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d

sumário

sumário
aviso
prefácio
prólogo
capítulo 1
capítulo 2
capítulo 3
capítulo 4
capítulo 5
capítulo 6
capítulo 7
capítulo 8
capítulo 9
capítulo 10
capítulo 11
capítulo 12
capítulo 13
capítulo 14
capítulo 15
capítulo 16
capítulo 17
capítulo 18
capítulo 19
capítulo 20
capítulo 21
capítulo 22
capítulo 23
capítulo 24
capítulo 25
capítulo 26
capítulo 27
capítulo 28
capítulo 29
capítulo 30
capítulo 31
capítulo 32
capítulo 33
capítulo 34
capítulo 35
capítulo 36
capítulo 37
capítulo 38
capítulo 39
capítulo 40
capítulo 41
capítulo 42
capítulo 43
capítulo 44
capítulo 45
av i s o

Este livro é violento. É uma distopia passada diante do


reflexo de uma sociedade arcaica. Há diversas cenas contendo
machismo e preconceito da parte da sociedade em que nossa
protagonista vive, os quais podem ser difíceis para certos leitores.
O romance contido neste livro é um bully romance, o que
quer dizer que os personagens fazem “bullying” um com o outro por
alguma razão. São cruéis e violentos em vários momentos. É
completamente ficcional e não deve ser tirado como exemplo em
forma alguma.
Trata-se da segunda parte de uma história, então termina em
cliffhanger.
Alerta de gatilhos: violência física e verbal, conteúdo sexual
explícito e consumo de drogas lícitas.
A todos os meus leitores que embarcaram comigo
de alma e coração
nesta jornada
p r e fá c i o

Eu vou lhes contar a história de uma vilã

Uma única garota


impiedosa

genial
letal
Este livro é sobre a minha jornada com a Usurpadora de
Sangue

Não é uma história agradável


nem muito bonita

Na verdade
terá momentos em que será difícil de passar de página

Momentos em que irá odiar nossa protagonista


mais do que ela própria

Momentos que te deixarão com um gosto amargo na boca

Aqui está a sua chance de parar


prólogo

Quando eu tinha quatro anos, uma senhora abordou a minha


mãe e eu no centro da cidade. Tinha a pele enrugada e os olhos
cinzas, quase brancos. Penetrantes. Insanos. Assustadores.

Ela encarou meus olhos e disse:


“A dosagem certa de crueldade vai te levar à glória. E a
dosagem errada vai te levar à destruição.”

Eu era jovem demais para entender o significado daquelas


palavras. Mas, mesmo não as compreendendo, senti de alguma
forma que era algo ruim.
A minha mãe me puxou para longe da senhora. Lembrava-
me dela logo depois dizendo para que eu não me preocupasse.
Que, às vezes, pessoas muito velhas falavam bobagens sem
querer.
De vez em quando, eu ainda tinha pesadelos sobre aquele
dia.

Era a primeira e mais antiga memória que eu tinha da minha


vida.

Quase como se, com aquelas palavras profetizadas, a minha


vida então tivesse começado.
capítulo 1

Acordei suando.

Pisquei várias vezes até me situar onde estava e o que


estava acontecendo.
Estava deitada na cama, no quarto do antigo rei e que agora
pertencia a mim. A cama era tão grande que cabiam cinco pessoas.
Confortavelmente.

Levantei-me e atravessei o cômodo até o banheiro. Ainda


estava escuro, mas eu sabia que não valia a pena tentar dormir
novamente. Eu não conseguiria.

E se acontecesse, eu provavelmente sonharia com ele.


De novo.

E essa era a última coisa que eu queria.


Mal havia dormido nos últimos sete dias. Se dormi um total
de dez horas naquela semana, foi muito. E, em todas as vezes que
consegui cair no sono, tive pesadelos.

Eles se alternavam entre dois.

Em um deles, eu era morta. O povo de Umbra me matava em


uma rebelião depois de eu ter falhado como sua rainha. Insatisfeitos
e em busca de sangue, eles tomavam o castelo, matavam Allegra,
Vesper e todos com quem eu me importava. Até chegarem a mim.

E os outros pesadelos giravam em torno… dele.

Nas piores noites, como naquela, eles se fundiam e me


aterrorizavam pela madrugada.
Mas não eram apenas os pesadelos que me mantinham
acordada. Eu não me sentia confortável descansando, era como se
pudesse perder algo importante durante o sono. Tinha tanta coisa
para fazer e resolver que dormir parecia um absurdo.

O quarto era gigantesco e repleto de uma decoração pesada


e suntuosa. Eu ainda não havia me acostumado com o cômodo,
sentia que estava dormindo em um quarto que não era meu. Mas
não havia tido tempo de mudar. Decoração era a última coisa em
minha mente.

Lavei o rosto e não pude deixar de notar as olheiras.


Coloquei o vestido em tom pastel que Allegra já havia deixado
separado para mim. Um vestido básico, mas sofisticado e,
principalmente, de cor clara. Algo que uma Rainha de Umbra usaria.

Agora, cada pensamento era revisado pelo menos um par de


vezes em minha mente. Cada ação era repensada, até escolher o
que vestir tinha virado algo de grande significância. A simples
escolha de uma vestimenta poderia resultar em algo negativo para a
minha imagem.

Bax estava do lado de fora da porta fazendo a vigia.

Com os seus ombros obscenamente largos e os quase dois


metros de altura, ele fez uma reverência um tanto rígida e
deselegante.

— Bom dia, Majestade.

— Bom dia, Bax.

Fui à biblioteca me preparar para a reunião do conselho.


Anotei coisas que pretendia fazer e mudar, também li sobre alguns
dos últimos anos de regência do antigo rei no diário oficial.

Ali, eu tinha acesso às últimas leis criadas e editadas,


guerras travadas e tratados consagrados. Confirme lia, me
surpreendia com a quantidade de coisas absurdas. Leis e ideologias
tão arcaicas, e muitas delas desnecessárias. Minha vontade era
jogar tudo no fogo e começar do zero. Mas claro que as coisas não
funcionavam assim.

