz de Henrique, vinda de dentro da casa,

chamou a nossa atenção.

— Luíza, por favor, a gente precisa conversar... —

ele se calou ao parar na varanda e perceber que eu não

estava sozinha ali.

— Lu, o que esse cara está fazendo aqui? — Sara


perguntou, voltando novamente a minha atenção para ela.
— Você conhece o Henrique, Sara?

Ela piscou várias vezes, parecendo fazer a conexão


de informações distintas.

— Está me dizendo que esse é o seu Henrique? O

carinha com quem você anda saindo é... esse Henrique?

— Repito, Sara: você conhece o Henrique?

Ela respirou fundo.

— O que a moça da lanchonete me disse é que te


viu na festa ao lado de um cara que ela achava familiar.

Ela conseguiu tirar uma foto dele com o celular e mandou

em um grupo de amigas. Uma delas, que é mais ligada às

fofocas da elite da cidade, o reconheceu. Lu... esse cara é


o Henrique Lizano.

Tudo ao meu redor pareceu girar.

Aquilo só podia ser um pesadelo do mais insano

possível.
Enquanto eu tentava me acalmar, Sara continuou a

falar: — Eu não fazia ideia de que ele fosse o seu

Henrique. Quando soube que você saiu da escola ontem

com ele, sabendo que você odeia tudo relacionado à


família dele, as piores coisas vieram à minha cabeça.

Tentei te ligar e você de novo não atendeu, então larguei a

lanchonete e vim ver se estava tudo bem.

Não estava tudo bem. Estava o mais completo


oposto de “tudo bem”.

O ar me faltou e eu não sabia o que fazer ou falar.

Sabia que Henrique continuava parado na varanda, mas

não tinha coragem de me virar para voltar a olhá-lo. Eu só


queria que uma cratera se abrisse sob os meus pés e me

engolisse naquele momento, para eu não ter que lidar com

aquilo.

Porque eu simplesmente não sabia como lidar. Mas


eu sabia que precisaria encarar.

— Sara, eu preciso conversar a sós com ele.


— Lu, você não está bem. Eu não sei o que

aconteceu, mas eu não vou sair e te deixar sozinha com


esse sujeito.

Eu já tinha ficado tempo demais sozinha com ele. O

suficiente para saber que ele provavelmente não pretendia

me matar. Porque ele poderia ter feito isso se quisesse, já


que eu havia me confiado inteiramente a ele.

Porém, eu compreendia a preocupação de Sara. E,

mais do que isso, sabia que eu não ia querer ficar sozinha

quando ele fosse embora.

Por isso, concordei.

— Pode me esperar lá em cima? No quarto da

Sofia?

Ela balançou a cabeça em afirmação e me abraçou,

embora eu não tivesse forças para corresponder ao gesto.

Sentia que não tinha forças para mais nada.


— Qualquer coisa você me grita — ela falou, antes
de entrar.

Percebi que lançou um olhar fuzilador para

Henrique quando passou por ele. Ela era mais do que

apenas uma prima, era também uma ótima amiga e eu


sabia que faria de tudo para me defender do que fosse

necessário.

Mas, naquele momento, apenas eu poderia fazer

minha própria defesa.

*****
Capítulo trinta e oito

"Eu aprendi do jeito difícil Que eles todos dizem coisas que você
quer ouvir E meu coração pesado afunda profundamente Você e

suas palavras deturpadas, sua ajuda só machuca Você não é nada

do que eu pensei que fosse"

(Love Song – Sara Bareilles)

— Henrique Lizano... — pronunciei, enfim criando


coragem para encará-lo.

Aquele homem vestido com jeans e camiseta era o

dono de uma grande rede de lojas. Tinha chegado a ser

meu patrão.
Por que inferno aquele teatro todo?

— Eu vou te explicar tudo, Luíza. Não era para

você descobrir assim.

— Não, né? Talvez você não tenha tido ainda


tempo de tirar uma bela foto dos meus peitinhos para

validar a sua maldita aposta.

— Escuta, foi o meu irmão que mandou aquelas

mensagens. Ele é um completo idiota. Não tem mais


aposta nenhuma.

— Então por que você mentiu sobre quem era?

Meu Deus, você trabalhou comigo na Lizano, sendo o


dono de lá! Todo mundo lá sabia, menos eu, é isso?

Aquela palhaçada da demissão foi um teatro também?

— Não, Lu. O Geraldo não sabia. Ele ainda não me

conhecia, só o Carlos, e...

— Por que eu? Dizem que você é um festeiro

mulherengo, tem qualquer mulher que queira sem

qualquer esforço. Qual era a necessidade de armar todo


um teatro para levar alguém para a cama? E por que
justamente eu?

Ele respirou fundo. Aparentemente, havia

compreendido que não adiantaria seguir mentindo ou

tentar enfeitar as palavras para soar menos cruel – como


se isso fosse possível.

Portanto, foi direto:

— Meu irmão apostou que eu não seria capaz de


seduzir uma mulher sem que ela soubesse do meu

sobrenome ou do meu dinheiro. Foi naquela noite, no bar.

Eu não te conhecia, Luíza. Foi uma escolha aleatória.

Uma escolha aleatória...

Isso deveria fazer tudo soar menos grave?

— Você tem razão, Henrique Lizano: seu irmão é

um idiota. E você não é nada melhor do que ele.

Ele deu um passo à frente, mas estendi a mão

como um sinal para que ele não se aproximasse mais.


— Luíza, me escuta, por favor. Foi um erro, eu sei.

Mas há dias que eu desisti dessa aposta. Tanto que tive


outra oportunidade de fazer algo com você, e não fiz.

— Ah, é claro... Foi mais divertido esperar mais


alguns dias, não é? Para que a idiota aqui tivesse tempo

de se apaixonar ainda mais. Porque, não bastava me


tratar como um pedaço de carne sem valor, você ainda

queria ter certeza de que eu estivesse emocionalmente


envolvida com você o suficiente para sofrer ainda mais
depois que você conseguisse o que queria, não é?

— Não, Luíza. Eu nunca quis que você se

apaixonasse. Assim como eu nunca quis me apaixonar.


Era para ser algo rápido, ainda naquela primeira noite. Ou

no máximo mais dois ou três dias. Mas não aconteceu e


eu fui te conhecendo melhor, e...

Eu não queria mais ouvir nada daquilo. O que ele


estava querendo, depois de tudo? Se divertir ainda mais

com os meus sentimentos?


Eu vinha tentando me manter forte até então, mas

não consegui mais segurar as lágrimas, que começaram a


descer pelo meu rosto, e isso fez com que ele se calasse.

Estaria com pena de mim? Duvidava muito que ele


fosse capaz de ter sequer esse tipo de sentimento.

Passei a mão pelo rosto e tentei voltar a me

concentrar.

— Tirou alguma foto minha? — questionei. Tudo o

que eu menos precisava e ter nudes meus expostos


rolando por aí.

— Não! — ele pareceu até mesmo ofendido com o


questionamento. — Eu não fiz isso, Luíza, eu juro. Olha,

pode conferir.

Ele mexeu no celular, indo para o seu álbum de


fotos da câmera, e me estendeu o aparelho.

Eu o peguei, passando as últimas fotos. Nenhuma


delas era minha, mas a grande maioria era dele em festas,

exibindo garrafas de bebidas ou posando ao lado de


mulheres de biquíni, que pareciam bem felizes em sua
companhia.

Como se fosse possível, aquilo fez o aperto em


meu peito aumentar. Era aquele homem que eu tinha

levado para dentro da minha casa, apresentado à minha


filha...

Foi para aquele homem que eu tinha entregado o


meu corpo e o meu coração?

Respirei fundo, tentando permanecer firme. Eu não


gritaria, não daria um escândalo e não desabaria em um

choro compulsivo na frente dele. Não me humilharia de


mais aquela forma. Tudo o que eu queria era que ele

saísse da minha vida.

Na verdade, queria que nunca tivesse entrado nela.

Pena que isso não era possível.

Devolvi a ele o celular e abri o portão, dando


espaço para que ele passasse.
O filho da puta ainda tentou insistir: — Por favor,
Lu... Vamos conversar. Me deixa te explicar tudo.

— Vá contar ao seu irmão e aos seus amigos como


foi seduzir a mãezinha. Faça o que quiser, Henrique.

Apenas suma da minha vida.

Ele veio em direção ao portão e achei que fosse

realmente atender ao meu pedido e iria embora.

Porém, parou bem diante de mim.

— Eu amo você, Luíza. E amo a Sofia também.

Que inferno! Eu estava me mantendo o mais firme


possível, mas ouvir aquilo me fez desmoronar de vez. Um

soluço escapou pela minha garganta e mais lágrimas

desceram pelo meu rosto.

Até que ponto ele pretendia ir para brincar com os


meus sentimentos? Como ele ousava falar de amor?

Como ousava mencionar o nome da minha filha naquela

conversa sobre seu plano imundo?


Inspirei profundamente e, engolindo o choro,

retruquei.

— Seu irmão estava certo em uma coisa, Henrique.

Um cara que é capaz de fazer com uma mulher isso o que

você fez comigo, realmente não é capaz de conquistar

ninguém por qualquer outro motivo que não seja pelo seu
dinheiro.

Ele pareceu em choque com as minhas palavras,

mas percebi que não iria rebater porque, no fundo, ele

sabia que o que eu dizia era verdade.

Sendo assim, insisti mais uma vez: — Vá embora.

E não me procure mais.

E ele enfim atendeu ao meu pedido e saiu.

Fechei o portão e me virei, apoiando as costas no

muro. Meu peito explodiu em soluços incontroláveis e um


choro intenso enfim veio à tona.

Fui deslizando as costas pelo muro, até me sentar

no chão gramado, onde me encolhi, abraçando meus


próprios joelhos e escondendo o rosto em meio aos

braços.

Era tanta dor dentro de mim que eu não sabia se

aquele choro seria capaz de colocá-la para fora.

*****
Capítulo trinta e nove

“O que não daria para passar meus dedos por seus

cabelos Tocar em seus lábios, abraçá-la apertado Quando

você disser suas preces, tente entender que eu cometi erros,

sou apenas um homem”

(Always - Bon Jovi)

Ela tinha razão. Ela tinha toda a razão.

Afinal, que argumentos eu teria para usar em minha

defesa?
Eu tinha sido um completo idiota, a ideia da aposta

tinha sido a coisa mais esdrúxula que eu já havia topado


na vida e eu não merecia o seu perdão.

Eu só queria ter o poder de passar uma borracha

em Henrique Lizano e poder ser apenas o Henrique-cara-

legal que havia sido colega de trabalho dela em uma loja,


que a ajudou a roubar caixotes, correu ao lado dela atrás

de uma van escolar, passou um dia com ela e sua filha em

um parque e tinha compartilhado com ela uma pizza


semipronta sem graça em casa por não terem grana para

irem a uma pizzaria.

O cara que, na mesma noite, a fodeu como ela

desejava ser fodida, e também a amou como ela merecia

ser amada.

O cara que, quando acordou naquela manhã ao

lado dela, sentia-se o sujeito mais sortudo do mundo e

que só desejava poder fazer aquela mulher feliz.

Porque o Henrique Lizano... o CEO playboy e

mulherengo que apostava na sedução de uma mulher com


mentiras como quem aposta em um jogo de cartas... esse
era apenas um monte de bosta.

Quando saí da casa dela, não consegui ir direto

para a minha. Fui caminhando até o parque e me sentei

na grama, no mesmo local onde havíamos comido


hambúrgueres alguns dias antes.

Avistei uma família caminhando feliz pela pista e,

em um primeiro momento, fui corroído por uma inveja dos

infernos. Porra, como eu queria também poder ter aquilo.

Carros, festas, noitadas, mulheres, todo o dinheiro

do mundo... nada tinha o mesmo valor de uma família.

Nada chegava nem perto daquilo.

Contudo, levou alguns segundos até que eu

reconhecesse a criança que andava no meio do casal. Era

a tal Júlia, a menininha vestida de princesa que implicava

com Sofia na escola. Ela segurava a guia de um cachorro

branco, peludão e frufruzento.

Bufei diante da cena.


— O Joe é realmente muito mais bonito que ele...

— resmunguei.

Que merda... até daquele vira-lata eu estava

sentindo falta. Ele tinha toda a razão ao sempre rosnar


para mim, no fim das contas. Estava tentando proteger a

família dele de um filho da puta mentiroso.

Não era isso o que se devia fazer com as famílias:


protegê-las? Um cachorro sabia disso muito melhor do
que eu.

Passei horas ali, pensando em muitas coisas, mas

sem conseguir encontrar qualquer solução. Luíza não ia


querer me ouvir e, mesmo se quisesse, o que eu poderia
dizer que a fizesse me perdoar?

Já estava quase no final da tarde quando decidi ir

embora. Logo que cheguei à mansão, dei de cara com


Heitor sentado no sofá da sala, com uma taça de vinho em
sua mão. Logo que me viu entrar, o filho da puta teve a

cara de pau de sorrir e falar as piores palavras que


poderia pronunciar naquele momento.
— E aí? Cadê a foto dos peitinhos que eu te pedi?

Eu praticamente voei para cima dele, acertando um

soco bem no meio da sua boca. Desejava quebrar todos


aqueles malditos dentes. A taça escapou de sua mão,
derramando o vinho sobre o sofá branco. E eu estava

pouco me importando com isso.

Eu já ia socá-lo novamente, se não fosse por


Joana, que surgiu nesse momento, me segurando. No
entanto, ela não pôde me impedir de gritar com aquele

infeliz.

— Seu filho da puta! Você nunca mais, nunca mais


ouse falar desse jeito a respeito da Luíza, ouviu bem?

— Menino, acalme-se! — Joana pediu.

Óbvio que uma mulher de meia idade não teria


força suficiente para me deter. Porém, ela se colocou à
minha frente de modo com que eu acabaria machucando-

a caso insistisse em socar Heitor.


E quando ele enfim levantou a cabeça para me
olhar e vi o sangue que se avolumava em sua boca,
confesso que senti-me minimamente vingado.

— Seu filho da puta, o meu casamento é semana

que vem! — ele rebateu, provavelmente frustrado porque


ele fatalmente não sairia muito bonito nas fotos com a
cara roxa.

— Mas o que deu em você, Henrique? — Joana me

perguntou. Embora eu tivesse parado de tentar avançar


em Heitor, ela continuava a me segurar, temendo que eu
voltasse a atacar. — O que o Heitor fez a você?

— Vou te dizer o que ele fez, Joana. Ele teve

aquela ideia esdrúxula de aposta.

— O quê? — Heitor arregalou os olhos. — A ideia

foi sua! Você é que não aceita uma provocação!

Que inferno, eu sabia que ele tinha razão. Mas isso


não aliviava a culpa dele naquilo tudo.
— Por que tinha que me mandar aquelas
mensagens hoje de manhã?

— Mas que mens... Ah, aquelas mensagens. — Ele


enfim pareceu se dar conta da merda que havia feito. —

Cara... ela leu? Não era para ela ler.

— Não era para ninguém ler. Eu exijo que você

respeite a Luíza. Não se atreva nunca mais a falar dela

usando aquelas palavras, como se ela fosse um objeto e


não uma pessoa. Não se atreva nem a pensar nela assim!

— Cara... você está apaixonado por ela. — Não foi

sequer uma pergunta, foi uma constatação.

E exatamente por isso eu não tive qualquer vontade

de negar.

Se fosse há uma semana, usar essa palavra para

se referir a mim seria o mesmo que uma implicância à

qual eu iria querer rebater.

Henrique Lizano, de quatro por uma mulher? Sem


chances! Mas, agora... eu de forma alguma me
envergonhava disso.

— Acho melhor vocês dois conversarem... — Joana


comentou.

Enfim parecendo se sentir segura para isso, ela me

soltou e passou a palma da mão pelo meu rosto, antes de

sair do cômodo.

Como Heitor ainda parecia esperar pela minha


confirmação, dei isso a ele: — É, cara, eu estou

apaixonado. E ela também. Ou ao menos ela estava,

porque você fodeu com tudo com aquelas mensagens


ridículas.

— Como eu podia imaginar que ela iria ler? Achava

que você tinha dormido com ela e caído fora, não foi o que

disse que faria?

Eu quis voltar a socá-lo, mas então me dei conta de


que, nesse ponto, eu seria injusto. Eu realmente disse que

faria aquilo.
Sentindo-me cansado demais, deixei-me cair

sentado no sofá ao lado do meu irmão.

— E então, o que você vai fazer agora? — ele

questionou.

— O que eu posso fazer? Eu magoei demais a


Luíza, ela nunca vai me perdoar.

— E você vai entregar os pontos tão fácil assim?

Cara, eu nunca te vi assim antes. Se está mesmo

apaixonado por ela, precisa lutar por isso.

— Como? Ela não quer me ouvir, não quer me ver.

Fui olhar o contato dela no celular pensando em enviar

alguma mensagem, e percebi que ela me bloqueou.

— Bem, talvez você deva dar um tempo a ela.

— Devo dar um tempo ou lutar? Decide! Heitor,


você namora a mesma garota desde o ensino médio, não

é possível que não entenda de mulheres.


— Exatamente: a mesma garota. Éramos pouco

mais do que duas crianças quando começamos a


namorar, praticamente amadurecemos juntos. Nós

sabemos lidar um com o outro. As vezes que tentei mentir

para Bruna por qualquer razão besta ela percebeu na


mesma hora.

— Só que eu comecei com uma mentira, Heitor.

Fingi ser um cara que eu não era. E foi por esse cara que

a Luíza se apaixonou, e não pelo Henrique Lizano.

— Então, quando estava com ela você se


comportava de forma diferente? Fingia gostar do que não

gosta? Mentia sobre suas opiniões? Fingia estar feliz

quando não estava?

— Não. Eu só menti sobre meu trabalho e a


situação financeira da minha família. De resto, eu...

sempre fui sincero demais ao lado dela.

Demais mesmo. Mais do que com qualquer outra

pessoa.
Na verdade, antes de conhecer Luíza eu sequer

sabia que poderia me sentir feliz com tantas coisas tão

aparentemente banais. Acho que, ao lado dela, eu acabei

conhecendo um lado meu que eu sequer sonhava


conhecer.

E eu gostava desse outro lado. Achava muito

melhor do que o festeiro egoísta que eu costumava ser.

— Se é assim, meu irmão, foi exatamente por você


que ela se apaixonou. E, apesar de você provavelmente

não querer ouvir nada a respeito disso, eu preciso dizer

que isso sem dúvidas te faz ganhador daquela aposta.

É, eu realmente não queria mais ouvir nada a


respeito daquela merda de aposta.

— Eu não quero aquela porcaria de quadro. Nem

gosto dele tanto assim, pode levá-lo com você —

resmunguei.

E eu até preferia que fosse assim. Olhar para


aquele quadro sempre me faria lembrar da ideia mais
estúpida que já tive em toda a minha vida.

E eu que achava que a aposta do cavalo tinha sido

o nosso auge...

— Isso quer dizer que eu vou poder ficar com o seu

carro?

— Não. Sofia comentou comigo uma vez que o

acha legal, prometi que algum dia a levaria para dar uma
volta nele.

— Sofia? É a filha da Luíza?

— É. Ela é uma menina incrível. E tão inteligente.

Tem que ver como ela é boa de lábia e de negociações.

Seria uma ótima gestora de empresas. Mas também daria


uma ótima atriz. Tinha que vê-la fazendo papel de árvore.

— Onde você viu a menina fazendo papel de

árvore?

— Em uma peça da escola dela.


— Foi a uma apresentação na escola dela? Então
você não apenas está de quatro pela Luíza, como também

já praticamente adotou a filha dela como sua?

A ideia me parecia tão maravilhosa que, mesmo eu

me sentindo um bosta de ser humano, eu consegui sorrir.

— Eu seria o homem mais feliz do mundo sendo

pai daquela coisinha chantagista.

Lembrei do que Luíza me contou, sobre Sofia ter

dado o dinheiro que dei a ela quando a conheci para a


mãe juntar com a poupança para a loja. Certamente era

por isso que ela seguia me exigindo dinheiro para guardar

o nosso segredo.

Ela queria, mais do que tudo, ajudar a realizar o


sonho da mãe. Como não se orgulhar de uma criança

como aquela?

— Então, acho que talvez você deva fazer as duas


coisas, irmão. Primeiro, dê um tempo a ela. Alguns dias
para ela respirar e a raiva reduzir um pouco. E, então,
você luta por ela.

