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METODOLOGIA DA PESQUISA SOCIOLINGUISTICA Objetivos gerais do capitulo © 0 fazer empirico: passos iniciais — busca de informantes e constitui¢ao de amostras; > Projeto de pesquisa — definigao do envelope de variagao, formulagao de questdes e hipéteses, definicdo de grupos de fatores, coleta e codifica~ aio de dados; © Resultado: descrig&o do funcionamento de um fenémeno em variagao no portugués do Brasil. 1. COLOCANDO A MAO NA MASSA: 0 FAZER EMPIRICO Ao apresentarmos 0s conceitos de comunidade de fala, redes sociais © comunidade de préticas no capitulo anterior, vimos que nao € propria- mente o individuo que interessa ao pesquisador sociolinguista, mas 0 gru- po social no qual ele vive e com o qual ele interage, de modo que o locus para a busca de dados linguisticos é a comunidade. A lingua deve, pois, ser estudada em seu contexto social. “ Em suas pesquisas, Labov opera basicamente com a nogdo de comu- nidade de fala, derivando-se dai a tradi¢Ao de considerarmos essa nogao como norteadora da constituigo de bancos de dados para realizagao de pesquisas sociolinguisticas. Sao, pois, as metodologias de pesquisa centra- das nas comunidades de fala que vamos priorizar neste livro. Nesta segdo, 99 CEO Snel vamos abordar os seguintes t6picos: selegdo dos informantes; coleta de dados; identificagdo do envelope de variagdo; levantamento de questdes & hipoteses; ¢ codificagao de dados e anilise estatistica, 11 Em busca dos informantes ‘Como ji mencionamos, o que interessa ao sociolinguista é a lingua em uuso nas diversas situagdes comunicativas, especialmente na fala cotidiana; ais do que 0 individuo, 0 que interessa é o grupo social. Mas, obviamente, s6 podemios chegar ao grupo através do contato com os individuos ~ 0s in- formantes que nos fornecerao os dados. Tendo em vista que comunidades de fala, em geral, sio compostas por centenas ou mesmo milhdes de individuos, no temos outra opeao a ndo ser coletar os dados referentes ao comportamento linguistico de uma comunidade apenas a partir de alguns de seus componentes; ‘como vamos ver, isso no chega a ser uma limitago a pesquisa, pois na ver- dade uma quantidade pequena — mas representativa ~ da comunidade é tudo ‘© que precisamos. E muito importante que os informantes selecionados para serem entrevistados sejam representativos da comunidade de faa a que perten- ccem. Vale lembrar, ainda, que, como toda pesquisa que envolve informantes, a pesquisa sociolingufstica também esta sujeita a aprovagao prévia pelo Comité de Etica da instituigdo qual se vincula o pesquisador. Alguns procedimentos devem ser seguidos quanto a defini¢do do uni- verso da amoastra e ao tamanho e estratificacdo da amostra. Na definigao do universo da amostra, partimos do seguinte ponto: Qual a comunidade de fala que desejamos investigar? Trata-se de uma comunidade da zona urbana, da periferia ou da zona rural? Um grupo linguisticamente minoritério na regio? Uma comunidade bilingue? Uma comunidade de pescadores? Uma resposta precisa a essas perguntas é imprescindivel, pois a definigao da comunidade de fala a ser investigada vai se refletirna maneira de selecionar os informantes, Quanto ao tamanho da amostra, as pesquisas sociolinguisticas tm apon- do que nfo ha necessidade de amostras tio grandes como as usadas em out ‘tras pesquisas de natureza social (de intengdes de voto, por exemplo) para se analisar fendmenos varidveis, uma vez que 0 uso linguistico & mais homo- ‘g2neo do que 0 comportamento humano acerca de outros fatos, em virtude de nao estar t2o sujeito A manipulago consciente (com a ressalva de que no 100 Motodologia da pesquisa socilinguistica caso dos esteredtipos possa haver algum grau de manipulagao consciente). No que diz respeito a estratificagao da amostra, é preciso considerar as dimensdes sociais relevantes para a variagio, pois elas vao se refletir no tamanho e na constituigdo da amostra, isto é, na constituigao das células sociais. Entendemos por “célula social” um conjunto de individuos agrupados pelas mesmas caracteristicas sociais relevantes para a analise de fendémenos de variagao e mudanga linguistica. As caracteristicas sociais a serem contem- pladas na montagem das células nao sao aleatérias, mas seguem os critérios de estratificagao social que tém se mostrado relevantes nos estudos sociolin- guisticos, a saber, idade, escolaridade, sexo, nivel socioeconémico, além de outros fatores extralinguisticos como regido de origem, etnia etc. O recomendado, em termos do nimero ideal de informantes, é de cinco por célula, de modo a garantir a representatividade da amostra; contudo, nem sempre alcangamos a quantidade de cinco informantes por célula social. Ha bancos de dados linguisticos com quatro informantes por célula, e mesmo com dois. Quanto menor o niimero de informantes por célula, mais cautela precisamos tomar na andlise dos resultados esta- tisticos concernentes aos fatores sociais. Vejamos como funciona essa estratificagao. Se vamos considerar as varidveis sociais “sexo/género”, “idade” (trés faixas etarias) e “escolari- dade” (trés niveis), por exemplo, podemos ter a seguinte distribuigao dos informantes por células sociais: Quadro 1: Distribuigao dos informantes (Total = 90 informantes). Escolaridade Até 4 anos De 5 a 8 anos De 9a 11 anos Idade | Sexo/Género | __M F M F M F 15 a 24 anos 5 5 5 5 5 5 25 a 49 anos 5 5 5 5 5 5 + de 50 anos 5 5 5 5 5 5 Total 15 15 1s 15 15 1s A medida que aumentarmos ou diminuirmos as varidveis sociais con- troladas, vai aumentar ou diminuir, proporcionalmente, 0 nimero de infor- mantes de nossa pesquisa, em fungao do preenchimento das células sociais. O préximo passo é saber como localizar informantes com essas carac- teristicas. A orientacdo é que a amostra seja aleatoria (também chamada de 101 ECE Scleguisica ~rand6mica”). O que vem a ser isso? Cada sujeito de uma populagao/comunida- de tem igual chance de ser escolhido para fazer parte da pesquisa ~ trata-se de ‘uma amostra probabilistica, cujos resultados podem, depois, ser projetados para a comunidade de fala como um todo. Parte-se, entdo, para uma loca- lizagao aleatéria dos informantes, desde que se contemplem as caracteri ticas sociais j4 definidas nas células. Uma busca aleatéria pode ser feita a partir de listas telefnicas, catélogos de enderecos, registros eleitorais, dados de censos, escolas, grémios, associagdes de bairros ete. E recomendado que se utilize uma ficha social para cada informante, registrando dados de identificagao (local de nascimento e de residéncia, ida- de, escolaridade, profissio e escolaridade dos pais etc.) informagdes relati- vas a0 contexto da entrevista (tais como descrigo do local e do tipo de inte- ragdo entrevistador/informante), ou outras observagdes julgadas relevantes. 