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Claude Meillassoux Antropologia da Escravidaio O ventre de ferro e dinheiro Tradugfo: Lucy Magalhies Revisao Técnica: Luiz Felipe de Alencastro professor de histéria econémica do Instituto de Economia, Unicamp pesquisador do Cebrap Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro A, A ESCRAVIDAO E O PODER CAPITULO I O ADVENTO DOS BANDIDOS Segundo o Hudud al Alam, obra persa do século X, falando do Suda (isto é, do pais situado ao sul do deserto que o separa do Maghreb), “nenhuma regitio é mais povoada do que esta. Os mercadores roubam-Ihe as criangas e as levam consigo. Castram os meninos e os levam para 0 Egito, onde os vendem. Hd entre os (Sudan) pessoas que roubam mutuamente as suas criangas, para vendé-las aos mercadores quando estes chegam” (in Cuog, 1975; 69). Essa citacao relata a existéncia daquilo que chamarei de banditismo, isto 6, a prética pela qual o rapto de cativos se fazia entre membros de uma mesma comuni- dade, entre parentes e vizinhos.’ Esse banditismo interno parece ter-se exercido entre as populacées aldeais, que, sem estarem necessariamente na 6rbita militar dos Estados predadores ou dos prati- cantes estrangeiros de razias, situavam-se nas areas de prospec¢do dos mercadores escravagistas ou eram vitimas da atragéio dos mercados de escravos acess{veis. No banditismo, 0 rapto e a venda de cativos nao eram praticados por estranhos, mas por membros da prépria comunidade, agindo anonimamente. Ninguém estava a salvo dos mesmos individuos que deveriam ser os protetores da comunidade. “A. irma € ameagada pelo irmao, a esposa pelo esposo, 0 filho pelo pai ou pelo tio” (A-C. Niaré, Missio, 1964). O perigo de decomposig&o social era grave, pois apenas uma fracio da sociedade, os jovens adultos guerreiros organizados em pequenos bandos, se beneficiava com essa atividade. Vendendo seus parentes e vizinhos, principalmen- te as mulheres e as criangas, podiam obter armas e cavalos para atacar as sociedades vizinhas. Raptando mulheres para si mesmos, faziam concorréncia a autoridade dos antigos, cada vez menos capazes de casé-los por causa desses raptos. O banditismo parece ter tido dois efeitos, segundo 0 caso, sobre o poder politico: ou os clas se organizavam para resistir a ele, como aconteceu com o Mande no século XII]; ou os guerreiros faziam dele a base do seu poder, como em Segu na virada do século XVI. 3 4 ANTROPOLOGIA DA ESCRAVIDAO 1. O rei e os bandidos Atradigao do Mande relata, através de diversas narragdes (M.-M. Diabaté, 1970a e b; Innes, 1974; Niane, 1960; Wa Kamisoko, 1975), a lenda histdrica de Sunjata, que teria vivido por volta do século XIII, no alto vale do Niger? Sunjata foi um desses herdis sudaneses marcados desde o nascimento para desatar uma crise, geralmente de ordem politica, por meios mais mdgicos do que téticos, e geralmente ndo-exem- plares.’ A lenda ressalta 0 combate que ele travou contra Sumawuru Kante, que estava ameagando militarmente 0 Mande. Wa Kamisoko acrescenta elementos que se referem muito diretamente ao problema da escravidiio. “Nessa época, queixa-se 0 grid (Kamisoko, 1975), um banditismo endémico grassava ‘do irmao contra o irma- 0’... Os mais fortes capturavam os mais fracos ¢ os levavam pelo caminho da trai¢do para vendé-los...” (ibid.; 38). “O povo poderia crescer, se os individuos se captura- vam por qualquer motivo, para vendé-los uns aos outros?” (ibid.; 49). “Por tras de que aldeia, interroga Wa Kamisoko, ndo passava o caminho da traigdo?” (ibid.; 11), esses caminhos que levavam até 0 mato saheliano, pelos quais eram escoados todas as noites os seus congéneres capturados. “Nenhum daqueles que reinaram no pats deixou de pér o freio na boca de algum Malinqué para vendé-lo aos maraka (merca- dores)” (ibid.; 6). “Se tantos Malinqué se encontram ainda hoje no Sahel ou no Sosso, a causa disso so os préprios Malinqué” (ibid.; 9). Os herdis que deixaram seu nome nas lendas do Mande, como Tiramaxan ou Fakoli, teriam sido cagadores de homens.