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somanc'f ae sito SUMARIO. Apresentgao, Jeane Marie Gagnebin Advercéneta 19 1A testemunha. 2 2 © “mugulmane” 49 3. A vergonha, ou do sujeito 93 4 © arquivo ¢ 0 restemunho . 139 Ribliografia poe 71 Copyright Giowgla Agamben Copyright © Beitenpe Eaieortl, 2008 Crandnapin iia rasa Skog etcetera Pas Cami {age Perce Fs Aviom atrial Uncen Lia Tego Selina J. Asean Prpargto Nilson Molin Revisie Rom Kurhait ape Guiherne Xavier ‘ie ou de Miche Rene ‘Bday eardioe Civ se Cerqutes Coit ‘redo. Mazel ta CCIP-BRASIL, CATALOGACAO NA FONTE, SIDI ATO NACIONAL DOS ESITORES DELIVROS, R} Aggmben, Gla, 1902 quent du Anche: 0 gue a tetera tomo Sc 11D {cig Apmis sano Sn Asian So Pas Hae {ado de toy “indus de: Quel che ves dt Anschwer ‘nl kira ISBN 978 95-7559.120.8 1, uschite amp deconcentai), 2 Holocaust jude (1999 1943) " Notes pounie "Minera etc. 5, Holocaust fuden 11539-1545)" Anpoctor outs «eran 4 Poexrucarlme. ITE 98.3658 cpp 940.5318 DU. Sanon) 193911945" “Taos op dees reer: Nenhurma pate deste yo pode er Tala ou rpredsida sem expt aowiaag da tire 1 ediso: outabo de 2008 BOFTEMPO EDITORIAL Jinkings Edicores Arzocindes Leda Rua Bucides de Andra, 27” Perdizes (05030-030 So Paulo Si?” Tees (11) 3875-7250 / 3872-6869 ecitorboirempocd.orial.combe ‘ronboieempoeditnriacorn.br Bianca Casalini Agamben (in memoriam). “Estar ao alcance de tudo significa ser capaz de tudo.” Para Andzea, Daniet e Guido, os quais, a0 discutirem comigo estas iginas, permitiram que viessem A luz, Copyright Giowgla Agamben Copyright © Beitenpe Eaieortl, 2008 Crandnapin iia rasa Skog etcetera Pas Cami {age Perce Fs Aviom atrial Uncen Lia Tego Selina J. Asean Prpargto Nilson Molin Revisie Rom Kurhait ape Guiherne Xavier ‘ie ou de Miche Rene ‘Bday eardioe Civ se Cerqutes Coit ‘redo. Mazel ta CCIP-BRASIL, CATALOGACAO NA FONTE, SIDI ATO NACIONAL DOS ESITORES DELIVROS, R} Aggmben, Gla, 1902 quent du Anche: 0 gue a tetera tomo Sc 11D {cig Apmis sano Sn Asian So Pas Hae {ado de toy “indus de: Quel che ves dt Anschwer ‘nl kira ISBN 978 95-7559.120.8 1, uschite amp deconcentai), 2 Holocaust jude (1999 1943) " Notes pounie "Minera etc. 5, Holocaust fuden 11539-1545)" Anpoctor outs «eran 4 Poexrucarlme. ITE 98.3658 cpp 940.5318 DU. Sanon) 193911945" “Taos op dees reer: Nenhurma pate deste yo pode er Tala ou rpredsida sem expt aowiaag da tire 1 ediso: outabo de 2008 BOFTEMPO EDITORIAL Jinkings Edicores Arzocindes Leda Rua Bucides de Andra, 27” Perdizes (05030-030 So Paulo Si?” Tees (11) 3875-7250 / 3872-6869 ecitorboirempocd.orial.combe ‘ronboieempoeditnriacorn.br Bianca Casalini Agamben (in memoriam). “Estar ao alcance de tudo significa ser capaz de tudo.” Para Andzea, Daniet e Guido, os quais, a0 discutirem comigo estas iginas, permitiram que viessem A luz, APRESENTAGAO, Jeanne Marie Cagnebin Dentro da vasta obra de Giorgio Agamben, este livre ocupa lugar inermediario e singular. Publicado em. 1998, retoma a problemética de Homo sacer (1995)' e de Mezzi senza fine (1996), em particular a dis- ‘gio entre vida nua (208) ¢ forma de vida, propriamente humana (608), desde a elaboragio dessa distingio por Aristételes até a transformagio, ‘na época moderna, da politica em biopolitica (na esteira das reflexes de Michel Foucault). O nome “Auschwitz” ndo € simplesmente o simbolo do horror € da crueldade inéditos que marcaram a Historia contempo- ‘inea com uma mancha indelével: “Auschwitz” também é a prova, por sssim dizer, sempre viva de que o nomas (a lei, a norma) do espago polf- ‘deo contemporineo ~ portanto, nao sé do espago politico especifico do reyime nazista — no é mais a bela (¢ idealizada) construgio da cidade ‘comum (péli), mas sim o campo de concentragso: (0 campo ¢0expago que se abre quando 0 extado de excerlo comea a tornar-se rege [..). Na medida em que os seus habitantes foram despojados de todo cestatuto politico e redusidos integralmentea vida nua, o campo é também. © mais absoluto espago biopolitico jamais realizado, no qual © poder nao tem dante de si sendo a pura vida sem qualquer mediagéo.