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Temas em Psicologia

ISSN: 1413-389X
comissaoeditorial@sbponline.org.br
Sociedade Brasileira de Psicologia
Brasil

Serra Zanetti, Sandra Aparecida; Gomes, Isabel Cristina


A “fragilização das funções parentais” na família contemporânea: determinantes e
consequências
Temas em Psicologia, vol. 19, núm. 2, diciembre, 2011, pp. 491-502
Sociedade Brasileira de Psicologia
Ribeirão Preto, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=513751438012

Como citar este artigo


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ISSN 1413-389X Temas em Psicologia - 2011, Vol. 19, no 2, 491 – 502

A “fragilização das funções parentais” na família


contemporânea: determinantes e consequências

Sandra Aparecida Serra Zanetti


Isabel Cristina Gomes
Universidade de São Paulo – São Paulo, SP – Brasil

Resumo
O fenômeno da “fragilização das funções parentais” relaciona-se a dificuldades que os pais possuem
em educar seus filhos, na atualidade, devido à insegurança e a dúvidas no exercício de suas funções.
Este artigo tem como objetivo apresentar os determinantes deste fenômeno e suas consequências para
a família contemporânea. Foram percorridos os aspectos históricos, socioculturais e econômicos desse
fenômeno; bem como, partindo de um referencial psicanalítico, mais propriamente freudiano e
winnicottiano, foram levantadas as decorrências do mesmo para a construção do desenvolvimento
infantil. Desta forma, constatou-se que esse fenômeno se articula com as transformações do novo
lugar ocupado pela criança na família, com o desenvolvimento das “ciências especializadas”, com a
“cultura do narcisismo” e, finalmente, que as crianças expostas a este fenômeno podem se
desenvolver em meio a um ambiente de liberdade excessiva, que pode ser prejudicial.
Palavras-Chave: Papel dos pais, Relações pais-criança, Disciplina da criança, Crianças em idade
pré-escolar, Permissividade dos pais.

The ‘weakening of parental role’ in contemporary family: its


determination and consequences

Abstract
The phenomenon of the “weakening of parental role” is related to difficulties that parents have in
educating their children, nowadays, due to insecurity and doubts in the exercise of their functions.
This article aims to show the determinants of this phenomenon and its consequences for the
contemporary family. The historical, sociocultural and economic aspects of this phenomenon were
covered, as well as, from a psychoanalytic referential, rather Freudian and Winnicottian, the
consequences of that were raised for the construction of child development. Thus, it appears that this
phenomenon is articulated with the changes in the child’s role in the family, with the development of
“specialized science”, with the “culture of narcissism” and, finally, that children exposed to this
phenomenon may develop themselves in a environment of excessive freedom, which may be harmful.
Keywords: Parental role, Parent-child relations, Child discipline, Preschool aged children,
Permissiveness of their parents.
_____________________________________
Endereço para correspondência: Sandra Aparecida Serra Zanetti. Rua Guaíra, 51 apto 52, Saúde, São Paulo/SP.
CEP: 04142-020. Fone: (11) 5589-8180/(11) 9406-2068. Fax: (11) 3021450. E-mail: sandra.zanetti@gmail.com.
O trabalho “A ‘fragilização dos papéis parentais’ na família contemporânea: suas determinações e
conseqüências”, de Sandra Aparecida Serra Zanetti e Isabel Cristina Gomes (Universidade de São Paulo), foi
apresentado na XXXVIII Reunião Anual de Psicologia na Sessão Coordenada 15: “Dinâmicas familiares, suas
determinações conscientes e inconscientes”, coordenador: Sandra Aparecida Serra Zanetti (Universidade de São
Paulo).
Artigo derivado de dissertação de mestrado, realizada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo,
com apoio financeiro da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Sobre as autoras:
Sandra Aparecida Serra Zanetti – mestre e doutoranda do programa de pós-graduação em Psicologia Clínica da
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Isabel Cristina Gomes – professora livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São
Paulo, Brasil.
492 Zanetti, S. A. S., & Gomes, I. C.