12 Acata de dados AS pesquisas sociolinguisticas so de base empirica, desenvolvidas a partir de dados linguisticos efetivamente produzidos. Como ja foi enfatiza- do, as amostras mais representativas para esse tipo de pesquisa so as de fala espontinea. Nao dispomos, no entanto, de registros orais de épocas distan- tes no tempo. Por isso, para pensarmos em termos de mudanga linguistica, especialmente a partir de usos de séculos passados, precisamos consultar textos escritos. Como, entdo, coletar dados para pesquisa sociolinguistica? Que métodos podemos utilizar? E disso que tratamos nesta segao. principal método para a investigagao sociolingufstica &, segundo Labov, a observagio direta da Iingua falada em situagdes naturais de in- teragdo social face a face, Essa lingua ¢ 0 verniculo ~ estilo em que 0 minimo de monitoragdo ou atengio é dispensado a fala. E a lingua que ‘usamos em nossas casas, com nossos amigos, nas reunides de lazer, longe dos locais de trabalho, por exemplo, onde se requer uma fala mais cuidada, Mas como coletar 0 verndculo? Como conseguir que os informantes falem livremente em entrevistas gravadas? Esse problema consiste no chamado paradoxo do observador: 0 ob- jetivo da pesquisa linguistica na comunidade é verificar como as pessoas fi- Jam quando nao esto sendo sistematicamente observadas; mas 56 podemos 102 acai peu soca obier esses dados através da observagdo sistemitica. Labov apresenta uma proposta para tentar neutralizar esse paradoxo, como veremos a seguir. ‘Amelhor forma de coletar hons dados — que reflitam de forma fidedigna e-em boa qualidade sonora 0 verniculo ~ é a gravagiio de entrevista indivi- dais, procurando sempre minimizar a interferéncia de ruidos extemos. No decorrer da entrevista, 0s dados mais interessantes provem de narrativas de experiéncias pessoais, Ao envolver o falante em tpicos que recriem emogies fortes vividas no passado (por exemplo,fazendo perguntas como “Voce ja pas- sou por uma situagaio em que corren risco de vid? Como foi2”),o entrevista- dor faz com que o informante desvie a atengao de sua propria fala, deixando 6 vemnculo emergir. O falante deixa de prestaratengao no como diz para ficar atento a 0 que diz. Outros estimulos desse tipo podem ser: “Conte um flo (historia) que tenha acontecido com voe8 e que tenha sido muito engragado (ou muito triste, ou muito constrangedor)...". O nome que se dé a esse formato especifico de interagio, cuja finalidade & a composigao de um banco de dados para estudos sociolinguisticns,é entrevista sociolinguistica Um roteiro de entrevista sociolinguistica niio se restringe, contudo, & elicitagao de narrativas de experiéncias pessoais. Os fendmenos varidveis que podem ser analisados so de diversos tipos, podendo envolver, por exemplo, tempos ¢ modos verbais, uso de operadores argumentativos, for- mas de tratamento ete. O problema € que dificilmente vamos encontrar ver- bos no tempo futuro, ou no modo subjuntivo, ou no modo imperative em relatos de fatos passados. Do mesmo modo, nesses relatos serio escassos 05 ‘operadores argumentativos e diferentes formas de tratamento usadas para se fla monitorada > letra texto > letra Vistas de palvas> leur pares minimos estilo [tensolinformal], > eatilo [tenso/formal] Os contextos so assim definidos: fala casual — trechos de fala espontinea que escapam a entrevista for- mal, como interrupgdes do informante para atender telefone, servir ‘um café, dirigir-se a uma terceira pessoa; trechos em que o informan- te divaga, desviando 0 foco da entrevista para seus proprios interes- ses; relatos de episédios que envolvem isco de vida; fala monitorada — fala mais cuidada, correspondente a situagao predo- ‘minante ao longo da entrevista; leitura de texto — trecho lido pelo informante, que apresenta as varié- veis fonético-fonologicas de interesse do pesquisador distribuidas em diferentes parigrafos; 109 Fr CONC Sdn + Soapbox ~ opinides de cariter genérico, como se fossem dirigidas a uma audiéncia mais ampla; + Residual ~ fala que nao se enquadra em nenhuma das categorias anteriores; + Narrativa —somente as de experiéncia pessoal; + Grupo ~ fala dirigida a uma tereeira pessoa ou ao proprio entrevista- dor, porém externa a entrevista formal; + Infancia — fala sobre jogos ou experiéncias infantis de um ponto de vista da erianga; + Tangente — trecho de fala que se desvia do ultimo tépico proposto pelo entrevistador, mostrando ser de grande interesse do informante. Novamente, a expectativa & que fendmenos linguisticos varidveis sejam suscetiveis ao gradiente de estilos contextuais em cada um dos eixos da en- trevista, Vamos pensar, por exemplo, no fenémeno da concordancia nominal em portugués. © esperado seria, em relagao a arvore de decisdo, que os infor- mantes realizassem menos concordncia nos trechos da entrevista dispostos no eixo da fala casual, pois nesse eixo haveria um grau menor de atengio a fala ~0 indice maior de nao marcagao de concordncia ocorreria nas narrativas de episédios particulares de sua vida. Por outro lado, grau de atengao & fala estaria mais ativado nas respostas € nos trechos em que o entrevistado falasse sobre a lingua, por isso a expectativa de que nesses trechos da entrevista have~ ria maior indice de marcagao da concordancia; © assim por diante. Deve-se observar, no entanto, que nem todas as entrevistas sociolin- guisticas de que dispomos recobrem esses contextos descritos por Labov. De qualquer forma, essa proposta metodolégica pode ser um bom ponto de partida — nao s6 para segmentar a entrevista, mas também para que © pesquisador que ainda vai a campo conduza as entrevistas levando em consideracdo esses contextos de controle. Além disso, ela pode ser adapta- da conforme as particularidades dos dados € 0s objetivos do pesquisador. Salientamos que nao se trata de receita pronta... Tanto a drvore de decistio como 0s estilos contextuais que envolvem também a leitura de textos e de palavras so pontos de partida a serem testados, avaliados e, caso necessi- rio, reformulados pelo pesquisador. Embora as entrevistas sociolinguisticas tipicas fornegam os dados ‘mais interessantes para os estudos variacionistas, elas nao se constituem ‘no tinico tipo de material a ser analisado. 