* "Flom acer i potr sounona ele nude vita Tir, Einaul, 1995); ca. bras: Homo saer0 poder anberine ede nus (Belo Horizonte, Edtora UFMG, 2002) Mossi sence fine: note sulla polities Tarim, Bolla Borknghiest, 1996) (sem ‘radugso em pores). Home sacer: poder soberane ea vids nua it, p. 175, 177-8, Net acess respelto wo livre de Peter Pal Pelbare, Vide capital (Sto Paulo, Tinuras, 2003) 10 + © que rests de Auschwice Assim afirma Agamben em Homo sacer ¢ ipsi ltrs, em Meesi senza _fine, antecipando uma reflexio sobre o estado de exceciio como norma, que seri o cixo de Estado de excepto (2003). Mas O que rerea de Auschwitz cambém anuncia wma cemdcica teo- Idgico-politica que deverd se desenvolver no livro seguinte, If tempo che esta (2000)°, uma bela e erudita incerpretagio da dimensio messianica das Ep{stolas de s4o Paulo, em particular da Epistola aos Romanos, texto fandante da teologia moderna de Lutero a Karl Barth ¢ Jakob Taubes. A lilkima publicagso de Giorgio Agamben, Il negno la glovid!, 6 vern refor= sar essa vertente do pensamento de Agamben, vertente pouco recebida comentada no Brasil. Aliés, embora O que resta de Auschwitz ja clas- sificado sob a numeragio Homo sacer II, 0s livros subseqiientes — Estado de excegao € It regno ¢ la gloria ~ trazem, respectivamente, os niimeros 11, Ze ZH, 2,0 que causa no leitor certa confusto, no melhor dos casos uma expectativa inerigada por um Horo sacer III, 2 0u caver IV. Se a palavra “Auschwitz” remete, entio, & problemdtica do Homo sacer, do estado de excecio ¢ da biopolitica, a expressio enigmatica “O que festa" reenvia a um nticleo tealégico © mess co, parente nas duas tages biblicas em epigrafe ao capitulo 1 (“A teseemunha’) © nas breves afirmagées finais do capitulo 4 (“O arquivo eo testemunho”) sobre 0 cos, Agamben desenvolve essa nogio bastante peculiar de “resto” a partir daquilo que ele chama, lendo sto Paulo, de “contragao do tempo", de “situagao messianica por exceléncia", numa lei- ura muito livre da passagem da Primeita Epistola aos Corintios, na qual Paulo declara: “Eis 0 que vos digo, irmaos: 0 tempo se fez curto””, e numa Reino ¢ o tempo messi ‘Stata di ccesione: hone eacer Il, 1 Tasien, Bol Estado de excepto: home ster Il, 1 (S30 Pauly Boringhiers, 2003); ed. bes. tempo, 2004), {tempo che resea: wos commento alla Leters at Roman (Tati, Bollati Borin tier, 2000) (sem eraducao em poregiés) vega © la gloria: per una genealogia tolgica dell economia e dal govern: bomto acer II, 2 Wicensa, Neri Bossa, 2007). Agradego a indicagso deat live a Jon fefer E Barbora. 