O Fenômeno da “Fragilização das do comportamento de seus pais e, desta forma,


Funções Parentais” definiu-se o fenômeno da “fragilização das
funções parentais” como característico de pais
Observa-se, na contemporaneidade, a que sentem culpa, dúvida e insegurança em
presença crescente de crianças pequenas que relação ao próprio posicionamento, enquanto
desafiam intensamente a autoridade dos pais e pais, diante do que podem, devem, ou não,
professores. Tema de programas de televisão fazer por seus filhos, na contemporaneidade
em países diversos, de artigos e sites da (Zanetti, 2008). Assim, o propósito deste artigo
Internet, esse fenômeno parece mobilizar a será o de compreender os determinantes
sociedade no sentido de refletir acerca do fato históricos, socioculturais e econômicos que
dessa nova geração ter um comportamento mais estão contribuindo para essa mudança de
intensificado de indisciplina do que as crianças comportamento dos pais, na atualidade.
de “antigamente”.
A literatura da área, quando se centra na
relação pais-filhos, traz à tona uma Determinantes Históricos
“fragilização” em torno da assunção das Baseando-se no trabalho de Lévi-Strauss
responsabilidades e do posicionamento de (1956), Roudinesco (2003) afirma que foi no
autoridade dos pais hoje em dia (Birman, 2007; seio das duas grandes ordens, a do biológico,
Cunha, 1997; Lebrun, 2004; Roudinesco, 2003; através da diferença sexual, e a do simbólico,
Romanelli, 2000; Wagner, 2003). Em função através da proibição do incesto e outros
disso, observa-se uma variedade de trabalhos interditos, que se desenrolaram durante séculos
(Casas, 2003; Edwards, 2004; Ferreira & não apenas as transformações próprias da
Maturano, 2002; McLaughlin & Harrison, instituição familiar, como também as
2006; Pattie, 2005; Sanders & Woolley, 2004; modificações do olhar para ela voltado ao
Sidebotham, 2001) focados em estudar a longo das gerações. No entanto, considera que
relação entre as práticas parentais e o durante essas transformações foi possível
desenvolvimento emocional dos filhos, ou o perceber uma variedade infinita de modalidades
comportamento manifesto dos mesmos. de arranjos e organização familiares, embora
Procurando correlacionar o sentimento de nem todas duradouras. Portanto, essa autora
competência dos pais com as suas práticas, uma compreende a necessidade de não somente
pesquisa australiana (Sanders & Woolley, definir a família sob o ponto de vista
2004), por exemplo, defende a ideia de que pais antropológico, mas também saber qual a sua
que são mais permissivos com seus filhos história para que se possa analisar qualquer
apresentam um sentimento de competência modificação na atualidade.
reduzido e que esse sentimento corresponde às Desta forma, no campo dos determinantes
suas práticas efetivas. De acordo com históricos, a proposta é de refletir a respeito do
McLaughlin e Harrison (2006), o sentimento de modo como o relacionamento entre o adulto e a
competência da mãe no desenvolvimento de criança foi-se estabelecendo ao longo dos
seu papel ao cuidar de uma criança com ADHD tempos. Consequentemente, compreender as
(Distúrbio de Déficit de Atenção e decorrências dessa relação para a constituição
Hiperatividade) é o principal fator que pode da representação da criança na sociedade,
influenciar no desenvolvimento de sua prática atualmente, e, do mesmo modo, das condições
parental e isso influencia o comportamento dos que o contexto histórico reservou à relação
filhos. Casas (2003), ao procurar relacionar pais-filhos na contemporaneidade.
comportamentos agressivos em crianças pré- Philippe Ariès (1975) foi pioneiro em
escolares com o comportamento de seus pais, mostrar que a infância, ou o sentimento e a
percebeu uma correlação positiva entre ideia que temos dela, não é uma categoria
comportamentos agressivos em crianças natural. Com isto, o autor quer dizer que
pequenas e um comportamento de culpa em quando nos deparamos com uma série de
seus pais. Ressalta que esses pais se reportavam concepções e sentimentos sobre uma criança,
como permissivos e que percebiam isto é, na verdade, o resultado de um processo
comportamentos de insegurança em seus filhos. historicamente construído.
Com base nesses trabalhos, percebeu-se Muito pouco se sabe de atitudes dos
que os comportamentos das crianças poderiam adultos frente a crianças na antiguidade, mas
ter um polo de influência considerável advindo tem-se a informação de que havia uma
Fragilização dos Papéis Parentais 493

preocupação com relação aos cuidados e possibilidade de os indivíduos falarem e


proteção de que necessitavam, além da pensarem sobre eles, um senso de eu, que foi o
escolarização. Entretanto, segundo Postman início do amadurecimento do conceito de
(1999), foi após as invasões dos bárbaros ao infância (Postman, 1999). No entanto, tal como
Império Romano, com o sepultamento da mostra Ariès (1975), a solidificação desse
cultura clássica, que a Europa entrou na conceito ainda levaria mais dois séculos, ao
chamada “Idade das Trevas” e, com ela, todo o menos. Com esta invenção tecnológica,
sentimento ou ideia de infância que havia sido formou-se, segundo Postman (1999), uma
construído, até então, também foi sepultado. nítida divisão entre aqueles que sabiam ler e os
Nesta época da história, esse autor chama que não sabiam: o “Homem Letrado” tinha sido
atenção para o fato de que a capacidade de ler e criado e, ao chegar, inaugurou um mundo de
escrever, bem como a educação, também que não faziam parte as crianças.
desapareceram. O porquê deste Portanto, a partir daí a idade adulta tinha
desaparecimento de quase mil anos é um que ser conquistada. Através da necessidade de
mistério profundo, segundo o próprio autor. aprender a ler para conquistar o mundo dos
Não que o alfabeto tenha desaparecido, explica adultos, da necessidade de educação, foi
ele, mas sim a capacidade de o leitor interpretar instaurado o conceito de infância, tendo como
e compreender o que se escrevia. E, com isso, base a falta de educação que separaria as
num mundo não letrado, não houve a crianças dos demais membros da sociedade.
necessidade de distinguir com exatidão a Diante disto tudo, pode-se perceber que a
criança do adulto. Portanto, Postman (1999) ideia de infância praticamente nasce
atribuiu esta “falta de lugar” para a infância à conjuntamente com a de educação, ou com a
falta da necessidade de instrução. necessidade de educação, compreendendo-se
Da mesma forma, Ariès (1975) demonstra esta “necessidade de educação” enquanto
que, até por volta do século XII, a arte necessidade de instrução, inicialmente. Ariès
medieval desconhecia a infância ou não (1975) demonstra como esse conceito de
procurou representá-la. Esse autor realizou seu educação se difundiu pela Europa e passou a
trabalho procurando recuperar a representação ser atrelado ao conceito de necessidade de
da infância desta época e demonstra que foi por disciplina, posteriormente, pois para que uma
volta do século XIII que começou a surgir criança fosse educada, instruída e se
algum tipo de representação da criança um concentrasse nos livros, a disciplina era de
pouco mais próximo do sentimento moderno: fundamental importância.
um anjo, ou o menino Jesus. Dessa iconografia No século XV, tanto para Postman (1999)
religiosa da infância, aponta esse autor, nos quanto Ariès (1975), os homens adeptos da
séculos XV e XVI, destacou-se a iconografia ordem, organizadores esclarecidos, procuraram
leiga. No entanto, não seria ainda uma difundir uma ideia nova da infância e de sua
representação da criança sozinha, mas com sua educação: as crianças não podiam ser
família. abandonadas, sem perigo, a uma liberdade sem
Para Postman (1999), com a evolução limites hierárquicos, elas precisavam ser
deste sentimento, no século XVI, nas camadas educadas por uma disciplina maior e princípios
superiores da sociedade, um traje especial mais estritos. Por isso, os “mestres de escola”
passou a distingui-las dos adultos, não poderiam ser “camaradas” da criança e, aos
demonstrando com isso a necessidade poucos, os governos autoritários e
simbólica de distinguir uma categoria da outra. hierarquizados dos colégios permitiram, a partir
Além disso, o sentimento de infância que surgia do século XV, o estabelecimento e o
estava atrelado a uma percepção da criança desenvolvimento de um sistema disciplinar
como ingênua, gentil e graciosa, que se cada vez mais rigoroso, chegando a ser
transformava em fonte de distração e de humilhante.
relaxamento para os adultos. Desse recorte histórico, destaca-se o fato
O nascimento do sentimento de infância, de que a solidificação do sentimento de
para Postman (1999), relaciona-se com avanços infância se desenvolveu à medida em que
tecnológicos da época. A partir de meados do também se desenvolveu a necessidade de
século XV, temos na Europa a invenção da educação, enquanto instrução e disciplina. A
impressão com caracteres móveis, a prensa infância passou a ser definida pela frequência
tipográfica. Essa invenção trouxe consigo a escolar e a sua descrição ficou atrelada aos
494 Zanetti, S. A. S., & Gomes, I. C.