Aquela era a minha rotina nos últimos dias. Eu estudava e me


inteirava até que o dia de fato começasse e os outros acordassem.

Algumas horas depois, eu estava sentada na sala de


reuniões com a extensa mesa repleta de homens que me
desaprovavam. Metade dos conselheiros achava que eu seria a
ruína de Umbra. A outra metade estava conflituosa sobre o que
sentia por mim. E um deles, o Lorde Cornelius, me queria morta.
Sabia disso porque Willow se sentava ao meu lado durante
todas as reuniões desde que tomei o trono, a cerca de sete dias.
Não que eu precisasse necessariamente dela para ter consciência
disso, estava estampado na maioria de suas faces. E, para ser
honesta, sentia que muitos deles nem tentavam esconder seu
descontentamento.
Aqueles rostos diante de mim eram quase todos os mesmos
que me encararam enquanto aquele general me humilhava após ter
me pegado espiando uma de suas reuniões com o antigo rei.
E eles lembravam disso tão bem quanto eu.

Para eles, no fim das contas, eu era só uma garota.


Fraca.

— Eu quero fazer uma sessão semanal para poder escutar


as reclamações do povo.

— Já temos isso, Majestade. — Um deles disse, como se eu


fosse completamente ignorante. E havia uma certa satisfação em
sua feição ao ter que me explicar. — Todas as terças, o rei fazia a
sessão e ouvia os lordes senhores de terras.

— Sei muito bem do que as sessões se tratam e pretendo


mantê-las. Mas quero dizer com o povo de verdade. Quero poder
ouvir as reclamações tanto dos senhores quanto dos que trabalham
para eles.

Houve uma comoção na mesa. Alguns bufaram, outros


soltaram um som resignado. Cheguei a ouvir até uma risada
abafada.

— Isso é impossível. Como você falaria com todos eles?


— Obviamente não conseguirei falar com todos, mas tentarei
o máximo possível. E eles podem passar por um processo seletivo
para que as questões mais urgentes cheguem até mim.

— Que questões urgentes? Que uma de suas ovelhas sumiu


ou foi roubada, por exemplo?
As risadas tomaram conta da mesa por um instante. Eu sorri
também, apesar de, por dentro, estar fervendo. Não queria parecer
ofendida ou ameaçada. Queria parecer no controle.

— Todo problema do povo é relevante, Lorde Karf. Até


mesmo se tratando de ovelhas.

Nenhum deles de fato me apoiava.


Bem, com exceção de DeLarosa, que se sentava ao meu
lado esquerdo. Tinha o braço quebrado e parecia ter envelhecido
dez anos em poucos meses, mas parecia satisfeito.

Mas, por mais incomodados que estivessem, não havia nada


que pudessem fazer. Eu havia me coroado com o sangue do antigo
rei ainda fresco em minhas mãos. A única forma de se tornar rei que
não hereditariamente. Não era apenas uma lei, era uma tradição. Eu
tinha a bênção dos Deuses.
Então, eles me observavam e me avaliavam enquanto eu
dava ordens e buscava por informações. Alguns procuravam por um
sinal de ímpeto para apaziguar seus receios, outros, a maioria,
procurava por um sinal de fraqueza para confirmar sua resignação.

— E o que pretende fazer com os familiares do rei? Os


sobrinhos e, principalmente, a princesa?
A sala ficou em silêncio por um momento. Todos os olhos
estavam fixos em mim, em expectativa.

A princesa havia sobrevivido ao ataque. Naquele exato


momento, estava presa em uma das celas nas masmorras.
— Ainda estou analisando qual será a melhor opção —
respondi, mas a verdade era que eu ainda não fazia ideia. Precisava
de mais tempo. — Alguém tem alguma sugestão?

O General Artez se pronunciou:

— O mais tradicional e mais seguro seria matá-la. É o que se


faz quando se toma um reino e sobrevivem herdeiros do antigo
regente. Você não quer ter ninguém ameaçando o seu trono.
Eu já sabia que aquela era a opção mais lógica, mas a ideia
de tirar a vida da princesa não me agradava em nada.

— Ainda não a considero uma ameaça.


— Ainda. — Lorde Cornelius enfatizou. — Quer esperar até
que se torne uma? Até que seja tarde demais?

Havia um tom desafiador em sua voz, beirando à gozação.


Ele falava como se estivesse na presença de uma criança que
tivesse acabado de tropeçar e cair em um trono.

Aquilo fez meu sangue ferver. A forma como se dirigia a mim


era desrespeitosa, mas de um jeito velado. Ele não falava comigo
de forma abertamente grosseira, mas era o suficiente para me
incomodar e me menosprezar na frente dos outros. Ele jamais
falaria assim com o antigo rei.

Mas eu ainda não podia fazer nada quanto a isso. Não


naquele momento. Não tão cedo.
Olhei para ele fixamente e, com a voz controlada, indaguei:

— Presumo, então, que sua opinião seja a mesma? Matá-la?


Ele abriu um pequeno sorriso falso que me fez querer
arrancar-lhe a cabeça.

— Sim, Majestade.

Eu desviei meu olhar antes que eu o mandasse à forca.


— Vamos fazer uma votação, então.

E foi unanime. Os braços se ergueram e todos votaram para


que a princesa fosse morta.
Eu assenti.

— Amanhã estarei a caminho de Tephos. Quem ficará me


representando em minha ausência será Vesper Fairley com auxílio
do General DeLarosa. — Levantei-me da cadeira. — Quando eu
voltar, a questão da princesa será resolvida.
Eu ainda precisava me provar para eles.

Com a tomada do trono, havia chamado sua atenção, claro.


Eu os havia chocado, até mesmo os assustado. Mas ainda não tinha
seu respeito.

Às vezes, eu me perguntava se a minha vida sempre seria


resumida a isso: provar que sou boa o suficiente para um bando de
homens egocêntricos e medíocres.
Eu os dispensei, e apenas DeLarosa, Vesper e Willow
continuaram na sala. Logo depois de saírem, Allegra e Bax entraram
e se juntaram a nós na mesa.

