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CAP{TULO I O nascimento do teatro moderno Nos tiltimos anos do século XIX ocorreram dois fendmenos, ambos resultantes da revolucao tecnoldgica, de uma importancia decisiva para a evolugao do espetaculo teatral, na medida em que contribuiram para aquilo que designamos como o surgimento do encenador. Em primeiro « lugar, istanciasy Em segundo, alétricas Se, por exemplo, no inicio do século passado, digamos até 1840, existia uma verdadeira fronteira, ao mesmo tempo geogréfica e politica, separando o chamado bom gosto, um gosto especificamente francés, da estética shakespeariana, a partir dos anos 1860 as teorias e praticas teatrais nao podem mais ficar circunscritas dentro de limites geograficos, nem ser adequadamente explicadas por uma tradic4o nacional. A~ constatacao aplica-se ao naturalismo: dois anos apés a criagdo, por Antoine, do Théatre-Libre em Paris (1887) inaugurava-se em Berlim a Freie Buhne, e 11 anos mais tarde, em Moscou, o Teatro de Arte de Stanislavski e Nemirovitch-Dantchenko. Os spectros, de Ibsen, tém lancamento na Noruega em 1881 e em 1890 Antoine monta 0 texto em Paris. As produgées de Os tecelves, de Hauptmann, na Franca e na Alemanha datam do mesmo ano (1892). Trata-se de um fendmeno de difusao que nao seria correto considerar restrito aos produtos, as obras. Ele é, na verdade, uma conseqiiéncia de uma divulgacdo andloga de teorias, pesquisas e praticas. Desse ponto de vista, as tournées empreens didas a partir de 1874 por toda a Europa — com excegao da Franca! — pelos Meininger, conjunto criado alguns anos antes pelo duque de Saxe-Meiningen, ea sua repercussao sobre a evolucao do teatro europeu, 19 20 A linguagem da encenagao teatral constitufram a primeira manifestacao desse fendmeno caracter{stico do teatro moderno. A mesma multipolaridade marca a cortente simbolista. A deter. minagao de assumir e explorar os recursos da teatralidade, a recusa da camisa-de-forga da representago ilusionista, da qual o naturalismo é apenas uma ponta levada as tiltimas conseqiiéncias, afirmam-se nos principais centros do teatro europeu, com Appia na Suica, Craig em Londres, Behrens e Max Reinhardt na Alemanha, Meyerhold em Moscou. Levando-se em conta as amarras materiais (tecnoldgicas e econémicas) inerentes a pratica do teatro, as diferengas de datas nao tém grande significado: as transformagées sao naturalmente mais répi- das na pintura do que no palco. Entretanto, as coisas nao tardam a precipitar-se: Paul Fort funda o Théatre d’Art em 1891, Lugné-Poe o Théatre de I’Euvre em 1893. O ensaio de Appia intitulado La mise-en-scene du drame wagnérien, que nos anos 1950-1960 viria a ser *a inspiragao do novo Bayreuth, data de 1895. Dez anos depois surge ‘a obra fundamental de Craig, De l’art du thédtre (1905), e no ano seguinte 0 sufco e o inglés, estimulados por uma grande atriz tragica italiana, Eleonora Duse, associam-se para montar em Florenga a obra de.um dramaturgo noruegués: Rosmersholm, de Ibsen. Em 1912, a convite de Stanislavski, Craig vai a Moscou para dirigir Hamlet, com 0 elenco do Théatre d’Art. Voltaremos oportunamente As teorias simbolistas. Mas desde ja pode-se constatar que ‘maisyveemente que fosse,_para fazer surgitem as" transformagoes!aué Vitiam:acaracterizar,ovteatroomoderno: Seria mais exato, sem diivida, dizer que essas transformagoes se concretizaram — de modo bem gradual, alids, se considerarmos as resisténcias que Vilar e Wieland Wagner encontraram na década de 1950, respectivamente na Fransa © na Alemanha, antes de fazerem triunfar as concepgoes herdadas de Appia, Craig e Copeau — gracas & cogxisténcia de um desejo de rupcura + ¢ de uma possibilidade de mudanga’ Em outras palavras, ‘a recusa das Fi e teorias e férmulas superadas, bem como propostas concretas qu levavam a realizacio de outra coisa) == O nascimento do teatro moderno 21 See eee Loie Fuller fez incrivel sensagao na trartsigao entre os dois séculos. O que impressiona hoje, quando pensamos nos espetaculos da dangarina norte-americana, nao ¢ tanto a sua dimensao coreografica ou gestual, aparentemente rudimentar (embora constitufsse, para os seus contem- poraneos, o exemplo tangivel de uma arte expressiva mas liberta das preocupagées da representacao figurativa); mas ¢ aquilo que esses espetéculos revelam em relagio ao espaco cénico; ou seja, que @ Jiluminacio elétrica pode, por si s6, modelar; modular, esculpir um ‘nu e vazio, dar-lhe vida, fazer dele aquele espaco do sonho eda Pan qual aspiravam os expoentes da representacao simbolista. Em 1891, Loie Fuller apresenta-se nos Follies-Bergéres de Paris. Em 1900, Craig mostra a sua encenagao da dpera de Purcell, Dido e Enéias, que os seus contemporaneos admiram pelo seu despojamento, pelo seu rebuscamento pictérico. Os dois acontecimentos nao tém aparentemente nada a ver um com o outro. E, no entanto, tém algo em comum: a iluminagdo, elétrica ou oxidrica, torna-se o principal instrumento de estruturacao e animagao do espago cénico. Em 1951, Vilar assume a direco do Théatre National Populaire no Chaillot e faz furor com as suas encenagoes de Cid e de O principe de Hombargo. No mesmo ano, o Festspielhaus de Bayreuth reabre suas portas, € 0 Parsifal montado por Wieland Wagner desconcerta ou sufoca os espectadores nostalgicos do culto de antes da guerra. Mais uma vez, trata-se de dois acontecimentos sem ligacao aparente, a nao ser 0 fato de que em cada um deles a luz torna-se elemento preponderante da cenografia. Essas referéncias, escolhidas mais ou menos arbitrariamente, nao devem ocultar outras pedras angulares. Os textos tedricos, por exemplo, que costumam passar quase despercebidos quando sao langados, mas que acabam assumindo, com o recuo do tempo, a importancia que lhes cabe. J4 foram citados os ensaios de Appia e de Craig. Poderfamos acrescentar O teatro e seu duplo, de Artaud, que retine, em 1938, uma série de textos, alguns dos quais anteriores aquela data. Cada um desses autores nao se cansa de afirmar a importancia da luz no teatro, e de lamentar a mediocridade com que os palcos de seu tempo exploram os seus recursos. Uma conclusao, pelo menos, pode ser tirada disso tudo: ll _ A linguagem da encenagao teatral aarte da encenagao estd sujeita a tais pressées econdmicas e so que sua evolugio sofre em fungao delas um peculiar atraso, parece feita de fases repetitivas, A 30 ou 50 anos de distancia, as mesmas tentativas te © mesmo espanto, a mesma surpresa ora indignada ora cheia de entusiasmo. rang ie gO” Voltemos, porém, a Loie Fuller A utilizacdo da luz, nos seus espeticulos, é importante sobretudo no sentido de que nao se limita a uma defini¢ao atmosférica do espago. Nao espalha mais sobre o palco um nevoeiro do creptisculo ou um luar sentimental. Colorida, fluida, ela se torna um auténtico parceiro da dancarina, cujas evolucées metamorfoseia de modo ilimitado.4 E se a luz tende a tornar-se ciolégicas € sua hist6ria protagonista do espetdculo, por sua vez a dangarina tende a dissolver-se, a nao ser mais do que uma soma de formas e volumes desprovidos de materialidade. Precursora, sob esse aspecto, de um Alwin Nikolais, coreégrafo norte-americano que hoje em dia promove a integracao da iluminagao com a danga, Loie Fuller nao hesita em experimentar novas técnicas, em langar mao de projecdes, combinagées de espelhos etc. Jogo feérico, magia ... estes sao os termos que melhor caracterizam, para os seus contemporaneos, a arte da dangarina norte-americana. A representacao teatral reencontra uma dimensao que havia progressiva- mente