estágios escolares que, em cada etapa desta Considerando todo esse panorama,
infância, deveriam ser alcançados (Postman, Postman (1999) defende a tese de que
1999). atualmente vivenciamos uma época em que a
Há algo de importância que ocorre infância – enquanto representação histórica e
juntamente com a solidificação da infância: socialmente construída − está desaparecendo.
segundo Ariès (1975), o modelo da família Novamente reportando-se às interferências dos
moderna também ganha sua forma. A exigência avanços da tecnologia para a constituição
social de que as crianças fossem formalmente subjetiva dos indivíduos, com a invenção do
educadas por longos períodos levou a uma telégrafo, segundo o autor, entramos numa era
reformulação no relacionamento entre pais e em que a informação passou a ser divulgada de
filhos. Uma nova “atmosfera” reinava nos maneira incontrolável, culminando na corrosão
lares: a da necessidade de estes pais assumirem da linha divisória entre a infância e a idade
as funções de educadores e teólogos, pois adulta.
também se valorizava que as crianças se A televisão potencializou aquilo que o
tornassem adultos “tementes a Deus” (Postman, telégrafo instaurou na sociedade: a
1999). No entanto, com o passar dos tempos, acessibilidade, cada vez maior, da informação.
afirma o autor, houve uma extensão do número As crianças começam a ver televisão
de escolas e estas responsabilidades começaram sistematicamente aos três anos, já que a
a ser delegadas, de maneira que sobrasse para a imagem na televisão está disponível a todos,
relação entre pais e filhos algo de maior independentemente da idade e na televisão tudo
proximidade, intimidade e carinho. é para todos (Postman, 1999).
A presença indiscriminada de um veículo
Foi assim que a família concentrou-se em de comunicação e informação, como foi com a
torno das crianças (Ariès, 1975). Para esse televisão, para o autor, é capaz de destruir a
autor, os progressos do sentimento de família linha divisória entre a infância e a idade adulta
seguem os progressos da vida privada, da porque não faz exigências complexas, nem à
intimidade doméstica, pois o sentimento íntimo mente, nem ao comportamento, para que se
de família não se desenvolve quando a casa está compreenda o que está sendo veiculado, e
demasiadamente aberta para o exterior. Com a porque não tem intenção de segregar seu
evolução deste mundo privado, a família, a público.
saúde e a educação passaram a ser, no século Dessa tese, o autor conclui que, na era da
XIX, as duas principais preocupações dos pais. televisão, as etapas da vida são apenas três: a
Comparando o século XVII, em que a criança dos “recém-nascidos”, a dos “adultos-crianças”
era um objeto de distração, um instrumento de e a do “senis”. Define a categoria de “adulto-
uma especulação matrimonial e profissional, criança” como “um adulto cujas
destinada a promover um avanço da família na potencialidades intelectuais e emocionais não
sociedade, com o século XIX, vê-se emergir se realizaram e, sobretudo, não são
uma rotina elementar para garantir uma boa significativamente diferentes daquelas
educação à criança: “Esse grupo de pais e associadas às crianças” (Postman, 1999, p.
filhos, felizes com a sua solidão, estranhos ao 113).
resto da sociedade, não é mais a família no Pode-se realmente perceber um incentivo,
século XVII, aberta para o mundo invasor dos por parte da mídia, em reafirmar a ideia de que
amigos, clientes e servidores: é a família as crianças são seres em condições de
moderna” (Ariès, 1975, p. 270). igualdade para poderem se beneficiar, supõe-se,
A família moderna, portanto, separa-se do do fato de que elas também estariam aptas a ser
mundo e põe toda a energia do grupo na um consumidor em potencial. Mais do que isto,
promoção das crianças e sem nenhuma ambição o que facilmente pode-se perceber é que
coletiva. Contudo, cabe um questionamento: na estamos em contato com crianças que
época em que estamos vivendo, início do realmente reivindicam um lugar de igualdade
século XXI, toda essa estrutura, que sustentou na sociedade e na família diante dos pais. É
esta forma de relacionamento entre pais e como se elas próprias percebessem que não há
filhos, permanece? As mesmas condições razão para tratá-las de modo diferenciado,
sociais e culturais permeiam essa relação da pertencendo à mesma categoria dos adultos e,
mesma forma, ou já se articulam de maneira a consequentemente, como se não houvesse razão
tê-la modificado? para tratá-las com autoridade.
Fragilização dos Papéis Parentais 495