1 Gor. 7:29, segundo a tradusio cla Biblia de Jerusalém, que trax em nota 0 eguinte comentario sobre o "tempo curto": "Termo téeniea de navegacso. Lit ‘o tempo clobrou as suas velas. Qualquer que sejao ineervalo entre o momento presente € Paroutia, perde a importincla, dado que, no Cristo resuscltado, ‘9 mundo vindouro jf ext presente”. Agamben comenca essa passagem no seu, livre Ul eempe che rsa Apresencagio #11 seapropriagio do conceico de Walter Benjamin, de Jerzzeit, eemporde- ira, simultaneamente cesurs revolucionsria ¢ messitnica, O que resta vie Auschwite née significa, entso, aquilo que ainda podetia sobran, per tnanecer desseterrfvel acontecimento, algo como um famigerado “dever ‘lememéri’ uma expressio cujos usos e abusos alo conhecidos. O resto ‘nuliea muito mais um hiato, uma lacuna, mas wma lacuna essencial que fund a lingua do festemunho em oposicao &s classifcagbes exaustivas do inuivo. Nas ditimas paginas do lio, Agamben desvia a conhecida cita- ‘ho de Heidegger: "Os poctas ~ as testemunhas ~ fundam a lingua como ‘que resta, 0 que sobrevive em aro & possbilidade ~ ou & impossibil ‘lade de falar (J. Nao enuneiivel, nfo arquivavel é a lingua na qual 0 “tor consegue dar testemunho de sua incapacidade de falar. “Assim, podemos entender melhor ese “resto” como aquilo que, No «eytemunho, solapa a propria eficcia do dizer e, por isso mesmo, instiral a ‘erlade de sua falas ¢ no tempo huumano, como aquilo que solapa a lins- ‘iladeinfinita de oronose instiuia plenitude evanescente do tempo-de- iyora como hafror messi, Tasisto nas dficuldades do ttulo dese livro porque elas ajudam a en- vender as difculdades de sua leitura, A primeira vista, parece que temos tim mos mais um livro sobre Auschwes, nfo umn livro histbrico — desde "primeira pigina,o autor nos adverre que a questio das “circunstincias Inérieae” ja foi devidamente eslarecda pelo historiadores da Shoah ~ nas un liv sobre as dificuldades do tertemunho, Iso € verdade: como toxlos os livtos de “testemunhas" da Shoah (eitemos, entre outros, Primo {evi Robert Antelme, Jorge Sempran ox Jean Améry). trat-se de nartar \y que aconteceu? e de afirmar, 20 mesmo tempo, que “o que acomte- cu no faz parte do narrével. Os dois primeiros eapitulos de O que nse de Auschwite segacm, gros modo, es tilha j4 conhecida; os dois “ihimos, porém, introduzem refexdes sobre a subjetivacto ea vergonka, ‘ssim como sobre a lingwagem, que escapam do género “literanura do ‘estemunho” ou da reflexio teérca a seu respeito. Ow melhor: que de- Sulojam 0 leitor deste rerritsrio jd basrance explorado eo projetam em llnccto a especulagées filos6fico-teoligicas que podem muito bem néo wi aborrecé-to, mas também initélo (como se sabe, a recepgio da obra “le Giorgio Agamben € multo controverrda, em particular nos meios Vep ier 12 * © que resea de Auschwitz judaicos alemées ¢franceses). Sem prejulgar nem o interes nem o valor dlestarreflexdes, gortaria de, no minimo, assinalar sua presenga © 0 emba- ac0 que podem provocar num Icitor mais “engajado”, que nio procura por intaompacties mantlccan ann quizes es ment com feuenseenee de andlise ede lata. (Ors, neato que emma 1eflsdex-sejam mais excancaradas now ikimos capiculos, elas subjare ao livre inteize. Segundo o auton olivre niio é urea pesquisa histérica, seria ras tum pesquisa sobre écica e estemunho ou ainda mais uma ceneaiva de “finear cf e ld algumas estacas que eventual ‘mente poderio orientar os fiacuros cartégrafos da nova terra étice", cujo primeiro e mator ageimensor, diz Agamben, continua sendo Primo Levi Um paradoxo constitutive rege tal pesquisa. Com efeito, na tradigao. ocidental, flosofia moral © érica foram sempre definidas pela descricso do “reino das norma’ isto é, pela reflexio critica sobre o estabelecimen- to de leis/normas/regras (tomo) comuns que deveriam reger a vida em comum des homens, 0 dominio dos uros‘e dos costumer comianss rfl so critica sobre a fundamentagio de rais normas, sua eventual univer- salidade, suas posibilidades de validagdo e/ou de