perdido no decorrer do século XIX — exceto, talvez, em certos teatros destinados ao “grande puiblico” — e que os séculos XVII € XVIII haviam cultivado, nos seus espetdculos com mdquinas. a dimensao do sonho e do encantamento. Uns 30 anos depois, Artaud preconizaré, numa linguagem tecnicamente pouco precisa mas poderosamente su- gestiva, uma imaginagao criadora semelhante na utilizagao da luz © que confirmaria, se tal confirmagao fosse necessaria, que a sensaa0 provocada pelas pesquisas de Loie Fuller nesse terreno nao deixou vestigios perceptiveis na pratica teatral dos anos subseqiientes. digo gesuel 4. Cabe especifcar que as coreografas de Laie Fuller baseavar-se num cSt” Bi, ampliado, “poetizado” pela utilizagao de imensos panos de gaze presos a bast que a dancarina manipulava com habilidade, Jr em pritc 5. Na década de 1970, Gérard Gélas o seu grupo Chéne Noir procuraram PO esse com bastante talento, uma teoria da iluinagao direramente herdada de Artaud. ©) cas trabalho ter causado sensagéo confirma, mais uma vez, a lentidao com que 4 inovadoras costumam impor-se no teatro. O nascimento do teatro moderno 23 Os equipamentos luminosos hoje em uso nos teatros nao bastam mais. Estando em jogo a acao particular da luz sobre o espirito, devem ser procurados efeitos de vibragdes luminosas, novas maneiras de espalhar a iluminagao em ondas, ou em camadas, ou como uma chuva de flechas de fogo. A gama de cores dos equipamentos hoje utilizados precisa ser revista de ponta a ponta. Para produzir qualidades de tons particulares, deve-se introduzir na luz um elemento de tenuidade, de densidade, de opacidade, visando a produzir 0 calor, o frio, a célera, o medo etc. A revolucao potencial que a iluminacao elétrica permite ao menos imaginar enriquece a teoria do espetdculo com um novo pélo de reflexao e de experimentagao, com uma tematica da fluidez que se torna dialética através das oposigdes entre o material e o irreal, a estabilidade e a mobilidade, a opacidadee a irisagao etc. Em suma, aparece pela primeira vez, sem dtivida, a possibilidade técnica de realizar um tipo de encenagao liberto de todas as amarras dos materiais tradicionais.’ Esse sonho, mesmo se reencontra modernamente uma nova juventude, foi sempre alimentado pelo teatro, como testemunha o requinte dos processos ilusionistas inventados e postos em pratica pelos cenégrafos dos séculos XVII e XVIII. O debate que acompanha toda a pratica teatral do século XX coloca em oposigao, em diversos planos e sob denominagoes que variam ao sabor das épocas, a tenta¢ao da representagao figurativa do real (naturalismo) ea do irrealismo (simbolismo), nao seria tao intenso nem tao fecundo, sem dtivida, se nao fosse sustentado por uma revolugio tecnolégica baseada na eletricidade.- Convencionou-se considerar Antoine como o primeiro encenador, no sentido moderno atribuido 4 palavra. Tal afirmagao justifica-se pelo fato de que o nome de Antoine constitui a primeira assinatura que a histéria do espetdculo teatral registrou (da mesma forma como se diz que Manet ou Cézanne assinam os seus quadros). Mas também porque Antoine foi o primeiro a sistematizar suas concepgées, a teorizar a arte 6 Artaud, Oseatroe seu duplo, capttulo intitulado “O teatro da crueldade, primeiro manifesto”. 7. Ver o estudo dedicado por Mallarmé a Loie Fuller, intitulado “Autre étude de danse: | fonds dans le baller”, no livro Crayonn au theatre (O.C, Patis, Gallimard “Pléiade”. 307). ° i... a 24 A linguagem da encenacao te tral da encenacao,® Ora, nos dias de hoje esta € provavelment, toque que permite distinguir 0 encenador ou diretor do régisseur? | mais competente que seja: reconhecemos 0 encenador pelo fato 4 Por a sua obra € outra coisa — e € mais — do que a simples defini one uma disposig¢ao em cena, uma simples marcagao das entradas ewan t ou determinagao das inflexdes e gestos dos intérpretes, A one in encenagao dé um sentido global nao apenas a peca representada, mn & pratica do teatro em geral. Para tanto, ela deriva de uma visio tebrica que abrange todos os elementos componentes da montagem: 0 espa " (palco e platéia), 0 texto, o espectador, o ator. Quando pensamos ce Gémier ou Vilar, Craig ou Peter Brook, Baty ou Chéreau, Piscator ou Strehler, este é certamente, abstraindo das mil diferengas e divergéncias, © unico denominador comum debaixo do qual todos eles possam ser reunidos. Mas se Antoine é incontestavelmente, sob esse aspecto, um © a pedra de inovador, ele € também o promotor de uma liquidac4o. Inaugura a era da encenagao moderna, mas ao mesmo tempo assume uma heranga; e consome esse legado. Nao cabe evocar aqui detalhadamente os lagos que unem a arte de Antoine a corrente naturalista. Basta observar que, realizando a ambi¢3o mimética de um teatro que sonha com uma coincidéncia fotogrdfica entre a realidade e sua representacao, ele precipita o fim da era da representagao figurativa.'° Esse sonho, alids, ameacava engolir a propria especificidade da arte cénica. A pintura da época, enfrentando a expansio da fotografia, teve de fazer face ao mesmo problema, e sé conseguiu resolvé-lo dinamitando a teoria da repre- sentac4o em que até entao se baseava. ee . “bli. i 110 & Antoine redigiu cinco livretos que destinava ao seu pblico. £ no terceiro, datado de malo de 1890 c intitulado Le shéétre libre, que ele retine o essencial das suas idéias sobre a encenas: € a representacao. 9. Nao se deve considerar aqui este iltimo termo no sentido muito especial — * 0 comentado mais adiante — em que Craig e, mais tarde, Vilar 0 empregaram ¢ S110 significado habitualmente aceito; “aquele que organiza materialmente 0 espeticulo” (Dic tio Rober). 10. Toda a recente historia da encenagio contém, através de grande d experiéncias, a mesma rejeigao, mais ou menos radical, da figuragdo mimét pelos naturalistas e seus discipulos. . =a ser iversificagio de cs la ica preconiza O nascimento do teatro moderno 25 A obra de Antoine talvez corresponda, no teatro, & concretizagao do sonho do capitalismo industrial: a conquista do mundo teal. Conquista cientifica, conquista colonial, conquista estética... O fantas- ma original do ilusionismo naturalista nao é outra coisa senao essa utopia demitirgica que se propde a provar que dominamos o mundo, reproduzindo-o. Estas observagées nao pretendem, de modo algum, diminuir os méritos de Antoine, mas apenas sugerir que talvez eles nao se situem I4 onde se costuma localiz4-los. Se Antoine é moderno na sua concep¢ao € na sua pratica do teatro, ele nao o é tanto por adotar como teferéncia a verdade de um modelo que se trataria de captar e reproduzir: qual o artista que nunca proclamou que seu processo de renovac4o ou de revolugao provinha de uma exigéncia de verdade a que seus ante- cessores, ou mesmo seus contemporaneos, se haviam tornado incapazes de atender? O aspecto moderno de Antoine reside sobretudo na sua dentncia de todas as convengoes forjadas e depois usadas — como se usa uma roupa — por geragées de atores formados dentro de uma certa retérica do palco, quer dizer, dentro de uma pratica estratificada pelo respeito a uma tradi¢gdo, ao mesmo tempo em que as condicoes técnicas do espetaculo se vinham transformando. - A mesma recusa norteard toda a trajetéria de Stanislavski, cujas pesquisas — serd preciso fris4-lo? — continuarao e completarao as de Antoine. O jovem Stanislavski, por ocasio de suas viagens a Paris, descobriu simultaneamente a tradi¢ao declamatéria que o irritou muito na Comédie-Frangaise, e a atuagao descontraida, elegante (dessa elegén- cia que se afogou no artificio, com os seus gestos desembaracados e a sua dic¢ao suave, nao sendo hoje mais do que uma tradigao fossilizada) dos atores do boulevard. Stanislavski ficou encantado: descobriu uma naturalidade, uma autenticidade... Nao devemos sorrit precipitadamen- te: o que Stanislavski percebia era o frescor, a novidade, ld onde hoje 86 encontramos uma pratica de convengoes dbvias, que nem sequer tem a desculpa de ter servido ou suscitado grandes textos.'