‘ Ao situar a escravidao no centro do problema politico do Mande do século XIIL, 0 mérito do relato de Wa Kamisoko € tornar inteligivel um acontecimento até entio interpretado como sendo a emergéncia stibita ¢ inexplicdvel de um “império” — 0 império do Mali — sob 0 efeito das facanhas de um personagem mitico, Sunjata, emergéncia cuja tinica causa teria sido sua personalidade excepcional. Kamisoko precisa que, quando dos acontecimentos relatados, o Mande estava dividido entre mais de 30 regides de pequenas dimensdes (ibid.; 60), cujos masa (chefes) podiam ser comparados a simples chefes de aldeia,” pares ¢ rivais de Sunjata. Sua autoridade, e também a de Sunjata, provinha de sua pertinéncia clanica. Disputavam entre si uma preeminéncia precdria que eles tentavam tornar reconhecida por seus pares, através de seus feitos de caca ou de guerra (Diabaté, 1970a e 6). Eles combatiam-entre si, apoderavam-se mutuamente de suas aldeias, perseguiam-se e reconciliavam-se. Nao eram chefes de bandos. Sua pertinéncia clanica era bem afirmada. Tinham um jamu (patronfmico), o que os ligava a uma casa € provava a sua linhagem. Assim acontecia com Sunjata, cujo pai era conhe- cido, e de quem se diz que foi, durante algum tempo, masa do Mande (Innes, 1974; 27-28). Desde o nascimento,.foi cercado de ferreiros € grids de casta. Era pobre, a verdadeira qualidade dos cavalheiros. Entretanto, assim como os outros estrategis- tas, no era capaz, apenas com seu cla, de se proteger contra os saqueadores estrangeiros, vindos para se apoderar de cativos, nem contra os bandos de bandidos autéctones. Contra essa dupla ameaga, a lenda atribui a Sunjata uma dupla faganha. A primeira é a mais conhecida e a mais célebre. O herdi conseguiu confederar uma duizia de clas do Mande (Innes, 1974; 61) € vencer o terrivel Sumawuru, OADVENTO DOS BANDIDOS 115 Mas, segundo Wa Kamisoko, o que parece ter sido a realizaco mais impor- tante de Sunjata foi eliminar a ameaca interna do banditismo, nas seguintes circuns- tancias. Depois de sua vitdria contra Sumawuru, Sunjata teria solicitado de seus pares a sua eleigfo como soberano da federagfio do Mande (Kamisoko, 1975; 42). “Se me instalarem no comando do Mande, prometeu Sunjata em troco, ninguém mais sera vendido” 42), Cumpriu sua promessa: “Ele reinou sem munca ter posto 0 ferro na boca de alguém para vendé-lo” (ibid.; 36). “Todos concordaram em néo vender as pessoas” (ibid.; 44). “O que o notabilizou, precisa Wa Kamisoko, foi ter feito cessar a venda dos individuos do Mande” (ibid.; 46).’ Diante dele, os Maninqué deixaram assim de ser “estranhos” uns para os outros. Nessa relagiio de fatos, mfticos ou reais, Sunjata teve o mérito de ter fundado no local, simultaneamente, a natio (0 conjunto daqueles que se reconhecem mutuamente como beneficidrios de prerroga- tivas ligadas ao bom nascimento) e a realeza, poder que garantia, naqueles tempos turbulentos, a franquia daqueles que aceitavam a sua autoridade.* Aos bandidos que exerciam seu poder atacando a todos sem discriminagio, negando assim a eficiéncia de todos os lagos de pertinéncia social, Sunjata se opds como restaurador das estruturas sociopoliticas dos clas, como regenerador das rela- goes orginicas entre congéneres: parentes, afins, aliados ou vizinhos. Para isso, Sunjata certamente violou certas regras de primogenitura e de igualdade entre clas, impondo-se, apesar da sua idade — 0 que, de qualquer forma, é caracteristico desse tipo de heréi -, e exigindo a preeminéncia sobre os seus pares. Mas ele nfo atacou 05 antigos nem sua autoridade, como faria Biton Kulibali em Segu. Nao agiu contra as instituig6es clanicas; pelo contrério, preservou-as, pois, de fato, os conflitos entre clas nunca cessaram e a unidade se fazia tanto por consentimento quanto por obri- gagiio (Kamisoko, 1975; 75). Todos os historiadores dessa regido, depois de Delafosse (1912), fazem de Sunjata o fundador de um império que € identificado com o Mali, visitado no século XIV por Ibn Batuta,? Entretanto, a tradicdo dos grids nada diz sobre a existéncia de um Estado que tivesse sobrevivido a Sunjata. A formagio politica que ele dominou foi apenas uma federagao de clas sem futuro. Nenhum Estado duradouro seria capaz de surgir dessa reunido de chefes de clas rivais: poder do her6i, na tradigo do Mande, nao se mantinha contra os seus pares, e devia ser devolvido quando o destino que o suscitara tivesse sido cumprido."” © Mande tornou-se, provavelmente, uma regifio de agricultores e mercadores. “Aquele que escolheu 0 cultivo, cultivard, e nada mais do que isso, diz uma tradigdo. Sunjata nfo existe mais. Aquele que escolheu o comércio, faré comércio, e nada mais do que isso. Suba morreu” (M. M. Diabaté, 1970; 89-90)."" 