112 Meusoga ta esas sccngusi ee Outras formas de coleta de dados + Entrevistas andnimas ¢ ripidas (por exemplo: ao estudar a ‘aridvel “presenca/auséncia de /r/ em posigo pos-vocalica na cidade de Nova York", Labov visitou trés lojas de departamentos, fazendo perguntas aos funcionarios cuja resposta deveria ser fourth floor (quarto andar), ¢ registrando, a seguir, cada resposta. Com essa estratégia ripida de coleta, ele levantou 0s dados que desejava analisar) Observagdes ¢ apontamentosassistemyiticos sobre a lingua em uso (em trens, dnibus, baledes de lojas,bilheterias,filas ete); + Gravagdes de programas de TV e ridio; + Gravagées em locais de desastres (situagio em que fas pessoas se encontram sob impacto emocional), em discursos piblicos; + Gravagoes de interagdes entre pares de informantes; + Testes sobre usos linguisticos de produgdo e de percepeao, Em relagio a testes de produgdo e de percepedo, hi evidéncias de que existe uma grande assimetria entre percepgio € produgdo — as regras variaveis sio, de fato, regras de produgio e nio de percepgao. Apesar da assimetria apontada, diferentes testes desse tipo podem ser criados ¢ apli- cados em pesquisas sociolinguisticas, tais como os listados a seguir. Testes de atitude/avaliagao — levam o informants a avaliar socialmen- te as variantes (prestigio versus estigma, certo versus errado), identi- ficar caracteristicas socioculturais dos falantes (etnia, classe social) a partir da audigao de gravagdes, identificar caracteristicas da personali- dade dos falantes a partir da audicao (inteligéncia, personatidade) ete. + Testes de (in)seguranea linguistica — levam o informante a escolher qual, dentre duas ou mais formas alterantes, é a “correta” e qual a que ele normalmente usa. Nesse caso, considera-se que o falante vai de- ‘monstrar seguranga se achar que a sua fala ¢ a variedade de prestigio; vai revelar inseguranga se considerar sua fala pouco valorizada etc. Um bom exemplo de testes de percepgio e producdo é apresentado Por Tarallo (1985) com relagao ao uso das oragdes relativas. Ele sugere que se apresente aos informantes uma bateria de construgdes, sem uma ordem 113 predeterminada, para que eles digam quais so as mais aceitaveis ¢ quais so as menos aceitiveis, Uma simulagio de teste desse tipo é Sreniegusta no quadro a seguir. 114 ‘coer art ete REE RSET SEE EZ Simulando um teste de percepgdo e de produgéio Um teste de percepgiio poderia ser assim organizado: Numere as frases, de | a 3, de acordo com o grau de bilidade: (1) para a mais aceitavel, (2) para a mais ou menos aceitivel e (3) para a menos aceitavel. a. a ) Eu tenho uma amiga que é 6tima. b. (_) Eu tenho uma amiga que vocé conhece ela. A ) Eu tenho uma amiga que vocé conhece. . (_) Eu tenho uma amiga que ele se encontrou no Rio. . (_) Bu tenho uma amiga que ela é étima. ( ( ( aceil ) Eu tenho uma amiga com quem ele se encontrou no Rio ) Eu tenho uma amiga que ele se encontrou com ela no Rio. ) Eu tenho uma amiga que o marido dela se mudou para o Rio. ) Eu tenho uma amiga cujo marido se mudou para o Rio. ) Eu tenho uma amiga que o marido se mudou para o Rio, pmead h. Confira seu teste! Nas frases (a, c, f, i) temos relativas padrao, Nas demais, temos relativas nao padriio. Entre essas: as frases (b, ¢, g, h) so de relativas com pronome lembrete; e as frases (d, j) siio de relativas cortadoras. No estudo de Tarallo (ele testou uma bateria com mais de cem frases entre informantes de classe média e de classe alta), os resultados apontaram que informantes da classe média avaliaram como aceitaveis 79% das relativas padriio, enquanto informan- tes da classe alta avaliaram como aceitaveis 93% dessas mesmas construgées. Por outro lado, a classe média aceitou 47% das rela- tivas ndo padrao e a classe alta somente 29%. Percebe-se, assim, uma correlagao entre classe social dos falantes e grau de aceitabi- lidade de construgdes sintaticas padriio e nao padrio. Tarallo sugere um refinamento desse teste: comparar qual das relativas no padro é a mais estigmatizada. Uma das apresentada eta pests lost hipsteses do autor é que a construgao com ‘cujo’seja evitada por ser considerada uma forma de pedantismo. E a sua hipd- tese, qual seria? ‘Um teste de produgiio, segundo o autor, poderia ser orga- nizado do seguinte modo: Retina as duas sentengas a seguir numa dnica sentenga, fazendo as devidas alteragies: Aquela menina é bonita, Aquela menina é de Sao Paulo. Duas opgdes sito previsiveis ai 1, Aquela menina que é de Sao Paulo & bonita 2, Aquela menina que ela € de Sto Paulo é bonita ~ Vocé formulou uma dessas combinagdes? A primeira € de relativa padrio e a segunda € de relatva ndo padrio com pronome lembrete. ‘Veja 0 resultado da testagem de Tarallo (ele ofereceu 36 diferentes situagdes): 0s informantes de classe média produ- Ziram 75% de relativas padrio e os de classe alta, 94%, Desa forma, nesse estudo, o teste de produgio ratificou os resulta- dos do teste de percepgao. Outta coleta de dados interessante é aquela que contempla produgdes de fala € de escrita de um mesmo informante. Pode-se, por exemplo, co- letar amostras de fala e de escrita de alunos, observando-se as seguintes tapas: selego das escolas participantes (piblicas ¢ privadas, por exem- plo); selegao dos informantes considerando-se 0 ano de escolarizacao, a idade ¢ o sexo/género; realizagio de gravagao individual de uma narrativa de experincia pessoal (de um acontecimento alegre, ou triste, ou divertido etc.); solicitagdo de um relato escrito do mesmo acontecimento gravado; € armazenamento das coletas de dados de fala e escrita de cada informante. Falamos, até aqui, sobte procedimentos de constituigdo de amostras para arealizagao de pesquisas. Para se fazer uma pesquisa sociolinguistica, entretanto, nem sempre € necessério ir a campo; podem-se utilizar dados de um banco previamente constituido, e, no Brasil, ja ha varios bancos de dados linguisticos dispontveis. 