Embora a ideia não fosse boa, também não era


necessariamente ruim.

Era inegável que Luíza precisava de um tempo,


mas eu não iria passá-lo de braços cruzados. Eu o usaria

para mudar o que fosse preciso e mostrar para ela que eu


tinha me tornado um homem melhor.

Que ela tinha me transformado em um homem


melhor.

*****
Capítulo quarenta

“Pare de brincar com meu coração Eu já deveria saber

desde o início Você sabe que você tem que parar Você está

nos separando”

(Quit playing games - Backstreet Boys)

Eu não sabia quanto tempo havia se passado.

Desde que Henrique foi embora, eu vi o dia virar

noite, e então virar dia de novo e eu simplesmente não


sentia vontade para nada.
Logo que ele se foi, contei tudo a Sara e chorei no

colo dela. Eu era grata demais por ela estar ali, porque ela
recebeu a Sofia quando voltou da casa da amiguinha e

cuidou dela e de tudo na casa enquanto eu estava no

escuro do meu quarto, mergulhada na minha depressão.

Parecendo combinar com o meu humor, o tempo


havia mudado drasticamente com a chegada de uma

frente fria, meio incomum para um início de primavera. As

temperaturas haviam caído muito, o que contribuía para


que eu ficasse ainda mais enraizada naquela cama.

Já fazia algum tempo que tinha voltado a clarear

quando acabei adormecendo e sonhando com Henrique.

Que droga! Eu não conseguia ter paz nem quando


pegava no sono.

Acordei quando voltava a anoitecer, com Sara

entrando no meu quarto, trazendo uma bandeja com o

jantar. Ela vinha cuidando de mim como quem cuida de


uma pessoa doente. Era assim que eu me sentia, no fim

das contas: com o coração terrivelmente machucado.


Sentei-me e ela deixou a bandeja à minha frente,
sentando-se na cama ao meu lado.

— Como está se sentido? — ela repetiu a pergunta

que fazia sempre que entrava no meu quarto.

— Péssima. Você está há três dias fora de casa e

com a lanchonete fechada por minha causa.

— Ontem foi domingo, eu fecharia mais cedo de

qualquer forma.

Já era segunda-feira? Quando falei dos três dias,

tinha sido apenas um chute, mas aparentemente eu

estava certa. Era sábado quando tudo aquilo aconteceu.

— Certo. Dois dias e meio — corrigi. — Não é justo

estar deixando a sua vida de lado para cuidar de mim.

— Não estou fazendo nada que você não faria por

mim, Lu.

É claro que faria, sem pensar duas vezes. Minha

mãe e meus tios, pais da Sara, moravam em outra cidade,


então nós éramos a família próxima uma da outra.

Por falar em família...

— E a Sofia?

— Ela está bem. Só está preocupada com você.

— Como que ela ainda não veio aqui no quarto

para perguntar como eu estava?

— Porque eu contei a ela que você está com uma


gripe muito forte e muito contagiosa e que não queria que
ela entrasse aqui para não pegar.

Mesmo sentindo uma tristeza tão profunda, eu ri

levemente. Tinha sido uma mentira boa, no fim das


contas.

Bem... não que qualquer tipo de mentira fosse


efetivamente algo bom. Mas tudo o que eu menos

precisava era da minha filha vendo a mãe naquele estado


deplorável.
Mesmo a contragosto, comecei a comer. Sara

estava fazendo de tudo por mim, seria muito ingrato da


minha parte renegar sua comida – que sempre era tão

deliciosa – por não estar sentindo a mínima vontade de


me alimentar.

E, também, porque por mais que eu não sentisse


fome alguma, eu sabia que deveria me esforçar a fazer o

mínimo por mim mesma. Eu tinha uma filha para criar


sozinha, afinal de contas.

Enquanto eu comia, Sara tentou me distrair


contando histórias engraçadas como sobre quando Joe

roubou o seu pão no café da manhã. Forcei-me a sorrir


com aquilo e consegui comer a maior parte da comida

posta no prato.

Então, anunciei.

— Eu estou bem, prima. Vou me levantar dessa

cama, tomar um banho e sair desse quarto para fazer


companhia à minha filha. Amanhã volto a trabalhar no bar,
não vou estragar essa última noite que tenho com ela.
— Tem certeza de que vai ficar bem? Posso dormir
mais essa noite aqui, sem problemas.

— Tenho, sim. Você já fez muito por nós e eu


agradeço demais.

— Tudo bem, então. Vou até deixar a louça para


você lavar. A Sofia fez as minhas unhas, não quero

estragá-las.

Ela exibiu as mãos que só agora eu via que

estavam com as unhas borrocadas com diferentes cores


de esmalte. Novamente, não pude conter um leve riso.

— Obrigada mesmo por tudo. E pode deixar a louça

comigo, não quero que estrague essas unhas


maravilhosas.

Ela também sorriu, mas logo ficou séria, parecendo


se lembrar de algo.

— Sabe, Lu... Eu estive pensando em uma coisa.


Pensei em conversar com a Sofia, mas achei melhor falar

a respeito com você antes.


— O quê? — Fiquei preocupada.

— É que... Você sabe que eu apenas vi o Henrique

Lizano uma única vez, não é? E ainda assim bem rápido.

A simples menção ao nome dele fez o meu peito


doer, mas não fugi do assunto porque entendi que devia
ser algo importante.

— Sim, eu sei. Foi quando a... — detive-me antes

de completar minha fala.

Estive tão imersa em minha própria tristeza


naqueles últimos dias que sequer havia me lembrado

daquele detalhe.

— Foi quando ele quase atropelou a Sofia —

completei. — Mas ela deve ter visto ele muito rápido


também, não é?

— Não exatamente, Lu. Ele saiu do carro, se

aproximou e conversou por alguns minutos com ela. Sofia

pode ser muito pequena, mas ela tem uma memória visual
até melhor do que a minha. Quando ela ficava comigo na
lanchonete aos sábados, ela sempre se lembrava dos

clientes, mesmo os que ela tinha visto antes uma única


vez.

— O Henrique veio aqui em casa apenas alguns

dias depois dessa situação. Estranho que ela não tenha

se lembrado dele.

— Também pensei nisso. Fiquei preocupada. Será

que ele a ameaçou para que não contasse nada a você?

— Não — eu o defendi mais rápido do que gostaria.

Eu realmente não acreditava que ele pudesse ter

feito isso, mas sabia que pensar assim me fazia ser ainda
mais estúpida. Aquele homem havia mentido para mim,

passou dias ao meu lado representando um personagem.

Não era digno da minha confiança.

Porém, havia outro motivo para eu não acreditar


naquela hipótese.

— A Sofia é muito transparente. Ela realmente

gosta muito do Henrique, não é fingimento. Não acho que


ele a ameaçou, mas...

— Talvez a tenha convencido.

— Não. Sem chance. Eu vou conversar com ela.

Vou descobrir o que aconteceu. Talvez, na ocasião do

quase atropelamento, ela tenha ficado tão assustada que


não prestou tanta atenção ao rosto dele.

Provavelmente era isso. O que mais seria?

Sara concordou. Antes, de sair, no entanto, ela

contou mais uma coisa: — Chegaram flores para você.


Ontem e hoje. Vieram com cartões. — Ela levou a mão ao

bolso do casaco, tirando dois pequenos envelopes de lá e

deixando sobre a minha mesa de cabeceira. — As flores

eu coloquei em vasos com água.

— Podia ter jogado fora — resmunguei.

Perguntava-me por que aquele homem continuava

insistindo. Levar-me para a cama já não bastava para

vencer sua tão estimada aposta? O que ele pretendia?


Brincar ainda mais com os meus sentimentos?
Sara se aproximou, depositando um beijo em meu

rosto, e então foi embora.

Respirando, sabendo que precisava reunir coragem

para seguir em frente com a minha vida.

Não era a primeira vez que eu precisaria fazer isso,

afinal.

*****
Capítulo quarenta e um

"Você e eu fizemos uma promessa Na alegria ou na tristeza Não


acredito que você me decepcionou Mas a prova está no jeito como

isso dói"

(I'm Not The Only One - Sam Smith)

Reunindo coragem, consegui me levantar da cama


e fui para o banheiro do meu quarto, onde tomei um bom

banho.

Era impossível ignorar as lembranças dos

momentos de prazer que vivi embaixo daquele chuveiro


com Henrique. E isso se misturava às memórias do
momento em que, naquele mesmo banheiro, eu tinha lido

no celular dele as tais odiáveis mensagens.

Lutando para tentar desvencilhar tudo aquilo da


minha mente, eu terminei o meu banho, escovei os dentes

e saí.

No corredor, parei diante da porta entreaberta do

quarto de Sofia, vendo-a sentada na cama diante de Joe,


brincando com duas bonecas enquanto conversava com

ele. Logo que me viu, ela abriu um enorme sorriso e pulou

da cama, vindo abraçar as minhas pernas.

— Mamãe, você está melhor?

Eu a peguei no colo, no mesmo momento em que

Joe também se aproximou, começando a pular sobre mim,

demonstrando estar feliz em me ver.

Como eu poderia não me sentir melhor sendo

cercada por todo aquele amor?

— Estou sim, meu amor. Desculpe por ter ficado

esses dias longe de você. Certo, Joe, de você também.


Acalme-se, garoto. Eu também senti a sua falta!

Levei Sofia até a cama e a coloquei sentada lá,

sentando-me ao seu lado. Joe se aninhou no meio de nós

duas, virando com a barriga para cima para receber

carinho. Passamos alguns minutos rindo e brincando com


ele, até que senti que era o momento de conversar com a

minha filha.

— Sofia, a mamãe precisa falar sério com você

agora.

Ela piscou, preocupada.

— O que aconteceu, mamãe?

Pensei em como iniciaria aquele assunto.

E se Sofia realmente não soubesse de nada?

Como explicar para uma criança de seis anos que o cara

legal que ela tanto gostava era um mentiroso e que a


partir de agora estaria definitivamente fora das nossas

vidas?
Eu não sabia como iniciar aquilo, por isso tentei

uma estratégia para ganhar um pouco de tempo.

— Você já escovou os seus dentes depois do

jantar?

— Ainda não, mamãe. O Joe me chamou pra


brincar e acabou me distraindo.

Eu sabia que Joe não deveria estar nada


interessado em brincar com Barbies – a não ser que fosse

para arrancar e mastigar as cabeças delas – mas


obviamente não contestei tal informação.

— Bem, então agora que o Joe parou de brincar de


bonecas para ganhar carinho na barriga, que tal a

senhorita ir escovar esses dentes?

Ela assentiu e, empolgada, deu um pulo da cama,


correndo para o banheiro. Continuei ali, alisando a barriga
de Joe e tentando pensar em como eu iniciaria aquele

assunto delicado com a minha filha.


— Você bem que tentou me alertar, não é, Joe? —

perguntei, lembrando que ele não parecia simpatizar com


Henrique. — Bem dizem que animais têm sexto sentido,

eu deveria ter dado atenção ao seu.

Suspirei, desanimada, percorrendo os olhos pelo

quarto. Eu tinha montado a estante de Sofia no dia


anterior à sua festa da escola, e aquilo deveria servir para

melhorar a organização do quarto, mas não era


exatamente o que acontecia.

Estava tudo uma bagunça. Sofia tinha deixado suas


bonecas caírem, e alguns de seus livros escolares

também estavam jogados no chão, próximos à sua


mochila que estava com os bolsos todos abertos.

Em geral, eu orientaria Sofia a recolher tudo do


chão, dando-lhe um rápido sermão sobre cuidar bem das

suas coisas. Contudo, eu estava prestes a partir o


coraçãozinho da minha filha a respeito de Henrique, então

poderia aliviar na bronca pela bagunça dessa vez.


Levantei-me e fui recolher as bonecas, colocando-
as no cesto de brinquedos. Fiz o mesmo com os
cadernos, guardando-os dentro da mochila e começando

a fechar o zíper dos compartimentos. Levava a mão antes


a cada um dos bolsos, verificando se o restante do

material estava todo ali.

Havia um bolsinho pequeno na frente, onde ela

geralmente não guardava nada, já que era estreito demais


para caber ao menos um lápis. Porém, sem pensar muito

a respeito, apenas segui o padrão do que fazia nos outros


bolsos antes de fechá-los, e me surpreendi quando meus
dedos encostaram em algo feito de papel.

Puxei, acreditando que fossem folhas de caderno

dobradas, e me surpreendi com o que vi saindo de lá.

Era dinheiro.

Várias notas de dinheiro.

Onde minha filha teria conseguido aquilo?

A resposta que me veio à mente me aterrorizou.


Sofia voltou ao quarto nesse momento.

Ela parou e o sorriso em seu rosto se desfez

quando me viu com aquelas notas nas mãos.

— Sofia, onde você conseguiu esse dinheiro? —


perguntei pausadamente.

Ela não respondeu. Parecia assustada, com medo

de que eu brigasse com ela.

Respirei fundo, tentando manter a voz no mesmo

tom baixo.

— Sofia... Aquele moço que quase te atropelou


naquele dia... o dono da Lizano... Você sabia que ele era o

Henrique, não é?

Ela movimentou a cabeça em uma confirmação.

Aquilo fez a dor em meu peito aumentar ainda


mais.

A pergunta que eu faria a seguir era difícil, mais

precisava ser feita.


— Por acaso ele te deu todo esse dinheiro para que

você não contasse para mim que já o conhecia?

— Ele disse que era só por alguns dias, até que

você acreditasse que a Loja Lizano é legal.

— E o que mais ele te disse?

— Que ele ia gostar de namorar com você, mas se

você soubesse quem ele era, ia brigar com ele.

Inferno!

Levantei-me, furiosa, passando a caminhar de um

lado a outro do quarto, em uma tentativa inútil de

descontar em meus passos aquela raiva.

Não estava dando certo.

— Quantas vezes eu tenho que te dizer, Sofia, que


você não deve aceitar dinheiro de estranhos?

Ela continuava com os olhinhos arregalados, mais

assustada do que antes.


— Mas você disse que ele era seu colega de

trabalho, mamãe. Então ele não era um estranho.

— Ainda assim, Sofia, você não devia aceitar o

dinheiro. Especialmente porque ele te mandou mentir para


mim. E eu sou sua mãe, você não pode mentir para mim.

— Desculpa, mamãe...

Ela abaixou o rosto, triste, e isso acabou comigo.

Depois de tudo, Henrique Lizano seguia destruindo

o meu emocional, agora por conta de ter subornado a


minha filha.

Que inferno, ela era só uma criança. Como ele

pôde ter chegado tão baixo?

E, mesmo sendo tão pequena, eu não conseguia

deixar de me sentir de certa forma traída pela minha


própria filha.

Mas não conseguia culpá-la por isso, apenas a mim

mesma. Onde eu havia errado para que Sofia


concordasse com a ideia de um estranho de mentir para

mim?

Eu não tinha condições emocionais de continuar

aquela conversa naquele momento. Então, respirei fundo,

e ainda controlando o tom de voz, pedi: — Vá para a

cama, Sofia. Amanhã, antes de você ir para a escola, nós


conversaremos sobre tudo isso.

— Tá brava comigo, mamãe?

— Eu não estou brava, Sofia. Estou triste. É

diferente. Anda, vá para a cama.

Ela me obedeceu. Joe desceu, indo se deitar em


sua caminha ao lado da cama dela.

Cobri Sofia com um edredom, já que estava bem

frio naquela noite e, como de costume, depositei um beijo

em sua testa e lhe desejei boa noite, saindo.

Fui para o meu quarto e voltei a me afundar na


cama. E a chorar, desejando que Henrique Lizano nunca

tivesse aparecido nas nossas vidas.


*****
Capítulo quarenta e dois

“Você é o único que eu desejo poder esquecer O único

que eu adoraria não perdoar E apesar de você partir meu

coração, você é o único”

(Broken-Hearted Girl – Beyoncé)

Em determinado momento da noite, esgotada de

tanto chorar, eu acabei pegando no sono.

E fui, durante toda a noite, atormentada por sonhos


confusos, desordenados em angustiantes.
Com isso, acordei ainda bem cedo. Não deviam ser

nem mesmo seis da manhã e, com o agravante do tempo


chuvoso e do frio que vinha fazendo, do lado de fora da

janela ainda estava tudo escuro.

Naquele dia, eu voltaria ao meu velho emprego no

bar – de onde eu, talvez, sequer devesse ter saído. Ainda


não estava na hora de Sofia começar a se arrumar para ir

à escola e, com isso, eu poderia ter me dado ao luxo de

passar mais algum tempo na cama.

Contudo, eu já estava cansada de ficar ali. Por isso


me levantei, tomei um banho rápido e escovei os dentes.

Sabia que a louça do jantar ainda estaria me

esperando na cozinha, e além disso também queria


preparar um café para tomar enquanto aguardava que

Sofia acordasse para podermos conversar.

Não queria ser muito dura com ela, mas também

não poderia deixar aquilo para lá. O que ela fez tinha sido
grave, e precisava dizer isso a ela de modo que fosse

compreensível para os seus seis anos de idade.


Eu já tinha dito a ela, tantas e tantas vezes, sobre o
quanto era errado mentir – especialmente para mim – e

sobre nunca aceitar dinheiro de estranhos. No entanto, ela

havia sido também seduzida pela atuação de ‘cara legal’

de Henrique.

Ela já teria, infelizmente, uma punição muito cruel

por aquilo, que seria a de saber que Henrique estava

definitivamente fora das nossas vidas.

Saí do meu quarto na intenção de descer direto

para a cozinha, mas parei ao perceber que a porta do


quarto de Sofia estava entreaberta.

Decidi dar uma olhada para ver se ela estava bem

coberta – afinal, ainda estava muito frio.

E foi com surpresa que encontrei a cama dela

vazia.

Entrei no cômodo, olhando-o por completo – até


mesmo embaixo da cama. Nem ela nem Joe estavam lá.
Sofia não costumava acordar tão cedo, então me

preocupei pensando em se a cabecinha dela estaria tão


atordoada com a nossa breve conversa na noite anterior

que isso a fez perder o sono.

Reparei que as pantufas dela não estavam ao lado

da cama, como costumavam ficar. Ela devia ter levantado


e ido para a sala ou para a cozinha.

Desci as escadas, chamando por ela. Quando


cheguei à sala, reparei que as chaves estavam na

fechadura da porta e esta estava destrancada. Sara não


teria deixado aquilo assim, já que ela tinha as chaves da

minha casa, para emergências, e ela não teria ido embora


na noite anterior sem trancar tudo por fora.

Imaginei, então, que Sofia tivesse ido para a


garagem, embora o local provavelmente estivesse bem

frio. Saí, indo até lá na certeza de que a encontraria.

Uma onda de pânico tomou conta de mim ao ver

que ela não estava lá.


— Sofia! — gritei insistentemente, correndo ao

redor da casa pelo lado de fora, reforçando em minha


mente que ela precisava estar em algum lugar por ali.

Parei ao lado do portão e, ao olhá-lo, meu


desespero se tornou ainda maior.

A chave dele também estava ali, do lado de dentro,

e ele estava destrancado.

— Sofia! — voltei a gritar, em pânico, mesmo

sabendo que não obteria qualquer resposta.

Minha filha não estava mais lá.

*****
Capítulo quarenta e três

"Segure minha mão Tudo vai ficar bem Ouvi os Céus dizerem que

as nuvens têm estado cinzas Me traga para perto de você Me

envolva em seus braços que doem Vejo que você está sofrendo,
por que demorou tanto Para me dizer que você precisa de mim?"

(Hold my hand - Lady Gaga)

Os olhos de Cátia brilhavam enquanto ela passava

as fotos impressas que eu mostrava para ela,


devidamente organizadas em uma pasta.

Eu sabia bem que não havia como ter erros

naquilo. Nenhuma pessoa com um mínimo de senso


estético deixaria de achar aquelas peças lindíssimas.
— Senhor Henrique, isso é... sensacional...

Já devia ser a terceira vez que ela repetia aquilo, e

eu sorria em todas elas. A espaçosa sala de reuniões da


sede da empresa costumava receber grupos grandes,

mas hoje era ocupado por apenas nós dois.

Cátia era a Executiva de Vendas, e toda e qualquer

marca, fábrica ou fornecedor que fosse ter seus produtos


à venda nas Casas Lizano precisava antes passar pelo

aval dela.

O horário era um tanto incomum. Nosso encontro

foi marcado para as oito da manhã, porque eu teria uma

agenda bem extensa naquele dia.