cransgresséo. Somente assim as normas éticas podem fornecer limites constinutivos A agi. hu- ‘mana, no duplo sentido da palavra limiter podem nos obrigar a obede- cet, mas também nos ajudar a dar uma forma construtiva a0 rurbilhso dle nostos dessjo®, Ora, com a experiéncia dos campos de concentracio aoontece uma devastadora auséncia de normas: a adminisnaodo nazise, cstabelece uma “ordem” +80 rigida quanto aleatéria, os presos sio en segues a um arbittio implacivel. Primo Levi conta, por exemplo, que quando chegavam 20 campo, os prisioneitos eram separados em docntes ¢ sios: os primeiros iam direeamence para as cimaras de gs, mas podia aconcecer também que os vagier repletos de presos forscm abertos dos dois lados dor trilhor: um lado ia para o trabalho, o outro para a morte. [Essa auséncia de normas comuins explica também por que of novos de- centos foram geralmente derrubados jé nos primiciros dias de ua estada hho campo. Perdiam tempo e energia em tentar compreender aquilo qe thes aconitecia, em. querer entender que sistema regia o campos em ver 3 Vere verbere “Enles” redigido com mutta clareza por Paul Ricoeur no Diciomd- rio de drica ¢ filasyfia moral, org, por Monique Canto-Sperber (Séo Leopoldo, Unisinos, 2007), 2 ¥. Apresentagio + 13 dle se concentrat, desde 0 ince, no Uinico esforee vilido, a saber: tentar sobrevivera qualquer custo, isto é, ao custo do entendimento e, sambém, «lu comunieago com os outros. ssa auséncia de normas, de nomiot, fz do campo de concentragio, paradoxalmente, 0 “paradigma biopolitico do moderno” (feulo da ter ‘ira parte de Flomo sacer), umm novo ores, portanto, que solapa as con- clyoes de possibilidade de uma construgio érica clissica, Solapa igual © cspecialmente a possbilidade de emitir um jufeo ético a respeito daquilo «ive aconteceu (0 que ndo é sindnimo de concordancia!), Assim, Primo \ovl serd sempre uma vestemunha no sentido restrito de superste, aquele «que vivew algo etenta relasé-lo; ele nunea se coloca na posicio de resis, de ‘estemunha no sentido de um terceiro entre duas partes, que pode ajudar 1 julgielas, segundo a distingso latina evocada por Agamben. Chama a stongao, realmente, que Primo Levi narra sem cair na tentacio de julgar © de condenas: nao julga os participantes dos Sonderkommandas, no juga «x Prominenten, nao julga item 08 soldados naziseas, mas, simplesmente, ‘clita e descreve numa voz justamente implacivel porque “neutra’, dessa tneutralidade assustadora que o torna semelhante a Kafka. No seu iltimo livro, Os afogadese 08 sobreviventes, Levi forja até 0 termo de impotentia jucdicands", Tampouco dé ele receltas de sobrevivencia, em particular nao ‘enriza sobre a necessidade de conservar um minimo (qual?) de “dignida- «lc humana" para sobreviver, como alguns tentaram conjectarar (Bruno Uictrelheim e Jean Améry, entre outros). Esse questionamento radical das possibilidades normacivas no tem comente sua forte aa desorieneagio brutal 3 qual foram submetidos os jwisioneiros dos campos. Essa atitude também nasce de uma exigencia {une elvez passamos, sim, chamar de ética...) de nao excluir ninguém do ‘elaco, em particular nao excluis nenhum “muculmano’, isto é,justamen- tessa “figura” desprovida de qualquer qualidade geralmente aribuida a0 «+ humano!, A-desetigéo exemplar dos “mugulmanos” no capiealo 9 ‘le £ isto wom bomem? (primelso livro de Primo.Leyi) expée sua retrivel Hestiguragios 0 “mugulmano” ¢ o preso sem rosto que abdicou da luta, imo Lav, Or gfogtder eo sobrevivents (Rio de Jancizo, Paz e'Tera, 1990), p. 32. ' Aetimologia dessa expressto “mugulmano” & obscura; da minha parte no Consiga nfo ouvir, em todas laboriosas explicagées, como que uma certa slesforra de cariver racista na boca das vitimas do anti-semicismo. 