15 SERCH Soetngtea ‘0 primeiro deles é do projeto Nure (Norma Linguistica Urbana Culta), formado na década de 1970 com entrevistas gravadas em cinco capitais, brasileiras — Porto Alegre, Sa0 Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife — com informantes de nivel universitério, envolvendo trés tipos de coleta: dislogo entre dois informantes, diilogo entre informante e entrevistador & elocugao formal. A importincia do projeto Nure se evidencia, por exemplo, ‘os oito volumes da Gramética do portugués falado ¢ nos cinco volumes (dois deles atualmente ainda em preparag2o) que comporio a Gramdtica do portugués culto falado no Brasil — resultados de um projeto coordenado pelo professor Ataliba Castlho. ‘Além desse banco de dados de fala culta, outros tantos se formaram, € estio se formando, no Brasil, coletando outros tipos de amostras. O Qua- dro 2 ilustra os empreendimentos nessa érea, Quadro 2: Bancos de dados linguisticos (ampliado de Gongalves, 2009), Projeto Procedéncia ‘Tamanho da | Varlivels soc mostra controladas (ode {informantes) Programa de | Cidade do Rio de 6 Sexeigénero, Estudos sobre Usos Janeiro (amostrahisica) | faixaetriae da Lingua (ext cescolaridade mostra Censo) Variayio Regio Sul do 288 Senolgénero, Linguisticana | Brasil amosirahisica) | faixaetriae Regio Sul (Varsul) | ___urbanas) cescolatidade Variagao Estado da Paraiba o Senoigénero, Linguistica na isa etiria€| Paraiba (var) escolaridade Dialetos Sociais Fortaleza 23 ‘Cearenses { Lingua Usada em Maceis 2 ‘Alagoas (wat) escolaridade Discuso& — | Cidade do Rio de 7 Sexoigénero, | Gramitica (D&G) }) Jancto, Nitedi fina euitige | (u), Natal (0), ie escolaridade de Fora (us) € Rio Grande (ws) | 116 ‘Metodologia da pesquisa socioingustica Amostra Regidio Noroeste do 152 Sexo/género, faixa Linguistica do | estado de sv (7 areas ctiria, escolaridade Interior Paulista urbanas) renda familiar (aur) Banco de Dados | 19 municipios da 352 Sexo/género, Sociolinguisticos | faixa de fronteira (banco em faixa etdriae daFronteirae da_| (Brasil, Uruguai, formagio) escolaridade Campanha Sul- Argentina) e rio-grandense (as | campanha gaticha Pampa) Banco de Dados Pelotas (rs) 90 Sexo/género, faixa Sociolinguisticos etiria, ¢ classe Varidveis por social Classe Social (VarX) Vamos comentar brevemente dois dos projetos descritos no Quadro 2 e seus desdobramentos. O PEUL/UFRJ, pioneiro em pesquisas sociolinguisticas no Brasil, ser- viu como parametro para a constituig&o de bancos de dados em outras instituigdes de pesquisa. O projeto expandiu sua amostra basica consti- tuida na década de 1980, incluindo amostras de fala dos anos 2000, além de uma amostra de lingua escrita, representada por textos jornalisticos de diversos géneros, objetivando verificar a sistematicidade da variagao € a trajetoria de processos de mudanga. Isso nos remete a distingao entre mudanga linguistica em tempo aparente e mudanga linguistica em tempo real (conceitos ja estudados no capitulo anterior). O projeto PEUL coletou duas novas amostras de fala na década de 2000: uma com recontato de 16 dos 64 informantes da amostra basica, para realizagdo de estudo de painel ~ mudanga de curta duragao no individuo —, e outra com gravagdes de 32 novos informantes estratificados de acordo com a amostra basica, para realizag&o de estudo de tendéncia — mudanga em curta duragao na comunidade (mais informagées sobre 0 projeto podem ser obtidas no site do projeto: ). Uma descri¢ao detalhada dessas amostras, além de resultados de varios estudos de mu- danga em tempo real, pode ser encontrada no livro organizado por Maria Conceigao Paiva e Maria Eugénia Duarte (2003), Mudanga linguistica em tempo real. O quadro a seguir sintetiza a metodologia de coleta de dados para analise de mudanga linguistica. 117 (Als PEE Socata Coleta de dados para anélise de mudanga linguistica Os bancos de dados, ao controlarem a varidvel “faixa etd ria” (com diferenga de 15 a 20 anos entre as faixas), oferecem amostras para testar hipdteses de mudlanca linguistica em tempo ‘aparente ~ mudanga captada na fala de individuos de diferentes geragdes numa comunidade, num dado periodo de tempo. Para estudos que investigam mudanca linguistica no tempo real, pre- cisamos de uma metodologia de coleta propria. O pesquisador, nesse caso, pode langar mio de ts tipos de metodologia, as duas primeiras referentes a dados de fala ea terceira a dados de escrita: + Coletar amostras de fala de mesmos individuos relativas a dois momentos diferentes, com o objetivo de perceber a estabilidade e/ou mudanga na fala do individuo. O pesquisador retoma a comunidade de fala (cerca de vvinte anos depois), procurando entrevistar os mesmos informantes para proceder a uma andlise comparativa dos dados. Esse & um estudo do tipo painel; + Coletar amostras aleatérias, mas com a estratificagio social idéntica, da mesma comunidade de fala, relativas a dois momentos diferentes, com o objetivo de perceber a estabilidade e/ou mudanga na comunidade. © pesquisador retoma a comunidade de fala (cerca de 20 anos depois), entrevistando informantes que se enquadrem nas mesmas caracteristicas sociais dos anteriores — ou seja, se 20 anos antes entrevistou informantes na faixa dos 40 anos, 20 anos depois entrevistaré outros informantes com 60 anos. Esse & um estudo do tipo fendénciar * Coletar textos eseritos que potencialmente possam refletir 0 verniculo de certo periodo de tempo. Por exemplo: cartas de ‘cunho pessoal, dirios, textos teatrais que tenham trazido fala de diferentes camadas da sociedade, além de informagdes de alas linguisticos ¢ textos que fornegam alguma informagao, sobre avaliagdo linguistica, como gramiticas. Varsul apresenta uma particularidade interessante: em cidades representativas de diferentes influéncias étni ‘oletou dados italiana, ale- ma, eslava, agoriana, entre outras ~, 0 que permite verificar eventuais in- 118 eatin ess socongasen fuéncias da etnia no uso linguistico. Esse projeto também ji ampliou sua amostra basica nas trés capitais da regido Sul (Porto Alegre, Florianépolis ¢ Curitiba) — formada inicialmente por duas faixas etirias (25 a 49 € mais de 50 anos) e trés niveis de escolaridade (até 4 anos, de $a 8 ede 9a II anos) -, incluindo posteriormente duas novas faixas etirias (7a 12 € 15 a 24 anos) e mais um nivel de escolaridade (universitrios). Em relagio a escrita, amostras sistematicas diacrénicas comegaram a ser coletadas no Brasil na década de 1980. A primeira coleta foi coor- denada pelo professor Fetnando Tarallo, na Unicamp. Alguns dos textos levantados por sua equipe datam de 