Quando terminou de ver as fotos – que eu havia

imprimido do Instagram de Luíza – ela enfim levantou uma

questão: — Mas não será possível uma produção dessas

peças em escala, não é?

— Não. Mas é daí que vem o encanto, Cátia. Cada

uma dessas peças será exclusiva. Podem ter conceitos


parecidos, mas nenhuma jamais será idêntica à outra.
Vamos atingir uma parcela do público que prefere a

originalidade ao preço em conta. Será uma linha exclusiva

dentro da Lizano.

— E com isso podemos atingir um público das


faixas A e B, que em geral não são clientes da Lizano —

ela completou, compreendendo onde eu pretendia chegar.

— Preciso fazer uma reunião com o meu pessoal e decidir

toda uma estrutura de logística para fazer isso funcionar.

Mas acho que tem tudo para dar certo.

— Então, deixo isso por sua conta.

— Já conversou com a moça a respeito?

— Ainda não. Quero estar com todo o projeto

pronto para já apresentar tudo a ela.

— Conte comigo para isso — ela declarou, abrindo

seu maior sorriso profissional.

Nos despedimos e voltei ao meu escritório.


Aquela tinha sido, ainda, a minha primeira reunião

do dia, mas várias outras ainda viriam. Além das decisões


corriqueiras a respeito da loja, eu vinha me focando em

questões que, para mim, passaram a ser fundamentais ali.

Já estava orgulhoso por uma coisa que já estava

devidamente resolvida: o lixo produzido por nossas lojas


não seria mais descartado de qualquer maneira.

Todo o material passaria a ser separado e enviado


a cooperativas de reciclagem. Uma boa parte deles seria

inclusive utilizado em nossa fábrica. Já estava sendo


iniciado o projeto de linhas de itens feitos a partir de

material 100% reciclado. Com matéria prima vinda das


nossas próprias lojas.

Eu me sentia uma toupeira por nunca ter pensado


em algo tão simples.

Meu celular tocou e, como sempre, peguei-o na


esperança de que fosse Luíza. Mas o número era o da

minha casa. Então, só poderia ser uma pessoa.


— O que houve, Jojo?

— Não te vi essa manhã, querido. Estou ligando

para saber como você está.

Estava dividindo a atenção entre o telefone e o

computador, mas não pude evitar sorrir diante da


preocupação. De fato, eu tinha saído tão cedo de casa

que não tinha visto Joana, mas isso em qualquer outra


ocasião não a teria deixado preocupada. Eu sabia que ela
andava assim por conta da minha situação com Luíza.

— Estou bem, Jojo. Acabei de sair de uma reunião

com a executiva de vendas, e acho que vamos conseguir


fechar um projeto para trabalhar com os móveis feitos pela

Luíza.

Sim, eu já tinha conversado com ela a respeito

disso. Joana tinha virado minha conselheira. Eu falaria


com Heitor, mas ele estaria completamente ausente pela

próxima semana, já que seu casamento estava se


aproximando e ele tinha ainda muitas coisas para resolver
junto a Bruna.
Logo após a festa, eles viajariam para sua lua de
mel e seguiriam depois direto para sua nova casa nos
Estados Unidos. O período de transição havia chegado ao

fim e eu já era oficialmente o novo CEO da Lizano.

— Rique, isso é ótimo, mas... — a pausa dela me


deu uma dica de que viria um leve puxão de orelha na
sequência. — O certo não seria você antes falar com a

Luíza?

— Eu quero estar com tudo no esquema, para fazer


uma surpresa. — Isso é, claro, se ela aceitasse conversar
comigo e se aceitasse o meu perdão.

E eu realmente não esperava mais do que essas

duas coisas. Óbvio que eu queria o amor daquela mulher,


e que estava disposto a lutar por isso. Mas se ela ao
menos pudesse me perdoar, ainda que não aceitasse ter

mais qualquer relacionamento comigo, eu faria aquilo por


ela.

Luíza era talentosa e havia muito amor no que ela


fazia. Poder ganhar a vida vendendo seus móveis era o
seu sonho, e eu faria de tudo para que ela o realizasse.

— Não é o tipo de coisa que se faz de surpresa,

meu filho. Você antes precisa saber se ela vai aceitar ou


não.

— Eu sei, Jojo. E é claro que eu pretendo falar com


ela. Estou fazendo o que Heitor sugeriu, dando algum

tempo a ela.

— Eu sei, querido. Ela provavelmente precisa


mesmo de um tempo.

— Mas acho que ela poderia me mandar uma

mensagem em resposta aos bilhetes.

— Que bilhetes?

— Os que estou mandando com as flores.

— Está mandando flores para ela?

— Um buquê por dia. Fiz mal?


— Henrique, em que mundo perturbar todos os dias

a moça com entregas é dar um tempo a ela?

Ué... e por que não seria?

Que merda, eu estava querendo ser romântico.

Será que tinha de novo feito tudo errado?

— Eu só quero que ela saiba que... quando ela

estiver pronta para conversar, eu estarei aqui esperando


por ela.

Joana fez um instante de silêncio, até que suspirou.

— Tudo bem, meu querido. Eu compreendo. Você

está se esforçando para ser alguém melhor por ela. Estou


certa de que isso fará diferença. Bem, preciso desligar.

Tenho que sair para fazer compras. Quer algo em

especial?

O perdão de Luíza, infelizmente, não poderia ser

comprado em um mercado. Sendo assim, eu neguei e


agradeci pela preocupação dela.
Assim, encerramos a ligação e voltei a me focar

nas planilhas exibidas no computador. Após alguns

minutos, o celular voltou a tocar e, dessa vez, o atendi


sem sequer olhar o visor, acreditando que fosse

novamente Joana. Contudo, a voz que ouvi do outro lado

da linha fez o meu coração parar de bater por um instante.

— Henrique?

Meu Deus... era ela.

Apertei o telefone com mais força, como se dessa


forma pudesse impedir que ela me escapasse novamente.

— Lu? ...Lu, que bom que você...

— A Sofia... — ela me interrompeu, parecendo

aflita.

Novamente, foi como se eu tivesse uma breve


parada cardíaca.

Tinha acontecido alguma coisa a Sofia?

— O que tem a Sofia?


— Ela está com você?

O que era aquilo? Uma acusação de sequestro ou


coisa do tipo?

Espera... se ela estava me perguntando isso... Ela

não sabia onde estava a filha?

— Não, Luíza, ela não está comigo.

— Por favor... se ela procurar por você...

— Como assim procurar por mim, Luíza? O que


aconteceu?

A resposta veio junto a um choro aflito.

— Ela sumiu. Tudo leva a crer que ela fugiu, mas...

Já liguei para todos os lugares onde ela poderia estar. E

só me faltou ver se ela tinha ido procurar por você.

Sem tirar o telefone do ouvido, eu me levantei, já


começando a desligar o computador e me preparando

para sair e procurar por Sofia, embora nem fizesse

qualquer ideia de por onde deveria começar.


Uma hipótese me ocorreu e contei a Luíza: — Se

ela tentou procurar por mim, ela não saberia onde é meu

escritório. Mas ela sabe que sou dono da Lizano, então

pode achar que meu trabalho é...

— Na loja... — Ela completou, aflita.

— Na loja — confirmei.

— Eu vou para lá.

— E eu te encontro lá.

Antes que ela pudesse sequer pensar em dizer que

eu não precisaria ir, eu desliguei a ligação e saí.

Praticamente voei para a loja, o mais rápido que


pude, enquanto desejava com todas as minhas forças que

Sofia estivesse lá.

*****
Capítulo quarenta e quatro

“Eu não te odeio Não, eu não poderia mesmo que

quisesse Eu só odeio toda a dor que você me fez passar”

(Wrong Direction - Hailee Steinfeld)

Aquelas tinham sido as horas mais angustiantes de

toda a minha vida.

Minha primeira reação ao ver que minha filha havia


saído de casa sozinha foi abrir o portão e também sair

pela rua.
Pensei em para onde Sofia poderia ter fugido

procurando por um refúgio, então fui direto para a casa


daquela que era a nossa única família na cidade, a Sara.

Devido ao horário, a lanchonete ainda estava

fechada, então toquei a campainha da casa da minha

prima, que ficava bem ao lado. Eu tinha as chaves da


casa dela – assim como ela tinhas as da minha – mas saí

tão aflita que nem tinha me lembrado de pegá-las.

Ela me atendeu totalmente sonolenta, mas logo

ficou em alerta quando eu contei o que havia acontecido.

E, não, para o meu desespero, Sofia não tinha ido

para lá.

Queria percorrer as ruas à procura dela, mas Sara

me alertou que seria mais eficaz eu ir para casa, porque

Sofia poderia voltar para lá a qualquer momento.

Enquanto aguardava, eu poderia telefonar para todas as

pessoas que conheciam a minha filha e para onde ela


poderia ter ido, enquanto Sara faria uma busca pelas ruas

do bairro.
Estava ainda muito cedo e, com exceção de
algumas padarias, os estabelecimentos comerciais

estavam ainda fechados.

Fiz o que Sara sugeriu e retornei para casa.

Confesso que tive esperanças de que minha menina


estivesse de volta, mas isso não aconteceu.

Liguei para todos os contatos que eu tinha. Mandei

uma mensagem no grupo do WhatsApp dos pais dos

alunos da turma de Sofia, mas não esperei que eles

visualizassem e telefonei para um por um, perguntando se


minha filha teria ido para a casa de algum deles.

Nenhum deles sabia de nada a respeito dela.

Tinha acabado de ligar para o último dos contatos

quando ouvi um barulho no portão, indicando que alguém

o abria. Corri até a varanda, esperançosa, mas senti como

se o chão embaixo de mim voltasse a desabar ao

constatar que não era Sofia. Era Sara. Pela expressão em

seu rosto, ela não tivera sucesso em sua busca.


— Falei com os donos de algumas padarias e

lanchonetes que já estavam abertas, estão todos


espalhando fotos da Sofia por seus grupos de contato.

Alguém vai encontrá-la, Lu. Tenha fé.

Era difícil ter fé quando minha filhinha pequena

estava sozinha em algum lugar lá fora, naquelas ruas


geladas.

Eu não ia suportar continuar parada ali esperando,


precisava fazer alguma coisa. Mas estava tão atordoada

que sequer sabia por onde deveria começar.

Sara percebeu isso e me auxiliou.

— Eu vou voltar a procurar nas ruas, mas antes vou

ligar para a polícia. Já ligou para todo mundo que a


conhece?

— Tirando a minha mãe, para todo mundo.

Minha mãe tinha quase sessenta anos e era


hipertensa, se eu ligasse para contar o que estava

acontecendo correria o risco de ela ter um troço. Ela


morava em outra cidade bem distante, não havia

possibilidade alguma de Sofia ter ido para lá.

— E para o Henrique? — a pergunta de Sara me


pegou de surpresa.

— Acha que ela pode ter ido atrás dele?

— É claro que eu acho. E, mesmo que não tenha


ido... Ele é o cara mais rico dessa cidade, Lu. Certamente
tem muito mais recursos do que nós para mobilizar as

buscas por uma criança desaparecida.

Se, por um lado, eu era a pessoa mais orgulhosa


do mundo, por outro, eu passaria por cima de qualquer
coisa para proteger a minha filha. Não importava o que

tinha acontecido entre Henrique e eu, tudo o que ele tinha


feito para mim e como eu realmente desejava nunca mais

ter qualquer contato com ele, muito menos dever favores a


ele.

Porém, nada disso poderia ter qualquer importância


naquele momento.
Por isso, enquanto Sara discava para a polícia do
seu celular e entrava para a sala com o aparelho no
ouvido, eu me mantive de pé ali na varanda e olhei para a

visor do meu celular.

Busquei pelo telefone de Henrique entre os


contatos bloqueados, desbloqueei o número e realizei a
ligação.

Enquanto a chamada era completada, uma onda de

medo correu o meu corpo.

Quem me atenderia? O Henrique legal que eu tinha

conhecido e que mexeu com o meu coração como há


muitos anos ninguém era capaz de mexer, ou o babaca e

egoísta CEO da Lizano, que poderia muito bem dizer que


o desaparecimento da filha de uma das muitas mulheres
que já tinham ido para a cama com ele simplesmente não

era da sua conta?

Torci para que fosse o primeiro.


E, para o meu alívio, foi o que me pareceu ter
acontecido.

*****
Capítulo quarenta e cinco

"Jogos, transformações e medos Quando partirão daqui?

Quando vão parar?

Eu acredito que o destino nos trouxe aqui E nós devíamos estar

juntos babe, Mas nós não estamos"

(I Try – Macy Gray)

Ainda não eram nem nove da manhã e a loja ainda


estava fechada para o público. Mas eu sabia que mesmo

de madrugada já havia movimento por ali de seguranças,


caminhões com descarga de mercadorias, e mesmo a

equipe de limpeza que chegava bem cedo.


Uma criança do tamanho de Sofia poderia

facilmente entrar lá e havia uma infinidade de lugares


onde ela poderia se esconder.

Da forma como eu estava vestido, com o meu terno

Armani, ninguém sequer contestava a minha presença ali

e eu simplesmente entrei com meu conversível no


estacionamento, deixei-o em uma vaga bem próxima à

entrada principal e adentrei a loja sem ser detido por

ninguém por estar ainda em um horário com a entrada


permitida apenas para funcionários.

Percebi que passei por vários vendedores que por

dias foram meus colegas de trabalho, e a maioria deles

não pareceu sequer ter me reconhecido.

Ainda era eu, o mesmo cara para quem eles

torciam o nariz há até alguns dias atrás e, agora, usando

uma roupa cara, era cumprimentado muito educadamente

quando passava por cada um deles.

Quando me provocou para que entrássemos

naquela aposta ridícula, Heitor não deixava de ter razão.


As pessoas não me tratavam bem em todos os lugares
onde eu ia por quem eu era, mas sim pelo que eu tinha.

Mas nem todas as pessoas eram assim.

E foi Luíza quem me ensinou isso.

Segui diretamente para a sala da gerência, já que

buscava pela ajuda de Carlos. Queria que ele mobilizasse

todos os funcionários da loja.

Nada iria funcionar por ali até que todo o local fosse

revistado à procura de Sofia. E eu esperava que ela

realmente estivesse em algum lugar por ali.

Quando entrei na sala, no entanto, foi com outro

gerente que me deparei. Aquele que era imediatamente

inferior ao Carlos, mas que foi o meu superior direto

durante uma semana em que passei ali.

Ao contrário das outras pessoas, ele olhou


diretamente para o meu rosto, reconhecendo-me antes

que pudesse analisar as minhas roupas.


— O que está fazendo aqui, rapaz? Você não

trabalha mais aqui.

— Onde está o Carlos? — perguntei diretamente.

Não tinha tempo para lidar com aquele chato.

— Se veio pedir o seu emprego de volta, perdeu o


seu tempo. E nem adianta usar esse terno que você

provavelmente pegou emprestado de alguém. Não adianta


mudar a embalagem, um nada como você continuará
sendo um nada, não importa o que vista.

Virei-me para sair dali e, nesse momento, por sorte,

deparei-me com Carlos, que vinha em direção à sala.

— Senhor Henrique, algum problema? — ele me

questionou, preocupado.

Dei um passo para o lado para que ele pudesse


atravessar a porta e entrar em sua sala, e entrei em
seguida.

— Sim, Carlos, eu estou com um grande problema.

Avise a sua equipe que a loja não abrirá agora às nove e


comunique a todos para irem até a praça de alimentação.

Não só os vendedores, todos os funcionários de todos os


setores.

Embora confuso, Carlos concordou e já ia fazer o


que solicitei, quando aquele insuportável do Geraldo

interveio.

— Mas quem esse merda acha que é para chegar


aqui dando ordens?

Bufei, já não suportando mais ouvir a voz daquele


sujeito, especialmente com toda a tensão do momento.

Mas, graças a Deus, Carlos resolveu a questão por mim.

— Geraldo, acho que você ainda não conhece o

senhor Henrique Lizano. Ele se infiltrou na loja como


vendedor por alguns dias e acho que a avaliação que ele

teve de você não foi das mais proveitosas. — Olhou para


mim — Com licença, senhor Henrique, vou mandar reunir

o pessoal. Me dê vinte minutos para estarem todos lhe


aguardando na Praça de Alimentação.
— O caso é urgente, Carlos. Tem dez minutos.

— Farei o possível, senhor.

E ele saiu, apressado. Eu ia segui-lo para fora da


sala, quando Geraldo praticamente se jogou à minha

frente.

Olhando em seu rosto percebi, perplexo, que ele


chorava.

Aquele maldito insensível tinha lágrimas, quem


diria?

— Senhor Henrique, como eu poderia saber que


era o senhor? Por favor, me perdoe. Eu nunca quis

ofendê-lo, eu juro.

— A gente resolve isso outra hora, Geraldo. Vá


logo para a praça de alimentação e avise a todos os
funcionários que encontrar pelo seu caminho para te

acompanhar. Apenas, por favor... tenha o mínimo de


educação e respeito ao falar com eles.
Dito isso, eu saí, em direção ao local do encontro.

*****-
Capítulo quarenta e seis

"E lembro todas aquelas coisas malucas que você disse Você as

deixou rodando na minha cabeça Você sempre está ai, você está

em toda parte Mas agora eu gostaria que você estivesse aqui"

(Wish You Were Here – Avril Lavigne)

Eu nunca na minha vida imaginei que pudesse

fazer uso da famosa ‘carteirada’ para entrar em algum


lugar. O fato é que, quando tentaram me impedir de entrar

na loja, eu informei que Henrique Lizano estava


esperando por mim. E, dessa forma, minha entrada foi

facilmente autorizada.
Eu havia trabalhado ali e todos me conheciam... e

Henrique tinha chegado minutos antes de mim e alguns


dos nossos antigos colegas o reconheceram dentro

daquele terno – e os que não haviam reconhecido, tinham

sido alertados por outros funcionários...

Sendo assim, se o Henrique era o dono de tudo


aquilo, por qualquer motivo fingindo ser um vendedor dali,

não era difícil imaginar que eles estavam supondo que eu,

que era a única amiga dele ali dentro e fui demitida no


mesmo dia, também deveria ser uma milionária infiltrada

ou coisa do tipo.

A ideia poderia soar esdrúxula no início, mas tive a

confirmação de que era de fato isso o que pensavam

quando, enquanto adentrava a loja, encontrei com Beatriz,

que foi bem direta no seu comentário: — Alguns estão


dizendo que você é prima dos Lizano, outros que é sócia...

eu estou no grupo dos que apostam que você é namorada

dele.

— Sem apostas, Bia. Nada de apostas, por favor.


— Acho que por muito tempo eu ainda teria trauma
daquela maldita palavra. — Só me diz onde está o
Henrique. — Os corredores estavam assustadoramente

vazios.

— Ele mandou todos o encontrarem na praça de

alimentação.

Então, era para lá que eu iria.

Cheguei quando, aparentemente, a reunião já havia

começado. Henrique estava de costas para mim, de frente


para o grupo de funcionários e, embora eu ainda estivesse

a certa distância, ele falava alto para ser ouvido por todos,

de forma que eu também conseguia compreender o que

ele dizia.

— Quero que vasculhem todo o terreno da loja. O

estacionamento, os depósitos, banheiros, cada uma das

lojas da área de alimentação. Lembrem-se de que é uma

criança pequena, ela pode estar escondida embaixo de

qualquer vão. Essa loja hoje não vai abrir enquanto essa

criança não aparecer. E fiquem atentos aos alto-falantes.


Carlos vai preparar uma escala e alguns de vocês serão
chamados para iniciarmos uma busca pelas ruas nos

arredores da loja. Eu sinto muito por isso estar


tumultuando um dia de trabalho de vocês. Como todos

aqui já devem ter me reconhecido, sabem que passei


alguns dias infiltrado entre vocês, realizando o trabalho
como vendedor. O gerente de vendas não sabia da minha

identidade, portanto eu sofri com ele todas as ignorâncias


que vocês sofrem no dia a dia. E eu garanto a vocês que

vou cuidar para que isso não volte a acontecer.

Percorri os olhos pelas pessoas ali presentes, até

encontrar Geraldo, que abaixou a cabeça, parecendo


envergonhado pelo que era dito a seu respeito.

Nada que não fosse verdade.

Ao menos, agora eu sabia que essa parte do que


Henrique me contara era real, e nem os demais

vendedores nem o nosso gerente direto sabiam sobre


quem ele era. O que provavelmente queria dizer que todo

o ocorrido que levou à sua demissão foi realmente real e


não um teatro armado.
Ele tinha mesmo entrado em uma briga para me

defender...