Determinantes socioculturais vezes indicam como tratar a criança e como


agir com ela, e essas indicações, frutos de
A leitura de Postman (1999) propõe uma
pesquisas científicas, podem interferir de tal
ruptura no modo como o relacionamento pais e maneira no relacionamento entre adulto e
filhos foi historicamente construído. A criança que acabam levando muitos pais a
intenção, aqui, será a de demonstrar que, além
desconfiarem de sua competência para educar
dessa mudança na representação da criança, são
seu filho (Priszkulnik, 2002).
diversas as interferências, atualmente, capazes
Supõe-se, como propõe Priszkulnik
de influenciar na concepção que os pais têm
(2002), que essa forma de interferência dos
sobre a função que devem assumir em relação
especialistas teve suas consequências nas
às suas crianças.
relações entre pais e filhos. Contribuiu para a
Esse trajeto, ao longo da história, faz
ideia de que o saber natural dos pais é
perceber que a noção de infância e a concepção
desqualificado em relação ao saber dos
de criança sempre estiveram atreladas à
especialistas e, desta forma, também retira dos
necessidade crescente de colocar-se diante dela
pais a autoridade inerente sobre seus filhos,
com autoridade, para que adquirisse disciplina
pois esta se justifica quando podem se
e conhecimento. Além disso, o que também foi
responsabilizar inteiramente pela educação dos
possível perceber é que esta forma de se
mesmos.
relacionar, mediada por uma postura rígida e
Para Del Priori (1992), esse fenômeno
impositiva, diversas vezes foi confundida com
pode ser lido como uma “reação violenta” da
a necessidade de uma postura autoritária.
sociedade científica contra um posicionamento
Analisando o contexto sociocultural, nesse
em que os pais não consideravam as crianças
sentido, o que se destaca é que com a evolução
plenamente enquanto cidadãs. Portanto, a
das ciências seu aperfeiçoamento em
preocupação maior destes “discursos
conhecimentos especializados 1 − quando
especializados” estava em buscar sensibilizar
“debruçou-se” sobre a criança, passou a existir
os pais acerca da necessidade de maiores
uma preocupação especial em relação às formas
cuidados em relação a seus filhos, mas
de tratá-la. Atualmente, são diversos os saberes,
acabaram por provocar um sentimento
provenientes de “discursos especializados”, que
exacerbado em que, atualmente, a criança é
passaram a povoar intensamente o imaginário
colocada no lugar de protagonista e de quem
social, defendendo ideia de que o autoritarismo
decide sobre seu futuro.
deveria ser a todo custo combatido.
Uma possível leitura desse movimento no
Segundo Priszkulnik (2002), nesse final do
universo intelectual sobre a infância é a de que,
século XX e início do século XXI, pode-se
em busca de relações mais igualitárias entre os
afirmar que a criança se tornou ainda mais o
sexos e isentas de repressões sexuais, diversos
centro das atenções e das preocupações dos
autores e profissionais especializados,
adultos. A educação, a saúde, o bem-estar, as
procurando propiciar melhores condições de
relações entre pais e filhos, para essa autora,
vida aos novos seres humanos, acabaram
são assuntos, dentre outros, constantes em
confundindo-se entre um combate ao
periódicos científicos, em revistas semanais,
autoritarismo e/ou ao princípio de autoridade,
em artigos de jornais e, nos dias de hoje, em
que passaram a ser concebidos sem distinção
sites na Internet. Esses especialistas, muitas
nos lares, de modo que ambos passaram a ser
atacados e questionados.
1
De acordo com Canevacci (1985), Lebrun (2004) considera que a sobrevinda
do discurso da ciência, que subverteu
Nas primeiras décadas do século XIX, começou
a se difundir por toda a Europa uma nova
profundamente o equilíbrio até então em jogo
metodologia da pesquisa científica: o espírito de na família, surgiu para acabar de vez com o
especialização. Este autor salienta que este poder da autoridade paterna, proporcionando
espírito de especialização “deixou de lado um deslocamento do posicionamento de
completamente a concepção do ser humano autoridade para o de responsabilidade.
como totalidade” (p. 13). Para este autor, desde que a autoridade da
E acrescenta que desta forma só se pode chegar a Igreja passou a ser contrariada pela da ciência,
uma verdade capenga, “à ‘verdade funcional’ de um a legitimidade, que a onipotência de Deus
aspecto individual, metodologicamente separado das autorizava, passou a ser questionada pela
necessárias conexões mais gerais” (pp. 14-15). legitimidade permitida pela cientificidade. Essa
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mudança permitiu o embasamento do saber constituir como elementos ordenadores da cena