! 11, Feydeau € indiscutivelmente um dramaturgo incomparivel. B, no entanto, néo é um escritor: fora do terreno do espetdculo, seus textos nao resistem a leitura, Em cena, eles levantam 60, instrumentos que sio de uma admiriveleficiéncia, quando a servigo de quem saiba utilied-os, Afinal de contas, os roteiros da commedia dll'artetampouco se constituem em obtas Petenes; mas eles se tornaram extraordindrios “trampolins” para a arte teatral , a ceaeeenc eau anh ETT ON 6 . | - AA linguagem da encenast ternal ~ ° que Antoine e Stanislavski exigem de seus atores, essa diftci conquista de uma verdade singular contra uma verdade geral aay pela autenticidade, ainda que desconcertante, € contra 0 eee dels ainda que expressivo, caracteriza bem_o combate, sempre ais do encenador do nosso século. Eo propria signo do modernism ¢ Convém lembrar, somente, que o campo de batalha se RSISCSRET gerages, que 0 esteredtipo pode nascer tanto da sinceridade como do artificio, e que um jovem diretor lutar4 muitas vezes (e deve mesmo lutar) contra aquilo que seu predecessor teve tanta dificuldade em conquistar. A cenografia de Vilar, tao nova, tao comovente na sua austeridade, tornou-se hoje o doce de coco (estragado) de imitadores sem inspiragao. E 0 frescor, a juventude da dicgao dos atores do Théatre National Populaire dos anos 1950, saltavam aos ouvidos por comparacao com a énfase e a inchagao da declamagao do elenco da Comédie-Fran- caise. E, no entanto, a gravagao do Cid pelo elenco do TNP soa hoje em dia quase insuportdvel. E que nesse meio tempo um novo estilo de dicgao (Planchon, Chéreau, Vitez etc.) afirmou-se e reencontrou uma espontaneidade que 0 tempo a0s PoUucos fez perder ao estilo do TNP. —£ A recusa da estética naturalista, é bom lembrar, nao € posterior ao auge dessa estética. Apenas alguns anos separam a fundagao do Théatre-Libre (1887) da do Théatre d’Are (1891) ou do Théatre de I’CEuvre (1893), que viriam a ser os pélos da oposicéo simbolista. Se La princesse Maleine, de Maeterlinck (1889), é posterior de um ano a Bouchers, ela precede de trés anos Os teceles, de Hauptmann... Essa concomitancia merece reflexio, O naturalismo define, delimita uma Area, Automaticamente € criado um outro lado, uma periferia, que 0 naturalismo se recusou 4 ocupar, mas que outros artistas optaram por valorizar. E evidente que houve um conflito de doutrina entre o naturalismo ¢ © simbolismo. Mas trata-se de um conflito que deve ser situado sincrénica € nao diacronicamente, como foi o caso, por exemplo, daquele levantado pe dramaturgia romantica contra a estética classica. O naturalismo estav4 . ees de ser uma tradico gasta e poeirenta quando a aspiragao simbo- a comesou a se afirmar, E, no campo do espetaculo teatral, ess aspiragdo estava ligada a uma tomada de consciéncia. Com 0s progressos tecnoldgicos, 0 palco tornava-se um instrumento carregado de uma infinidade de recursos potenciais, dos quais 0 naturalismo explora”? —_— O nascimento do teatro moderno 27 apenas uma pequena parte, aquela que permite reproduzir 0 mundo real. Restavam a verdade do sonho, a materializa¢ao do irreal, a representacao da subjetividade... Por outro lado, aparece uma técnica que, antes mesmo de se tornar uma arte, vai subverter os dados da questao: as primeiras projegbes cinematograficas/datamidell'888j% mesmo ano de Bouchers, Em 1895 sao projetados, no Grand-Café, os primeiros filmes de Louis Lumiére, entre os quais Larroseur arrosé.. Sem duvida, A tomada de consciéncia foi lenta, as resisténcias tenazes. Nem por isso deixa de ser verdade que o teatro, ao longo de todo 0 século XX, vai ter que redefinir, em confronto com o cinema, nao apenas uma orientacao estética, mas a sua prépria identidade e finalidade. E, ainda na década de 1960, Grotowski chegara a afirmar que tal redefinig¢ao nem sempre foi empreendida com serie- dade... Esse é, em resumo, o contexto dentro do qual, pode-se dizer, foi dada a luz a pratica moderna do espetaculo. Uma das grandes interrogagoes do teatro moderno refere-se — e voltaremos mais tarde ao assunto — ao espaco da representacao. Queremos dizer com isso que se instala uma dupla reflexao relativa, por um lado a arquitetura do teatro ¢ a relacao que essa arquitetura determina entre o ptiblico e o espetdculo; e, por outro, 4 cenografia propriamente dita, ou seja, a utilizacéo pelo encenador do espago reservado 4 representaao. Sob esse aspecto, o rigor da exigéncia naturalista de Antoine constitui uma base do seu modernismo, na medida em que 0 leva a formular as primeiras indagagoes modernas referentes ao espago cénico €, mais exatamente, a relacdo que esse espaco mantém com determinados personagens de uma determinada pega. E essa preocupagao de exatidao naturalista que o instiga a pedir que o salao burgués da A parisiense, de Henry Becque que a Comédie-Frangaise apresenta em 1890, nao se parega com uma grande sala do Louvre. '? Reivindicagao essa que contém © germe de trés postulados fundamentais: 12, Carta a Francisque Sarcey publicada no jornal Le Tempi de 24 de novembro de 1890 (e citada por Denis Bablet em Le décor de thédtre de 1870 a 1914, p.120). 7 A linguagem da encenagéo teatral 18) A boca de cena, no quadro do espetéculo em palco italiano (0 unico conhecido na época), pode ¢ deve set modulada em fungao de certas exigéncias. 2), Existe uma relacao de interdependéncia entre 0 espago cénico j€ aquilo que ele contém: se a pega fala de um espago, o delimita e o situa, por sua vez esse espago nao é um estojo neutro. Uma vez materializado, 0 espago fala da pega, diz alguma coisa a respeito dost \personagens, das suas relacGes_reciprocas, das suas_relagdes com o/ mundo. \A partir do momento em que nao se leva em ‘conta essa interdependéncia, tudo fica confuso. A peca fala de um espaco que nao é exatamente 0 que € visto; e o espaco representado fala de uma outra peca, de outros personagens... Mais tarde, tais defasagens passarao a ser eficientemente manipuladas, através de oposicées entre o discurso dos homens e 0 discurso dos objetos que os cercam. Mas é preciso saber jogar esse jogo, como Brecht o faria. Assumir as rupturas nao equivale a suporté-las inconsciente ou indiferentemente, mas sim a integré-las numa concep¢io estética e numa totalidade organica. — 3%) A ocupaco e a animagao desse espago devem ser alvo de uma rigorosa reflexao. As implicagdes da chamada teoria da quarta parede’> sao bem conhecidas: representacao mais variada, mais realista, utilizac4o da totalidade do palco etc. Assim mesmo, a dentincia da representagao na ribalta, de frente para a platéia, representagao que decorre ao mesmo tempo da rotina e do narcisismo dos atores, interessa menos pelo que recusa (0 irrealismo) do que por aquilo que assinala: a representacao na ribalta nao é uma coisa natural, nao € 0 tinico modo de intervengao do ator que se possa conceber. Por outro lado, essa pratica tem conseqiléncias que nao podem ser completamente ignoradas: ela rompe ailusao teatral; lembra ao espectador que ele existe enquanto espectador, € que aquele que fala e age na sua frente nao é somente um