2. O rei-bandido ‘Se 0 poderoso Estado de Segu (séculos XVI-XIX) deveu a sua existéncia as guerras escravagistas (ver cap. I), a0 contrério do Mande, ele resultou do desenvolvimento 116 ANTROPOLOGIA DA ESCRAVIDAO politico do banditismo e nao de uma luta contra essa pratica, Afirmou-se no pela conservagao da ordem social, mas por sua destruigdo. Edificou uma sociedade nova, que se libertou da sociedade clanica. Seu fundador, Biton Kulibali, se distinguia de Sunjata por varios tragos. A tradig&o insiste sobre a sua qualidade de “estrangeiro”, e menospreza o seu pai (grids Tairu e Sangare, in Kesteloot, 1978; 580, 582). A lenda nao Ihe dé nenhum ancestral, nenhum precedente real, nenhuma das marcas da predestinacao para 0 poder (ibid.; 601). Biton pertencia a uma outra classe. Nao era “nascido”, ou pelo menos no alegava o seu nascimento. Nao posava de protetor contra o banditismo. Ele o praticava. ‘A demanda de escravos provocada pelo tréfico europeu atingiu, por volta do século XVII, a bacia do Niger, onde dominava uma civilizagao aldea, constituida de pequenas formagdes politicas dispersas, sem grande poder. Nesse contexto, os-ban- dos ressurgiam. Alguns eram chefiados por pequenos aristocratas clanicos, outros por indivduos sem nascimento. Biton era um destes tiltimos. Reuniu em volta de si os homens de todas as origens que as desordens da época produziam: escravos fugidos, cagulas rebelados ou miskin humilhados." A instituigdo que prevalecia nessa situagdo era pois 0 bando armado, Era contra ele ou a partir dele que se operavam as mudangas. O bando reunia homens de idade “viril”, entre os quais as relagdes de parentesco eram secundarias ou nulas. O recrutamento era feito por cooptagiio; as hierarquias se constitufam, por ocasiao de cada expedicdo, sobre os feitos e o valor militar. Cada um era dono dos seus meios de aco: armas e eventualmente cavalos. A solidariedade atuava pelo fato de que.a unio fazia a forga, era preciso ser bastante numerosos para atacar com éxito ¢ um minimo de riscos. As expedigdes eram decididas em comum e 0 butim dividido entre 0s participantes. Nem a composigao nem as prioridades eram definitivas.'* Entre os guerreiros dos bandos bamana ou maninqué, por exemplo, as tradigdes relatam que o chefe da expedigio podia ser sorteado (Kamisoko, 1985; 53, 57. Niaré, Missdes, 1963-1964. Leynaud, n. d. [1961]; I; 24). O bando era efetivamente um modo de organizago sociopolitica especifico, que, quando se consolidava, ameagava a socie- dade doméstica e gentilica, nao sé pelas depredacdes que cometia, mas também em razio da incompatibilidade de suas estruturas respectivas. No bando, o poder dos jovens guerreiros se impunha contra o dos mais velhos. Quando o primeiro se afirmava, podia ir até o assassinato dos antigos. “Homens malvistos em sua aldeia, desprezados, juntavam-se a esses bandos”, que nao tinham durag&o permanente. “Em grupos de 30 ou 40, instalavam-se no mato, em palhogas que abandonavam logo que eram percebidos ou logo que tivessem capturado um ntimero suficiente de mulheres e criangas, para vendé-las longe dali.” Esses bandos também atacavam as caravanas comerciais, mas sua principal atividade era o rapto. Uma mulher néo podia ir de uma aldeia a outra sem sentir-se ameagada de desaparecimento. Alguns desses bandidos, que viviam na aldeia, pretextavam uma viagem para reunir-se a seus cimplices. Agiam mascara- dos, para nfo serem reconhecidos. Diz-se que eles ndo raptavam apenas as criangas O ADVENTO DOS BANDIDOS 17 e as mulheres dos vizinhos, mas, no Wasolon, os filhos de suas “‘irmas” (segundo A.C. Niaré, Missao, 1963, II, R9).'* A oposigao de classes entre bandos era muito marcada. Biton, que se aliara com um deles, comandado por um aristocrata soninqué de Dud, ouviu de um antigo: “Fiquem entre pessoas da mesma classe; separem-se dos nobres de Dud” (Monteil, 1924, 30). A organizago militar e politica do bando marcaria durante muito tempo a cons- tituigdo do regime que dele emanaria: “O bando nfo tinha chefe e nao havia repartigio do butim. Cada um ficava com o que pudesse pegar”, explica o grié S. Jala (Bazin, 1980; 42-43). Na auséncia de chefe permanente, o bando podia ter um Ifder para cada um dos seus empreendimentos, eleito ou sorteado. As decisées coletivas eram tomadas no seio da assembléia (ton) dos bandidos, segundo um processo bastante rigoroso. O “teino” de Biton realizou incursées e capturas contra as aldeias da regiao (in Kesteloot, 1978; 596, 597). Perpetrou massacres e semeou 0 terror na populagdo (ibid.; 597; Sauvageot, 1955; 165). Segundo um proceso freqiiente, ele logo se imps como “protetor” contra as suas proprias espoliagdes, como pacificador da inseguranga que ele proprio suscitava com seu bando. Exigia tributos das aldeias que se aliavam a ele para no serem saqueadas, impostos tao pesados que era preciso vender os “seus” e “até ame” para pagé-los (in Kesteloot, 1978; 597). Se naquele momento Biton se atribufa uma qualidade de “protetor” compardvel A de Sunjata, era s6 aparentemente. Ele ndo estabeleceu o seu poder sobre a consolidagaio das instituigdes domésticas e patriarcais, para defender-se de uma ameaca estrangeira. Pelo contririo, ele se inclinou pela des- truicdio destas para