numa legitimidade fundada na autoridade doméstica, definindo posições hierárquicas,
concedida pela coerência interna dos direitos e deveres específicos, porém desiguais.
enunciados em detrimento de uma legitimidade A autoridade reporta-se a experiências comuns
fundada na autoridade do enunciador. Assim, o vividas no passado e seu exercício visa
lugar central que acabou tomando a ciência em preservar posições hierárquicas já
nossa sociedade promove uma organização estabelecidas, que fazem parte da tradição de
social sem referência, já que tudo se equivale comando no interior de um grupo ou
na medida em que novos balizamentos ainda associação. No entanto, a rapidez das mudanças
não foram validados. que afetam a família tornam o saber,
Diante desse contexto, Lebrun (2004) acumulado pelo pai, inadequado para fazer face
ressalta a dificuldade crescente dos pais em a situações novas, que não foram vividas por
dizer “não!”, pois essa dificuldade se relaciona ele e sobre as quais sua experiência é nula, de
com o fato de que os pais esperam que o social modo que, muitas vezes os filhos transmitem
venha ratificá-los em seu dizer. No entanto, o aos pais saberes e novos modelos de conduta.
que se constata é que esta dificuldade em dizer Por consequência, essas mudanças
“não!” contaminou primeiramente o social, contribuíram de modo decisivo para que os
para o autor. filhos assimilassem a posição de “sujeitos de
De uma forma geral, a introdução da direitos”, dentro e fora da unidade doméstica,
ciência moderna progressivamente ficando em segundo plano a condição de
deslegitimou o argumento da autoridade. Um “sujeitos de deveres”. Assim, ressalta o autor, a
movimento que, segundo o autor, ação socializadora das famílias de camada
primeiramente abala o lugar daquele que média concorre para que o individualismo dos
sempre teve o encargo de sustentar a filhos prevaleça sobre as aspirações de cunho
enunciação, o pai. E em segundo lugar, coletivo.
promove um novo modelo de configuração:
dirigir-se ao saber como ao pai, ou seja, nossa
sociedade assumiu a ciência no lugar da função
Determinantes Econômicos
paterna. Associada a essas circunstâncias,
Diante de tudo, importa pensar que, considera-se de importância também salientar
atualmente, não há referências claras sobre a as interferências decorrentes do sistema
importância e a necessidade de se manter vivo econômico na construção atual das
o princípio de autoridade nas relações dos pais subjetividades dos indivíduos. As condições de
com seus filhos. Diversos autores têm apontado existência atuais são profundamente marcadas
para a existência desse fenômeno e suas pela disseminação de valores e
consequências para a reestruturação da família. comportamentos que sustentam e são
Wagner (2003) considera como fato provocados por uma violência cotidiana, ditada
comum, hoje, pais e mães sem referências pelo mercado econômico.
claras do que deveriam fazer em questões A sociedade atual, segundo Caniato
simples do cotidiano. Para ela, como as regras (2000), sustenta uma violência estrutural, dita
da educação não estão claras para os pais, democratizante, pautada num autoritarismo
tornam-se inconsistentes diante dos filhos. As econômico disseminado pela globalização,
relações de poder, historicamente estabelecidas cujos efeitos são promover a ganância e a
de forma hierárquica, nas quais o pai detinha a exclusão social em todos os países do planeta.
autoridade e era reforçado pela mãe, estão Esse fenômeno promove a competição
diluídas. Além disso, essa posição inconsistente individualista que se potencializa e se nutre do
dos pais os torna mais vulneráveis às ideias “salve-se quem puder”, impondo condições de
difundidas sobre as novas teorias e alternativas vida que priorizam as necessidades do mundo
de educação. Consequentemente, um econômico, além de sedimentar a impotência
sentimento de culpa os domina, funcionando individual e a apatia dos grupos na
como um paralisante, principalmente no que se culpabilidade de seus fracassos. Nessa
refere a situações que exigem que os mesmos sociedade, o indivíduo solitário é responsável
coloquem um limite. pela sua performance e o resultado não poderia
Segundo Romanelli (2000), as relações de ser outro, tal como aponta a autora, senão seu
autoridade e poder na família devem-se enclausuramento na destrutividade psíquica e
Fragilização dos Papéis Parentais 497