personagem, mas ao mesmo tempo alguém que representa um personagem. Trata-se portanto de uma modalidade da representagio teatral que pode ser condenada em nome de certos princ{pios (e ¢ essa a posicao de Antoine), 13. “E preciso que o lugar do pano de boca seja uma quarta parede transparente para o publica, paca para o ator”, escreveu Jean Jullien em Le shédtre vivant, p.11. Esta ¢ a formulagéo mais concisa que se possa dar a essa teoria. ed O nascimento do teatro moderno 29 mas que pode ser igualmente reabilitada em nome de principios diferentes (Brecht). O génio de Antoine consiste af em permitir uma tomada de consciéncia: a pratica do teatro é composta de um conjunto de fendmenos histéricos; ela nao é evidente por si s6. Nao é imutdvel, nem natural. Desse modo, Antoine apodera-se dos dois territérios do encenador moderno, 0 espaso cénico ¢ o trabalho do ator. Integra-os mutuamente,/ Revela que 0 espaco da pega é também a 4rea de / representacao, um conjunto de elementos que orientam ¢ marcam a | intervengao do intérprete. E que o papel de um verdadeiro encenador | \consiste em recusar-se a suportar passivamente essa telagao, e, pelo {contrério, assumi-la e governé-la.j Diversos estudiosos (Denis Bablet, Bernard Dort etc.) frisaram que uma das maiores contribuicées de Antoine para a encenacéo moderna consiste na sua’ rejeicao do painel pintado e dos truques ilusionistas habituais no século XIX. Ele introduz no palco objetos reais, ou seja, | que contém o peso de uma materialidade, de um passado, de uma earn . Trata-se, sem diivida, de produzir um efeito mais verdadeiro. , \Ou, melhor ainda, totalmente verdadeiro. Mas, ao fazé-lo, Antoine revela algo que o teatro do século XX nao poderd mais esquecer: aquilo que poderfamos denominar a teatralidade do real. Com referéncia ao ator, fala-se muitas vezes na sua presenga. Nocio ao mesmo tempo misteriosa e muito clara para o profissional ou 0 freqiientador assiduo. Essa presenga é, no fundo, a violéncia que uma encarnag4o exerce sobre mim. Se eu tiver diante de mim um . fendmeno que nao me da mais a sensacao de um simulacro, de uma habil imitagao do desespero, mas sim a de um desespero real gritado por um ser humano real, a minha imobilidade ¢ a minha passividade tornar-se-4o de um sé golpe insuportaveis ¢ inevitdveis: fascinado, fico olhando sem intervir, e sem poder libertar-me do meu fascinio. Presenga do ator.., Grotowski, como veremos, optou por organizar toda a sua pesquisa em torno da elucidagao e do aprofundamento desse fendmeno, do seu controle e da sua multiplicagao, Do mesmo modo, Antoine ensinou-nos que existe uma presenga do objeto real. E que ele nos traz a mente a corporalidade do mundo: a poga d’4gua em que chafurdam os personagens de A disputa, de Marivaux, na encenagao de Patrice Chéreau, provoca um impacto diferente daquele desencadeado, por I 530 A linguagem da encenagéo teatral exemplo, pelas ondas ficticias do Reno obtidas através de tequintados efeitos luminosos no primeiro quadro do Ouro do Reno, encenado por Wieland Wagner. Nao se trata af de colocar as duas opgées em posi¢ao, de escolher entre uma e outra, mas sim de dizer que o teatro pode ser uma € outra dessas op¢Ges; ¢ que|a reflexao de Antoine e as escolhad por ele feitas colocaram o teatro moderno frente a frente com uma das, suas essenciais indagacées: a questao da teatralidade,\ — "As postas reais de carne que Antoine houve por bem pendurar no cenario de Bouchers, de F. Icres (1888), j4 foram alvo de suficientes ' zombarias. E facil sorrir de um “efeito do real” cuja ingenuidade se denuncia. Conviria, porém, pensar duas vezes: esse “efeito do real” é também um ¢feito de teatro. Nao hd medida comum entre a insossa teatralidade das postas de carne feitas de papelao ¢ a teatralidade da carne viva, do sangue, da vida e da morte conotadas pelo objeto real. Contentemo-nos em lembrar o efeito produzido sobre o mais empe- dernido freqiientador de teatro por certos simulacros, a respeito dos quais ele est, no entanto, cansado de saber que nao se trata sendo de efeitos de teatro. a aparigao desvairada da mulher ensangiientada no palco nu da Resistivel ascensdo de Arturo Ui, algumas salvas de metra- Ihadoras nos bastidores. Sabe-se que o sangue é artificial, que 0 tiroteio no passa de ruido inofensivo. Nao importa... O problema, portanto, reside menos em escolher entre o objeto real e sua imita¢ao do que em fazer aparecer e perceber a sua presenga, a violéncia de sua teatralidade. “Devemos também a Antoine uma indagagao que os progressos técnicos nunca mais deixarao de colocar na ordem do dia: a questa da iluminagao. J4 foi dito que a pesquisa de Antoine € inseparivel Ha introdugao da eletricidade na pratica teatral. Hoje em dia, sem duivi a, temos muita dificuldade em imaginar o efeito que era praduzido por uma iluminagao & luz de vela ou de gds. Podemos ter certeza de a no sentido contrério, as pessoas se tenham dado conta, de saida, 5 recursos do novo instrumento? Antoine teve consciéncia imediata &° fato. E se a sua estética naturalista o conduziu a utilizar a lue elec! como um meio de acentuar o efeito do real, ao fazé-lo ele revelava @ flexibilidade e a potencial riqueza da nova ferramenta. Com efeito, bem que valeria a pena escrever U iluminagao. E o palco do século XX nunca deixard de explora de férmulas mais opostas entre si. Teremos a iluminasao atmosférica ma historia da ras O nascimento do teatro moderno 31 Antoine e de Stanislavski, mas também dos expressionistas e, hoje em dia, de Strehler e de Chéreau; teremos também aquilo que podemos designar como iluminagac ygrafia, a luz ituindo por si s6 0 espaco cénico, delimitando-o ¢ animando-o (Appia, Craig, Vilar etc); teremos, ainda, a utilizagdo nao-figurativa, simbélica da iluminagao, preconizada por Artaud ja nos a 930 e posta em prdtica por alguns jovens grupos dos anos 1960-70. E, paralelamente, cabe registrar esse peculiar retorno a simplicidade: a iluminagao que se assume como puro instrumento da representagao nada mais € do que um meio de tornar um espetdculo vistvel ¢ legivel, de lembrar ao espectador onde ele estd, © que é, onde est4 o mundo real; concep¢ao que, mutatis mutandis, ao mesmo tempo a de Brecht, de Grotowski e de Peter Brook nas suas tltimas experiéncias. A mesma andlise poderia aplicar-se 4 sonoplastia. Quaisquer que sejam os seus limites, a estética naturalista esté na fonte de uma teorizac4o que engloba todos os.instrumentos de p odugao de que pode_ dispor 0 palco. moderno! O teatro nao para de procurar respostas as {perguntas levantadas pelas possibilidades de sonorizacao continuamente Nenriquecidas ela técnica:|o que vem a ser um rufdo em relagao ‘a0, Conjunto do espetdculo? Para que pode servir? As respostas naturalistas de Antoine ou de Stanislavski suscitarao, é claro, respostas diametral- mente opostas de Artaud ou de Brecht. O fato é que essa pergunta, levantada no fim do século XIX, nao pode mais deixar de ser enfrentada por quem quer que seja. Mesmo uma hipotética volta aos langorosos violinos entre os atos de uma comédia nio seria mais uma atitude neutra. Seria imposs{vel nao ver nela uma rejei¢ao literalmente reacio- néria, ou uma definida vontade de Aistoricizar uma montagem classica. Em todos os casos, uma resposta... A contribuigao do simbolismo para a encenacao moderna nao é menos considerdvel, Gragas a teoria simbolista do espaco teatral, o pintor entra em cena com 0 seu cavalete, Sem diivida, o cendrio de pintor tem hoje poucas possibilidades de receber boas criticas. Mas, historicamente, trata-se