impor as suas regras. “Para fazer desaparecer as barreiras que as tribos'® e as familias tentavam imanter entre si, ele deslocava populagées inteiras que transportava ora para um ora para outro local” (Monteil, 1923; 50). Como em toda sociedade guerreira desse tipo, Biton atacou a hierarquia da antigitidade. Transgrediu o respeito devido aos antigos: “Mandou esbofetear cem an- ciaos, amarré-los ¢ devolvé-los as suas famflias” (grids Tairu e Sangare, citados in Kesteloot, 1978; 596). Negou mais radicalmente ainda a autoridade deles, para substi- tu(-la pela sua, mandando assassinar os 740 pais dos seus guerreiros, os quais obrigou arasparem acabega, para que “renascessem” como seus proprios dependentes (Monteil, 1924; 40).!” Essa reconstrugao social prosseguiu ao longo de toda a duragiio do reino de Segu, emesmo depois da morte de Biton. Pseudolinhagens foram reconstitufdas com cativos agrupados'® (Bazin, 1975). Pseudo-aldeias foram repovoadas com individuos da mesma classe de idade, com a exclusio de criangas e velhos (Sauvageot, 1965). O estado de jon, de “dependente”, de escravo, tendia a generalizar-se a todos (Bazin, 1975), Contrariando o status de franco, ninguém podia dever a sua posicfio ao nasci- mento, a idade, as suas relagSes e graus de parentesco. A reprodugio social repousava sobre o guerreiro, mais do que sobre o “pai”: os membros da ton de Biton eram celibatarios (Sauvageot, 1955; 155). Ao contrario do que aconteceu no Mande, era uma nova sociedade que se criava, Ela privilegiava a associagdo sobre o cla, a adesdo e a cooptacfio como modo de recrutamento sobre o parentesco e o nascimento, 0 valor e os feitos sobre a antigiiidade, Os ton-jon formavam a classe dominante, composta de guerreiros cio- 118 ANTROPOLOGIA DA ESCRAVIDAO sos de sua autonomia, rivais entre si e muitas vezes eles prdprios de origem servil. Sua lealdade se ligava ao corpo institucional que eles se formavam (a ton) e no a tum senhor ou a.um dinasta. Era pois uma classe militar, mas distinta das aristocracias clanicas que dominavam localmente a regido, e:3s quais ela se opunha e impunha (Meillassoux-Silla, 1978. Sugy-Aubin, 1975; 493 e segs.). O cédigo de guerra que reinava entre essas aristocracias rivais foi substituido, pelos ton-jon de Segu, por téticas.sem honra mas eficazes, como o ataque em massa ou 0 assédio, téticas desprovidas do aparato guerreiro de que se orgulham as nobrezas “de sangue”. A assembléia geral era 0 modo de governo normalmente usado pelo bando (Monteil, 1924; 29, 31, 57-60 etc.). Entre os membros da ton, a paridade era de lei. Sendo o saque a atividade essencial, a coragem e os feitos eram os critérios que se impunham para a seleco do chefe. A ron era a instituicao concebida para que todos pudessem falar, embora as opinides muitas vezes se expressassem sob tensio, pois as antigas normas ainda nao tinham desaparecido completamente. Elas remetiam & ordem ancestral herdada das relagdes parentais, que ainda dominavam as relacdes individuais e a hierarquia privada. Nos conflitos e rivalidades que dilaceravam os ton-jon, cada um recorria aos valores que Ihe fossem mais proveitosos. A cada designagio do chefe, talvez sob o efeito da tradi¢&o, certamente sob o da oportuni- dade, outros princfpios eram evocados, em concorréncia com o valor guerreiro, como critérios de selecdo: a filiagdo e a antigiiidade. A medida que o bando dominava, que a soberania se estendia, o poder do seu fundador procurava escapar ao controle dos seus pares. Contra toda regra, tentava-se freqiientemente 0 golpe de Estado: Biton violou o prinefpio de igualdade e governou sem a fon; seus filhos, para assumit-lhe a sucesso, procuraram a caucdo da fon, mas tentaram influencié-la, através da magia eda violéncia; 0 segundo filho, depois de reinar pelo terror, foi assassinado pelo ton masa (presidente da assembléia), que invocou a antigitidade para reivindicar 0 pocer; tomou o titulo de decano (ton koroba: grande antigo’ da ton) (Monteil, 1924; 59); por ocasido de sua morte, foi proposto aos postulantes que tomassem 0 arco ¢ a aljava para provar o seu valor, mas 0 eleito seria ainda o mais antigo; do mesmo modo, o seu sucessor viu-se obrigado a declarar uma guerra logo que subiu ao trono, para provar o seu animo guerreiro (ibid.; 46). Essa declaracio de guerra se tornaria, posteriormente, de praxe a cada nova entronizacao (Bazin, 1982). Enfim, foi usando a forga, a pretexto de restabelecer os valores guerreiros que fundamentavam a origem da ton, que Ngolo Jara (um cativo de origem?) tomou o poder e o transformou, por uma nova contradigdo, em um sistema dindstico. Nem por isso, 0 principio de sucessao ficaria