Encarei meu verdadeiro conselho.


— Quais são os planos, Majestade? — indagou Vesper,
cruzando preguiçosamente ambos os pés em cima da mesa.

— Você e DeLarosa ficam até eu voltar. Eu, Allegra, Bax e


Willow vamos para Tephos, onde eu vou tentar me provar para o
Grande Rei e todos os outros líderes que estarão lá.

Só de dizer aquelas palavras, meu corpo tensionou. Aquela


viagem significava o destino do meu reinado.

— Vai ficar fora por quantos dias? — DeLarosa quis saber.

— Três dias. Só a viagem de ida e volta leva um dia inteiro.

— Acha que o Rei Sarkian vai estar lá? — Dessa vez, foi
Willow quem indagou.

Só a menção de seu nome me fez cerrar os dentes dentro da


boca.
— Sei que sim.

— Tome cuidado. Na última vez que o viu, tentou matá-lo. —


Vesper comentou.

E o beijei, pensei.

Mas não disse, claro. Nenhum deles sabia o que realmente


tinha acontecido entre mim e Sarkian. O que eles sabiam era que eu
havia tentado matá-lo, mas falhado.

Allegra se remexeu nervosamente na cadeira.

— Ele pode querer se vingar.

E daquilo eu não tinha a menor dúvida.


— Vou tomar cuidado. Levarei parte da guarda real comigo,
por precaução.

Deixei a sala, e Vesper me acompanhou.

— Fique de olho no Lorde Cornelius.

— Por quê?

— Ele me quer morta.

Vesper ergueu as sobrancelhas.

— Não acha que devemos fazer algo sobre isso?


— Quando eu voltar. Por enquanto, preciso das coisas
estáveis e calmas.

— Então, não deveria me deixar no controle. Nunca fui


considerado nenhuma das duas coisas.

— Bem, você é o melhor que eu tenho agora.


— Me sinto lisonjeado.

— Também fique de olho no General DeLarosa — disse, um


pouco mais baixo dessa vez.

— O DeLarosa? — Ele franziu o cenho. — Não vai me dizer


que ele também te quer morta.

No dia anterior, Willow havia me dito que DeLarosa era mais


ambicioso do que demostrava. Talvez, o posto de general não fosse
o suficiente para ele, e isso me preocupava. Mas, ao mesmo tempo,
não sabia se podia confiar nas palavras de Willow, ainda mais em
relação a ele. Estava um tanto claro que a garota não era fã do
general e que o sentimento era mútuo. Ele a achava petulante e
cínica, e não aprovava sua presença nos conselhos. O general não
compreendia por que eu queria uma garota como ela durante as
reuniões. Mas ele não tinha ciência de seus poderes e, por razoes
óbvias, nunca poderia ter.

E, como ela lia pensamentos, Willow sabia exatamente o que


se passava em sua cabeça. Por isso, eu não tinha como saber com
certeza se o general era de fato uma possível ameaça ou se aquilo
era apenas uma forma de Willow tentar se livrar dele.

Por mais que Willow lesse mentes, desde o momento em que


a conheci, eu sabia que não poderia acreditar em tudo que deixava
sua boca. Ela poderia muito bem mentir, e eu nunca saberia a
verdade. Afinal, não era eu que tinha acesso à mente dos outros.

— Não sei ainda. De qualquer forma, fique alerta.

Um momento de silêncio se passou até que ele voltou a falar:

— Sabe, seu pai veio ao palácio de novo.

Não respondi.

Eu recebi a notícia de que minha família havia sobrevivido ao


ataque alguns dias atrás. Não sabia dizer se me senti aliviada ou
decepcionada. Talvez um pouco dos dois, se isso fosse possível.

— Em algum momento pretende recebê-los?


Desviei o olhar de Vesper.

— Claro.

Sabia que o encontro era inevitável, mas estava protelando o


máximo que podia. Tinha muito em mente e a minha família era a
última coisa com a qual eu desejava lidar. Em grande parte, porque
não sabia o que esperar desse encontro. Mas não podia negar que
estava um tanto curiosa para assistir às suas expressões ao me
verem no trono. Eu estava longe de ser invisível agora.

— Eventualmente — completei.

— Só estou perguntando por curiosidade. — Ele deu de


ombros. — Não a julgaria se os mandasse para a forca.
Um meio sorriso atravessou o meu rosto.

— Acho que não seria bom para as aparências.

Paramos no corredor, e eu abri a porta para entrar nos meus


aposentos.

— Ei. — Virei-me para Vesper diante do seu chamado. —


Boa sorte na viagem até o Grande Reino.

— Obrigada. Vou precisar.

Não seria uma cerimônia qualquer. Eu teria que me provar,


teria que fazer coisas que iam completamente contra a minha
vontade.
Vesper fez uma reverência exagerada e sorriu.

— Acabe com eles, rainha.


capítulo 2

Aquela seria a minha introdução como rainha a todos os


atuais regentes e, claro, ao Selous, o Grande Rei. Também seria a
primeira vez que eu veria Sarkian desde a minha coroação.

A viagem de pouco mais de um dia pelo mar pareceu levar


cerca de dois meses.
Já na carruagem, logo depois de atracar com o navio, Allegra
colocou gentilmente a mão na minha perna que balançava
freneticamente. Agora, faltava cerca de três horas para chegar ao
palácio do Grande Rei.
O toque me fez tomar consciência do movimento involuntário
e parar.

— Está tudo bem? — Ela indagou com o rosto tão doce


quanto suas palavras.
Não queria admitir o nervosismo. Conter a ansiedade era
algo que bons líderes faziam e, infelizmente, era uma virtude que eu
ainda não possuía.

— Sim, claro. Só ansiosa para chegar. Não suporto viagens


longas.

Tecnicamente, não era uma mentira.


— Nem me fala. — Willow murmurou com a testa colada na
parede ao lado da janela da carruagem. Ela havia enjoado na
viagem pelo mar. Seu rosto suava e, esporadicamente, ela colocava
a cabeça para fora para vomitar. — Eu. Odeio. Navios.