de um fendmeno de primordial importancia. Quaisquer que sejam as restrigdes que se possam fazer a uma concepgao pictérica da cenografia (achatamento da imagem cénica, redugao do espaco. tidi- mensional ao espaco da tela etc.), ¢ evidente que, quando os Nabis, ou a A linguagem da encenagio teatral Bonnard, ou Vuillard, ou Odilon Redon dao a sua contribuigao para a elaboracao da parte cenografica do espetaculo, nao o fazem no mesmo espirito que Chaperon, um dos cendégrafos da Comédie-Frangaise, ou mesmo que Cornil, Amable ou Jusseaume, artesaos da cenografia que, junto com Antoine, sajram em busca de uma representacao mais verdadeira do espago. Com a chegada dos pintores ficam formuladas duas questdes que atravessarao toda a historia da encenagao do século XX: como romper com o ilusionismo figurativo ou, melhor falando, como inventar um espago especificamente teatral? E como fazer para que 0 espago cénico seja outra coisa que uma imagem pictérica? Com os simbolistas, portanto, os pintores invadem o palco. E com os pintores, a pinturat £ 0 dbvio, sem duivida. Ainda assim, € preciso ver as respectivas implicacoes. As pessoas ‘tomam_consciéncis, por exemplo, de que aquilo que_o espaco cénico nos faz ver € uma imagem. Imagem em trés dimensoes, organizada, animada... Descobre- sé que essa imagem pode ser composta com a mesma arte que um quadro, ou seja, que a pr scupacao dominante nao é mais a fidelidade zo real, mas a organizacao das formas, a relacao reciproca das cores, 0 jogo das areas cheias € vazias, das sombras ¢ das luzes etc. A encenagao moderna perpetuara essa tomada de consciéncia, mesmo quando a moda da colaboragao com os pintores se tiver atenuado. O fato é que, se Craig exclui da criagao cénica qualquer outra personalidade que nao de régisseur, nem por isso ele deixa de exigir que seja a que ele chama agens em este componha a sua obra como um conjunto organico de im; movimento, cendendo para a abstracao (The steps, 1905). E, mais perto de nds, é notéria a importancia que diretores como Patrice Chéreau, na Franga, ou Giorgio Strehler, na Irdlia, atribuem a esse trabalho de composigao da imagem cénica. HA cerca de 20 anos, alguns deles andaram mesmo procurando reproduzir no palco a luz, as cores, a organizacao dos grupos etc., caracteristicas da obra desse ou daquele grande pintor do passado. Era essa notadamente, na época, a opsa0 de Luchino Visconti e de Franco Zeffirelli.'* Sem divida, 0 esperaculo ‘ago encenador Lugné-Poe ido geral, no concaro com 0 a0 surgimento de uma 14, Jéem 1893 Maererlinck, para. criagao de Pediase Melsanda, pedi que 08 figurinos se inspirassem nos quadros de Memling. E, de mo ‘5 espetaculos simbolistas 0 ptiblico teve a sensagao de estar assistinds oe cénica completamente renovada através da simbiose com 2 pintura. O nascimento do teatro moderno 33 teatral tendia entao a tornar-se um anexo da pinacoteca ou do livro de_ arte./Mas, uma vez consignados os perigos do pictorialismo, éonvém reconhecer a mais-valia estética com a qual esses contatos com os {pincores ¢ a pintura enriqueceram a arte da encenagao,| quando mais ‘nao fosse dando ao espectador termos de referéncia que © tornaram visualmente mais sensfvel e mais exigente. Transformado em espaco de jogo ou de sonho, o cendrio simbolista propde uma nova concep¢ao da cor. Nao passando até entao de instrumento de uma figuracao, ela assume agora uma funcao simbélica. Toma-se consciéncia da repercussio da cor sobre a sensibilidade do espectador. Cada gama cromatica, cada matiz produzem uma sensa¢ao, uma sacudidela comparveis ao efeito das sonoridades. O diretor nao deixard mais ao cendgrafo a tarefa da cenografia. Deliberadamente, procurar4 explorar essas potencialidades crométicas colocadas num plano de igualdade com a musica. Utilizard as cores “para metabolizar certas inteng6es”, como escreveu Alphonse Germain, que proclamou também que “a cor (...) engenhosamente distribuida (...) atua sobre as multid6es quase tanto quanto a elogiiéncia’.'* Relembrando os cendrios de Peléias e Melisanda na sua criagao de 1893, Denis Bablet observa que “todo o valor desse cendrio reside na harmonia dos seus tons nevoentos, reflexos do mistério e da melancolia que o drama exala: azul-escuro, violeta-claro, laranja, e uma gama de diferentes verdes: verde-musgo, verde-luar, verde-Agua” (Le décor de théatre de 1870 a 1914, p.160), Assistimos ao nascimento de uma tradigao referente & utilizacao cenografica do colorido, que prosseguird até uma época bem recente, “Nao é por acaso”, assinala o mesmo Denis Bablet a propésito da encenagao de Dido e Enéias, de Purcell, realizada por Craig em 1900, “que as almofadas do trono, escarlates no primeiro ato, se tornam pretas na ultima cena, quando Dido chora a perda de Enéias ¢ entoa o seu canto de morte.” (Edward Gordon Craig, p.58). E Jean-Louis Barraule descreve assim os figurinos usados, na sua encenagao de Fedra, em 1942, pela herojna e pela sua ama: 15. Em “Dela décoration au théatre”, publicado em La Plumede 1 de fevereiro de 1892 (citado por Denis Bablet em Le décor de thédtre de 1870 @ 1914, p. 150-151). m4 A linguagem da encenagao teatral Se o figurino de Fedra tem uma tonalidade vermelha, 0 de Enona é de um vermelho quase negro: como se fosse uma sombra do de Fedra, Ne tragédia, 0 personagem € para seu confidente aquilo que 0 homem é pars o seu duplo. (...) Enona é 0 génio mau de Fedra, & 0 seu deménio; 0 seu valor negro. Enona é 0 seu destino nefasto. £ 0 corvo do seu infortinio,!6 Oestilo pode fazer sorrir... Ainda assim, revela, em relagao a obra, uma concepgao simbélica da cor encarada como veiculo de um sentido difuso, trabalhando, digamos, nao mais apenas com fins de denotagao, mas também de conotagao. Luze cor sao objeto de uma teorizacao e de uma pratica de cardter simbolégico, que prosseguirao sem solugao de continuidade ao longo de todo o século XX. Poderiamos dizer a mesma coisa a respeito da matéria, cuja presenga cénica é igualmente forte, conforme a utilizac4o do objeto real pelos naturalistas j4 havia, alids, demonstrado. Embora partindo de premissas opostas, os simbolistas procedem a mesma experiéncia. Por exemplo, 0 uso do ouro, que é ao mesmo tempo cor e matéria, para os painéis de fundo inspirados em pintores primitivos executados, para o Théatre d’Art, por Sérusier ou Maurice Denis,’” permite introduzir a matéria na estética do espetdculo simbolista. Meio século mais tarde, em Bayreuth, Wieland Wagner dard énfase, na elaboragao cenografica, ao binémio matéria-luz. Comentando os figurinos, Claude Lust salienta que “a escolha e © tratamento do material sao pelo menos tao importantes quanto 0 desenho ou a cor” (Wieland Wagner, p.110). Trata-se, com efeito, de evitar dar ao espectador o sentimento do disfarce, do ouropel teatral. O material escolhido — 0 couro — confere as figuras miticas de Wagner © indispensdvel aspecto estranho que o seu status requer, € isso porque © figurino sugere a0 mesmo tempo a idéia da roupa e do corpo. Do mesmo modo, a concepgio abstrata da cenografia que é a de Wieland Wagner, visando antes de mais nada a caracterizar a relagao que 0S Personagens mantém com o espaco em que evoluem, concretiza-s¢ através de uma utilizacio simbolista do material e da iluminagao. iB 16. Micen-scne de “Phdre' ats, Edions du Seu, p81 17. Para La fille awe mains coupdes, de Pierre Quillard, em 1891 (Sérusier); e para Théodas, de Rémy de Gourmont, no mesmo ano (Maurice Denis) O nascimento do teatro moderno 35 esse, seguramente, 0 caso do dispositivo cénico elaborado para o primeiro ato do Creprisculo dos deuses: Tres menires largos © rachados no centro erguem-se simetricamente no fando do palco, atrés do pratictvel; uma enorme viga transversal os interliga ¢ transforma num sé bloco. A iluminagio imprime-lhe seu colorido verde-escuro, ressaltando ao mesmo tempo o extraordindrio relevo da matéria alveolada e no entanto perfeitamente lisa Em telagio & posigio inicial dos personagens, 0 aspecto macigo das formas do cenario, 0 seu peso € 0 seu cardter arcaico permitem que 0 espectador perceba perfeitamente que sentimento domina esses soberanos € que tipo de opressao eles exercem sobre 0 seu povo; a0 mesmo tempo, a riqueza bastante singular da matéria enfatiza a cupidez dos dois perso- nagens masculinos!