uma redução narcísica perversa. diante do medo de ressentimento dos filhos, ou


O que Caniato (2000) aponta realmente mesmo dificultando que esses pais se coloquem
tem sido sustentado por alguns autores, como como autoridade diante dos filhos por se
Lasch (1983) e Costa (2003), que afirmam que sentirem em dívida com os mesmos.
questões de ordem narcísica têm-se Além destes aspectos, as condições
disseminado na cultura, em decorrência das socioculturais e econômicas de existência
condições socioculturais e econômicas que podem interferir nas formas de construção de
perpassam as constituições psíquicas dos vínculos na família, pois esses passaram a ser
indivíduos. perpassados por questões e aquisição de valores
A cultura contemporânea do narcisismo, relacionados à individualidade, liberdade,
sustenta Lasch (1983), fundamenta-se igualdade de direitos e falta de confiança no
basicamente na realidade de um mundo exterior grupo social.
que se apresenta como cada vez menos durável, Para Roudinesco (2003), a família
comum e público, onde as associações humanas contemporânea assemelha-se a “uma rede
e as memórias coletivas encontram-se cada vez assexuada, fraterna, sem hierarquia nem
mais problemáticas. Esses sentimentos autoridade, na qual cada um se sente autônomo
intensificam, segundo ele, o medo da ou funcionalizado” (p. 155). Caracteriza-se
separação, ao mesmo tempo em que ainda, segundo a autora, por unir dois
enfraquecem os recursos psicológicos, que indivíduos em busca de relações íntimas ou
tornam possível enfrentar tal medo de forma realização sexual, em que o casamento perdeu
realista. todo seu valor simbólico de outrora, tornando-
Esse autor explica que os processos de se apenas um tipo de união, mais ou menos
separação e morte só são suportáveis porque o duradoura, que protege os cônjuges de
mundo preenchido de cultura humana restaura eventuais desordens do mundo. Os filhos, por
o sentido de vinculação original em uma nova sua vez, são cada vez mais concebidos fora dos
base. Contudo, mediante condições de laços matrimoniais e assistem às núpcias e
existência que enfraquecem os recursos para divórcios de seus pais. Essa autora acentua que
lidar com as perdas, o medo da separação em lugar da divinização, a família
torna-se quase esmagador e a necessidade de contemporânea se pretende frágil, neurótica e
ilusões passa a ser, consequentemente, mais consciente de sua desordem.
intensa do que nunca. De acordo com A. C. T. Ribeiro e I.
Esses aspectos culminam por interferir na Ribeiro (1993), os novos valores da família
constituição das famílias e dos indivíduos. estruturam-se em torno do caráter idealizado de
Pode-se supor que o mecanismo de cuidados, de respeitos à autonomia e às
culpabilização (Caniato, 2000) de cada um por individualidades, e conjectura-se que essas
tudo aquilo que não se pôde conquistar, numa foram as formas em que “individualismo”,
sociedade de extrema valorização por “igualdade de direitos” e “narcisismo” têm-se
aquisições e conquistas pessoais, além de apresentado na família. Essas mudanças podem
competitiva, promove nos pais atuais a ser entendidas como efeito de uma sociedade
expectativa de alcançar um ideal em suas pouco compromissada com o próximo que,
funções parentais, também influenciados pelos refletida na família, assume esse caráter de
“discursos especializados”. E quando não se “emergência de cuidados”, mas que
sentem em condições de dar aos filhos tudo efetivamente não ocorre, porque se os pais
aquilo que eles querem, ou de que acham que estão tomados pelo ideal, na prática, não se
precisam, devem se sentir culpados. Pode-se implicam nesta tarefa de educar.
compreender, ainda dentro desse cenário, que
da mesma forma a culpa deve surgir quando se
deparam com o fato de que os filhos passam Decorrências da “Fragilização das
mais tempo em escolas ou creches, diante da Funções Parentais” para o
televisão, com suas professoras e babás do que Desenvolvimento Infantil
com eles próprios, pois, imersos neste sistema,
precisam trabalhar muito. Esse sentimento de A partir da psicanálise, como mostra
culpa acaba, por sua vez, interferindo Kamers (2006), sabe-se que a família é uma
imensamente na dinâmica das relações paterno- estrutura responsável pela transmissão e
filiais porque funciona como um paralisante, inserção da criança na cultura e no universo
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simbólico, através das funções parentais. Ou perpassados por condições narcísicas intensas,
seja, cabe aos pais se implicar na tarefa de acabam proporcionando modelos de relação
transmissão de uma ordenação simbólica que regredidos, baseados no medo da separação e
delimite lugares, de modo que a categoria de na tentativa de suprir toda e qualquer
pais defina diretamente a categoria de filho. necessidade. Dessa forma, os pais
Entretanto, essa autora defende a ideia de que providenciam às crianças um processo de
atualmente assistimos a um desvanecimento da crescimento em que pouco precisam lidar com
diferença necessária a esse ordenamento e a um limites, tornando-as também incapazes de lidar
“inflacionamento imaginário”, relativo ao que com a frustração.
deveriam ser as funções parentais. Considera Para Kehl (2001), na “cultura do
que a existência de uma vasta literatura nesta narcisismo”, os filhos podem ser a esperança da
área, referente aos “discursos especializados”, imortalidade e perfeição, e os adultos querem
encarregou-se de promover uma proliferação de se recuperar narcisicamente à custa de seus
um “exército de pais desesperados”, que não se filhos. Essa autora afirma que isso faz com que
autorizam junto a seus filhos. Essa situação, o adulto passe a sustentar sua existência
também para ela, implica numa renúncia do individual na imagem ideal de uma criança, que
adulto em educar uma criança, em nome de atualmente é vista como capaz de ser o adulto
ilusões de uma educação ideal. que eu não fui a quem nada deveria faltar.
Segundo Freud (1914/1969a), se À vista disto tudo, o adulto acaba por
“prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos recusar a sua responsabilidade diante deste
para com os filhos, temos de reconhecer que ela mundo, negando à criança a possibilidade de
é uma revivescência e reprodução de seu ser introduzida nele (Kamers, 2006). Essa
próprio narcisismo, que de há muito autora ainda defende a ideia de que atualmente
abandonaram” (p. 97). Para ele, os pais assistimos a uma espécie de delírio de exclusão
atribuem todo tipo de perfeição aos filhos, da sustentação simbólica necessária para a
ocultando e esquecendo as deficiências dos humanização da criança. “Delírio”, que,
mesmos. A criança torna-se o centro das segundo ela, está fundado na ilusão de que o
atenções em função de uma atitude emocional adulto poderia intervir de uma forma adequada,
dos pais, que buscam imortalizar-se por ideal, junto à criança. E nisso consiste a ilusão
intermédio da criança. de que seria possível “poupá-la” dos interditos
Portanto, o amor dos pais, para Freud necessários à cultura.
(1914/1969a), no fundo “tão infantil”, nada Contudo, a tarefa primeira da educação
mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o consistiria, de acordo com Freud (1932/1969b),
qual, transformado em amor objetal, revela sua no dever da criança em aprender a controlar
natureza anterior. Lebovici (2004) afirma que o seus instintos. Atenta, diante disso, para o fato
narcisismo primário descrito por Freud de que é impossível conceder às crianças a
(1914/1969a) é algo que dá sentido próprio à liberdade de por em prática todos os seus
criança e permite que se sinta viva quando a impulsos sem restrição. Por conseguinte, de
sua mãe não está com ela, o sentimento de acordo com esse autor, a educação deve inibir,
consciência da própria existência. proibir e suprimir os impulsos da criança, como
No entanto, transpondo essa leitura para a procurou fazer em todos os períodos da
“cultura do narcisismo” e baseando-se em tudo história.
que já foi exposto até aqui, poder-se-ia Freud (1939/1969c) ainda explica que o
compreender que a criança, que já se encontra superego − instância do aparelho psíquico
sob os desígnios provenientes do amor responsável por exercer o papel de um juiz ou
narcísico dos pais, assume hoje o lugar do ser censor relativamente ao ego, que se constitui a
ideal. Aquele que, como objeto de projeções, partir da interiorização das interdições
torna-se o ser na família capaz de realizar todas parentais, no desenvolvimento do complexo de
as frustrações destes pais, alguém, portanto, a Édipo (Laplanche, 2004) − é o sucessor e o
quem não se pode nunca frustrar. representante dos pais para o indivíduo. Os pais
De acordo com Lasch (1983), as condições são os responsáveis por supervisionar as ações
de igualdade pretendidas em nossa “cultura do no primeiro período de vida da criança; de
narcisismo” ofuscam o poder de autoridade modo que o superego continua as funções dos
paterna. Ademais, interferem nas formas de pais quase sem mudança. Segundo este autor, a
relações entre os membros familiares, pois, autoridade dos pais da criança lhe exige uma
Fragilização dos Papéis Parentais 499