Balancei a cabeça, me desvencilhando daqueles


pensamentos. Não era o momento de ter esperanças nos
sentimentos de Henrique a meu respeito.

Tudo o que me importava era encontrar a minha

filha.

Henrique prosseguiu: — Depois de ter vivido tudo

isso na pele, eu garanto a vocês que muitas coisas


mudarão por aqui. Mas, nesse momento, eu preciso da

ajuda de vocês. Repetindo: é uma menininha de cabelos


compridos e loiros, de seis anos de idade. Ela é muito

importante para mim. Ela confiou em mim como um pai e


eu não posso destruir essa confiança, porque eu também
aprendi a amá-la como se fosse minha filha. E eu não

estou aqui diante de vocês agora apenas como um patrão


dando uma ordem de trabalho. Estou como um homem

desesperado, pedindo por favor para que façam de tudo


para encontrarem aquela garotinha.
As palavras entraram pelos meus ouvidos e se
agitaram dentro de mim, causando um efeito devastador.
Achei que já tivesse chorado tudo o que podia, mas senti

mais lágrimas se avolumarem em meus olhos.

Carlos assumiu a palavra, parecendo já ter


separado um esquema sobre quais grupos percorreriam
quais áreas, e começou a passar tais informações.

Uma moça que eu nunca havia visto por ali – na

verdade, era praticamente uma menina, devia ter no


máximo uns vinte anos, com uma câmera fotográfica
profissional em mãos, se aproximou de Henrique, indo

conversar com ele. Enquanto a ouvia, ele voltou os olhos


para trás e enfim me avistou.

E naquela troca de olhares, mais uma tempestade


pareceu ocorrer dentro de mim.

*****
Capítulo quarenta e sete

"Eu não posso olhar para trás A melhor parte de mim

quebrou quando nos despedimos"

(Goodbye - Jessica Lowndes)

Ele voltou a dar atenção para a moça, concordou

com algo que ela dizia e, então, voltou a me olhar, fazendo

um sinal com a mão para que eu me aproximasse.

Assim o fiz, nervosa, imaginando que talvez ela

tivesse alguma notícia sobre Sofia. Logo que cheguei até

eles percebi que não era exatamente isso, mas era algo
que, sem dúvidas, poderia nos ajudar.
— Luíza, essa é a Joice, ela é Social Media e cuida

das redes sociais dessa filial.

Joice estendeu a mão para mim, e eu a apertei de


forma automática, pouco me importando para

apresentações. Só queria que ela dissesse que tinha

alguma forma de encontrar a minha filha.

— Oi, Luíza. Hoje eu vim para cá cedo para tirar


umas fotografias da loja, mas vamos alterar todo o

cronograma de hoje. Tem com você alguma foto recente e

nítida da Sofia? Quero que me passe, junto ao máximo de


informações que puder. Vou entrar em contato com a

empresa e, a pedido do senhor Henrique, todas as mídias

sociais de todas as lojas Lizano do país estarão hoje

empenhadas em divulgar isso. O senhor Henrique me

sinalizou para divulgar alguns telefones do escritório da


Lizano, os secretários de lá passarão o dia unicamente na

função de receber telefonemas com informações.

Contamos com milhões de seguidores e isso vai alavancar

o alcance. Até porque, devemos trabalhar com a hipótese

de Sofia nem estar mais na cidade.


Aquela possibilidade foi como uma facada em meu
peito. Cheguei a sentir um desequilíbrio e acho que teria

caído se as mãos de Henrique não tivessem se agarrado

aos meus ombros.

E se minha filha não estivesse mais na cidade? E


se alguém a tivesse encontrado e levado para longe de

mim? Eu não queria nem pensar nessas possibilidades,

portanto apenas tentei me fixar na ajuda que aquela

mulher me oferecia. Precisava ter fé de que aquilo

chegaria a alguém que a tivesse visto em algum lugar e

que nos ligaria para informar.

Concordei e comecei a vasculhar o celular em

busca da foto mais nítida que tivesse de Sofia.

Enquanto isso, comecei a narrar: — Se ela não


trocou de roupas antes de sair, ela está com um pijama de

calça comprida azul com estrelas brancas e blusa

vermelha de mangas compridas, com uma estampa do

símbolo da Mulher-Maravilha. E pantufas. As pantufas não

estavam ao lado da cama de manhã, acho que ela saiu

com ela. São marrons, imitando um cachorro. — O


cachorro, claro! Como eu poderia ignorar aquela

informação? — O nosso cachorro também sumiu,


provavelmente foi com ela.

— O Joe provavelmente está protegendo-a —


Henrique me garantiu, apertando meus ombros com mais

força.

Percebi que eu apenas conseguia me manter de pé


pelo apoio dele naquele momento.

Notando que eu me vi novamente sem voz devido


ao choro que ameaçava retornar, ele prosseguiu as

explicações.

— É um cachorro grande, caramelo. Lembra muito

um labrador, mas é um pouco menor, é mestiço com vira-


lata, acho.

— Ele é — retornei a fala. Encontrei no celular uma


foto que julgava ser perfeita, já que Sofia estava

justamente ao lado de Joe. Mostrei-a para Joice. — Essa


daqui serve?
Ela parou de digitar no celular as informações que

passávamos e olhou para a tela do meu telefone.

— É perfeita. Vou pedir para que você me envie e


já criarei as postagens. Toda a rede Lizano de todo o país
estará engajada nisso, até que sua filha seja encontrada.

Henrique apertou meus ombros com um pouco

mais de força para chamar a minha atenção e, então,


anunciou.

— Vou fazer mais alguns telefonemas para agilizar


outras formas de busca. Vou te deixar aqui com a Joice

para resolverem sobre as postagens, mas estarei no


estacionamento caso você precise de mim, tudo bem?

Acenei com a cabeça em concordância, mas


confesso que, quando ele me soltou e se afastou, cheguei

a sentir uma dor física.

A presença dele era muito mais essencial do que

eu poderia descrever ou mesmo seria capaz de admitir.


Se um lado da minha mente seguia a gritar que ele
havia me enganado, o outro era grato por ele estar
cuidando tão bem daquela situação, assumindo o

comando das buscas por Sofia. Como um verdadeiro


companheiro faria.

Como um verdadeiro pai faria.

*****
Capítulo quarenta e oito

"E quando você estive fraca, eu serei forte Vou continuar firme

Agora não se preocupe, não vai demorar Querida, quando sentir

que a esperança acabou Venha para os meus braços"

(One Call Away – Charlie Puth)

Eu não queria me afastar dela, mas tinha de fato

alguns telefonemas importantes para fazer e, além de não


querer atrapalhar a conversa dela com a Joice – era

importante que ela se concentrasse muito naquilo para


passar o máximo possível de informações a ela – eu

estava tão tenso que precisava respirar.


Logo que cheguei ao estacionamento, o ar frio

bateu contra o meu rosto, e isso fez minha tensão


aumentar ao invés de diminuir.

Pensei em Sofia vestida apenas com um pijama,

perdida em algum lugar daquelas ruas frias. Esperava

mesmo que ela estivesse em algum local daquela loja e


que algum funcionário a encontrasse, mas não poderia

contar com isso.

Meu primeiro telefonema foi para o escritório da

empresa. Passei instruções claras para os funcionários de


lá. Todas as reuniões daquele dia seriam desmarcadas e

todo e qualquer telefonema habitual deveria ser

rapidamente despachado. As linhas precisavam estar

livres e seriam usadas unicamente para receber ligações

de pessoas que pudessem ter visto o anúncio do


desaparecimento nas redes sociais e tivesse qualquer

informação que pudesse levar a Sofia.

Depois, liguei para Heitor. Eu odiava ter que

incomodá-lo já nas vésperas de seu casamento, mas o


caso era urgente. Ele era amigo do delegado do bairro e
pedi para que entrasse em contato com ele para pedir
uma atenção especial ao caso.

Na sequência, telefonei para Joana e dei a ela a

missão mais difícil: pegar na internet os telefones dos

hospitais da cidade e ligar para cada um deles para ter


informações sobre a possível entrada de uma garotinha

com as descrições de Sofia. Se a busca desse positiva – e

eu desejava com todas as forças para que não – preferia

que fosse Joana a me repassar essa notícia.

Após encerrar as ligações, sentei-me no degrau da


entrada principal da loja, pensando no que mais eu

poderia fazer, sentindo-me um completo derrotado por não

conseguir visualizar nenhuma saída.

Eu não poderia admitir que nada acontecesse


àquela garotinha. Eu ainda precisava ajudá-la a treinar

seu equilíbrio na bicicleta, ainda precisava cumprir a

promessa de levá-la para passear no meu carro... e existia

um mundo de coisas que eu queria ensinar a ela.


Minha vontade era sair correndo pelas ruas,

gritando pelo seu nome, até encontrá-la. Mas isso,


obviamente, não seria nada produtivo.

Se eu ao menos tivesse algo para me guiar...

Ouvi um barulho vindo da rua, algo como uma


freada súbita, mas não dei atenção a isso. Até que, menos

de um minuto depois, o som de um latido chegou aos


meus ouvidos. Era algo que eu, em geral, ignoraria, se
não tivesse achado estranhamente familiar.

Mais um latido, dessa vez um pouco mais nítido.

Olhei para a direção de onde o som vinha – a entrada do


estacionamento.

— Joe... — murmurei, incrédulo.

Em um primeiro momento cheguei a achar que


fosse alguma ilusão, ou um cachorro qualquer que eu
estaria confundindo por ser parecido.

Mas não havia dúvidas de que era realmente ele.


Ele estava simplesmente imundo, como se tivesse

rolado em algum lugar com muita terra. Percebi que ele


mancava, parecia estar com uma das patas dianteiras

machucadas, e por isso sua velocidade era um pouco


menor que de costume, então fui ao encontro dele.

Diferente das outras vezes, ele pareceu feliz em me


ver.

— Ei, garoto, de onde você veio? Onde está a


Sofia?

Ele me olhou e latiu, como se quisesse me

responder, embora eu não fosse capaz de compreendê-lo.


Então, ele olhou para algo além de mim e correu, ao

mesmo tempo em que a voz de Luíza chegava aos meus


ouvidos.

— Joe!

Virei-me para trás, seguindo Joe de encontro a

Luíza, que saía da loja nesse momento. Ele pulava nela


de forma aflita, e ela o abraçava, enquanto inutilmente
também repetia a pergunta sobre onde Sofia estava.

— De onde ele veio? — ela me perguntou logo que


me aproximei.

— Aparentemente da rua. Mas ele pode ter saído e


retornado. É muito provável que Sofia esteja mesmo em

algum lugar pela loja.

Nesse momento, meu celular tocou e eu de pronto

o atendi. Era Carlos, informando que todo o terreno da loja


havia sido vistoriado e não tinha qualquer sinal da menina.

Pedi que verificassem novamente e desliguei. Se

Joe estava ali, Sofia não poderia estar longe.

— Ei, garoto... — chamei, passando a mão sobre a

cabeça de Joe, que me olhou de forma atenta. Seus pelos


estavam bem molhados, provavelmente pela chuva da

noite. — A gente precisa encontrar a Sofia. — Percebi que


as orelhas dele tremeram, como se reagindo ao nome da
pequena dona. — É, a sua amiga Sofia. Onde ela está?
Ele latiu e correu de volta para a saída do
estacionamento. Luíza e eu corremos atrás dele até a
calçada já do lado de fora, onde ele parou, latindo

insistentemente para nós como se quisesse dizer alguma


coisa.

Luíza fez sua interpretação: — Ele deve estar

querendo ir para casa. Deve ter se perdido de Sofia em


algum momento, e agora que me encontrou quer que eu o

leve de volta.

Não parecia ser isso. Sofia e Joe eram

inseparáveis. Ele não teria se afastado dela tão


facilmente. Ele não estava nos pedindo para levá-lo para

casa. Ele queria a nossa ajuda, queria nos levar até Sofia.

Mas se ele estava ali, ela deveria estar por perto. E,

se não estava na loja...

Olhei para o outro lado da rua, onde um enorme


portão de ferro delimitava a entrada do parque municipal.

Um funcionário abria o portão naquele momento, mas as

grades dele eram bem espaçadas, o suficiente para que


uma criança pequena e um cachorro pudessem ter

entrado ali durante a noite.

Agarrei a mão de Luíza e estalei o dedo para que

Joe me seguisse, atravessando a rua em direção ao

parque.

Ela tinha que estar ali.

*****
Capítulo quarenta e nove

“E as lágrimas escorrem pelo seu rosto Quando você

perde algo que não pode substituir Quando você ama alguém,

mas isso se desperdiça Poderia ser pior?”

(Fix you - Coldplay)

Se eu cheguei a achar que, nos guiando para fora

da loja, Joe quisesse apenas voltar para casa, agora eu


percebia que eu estava enganada e que Henrique tinha

toda a razão.

Logo que entramos no parque tive ainda mais

certeza de que aquele era o lugar quando Joe avançou à


nossa frente, correndo. Apesar da pata machucada, ele ia

com rapidez, ao mesmo tempo em que gania e chorava,


mostrando-se aflito para nos levar até Sofia. Aquilo fazia

meu coração se apertar mais a cada segundo que

passava.

O chão estava encharcado pela chuva fina da noite,


e, por conta da vegetação, por ali a temperatura parecia

ainda mais baixa.

Eu nem sabia onde eu encontrava forças para

continuar a andar, porque eu me sentia completamente


atordoada, tomada pelo pânico de pensar que minha

garotinha estaria sozinha em algum lugar daquele parque

gelado.

Passada a área mais movimentada, iniciava-se

uma parte do parque bem mais extensa, que era

costumeiramente usada para praticantes de trilhas. O

mato ali estava alto, mas não o suficiente para encobrir

uma criança, ainda que ela estivesse deitada.


Joe parou em certo ponto e Henrique e eu nos
dividimos, afastando-nos um do outros e percorrendo os

olhos por todo o local, sem nos distanciarmos muito de

onde o cão rondava, farejando.

Não havia nenhum sinal de Sofia ali. E eu já não


suportava mais aquela dor dilacerante em meu peito.

— Ela não está aqui — falei. Minha voz mal saindo

devido ao cansaço emocional.

Foi então que, ainda farejando, Joe novamente

voltou a correr. Nós o seguimos, até que ele parasse

diante de uma enorme árvore, latindo e saltando

insistentemente para algo atrás dela.

Ao chegar lá, eu a avistei.

Desacordada, molhada, toda encolhida aninhada

ao tronco da árvore.

— Sofia! — chamei, deixando-me cair de joelhos no

chão, desesperada.
Levei as mãos ao seu rostinho gelado.

Nenhuma resposta.

— Sofia... — repeti. Minha voz mal saindo devido à


angústia e ao desespero em meu peito.

*****

Eu não era capaz de me recordar de nenhum outro


momento na minha vida em que sentisse um medo tão

grande.

Aquela sensação de verdadeiro pavor, em que toda


a situação ao meu redor estava completamente fora do
meu controle.
E, como um cara que era empresário desde bem

jovem, eu estava acostumado a ter controle sobre tudo.


Absolutamente tudo.

Luíza foi a primeira pessoa a me tirar da minha


zona de conforto, me fazendo entrar em uma realidade

onde eu não poderia ter tudo o que eu queria.

Mas aquele momento superava qualquer coisa que


eu já tivesse vivido.

Os piores pensamentos passaram pela minha


mente, e eu não poderia admitir que nenhum deles

pudesse ser real.

Sofia não se movia e o corpinho dela estava

gelado, além da pele estar com um tom arroxeado.


Enquanto Luíza chorava e chamava por ela, encostei o

ouvido ao seu peito, sentindo um alívio indescritível ao


perceber que, embora bem baixinho, eu poderia ouvir seu

coração batendo.
— Calma, ela está bem — garanti, embora ‘bem’
fosse uma palavra um tanto quanto vaga. Ela estava viva,
e era nisso que eu precisava que ela se agarrasse. — Me

ajude, pode tirar essa roupa molhada dela?

Enquanto Luíza fazia o que pedi, eu tirei meu paletó


e o envolvi em seu pequeno corpo já sem o pijama
molhado e sujo de terra, buscando aquecê-la. Além de

alguns arranhões, ela não tinha ferimentos aparentes.

Peguei-a no colo, abraçando-a junto ao meu peito,


tentando aquecê-la ainda mais e, ao mesmo tempo,
sentindo como se aquele gesto fosse capaz de protegê-la

de tudo.

Levantei-me e, sem tempo a perder, fui seguido por


Luíza e por Joe, todos correndo, fazendo o caminho de
volta para fora do parque e para o estacionamento da loja,

onde meu carro estava.

Luíza entrou no banco de trás e entreguei-lhe Sofia,


como se aquele fosse o bem mais precioso das nossas
vidas. Joe também pulou no banco, sentando-se ao lado
de Luíza e cheirando Sofia com preocupação, como se
checando se ela estava bem.

Ela ficaria bem.

Ela tinha que ficar bem.

Nada mais importava naquele momento.

Entrei pela porta do motorista e dei partida no carro,


rumo ao hospital.

*****
Capítulo cinquenta

"Você está ferido e cansado De viver a vida em um carrossel E você

não consegue encontrar o lutador Mas eu vejo isso em você, então

nós vamos sair dessa E mover montanhas Nós vamos sair dessa"

(Rise Up – Andra Day)

Todo o trajeto até o hospital se passou como um

borrão diante dos meus olhos.

Eu só me preocupava em abraçar com força a


minha garotinha, tentando aquecer seu corpinho com o

calor do meu e repetindo o tempo inteiro em seu ouvido


que eu estava ali com ela e que tudo ficaria bem Quando

Henrique estacionou diante do prédio hospitalar, eu saí


levando-a nos braços. Na entrada, um segurança tentou

nos deter e logo compreendi o motivo quando vi que Joe


ainda nos seguia, e ele não podia entrar lá.

Henrique pediu ao homem que o olhasse para que

não fugisse e a Joe que nos esperasse ali, mas eu sabia

que nenhum dos dois pedidos seriam necessários. Joe


não iria a lugar algum até que saíssemos de lá com Sofia,

eu tinha certeza disso.

Logo que entramos, eu precisei me separar da

minha filha para que a levassem para o atendimento de


emergência, e aquela separação doeu como uma facada

em meu peito. Eu ouvia Henrique conversando com um

médico e palavras soltas chegavam ao meu ouvido e eram

lentamente processadas pelo meu cérebro.

Hipotermia.

Quadro delicado.

Exames.
Compreendi que iriam aquecê-la, tentar normalizar
os batimentos cardíacos e a respiração, e fazer nela

coisas como eletrocardiograma – para ver se o baixo fluxo

de sangue provocado pela baixa temperatura afetou seu

coração – e exames de sangue para saber se algum outro

órgão tinha sido afetado.

As vozes ao meu redor se tornaram uma grande

confusão, assim como tudo na minha mente. Apenas uma

certeza martelava em minha cabeça: eu não poderia

deixar que levassem minha menina para longe de mim.

Sentia um pavor aterrorizante de que ela não

voltaria para os meus braços. Gritei alguma coisa, mas

sequer consegui compreender o que eu mesma dizia, e

corri indo na direção do corredor para onde haviam levado

a minha filha.

De repente, tudo ao meu redor escureceu e eu

senti braços fortes me acolhendo, antes de ser

completamente tragada pela total escuridão.


Não sei quanto tempo se passou, mas aos poucos

minha visão foi retornando e me vi em outro ambiente,


aparentemente uma pequena sala de atendimento,

sentada em uma cadeira reclinável, com uma agulha


perfurando um dos meus braços, levando à minha veia
alguma medicação diluída em uma bolsa de soro.

Henrique estava ali comigo, de pé diante de mim,

fitando-me com preocupação.

— O que aconteceu? — consegui perguntar.

Percebi minha fala um pouco arrastada. Não sabia

o que tinham me dado, mas eu sentia muito sono.

Henrique passou as mãos pelo meu braço. Eu vi

que os olhos dele estavam vermelhos, o que me dava


uma dica de que também andara chorando.

— Você teve uma crise nervosa e tentou invadir a


sala onde levaram a Sofia. Eu te segurei e você desmaiou.

— Cadê a minha filha? — questionei.


Eu não sabia o que tinham injetado na minha veia,

mas era qualquer coisa que deixava o meu corpo apático,


incapaz de me levantar dali e voltar a procurar por Sofia.

— Estão cuidando dela, Lu. Fique tranquila, logo


nos trarão notícias.