® tao manifestamente tensos. Ao entrar em cena, Siegfried nao estard ingressando na Gibichhalle, mas na fortaleza de um mundo baseado no poder do ouro.!? O que o palco moderno deve essencialmente ao espetaculo simbolista a redescoberta da teatralidade, A tendéncia ilusionista, que prevalecia desde 0 século XVIII, preocupava-se antes de mais nada em camuflar os instrumentos de produsio da teatralidade, para tornar sua magia mais eficaz. Com a montagem original de O rei Ubu, de Jarry, por Lugné-Poe (1896), a encenacao engaja-se numa diregao diametralmente oposta. Sob o impulso dado por Jarry, ela reinventa aquilo que pode- tfamos chamar 0 alarde da teatralidade. Na verdade, 0 autor de Ubu preconiza o retorno a uma concep¢ao muito mais radical ainda do que a dos simbolistas propriamente ditos. Para estes, 0 signo teatral devia sugerir, fazer sonhar, suscitar uma participacao imagindria do especta- dor... Mesmo abrindo mio da precisio mimética do espetaculo natu- ralista, esse signo nao deixava de conservar uma certa dimensao signi- ficante, necessdria & propria estruturagao do novo relacionamento que se procurava estabelecer entre espectador e espetaculo: se um dos painéis de fundo de Peléias e Melisanda evoca um castelo que pertence a “um vago século XI” (a expressao é de Camille Mauclair), e se, numa carta a Lugné-Poe, Maeterlinck prop6e que os figurinos insinuem o século 18, Trés personagens estio em cena quando o pano abre: Giinther, o rei dos Gibichungs, sua irma Gutrune, e Hagen, meio-irmao dos dois. 19. Claude Lust, op. cit, p.111 i. 36 A linguagem da encenagao teatral XI ou XII, ou mesmo o século XV de Memling, “como vocé quiser ¢ de acordo com as circunstancias”, ainda assim os cendrios e os figurinos permanecem figurativos, investidos de um poder de vaga conotacio cujo referencial seria “Idade Média”. Jarry, porém, ir4 muito mais longe na ruptura com a tradigao figurativa, ao propor a Lugné-Poe um retorno a tabuleta indicadora do teatro elisabetano, o que equivale, afinal, 4 levar as ultimas conseqiiéncias a teoria sugestionista da corrente simbo- lista: a palavra escrita, embora n4o-figurativa, tem 0 mesmo poder de evocag4o que qualquer tela pintada. Dizer: “um campo coberto de neve”, ou mostrar um cartaz com estas mesmas palavras escritas, corresponde a oferecer ao espectador 0 mesmo impulso do imagindrio que ele receberia vendo, por meio de uma tela, da pintura e da iluminagao, um panorama cheio de neve. Mas corresponde também, insidiosamente, a algo mais: a mostrar-lhe o préprio instrumento (0 cartaz) gerador do seu devaneio. Ou seja, lembrar-lhe, mesmo se na sua imaginaco ele se transporta para “um campo coberto de neve”, que ele nao deixa de assistir a uma representagao teatral e de participar dela... Outras propostas de Jarry tornam a demonstracao ainda mais clara. Por exemplo, 0 praticdvel seri exibido como tal, como uma ferramenta introduzida no palco no momento em que — e porque — os atores precisam dela. A janela, a porta nao fornecem mais a ilusao de serem janela ou porta vazadas na materialidade de uma parede: Qualquer elemento de cendrio de que se tiver uma necessidade especifica, uma janela que se abre, uma porta que é arrombada, é um acessério, € pode ser trazido para o palco tal como uma mesa ou uma tocha.2? E, no mesmo artigo, preconizando uma volta a mascara, um embasamento da representagao do ator numa pesquisa da estilizagao € © cultivo de todos os artificios do gesto e da voz, Jarry faz aparecer a teatralidade a descoberto. Precursor do surrealismo, o cendrio de O rei Ubu, “que pretende representar o Lugar Algum, com as drvores ao pé das camas, com neve branca no céu azul” (Programa), que apresenta “lareiras dotadas de péndulos (rachando) a fim de servir de portas, ¢ palmeiras (verdejantes) 20. De Vinusilte du théatre au shéatre (OC; 1. Pacis, Gallimard, “Pléiade", p.407. O nascimento do teatro moderno 37 no pé das camas, para serem comidas por pequenos elefantes trepados nas estantes” (Discurso pronunciado na estréia de O rei Ubu, OC, t.l, p.400), esse cenario resulta sem dtivida, como observou Jacques Rol chez,?! de um desejo de provocacao, de negagao e de destruigao do teatro, Ao menos de um certo teatro. Podemos ter certeza, com efeito, de que o teatro possa ser destrufdo pelo teatro? A negagao nao pode ser mostrada num espetdculo. A nao ser que ela se torne 0 préprio espetdculo. E quando nao existe mais nada no palco que tenha vestigio da figuracao, da verossimilhanga, da coeréncia... ainda assim existe algo para ser visto: a teatralidade. Jarry inaugura desse modo uma tradigao fundamental na histéria da encenagao moderna. Desde entao, 0 teatro ousa mostrar-se nu. oO que lhe garantira, em primeiro lugar, uma grande flexibilidade e liberdade de movimentos. O espaco cénico vai tornar-se uma drea de atuagéo; 0 ator vai virar puro instrumento da representacao, renuncian- do a sua personalidade de ator ou & identidade do seu personagem. Jacques Robichez, no seu livro Lugné-Poe(p. 79), relembrao testemunho de Gémier, intérprete do papel-titulo de Ubu: Para substituir a porta da priséo, um ator ficava parado no palco, com 0 braco esquerdo estendido. Eu colocava a chave na sua mao, como se fosse uma fechadura. Fazia o barulho da lingiieta, crique, craque, ¢ girava 0 braco como se estivesse abrindo a porta.” Tal prdtica, cuja origem poderia ser procurada num campo préximo de certas formas de espetaculo que fazem alarde do seu carater hidico — commedia dell'arte, pantomima, brincadeiras dos palhagos — vai difundir-se dentro de encenagées as mais diversificadas quanto 4 ideo- logia a estética. Claudel nao se cansard de preconiza-la. A propésito da sua encenagao de Cristévao Colombo, Jean-Louis Barrault escreve: Serd que precisamos de um albergue? Quem diz albergue diz interior; quem diz. interior diz. porta, quem diz porta diz dois homens que mantém seus bragos estendidos verticalmente, ¢ suas méos, la no alto, esticadas € 21. “Jarry ou | ” : 85-94, 7° # nouveauté absolue”, na revista Thi Populaire de 18 de setembro de 1956, p. 22, Em L’ Excebior de 4 de novembro de 192) P A linguagem da encenagao teatral dirigidas horizontalmente uma para a outra: quem tiver de entrar pode passar debaixo delas ¢ entre os dois atores.?9 Na diregao de Roger Blin para Os biombos, de Genet (Théatre de France, 1966), os prdprios atores desenhavam em telas de papel branco os elementos cénicos exigidos pela agao. E poderfamos também citar Antoine Vitez, que apresentou Andrémaca, de Racine, numa area de representacao nua, mobiliada apenas com uma mesa riistica e uma escada, puros instrumentos de produgao da teatralidade. Os exemplos poderiam ser multiplicados ao infinito, de Brecht a Ariane Mnouchkine, de Ronconi a Peter Brook... Cabe reiterar que esse perfodo-matriz representado, na histéria do