regulamentado. Para dividi-la entre os filhos de Ngolo, a antigilidade eo valor ficaram em concorréncia. Para justificar a escolha, “descobriram-se” no eleito os estigmas do herdi lendario (Bazin, 1979), mas em um contexto de duragiio dindstica completamente estranho ao poder transitério da sociedade simplética. Até o advento dos Jara, a histéria politica de Segu foi marcada pela origem social dos seus membros ¢ pelas atividades de banditismo que eram a sua origem e impregnavam as suas instituigdes. Entretanto, muito cedo, as condigdes de exercicio do banditismo desaparece- OADYENTO DOS BANDIDOS = 19. ram. Estabelecendo a sua dominagao sobre a populagao em vez de saqueé-la, trocan- do o butim pelo tributo, 0 bando construiu um espago politico © conseguiu ter subordinados com os quais as suas.relagdes de hostilidade se tornaram relagées de autoridade (eventualmente de exploraco), relades que, de esporddicas, se tornaram contfnuas. O bando assumia tarefas de gestdo, de administragio e de protegao contra esse mesmo banditismo, do qual ele era oriundo. Paralelamente & protecao de esséncia soberana, o bando assumia progressiva- mente uma fungao igualmente regular, a de arbitragem entre clas, aldeias ou grupos rivais, que procuravam o apoio desse corpo militar, tinico a dispor de forgas armadas decisivas (Bazin, 1982). Protegdo e arbitragem eram os dois pilares da soberania, propicios 2 emergéncia de um rei e de um Estado de base territorial. A partir da criagdo de uma zona interna de exercicio do poder em que se exerciaessa soberania, definia-se por oposicfio aquela em que se praticava a captura de “estranhos”. O banditismo, ento, teve que se interromper no interior da zona “civilizada” ou soberana, para desviar-se, sob a forma de razia ou de guerra, para-o exterior.” Essa transformagiio nao deixaria de ter eteitos sobre as relagdes politicas internas do Estado militar, a tal ponto que a razia ea guerra nao seriam mais apenas manifesta- gOes de uma politica estrangeira ou o meio de alimentar a economia de tréfico, mas também um prolongamento decisivo da politica interna dos reinos. “Quando um bando de ‘egere (bandidos) era descoberto pelos aldedes, estes alertavam o faama (soberano) para que o exterminasse.” Os cativos origindrios da regitio eram libertados, os outros entregues ao faama” (Niaré, Missiio 1967). Essa intervencaio do soberano e essa partilha marcavam a distingdo que jé observamos entre o status de estrangeiro e o de stidito, disting%io que o banditismo nao fazia. O Estado de Segu, pelo contratio, conferia aos seus siditos a virtude politica da cidadania, que os protegia contra a captura. S6.aqueles que néo a possufam eram presa de Segu, Estado escravagista. Foi assim que a escravidio e 0 trafico contribui- ram para modelar a cidadania como meio de identificagao e.de salvaguarda, para consolidar a realeza, por oposigao ao banditismo. Por sua extenso © seu sucesso, 0 bando criava as condig6es do seu proprio desaparecimento. A disting&o entre os que seriam protegidos da captura e os estrangeiros fez. emergir quatro principios que se imporiam a organizacao social: os principios de ingenuidade ¢ de cidadania, que colocavam sob a protecio do bando aqueles que hé pouco estavam ameagados por ele; o princ{pio de soberania, que garantia essa protecao, e 0 de sociedade civil, cujos conflitos internos deviam ser arbitrados. No interior do bando,.as relagdes entre seus membros se transformavam, na medida em que as proprias relages do bando com a populagao também se transfor- mavam. Aquele que se impunha como chefe do bando tendia a tornar-se também chefe das populagdes submetidas. A soberania da qual este estava investido reforga- va, por sua vez, a sua posigdo de autoridade no seio do bando. Uma hierarquia de carter permanente instalou-se, em contradigéo com o principio de paridade que prevalecia entre os seus-membros. Doravante, o poder nao cabia-mais ao her6i do momento. A sucessfo se congelava nas m&os de um deles, considerado como sobe- 120 ANTROPOLOGIA DA ESCRAVIDAO rano pelo povo, € em torno de quem tendia a se constituir uma corte, uma casa, & qual se oporiam as casas rivais dos seus companheiros.”! A partir dessa situagiio, desapareceu também o banditismo, fundamento organi- zacional do bando, pois, uma vez constitufda, a zona de pertinéncia politica, no seio da qual se reconhecia a cidadania ou a sujeicao dos seus membros, no podia mais fornecer cativos & autoridade que a dominava e a protegia, sem que esta se abolisse a si rnesma. As capturas deviam fazer-se fora da drea de soberania, e conseqiientemente através da execugdo de praticas militares novas: a razia ou a guerra, cada uma dessas praticas sendo portadora de estruturas distintas do poder. 