Eu estava certa de que tinha sido dopada. Porque

existia uma tranquilidade estranha dentro de mim. O


tremor no meu corpo e a sensação de desespero haviam
diminuído, mas a tristeza e a preocupação estavam ainda

lá, latentes, insuportáveis.

Pensei em toda a situação que levara àquela em


que estávamos naquele momento.

Sofia havia fugido de casa. Ela nunca antes tinha


feito algo sequer parecido com isso.

— Eu descobri sobre o dinheiro... — comentei com


a voz baixa, sem olhar para Henrique.

Meus olhos se mantinham fixos ao acesso em meu

braço, enquanto minha mente navegava pelas lembranças


da noite anterior.

— Você brigou com ela?

— Não. Eu não briguei. Eu quis brigar, mas não o


fiz. Apenas disse que conversaríamos no dia seguinte. Ela

deve ter ficado com medo dessa conversa.

— Não acredito que ela tenha ficado com medo.


Você nunca a deu motivos para isso. É uma mãe tranquila
e compreensiva.

Em certo ponto, ele tinha razão. Eu raramente

brigava com Sofia, apesar de ela ser uma criança que por
vezes me dava motivo para isso.

A gente sempre conversava, e eu tentava fazer


com que ela compreendesse onde havia errado. Lembro

de ter contestado esse meu método na noite anterior,


quando vi que Sofia voltou a aceitar dinheiro de alguém

mesmo eu tendo conversado com ela a respeito daquilo


apenas algumas semanas antes.
Henrique prosseguiu: — Acho que ela se sentiu
triste, com medo de ter decepcionado você. Ela é pequena
demais para conseguir compreender que a culpa nunca foi

dela, e sim minha. Pagar pelo silêncio de uma criança é


algo bem reprovável.

Enfim, eu o olhei. Percebi um arrependimento real

em seus olhos, mas não pude evitar concordar com suas


palavras.

— Nisso você tem toda a razão.

— E você também estava certa em toda a sua

opinião sobre Henrique Lizano. Eu me arrependo muito de

tudo o que fiz.

— E em que ponto esse arrependimento veio?

Não havia nenhum tom provocativo na minha voz.

Havia algo de positivo em ter conversas sérias com

alguém enquanto se está dopado, no fim das contas. Eu

conseguia manter uma calma que eu fatalmente não teria


em situações normais.
— Eu não sei exatamente qual foi o ponto, porque

ele ocorreu aos poucos, ao mesmo tempo em que eu


estava mergulhado nas mentiras que tinha iniciado e via

que não tinha como voltar atrás tão facilmente sem te

machucar.

— Mas você me machucou, Henrique. E muito.

— E estou certo de que nunca vou me perdoar por

isso. Ao menos não enquanto você não me perdoar.

Fiquei em silêncio, remoendo aquelas palavras,

com minha mente indo e voltando nos momentos que vivi


ao lado daquele homem.

Em todos eles.

Do primeiro encontro no bar, passando por nossa

noite de amor e terminando em nossa discussão quando

descobri toda a verdade.

Dopada ou não, aquilo não se tornava menos


doloroso. Mas tudo tinha sido tão intenso, que eu ainda

me perguntava se teria sido uma grande mentira.


— Mentiu quando disse que me amava? —

perguntei.

Excesso de sinceridade também seria um efeito do

medicamento?

— Não, eu não menti. Você já tinha descoberto a


verdade. Eu não teria mais por que mentir para você.

— Uma nova aposta, talvez?

— Eu já tinha feito com você... tudo o que um

homem desprezível como eu costumava ser poderia


querer de uma mulher. O que mais eu poderia apostar?

Ponto para ele.

Minhas pálpebras estavam fechando, então tentei

encerrar aquela conversa ao me dar conta de que não

aguentaria acordada por muito tempo.

— Eu não quero discutir perdão agora, Henrique.


Nada mais importa para mim enquanto minha filha não

estiver bem.
Eu já estava começando a ser tragada pelo sono

quando ouvi a resposta dele.

— Nem para mim, Lu. A Sofia ficar bem é tudo o

que importa agora.

Ele tinha razão.

Era a única coisa que me importava no mundo.

*****
Capítulo cinquenta e um

"Lembre-se todas as coisas que queríamos Agora todas

as memórias estão assombradas Nós sempre fomos

destinados a dizer adeus"

(Already Gone - Sleeping At Last)

Parecendo despertar de um pesadelo, eu abri

abruptamente os olhos, encontrando o teto branco de um


ambiente hospitalar, o que me dava a informação de que

não tinha sido um sonho ruim.

Era tudo real.


A bolsa de soro não estava mais presa ao suporte

do meu lado e, no lugar da agulha, meu braço estava com


um esparadrapo protegendo o local onde tinha ficado o

acesso. Mas eu ainda estava tonta. A medicação que me

deram devia mesmo ser bem forte.

Tentei me levantar, mas tudo rodou. Então alguém


surgiu para me segurar. Não era Henrique, mas, sim, uma

mulher de meia idade, com olhos bondosos. Não usava

roupas brancas, então não devia ser enfermeira ou


médica do hospital.

— Calma, menina — ela pediu docemente.

Provavelmente, percebeu meu olhar de interrogação, pois

se apresentou. — Meu nome é Joana. Henrique me pediu

para vir para cá te fazer companhia. — Ele tinha ido

embora? Antes que eu pudesse formular tal pergunta,


aquela senhora pareceu ler a minha mente e explicou. —

Ele levou o cãozinho.

— Henrique roubou o meu cachorro? — questionei,

completamente grogue.
Dita em voz alta, a ideia era ainda mais estúpida do
que pareceu em minha mente.

Joana sorriu e explicou.

— Não, querida. Ele o levou para uma clínica

veterinária. Parece que estava com a patinha machucada,

não é? Henrique acha que ele foi atropelado, disse que

ouviu um som de freada de carro antes do cachorrinho

aparecer no estacionamento da loja. Falei para ele

aproveitar para mandar dar um banho no bichinho, estava

imundo, pobrezinho.

Mais uma vez eu era grata por Henrique estar ali.

Porque eu fatalmente não teria cabeça para pensar em

nada daquilo.

Pobre Joe, estava machucado, e eu não teria como

cuidar dele naquele momento. Saber que eu não estava

sozinha era algo muito confortante.

— Algum médico veio dar alguma notícia? —

questionei, sem saber ao certo por quanto tempo eu teria


pegado no sono.

— Ainda não. A última informação que eu tive foi a

que Henrique me passou logo que cheguei aqui, de que a

menina precisaria ser observada pelas próximas horas.

— Que hospital é esse? — poderia parecer uma


pergunta aleatória, mas coisas ocorridas a partir do

momento que encontramos Sofia não eram mais do que


um borrão em minha mente.

Eu mal saberia dizer como cheguei até aquele


lugar.

— É o Santa Agnes. É o melhor da região. Sua filha


está em ótimas mãos.

Não só era o melhor, como também era o mais

caro. Se eu vendesse todos os órgãos do meu corpo, eu


ainda não seria capaz de pagar a conta de uma internação
ali.

Novamente parecendo ler os meus pensamentos –

aquela senhora era boa nisso – ela falou: — Fique


tranquila, menina. O Rique está cuidando de tudo.

— A senhora é a mãe dele? — questionei, curiosa.

— Ah, não. Embora sou como se fosse. Eu antes


trabalhava para os pais dele e o vi crescer. Depois passei

a ser governanta na casa do Heitor, que agora é de


Henrique.

— Que coincidência, ele já foi meu patrão também.


Embora eu não fizesse ideia disso. — Não consegui

conter o sarcasmo.

Acho que o calmante estava começando a perder o


efeito e voltando a me deixar um tanto ácida.

— Ele recentemente me contou sobre as besteiras


que fez. Sempre foi um menino meio mimado. Pudera,

sempre teve tudo o que quis. Mas tem um bom coração.


Tanto que não demorou a se dar conta da besteira que
estava fazendo com você.

— Não é fácil acreditar que um surto de

consciência tenha vindo do nada.


— Não foi exatamente do nada. Foi quando ele se
deu conta de que estava completamente apaixonado por
você.

As palavras me deixaram sem fala.

Eu podia estar, novamente, quebrando a cara, mas


era difícil não sentir confiança naquela mulher tão doce

que estava de pé ao meu lado.

Ela prosseguiu:

— Ele não apenas está apaixonado por você, como

também é louco pela sua filha. Os olhos dele brilham toda


vez que conta alguma coisa da menina. Ele me narrou

completa a peça em que ela fez o papel de uma árvore.

Tive vontade de sorrir ao me lembrar da peça e do

quanto Sofia estava ansiosa e animada para um papel tão


secundário – quase de figuração.

Ela tinha passado dias cantando aquela musiquinha


sem parar, ensaiando para não errar a letra na hora da

apresentação.
Eu daria a minha vida para ouvi-la cantar
novamente.

E tal lembrança me remeteu a outra, da forma


como Henrique parecia de fato orgulhoso ao assistir

aquela apresentação ao meu lado, de como ele me contou


depois, chateado, sobre a coleguinha de turma que havia

destratado a Sofia por ela não ter pai.

E, especialmente, de como, naquelas últimas


horas, ele tinha estado ao meu lado e cuidado de tudo

para que Sofia fosse encontrada. De que forma eu poderia

duvidar de que ele de fato se importava com ela?

Antes que eu dissesse qualquer coisa, a porta da


sala onde eu estava se abriu e minha prima Sara surgiu,

entrando como um furacão e vindo diretamente me

abraçar. Novamente, a senhora me explicou: — Ah, sua


amiga ligou para o seu celular, você estava dormindo e eu

achei prudente atender. Expliquei o que tinha acontecido e

onde você estava. Agora que você já tem companhia, vou

me ausentar um pouco para tomar um café, tudo bem?


Assenti, ainda confusa. Sara me soltou e segurou

as mãos de Joana com as suas.

— Pode ficar tranquila. Eu cuido dela agora. Muito

obrigada por tudo.

Ela passou a mão pela face de Sara, de forma

quase maternal.

— Não se preocupe, minha filha. Vou mesmo


apenas tomar um café e já volto. Vocês querem algo da

cantina? — Só uma ligação e elas já estavam próximas

assim?

Sara negou e eu também balancei a cabeça em


negativa, e a senhora saiu. Minha prima voltou a me olhar

e segurou minhas mãos, abaixando-se no chão ao lado da

minha cadeira.

— A Jojo me contou tudo, Lu. — ‘Jojo’? Sério, por


quanto tempo eu tinha dormido? — Alguma notícia da

Sofia?
— Nada. E, aparentemente, eu não tenho nada a

fazer que não seja esperar. Quando tentei fazer algo, me

colocaram aqui e me doparam como um animal raivoso.

— A Jojo me contou isso também. Eu imagino o


seu desespero. Mas vai dar tudo certo, prima. E do Joe?

Alguma notícia? Henrique já voltou da clínica?

— Ainda não. Sara, como sabe de tudo isso? —

questionei, intrigada.

— Eu estava do outro lado da cidade, procurando


pela Sofia, quando tentei te ligar e a Jojo atendeu. Vim o

caminho quase todo até aqui conversando com ela, quase

uma hora de ligação. Meu Deus, não dá uma vontade de


guardar aquela senhora em um potinho? Eu quero pedir

para ela me adotar, sério!

— Aposto que ela te encheu também a respeito do

‘Rique’, não é?

— É. O seu bonitão ocupou mais da metade da


conversa. E, quer saber? Acho que acredito nela. Bem, eu
continuo achando que ele foi um canalha, mas ele

realmente parece arrependido.

Não respondi, porque me vi novamente perdida em

devaneios a respeito daquilo.

Até que a porta se abriu e Henrique entrou,

trazendo algumas sacolas de compras. Ele parou próximo

à porta, já que provavelmente não esperava encontrar


minha prima ali. O encontro anterior dos dois não tinha

sido tão amigável assim.

Sara voltou a me olhar, ignorando-o

propositalmente.

— Lu, eu vim mesmo apenas para saber como

você está. Se precisar de alguma coisa, qualquer coisa,

me ligue que eu venho correndo.

Assenti, forçando um sorrido, e trocamos mais um


abraço antes de ela se afastar para sair. Trocou um leve

aceno de cabeça com Henrique quando passou por ele


perto da porta, e se foi, nos deixando a sós. Ele voltou a

me olhar: — Alguma notícia?

— Nada.

— É normal. Essas coisas demoram mesmo. Pode

ficar tranquila, os médicos daqui são excelentes. Sei que


estão cuidando bem da Sofia.

Concordei, fazendo outro questionamento: — E o

Joe?

— Ah, tiveram que engessar a pata dele, mas ele

vai ficar bem. Não tem mais nenhuma outra fratura,


fizeram vários exames e está tudo bem com ele. Deram

um banho também e o levaram lá para casa. A Jojo e eu

vamos cuidar dele até que vocês possam voltar para casa.
Aliás, encontrei com a Jojo lá fora e avisei que eu ficaria

com você, então ela foi embora, mas te mandou um beijo.

Voltei a movimentar a cabeça em concordância. Lá

estava ele cuidando de mais uma coisa para mim.


— Acha que o Joe tentou aquecer a Sofia durante a

noite?

— Eu não acho, tenho certeza. Se não fosse por


ele, talvez ela... Bem, cães são animais fiéis, não é? Eu

não gostava muito de cachorros há até alguns dias. Mas...

eu também não tinha qualquer encantamento particular


por crianças, nunca nem pensei em ter filhos, e... também

não era do tipo que se apaixona ou que planeja um futuro

com uma única mulher. Mudei mais durante as duas

últimas semanas do que em quase trinta anos de vida.

Houve um breve instante de silêncio, até que eu

decidisse comentar alguma coisa.

— Devia adotar um cachorro. Talvez devesse

pensar na ideia de ter filhos também.

— Eu quero. As duas coisas. Na verdade, as três


que eu mencionei.

Voltei a ficar em silêncio e ele me acompanhou,

ambos em uma troca silenciosa de olhares, até que a


porta voltou a se abrir.

Levantei-me em um pulo, esquecendo-me

totalmente que ainda me sentia um pouco tonta pelo

medicamento, ao ver uma mulher usando jaleco entrando

na sala.

*****
Capítulo cinquenta e dois

"Eu tenho tudo o que preciso quando eu tenho você e eu Olho ao


meu redor, e vejo uma vida doce Eu estou preso no escuro, mas

você é minha lanterna Você está me guiando, me guiando durante a

noite"

(Flashlight – Jessie J)

— Boa noite. São os pais da pequena Sofia? — a


médica perguntou logo que entrou.

— Somos! — afirmei de imediato, sem sequer

pensar a respeito. — Como ela está?


— Olha, foi um grande susto. Tenho que dizer que,

na situação em que ela estava, mais algumas horas teriam


sido fatais. Ela teve uma hipotermia, a temperatura dela

estava muito baixa quando chegou, por isso entramos

com cuidados imediatos. Geralmente, quando isso


acontece, o fluxo de sangue pelo corpo diminui, o que

pode causar uma parada cardíaca, danos cerebrais ou

comprometer algum outro órgão. Mas fizemos vários


exames e aparentemente nenhum órgão dela foi afetado.

Sua filha é muito forte e está ótima.

Durante toda a fala dela, fui segurando o ar nos

meus pulmões, como se esperasse pelo pior, mas enfim


pude voltar a respirar aliviada.

E meu peito ainda explodiu em mais felicidade com

a frase dita a seguir pela médica: — Ela já está consciente


e foi transferida para um quarto. Poderá ficar com um

acompanhante.

Ela estava acordada.


Meu Deus, eu iria poder falar com a minha filha e
passar a noite com ela.

A médica continuou: — Apenas um de vocês

poderá passar a noite, mas os dois podem ir vê-la agora.

Ela está bem cansada, então logo deve adormecer de


novo.

— E quando ela terá alta? — perguntei, aflita.

— Não posso dar certeza agora. Vamos observar o


quadro dela durante a noite. Se ela continuar progredindo

bem, talvez amanhã à tarde já possa ir para casa, mas

pode ser que precise ficar um dia a mais.

Concordei e voltei a olhar para Henrique.

— Acho que ela vai ficar feliz em ver você.

Ele pareceu surpreso com meu convite, mas o

negou.

— A doutora tem razão: a Sofia está cansada, não

é bom que ela tenha muitas emoções. Ah, e trouxe


algumas coisas para você...

Ele me entregou as sacolas. Eram várias. Algumas

de lojas de roupas, uma de loja de brinquedo e algumas

que pareciam ser comida. Olhei para tudo, confusa, e ele


explicou: — Você deve estar louca para se trocar, não é?

Achei que era mais eficaz comprar algo aqui perto do que
mandar alguém ir à sua casa pegar roupas suas para você

passar a noite aqui. Não é nada demais, mas são bem


quentinhas, e confortáveis como você gosta de usar.
Trouxe também alguns lanches, já que você não comeu

nada o dia todo e ninguém merece comida de hospital, já


basta a Sofia que provavelmente por hoje não vai poder

comer outra coisa. E tem um presentinho para ela


também.

Balancei a cabeça em concordância e mal consegui


dizer um ‘obrigada’, porque estava de fato comovida com

todo aquele cuidado.

Ele me disse um ‘até amanhã’ e depositou um beijo


na minha testa, um que eu daria tudo para que tivesse
sido nos lábios.
Então, levando todos aqueles pacotes, eu segui a

médica.

A porta do quarto onde Sofia estava tinha uma


parte de vidro transparente, então eu ainda parei por um
instante, emocionada ao ver minha garotinha sentada na

cama, olhando para a TV ligada em um canal infantil.


Ainda ali, a médica me passou algumas instruções, às

quais eu mal consegui ouvir de tão aflita que estava para


abraçar minha menina.

Agradeci à doutora por tudo e, enfim, pude entrar.


Sofia me olhou, com seus olhinhos cansados, mas ainda

assim abriu um sorriso. Corri até a cama, largando as


sacolas no chão e debruçando-me sobre ela para abraçá-

la com força, enquanto chorava. Um choro de alívio, ao


mesmo tempo em que agradecia a Deus por minha
garotinha estar bem.

— Está chorando por minha culpa, mamãe? — ela

perguntou, com sua vozinha baixa e fraca.


Afastei-me um pouco, passando as mãos pelo
rostinho dela.

— Estou chorando de felicidade por você estar


bem, meu amor.

— Cadê o Joe?

— Está na casa do tio Henrique.

— Mas o Joe não gosta dele...

— Aparentemente, os dois agora são bons amigos.

— E você e o tio Henrique, ainda são amigos? Ele


só mentiu porque queria que você gostasse dele, mamãe.

Não briga com ele, por favor.

Ajeitei-me, sentando-me na cama, de frente para


ela.

— A gente pode conversar um pouquinho, filha?


Aquela conversa que iríamos ter hoje de manhã? — Ela

movimentou a cabeça em uma afirmação, embora eu


percebesse que havia um traço de medo em seus olhos.
— Eu não vou brigar com você, filha. Mas eu só queria
entender... por que você concordou em mentir para a
mamãe? A gente já conversou tanto sobre isso, e eu já te

disse tantas vezes que mentir é errado. Especialmente


para as pessoas que a gente ama.

— É que... você disse que com mais daquelas

notas você ia conseguir comprar a nossa loja. Eu juntei


um monte delas para você, mamãe.

Ouvir aquilo foi como ter o meu coração dilacerado

em mil pedaços. Ela tinha aceitado aquele acordo para

conseguir dinheiro, achando que assim poderia realizar o


meu sonho?

Mais lágrimas vieram à tona nos meus olhos, mas

lutei para contê-las. Por mais que estivesse emocionada,

eu precisava me manter firme.

— Meu amor, conseguir dinheiro é um problema da


mamãe e não seu. Você é só uma criança. Tem apenas

que estudar e brincar, não precisa se preocupar com esse

tipo de coisa.
— Mas tem outra coisa também, mamãe. No

começo, eu só queria mesmo conseguir juntar muito


dinheiro, mas depois... Eu fui achando o tio Henrique

legal, e... eu pensei que... se você gostasse dele, ele

poderia ser seu namorado e se tornar o meu papai.

Não restava mais uma mísera migalha do meu


coração. Ele já havia sido completamente quebrado e

dilacerado por aquela garotinha.

Talvez em uma tentativa inconsciente de fugir

daquele assunto, eu olhei para as sacolas no chão e


peguei uma delas, que estava com o emblema de uma

loja de brinquedos. Tirei o conteúdo lá de dentro diante de

Sofia e os olhos dela brilharam ao ver uma almofada de


pelúcia no formato de uma árvore, com bracinhos e um

rostinho sorridente.