renúncia ao instinto, que por ela decidem o que Diante de tudo, conjectura-se que
lhe deve ser concedido e proibido. Mais tarde, comportamentos de indisciplina, tirania ou
quando a sociedade e o superego assumirem o agressividade, que desafiam a autoridade,
lugar dos pais, o que na criança era chamado de vinculam-se ao fenômeno de “fragilização das
“bem-comportado” ou “travesso”, é descrito funções parentais” à medida que, quando em
como “bom” e “mau”, ou “virtuoso” e excesso, podem refletir a dificuldade que essas
“vicioso”. crianças estão tendo para lidar com seus
Para Winnicott (1999), a criança que impulsos. Ou, em outras palavras, quando não
expressa um comportamento de agressividade podem contar com pais “confiantes e fortes”
demonstra uma vida instintiva que está ativa e que as ajudem nesta tarefa.
que pode usufruir dos impulsos instintivos, Esses pais não conseguem responder às
incluindo os agressivos, com a possibilidade de reais necessidades dos filhos, por dificuldades
converter em algo construtivo, na realidade, o próprias e proporcionam às suas crianças a
que era um dano na fantasia, que é a base do percepção de mundo como um lugar pouco
brincar. confiável ou que está “em dívida” com elas, no
Ainda segundo o autor acima, é tarefa dos sentido de que sentem que perderam algo que
pais e dos professores cuidarem para que as era delas por direito. Essas crianças poderão
crianças nunca se vejam diante de uma desenvolver, mais tarde, e por consequência,
autoridade tão fraca a ponto de ficarem livres comportamentos de indisciplina esperançosos
de qualquer controle ou, por medo, assumirem por limite, com tendências “antissociais”, para
elas próprias a autoridade. que o que não foi possível de ser realizado
Em resumo, a agressão em crianças pelos pais possa ser realizado pela professora
pequenas, para Winnicott (1999), tem dois ou por parentes próximos, como tios, tias, etc.
significados: constitui direta ou indiretamente A “tendência antissocial” (Winnicott,
uma reação à frustração, mas também é uma 1956/2000) é decorrente da falta de um
das muitas fontes de energia de um indivíduo. cuidado, num certo momento do
Disto pode-se concluir, de acordo com o autor, desenvolvimento, que a criança sente que
que todas as crianças teriam este impulso anteriormente teve. Pensando na dinâmica de
agressivo naturalmente no modo de se pais de crianças que não são capazes da
comportar e necessitariam de pais confiantes, imposição do limite, esse acontecimento ocorre
fortes e amorosos que possibilitassem a num período posterior do desenvolvimento da
expressão, continência e contenção destes criança, em que outros cuidados anteriores de
comportamentos. Do contrário, a criança, que ela necessitava dos pais foram cumpridos.
assustada com esses impulsos, sentirá Ou seja, passado o período de “dependência
necessidade de reprimi-los, tornando-se tímida absoluta”, onde os pais puderam exercer bem
ou deprimida; construindo um sentimento de suas funções, no período de “dependência
culpa; ou ainda, tornando-se tirânica, numa relativa” essa criança se depara com pais que
busca pela contenção externa. agora não são capazes de exercer
Como mostra Winnicott (1999), no adequadamente suas funções − por sentirem
começo a criança tem necessidade absoluta de dificuldade de exercer a função de autoridade −
viver num círculo de “amor e força”, com a e um comportamento de agressividade
consequente tolerância, para não sentir um excessivo, então, pode (com o cuidado de não
medo excessivo de seus próprios pensamentos e cair em generalizações) estar a serviço de uma
dos produtos de sua imaginação, para progredir destrutividade 2 , onde a criança busca no
naturalmente em seu desenvolvimento ambiente um embate contra o comportamento
emocional. Se acontecer de os pais não impulsivo.
conseguirem proporcionar-lhe esse ambiente, o
sentimento de liberdade excessivo pode gerar 2
na criança, ao contrário do que se possa pensar, Para Winnicott (1956/2000) há sempre duas
vertentes da tendência antissocial: a do roubo e a da
comportamentos relacionados não a tudo o que
destrutividade. Na primeira, “a criança procura algo
lhe dá prazer, mas sim àquilo que expressa sua em algum lugar e, fracassando em seu intento,
angústia. Essa criança procurará, num outro procura-o em outro lugar, quando tem esperança”
quadro de referências, alguém que a ajude a (p. 411). Na segunda, trata-se de uma busca por uma
contê-la e possa se tornar a fonte de amor e provisão ambiental perdida, por uma atitude humana
confiança. confiável.
500 Zanetti, S. A. S., & Gomes, I. C.