3. Os “companheiros” da razia A razia foi praticada em quase toda a Africa submetida ao tréfico. Sem que seja possfvel dizer em que proporgo ela contribuiu para o fornecimento de escravos em relagdo as guerras (Curtin, 1975; 154-155, 186-187), os testemunhos que indicam a sua existéncia ou descrevem suas modalidades sao numerosos. A surpresa, aastiicia, a rapidez da intervengio e da retirada, o ataque a populagées aldeas mal protegidas, principalmente as mulheres ¢ criangas, so as suas caracteristicas. Lamiral (in Walckenaer, 1842, V; 216-217) narra como procediam os mouros para saquear as populagées do norte do Senegal, entre 1779 ¢ 178 Nao se pode imaginar a asticia e a habilidade que esses mouros utilizam para surpreender os negros. Partem em niimero de 15 ou 20, e se detém a uma légua da aldeia que querem saquear. Deixam seus cavalos no bosque ¢ ficam de tocaia perto de uma fonte, a entrada da aldeia, ou nos campos de milho guardados pelas criangas. Ali, 6m a paciéncia de passar dias e noites inteiros, deitados de brugos e rastejando de um lugar para outro. Logo que véem aparecer alguém, caem sobre ele, fecham-lhe a boca e o levam. Isso é ainda mais facil para eles porque as mogas € as criancas v4o em grupos as fontes e aos lougans,” que muitas vezes sao bastantes distantes das aldeias. Uma multidado de exemplos nao tornam os negros mais desconfiados nem mais cuidadosos; os mouros usam sempre os mesmos attificios, que sempre tém éxito. Esse tipo de cagada Ihes fornece muito mais criangas do que mulheres ¢ homens. Quando levam suas presas aos mercadores, essas pobres criangas, que foram transportadas na garupa sem arreios, esto cobertas de ferimentos profundos, extenuadas de fome e fadiga, e atormentadas pelos temores mais crugis. Os europeus escolhem ‘os mais bonitos ¢ mais espertos para fazer deles empregados domésticos. Poucos brancos ndo tém uma dessas meninas, que depois se tormam, muitas vezes, grandes mucamas (segundo a viagem de Lamiral, 1779-1789). A razia exigia tropas pequenas e um armamento relativamente sumdrio, em relagdo A guerra, como veremos. Os fuzis, ruidosos demais para praticar os raptos de mulheres e criangas nos descampados, longe dos olhos dos aldedes, nao eram indis- OADVENTO DOS BANDIDOS — 121. penséveis. Em compensaciio, eram necessérios meios de transporte rdépidos (cavalos, dromedirios ou pirogas), que permitiam levar os cativos para fora do alcance de eventuais perseguicdes.”* Segundo Daumas (1858; 246), os Tuaregue conheciam diferentes tipos de razias, cujo objetivo principal era a captura: a khrofeta, expedig&o de rapina que se praticava a tarde, a terbige, a kriana ou a tehha, que podia reunir até 500 ou 600 cavalos. Essas atividades parecem ter sido de um rendimento elevado, a julgar pelos contingentes das presas: Daumas assinala, Sucessivamente, uma caravana chegando a Timimoun “de 200 negros e negras” (ibid., 71), um comboio de 400 escravos (dos quais 300 mulheres) e um outro, no mesmo dia, de 1.500 pessoas (ibid., 221). Bernus (inédito, “Seminario sobre a guerra”, EHSS, 1975-1976) também registra um rico vocabulério tamasheq para designar ndo sé diferentes tipos de razia, mas também para distinguir entre o saque de gado ou de escravos e 0 rapto de individuos livres. Sem diivida, a surpresa era o elemento essencial para o sucesso, mas 0 uso da escrita talvez nao tivesse um efeito menor, pois permitia aos Tuaregue de Teneka reunir seus homens em um dia (Olivier de Sardan, 1976; 66). O conhecimento do deserto e 0 uso de animais rapidos, como o dromedario, tinham a vantagem de levar as incursdes até distancias consideraveis das bases de operagéio, sem risco de represélias. No Niger, os Kurtey, eles proprios vitimas das incursdes tuaregue, se tornaram ladrdes de homens, dedicando-se regularmente A captura das populacées ribeirinhas do arquipélago de Tilaberi: “Até 15 pirogas podiam subir o rio. Mas essas razias no tinham nada de épico. Nao encontrando oposigao no proprio rio, que subiam durante © dia, os Kurtey escondiam suas pirogas quando a noite vinha. Depois, remavam silenciosamente até descobrirem tendas dé agricultores a margem da dgua... Os Kurtey cercavam as cabanas em siléncio, dépois amarravam seus ocupantes adorme- cidos em suas proprias esteiras e os levavam em suas pirogas” (Olivier de Sardan, 1969; 32). Essas técnicas, que eram as do banditismo, situam a razia em continuidade com este em dois pontos. A razia permitia o livre recrutamento dos participantes, que escolhiam even- tualmente o chefe e as operagGes; assegurava a apropriagdo do butim