— Tio Henrique mandou esse presente para você

— anunciei, não conseguindo deixar de também sorrir ao


ver o que era.
Sofia a pegou a abraçou, encantada. Aquilo fez

com que eu me lembrasse do lugar onde ela tinha sido

encontrada: justamente embaixo de uma árvore.

Então foi inevitável perguntar: — Por que você


fugiu, meu amor? No meio da noite. Tem noção de

quantos riscos você correu?

— Eu achei que você estivesse chateada comigo

porque eu menti pra você. Você sempre diz que não dá


pra confiar em quem conta mentiras. Então eu achei que

você não confiava mais em mim. Daí eu e o Joe decidimos

ir embora. Bem, na verdade, fui só eu... O Joe queria ficar,

mas eu convenci ele a ir comigo. A gente foi pro Parque,


porque é um lugar que a gente gosta. Aí voltou a chover e

a gente se abrigou embaixo da árvore. Mas tava muito frio.

Eu fiquei abraçada com o Joe pra gente se esquentar,


mas tava frio demais, mamãe... muito mesmo. Eu queria

voltar pra casa, mas não conseguia mais me levantar,

porque estava tremendo muito. Daí eu dormi e acordei


aqui.
— Sabe o que deixou a mamãe chateada? O que

aconteceu com você. Eu podia ter perdido você, filha. Não


importa o que aconteça. Sou sua mãe e sempre vou amar

você. Promete pra mim que nunca mais vai fugir de casa?

— Prometo, mamãe. E eu também vou te amar pra

todo o sempre.

Ela se ajoelhou sobre a cama e me abraçou.


Retribuí, sentindo toda a energia gasta naquele dia aos

poucos ser recarregada.

Nesse momento, olhei para a porta. Do outro lado

dela, olhando-nos através do vidro, estava Henrique.

Percebi que ele estava... chorando?

Dali, ele provavelmente não poderia ouvir nossa

conversa, mas pela forma como olhava para mim e para a

Sofia, eu podia deduzir que sua emoção fosse por vê-la


bem, depois de todo o susto que passamos naquele dia.

Ao perceber que havia sido flagrado, ele esboçou

um sorriso e acenou, virando-se e indo embora.


*****
Capítulo cinquenta e três

“Eu escalaria todas as montanhas E nadaria todos os

oceanos Apenas para estar com você E arrumaria o que

quebrei Oh, porque eu preciso que você veja Que você é o

motivo”

(You Are The Reason - Calum Scott)

Há até muito pouco tempo, ser acordado com

lambidas era um sinal de que eu tinha, como eu


costumava dizer, “me dado bem” durante a noite, e agora

acordava com alguma gata ao meu lado.


Mesmo ainda em um estado de sonolência, eu

estava certo de que aquele definitivamente não era o


caso, embora eu adorasse estar acordando ao lado de

Luíza.

Apenas pensar nisso fez um sorriso bobo

desabrochar entre meus lábios, até que estes fossem


novamente lambidos.

Abri os olhos. Como imaginei, não era a companhia

mais sexy do mundo.

— Bom dia, Joe — resmunguei. — Quem autorizou

você a subir na minha cama? E ainda com essa pata

engessada. Ao menos tomou um bom banho ontem e não

está mais fedorento.

Ele respondeu voltando a me lamber e eu acabei

sorrindo.

Acho que nós dois enfim tínhamos uma trégua e


estávamos de fato nos tornando amigos.
Levantei-me e liguei para o hospital, para obter
informações sobre Sofia. Aparentemente, ela teria alta

depois do almoço.

Quando me dei conta, estava como um bobo dando

saltos, como se tivesse acabado de ganhar um prêmio ou


coisa do tipo.

— Ei, garotão, a Sofia vai para casa! — contei a

Joe.

Não sei se ele necessariamente entendeu o que eu

falei, mas pulou da cama e começou a pular sobre mim, o

que fez com que eu, empolgado, também voltasse a pular.

Estávamos assim, como dois cangurus, quando a


porta do meu quarto se abriu após uma batida. Joana

travou com a porta aberta, ainda com a mão na maçaneta,

olhando-nos inicialmente confusa, e em instantes

começou a rir.

— Esse era o cachorro que não gostava de você?

— ela questionou, entre risos.


Ignorei o questionamento e contei a ela as ótimas

notícias.

— A Sofia terá alta hoje depois do almoço, Jojo.

Minha garotinha está bem e vai voltar para casa!

— Sua garotinha? — Ela sorriu ainda mais.

Eu já amava tanto aquela menininha que já nem


conseguia mais negar o desejo de ser seu pai.

Mas para isso eu antes precisava reconquistar a


sua mãe.

E fazendo tudo certo dessa vez.

Mas... o que afinal seria o certo?

— O que devo fazer, Jojo?

— Ah, garoto... você sabe onde encontrar essa

resposta. Pergunte a si mesmo: o que o Henrique faria?


Não o Lizano. Mas apenas o Henrique.
Acho que o Henrique sabia, muito bem, o que

deveria fazer.

*****

Sofia poderia ir para casa.

A informação era insistentemente repetida pela

minha mente, trazendo-me uma indescritível sensação de


felicidade e alívio.

Há menos de vinte e quatro horas eu vivi os piores


momentos da minha vida, junto ao medo de perder a

minha filha. Mas agora, ela não apenas estava bem... mas
estava ótima. Além da melhora do estado clínico, que

surpreendeu positivamente os médicos, o ânimo dela


estava tão bom que ninguém diria que aquela menininha
tinha passado por momentos tão ruins. Estava com um
ótimo apetite, ativa, e, especialmente, muito animada com
a informação de que poderia voltar para casa.

Junto com as roupas para mim, Henrique havia

mandado também algumas peças para Sofia.

A preocupação principal dele visivelmente tinha

sido aquecê-la bem, já que escolhera um conjunto de


calça e casaco de moletom quentes o suficiente para

aquecerem alguém no frio de um inverno europeu; mas


ele também lembrava do fato de minha filha gostar de
super-heroinas, já que o tema do conjunto era a Mulher

Maravilha – assim como o pijama que ela usara ao fugir


de casa.

Também enviou um par de tênis, que eram


exatamente o número dela. Fiquei me perguntando onde

ele havia conseguido tal informação, mas não demorei a


supor que talvez Joana tivesse perguntado a Sara, no

telefonema de uma hora que as duas trocaram no dia


anterior.
Depois de almoçar, Sofia foi novamente atendida
pela mesma médica, que muito pacientemente explicou a
ela os perigos de ficar exposta a temperaturas baixas.

Minha filha ouviu a tudo com atenção e, mais uma vez,


prometeu que jamais voltaria a fazer aquilo.

E eu esperava de todo o meu coração que ela

cumprisse aquela promessa.

Então, ela foi liberada. Fui informada que todas as


despesas hospitalares já haviam sido pagas, então

seguimos direto para a saída do hospital.

— Mamãe, o Joe não está em casa? — Sofia me

perguntou, quando já chegávamos à portaria.

— Não, meu amor. Ele ainda está na casa do


Henrique. Depois veremos como faremos para pegá-lo de

volta.

— O tio Henrique podia levá-lo lá em casa, né? Aí

eu aproveito pra dizer obrigada pelos presentes que ele


mandou pra mim e por ter me salvado, junto com você.
Eu tinha contado a ela como a havíamos

encontrado no dia anterior, e ela não parava de falar a


respeito.

— Depois vemos isso, querida. Vou chamar um

Uber para irmos para casa.

Logo que passamos da saída do hospital, paramos


ainda na calçada e eu peguei o celular para chamar o

carro por aplicativo. Sara tinha se oferecido para ir nos

buscar, mas neguei a oferta. Ela já tinha perdido muitos

dias de vendas dos seus lanches por nossa causa, não


era justo que perdesse mais aquele.

— Mamãe! — o grito empolgado de Sofia chegou

aos meus ouvidos, me fazendo desviar os olhos do celular

para fitá-la.

A mão dela estava agarrada em uma das pernas da

minha calça, e ela a sacudia, enquanto a outra mão

apontava para algo.


Segui os olhos na direção que o dedo dela indicava

e, à primeira vista, não compreendi, já que vi apenas um

carro. Um carro de luxo, mas um carro.

Contudo, quando olhei melhor, identifiquei a cara


peluda que olhava pela janela do veículo, com os olhos

fechados enquanto o vento batia em seus pelos.

O carro parou diante de nós e então pude ver

também o motorista.

— Tio Henrique! — Sofia gritou, empolgada. — E o


Joe! Vocês são mesmo amigos agora?

Henrique saiu do carro e deu a volta, recebendo

Sofia em seus braços. Ela correu aflita até ele, abraçando-

o com força, e ele a levantou nos braços, jogando-a para


cima.

— Nós não só somos amigos, como viemos buscar

vocês para levá-las para casa.

— Oba! Ouviu isso, mamãe? Guarda esse celular,


não precisa mais chamar o Uber, o tio Henrique vai levar a
gente!

Henrique me olhou e só então percebi que eu tinha


praticamente paralisado na mesma posição, segurando o

celular na mão, pouco abaixo do rosto.

Ele, então, sorriu para mim. Não era o sorriso de

conquistador barato do nosso primeiro encontro, mas

aquele que fui descobrindo depois. Tinha até um certo


toque de... timidez, talvez.

E algo me dizia que o playboy Henrique Lizano não

era do tipo que ficava tímido diante de uma mulher.

— Guarda esse celular, Lu — ele usou as mesmas


palavras que Sofia havia dito. — Eu vou levar vocês.

Tentei dizer alguma coisa, mas minhas palavras

foram camufladas pelos latidos de Joe, que parecia aflito

para que Sofia entrasse no carro.

Também ansiosa para reencontrar o amigo, Sofia


abriu a porta de trás do veículo e nosso cachorro pulou
nela, latindo e chorando ao mesmo tempo, como se não a

visse há mais de um ano.

A cena, claro, me fez sorrir enquanto sentia

algumas lágrimas turvando a minha visão. Mas logo ativei


o lado mãe zelosa e precisei controlar aquela brincadeira

dos dois.

— Sofia, a médica te disse que hoje você não pode

fazer muito esforço, lembra? E nem você, Joe! Está com a


pata engessada, comporte-se ou esse osso não vai voltar

ao normal.

Os dois me obedeceram – Sofia, na verdade. Joe

continuou querendo brincar, mas reduziu o ritmo, já que


Sofia tinha parado.

— Podemos aceitar a carona do tio Henrique,

mamãe? — ela questionou, lançando-me seu melhor olhar

de gato de botas.

Bufei, rendida.
— Podemos, sim. Entrem logo. E coloque o cinto,

Sofia!

Ela vibrou e entrou no carro, sendo seguida por


Joe.

Henrique ajustou o cinto dela, e então eu também

entrei, sentando-me no banco do carona. Coloquei meu

próprio cinto e aguardei até que Henrique entrasse no


veículo e desse a partida, levando-nos para casa.

Eu achava que voltar a encontrar com Henrique

poderia ser uma experiência um tanto constrangedora,

mas naquele momento percebi que eu não tinha como


estar mais enganada.

Ele começou a conversar com Sofia, iniciando de

maneira séria e pedindo para que ela não voltasse a fazer

o que fez. Explicou, de uma forma adequada à idade dela,


os perigos que ela correu e contou como nós dois ficamos

desesperados.

Nós dois...
Existia mesmo um nós dois?

Sofia o escutou sem contestar e voltou a repetir sua

promessa de que não voltaria a fugir de casa, e então os

assuntos começaram a mudar.

Ela agradeceu pelos presentes e contou sobre o


quanto amou as roupas, os tênis e, principalmente, sua

almofada em formato de árvore, e depois contou

detalhadamente sobre toda a rotina da noite que passara

no hospital. Contou sobre a comida, sobre as enfermeiras


– a que era mais legal e a que era mais chata –, os

remédios que tomou, os exames que fez. Henrique

parecia realmente interessado em tudo aquilo e, quando


percebi, eu mesma já participava da conversa e tudo

aquilo se tornou muito natural.

Essa era a palavra. Natural. Talvez outras


pudessem ser igualmente usadas, como aconchegante.

Ou, a melhor delas: familiar.

Era como estar em família. Uma sensação que eu


queria guardar para sempre.
Enfim chegamos. A forma como Sofia me olhou
enquanto saíamos do carro deixava claro que ela queria
que eu convidasse Henrique para entrar. E eu fiz isso,

porque me pareceu o certo a ser feito.

Minha filha não deixou a ele qualquer opção de


aceitar ou não, e insistiu tanto que queria mostrar a ele a
estante de seu quarto, que ele, quando se deu conta, já

era puxado por ela para dentro de casa e, em seguida,


escada acima.

Fiquei ali parada na sala, sentindo meu coração


batendo num ritmo acelerado e me perguntando que rumo

eu daria dali para frente à minha vida.

*****
Capítulo cinquenta e quatro

"Bem, você só precisa da luz quando está escurecendo Só sente

falta do Sol quando começa a nevar Só sabe que a ama quando a

deixa ir...

...E você a deixou ir"

(Let Her Go – Passenger)

Minha intenção realmente era a de apenas levá-las

em casa.

Eu havia prometido dar um tempo à Luíza, e vinha


tentando me manter firme nessa decisão, embora tudo o

que eu quisesse era estar o tempo todo ao lado dela.


Porém, não dava para resistir aos pedidos de Sofia,

especialmente depois de termos passado pelo medo de


perdê-la.

Então eu deixei que aquela pequena e adorável

pestinha me levasse até o seu quarto para me mostrar a

estante que sua mãe tinha feito com os caixotes que


pegamos na loja. Luíza tinha razão quando me disse que

a estante seria simples, mas eu não fazia ideia de que tal

simplicidade ficaria tão bonita.

Porque tudo em Luíza era assim. Ela conseguia


esse feito de unir simplicidade e beleza em tudo, até nela

mesma.

Enquanto apontava para a estante e me narrava o


que tinha colocado em cada um dos nichos, percebi que

Sofia coçava insistentemente os olhos e logo compreendi

os motivos disso.

— Está com sono, não é?


Ela ajeitou a postura, movimentando a cabeça em
uma negação enfática.

— Ainda é muito cedo pra dormir, tio. Nem é noite

ainda.

— Mas não faz mal tirar um cochilo de tarde.

Especialmente quando se está cansada depois de ter feito

tanta arte no dia anterior, não é?

Passei o indicador pelo nariz dela, em uma


brincadeira. No entanto, ela se manteve séria. Parecia

tomar coragem para o que diria a seguir.

— Tio, foi tudo culpa minha. A mamãe encontrou o

dinheiro na minha mochila e ficou muito triste por isso.

Ajoelhei-me no chão para que meus olhos ficassem

em uma altura mais nivelada aos dela.

— A culpa nunca poderia ser sua, Sofia. O único


errado nessa história fui eu.
Ela se afastou, indo até a mochila que estava no

primeiro nicho da estante e pegando as notas de dinheiro


do bolso dela. Depois voltou a se aproximar de mim, me

entregando.

— Eu quero devolver o dinheiro pra você, tio. E o

Joe também.

— Como você pode saber disso? Ele passou a


noite lá em casa e não me disse nada a respeito de me
devolver o dinheiro.

— Nós dois tivemos uma conversa muito séria na

noite que passamos no parque. E ele concorda comigo


que a mamãe vai ficar mais feliz se a gente te devolver
tudo.

Pensei ainda por um instante, antes de decidir por

aceitar o dinheiro de volta. Se Sofia tinha decidido que


aquele era o certo a ser feito, eu iria respeitar e incentivar
a sua decisão.
Aquelas notas não faziam diferença alguma na

minha vida, mas eu sabia que não era sobre dinheiro... era
sobre responsabilidade.

E eu estava orgulhoso de Sofia por sua decisão.

Além do mais, eu sabia os motivos que levaram


Sofia a querer juntar aquele dinheiro. E, no que

dependesse de mim, seus objetivos seriam alcançados.

Eu ajudaria Luíza a ter uma forma de comercializar

os seus móveis. Não importava se ela não me aceitasse


de volta. Aquela era uma promessa que eu havia feito a

mim mesmo.

— Se você... e o Joe, claro... decidiram assim, por

mim tudo bem. Você queria esse dinheiro para a loja da


sua mãe, não é?

Ela movimentou a cabeça em uma afirmação, e


começou a contar: — A gente sempre conversa sobre

isso, e temos tudo planejado. Você quer saber como vai


ser?
— Eu adoraria.

— Vai ter um espaço reservado pra mamãe poder

trabalhar fazendo os móveis, e na frente será a loja, bem


grandona, mas não vai ter cara de loja, porque os móveis

vão estar como em uma casa. E os vendedores e clientes


vão poder sentar nas cadeiras e nos sofás, todos bem à
vontade. Vai ter um balanço bem bonito e, do lado dele,

uma casinha de madeira, bem colorida, onde o Joe vai


poder tirar suas sonecas. Mamãe disse que vai dar um

crachá de vendedor pra ele, e ele vai receber o


pagamento em petiscos.

Ela riu e eu sorri junto, encantado com a visão que


se formava em minha mente com as narrativas dela.

Então, eu finalmente entendi que o que eu tinha em


mente para ajudar Luíza não era exatamente o que ela

sonhava.

Achava que colocar os móveis dela à venda através


da estrutura comercial das Lojas Lizano seria o suficiente,
mas agora enfim eu entendia que estava enganado.
Não era simplesmente sobre vender.

Ia muito além disso.

Sofia voltou a esfregar os olhos, me dando mais um

indicativo de que estava com sono. Voltei a passar o dedo


pelo contorno do seu nariz.

— Acho que você realmente precisa dormir um

pouco.

Ela concordou, demonstrando que de fato estava

com muito sono.

Então, fez uma pergunta que eu não esperava


ouvir: — Você me conta uma história, tio?

Contar uma história?

Aquele devia ser um passo importante para eu

merecer o título de pai, e isso deveria, em qualquer outra


situação, me amedrontar.

Mas, na realidade, eu me senti subitamente

empolgado e agradecido por aquela oportunidade.


Quando fiz que sim, Sofia abriu um grande sorriso e

correu para a cama. Uma enorme bola de pelos entrou no


quarto nesse momento, mancando, e eu o ajudei a subir

na cama, já que ele estava com a pata engessada.

Sofia riu enquanto Joe se acomodava ao seu lado,

e meu coração se aquecia com o som de sua risada.

Antes de iniciar a história – que eu nem fazia ideia

de qual seria – eu declarei: — Eu fiquei desesperado

quando você sumiu. E ainda mais quando te encontramos

daquele jeito.

— Não vou mais fazer aquilo, tio. Eu juro.

— Eu acredito em você. Mas, me diz... por que,

quando fugiu, você decidiu ir para o parque?

— Eu gosto muito de lá. Me lembra o dia que você

me ensinou a andar de bicicleta. Foi muito importante pra


mim, porque...

— Por quê?
— Porque foi como se eu fosse sua filha. E eu me

senti muito feliz, porque... queria muito que você fosse o

meu papai.

Um nó se formou em minha garganta, impedindo-


me de falar qualquer coisa.

Ao mesmo tempo, lágrimas embaçaram a minha

visão.

Todo o meu coração pertencia àquela menina e à

sua mãe.

E não havia mais como voltar atrás.

*****
Capítulo cinquenta e cinco

“Não quero fugir, mas não consigo evitar, não entendo

Se não fui feito para ti, então por que meu coração diz que fui?

Há alguma maneira de ficar nos seus braços?”

(If You're Not The One - Daniel Bedingfield)

Quando consegui me livrar daquela súbita

taquicardia, decidi que, depois de tudo o que Henrique

tinha feito por nós, o mínimo que ele merecia era ser bem
recebido em nossa casa.
Eu ainda estava magoada... e muito. As mentiras

dele ainda doíam imensamente. Mas eu não sabia o que


teria sido de mim no dia anterior se não fosse por todo o

apoio dele.

Eu talvez nem mesmo teria encontrado Sofia, já

que deduziria que Joe estava apenas querendo voltar para


casa e o levaria para lá, sem dar a ele o crédito para que

me guiasse até onde Sofia estava.

E, ainda que a tivesse encontrado, não saberia se

teria todo o discernimento de agir rápido como ele agiu,


livrando-se das roupas molhadas e a aquecendo.