A presença de Willow ainda me deixava nervosa. Eu odiava


ter alguém que soubesse com exatidão o que eu estava pensando o
tempo todo. E ela sabia disso, obviamente.

Não havíamos nos falado direito desde a coroação, eu a usei


apenas algumas vezes para avaliar o que certas pessoas estavam
pensando sobre a minha tomada do poder. O que descobri não foi
uma grande surpresa, no entanto.

Eu já estava preparada para me ver diante de um reino


poderoso e suntuoso, mas, ainda assim, me surpreendi. Até as
casas dos mais pobres eram bonitas, simples, mas bonitas. A
cidade era extensa e movimentada, maior do que qualquer uma que
já tivesse visto. Não conseguia nem imaginar qual seria a população
daquele local. Isso me fez pensar no tamanho do exército do
Grande Rei.

Se alguém me dissesse que cabiam cinco Umbras em


Tephos, popularmente chamado de O Grande Reino, eu não
duvidaria.

Deixei a carruagem quando paramos em frente ao maior


palácio que eu já tinha visto. As torres pretensiosas pareciam querer
tocar o céu. Olhei para cima e pedi aos Deuses, que ainda não tinha
certeza se de fato acreditava que existiam, que me dessem sorte
nos próximos dias.
— Sem vinho dessa vez — disse à Willow antes de
adentrarmos o salão. — Preciso que se concentre.

Ela fez cara feia, mas não discutiu.

A música escapava por baixo da enorme porta à nossa


frente.

O jantar havia começado poucas horas depois de chegarmos.


Tivemos tempo apenas de nos instalar no grande palácio e nos
arrumar. Eu usava um vestido dourado que combinava
perfeitamente com a coroa. Por mais bela que fosse, ainda não
havia me acostumado com o peso em minha cabeça.

— Estou concentrada, mas, quanto mais pessoas e barulho


no salão, mais difícil fica para mim. E você precisa parar.

— Parar de quê?

— De ficar gritando.

— Não estou gritando — respondi em um tom extremamente


normal.

— Seus pensamentos estão. — Ela colocou a mão direita na


testa de forma um tanto dramática. — Você está sempre tão…
pulsante. Me dá dor de cabeça.

Eu parei, a fitando. Não sabia ao certo se deveria ficar


ofendida.

— Bem, não há nada o que eu possa fazer sobre isso.


— Pare de pensar por um momento, dê uma relaxada. — Ela
jogou as mãos para cima, exasperada. — Beba um vinho, sei lá.
Curta a noite.
Eu pisquei para ela. Estava prestes a conhecer o maldito
Grande Rei, o homem que, de certa forma, controlava todos nós. E
havia acabado de usurpar um trono. Ele me avaliaria naquele
evento, e eu precisava de sua aprovação.

Cheguei a abrir a boca, mas não precisei dizer nada.


— Eu sei. — Ela assentiu, compreendendo. — Tudo bem,
vou focar.

Abri a boca mais uma vez e, de novo, fui interrompida.


— E, principalmente, no Grande Rei. Não se preocupe. Sério.

Às vezes — bem raramente —, era vantajoso que ela


pudesse ler a minha mente. Poupava-me de dizer muitas coisas.
Minha presença foi anunciada como disseram que seria; era
assim com todos os regentes. Um homem bem trajado exclamava o
nome depois de duas batidas em um sino.

Praticamente todas as cabeças se viraram em minha direção.


De certa forma, todos estavam ali por minha causa. Sempre
que um novo regente era coroado, havia uma cerimônia em Tephos
providenciada pelo Grande Rei. Era parte do ritual de passagem.
Sarkian havia passado pelo mesmo.

Eu achei que meu coração fosse explodir. Senti-me


levemente tonta e torci para que não desmaiasse bem ali. Era a
primeira vez que eu estava diante de tantos reis e rainhas. E era a
primeira vez que todos aqueles líderes estavam me vendo como um
deles.

A música continuava e certas pessoas ainda conversavam,


mas foi nítido quão silencioso tudo ficou conforme eu atravessava o
salão.

Eu estava sendo analisada. Julgada. Criticada.


As mesas compridas estavam expostas ao longo do suntuoso
salão. Em cada uma delas se encontrava o líder de seu reino,
alguns de seus respectivos súditos de importância e até
soldados. No centro do salão, o trono se encontrava vazio. O
Grande Rei compareceria depois que todos tivessem chegado.

Dirigi-me até a minha mesa acompanhada de Willow, Bax,


Allegra e, um pouco mais atrás, alguns soldados.
Aos poucos, os sons voltaram a preencher o ambiente, e fui
ficando menos tensa.

O salão era gigantesco, maior do que qualquer outro que eu


já tinha visto ou sonhado. Havia dezenas de enormes lustres
espalhados ao longo do amplo ambiente. As pilastras e várias
outros ornamentos eram revestidos em ouro.

Senti a minha pele queimar e não precisei me perguntar o


porquê. Escolhi não encará-lo de propósito. Sua mesa estava do
lado oposto do salão.

— O Rei Sarkian está olhando para cá — murmurou Allegra


perto do meu ouvido.
Uma criada se inclinou ao meu lado, enchendo a taça de
vinho, e logo dei duas grandes goladas. Passei os olhos pelo salão,
ignorando propositalmente a mesa de Sarkian, apenas a
observando pela visão periférica.
A Rainha Astoria estava entretida em uma conversa, era a
única outra rainha dali. Já tinha ouvido falar dela e os boatos não
fizeram jus à sua presença. Não que fosse extremamente bela,
talvez não fosse nem mesmo bonita. Tinha cerca de quarenta anos,
o que as sutis rugas abaixo dos olhos e alguns poucos fios grisalhos
acusavam. Mas ela tinha um magnetismo natural. Seus movimentos
eram confiantes e seu olhar, penetrante. Seu nariz era
predominante, o que apenas reforçava a sua imagem forte, e sua
pele parecia uma obra de arte; desenhos coloridos e vivos subiam
pelos seus braços expostos. Algumas outras pessoas de sua mesa
também tinham a pele pintada — fazia parte de sua cultura, quanto
mais desenhos pelo corpo, mais honra —, mas nenhuma como ela.