pelos saquea- dores, que continuavam sendo donos do empreendimento e dos seus resultados. Se uma parte do butim cabia, de direito, ao soberano ao qual se ligavam os saqueadores, era como livres possuidores de suas presas que eles pagavam esse tributo e nao como dependentes agindo a servigo de um superior. O butim de que eles desfrutavam niio seria o produto de uma “redistribuicaio”. Os soldados de Segu expressavam isso a0 dizer que o butim feito por ocasidio das razias era o “prego de suas vidas”, e que ele Ihes cabia integralmente. Assim, quando a razia se exercia a partir de um Estado, era um freio para a centralizagao do poder, favorecendo a constituigo e a manutengdo de uma classe guerreira independente, dispondo de meios para se apropriar dos recursos ¢ riquezas que faziam deles concorrentes do soberano. Ora, este tinha que recorrer a essa classe para constituir a estrutura militar e civil, por meio da qual se exerciam a sua protegao ea sua autoridade sobre o povo. Nessa relagiio de forgas, o poder do soberano nao se impunha completamente sobre essa classe.”* Encontramos exemplos disso na 122. ANTROPOLOGIA DA ESCRAVIDAO maioria das sociedades némades que se dedicavam a razia: o emir das facdes mouras estudadas por P. Bonte (in “Seminério sobre a guerra”, EHESS, 1975-1976) exercia sobre os clas que dependiam dele apenas uma autoridade moral, mas sem os atributos da soberania, O emir nao tinha nenhum controle sobre as razias empreendidas por seus stiditos. Ele sé podia exercer fungdes de conciliagdo com a concordiincia das partes. Duas forcas politicas atuavam assim sob 0 efeito da razia. Uma, centralizadora, se opunha ao bando, favorecendo a emergéncia de um “rei”, que exercia a repre- sentacao do poder do bando sobre as populagdes submetidas pelas razias; a outra agia contra esse mesmo poder, deixando aos guerreiros saqueadores os meios de sua independéncia, seus recursos € suas armas. A afirmagdo da guerra, de preferéncia a razia, como modo de obtengao de escravos, é também a do rei contra seus guerreiros. Notas {. Banditismo, razia ¢ guerra sio trés atividades distintas, que discutiremos nesta parte. 2. Atval Mal. 3 Sobre o herd: sudunés, ver Dumeste, 1979; Amselle et al. 1979; Meillassoux et al., 1967; Meillassoux, 19784. 4, Existe uma divida, que eu também tenho, sobre o periodo exatu ao qual se aplicam algumas dessas afirmagdes. De qualquer modo, os Mande estavam provavelmente, no século XIlI, entre os povos chamados Lam-Lam, dos quais provinham os escravos do trafico sahariano. 5. Outras tradigdes precisam que o Mande contava 30 “casas”, das quais 12 jasa, ou casas militares (entre as quais a de Sunjata) e quatro clis de clientes de casta (Diabaté, 1970; 40, 55. Niane, 1960; 138). 6. Niya: estar diante; moko: individuo. Aquele que vem a frente, o primeiro, o chefe. 7. Nao parece que se passa interpretar 0 relato de Kamisoko como a narrativa da “aboligio da eseravatura” no Mande, como se poderia pensar a partir da tradugdo de Y.-S. Cisse. O contexto do relato indica que Sunjata € celebrado por ter posto fin ao trafico dos Malingué entre si, mas niio a escravidio dos cativos estrangeiros, como {estemunham muitas mengdes relativas a existéncia de escravos entre os Malingué, depois da vitéria de Sunjata (Kamisoko, 1975, I1l; 201. Niane, 1960; 140, 437 etc.) 8, Benveniste (1969, II; 14) 44 como significado de Rex aquele que delimita “o interior do exterior. 6 territério nacional e o territério estrangeiro”. Quanto ao conceito de “sociedade”, ele mostra que este € reconhecido sob o nome de “‘reino”: “os limites da sociedade coincidem com um certo poder, que é 0 poder do rei (bid; 9). 9, Sobre a localizagdo geografica de Mali, ver Hunwick, 1973; Meillassoux, 1972f¢ 1972. 10. Tradigdo que também se encontra entre os Soningué-kusa, através da lenda de Maren Jagu, por exempio (Meillassoux, 1967), também ele herdi suscitada pela necessidade de se livrar de uma tirania, ‘mas que se choca com a resisténcia dos seus congéneres logo que tenta impor-lhes 0 seu poder. Ver também (os meios utifizados pelos Bamana do Wasolon para tentar evitar a dominagio de um “poderoso” predestinado (Amselle et al., 1979). 11, Suba: um dos nomes de Sunjata, “taumaturgo”. 12. E uma hagiografia posterior que the atribui essas caracteristicas reais. 13. Miskin (drabe: pequeno), termo adotado por varias inguas mande para designar as pessoas de nascimento obscuro, francas mas sem nobreza. 