Aquilo tinha sido primordial para salvar a minha

filha. E, se isso ainda não bastasse, ele a levou a um


hospital, arcou com toda a conta, e ainda teve cabeça

para cuidar da patinha quebrada do Joe.

E para cuidar de mim, levando-me roupas limpas e

algo para comer.


Era tanto carinho, tanto cuidado, que se sobressaía
e muito a todo o mal que ele havia feito.

Porque do mal, ele parecia verdadeiramente

arrependido. E o bem, era nítido, tinha sido feito com

sinceridade e... sentimento.

Sendo assim, fui para a cozinha e preparei um café.

Joe me acompanhou o tempo inteiro e me olhava como se

fosse capaz de ler os meus pensamentos.

— O que foi, hein? Estou preparando um café para

o seu novo amigo. Vocês agora se dão bem, né?

Ele apenas continuou a me olhar e, nesse

momento, eu é que queria poder ser capaz de ler os seus


pensamentos. Talvez eles pudessem me dar alguns bons

conselhos.

Terminando de preparar o café, peguei alguns

biscoitos e organizei a pequena mesa da cozinha para um


lanche. Então, na intenção de chamar Sofia e Henrique,

subi as escadas devagar, em um ritmo em que Joe


conseguisse me seguir, já que tinha alguma dificuldade

por conta do gesso na pata.

A porta do quarto estava entreaberta e eu já ia

entrar, mas travei ao ouvir um pedido dito na voz da minha


filha: — Você me conta uma história?

Uma história? Seria para que ela dormisse?

Ela estava pedindo isso ao Henrique?

Joe entrou no quarto, mas eu me mantive ali


parada, praticamente escondida, incapaz de interromper

aquele momento.

Ouvi o barulho de alguém subindo no colchão e,

após alguns instantes, veio a voz de Henrique: — Eu


fiquei desesperado quando você sumiu. E ainda mais

quando te encontramos daquele jeito.

— Não vou mais fazer aquilo, tio. Eu juro.

— Eu acredito em você. Mas, me diz... por que,

quando fugiu, você decidiu ir para o parque?


Aquela era uma pergunta que eu também vinha me

fazendo.

Fiquei atenta para ouvir a resposta dela.

— Eu gosto muito de lá. Me lembra o dia que você

me ensinou a andar de bicicleta. Foi muito importante pra


mim, porque...

— Por quê?

— Porque foi como se eu fosse sua filha. E eu me


senti muito feliz, porque... queria muito que você fosse o

meu papai.

Ele se calou, e de certa forma eu sabia que se

sentia emocionado como eu.

Após alguns instantes, ele enfim disse alguma


coisa: — Eu seria o homem mais afortunado do mundo se
tivesse você como minha filha.

— Afortu... Afortu... o quê?


— Afortunado. É uma pessoa que tem uma grande
fortuna.

— Mas isso você já tem, tio. Você é dono de um


monte de lojas, é muito rico.

— Existem muitos tipos de riqueza, Sofia. E em


algumas delas eu sou bem pobre. Exatamente nas que

mais importam na vida.

— E nessas coisas que você é pobre, a mamãe e

eu somos ricas?

— Vocês são. Muito.

— Então a gente divide a fortuna com você.

Olhei pela fresta da porta e vi quando ela se jogou

nos braços de Henrique, abraçando-o.

Precisei levar a mão à boca para conter o som de

um soluço que escapou pelos meus lábios.

Depois de abraçá-la, Henrique ajeitou a coberta


sobre ela e o vi passar a mão pelo próprio rosto,
aparentemente detendo uma lágrima.

E eu, mais uma vez, presenciava o poderoso

Henrique Lizano chorar.

Achava que a emoção que eu sentia não poderia


ficar ainda maior, mas percebi que estava muito errada
quando ele voltou a falar.

— Eu amo vocês, Sofia. E não há nada nesse

mundo que eu não faria para ficar com a sua mãe e me


tornar o seu pai. Mas as coisas entre adultos são

complicadas, entende? Eu não posso decidir sozinho a

respeito disso.

— Mas eu também te amo, tio Henrique. E sei que

a mamãe também ama você.

Sofia seguia sendo uma grande fofoqueira, além de

uma ótima observadora.

Eu nunca tinha dito aquelas palavras relacionadas

a ele, nem para ela, nem para Henrique, nem ao menos


para mim mesma. Mas era exatamente como eu me

sentia.

Tão claro quanto água cristalina, eu amava aquele

homem.

Ele respondeu:

— Eu fiz muita coisa errada, Sofia. Não sei se Luíza

poderá perdoar a forma como menti para ela. Estou


disposto a lutar por ela, a fazer de tudo pelo seu perdão,

mas... ela tem todo o direito de não me querer em sua

vida. Mas não importa o que aconteça. Vocês duas vão


sempre poder contar comigo para tudo. E sempre que

você precisar de um pai... seja para te ensinar algo novo

ou para ir a uma festa de escola e calar a boca de alguma

princesinha boboca que esteja implicando com você... eu


vou sempre estar disponível para você. Sempre.

Dessa vez, foi Sofia quem ficou sem resposta, e

isso era algo extremamente raro de acontecer.


Então, Henrique enfim começou a contar uma

história que ele nitidamente inventava naquele instante.

Era sobre uma menina com superpoderes que, junto ao


seu cachorro também dotado de vários dons, combatia o

mal e protegia a cidade.

Fiquei ali parada no corredor, rindo como uma boba

da narrativa e sentindo meu coração se aquecer sempre

que ouvia alguma risada de Sofia. Mas estas foram


ficando mais raras, até que entendi que ela havia pegado

no sono.

Também parecendo perceber aquilo, ele se calou e

voltou a ajeitar as cobertas dela. Como um verdadeiro pai,


depositou um beijo em sua testa, depois fez um carinho na

cabeça de Joe e se levantou.

Afastei-me da porta, indo para o outro lado do

corredor, esperando até que ele saísse. Quando o fez, ele


parou, parecendo surpreso em me encontrar ali.

Mas não permiti que ele dissesse uma única

palavra. Eu já havia ouvido absolutamente tudo o que


precisava ouvir. Por isso que, deixando-me ser movida

apenas por instinto, eu avancei em sua direção e o beijei.

Embora em um primeiro instante ele se mostrasse

surpreso com minha atitude, ele logo correspondeu. Sua

mão contornou a minha cintura e me puxou para mais

perto dele, aprofundando o beijo.

Todo o meu corpo pareceu entrar em ebulição,


saciando aquele desejo que ia muito além do físico.

Meu coração precisava dele.

Meu corpo precisava do dele.

E minha alma também.

Senti minhas costas encontrarem a parede atrás de


mim e, então, nossos corpos se viram ainda mais colados.

Por Deus, eu amava aquele homem, e queria voltar

a ser dele. Não apenas de forma carnal, mas por

completo.
Porém, minha filha estava dormindo bem ali, no

quarto diante de nós. Não era o momento para me

entregar àquilo. Mesmo porque, embora aparentemente

as palavras não fossem necessárias, algumas delas


precisavam ser ditas.

Quando o ar nos faltou, nos obrigando a afastar

nossas bocas, eu toquei os lábios dele com os dedos,

como num sinal para que não voltasse a me beijar.

Sabia que era o que ele queria fazer e, no fundo, eu

também. Ficamos ainda alguns instantes com nossos

corpos colados, os rostos a poucos centímetros de

distância um do outro, os corações acelerados e os olhos


ligados, até que eu consegui retomar o fôlego e a

sanidade para enfim começar a falar: — Eu pensei muito

nesses últimos dias, especialmente nessa última noite. E


todas as minhas reflexões sempre chegaram à mesma

conclusão: eu não quero continuar o que tínhamos antes.

— Luíza... eu... — levei mais uma vez os dedos

delicadamente aos seus lábios, calando-o.


— Eu não quero continuar o que tínhamos,

Henrique — repeti. — Porque o que tínhamos podia


parecer bonito, mas começou em uma mentira. Começou

em uma aposta egoísta e cruel. E nada iniciado em um

alicerce assim tem como dar certo. Eu definitivamente não

quero continuar com aquilo. Mas eu acho que a gente


pode... talvez... tentar recomeçar.

— Recomeçar? — ele sussurrou, surpreso.

— É. Recomeçar. Do zero. De outra forma. Sem

mentiras. Acha que podemos?

Ele abaixou o rosto por um rápido momento e


percebi o leve esboço de um sorriso surgindo em seus

lábios.

Quando voltou a me olhar, ele deu um passo para

trás e estendeu a mão para mim.

— Prazer, meu nome é Henrique.

— Luíza. — Apertei a mão dele com a minha,

achando graça da forma como ele levava aquilo ao pé da


letra.

— O que você faz da vida, Luíza? — ele

questionou, ainda segurando minha mão junto à sua.

— Trabalho em um bar para pagar as contas, mas

também faço e vendo alguns móveis. E você?

— Eu tenho umas lojas aí. Estavam sob o comando


do meu irmão, mas eu estou assumindo agora e não estou

muito feliz com algumas coisas. Ando pensando em

mudar alguns conceitos dela.

— Posso te dar umas sugestões, se você quiser.

— Eu quero. Eu sem dúvidas quero. Na verdade,

mais do que isso: estava mesmo planejando pedir ajuda


para isso a alguém que entenda mais de questões

socioambientais e de qualidade de móveis do que eu.

— Bem... talvez eu possa te ajudar.

— Mesmo? Ouvi dizer que você não gosta muito


das minhas lojas.
— Quero te ajudar exatamente por não gostar
muito das suas lojas. Quem sabe, se mudar algumas
coisas, eu até mesmo mude um pouco de ideia?

— Ótimo. Acho que a gente pode conversar sobre

isso. Que tal amanhã à noite?

— Não posso. Tenho que trabalhar. E só saio às

três da manhã.

— Estarei livre às três da manhã. E vou real e


sinceramente adorar ter a sua companhia.

— Tipo um encontro?

— Pode ser um encontro. Se você quiser que seja.

— Bem... Antes de marcar um encontro comigo, há


algumas coisas que precisa saber sobre mim. Eu tenho

uma filha. E um cachorro. Isso é problema para você?

— Há até uns dois dias, o cachorro certamente


representaria um problema. Mas acho que estou
conseguindo lidar com isso. Ele está até começando a
gostar de mim.

— Então tudo bem. Acho que podemos ter um


encontro.

Ele voltou a aproximar lentamente seu rosto do

meu e parou, a apenas alguns centímetros de distância.

— Sei que estamos começando agora, Luíza. Será,


então, que é um pouco cedo para eu dizer que amo você?
Que amo tudo em você. Que amo sua filha. E que quero

vocês duas na minha vida?

— Não. Porque eu também te amo e também te


quero nas nossas vidas.

Então, voltamos a nos beijar.

E foi tão intenso e tão mágico que, de fato, parecia


ser a primeira vez.

E, agora, era muito mais significativo.

Porque era real.


*****
Capítulo cinquenta e seis

“Porque tudo de mim Ama tudo em você Ama suas

curvas e todos os seus limites Todas as suas perfeitas

imperfeições”

(All Of Me - John Legend)

Sete meses depois...

Aquilo não se parecia em nada com uma das

entediantes inaugurações das filiais da Lizano. Era, na

realidade, completamente diferente.


Tinha... sei lá... vida.

O espaço tinha ficado muito parecido com o que eu

imaginei quando Sofia me narrou os planos que ela e a


mãe faziam. Com a diferença de que, na realidade,

conseguia ser ainda mais bonito.

Não foi difícil encontrar o terreno perfeito para a

construção do ateliê, e, então, eu fiz a proposta a Luíza:


uma sociedade. Eu entraria com o capital e, ela, com a

mão de obra.

Boa parte do material usado nos móveis viria das

próprias lojas Lizano. Ela topou, e agora ali estávamos

nós, vendo o nosso sonho se tornar real.

Porque o sonho agora também era meu.

Tudo estava perfeito. Até mesmo meu irmão e sua

agora esposa Bruna vieram dos Estados Unidos para a

inauguração. Aliás, os dois estavam completamente


encantados por Sofia e, quem diria, Heitor tinha se

tornado um tio babão.


O que não era nada difícil com uma criança linda,
inteligente e divertida como Sofia.

Sim, eu tinha me tornado o pai mais orgulhoso de

todo o mundo. Não gostava da palavra ‘padrasto’, e Sofia

também não, por isso que ela seguia me chamando de tio


Henrique e sempre me apresentava a outras pessoas

dizendo que eu era seu pai emprestado.

Eu não gostava muito daquela coisa de

“empréstimo”, mas pretendia mudar isso em breve.

— Aquele vira-lata não parece gostar muito de mim

— a voz de Heitor chegou aos meus ouvidos, arrancando-

me dos meus devaneios.

Olhei para o lado, vendo-o se aproximar de mim,

com uma taça de champanhe em uma das mãos,

enquanto usava a outra para apontar para o Joe.

— Melhor não o chamar assim na frente da Sofia,


ou ela também vai passar a não gostar mais de você — eu

adverti.
— É claro que isso não vai acontecer. Sofia já me

adora. Ela disse que sou um tio bem legal.

— Mas Joe é o melhor amigo dela.

— É só um modo de falar. Bruna está querendo

adotar um cachorro nos Estados Unidos, mas o Joe está


me fazendo repensar a ideia. Ele parece ser adorável com

todo mundo, mas é só eu passar perto que ele logo


começa a rosnar.

Eu ri, pensando em como aquele filho da mãe do


Joe tinha um sexto sentido muito bem apurado. Ele fazia o

mesmo comigo quando nos conhecemos e, agora, era


como se de alguma forma soubesse que Luíza e eu quase
tínhamos rompido de forma definitiva por culpa das

mensagens de mau gosto enviadas pelo Heitor.

Bem, na verdade, tinha sido por culpa minha, mas


Heitor tivera sua participação crucial naquilo.

Mas eu sabia que meu irmão já estava mais do que


arrependido. Em algum momento, Joe iria entender isso
também.

— Cães precisam ter suas confianças conquistadas

— argumentei. — Assim como as crianças. Você já teve


sucesso com Sofia, vai conseguir com o Joe também e
com o cachorro que você e Bruna decidirem adotar.

— Não apenas crianças e cães, irmão. Confiança é

algo que se conquista. Fico feliz que você tenha


conseguido reconquistar a de Luíza e que tudo esteja
agora bem entre vocês.

O comentário fez com que eu percorresse os olhos

pela loja, procurando por Luíza, mas antes disso avistei


Sofia. Ela usava um vestido rodado vermelho, com os

cabelos presos por um alto rabo de cavalo, decorado com


uma fita da mesma cor das roupas.

Estava parecendo uma boneca.

Ela andava por toda loja, mostrando cada detalhe à

sua amiguinha Gabi, ambas acompanhadas por Joe, que


estava elegante com uma gravata borboleta – ideias da
Jojo, que também estava presente. A partir do dia
seguinte, ele substituiria aquele traje formal pelo seu
crachá de vendedor. Luíza havia mesmo providenciado

um para ele, com o cargo de “Cãosultor de vendas”.

Beatriz e Carla trabalhariam ali com a gente. Sara


também estava presente na festa, acompanhada pelo seu
novo namorado, um tal de Jonas, que parecia ser um cara

legal.

Então, eu enfim aviste Luíza. E ela estava...

Porra, que palavras eu poderia usar para descrever

aquela mulher, meu Deus?

Havia escolhido o verde para compor o vestido


incrivelmente elegante e sexy que usava. Aquela era a cor
da logomarca do Ateliê Sofia, cujo símbolo, como não

poderia deixar de ser para combinar com a homenageada,


trazia o desenho de uma árvore.

Eu não via a hora de aquele dia chegar ao fim para


eu poder tirar aquele vestido de Luíza. Logicamente, isso
não aconteceria de forma tão simples assim, já que
teríamos que esperar uma certa garotinha dormir.

E ela não dormiria tão cedo assim, porque...

Bem, eu tinha uma pequena surpresa para as duas


naquela noite.

*****
Capítulo cinquenta e sete

"Assim como nicotina, heroína, morfina De repente, sou uma


viciada e você é tudo o que preciso Tudo o que preciso, sim, você é

tudo o que preciso"

(Never Be The Same – Camila Cabello)

Depois da inauguração, eu as levei para a minha


casa, onde elas passariam o final de semana. O dia

seguinte seria o aniversário de sete anos de Sofia e um

grupo de coleguinhas dela iria também para lá, passar o


dia em uma festinha na piscina.
Aquela, aliás, era a minha nova definição para

‘reuniões com piscina e churrasco’. Agora eram


basicamente eventos familiares, ou cercado por crianças.

Ao final, eu ainda costumava encerrar a noite ao lado de

uma mulher, mas agora era sempre a mesma. Aquela com


quem eu queria acordar para sempre.

Chegando em casa, ficamos algum tempo

conversando na beira da piscina, à noite. Fazia calor, e

aquele era um lugar onde gostávamos de ficar. Só nós


três – ou quatro, contando com Joe.

Heitor optou por ficar com a esposa na antiga casa

dela, e nesses dias Joana estava ficando lá com eles, com

a desculpa de ajudá-los na casa. Mas a grande verdade é

que Heitor morria de saudades daquela mulher que havia

sido muito mais presente na nossa vida que a nossa mãe.

Ele até mesmo queria levá-la com ele para os

Estados Unidos. Mas era óbvio que eu não teria deixado.

Agora, com certeza, ela própria é que não iria querer sair

do Brasil, tendo em vista que já tinha por Sofia o amor de


uma avó.
E o clima ali entre nós era simplesmente
maravilhoso. A sensação de estar em família era tão

acolhedora, que eu tinha vontade de não as deixar saírem

daquela casa nunca mais.

Esse, aliás, era um plano que eu pretendia em


breve colocar em ação.

— Podia ter festa todo dia lá na loja, né? — Sofia

comentou, em um momento em que conversávamos

justamente sobre o sucesso da inauguração.

— A vida não é só festa, filha — Luíza chamou a

sua atenção. — O propósito de uma loja é vender,

lembra?

— Mas você vendeu muito hoje, mamãe!

— Isso é verdade — concordei.

E um lindo sorriso surgiu no rosto da minha


namorada.
— É, eu realmente não esperava que fosse tão

bom logo na inauguração. Por sorte, passei esses últimos


meses empenhada em criar muitas peças e tínhamos uma

boa quantidade e variedade. Mas se continuar nesse


ritmo, acho que teremos que contratar mais funcionários
para me ajudar.

— Contrataremos, se for preciso. Tudo pelo

sucesso do Ateliê.

— Não estou certa se o seu conceito de sucesso é

em alguma coisa parecido com o meu. Se o parâmetro for


o lucro das lojas Lizano, não vai chegar nem aos pés.

Você sabe disso, não é?

— Você está de brincadeira? Se continuarmos

nesse ritmo de encomenda, em muito pouco tempo


recuperaremos todo o dinheiro investido. Até o empresário

mais mercenário do mundo é capaz de ver isso.

Ela se inclinou para frente, aproximando mais o seu

rosto do meu.
— Você não é o empresário mais mercenário do

mundo.

— Ah... não sou?

— Não. Esse é o seu irmão.

Tive que rir do comentário. Embora ela tivesse

perdoado Heitor por aquelas malditas mensagens e os


dois até se dessem bem atualmente, ela nutria ainda uma
leve implicância com a forma com que ele cuidou dos

negócios da Lizano antes de eu assumir como CEO.

Aproveitei a proximidade para dar um selinho em


seus lábios, o que fez com que Sofia levasse as mãos ao
rosto, rindo. Luíza apenas sorriu de forma provocadora, e

eu compreendia o recado. Mais tarde iríamos terminar


aquilo.

E eu não via a hora.

Aparentemente, ela também, porque se levantou,


anunciando: — Acho que é hora de irmos dormir.
— Ah, mamãe... tá cedo... — Sofia reclamou.

— Nada disso, mocinha. Amanhã precisamos

levantar cedo para recebermos o bufê da sua festa,


lembra?

— Sua mãe tem razão — concordei, embora não


quisesse que Sofia fosse dormir naquele momento. Eu

ainda tinha algo para ela e para Luíza. — Mas antes de


entrarmos, quero adiantar um dos presentes de

aniversário da minha pequena super-heroína. Deixei


escondido atrás do balanço. Por que não vai ver o que é,
Sofia?

Ela deu um pulo, empolgada, e correu até o local

que eu indiquei. Tinha colocado um balanço para ela na


área da piscina, suspenso sobre uma grande árvore que
tinha ali. Era um dos lugares preferidos dela na minha

casa.