1316 a 1937 e fazem parte do exem- plar: Tempos linguisticos: itinerdrio da lingua portuguesa, escrito pelo autor. Outros bancos, organizados, principalmente, para pesquisas de His- téria da Lingua, também se prestam a estudos sobre variagao € mudanga, como 0 que foi coordenado pela professora Rosa Virginia Mattos e Silva, nna Bahia (urBa). Temos também amostras de escrita diacrénica que esto sendo coletadas (jé ha mais de uma década) em diversas capitais do Brasil pelos pesquisadores do projeto nacional Para uma Histéria do Portugués Brasileiro (Pip), coordenado pelo professor Ataliba Castitho, 13 Fechando 0 cerco: o envelope de variagao ‘Uma vez definida a comunidade de fala a ser investigada, os infor- mantes € a amostra a ser analisada, parte-se para a delimitago precisa do objeto de estudo € do seu respective envelope de variagao, Envelope de variagio & 0 nome dado, em um estudo sociolinguistico, a descrigao detalhada de uma varidvel, de suas variantes e dos contextos em que elas podem ou no ocorrer, ou seja, de como exatamente um fendmeno em. variagdo esti se manifestando na lingua, Para isso, é necessirio primeira- ‘mente reconhecer uma varidvel e identificar suas possiveis variantes. Esse processo inicial é um pouco intuitivo, depende das impresses que 0 pes- quisador tem a respeito da fala da comunidade investigada, mas a partir da observagio dos primeiros dados, essa questo vai se delimitando e as impressdes do pesquisador sendo confirmadas ou nao. ‘Quantas variantes tem uma varidvel linguistica? Vamos abordar essa questo a partir de alguns dados. Comecemas observando o trecho a se- 119 98 CONE Secntea guir, extraido do trabalho de Lucca (2005), realizado com amostras de fala entre adolescentes masculinos do Distrito Federal. LO maluco Ié falou: “jé t6 com o estilingue esperando a hora dela descer"’ Ajeu falei: “vamo estourar esse baldo de gis”. Ai a mulher virou pra tis. 2. Eu fiquei foi com raiva, ontem eu fiquei foi com raiva, 1. Por qué? 2. Porque foi passando a lotagdo lotada, véio, ai nego parou, ai eu desci lino centro, véi 1, Aja mulher virou pra tris: “baldo é o que vocé tem ai debaixo... dois baldo- zinho.” Ai pegueie fale: “mais esses baldozinho num ¢ pra tu, no” ai tipo assim, “em um em um minuto passa uma lotagHo, véio (spa eproduzindo um dislogoenrele una mulher desconheida, num dribusTaguatngn: p91) Note-se que no iiltimo tumo do didlogo, o informante 1, a0 reprodu- zir a fala da mulher “[...] 0 que voeé tem ai debaixo...” € a resposta dele “[..] num é pra tu, no”, utiliza dois pronomes diferentes ~ ‘tu’ e ‘voce’ — como forma de referéncia ao interlocutor. Temos, aqui, duas variantes tu” € “vocé) para representar a varidivel “referéncia d segunda pessoa (P2)”. Atentemos, agora, para os seguintes dados relativos a regéncia do verbo “ir’ de movimento, retirados do trabalho de Maria Cecilia Mollica (1996), realizado com a amostra Censo/Peut. do Rio de Janeiro. (1) Eu tenho o maior desejo de ir a Bahia! (2) Ai tem que ir pro médico tomar injegdo. (3) Simplesmente vocé vai em Minas, ¢ um modo de tratar, né? [Nese caso, temos trés variantes (a, ‘para’ e ‘em’) no papel de pre- posigdo que introduz o complemento locativo do verbo “ir” expressando ideia de movimento. E possivel também agrupar as variantes ‘a’ ¢ ‘para’ contrapé-las a variante ‘em’, com base no ctitério “padrao” e “nao po- rao”, respectivamente, transformando trés variantes em duas. ‘Vejamos agora a realizagao da consoante vibrante em portugués. Ob- servemos como é pronunciado o /r/ em posigao final de silaba, em pala- ‘ras como: ‘mar’, ‘carta’, ‘carne’, ‘cantor’. Monaretto (2002), estudando a realizagdo da vibrante pés-vocilica em dados da comunidade de fala de Porto Alegre, encontrou as seguintes realizagdes da vibrante em posi¢do de coda: tepe, vibrante alveolar, retroflexa, fricativa velar e apagamento. 120 eco ta pena nga ‘Temos entio, aqui, cinco variantes para a varidvel Linguistica “realizagdo de /r/em posigaio de coda” Podemos retomar, nesse ponto, a pergunta formulada anteriormente quantas variantes tem uma varidvellinguistica? A resposta é: duas ou mais, dependendo do fendmeno investigado, pois, como vimos, por definigao, um fenémeno variavel implica sempre a existéncia de duas ow mais formas de se veicular um mesmo significado referencial/representacional Como ja foi mencionado no capitulo inicial deste livro, a varidvel lin- istica escolhida como objeto de estudo ¢ tratada, na andlise quantitativa, wel dependente, Podemos ter, portanto, varidveis dependentes, indrias (com duas variantes), ternérias (com trés variantes) ov enedrias (com quatro ou mais variantes). A variével dependente ¢ tomada como referéncia para se testar a atuagdo de diferentes variveis independentes, ou grupos de fatores, que possam influenciar a escolha entre as formas alternantes, ou a aplicagao da regra variével. Voltaremos a esse ponto na segdo “O resultado: retrato de um fendmeno em variagio’ ‘Consideremos a seguinte passagem: A identificagdo de uma varive inlui definir as variantes (0 que é ¢ 0 que no € uma ocor da variivel em estudo)e determinar o envelope da ‘ariagdo (onde & possivel ou impossivel que a variével ocorra), Contextos categéricos (nos quais nlo ha varias%o) ¢ contextos neutralizadores (nos Auais a variagdo& irrelevante ou imperceptivel) devem ser identificados e, rnormalmente, sio excTudos da andlise. (Guy e Zilles, 2007; 36) Na pritica: no estudo sobre a realizagao da vibrante pos-vocélica ante- riormente referido, por exemplo, o envelope de variagao engloba a possibi- lidade de produgdo de cinco diferentes variantes, cujo locus de ocorréncia & definido de acordo com o éxico do portugués, de modo que todas as pala- vras que apresentem /t/ em coda silabica, isto é, em final de silaba (incluindo final de palavra), so consideradas ambiente propicio a variagdo em foco. Nesse fenémeno, como tém mostrado os estudos, dificilmente so encontra- dos contextos categéricos, em que apenas uma das formas iri ocorrer. Como ambientes neutralizadores, temos, por exemplo, sequéncias em que a va- riante em questio ocorre em final de palavra e a palavra seguinte inicia com ‘um fonema semethante (‘comprarrégua’, “marrevolto”). Esses dados devem 121 PA IRAE Scag ser excluidos da analise variacionista, uma vez que nio se pode diseriminar com seguranga se 0 /r/pertence & primeira, & segunda ou a ambas as