palco moderno, pela transi¢ao do século XIX para o século XX, nao coincide com a evolugao de um teatro nacional. A reagao simbolista de Paul Fort e Lugné-Poe é respondida, na Riissia, pelo eco da de Meyerhold. Aqui como lé, os argumentos levantados contra 0 espetdculo naturalista — seja ele de Antoine ou de Stanislavski — sao aproxima- damente os mesmos: é uma ilusdo ingénua acreditar que o teatro possa ficar a reboque do real, a ndo ser que queira perder toda a sua especificidade. A mania arqueolégica dos naturalistas transforma “o palco numa exposi¢ao de pegas de museu’, frisa Meyerhold;”4 enquanto Tchecov declara ao mesmo Meyerhold, de modo bastante engracado: “O palco é arte. Pegue um bom retrato, corte-lhe o nariz e introduza no buraco um nariz verdadeiro. O efeito serd real, mas o quadro estard estragado” (sbid.). Preocupacéo comum aos franceses € aos russos: engajar o espectador no ato da representagao, quer permitindo o desencadeamento do seu devaneio, quer agindo sobre o seu instinto lticido (as duas orientag6es nao sendo, alids, incompativeis). Surge, assim, uma das grandes intet- rogacées do teatro moderno: swalihislsaadacespacader com ¢ espetéculo? Meyerhold gostaria de arrancar o espectador de sua nao- existéncia de voyeur qual foi reduzido pelo naturalismo, para assoc id-lo 23, “Du théatre total et de Renaud-Jean-Louis Barrault, 95; 24. Chrisophe Calomb’, em Cahiers de a Compagnie Madeleine ss ‘ nY 1, p.34-35, Les techniques et histoire”, em Le shédere chédoral. Paris, Gallimard, 1963, p-19-53- O nascimento do teatro moderno 39 eerie Recon diretor e do intérprete, fazer dele “o quarto ein eguinte, no teatro de Meyerhold as convengoes te ont no paleo de ul come tais, a teatralidade nunca deixard identificar-se ee on ano me eS 0 Seu personagem, nao possa nunca apagar a presenga real do espectador da sua consciéncia de comediante; ede tal modo que, simetricamente, 0 espectador nao deixe de perceber © teatro como teatro, os cendrios como objetos de teatro, o ator como um individuo que esta representando ou atuando... Ser4 necessario lembrar o quanto uma tal concep¢ao vai contribuir para a teoria do espetaculo brechtiano? De Craig a Vilar, durante a primeira metade do século Xx, haver4 um consenso quanto a condenagao do espetdculo mimético herdado do naturalismo; e isso por varias raz6es, entre as quais o fato de que nesse tipo de espetdculo o espectador estd reduzido 4 pura passividade intelectual. Uma vez que tudo lhe é mostrado e dado, nao lhe resta outra tarefa senao a de engolir e digerir. Surge finalmente a afirmagao de que € possivel um outro modo de relacionar o espectador com 0 espetaculo, engajando o espectador no grande jogo da imaginacao. Isso pressupde uma outra op¢ao estética, na qual a sugestao substitui a afirmaao, a alusio ocupa o lugar da descricao, a elipse o da redundan- cia... Esse desejo de engajar o espectador na realizagao dramatica, até mesmo de comprometé-lo com ela, passou a nortear permanentemente as pesquisas do teatro moderno: as de Artaud entre as duas guerras, mas também as que dominaram a década de 1960, com as realizagdes do Living Theatre (J ulian Beck e Judith Malina), do Teatro Laboratério de Wroclaw (Grotowski), de Luca Ronconi e de Ariane Mnouchkine, por mais diferentes que sejam, alids, as bases tedricas que orientam cada um desses empreendimentos. ‘0 simbolismo é na verdade a questa questao da qual nasce lireralmente espetdculo teatral? Cabe insistir no fato de que antes de Antoine tal quest4o nao se apresentava, pelo menos nao nos mesmos termos. oO século XVII indagava: o1que é uma pega de teatro? O século XVIII: como» jidade? Os romanticos: como © que € um « A linguager da encenacdo tng, ‘tradurir, através da escrita dramitica, a diversidade do teal? E, tocg, essas indagacées provinham de escritores, de intelectuais (Cotneille ¢ o abade d’Aubignac; Diderot e Beaumarchais; Stendhal Hugo...). Seria ingénuo, sem diivida, pensar que os profissionais do teatro nao se faziam perguntas relativas 4 sua arte. Existem mesmo boas raz6es Para acreditar que a arte do ator sé se renovou, de Moliére a Talma, de Rachel a Sarah Bernhardt, por meio de uma continua interrogacao sobre as tradigoes eas condigées de interpretagao dos textos. Infelizmente, s6 temos disso vagos vestigios.?> Com Antoine, a questao do espetdculo formula-se nos termos que utilizamos até hoje. Ele foi o primeiro, por exemplo, a indagar no presente do espectador. Sua resposta merece reflexao. Em primeiro lugar porque ela observa que a estética naturalista é mais complexa e menos ingénua do que se costuma pensar. Mas também porque essa resposta é a matriz das maiores realizacées do século XX, nesse terreno particular. Na sua Conversagao sobre a “mise-en-scéne” (1903), Antoine decla- ra: “Qualquer busca de cor local ou de verdade histérica parece-me supérflua para tais obras-primas (as tragédias clissicas).” E esclarece: “Acredito firmemente que situar essas maravilhosas tragédias, a nao ser no pais e no tempo em que nasceram, equivale a alterar o seu signifi- cado.” Eis aqui os germes da teoria que serve de base a representacao historicista do texto cldssico. Essa concepgao vai gerar algumas das encenagoes mais reveladoras que o teatro moderno ja produziu: basta lembrar a sensacdo — e as vezes o escindalo — suscitados pela visio que Roger Planchon propés de George Dandin, ou de Tartufo, ou da Segunda surpresa do amor, ou de Berenice Jé em 1907, quando Antoine apresenta no Odéon o seu Tartufo, ele revela o que pode ser a fungao de uma encenagio moderna da obra classica. A unidade de lugar explode. Quatro cendrios mostram quatro aspectos da casa de Orgonte. O espago cénico classico nao é mais apenas © local de encontros, a encruzilhada da tradigao. Ele traduz 0 mele 25. © Impromptu de Versailles, de Molitre, por exemplo, ou as Mémvires, de Clairon. Sabe ey Por outro lado, que o grande ator trdgico Talma esteve nas origens de uma reforma da encenss trdgica, no inicio do século xix. O nascimento do teatro moderno 41 social de Orgonte, a ambigio de Tartufo. Tal naturalismo nos interessa menos pelo seu sonho ilusionista tantas vezes denunciado do que pelo fato de afirmar a possibilidade de uma semantica do palco. E pelo fato de anunciar a rejei¢io da ortodoxia em matéria de encenacio, o direito do encenador de sustentar um discurso diferente daquele da celebragao da obra-prima. A diregao nao é mais (ou nao é mais apenas) a arte de fazer com que um texto admirdvel (que é preciso admirar) emita coloridos reflexos, como uma pedra. preciosa; mas é a arte de colocar esse texto numa determinada perspectiva; dizer a respeito dele algo que ele nao diz, pelo menos explicitamente; de expé-lo nao mais apenas a admiracao, mas também 4 reflexao do espectador. O Tartufo de Antoine prenuncia o de Jouvet, os de Planchon e de Vitez. O mesmo vale para a sua Andrémaca (Odéon, 1909), que, representada em figurinos da corte de Luis XIV e num cenério de Versalhes, inaugura uma nova concepgao de encenagao da tragédia { francesa, mesmo se essa concep¢4o comeca hoje em dia a acusar 0 peso de uma tradicéo. Devemos sorrir da mania arqueoldgica que é a contrapartida historicista do naturalismo, e que leva Antoine a colocar seus figurantes-espectadores em bancos laterais ea utilizar a luz de velas? Afinal de contas, é uma ambicao no minimo respeitavel esta de Pprocurar recriar, na sua materialidade, a teatralidade de uma €poca, e de lutar contra essa “maldi¢ao” inerente & arte dramética: o seu cardter irreme- diavelmente efémero. Procurem, se