Passei os olhos pelo resto dos reis presentes, até que não
consegui evitar. Meu olhar pousou em Sarkian.
Minha atenção era completamente sugada por ele. Como em
qualquer cômodo ou situação, podia não ter meus olhos diretamente
nele, podia estar até mesmo de costas para ele, mas tinha total e
plena consciência dele.

E o Rei Das Trevas também tinha os olhos em mim. Ou eu


supunha que sim. Ele usava a sua usual máscara cerimonial, aquela
que nos lembrava que ele era o homem mais poderoso de Khrovil e
a mesma que ele havia arrancado do rosto do próprio pai depois de
ter-lhe cortado a garganta. Sentado despojadamente na cadeira, ele
tinha as longas pernas esticadas e os joelhos cruzados.

Sentada ao seu lado direito, estava uma bela mulher. Tão


bonita quanto Despinna, mas de uma forma completamente
diferente. Aquela mulher era a definição de esguia, longas pernas e
cabelos escuros raspados rente ao couro cabeludo. Os ossos de
sua bochecha e mandíbula eram tão afiados, que eu tinha a
impressão de que eram capazes de cortar, e sua pele era negra de
um belo tom caramelo-escuro que parecia brilhante se visto de
perto. Sua beleza tinha o mesmo efeito hipnotizante de Sarkian. E
os dois, altos, vestidos como anjos negros e extremamente belos,
eram uma visão e tanto.

Mesmo sendo o líder mais jovem depois de mim, Sarkian


parecia muito adequado e confortável em seu novo posto de rei.
Como se tivesse nascido para isso. Como se não fosse o segundo
filho de um rei, e sim o primeiro. Perguntei-me se ele sempre
planejou isso, se sempre soube que um dia tomaria o trono.

Ele não desviou o olhar, e eu resisti à vontade de remexer-me


na minha própria cadeira.

Na última vez que nos vimos, eu estava contra a parede e ele


tinha a boca na minha.

— Willow.

— Uhm?

Olhei para a minha direita e a encarei. A garota tinha os


lábios no que parecia ser um bolinho doce.

— Rei Sarkian.
— O que que tem? — Ela indagou com a boca cheia.
— No que ele está pensando?

— Ah. — Ainda mastigando, ela levantou a cabeça e o


encarou por um momento. Depois, se voltou para mim, engoliu com
dificuldade e disse: — É tão difícil lê-lo, ainda mais com a máscara.
E é… escuro.
— Como assim?

— Os pensamentos dele.

Aquilo me fez hesitar por um instante.

Olhei para Sarkian mais uma vez. Ele tinha um dos cotovelos
apoiados nos braços da cadeira e o queixo descansando na mão
direita. E ainda me fitava.

Poderia apostar que fazia de propósito. Talvez soubesse o


quanto seu olhar me incomodava.

— Tente com mais afinco, então — pedi à Willow.

Eu não sabia o que estava procurando enquanto o fitava,


talvez uma indicação de que aquela noite havia de fato acontecido,
que não havia sido um sonho. Ou melhor, um pesadelo.
Porque Sarkian Varant havia me beijado. Ele se inclinou
primeiro e me beijou como se me quisesse. Ele me beijou como se
me odiasse.

Beijou-me como se odiasse me querer.

E, ainda assim, olhando para ele do outro lado do salão, era


como se eu estivesse perdida em um enigma.
A mulher ao seu lado aproximou o rosto de seu ouvido por
um momento, dizendo alguma coisa. Demorou um instante, mas ele,
por fim, desviou o olhar do meu para encará-la.

Algo se remexeu na base do meu estômago.

De repente, o barulho de talheres batendo me tirou dos


devaneios.

Olhei para o lado, e Willow não fitava Sarkian. Ela me


encarava com os olhos arregalados e a boca meio aberta.

— Vocês se beijaram.

Eu abri a boca, mas nada saiu. Fui pega de surpresa.

Willow havia lido a minha mente, não a dele.

Merda.

— Vocês se beijaram! — Ela disse ainda mais alto.

— O quê? — Allegra, notando a movimentação, indagou à


minha esquerda.
Merda!

Não adiantava mentir para Willow, então nem me dei ao


trabalho.

— Fala baixo! — pedi em um fio de voz.

— E você gostou!
MERDA.

Pisquei um par de vezes e engoli em seco.

— Willow, você não...


— Você gostou. — Ela acusou novamente. Seus olhos azuis
nunca me pareceram tão grandes e penetrantes, era como se ela
estivesse dissecando a minha alma. — Se sente atraída por ele!

Àquele ponto, a garota estava gritando, e eu tive que resistir


à vontade de estrangulá-la.

— Atraída? De quem estão falando? — Allegra indagou.


— Willow, se você não falar baixo, eu juro…

Ela balançou a cabeça.

— Meus Deuses, você realmente se sente atraída por ele...

— Alguém pode me dizer o que está acontecendo?

Virei-me para Allegra.

— Willow está bêbada.

— Ela beijou o rei!

Allegra quase se engasgou.

— Que rei?!

Willow estava prestes a abrir a boca. Uma criada se agachou


ao nosso lado mais uma vez para servir o vinho, e eu quase a
acertei ao avançar e tapar a boca de Willow.

— Cala. A. Boca. — Eu pronunciei devagar e com o rosto


bem próximo ao dela.

Sabia que aquela não era uma cena muito agradável para
uma rainha, mas precisava impedi-la. Não queria que Allegra
soubesse, muito menos uma criada aleatória.
Aquele segredo era meu.

Meu obscuro e terrível segredo.

Meu coração batia acelerado e meu corpo estava quente de


raiva. Queria matar a Willow. E tive certeza de que ela leu isso
porque seu rosto se tornou sério aos poucos, abandonando a
expressão de espanto.

O choque do entendimento me acertou com força.

Eu me sentia atraída por Sarkian. E precisei de Willow para


me atingir com a verdade cruel. Achava que, no fundo, eu já sabia
disso, mas estava em negação. Talvez estivesse tentando achar
uma explicação para isso porque não fazia o menor sentido.