palavras (um caso de sandi externa). Da mesma maneira, devem ser desconsiderados, desse tipo de anilise aqueles dados cuja audigao & prejudicada por ruidos ‘externas ou por problemas de articulagao do falante. Uma vez definido 0 envelope de variagio, passa-se & form: questaes € hipéteses, 0 que sera tratado na secao a seguir. do de 14 Quebrando a cabeca: perguntas e respostas ‘A observagiio empirica da fala das pessoas € a propria intuigio de falante nativo do portugués, além da revisio da literatura (isto é, leituras e resenhas ja feitas sobre trabalhos que focalizam 0 objeto de interesse), guiam o pesquisador na formulagdo de questdes e hipdteses que vao orien- tar sua investigagdo. exemplificar, consideremos a variavel morfossintética “concor- dancia verbal com P4”. Examinando amostras de fala das comunidades gaiichas de Porto Alegre e Panambi (Varsul), Ana Zilles et al. (2000) en- contraram os seguintes tipos de ocorréncias: -mos: Nés falamos corretamente portugues -mo: Nés falamo 0 nosso alemio zero: Nés era@ agricultor So trés variantes para expressar a concordncia verbal com o prono- me ‘nds’: a forma padrao (-mos), a forma no padrdo com apagamento de -5 no morfema nimero-pessoal (-mo) € a omissio do morfema (@). Além dessas variantes, foi encontrada também a forma -emo, com alterndncia da vogal tematica, tanto no presente como no pretérito perfeito do indicativo (/nés compremo”), Nesse estudo foram testadas, entre outras, as seguintes hipdteses (observe-se que as duas primeiras hipéteses sio de natureza line guistica e as outras duas sto extralinguisticas): a. A forma verbal proparoxitona favorece a omissdo da desinéncia nii- ‘mero-pessoal -mos; b. A posposigao do sujeito favorece o apagamento da marca de con- cordancia; 122 essa apres etna . As formas no padrio (zero e -mo) so favorecidas na fala dos infor- ‘mantes com menor grau de escolaridade; 4. As formas ndo padrao sto mais favorecidas em Panambi, em de- corréncia da aquisi¢ao tardia do portugués pelos falantes bilingues (alemao € portugués) desta comunidade, (Adaptado de Zilles et al., 2000: 204) Essas hipéteses se constituem em respostas possiveis ¢ esperadas a questdes como: Qual é 0 efeito da tonicidade sobre o uso varidvel da concordancia verbal? Qual é 0 papel da posigo do sujeito em relagdo ao verbo para a rea~ lizagdo da concordincia? Qual & 0 papel da escolaridade na realizagao da concordancia verbal com P4? Qual é 0 papel do bilinguismo no uso varidvel da concordéincia verbal com Pa? A operacionalizagaio das hipdteses ¢ feita mediante o levantamento de grupos de fatores (ou varidveis independents). Nesse caso, foram testa dos os seguintes grupos de fatores, entre outros: 1. Posigdo do acento na forma verbal alvo (forma padrio) -proparoxitonas ou paroxitonas; Posigao do sujeito em relagdo ao verbo ~ posposigao, anteposigio direta, distancia entre sujeito e verbo de uma a tés silabas, ¢distincia entre sujeito verbo de mais de trés silabas: Escolaridade ~ até 4 anos de escolarizaglo ou ensino médio: 4. Comunidade ~ Panambi ou Porto Alegre “Temos, entGo, quatro grupos de fatores: “posigo do acento”, “posi- 0 do sujeito”, “escolaridade” e “comunidade”, Cada um desses grupos € constituido, respectivamente, pelos seguintes fafores: proparoxitonas © paroxitonas: posposigao, anteposigdo, distincia de uma a trés silabas, € distancia de mais de trés silabas; até quatro anos de ensino médio; Panambi € Porto Alegre, respectivamente. ‘A andlise da concordncia verbal foi feita em trés etapas: 1) com va- rivel dependente terndria (-mos, -mo e zero); 2) com variivel dependente 123 Sociolinguiatica bindria, opondo-se -mos e -mo (reunidos) versus zero; e 3) com variavel dependente bindria, excluindo-se zero e opondo-se apenas as marcas mor- foldgicas -mos e¢ -mo. Numa pesquisa sociolinguistica, a definigao dos grupos de fatores esta intimamente relacionada as hipdteses, que, por sua vez. sao formu- ladas em termos de respostas provis6rias 4s questées levantadas. Defi- nir Os grupos de fatores representa um importante passo na pesquisa e é uma tarefa que, normalmente, vai sendo refeita ao longo da analise E comum nas pesquisas empiricas (que lidam com dados reais) irmos refinando as hipéteses, incorporando novos grupos de fatores e descar- tando outros, por exemplo. Esse procedimento, naturalmente, requer um bom tempo do pesquisador! Formuladas as questdes e hipoteses e com os grupos de fatores devi- damente detalhados, passa-se 4 etapa seguinte da pesquisa, que ¢ codificar os dados para, entao, procedermos a andlise estatistica. 1s Misturando letras e numeros: preliminares da analise estatistica A codificagao dos dados é um requisito para a andlise estatistica (da qual falaremos na segdo seguinte). Para cada fator de cada grupo (por exemplo, ‘masculino’ e ‘feminino’ so fatores do grupo de fatores ‘sexo/ género’) é atribuido um codigo. No interior de cada grupo de fatores, os cédigos devem ser obrigatoriamente distintos um do outro; ja nos dife- rentes grupos, pode haver repetic¢ao de cédigo (embora o recomendavel seja nao os repetir). Os cédigos disponiveis para esse procedimento sao as letras, os numeros e os simbolos dos caracteres do teclado do computador, de modo que cada cédigo deve corresponder a um tinico caractere. Suponhamos que a nossa varidvel dependente seja a concordancia verbal com P4. Podemos estabelecer, por exemplo, os cédigos apresenta- dos no quadro a seguir, de acordo com os fatores exemplificados para cada varidvel. Note-se que os cédigos correspondem ao numero e ordem dos fatores controlados, sendo o primeiro deles referente a uma das variantes da variavel dependente 124 Metodologia da pesquisa sociotingisica Quadro 3: Exemplo de cédigos. Varidvel dependente: 1 -mos 2-mo 0 zero (apagamento) Variiveis independentes (ou grupos de fatores) Linguisticas ” Extralinguistie: 1) Posigdo do acento: P proparoxitona 1) Escolaridade: 4 até quatro anos P paroxitona 9 ensino médio 2) Posigdo do sujeito: d posposig’o a. anteposigao direta 2) Comunidade: 1 Panambi = distncia de uma a trés silabas A Porto Alegre + distncia de mais de trés silabas O proximo passo é examinar a amostra delimitada para a pesquisa ¢ extrair cada ocorréncia da varidvel acompanhada do contexto em que ela esta inserida, o que implica, na maioria das vezes, ler e/ou ouvir amostras bem extensas. No caso aqui exemplificado, é preciso