14 + © que testa de Auselwite que nfio pode mais nem ser chamado de vivo nem de ter uma morte que ‘mereceria esse nome. Figura da extrema desfiguracio, 0 “mugulmano” & © ndo-homem que habita © ameasa todo ser humano; a redusio sinistra da vida humana A vida nua, Por isso, ele é geralmente excluido do relato ¢ da reflexdo, jé que stta incluso ameagaria todas as definigées dé hu- manidade vigentes até hoje. Exclusto, lacuna, reivindicada por ninguém menos que Jean Améry quando escreve, citado por Agamben: (© assim chamado Miselmann, como cra denominado, na linguagem do Lages, 0 prisioneiso que havia abandonado qualquer esperanga © que havia sido abandonado pelos companhelros, jé nfo dispunha de tum ambico de conhecimento capaz de Ihe permitir discernimento en- tre bem ¢ mal, entre nobreza e vileza, entre espiritualidade e nao espiri- tualidade, Era um cadiver ambulante, um felze de fungées fsicas jd em agonia, Devemos, por mais dolorosa que nos paresaa escolha, exclut-lo da nossa consideragao.!? Agamben observa que também nos filmes feitos pelos ingleses no (Campo de Bergen-Belsen, logo depois da libertagio e para fins de docu- mentar 0 horror, os operadores filmaram os caddveres amontoados (um, tapos clissico da representagio do horror desde a antiguidade), mas se desviaram quando esses semimortos sem rosto apareceram de repente no campo de visio da ciimera: os “mugulmanos” sio aqueles que nao podem. rem devem set vistos, tampouco lembrados, porque sua mera existéncia, ameaga nossas representagSes minimas do humano. A grandeza de Primo Levi consiste em ter recusado esses proce mencos de exclusio (em particular a exclusio em nome da “dignidade humana’), isto é, em ter accito colocar em questo at normas éticas € narnativas de sua pritica de testemunha por meio da irrepresentivel pre- senga do “mugulmano”: © mugulmano penerrou em uma regito do humano ~ pois, negar-the simplesmence a humanidade significarla aceltar o veredicto das SS, re- petindo o seu gesto~ onde dignidade e respeito de si nio sio de nenbu- ms utilidade, como também ndo uma ajuda exterior. Se existe, porém, luma regido do humano em que tais conceitos néo tém sentido, nfo se Ver p49. Apreseneagio + 15 trata de conceitos éricos genunos, porque nenhuma ética pode ter pretensio de excluir do seu Ambito uma parte do humano, por mais esageadavel, por mais dificil que seja de ser contemplada,"* Psbosa-se aqui, entre as Hnhas dolorosas de Primo Levi e nos co- ios incisivos de Giorgio Agamben, como uma definiszo de oucra stiva: no mais uma douttina das normas (cuja grandeza, mesmo obso- Jeti ambos reconhecem), mas uma postura firme ¢ a0 mesmo tempo hhesitante, incerta, um encarregar-se de transmitir algo que pertence 10 sofiimenta humano, mas cujo nome € desconhecido. Algo que faz iinplodir as definigées da dignidade humana e as coeréncias discursi- vas, Esse encarregar-se lembra também 0 ato de carregar os mortos, inesmo andnimos, de enterri-los ou, quando foram reduzidos a cinzas, dle mencioné-los e de lembré-los, mesmo ¢ justamente aqueles que nem ume tém, Tal encargo € alramente arriscado porque ameaga a posigio, } primeira vista superior, do sobrevivente. Esse € 0 “paradoxo de Levi” has palavras de Agamben, paradoxo que estrutura toda a sua obra e que cle enunciou com toda a clareza no seu iltimo livro: Repito, nilo somos nés, of sobreviventes, as autéinticas testemunhas. Es- a é uma nagao incémoda, da qual romei consciéncia pouco a pouco, endo as memérias dos outios € relendo as minhas muitos anos depois. és, sobreviventes, somnos uma minoria andmala, além de exigua: somos ugqueles que, por prevaricagso, habilidade ou sorte, nao tocamos 0 fundo, Quem 0 fez, quem ficou a gérgons, n2o voltou para conta, ou voltow imudlo; mas a6 ees, os “mugulmanos”, os que submergiram ~ sio eles as ‘stemunhas incegrais, ewjo depoimento teria significado gera.'