14. Marx (in Engels, 1884/1954; 100) qualifica esse tipo de organizagéio de “democracia militar". O termo “democracia” € certamente excessivo, porque esses bandos néo tém nenhum fundamento popular. E apenas entre seus membros que se exerce essa relativa igualdade. Para Benveniste (1969, II; 89), “a relagdo pessoul de um grupo de homens com o seu chefe se expressava, na Grécia antiga, por laos. Poimen era o chefe dessa ‘comunidade viril ¢ guerreira’.” 15. Ainda no século XIX, segundo Valligre (in Gallieni, 1853; 320) em 1880, os habitantes do Wasolon, (no atwal Mali) se capturavam mutuamente e se dedicavam ao rapto de seus purentes proximos, para vendé-los. “Quando as aldeias terminavam as colheitas, os rapazes se reuniam em bandos armados e OADVENTO DOS BANDIDOS — 123 atacavam seus vizinhos para tentar ‘ganhar alguma coisa’, enquanto os chefes vendiam seus préprios siiitos.” Gallieni acrescenta que “bandos armados... percorriam a regizio, viviam longe dos chefes, ts vezes lutando até contra eles” (Gallieni, 1885; $98), Relatam-se fatos andlogos na regidio minianka, a sudeste de ‘Segu (D. Jonckers, 1981; 150). 16. A palavra rribo € usada por C. Monteil no sentido em que uso cid; ¢ ele usa cli no sentido de associagio. 17. E também pelo assassinato dos velhos que Chaka, soberano zulu (Nguni), substituiu por uma sociedade militar a sociedade doméstica patriarcal, 18. Ver uma pratica andloga entre os Achanti (N. Klein, inédito; 121). 19. Um banditismo de fato era utilizado pelo Estado de Segu como meio de repressio contra as aldeias tebeldes que, por sua insubordinagio, se voltavam para 0 “exterior”: essas aldeias eram saqueadas. 20. Segundo Roberts (1978; 34), a pratica do banditismo (tegere ou jadoya) era considerada, em Segu, como um crime grave contra 0 Estado, Le Hérissé (1911; 292) também relata como, no Daomé, foram Punidos siditos do rei Aisan, que se escondiam as margens dos caminhos para prender mulheres e criangas que vendiam como escravos. “Esse fato constitufa um ultraje que atingia diretamente o rei de Abomey, que enviow os seus guerreiros para matar Aisan.” 21, Ver também Dumestre (1979, Intr.), para uma interpretagio desse processo. 22. Campos de cultura, 23. "Sem camelos... 0 Sudio seria desconhecido, Nao terfamos escravos... com eles, o deserto no tem espago” (in Daumas, 1857; 161). 24, Segundo E. Terray, 20 contrétio, a razia s6 teria podido exercer-se com a protegio de um Estado militarmente muito capaz de servir de refiigio para os saqueadores (1982; 390). Penso que essa tese s6 se confirma quando a razia se exerce sobre populagdes imediatamente vizinhas, 0 que é efetivamente 0 caso a partir dos Estados fortes. De qualquer forma, observemos que a razia néo poderia estar na origem desses Estados, como supe Terray (p. 385-386), pois eles deviam preexistir para servir de base de retirada para 0s saqueadores. CAPITULO II O GRANDE TRABALHO DOS REIS 1. “Nossa enxada é nosso fuzil” Existe uma tese que compara conflito e violéncia, inspirada no determinismo etol6: gico!, segundo a qual a guerra seria apenas 0 produto de um “instinto de agressivi- dade” de origem animal. Essa tese, que nunca foi exposta explicitamente nem aplicada universalmente pelos historiadores modernos a totalidade dos conflitos, esta implicitamente presente logo que se evita analisar as suas circunsténcias histéricas ¢ sociopoliticas. Como o seu funcionamento nao é explicado, parece que se admite que a guerra seria proveniente de pulsdes primédrias e nao de circunstancias hist6ricas e culturais, Num atraso absoluto em comparagdo com a andlise de Clausewitz, que via na guerra nao um transbordamento de instintos mas um instrumento da politica das nagdes e de afitmagao do poder, essa tese confunde a violéncia em geral com a organizagdo premeditada da forca e n&o vé, assim, as fungdes que esta ultima cumpre. De fato, fazer a guerra supde a instalagode um aparato que parece ter sido sempre muito pesado para a economia das diversas sociedades militares. Logo, algo completamente diferente de urh reflexo espontineo de agressividade individual, produzido sob o efeito de uma emogao. Nao hd nada em comum entre a bicada de lum ganso que se sente ameacado ¢ a mobilizagdo de um exército, que precisou de meses ou anos para preparar-se, organizar-se, alimentar-se, manter-se, ser chefiado etc. Paralelamente a essa tese, existe uma ideologia que tende a apresentar a agres- sividade, e logo por assimilagao a guerra, como expresso suprema do valor mascu- lino (virilidade) e fonte de toda hierarquia. Tentei mostrar em outros textos (1975c, 1979e) como a guerra de rapto, nas sociedades em que no funcionava a troca organizada de esposas, fazia dos homens os agentes efetivos da reprodugo social como essa fungao acabou por sobrepujar politicamente a procriagdo natural das 124

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