considerar o contexto em que aparecem 0 sujeito e 0 respectivo verbo, atentando para a possivel distancia que pode separa-los, bem como para a ordem em que eles apa- recem na sentenga. Feito 0 levantamento de todas as ocorréncias, parte-se para a codificagao desses dados. Imaginemos que estamos codificando os dados de um informante de Panambi com até quatro anos de escolaridade. Aplicando os cédigos do Quadro 3, teremos, por exemplo: Quadro 4: Exemplo de codificagao. Codifieagio Ocorréncias op-aI ‘Nés sempre cantava (cantivamos) Ipaal Nés fomos embora 2padl Pedro e eucorremo até cansar_—_| Dependendo do tipo de fendmeno que esta sendo investigado, pode- mos chegar a um niimero bastante elevado de dados. E, dependendo do numero de varidveis independentes testadas, a quantidade de informagio associada a cada dado também sera grande. Dai a necessidade de langar- mos mao de recursos computacionais, com a utilizagdo de um pacote esta- tistico. Nas pesquisas variacionistas, 0 pacote utilizado é 0 Varbrul. 125 FoR CLNECER Seti 126 rn, Pacote estatistico para andlise de regra varidvel © Varbrul (Variable rules analysis ~ “Andlise de regras varidveis”) é um pacote estatistico desenvolvido por David Sankoff e Pascale Rousseau, em 1978, usado para descrever padres de variagio entre formas alternativas de uso da lingua. © pacote fomece cilculos de frequéncia, percentuais e pesos telativos (PR) associados a cada fator das varidveis indepen- dentes em relagao A aplicagio da regra, indicando a influéncia de cada um desses fatores sobre o uso de uma das variantes, Alm disso, realiza a selegdo estatistica dos grupos de fatores por ordem de relevincia. Os pesos relativos atribuidos indicam © efeito que cada um dos fatores tem sobre as variantes do fe- rnmeno linguistico analisado (a variével dependente). Trata-se de uma medida probabilistca usada para calcular 0 efeito de lum fator condicionador na aplicagao da regra varidvel, ou seja, © peso que um fator tem a0 condicionar a ocorréncia da varian- te que estipulamos como “aplicagéo da regra”. Como o nome sugere, 0 peso relativo de um fator s6 tem significado quando relativizado ao peso de outros fatores com os quais coocorre. ssa medida € tho constante em tabelas de pesquisas sociolin- ‘guisticas quanto a porcentagem, e & dada em valores de 0a 1. ‘Quanto mais proximo de 1, maior 0 peso relative do fator, isto 6, maior o efeito dele sobre a variante escolhida como aplicagio dda regra; quanto mais préximo de 0, menor o peso relativo, ou seja, menor a forga de atuago desse fator na escolha daquela variante; proximo ao valor de 0,5, temos 0 ponto neutro ~ pesos relativos proximos a esse valor indicam que os respectivos f tores exercem pouco efeito sobre a aplicagdo da regra variavel bastante utilizada, nas pesquisas sociolinguisticas, a ver siio do pacote estatistico Varbrul 2S (Pintzuk, 1988). Atualmente, esse programa se encontta disponivel, livremente, com o tome de GoldVarb. Nao vamos, todavia, nos deter nos meandros da sua coperacionalizagio, pois isso foge aos objetivos deste livro, Para ‘0s principiantes na pesquisa sociolinguistica, qualquer pacote es- tatistico que calcule percentuais pode ser uilizado, As verses GoldVarb Lion para Mac e GoldVarb X para Windows estio disponiveis em . ] Metodotogia da pesquisa sociolinguestica > 0 RESULTADO: RETRATO DE UM FENOMENO EM VARIACAO Para mostrar, em termos gerais, 0 estudo de um fenédmeno variavel, optamos por descrever etapas de um trabalho de variagao morfossintatica sobre a concordancia verbal de P6, realizado por Monguilhott (2001). Fo- ram analisadas entrevistas de 24 informantes da cidade de Florianépolis (projeto Varsul), de origem agoriana, estratificados de acordo com as varia- veis sociais: sexo/género, idade (15 a 24 anos, 25 a 45 anos e 52 a 76 anos) e escolaridade (4 anos e 11 anos de escolarizagao), distribuidos de acordo com o quadro a seguir. Quadro 5; Distribuigdo dos informantes de acordo com as células sociais. Escolaridade 4 anos LL anos Idade Sexo/ M F M F Género 15 a 24 anos 2 25.45 anos 2 2 6 52.a 76 anos 2 2 2 6 ale|rfr Total 6 Apés a coleta de todas as ocorréncias com ou sem marcacao verbal de concordancia, para que fosse possivel verificar a influéncia dos fatores linguisticos e sociais sobre o fendmeno em estudo, os dados foram codifi- cados e analisados estatisticamente com 0 auxilio do Programa Varbrul. A concordancia verbal de P6 foi estabelecida como varidvel dependente, com duas variantes: marcagdo explicita de plural nos verbos ¢ a ndo marcagao de plural nos verbos, como ilustram os exemplos: * Maso meus irmdo, nao, nem tava ai. + Mora dois no Rio + Eles moru 1a, tudo em Cricitma Do total de 1.583 dados obtidos, 1.251 apresentaram marcas explici- tas de concordancia nos verbos, correspondendo a 79% da amostra, ¢ 332 dados, 21% do total, apresentaram a variante zero de plural nos verbos. Para responder 4 questdo: Quais os grupos de fatores linguisticos e extralinguisticos que condicionam a concordéncia verbal de P6?, fo- 127 PARA CONECER Sociolinguistica ram investigados sete grupos de fatores (ou varidveis independentes) linguisticos(as) e trés sociais. Vamos apresentar a caracterizagao e os re- sultados de quatro desses grupos: saliéncia fonica; posicéo do sujeito em relagdo ao verbo; sexo/género e escolaridade. Esses fatores foram selecio- nados — dentre outros grupos de fatores — como relevantes pelo pacote es- tatistico Varbrul, ou seja, que se mostraram condicionadores da marcagado da concordancia verbal, como relataremos a seguir. Note-se que, no capitulo anterior, ja comentamos resultados para dois desses grupos de fatores (“posig&io do sujeito em relagdo ao verbo” e “es- colaridade”) concernentes ao mesmo objeto de estudo. Como naquele caso se trata de outra pesquisa realizada com uma amostra diferente, embora da mesma localidade, é interessante comparar os resultados. Outro aspecto a ser observado é que as tabelas a seguir mostram, além de resultados per- centuais, também resultados em pesos relativos (PR). Com o propésito de averiguar se a concordancia verbal era (ou nao) motivada pela “saliéncia fénica”, a pesquisa tomou como ponto de partida os niveis de saliéncia propostos por Anthony Naro (1981), conforme des- crito no quadro em destaque. Niveis de saliéncia fonica Nivel I — oposigdo nao acentuada: a. nfo envolve mudanga na qualidade da