* (© paradoxo consiste em afirmar que nao pode haver nem verda- leita testemunha nem verdadeito testemunho, porque os tinicos que Verp 71 UUscreve Maurice Blanchot sobre o livre de Robert Antelme, Lespice humaine Sobee 0 “testemunho” da Shoah “Impossible aussl, quand on en parle, den palet —et finalemene comme il ay a len & dire que cet événement ineom= prchensible, Cest la parole seule ql doit le porter sams le dire” (Lnzreten infix tu Paris, Gallimaud, 1969, p. 200). Tomo emprestada a Blanchot essa metifora the prter? “oarnegar”. Prime Levi, Or afogadr « ar sobreviventes, lt p47. 16 * © que resta de Auschwitz poderiam ser testemunhas aurénticas foram mortos — como 0 foram 05 “musulmanos" e tantos outros". Consiste em declarar que 0 teste- munho do sobrevivente somente repotsa sobre essa impossibilidade de aucenticidade e sobre o reconhecimenco clessa impossibilidade, sobre a consciéncia aguda de que aquilo que pode—e deve ser narrado ndo é essencial, pois o estencial nfo pode ser dito, Agora, esse nfo-dizivel néo remete 4 bela tradigao da teologia negativa ou a cstética do sublime, como as veres alguns teéricos da “liceratura de cestemunho” gostariam de nos convencer ¢ a si mesmos. Quando sio Joao Criséstomo, obser- va Agamben, aficma que Deus é indizivel e inenarrivel ele glovifiea a srandeza de Deus que, mesmo para os anjos, permanece incomprecn- sivel. E quando a contemplacao de uima tempesiade deixa sem palavras seu espectador, faltam-lhe az palavras préprias a0 juizo estético sobre © belo, mas ele poderd inventar outras manciras de falar. No paradoxo de Primo Levi, a testemunha nao pode dizer isso que mereceria ser dico, porque cise “isso” pertence & morte. Essa falta, essa lacuna, esse deslocamento, essa nao-coincidéncia (codos termos de Agam= ben) resta de Auschwite, essa marca dolorida que desmancha qual- quer plenitude discursiva e ameaga 0 legos de desmoronamento: Nio enunctivel, no arquivavel é a lingua na qual o autor consegue dar tes- remunho da sua incapacidade de falar. Nela coincide uma lingua que sobre- vive aos sujeitos que a falam com um fillante que fea aquém da linguagem, Ea ‘teva obscura’ que Levi sentia crescer nas piginas de Celan como ‘um ruido de indo’; €a nfo-lingua de Hurbinek (masehla, maciskla), que nao encontra lugar nas bibliotecas do dito, nem no arquivo dos enunciados."" Hurbinek € 0 nome dado pelos sobreviventes recém-libertos a um menino de uns trés anos que se encontra com cles no “campo maior” 5 Nesse contento, Agamben rem rantio de colocir em questi csse pressuposte do paradoxo quando menciana, no fim de O que rina de Auschwliay aime tie de “testemunhos” esctitos por ex-deporiador que se consideram camber ex-"mugulmanos”, que conseguiram volear desea condigio, Os depolmentos foram publicados depois da morte de Primo Levi, nos Auschwite-Tefie, por dois pesquisidores ‘Ver p. 161. Apresentasso + 17 le Auschwitz, depois da libertagzo, um menino sem nome ¢ sem fala. Primo Levi selata suas “experiéncias obstinadas” para aprender a