quiserem, imaginar uma pintura de Vermeer, se nunca viram nenhuma... O exemplo da encenagio das obras consagradas € representativo da de\Antoine'para © modernismo. © encenador é o gerador da unidade, da coesio interna e \ ermina € mostra os da dinamica da realizacao cénica. E ele quem det objetos ¢ discursos, luzes § | lagos que interligam cendrios € personagens, | € gestos, loje, qualquer espectador mais exp. i aprender o espetéculo como uma totalid: Principio de coeréncia, de unidade, que entram em choque com esse pri Pouco demais em comparacao com roupa cuja cor destoa do cenério et lade, a procurar nela um a denunciar as mil imperfeicoes | nefpio: um ator que declama um | seus parceiros mais Tealistas, a uma bom que se saiba que nada é o A linguagem da ENCENASAO teary ra menos natural e mais histérico do que esse tipo de Petcepcio, f, maneira de ser espectador nao é inata. Ela nos foi inculcada ff 7 ensino, que cuida bem pouco de iniciagao teatral, mas por oa geracdes de encenadores. Antoine foi um dos primeiros a impor, n Franga, essa abordagem do teatro. Se, como foi dito a respeito de Antoine, o naturalista extermina e liquida uma era da histéria do espetdculo, o encenador inaugura uma nova época do teatro. Mas como fazer do espetdculo essa unidade estética e organica? Contrariamente as outras formas de~arte; etc. A essa heterogeneidade admitida como inerente a propria arte do teatro atribui-se a mediocridade e a decadéncia do espetaculo no fim do século XIX. Qual o remédio? E preciso realizar a integraao desses / elementos dispares, fundi-los num conjunto perceptivel como tal. Por conseguinte, uma vontade soberana deve impor-se aos diversos técnicos \ do espetdculo. Essa vontade conferira 4 encenagao a unidade organica | _gestética que Ihe falta, mas também a originalidade que resulta de uma intencio criadora. Por esse caminho ela poderé aspirar ao status de obra de arte, que Ihe foi negado nao s6 por intelectuais desdenhosos (Maeterlinck), mas até por profissionais de teatro um pouco mais exigentes (Antoine, Lugné-Poe, Craig, Copeau, Artaud etc.). A afirmagao dessa impés-se hoje a tal ponto que parece inerente a qualquer pratica de teatro, chegando mesmo a marcar as nossas maneiras de falar: no fim do século XIX falava-se na Berenice de Julia Bartet, a atriz tragica que acabava de redescobrir a pesa de Racine; hoje, fala-se na Berenice de Planchon. Vamos ver as Bodas de Figaro de Strehler, ou a Tetralogia de Chéreau... Esses habitos de linguagem traduzem uma consideravel modificagao no comport mento dos espectadores. Antigamente, eles iam ver (ouvir) uma Pes? (um texto) ¢ os seus intérpretes. Hoje, eles vao ver antes de mais nada uma mise-en-scene, ou seja, um complexo do qual 0 texto € os intérpretes S40 apenas elementos integrantes. Isso se aplica, é claro, a obras cu? texto € familiar ao puiblico; mas tende a valer também para pegas Novas: em 1979 o que se vai ver € menos uma adaptagao do Mefisto escrita por Klauss Mann do que a realizagio do Théatre du Soleil (Ariane Mnouchkine) que inclui essa adaptacao. ad O nascimento do teatro moderno 43 Ao mesmo tempo, 0 culto da vedete, a assimilacao redutora da representa¢ao a um ato de exibicdo correspondem a comportamentos que tendem, felizmente, a cair em desuso ¢ hoje sé podem ser encon- trados no gueto poeirento do teatro de boulevard. Essa evolugao pode ser considerada como uma das transformagoes histéricas mais impor- tantes que tenham atingido a prdtica do teatro no século Xx. Textos de Craig, de Artaud etc. testemunham claramente que a situagao era bem diferente no infcio do século; e suas biografias demonstram quantas dificuldades, quantas batalhas nem sempre ganhas constitu{ram o prego que teve de ser pago para que uma tal transformacao do teatro e das mentalidades pudesse impor-se progressivamente... A exigéncia de modernizagio repousa sobre 0 que se poderia chamar um mecanismo de exterm{nio reproduzido por cada geracao. Inversa- mente, uma reveréncia excessiva em relagio a antecessores € & tradigéo parece de todo incompattvel com a procura de formas novas e de praticas revoluciondrias. Esse mecanismo existiu sempre, sem dtivida, de modo latente, mas no nosso século emergiu com toda a sua violéncia e intransigéncia. Dessa maneira, 0 modernismo do espetdculo simbolista apéia-se numa reagao niilista radical que preconiza nada menos do que a abolicao do espetaculo. Considera-se que 0 teatro chegou a um tal ponto de decadéncia que seria ilusério procurar reformé-lo. O unico teatro que valesse a pena sé poderia ser representado no palco da imaginagao, e a verdadeira encenagao seria assegurada pelo leitor, no proprio ato da Jeitura... Eis uma reagao de intelectuais, de pgetas, cujo sonho é sempre derrotado pelas rotinas ¢ limitagées do éspetdculo habitual. J4 no fim do século XIX, Dujardin denunciava a margem que separa uma realizagio cénica das infinitas perspectivas abertas pela miisica de Wagner, Em 1890, Maeterlinck nao hesitava em proclamar no apenas a inutilidade da encenacéo, mas também os perigos a que ela exporia obras que, na sua opiniao, nao teriam sido concebidas para serem representadas: A maioria dos grandes poemas da humanidade nio foi feita para o palco. Lear, Harmer, Otelo, Macbeth, Anténio e Cledpatra no podem ser repre- sentados, é perigoso vé-los em cena. Alguma coisa de Hamlet morreu para nés no dia em que o vimos morrer em cena. O fantasma de um ator OY mn A linguagem da encenacay teatral dereriorou-o € nfo conseguimos mais afastar este usurpador dos no sonhos.’ Essa tese € rebatida por toda a histéria do teatro elisabetano, mas ela ilustra cruamente um estado de espfrito bastante difundido nos meios intelectuais do fim do século XIX, que de uma reacao emocional vai transformar-se em teoria e proclamar a condenagio a morte de todo o fendmeno de encenacio: “A representacao de uma obra-prima com auxilio de elementos acidentais e humanos é uma contradi¢ao. Qualquer obra-prima é um simbolo, e um s{mbolo jamais suporta a presenga do homem” (ibid.). Mallarmé, nos seus artigos sobre teatro,” nao diré outra coisa... Talvez mais surpreendente, 4 primeira vista, € 0 caso de Craig: que um homem de teatro, reconhecido como um dos atores mais dotados e um dos diretores mais promissores de sua geragao retome ¢ endosse uma argumentacio tao radical, eis um fato quase tinico nos anais do teatro; e que vai repetir-se, alguns anos mais tarde, com Artaud Brecht. Decadente, prostitufdo, 0 teatro virou uma industria que produz a insignificante diverséo que atende 4 procura do piiblico burgués que monopoliza os teatros. Artaud diz: ) Se a multidao se desacostumou de ir ao teatro; se todos nds acabamos pot considerar 0 teatro como uma arte inferior, um vefculo de vulgar divert mento, ¢ por utiliz4-lo como um exutério pata os nossos maus instintos, € porque ouvimos falar por demais que se trata de teatro, ou seit d* mentira ¢ de ilusio.”* Pelo menos trés teorias do espetdculo serao construidas em cima desse desgosto, dessa t4bua rasa: as de Craig, de Artaud ¢ de Brecht. Em cada uma delas, a utopia transbordard suas margens ¢ dinamiza® a pratica, Tudo se passa sempre como se a condenacao do reatro A mone permitisse a ressurreicao da arte teatral. _—_ 83. 26, La jeune Belgique, p.331, citado por Jacques Robichez, em Le symbolisme au a Fee 27. Reunidos num livro intitulado Crayonné au théatre (O. C Paris, Gallimard, 293ss.). 28. O teatro eseu duplo, capitulo intitulado “Acabar com as obras-primas”.

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