vogal na forma plural (conhece/conhecem, consegue/conseguem, corre/ correm, vive/vivem, sabe/sabem); ex.: Todas elas jé sabe a tarefa Eles s6 sabem viver assim juntos, né? b, envolve mudanga na qualidade da vogal na forma plural (ganha/ganham, era/eram, gosta/gostam); ex.: Os baile era rodeado de janela Eu acho que eles eram improvisados c. envolve acréscimo de segmentos na forma plural (diz/ dizem, quer/querem); ex.: Eles diz que é criada a ragio, né? Eles dizem que foi dele 128 Netodoionia da pesmi socoinguisica Nivel 2 — oposigdo acentuada: a. envolve apenas mudanga na qualidade da vogal na forma plural (t/tdo, vai/vao); ex.: Quando yai alguns parente, essas coisa Fico enrolada na toalha quando eles vao na praia b. envolve acréscimo de segmentos sem mudangas vo na forma plural cas (bateu/bateram, viu/viram, incluindo o par foi/foram, que perde a semivogal); ex.: Foi duas turma Eorum eles que me ajudarum a me solt mais, . envolve acréscimos de segmentos ¢ mudangas diversas na forma plural: mudangas vocdllicas na desinéncia, mudangas na raiz, ¢ até mudangas completas (veio/vieram, é/sao, disse/disseram), ex.: Mais tarde entio veio os hospitais As rendeiras vieru dali, né? A hipétese do trabalho era de que as formas fonicamente mais salientes tendessem a ser mais marcadas do que as menos salientes, ou seja. as oposi- ces mais salientes entre singularplural, por serem mais perceptiveis, deve- riam aumentar a probabilidade de ocorréncia da variante explicita de plural. Os resultados corroboram essa hipotese, como podemos conferir na Tabela 5. Tabela 5: Frequéncia e probabilidade de marcagio verbal de concordancia de P6, segundo 0 grupo de fatores “saliéncia fonica”” (Monguilhott, 2001: 42). NIVEL 1: OPOSICAO NAO ACENTUADA APLITOTAL = % |_PR a. no envolve mudanga na qualidade da vogal na formal 25/101=25% | 0,02 plural; b. envolve mudanga na qualidade da vogal na forma 638/802 = 80% | 0,46 plural; c. envolve acréscimo de segmentos na forma plural. 68/103 = 66% | OF NIVEL 2: OPOSICAO ACENTUADA. APL/TOTAL=% | PR 2a, envolve apenas mudanga na qualidade da vogal na 125/130 =96% | 0.88 [forma plural; 129 PA CONE Seong ®, envolve aeréscimo de segmentov sem mudangas B= 8M YS vocilcas na forma plural fc. envolve acréscimos de segmentos © mudangas 3101s = 90% | 07S diversas na forme plural Toa T251SR3= 79% | Como se pode verificar, os fatores pertencentes ao nivel 2 de sali- éncia, oposigaio acentuada, tenderam a uma maior aplicagao da regra de concordancia verbal. Com relagao ao nivel 1 de saliéncia, oposigo no acentuada, percebemios uma tendéncia contritia, isto é, uma tendéncia em diregao a nao marcagao verbal de concordancia, em especial nos verbos que fazem parte do item a, em que ndo ha mudanga na qualidade da vogal na forma plural, como em ‘conhece/conhecem’, com apenas 25% de marca concordancia e 0,02 de peso relativo. Quanto 20 grupo de fatores “posigao do sujeito em relagdio ao verbo”, foram considerados dois fatores, conforme ilustram os exemplos a seguit. + Ordem sujeito-verbo: Eles fizeru churrasco + Ordem verbo-sujeito: Seriam trés cidade que eu gostaria de voltar A hipétese era de que 0 sujeito, quando posposto ao verbo, apresenta- ria forte tendéncia a variante zero de plural nos verbos e, quando anteposto, ‘uma tendéncia & marcagao verbal da concordiincia, Os resultados na Tabela 6 atestam essa hipstese. ‘Tabela 6: Frequéncia e probabilidade de marcagdo verbal concordancia de P6, segundo o grupo de fatores “posigdo do sujeito em relagd0 ao verbo” (Monguilhott, 2001: 46), POSIGAO DO SUIEITO | APLICACAO/TOTAL =% | PESO RELATIVO EM RELACAO AO VERBO. ‘Sujeito anteposto T9328 = 058 Sujeito posposto 132255 = 52%. 0.17 ‘OTAL 1.251/1.583 = 79% Podemos observar, na Tabela 6, que a probabilidade de aplicagaio da regra de concordéncia € maior quando o sujeito esti anteposto ao verbo: 84% (0,58 de peso relativo) dos sujeitos antepostos aparecem com marca- sao explicita de concordincia, enquanto apenas 52% (0,17 de peso relati vo) dos sujeitos pospostos vém acompanhados de verbos com marcagaio de 130 mst a psa ecnitics plural. Isso significa dizer que, além da saliéncia, a concordancia verbal & motivada também pela posigdo do sujeito em relagdo ao verbo. Como ja apontamos anteriormente, alguns trabalhos mostram que essa tendéncia se deve ao fato de 0 sujeito posposto ao verbo ser encarado como objeto pelo falante, que entdo nao aplica a regra de concordéncia ~ interpretagdo per feitamente justificdvel, pois o sujeito, quando posposto, acaba ocupando a posigiio candnica do objeto na sentenga. Vejamos agora dois grupos de fatores sociais, sexo/género ¢ esco- laridade, Comegamos com 0 grupo sexo/género dos informantes. A ex- pectativa era de encontrar mais marcago de concordincia por parte das mulheres, por elas se mostrarem mais receptivas atuacdo normatizadora da escola, como a maioria dos estudos sociolinguisticos sobre 0 portugui do Brasil apontam, uma vez que a marcagao da concordancia é uma forma de prestigio. Os resultados estatisticos, expostos na Tabela 7, ratificam essa hip6tese, o que parece indicar que as mulheres estao de fato mais atentas as regras estabelecidas, sejam elas sociais ou linguisticas. ‘Tabela 7: Frequéncia ¢ probabilidade de marcagio verbal de concordiincia de P6, segundo o grupo de fatores sexo/género (Monguilhott, 2001: 62) SEXOIGENERO | _APLICAGAO/TOTAL. PESO RELATIVO Feminino 736/905 = 81% 053 Masculino 515/678 = 76% 04s TOTAL, 1251/1.583 = 79% Em relagdo a “escolaridade”, a hipétese verificada era a de que quan- to maior o nivel de escolaridade, maior a probabilidade de o falante utili- zar a regra de concordancia verbal, pois a escola é um dos ambientes que privilegiam a variedade linguistica utilizada na escrita. Estudos variacio- nistas envolvendo a varidvel “anos de escolarizagdo” apontam que existe uma correlagdo entre formas linguisticas consideradas padrao (ensinadas na escola e reforgadas em outros ambientes, como TY, jomais ete.) e maior escolaridade. Dois niveis de escolarizagio foram controlados, correspon- dendo a4 ea 11 anos de escolarizacao. Os resultados estatisticos atestam ‘a hipétese: os falantes mais escolarizados aplicam mais a regra de concor- dancia verbal (81% ¢ 0,57 de peso relativo) que os menos escolarizados (78% © 0,44 de peso relative), como vemos na Tabela 8, 131

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