fa- lon, stias *variagées experimentais sobre um termo, uma raiz, sabre um, some talvez". O menino nio sobrevive, morre “nos primeitos dias de nmrgo de 1945, liberto mas nao redimido”, escreve Levi, que conclu: Nada resea dele: seu testemunho se dé por meio de minhas palavras"", © menino Hurbinek nao conseguiu passar da in-fincla (infans, que no fal), da idade da ndo-fala, a juvencude loquaz (puer loguens, coma diz santo Agostinho). Como toda linguagem humana repousa sobre essa se- paragae abissal entre phone e logas, entre vor e linguagem, assim também, \oila vida politica em comum, todo bios, repousa sobre o abismo da 02, slessa vida nua que nos assemetha aos bichos. O que Auschwitz nos legou cambém é2 exigéncia, profundamente nova para o pensamento filosélico © em particular, para a ética, de nao nos exquecer nem da infincia nem da vida nua: em vez de recalear essa exiseéncia sem fala e sem forma, sem vommunicago e sem sociabilidade, saber acolher essa indigéncia primeva ‘que habits nossas construgées discursivas e politicas, que s6 podem per- necer incompleras Campinas, junbo de 2008. -A trigua (Sio Paulo, Companhia das Letras, 1998), p. 30-1 ADVERTENCIA, Gragas a uma série de investigagoes cada vez mais amplas e #i- ovosas, entre as quais o livro de Hilberg ocupa lugar especial, problema das circunstdncias histéricas (materials, réenicas, buro- , juridieas..) nas quais ocorreu o exterminio dos judeus foi neemente esclarecido. Investigagées futuras poderio langar Iuzes sobre cada um dos seus aspectos, mas 0 quadto geral j& we pode considerar estabelecido, lem diferente é a situagao telativa ao significado ético e politico Jo excerminio, ou mesmo 4 simples compreensio humana do que wontecen, 2 saber, em dilkima andlise, & sua atualidade. Neste cas, ‘ie 86 falta algo semelhante a uma rentativa de comprecnaio global, ‘onus também 0 sentido e as r2z6es do comportamento das carrascos las vitimas; muitas vezes, as suas préprias palaveas continuam apa- revendo como enigma insondavel, reforgando a opinigo de quem yostavia que Auschwitz ficasse incompreensivel para sempre. Do ponto de vista do historiados, conhecemos, por exemplo, ~ minimos detalhes, © que acontecia na fase final do exterm Auschwitz, a forma como os deportados eram levados As cAma- ‘uv le gis por um esquadrao composto pelos préprios companhei- (o assim chamado Sonderkommando), que, posteriormente, se de cartegar para fora os cadaveres, de lavé-los, de retirar roduzi-los lentes ¢ cabelos dos corpos, para depois, © por fim, lornos crematérios. Mesmo assim, ais acontecimentos, que po- os descrever e ordenar cronologicamente um apés outro, conti- 20 + © que rests de Auschwier nuam sendo singularmente opacos quando realmente queremos compreendé-los. Talvez ninguém tenha exposto de maneira mais clara essa distancia e esse mal-estar do que Salmen Lewental, mem- bro do Sonderkommando que confiou seu testemunho a algumas folhinhas sepultadas junto ao crematério III, que vieram A luz de- zessete anos depois da libertagto de Auschwitz. Escreve Lewental, no seu ifdliche muito simples: Nenhum ser humana podle imaginar como ocorreram pre fato, & inimagindvel que possam ser descritas exatamente como aconte- cccram nossas experiéncias [..] nés—o pequeno grupo de gente obscura gue ndo dard muico trabalho para os historiadores, samente 0s aconeecimentos, ¢, de N&o se trata aqui, obviamente, da dificuldade que experimenta- mos toda vez que procuramos comunicat a outros as nossas expe- rigncias mais intimas. A dificuldade tem a ver com a prépria