E escutar em alto e bom tom o que eu estava


desesperadamente tentando negar e esconder me atormentou.

Senti nojo do sentimento. Vergonha. Como eu podia me


sentir atraída por alguém como ele? Como eu podia me sentir
atraída por alguém que eu seria capaz de matar se tivesse a
oportunidade?

E seria isso atração de fato? Ou algum tipo de fascinação


distorcida?

Seria o ódio tão grande que estava deixando meus


sentimentos nebulosos?
Deuses.

Recolhi meu braço, mas mantive meu olhar preso no dela.

— Me exponha assim de novo e…


— E o quê?

Ela me encarava fixamente, esperando por uma resposta.


Porque, mesmo que eu não dissesse, pensaria. E Willow queria me
testar, saber do que eu era capaz.

— Você sabe o quê — respondi, sem precisar me prolongar.

Ela leu nos meus olhos e, por fim, recuou.

Aquele foi o momento em que o sino tocou.

Mais grave daquela vez. Mais alto.

O Grande Rei foi anunciado.


capítulo 3

O Grande Rei não era grande apenas no sentido de poder,


era também em seu físico. Alto e gordo, o Rei Selous devia ter mais
de um metro e oitenta de altura e cerca de cento e cinquenta quilos.
Seu cabelo era cheio e vermelho, assim como sua barba, que cobria
boa parte do rosto redondo.

Levantei-me para o poderoso anfitrião, assim como todos os


outros ali.
Ele andou sem pressa até o trono, atravessando o salão com
o rosto neutro. Usava uma coroa enorme, maior do que a de
qualquer outro.

A rainha não estava presente. Grávida de quase oito meses,


estava de repouso porque a gestação era de risco. Isso, pelo
menos, era o que os rumores diziam. O Grande Rei confirmou a
gravidez do segundo herdeiro, mas não falou sobre a situação
delicada da gestação. Podia apostar que não gostaria que o público
soubesse de qualquer fragilidade relacionada à vinda do novo
herdeiro. Mas, em palácios, até as paredes tinham ouvidos.

Olhos o acompanharam pelo longo momento que durou —


provavelmente, dado à quantidade de roupas pesadas que ele
usava — até que estivesse no trono. Quando, por fim, se sentou,
soltou um longo suspiro e passou o olhar pelo salão.
— Boa noite, amigos. — Sua expressão finalmente mudou e
ele sorriu. Ou, pelo menos, foi o que pareceu. — Obrigado a todos
por comparecerem.
Voltamos a nos sentar, e ele continuou:

— Estamos aqui por uma razão. — Ele, então, parou os olhos


em mim. — Rainha Cera.

Todo o salão se voltou para mim.

Acalme-se.
Eu me levantei. Minhas mãos tremiam, e rezei para que meu
nervosismo não fosse visível.

— Dez dias atrás, o trono de Umbra foi usurpado do Rei


Boran. — Sua voz era neutra, não havia emoção alguma na
declaração. Nem aprovação nem censura. — Em uma tomada
surpreendente, porém válida pela lei e pelos Deuses.

Um criado o entregou uma taça de vinho, e ele a ergueu.

— Amanhã, vamos realizar a iniciação, mas hoje, vamos


apenas aproveitar a noite!

Todos ao redor, inclusive eu, pegaram suas taças e as


levantaram.

Quando finalmente voltei a me sentar, inspirei fundo.

— No que o Grande Rei está pensando? — perguntei à


Willow.

— Não sei.

— Não sabe?
— Não.

Ela estava emburrada. Eu a havia repreendido e, como uma


criança, Willow não lidava bem com isso.

— Pode tentar com um pouco mais de boa vontade? Isso é


importante, Willow.

Ela fixou o olhar nele por uma fração de segundo até que
disse:

— A roupa que está usando está apertada. Ele está


incomodado e com calor.

Uma onda de decepção caiu sobre mim.

— Só isso? — insisti. — Nada sobre mim?


Eu não sabia dizer se ela estava falando a verdade.
Provavelmente, não. Willow conseguia ser extremamente petulante
quando queria.

— Só isso.

Deixei de lado. Não conseguiria tirar nada dela naquele


momento. Mas no dia seguinte, na iniciação, não aceitaria aquela
resposta.

— O que vai precisar fazer nessa iniciação? — Allegra


perguntou.

Tomei um grande gole da minha taça de vinho antes de


encará-la.

— Vou ter que flechar e, possivelmente, matar alguém.


— Majestade, deseja alguma coisa? — Allegra perguntou,
parada no meio do cômodo.

O aposento que nos foi designado era quase do tamanho do


meu quarto em Umbra. Na verdade, estava mais para uma casa;
havia uma sala, um banheiro gigantesco e uma sacada. O cômodo
era dividido em dois e ligado por uma porta suntuosa. A minha cama
ficava no espaço principal, e havia mais duas camas para Willow e
Allegra do outro lado. Bax e outros dois soldados estavam fazendo a
vigia atrás da porta, no corredor.

— Apenas que pare de me chamar de majestade quando


estamos a sós.

— Eu quero um chá. — Willow, que se esquentava em frente


à lareira próxima à minha cama, disse antes que eu pudesse
dispensá-la.
Allegra não hesitou em obedecer, o que me incomodou. Tive
vontade de lembrar Willow de que Allegra não era sua criada, mas
estava cansada demais. Não era trabalho de Allegra servir chás à
Willow. A ninguém, na verdade. Allegra não era mais uma criada,
mas era doce demais para negar, então rapidamente se prontificou.

Eu não gostava da forma como Willow tratava Allegra.


Pessoas como Willow tiravam proveito da bondade e inocência de
pessoas como Allegra.
Olhei de cara feia para Willow, mas a garota não pareceu
notar. Ela estava se adaptando à nova vida de luxos muito mais
rápido do que eu imaginava.
Allegra voltou alguns minutos depois e entregou o chá para
Willow.

— Obrigada, Allegra — agradeci.