Ela encontrou uma enorme caixa escondida atrás


do tronco. Tinha praticamente metade do tamanho dela,
mas era bem leve, então ela conseguiu carregar.
Enquanto Sofia voltava até nós trazendo a caixa,
Luíza comentou: — “Um dos” presentes? Você a mima
demais, Henrique. — Ela voltou a se sentar na cadeira

espreguiçadeira ao lado da minha.

— Minha garotinha merece o mundo. Minhas duas


garotas merecem, aliás.

Ela tentou, sem sucesso, conter um meio-sorriso e

me olhou novamente com aqueles olhos de quem


prometia que teríamos uma noite e tanto.

E eu não via a hora.

— E você pode me contar o que é? — ela disfarçou

com uma pergunta relacionada ao embrulho que Sofia

trazia.

— Não. Porque não é um presente apenas para

ela, mas para vocês duas.

— Para mim também? O que você aprontou,

senhor Henrique Lizano?


— Aguarde para ver.

— Para ver o quê? — Sofia parava diante de nós


nesse momento, colocando a enorme caixa no chão.

Estava embalada em um papel cor-de-rosa, com

um grande laço da mesma cor.

— Estava contando para a sua mãe que esse não é

um presente só para você. É para as duas.

— É um novo cachorro? — Sofia saltitou.

Joe latiu, parecendo entender a pergunta.

— Não, não é um cachorro.

— Um gatinho, então? — Mais um salto e mais um

latido de Joe.

— Não. Não é nenhum bichinho de estimação.


Fique tranquilo, Joe, você continuará sendo o único por

algum tempo.

— Então, o que é, tio Henrique?


— Abra e veja.

Ajeitei a caixa de forma estratégica, bem no meio

entre nós e Sofia, com um dos lados específicos virados

para ela.

Luíza fez menção de se levantar para ajudá-la, mas


eu a segurei. Estávamos em cadeiras diferentes, embora

uma ao lado da outra, mas fui para a dela, sentando-me

ao seu lado e a abraçando à minha frente.

Uma eternidade pareceu passar em expectativa


enquanto Sofia puxava a ponta do laço, soltando-o. Logo

que o fez, a tampa da caixa se abriu e uma série de

balões vermelhos, em formato de coração, subiu, parando


pouco acima da abertura da caixa por estarem presos ao

fundo desta por fitas Eu me levantei e Luíza fez o mesmo,

assim conseguindo ver o rosto de Sofia. Ela percorria os

olhos pelos balões e movimentava os lábios, parecendo


ler algo silenciosamente.

Eu não podia imaginar que a reação dela fosse

aquela, mas um nó de emoção surgiu em minha garganta


quando vi os olhos dela ficando marejados. Ela passou as

costas das mãos pelo rosto, secando as lágrimas, e


pareceu tentar dizer alguma coisa, mas não conseguiu.

Preocupada com aquilo, Luíza me soltou e deu a

volta pela caixa, indo até a filha. Então parou quando seus

olhos bateram nos dizeres do balão.

Fui até elas, também olhando o que estava escrito


ali, sendo uma palavra em cada um dos corações.

Sofia, você aceita ser minha filha?

Não dei tempo para que nenhuma das duas

dissesse qualquer coisa e me ajoelhei diante de Luíza,

tirando do bolso a caixinha que pareia queimar ali dentro o


dia inteiro, ansioso por aquele momento.

Lágrimas também caíram pelo rosto de Luíza

quando abri a caixinha e comecei a falar: — Nós

começamos de uma forma completamente errada, porque


eu era um grande idiota. Mas, quando eu ainda estava

mergulhado na mentira, você me fez querer ser um

homem melhor. Você me fez sentir felicidade em coisas

simples, me fez entender a importância de olhar as


pessoas ao meu redor, me fez querer ter uma família.

Você me deu uma família, e eu seria o homem mais feliz

desse mundo se essa família também fosse minha de


forma oficial. E é por isso que eu tenho uma pergunta para

você e duas para a Sofia. A primeira eu já fiz, através dos

balões. E a segunda é... — Olhei para Sofia, que havia se

aproximado de forma tímida. — Você me concede a mão


da sua mãe em casamento?

Então, ela teve a reação mais inusitada possível.

Abriu a boca e desabou no choro, jogando-se sobre mim e

me abraçando.

Acolhi-a em meus braços, preocupado.

— Querida, você está bem? Está sentindo alguma

coisa, Sofia?
— Sim! — ela praticamente gritou, me deixando

ainda mais nervoso. — Sim, sim!

— O que você está sentindo? Luíza, você trouxe


um termômetro? Eu não sei se tenho um aqui em casa.

Melhor a levarmos para um hospital, não é?

Quando levantei o rosto para olhar para Luíza, no

entanto, ela também estava chorando, mas, em meio às


lágrimas, havia um sorriso.

— Acho que essa foi a resposta dela, Henrique... —

Luíza conseguiu falar, com a voz entrecortada por soluços.

Sofia se afastou um pouco e me olhou, com seu


rostinho todo molhado pelas lágrimas.

— Sim, eu concido, tio. Digo... papai. Vou poder

sempre te chamar assim?

Soltei o ar dos pulmões, em um misto de alívio por

ela estar bem, com felicidade por aquela resposta.


Por aquela palavra tão doce, dita pela menina mais
doce do mundo.

Era como se meu peito fosse explodir. Minha visão

ficou turva, provavelmente porque já havia lágrimas se

avolumando ali também.

Deixei de lado a correção por ela ter errado na

conjugação do verbo “conceder”. Tudo o que me

importava era o seu “sim”, e responder também à sua

pergunta.

— Serei o homem mais feliz e realizado desse

mundo todas as vezes em que você me chamar assim,

filha.

Ela voltou a me abraçar.

Luíza também se ajoelhou à minha frente e abraçou


nós dois.

Ficamos assim por algum tempo. Dentro daquele


abraço coletivo, era como se existisse a proteção para
todo e qualquer mal. Era como se o restante do mundo lá
fora não tivesse qualquer importância.

Todo aquele pequeno universo criado por nós me


bastava.

Até que Sofia se afastou para voltar a enxugar o


rosto e Luíza aproveitou para fazer o mesmo, passando as

mãos também pelo rosto da filha.

Da nossa filha.

Bem... na verdade, eu ainda precisava de uma das


respostas.

— Falta você me responder, Lu... — falei,


mostrando a caixinha de anel que eu ainda segurava.

Ela ergueu uma sobrancelha, divertida, e soltou

outro questionamento.

— Ei, Joe, o que você acha disso?

O mencionado se aproximou, olhando fixamente


para mim.
Pisquei, confuso, e Sofia então explicou: — Você
pediu só pra mim a mão da mamãe. Tem que pedir pra ele
também.

Que diabos... era só o que faltava. Nós dois

andávamos até amigos nos últimos meses, mas... sei lá se


aquele vira-lata iria voltar a querer me morder...

— Então, Joe... Nós somos amigos agora, não é?


Lembre-se de que eu sempre trago petiscos para você.

Então... Você me concede a mão da sua humana em


casamento?

Joe continuou a me olhar daquela forma em que


parecia não apenas ler, mas também analisar a minha

mente.

Então, ele aproximou o focinho do meu rosto e me


mostrou os dentes.

Eu juro que cheguei a fechar os olhos, esperando


por uma mordida. Mas o que veio foi uma lambida por

toda a minha cara.


— Arg, Joe! — reclamei, passando as mãos pelo
meu rosto lambido.

Luíza e Sofia riram.

— Acho que isso foi um sim — minha pequena

deduziu.

E Luíza concordou.

— Bem... se Sofia e Joe autorizaram, você também


tem o meu sim.

Aquilo era tudo o que eu queria ouvir.

Segurei o rosto dela com ambas as mãos e me


aproximei, beijando-a nos lábios.

Sofia se levantou, indo brincar com os balões, e


Joe a seguiu.

Quando afastei meus lábios dos de Luíza, nós

encostamos nossas testas e fechamos nossos olhos,


sentindo forte o amor que nos cercava.
E, apesar de eu ter prometido a mim mesmo que

jamais voltaria a fazer apostas, eu poderia apostar


qualquer coisa que eu era o sujeito mais feliz de todo o
mundo.

*****
Epílogo 1

“Eu irei te amar É a melhor coisa que eu vou fazer É

uma promessa que eu estou fazendo com você O que quer

que o seu coração decida, eu vou escolher Para sempre eu

sou sua, para sempre eu sou”

(I Get to Love You - Ruelle)

Um ano depois...

Olhar-me no espelho e me ver usando aquele

vestido de noiva me fazia relembrar meus sonhos de

menina, deixados para trás.


Em certo ponto, a vida havia me levado a acreditar

que eu não poderia realizar todos os meus sonhos, que


deveria priorizar alguns em decorrência de outros... que

não era possível ter tudo.

E, agora, lá estava eu, realizando o sonho que eu

tinha desde... sei lá... uns doze ou treze anos de idade.

Queria que meu pai estivesse ali para me levar até


o altar. Aquele desejo não seria possível. Mas ele estaria

comigo, no meu coração. E eu estava certa de que, em

algum lugar, ele estava bem orgulhoso de mim.

— Mamãe! — a voz de Sofia chamou a minha

atenção.

E eu me virei, ficando de costas para o espelho e

de frente para a porta que se abria.

Minha filha e minha mãe entravam juntas, ambas

parando para me olharem melhor.

Com um enorme sorriso no rosto, Sofia falou: —

Você parece uma princesa. Mas não uma princesa


boboca, uma bem legal.

Abri os braços para que ela viesse ao meu encontro

me abraçar. Ela usava um vestido em um tom de areia

muito parecido com o meu. Seria minha dama de honra.

— E você é a princesa e a super heroína da minha

vida — declarei, encostando minha testa na dela.

Então, recebi o abraço da minha mãe. Ela é que me

levaria até o altar.

Entraríamos nós três juntas, três gerações de

mulheres da mesma família. Aquilo, para mim, seria

perfeito. Muito mais significativo do que eu poderia sonhar

quando pensava a respeito de meu próprio casamento


quando era apenas uma menina.

E já estava na hora.

Saí da casa onde eu me arrumava, localizada na


fazenda da família de Henrique.
Decidimos por uma cerimônia simples, apenas para

os mais próximos. O local escolhido não poderia ser mais


perfeito, em meio à natureza. O altar foi montado bem à

sombra de uma enorme árvore, com a aprovação de


Sofia. O cheiro das flores do meu buquê se misturava ao
de toda aquela vegetação ao nosso redor.

Um cheiro de vida, de esperança... de amor.

No caminho até o altar, pouco mais de quarenta


pessoas estavam ali para presenciarem nossa união. Lá

na frente, diante do cerimonialista, estavam nossos


padrinhos – Sara e Jonas os meus, Heitor e Bruna os de

Henrique; além do nosso mascote, sentado de forma


comportada ao lado de seu “pai humano”. Joe estava bem

elegante com uma gravata preta, combinando com a de


Henrique.

E, por falar nele...

UAU...
Eu já tinha visto várias versões do meu noivo. De

vendedor de loja, playboy no barzinho com amigos, CEO


elegante... e até mesmo de unhas pintadas e maquiagem

borrada feitos pela Sofia em suas brincadeiras.

Mas nada chegava aos pés de sua versão de

smoking. Era simplesmente de perder o fôlego.

E eu ia adorar tirar cada peça daquele traje chique


mais tarde, para saboreá-lo em sua versão amante. Ele
sem roupas também era uma versão perfeita.

Trocamos nossos votos diante da presença de

nossas famílias e amigos. Quando o cerimonialista nos


declarou casados, a boca de Henrique se apossou da

minha em um beijo apaixonado.

Enfim, casados.

Enfim, tornávamos oficial aquilo que nossos


corações já sabiam: Que éramos uma família.

*****
Epílogo 2

"Quando a noite tiver chegado E a terra estiver escura E a Lua for a


única luz que veremos Não, eu não terei medo, não, eu não terei

medo Desde que você fique, fique comigo"

(Stand By Me – Seal)

Seis meses depois...

— Você não acha que eles estão estranhos?

Olhei para o Joe, esperando por uma resposta. Ele

nem me olhou de volta e apenas bocejou, como se não se


importasse com a situação.
No fundo, acho que ele não ligava mesmo.

Joe era meu melhor amigo, mas eu já não era mais

uma criancinha. Agora eu já tinha oito anos e meio...


quase nove!

Tá, eu sabia que ainda era criança, mas já era uma

criança maior e mais ligada nas coisas.

Por isso, eu entendia que os interesses do Joe

eram diferentes dos meus.

Tudo pra ele estava bem desde que seu potinho de

comida estivesse cheio, que ele tivesse sempre bolinhas

para brincar e ganhasse carinhos na barriga e petiscos.

— Você não entende nada sobre a complexidade

da vida, Joe! — resmunguei.

Eu tinha ouvido aquela frase do meu pai há algum


tempo. Confesso que não tinha entendido muito bem, mas

achei legal, então gostava de repetir.


E Joe, de novo, bocejou, mostrando pra mim que já
tava na hora da soneca que ele tirava todo dia de manhã,

antes do almoço.

Eu tava sentada no chão, do lado do meu cachorro,

bem na entrada da cozinha, espiando.

Não! Espiando não!

Espiar era feio e errado.

‘Observando’... era uma palavra mais bonita e não

me deixava parecendo uma fofoqueira.

Como era domingo, a vovó Jojo tava de folga,


então, como sempre, meus pais preparavam juntos o

almoço. Era uma coisa que eles sempre gostavam de

fazer, e parecia sempre divertido. Eles conversavam

muito, riam, e muitas vezes se beijavam quando achavam

que eu não tava olhando.

Mas nesse dia eles tavam... esquisitos.


Eles até sorriam, mas ao mesmo tempo pareciam

também preocupados, e falavam baixinho. E nem me


deixaram ajudar, como eu sempre gostava de fazer.

Mandaram eu e o Joe irmos brincar no quintal.

— Acha que eles vão se separar, Joe? Que nem os


pais da Gabi?

Voltei a olhar para Joe e, desta vez, ele me olhou


de volta e inclinou a cabeça para o lado. Ninguém mais

entenderia, mas nós éramos os melhores amigos de todo


o mundo, então eu tinha certeza de que conseguia ler os

pensamentos dele.

— Não, né? Porque eles tão preocupados e falando

baixinho, mas também tão rindo, né? Gabi me contou que


os pais dela gritavam o tempo todo antes de se

separarem. E o papai só grita quando você rouba o


chinelo ou as meias dele e sai correndo. Você devia parar
de fazer essas coisas, Joe.
Ele voltou a virar o rosto para o outro lado,

deixando de me olhar e voltando a bocejar.

Que sonso!

Ele era muito abusado... e adorava mudar de

assunto nas horas das broncas.

Eu tava olhando pra ele quando ouvi os passos


chegando perto de mim. Olhei pro alto e vi a mamãe e o
papai me olhando de um jeito confuso.

— O que está fazendo aí escondida, Sofia? —

mamãe perguntou.

Eu tava bem no cantinho atrás da porta e só agora

eles tinham me visto.

Respondi com outra pergunta: — Por que vocês


tavam falando baixinho? Estão escondendo alguma coisa
de mim?

Eles olharam um para o outro e percebi que

pareciam segurar o riso.


Era um bom sinal, não era?

Se estavam achando graça de alguma coisa, é

porque não iam se separar.

— Vem cá, filha. A gente precisa conversar com

você — papai falou, se abaixando pra me pegar no colo.

Minha mãe já não conseguia mais me segurar no


colo, porque eu tava crescendo e ficando mais pesada.
Mas isso não parecia fazer diferença pro meu pai.

Ele me colocou sentada no balcão da cozinha e

minha mãe parou do seu lado, os dois de frente pra mim.

— Eu fiz alguma coisa errada? — perguntei.

Bem, não seria a primeira vez que eu tinha

aprontado alguma sem nem ter percebido.

E acho que nem seria a última também...

— O quê? — papai falou, confuso. — Não, Sofia.

Você não fez nada.


Mamãe segurou a minha mão e falou: — Nós
temos uma coisa para contar para você, querida. Uma
coisa muito importante. Queríamos fazer uma surpresa e

contar de forma especial, mas...

— Vocês vão se separar? — perguntei, assustada.

Eles olharam um para o outro e riram.

— De onde tirou isso, filha? — papai perguntou.

— Vocês tão estranhos e tão escondendo algo de

mim.

— Não vamos nos separar, querida — mamãe


falou, segurando minha mão com mais força. — Estamos

muito felizes juntos.

— Na verdade, temos uma ótima notícia — papai

continuou. — Íamos te contar depois do almoço. Eu tentei


preparar um bolo especial para você, aquele de chocolate

que você adora, mas...


Ele se afastou e foi até o fogão. Tirou do forno um

tabuleiro e o colocou no balcão, bem do meu lado.

Eu amava bolo de chocolate, mas aquele não

parecia nada bom. Tava magrelo, murcho e queimado.

— Devíamos ter comprado pronto... — papai

resmungou.

Mamãe riu.

— Acho que não precisamos de um bolo para isso.

— Contem logo! — pedi, já mais do que curiosa.

Eles voltaram a olhar um para o outro. E depois

olharam de novo pra mim. Os dois estavam sorrindo e a

mamãe, ao mesmo tempo, também começou a chorar.


Papaí também estava com lágrimas nos olhos.

Mamãe levou a minha mão até a sua barriga e

falou: — O que você acha da ideia de ter um irmãozinho

ou uma irmãzinha?
Minha boca abriu, como se meu queixo tivesse

caído.

Achei que fosse alguma brincadeira deles. Quando

percebi que não era, ainda levei um tempinho pra


conseguir falar alguma coisa.

Ou, ao menos, tentei.

— Isso é... Isso é...

Os dois continuavam a me olhar, parecendo tensos.

Pulei do balcão e corri até a porta da cozinha.

— Sofia! — os dois me chamaram ao mesmo


tempo.

Pareciam preocupados. Mas eu não queria que

ficassem assim.

Por isso que, logo que encontrei o Joe, ainda

sentado perto da porta, eu o puxei para dentro da cozinha,


voltando para perto dos meus pais.
Daí, eu dei um abraço na mamãe. Um abraço forte,

sentindo a barriga dela junto ao meu peito.

— Olha só, Joe... Eu vou ganhar um irmãozinho!

Você vai ter outro amigo pra brincar! Isso não é

maravilhoso, Joe?

Ele latiu, mostrando que tinha entendido e que,

assim como eu, tinha ficado muito feliz.

Papai se juntou a mamãe e eu naquele abraço, e

Joe ficou dando pulos ao nosso redor.

— Acho que ela ficou feliz com a notícia... — papai

falou.

— Está vendo só? — agora era mamãe quem


falava. — E nem precisamos de um bolo.

— Essa é a melhor notícia de todo o mundo! —

vibrei.

E todos riram.

Até mesmo o Joe latiu ainda mais.


E acho que até mesmo o meu irmãozinho, que

ainda era muito pequenininho dentro da barriga da minha

mãe, deve ter sorrido também.

Eu ia ser a melhor irmã do mundo.

Ia ensinar meu irmãozinho ou irmãzinha a andar de


bicicleta sem as rodinhas, a fazer contas, e a cantar várias

músicas, até mesmo aquela que cantei na escola quando

fiz o papel de uma árvore na peça.

Ia ensinar pra ele, ou pra ela, que não se deve


aceitar dinheiro de pessoas que a gente não conhece...

mesmo que tenha dado certo pra mim e pro Joe...

— Você está feliz, meu amor? — minha mãe me

perguntou.

Percebi que não conseguia responder. Só naquele


momento eu notei que também estava chorando, mas era

de alegria.

Papai sempre dizia que apostas eram erradas...


Mas eu apostaria todos os meus brinquedos... até

mesmo a minha almofada de árvore, que era o meu


favorito... que eu era a menina mais feliz de todo o mundo.

FIM
CONHEÇA OUTROS TRABALHOS DA
AUTORA

Este livro foi anteriormente publicado com o título

Corações em Jogo, assinado pelo meu antigo


pseudônimo Luna Soares.

Contudo, o conteúdo foi inteiramente revisado,

contando agora com trechos novos e cenas inéditas.

Todos os títulos anteriormente publicados com os

pseudônimos LF Freitas e Luna Soares serão, agora,


assinados como Luciane Rangel.

Conheça os outros livros da autora. Todos


disponíveis em e-book na Amazon, para
compra ou leitura pelo Kindle Unlimited.
(Alguns também em livro físico)
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Rangel/e/B00J2K4DJI/

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