estructura do testemunho. Por um lado, 0 que aconteceu. nos campos aparece 20s sobreviventes como a tinica coisa verdadeira e, como tal, absoluta- mente inesquecivel; por ourro, tal verdade ¢, exatamente na mesma medida, inimaginavél, ou seja, irgedutivel aos elementos reais que constituem. Trata-se de fatos tao reals que, comparativamente, nada é mais verdadciro; uma realidade que excede necessariamente 0s seus ‘clementos factuais: ¢ esta a aporia de Auschwirz. Assim est escrito nas folliinhas de Lewental: “a verdade inteira é muito mais trdgica, ainda mais espantosa [...]". Mais trégica, mais espantosa em relagio a qué? Pelo menos por um aspecto, porém, Lewental se havia engana- do. Pode-se ter certeza de que aquele “pequeno grupa de gente obs- cura” (obscura deve ser entendido neste caso também no sentido liceral de invisivel, que nao se consegue perceber) nunca deixard de dar trabalho aos historiadores. A aporia de Auschwitz é realmente a prépria aporia do conhecimento histérico: a néo-coincidéncia entre fatos e verdade, entre constaragio e compreensio, Entre o querer entender demais ¢ demasiadamente rapido, por parte de quem tem explicago para tudo, ea recusa de entendes, por parte dos sacralizadores baratos, insistir nessa separago nos parece ‘ser 0 tinico caminho praticdvel. Acrescente-se a tal dificuldade uma ‘outra que tem a ver, especialmente, com quem esté acostumado a Advercéncla © 21 veaparse de textos literdrios ou filosdficos, Muitos eestemunhas — 1 dos carrascos, sejam das vitimas ~ provém de pessoas co- )s, assim como era gente “obscura” a grande maioria dos que se encontrayvam nos campos. Uma das licées de Auschwiez. consiste wnente em que entender a mente de um homem comum é amente mais dificil que compreender a mente de Spinoza «le Dante (¢ também nesse sentido que deve ser entendida a nagéo de Hannah Arends, tantas vezes mal-interpretada, sobre “a banalidade do mal”). Vilvex os leitores fiquem desiludidos encontrando neste liveo Hruito pouco de novo a respeito do testemunho dos sobreviventes. Na sua forma, ele é, por assim dizer, uma espécie de comentitio per- petio sobre o testemunho. Nao nos parece possivel fazer outra coi sw, Contudo, tendo em vista que, a uma certa altura, nos pareceu Idente que 0 restemunho continha como sua parte essencial uma na, ou seja, que os sobreviventes davam restemunho de algo que ser testemunhado, comentar seu testemunho significou jamente interrogar aquela lacuna ~ ou, mais ainda, centar . Prestar atengdo a uma lacuna ndo se mostrott, para o au wn, ser um trabalho intl. Obrigou-o, antes de mais, a livrar o cam- jw tle quuase todas as doutrinas que, depois de Auschwitz, tiveram a puetensao de definir-se com 0 nome de ética. Conforme veremos, jjmise nenhum dos prineipios éticos que o nosso vempo acreditou poder revonhecer como validos resisciu A prova decisiva, a de uma Vhica more Auschwite demonstrata. Por sua vee, 0 autor iré se sentir ‘unipensade por seu esforgo se, na tentativa de identificar o lugar ¢ ujetto do testemunho, for minimamente capaz de fincar cé e Mi stacas que eventualmente poderdo orientar 0s fucuros car- silos «la nova terra ética. Ou entio simplesmente se conseguir Jurct com que alguns termos, com as quais foi registrada a ligao de- civiva diy século, venham a ser retificados, ¢ que algumas palavras 1 ser esquecidas e outras compreendidas de mancira diferen- fe. Hiunbén esse & um modo — quem sabe, talvex 0 nico modo pos- sivel dle eseutar 0 ndo-dito. prec wl

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