— É, valeu. — Willow se pronunciou depois de um gole na


xícara.
Não estava com sono, então fiquei encarando o teto
enquanto Willow bebericava o chá.

— Você me falou sobre outros como você — disse,


quebrando o silêncio. — Onde estão?

— Por que quer saber?

Não respondi nada, não precisava.


Um momento se passou e ela concluiu:

— Quer usá-los.

— Sim — confessei. Não adiantava mentir.


— Inacreditável. — Sua voz saiu afetada.

Sentei-me na cama e a encarei.

— Por quê? Olhe para você, Willow. — Indiquei com um


movimento de mão em sua direção. — Com a barriga cheia e
morando em um palácio. É tão ruim assim ser usada?

Ela desviou o olhar do meu e encarou a lareira. Ficou em


silêncio.
— Não pense nisso como eu os usando — continuei. —
Pense nisso como uma troca. Vou usar os poderes deles e eles vão
poder gozar do meu, assim como você faz.

Mais um longo momento de silêncio.

Até que ela finalmente voltou a me encarar, séria.


— Um quarto na ala principal.

— O quê?

— Te dou os nomes se você me der um quarto na ala


principal.

— Tudo bem.
— E uma criada pessoal.

Aquilo me faz desgostar um pouco dela, mas não me


surpreendeu.

Inspirei fundo e assenti.


— Eu me escondia com um grupo em uma casa abandonada
perto da Igreja Santini.

— Preciso de nomes, Willow.

Ela demorou um pouco para dedurar os amigos, mas não


muito.

— Shivon Galene, Rooke, Benji Orenda, Brasa e Kit.


Repeti os nomes em minha cabeça algumas vezes.

— Se estiver mentindo, nada de quarto ou criada — declarei.

— Não estou mentindo.


— Tudo bem — respondi, e voltei a me deitar. — Obrigada.
Ela não disse mais nada, e um novo silêncio tomou conta do
quarto. Meus olhos voltaram para o teto. Ainda nada de sono. Eu
sabia que precisava descansar para o dia seguinte, mas meu corpo
continuava em alerta.
— Ele é um caído. — Ela soltou de repente.

Não disse seu nome, mas não precisava.


Não respondi, surpresa demais com sua afirmação um tanto
aleatória.

— E você já sabia — acusou com a voz fina em surpresa. —


Por que não me contou?

Eu suspirei. Estava prestes a abrir a boca, mas ela se


adiantou:

— Não confia em mim.

— Não começa — interrompi. — Não é pessoal. Em minha


posição atual, é impossível confiar em qualquer pessoa.

Não sei se a resposta a agradou ou a convenceu, mas ela


deixou para lá. No fim das contas, era mesmo verdade.

— Você sabe me dizer qual é o poder dele? — indaguei,


repleta de esperança.
— Não faço a mínima ideia. Te disse, ele não é tão fácil de
ler.

Suspirei, frustrada. Aquilo estava me matando.

— Dizem que os caídos não têm sentimentos, que não amam


ninguém. — Eu divaguei depois de vários minutos de completa
quietude. — É verdade?
Achei que a pergunta a havia pegado de surpresa porque
demorou uns instantes para que respondesse.

— Não. — Ela pausou. — Bem, nós não amamos… da


mesma forma. Temos vínculos com as pessoas, mas não as
amamos. — Mais uma pausa. Dessa vez, mais longa. — Com
exceção de uma.

Franzi o cenho para a escuridão.

— Como assim?

— Minha avó me contou que amamos só uma vez na vida,


apenas uma pessoa. Eles chamam de illyrium. É basicamente um
vínculo, uma ligação. Depois que você encontra essa pessoa e…
sente, nunca mais sente por ninguém.

Aquilo me intrigou. Eu a encarei.

— Por quê?

Ela deu de ombros.

— Alguns dizem que foi uma maldição, outros dizem que é


simplesmente de nossa biologia. Alguma coisa química.
Aquela conversa soava mais como uma lenda. Como assim
ser fisicamente incapaz de amar mais de uma pessoa durante toda
a vida?

— Me parece besteira.

— Não é.
Willow respondeu rápido demais, o que me levou a
questionar:

— Você já sentiu? — Nada de resposta. — Quem é ele? —


insisti.

— Não importa. Não estamos mais juntos.


As palavras duras me fizeram hesitar. Mas eu estava curiosa
demais para não perguntar mais.

— Por quê?

— Ele não conseguiu lidar… — Willow se remexeu na


poltrona e desviou o olhar. — Não conseguia suportar o fato de que
eu podia ler cada pensamento, cada intenção ou vontade em sua
mente. — Voltou a me fitar. — A maioria das pessoas não
consegue.

Eu conseguia compreender aquilo. Não era nada fácil ter sua


intimidade exposta de tal maneira. Eu odiava que Willow pudesse
me ler daquela forma.
Ela sorriu. Um sorriso um tanto amargo.

— Você odeia um pouco mais do que a maioria, no entanto.


— Willow afirmou.
Devolvi o sorriso fraco.

— Eu não posso controlar, sabe? Às vezes, mesmo quando


não quero, é muito alto. — Ela suspirou. — Com você é assim
normalmente.
— Não faço de propósito. Acredite, se eu pudesse, você não
leria absolutamente nada.

— Eu sei. Mas estou me acostumando com sua presença. E


não são todos os pensamentos, são momentos e coisas
específicas.

Meu corpo tensionou um pouco.


— Tipo o quê?

— Sua raiva. — Ela pausou e, então, me encarou fixamente.


— Sua ambição.

As palavras me surpreenderam.

Não sabia o que falar diante daquilo, então apenas engoli em


seco e voltei a encarar o teto.

— Ainda o ama? — perguntei.

Ela demorou tanto tempo para responder, que pensei que


talvez não fosse dizer nada.

— Claro — disse, finalmente. — Sempre vou amar. Não


tenho escolha.

Quis dizer que sentia muito, por mais que eu não entendesse
o sentimento. Mas as palavras não saíram. Suspirei fundo e me
remexi na cama, tentando encontrar uma posição confortável.
Estava definitivamente na hora de dormir. Fechei os olhos e pensei
nos acontecimentos do dia.