Trata-se, portanto, de uma busca por uma Contudo, o fenômeno da “fragilização das
provisão ambiental perdida, por uma atitude funções parentais” denuncia a existência de
humana confiável, que possa proporcionar ao pais que não conseguiram se apropriar de todas
indivíduo a liberdade de mover-se, agir e essas mudanças de um modo equilibrado: ou
excitar-se. Ou seja, para esse autor, alguns seja, proporcionar uma educação não rígida,
comportamentos tirânicos de crianças não se que dê maior espaço para a participação da
referem à onipotência infantil, mas a esse tipo criança na família, promovendo formas de
de realidade psíquica. Como se a criança relações mais compreensivas e próximas da
buscasse uma moldura cada vez mais ampla, mesma, ao mesmo tempo em que reconheçam
um círculo que teria como seu primeiro que a criança em idade precoce precisa ser
exemplo os braços ou o corpo da mãe. “É orientada, em termos de limites, e respeitada
possível perceber aqui uma série – o corpo da dentro de suas possibilidades e capacidades
mãe, seu braços, o relacionamento dos pais, o características.
lar, a família, incluindo primos e parentes Conclui-se, então, que este modo de lidar e
próximos, a escola, o bairro com a sua cuidar de uma criança só é possível se os pais
delegacia, o país e suas leis” (Winnicott, não se encontrarem plenamente mergulhados
1956/2000, p. 411). em meio a projeções narcísicas, próprias da
Desta forma, esclarece-se a importância “cultura do narcisismo”. Isso os impossibilita
que o sentimento de segurança, proveniente de de frustrá-la porque convivem diariamente com
pais que podem desempenhar adequadamente exigências egóicas e culturais, que os impedem
suas funções, proporciona para a constituição de lidar com as próprias frustrações e, portanto,
psíquica da criança. E, apoiando-se em buscam se recuperar dessas à custa do filho,
Winnicott (1999) e em Freud (1932/1969b), projetando nele a possibilidade de reviver o
conjectura-se que a presença do “princípio de próprio ego em alguém para quem nada falta e
autoridade” na família ultrapassa um caráter de nada frustra. Neste processo, os ideais
valor cultural. Ou seja, a “perda” deste valor contemporâneos de educação, em que se
pode implicar em consequências sérias para o prioriza o diálogo com a criança, por exemplo,
desenvolvimento psíquico das crianças. podem ser usados para encobrir alguma
dificuldade sentida nesta tarefa de frustrar um
filho.
Considerações Finais A compreensão de alguns autores, como
Kamers (2006) e Kehl (2001), de que é a busca
Retomando os objetivos propostos, por um ideal, nessa prática educativa, que tem
procurou-se demonstrar por meio de uma impedido os pais atuais de se implicarem na
revisão ampla da literatura sobre o tema, como tarefa de educar seus filhos, não satisfaz
os determinantes históricos, socioculturais e plenamente. Isto porque quando um ideal
econômicos contribuíram para a compreensão estiver sendo usado com a finalidade de
do fenômeno da “fragilização das funções “encobrir” uma dificuldade de caráter
parentais”; e como esse se estruturou e é emocional, como no caso da projeção narcísica,
sustentado por tais determinantes, na não se trata de um ideal, mas de um recurso
atualidade. defensivo que muitas vezes serve apenas como
As reflexões deste artigo vão ao encontro justificativa de comportamentos incongruentes,
do que teóricos e clínicos que se dedicam ao que representam conflitos internos.
estudo das relações pais/filhos afirmam: hoje a Finalmente, é importante considerar que
criança já nasce em meio a um contexto que lhe vivenciamos uma etapa de transição e que,
reserva um lugar de maior liberdade para nesse contexto, naturalmente as novas formas
exploração e conhecimento do mundo e do de relacionamento entre pais e filhos são
ambiente familiar, já que os valores de difíceis de serem assimiladas isentas de
democracia, liberdade e igualdade promoveram conflitos, já que os valores tradicionais que
a abertura deste novo universo à criança. Ao embasavam o processo educacional passaram a
mesmo tempo, esses valores proporcionam uma ser amplamente questionados e os modelos
maior convivência com a diversidade, o que novos ainda não estão totalmente estabelecidos.
pode trazer contribuições muito ricas para a Portanto, na atualidade torna-se necessário que
formação das subjetividades e identidades na os pais construam um modo consistente de
família e, consequentemente, para a sociedade. exercer a parentalidade, reforçando as relações
Fragilização dos Papéis Parentais 501

hierárquicas no interior da família, sem Ferreira, M. C. T., & Marturano, E. M. (2002).


confundir o emprego da autoridade com Ambiente Familiar e os Problemas do
autoritarismo, e respeitando os lugares e Comportamento apresentados por Crianças
funções diferenciadas de cada um no grupo com Baixo Desempenho Escolar.
familiar. Psicologia: Reflexão e Crítica, 15 (1), 35-
As práticas educativas só podem adquirir 44.
um caráter consistente e não ambivalente, se
forem construídas com autenticidade e Freud, S. (1969a). Sobre o Narcisismo: uma
segurança pelos próprios pais, valorizando suas introdução. In S. Freud, A história do
qualidades e experiências pessoais para essa movimento psicanalítico, artigos sobre a
função, em primeiro plano. Como cenário de metapsicologia e outros trabalhos (pp. 77-
fundo ou segundo plano, de modo 108; Vol. XIV; Edição Standard Brasileira
complementar e não em substituição, estaria das Obras Psicológicas Completas de S.
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