Inevitavelmente, Sarkian veio à minha mente.


Seu olhar. A bela mulher ao seu lado. O nosso beijo na
sacada.

— É um erro. — Willow disse de repente, e me assustei.

Pensei que ela já tinha ido dormir.

Abri os olhos.

— O quê? — indaguei.

— O Rei Sarkian — respondeu, e só a menção do seu nome


fez meu coração errar uma batida. — Ele é… pior do que imagina.
Não consegui ler nada de concreto, mas, mesmo nebuloso…, é
tão…

Sua voz falhou.

— O quê?

A palavra foi como um sopro na escuridão:

— Sombrio.

Inspirei fundo e soltei devagar.

— Nada vai acontecer.

Ouvi a movimentação dela se levantando da poltrona.

— Sei que realmente acredita nisso, mas, quando disse


sobre seus pensamentos serem muito altos e pulsantes — sua voz
se afastou e ela parou na porta que separava nossos quartos —,
não era apenas raiva e ambição.

Fechei os olhos com força.


Sabia o que viria a seguir. Ela não precisava dizer, mas,
ainda assim, Willow finalizou:

— O que sente em relação a ele, seja ódio, desejo ou ambos


é... ensurdecedor.

Vergonha, indignação e decepção percorreram meu corpo


como uma corrente elétrica.
Um bolo se formou na minha garganta, mas consegui dizer:

— Boa noite, Willow.

— Boa noite, Cera.


Acho que nem mesmo a própria Usurpadora acreditou
quando disse

que nada aconteceria entre ela e o Rei das Trevas

Ela queria muito acreditar

mas era inteligente demais para isso


capítulo 4

— Já descobriram quem é? — perguntei para Willow e


Allegra.

O Grande Rei já estava sentado no trono. O sol descia do lá


do fora, e eu seria chamada em breve. Dali a poucos minutos, tiraria
a vida de alguém que não fazia ideia de quem era.
— Descobriram quem é quem? — Willow parecia confusa.

— Quem irei tentar matar, Willow. O homem que estou


prestes a enfiar uma flecha no coração.

— Ah. — Ela fez uma careta e desviou o olhar. — Isso.

— Então?

Willow balançou a cabeça, e eu a dispensei.

— Uma das criadas comentou que é um homem mais velho.


Parece que é prisioneiro tem muitos anos, mas só descobri isso. —
Allegra disse, quase como um em pedido de desculpas.

Não que importasse, tinha que acertá-lo de qualquer forma.


Mas uma parte de mim precisava desesperadamente que houvesse
uma razão remotamente coerente que não fosse apenas o simples
desejo do Grande Rei.

Eu não era uma assassina.


Como não?, minha mente devolveu. Como chamaria alguém
que envenenou uma pessoa? Que cortou a garganta de outra?

Fiz por necessidade.

Tudo o que fiz foi porque precisei fazer.

Talvez, se eu repetisse aquelas palavras o suficiente,


passasse a acreditar.

Alguém pisou no meu pé. Ou, pelo menos, foi isso que pensei
até olhar para baixo e ver a ponta de uma bengala. Subi um pouco
meu olhar, e o dono da bengala era uma figura pequena, curvada e
extremamente… velha.

Não fez reverência, o que não me surpreendeu ou ofendeu


devido à sua situação decrépita. Mas também não pediu desculpas
pelo esbarrão, muito pelo contrário. O que saiu de sua boca me
pegou completamente de surpresa.

— Ele matou a esposa.

Ele estava falando comigo mesmo?

Olhei para os lados antes de voltar a encará-lo.

— O quê?

— Posso ser velho, mas tenho um ouvido bom. O homem de


quem está falando, ele matou a esposa.

Pisquei algumas vezes.

— Como sabe? — perguntei, me virando para ele. O velho


tinha a minha total atenção naquele momento. — Quem é você?

Ele ajustou a bengala na mão enrugada.


— Lorde Mirvin Ohbell, Majestade. E, como disse, tenho
excelente audição. Deve saber melhor que ninguém que as paredes
de palácios são repletas de ouvidos.
Sobre aquilo ele definitivamente estava certo.

— Já presenciou esse tipo de cerimonia muitas vezes?

— Sim, Majestade. — Ele sorriu. Ou, pelo menos, foi o que


pareceu ao entortar a boca. — Como pode ver, estou neste mundo
há bastante tempo.

— E todos os regentes aos quais assistiu acertaram?

Ele pensou por um momento. Seu rosto se contorceu como


se buscasse na memória.

— Só vi pegar de raspão uma vez.

Eu inspirei fundo, um pouco decepcionada com a resposta.

— Talvez veja isso se repetir hoje à noite.

— Ruim de mira?
— Não é o meu ponto forte.

— E qual é o seu ponto forte?

Eu pensei por um momento.

— Facas. Acho.

Ele assentiu, inabalado.

— Se concentre no alvo e esqueça todo o resto —


aconselhou, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Faça
isso, e tenho certeza de que irá acertar. Boa sorte.
Ele já estava saindo, sem esperar por uma resposta.

— Obrigada — murmurei para suas costas curvadas se


afastando.

De repente, ele ajustou a bengala e virou o corpo


parcialmente.
— Ah — sobressaltou-se, como se estivesse se esquecido de
alguma coisa —, ela estava grávida.

Eu pisquei, confusa.

— A esposa estava grávida quando ele a matou.

E se foi antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa.

Cruzei o salão depois que meu nome foi anunciado. Estava


terrivelmente ciente de todos aqueles olhares poderosos em mim.
O Grande Rei, sentado em seu enorme trono, me esperou
atravessar o salão até estar diante de si. O silêncio tomou conta até
que não era ouvido um tilintar de taças. Precisei levantar o queixo
para encará-lo, já que o trono ficava sobre uma plataforma de pelo
menos um metro de altura.

A coroa já era minha, mas, sem a aceitação do Grande Rei,


era fortemente ameaçada. Ele tinha terras infinitas e o maior
exército já visto, a economia de todos os reinos girava ao seu redor.
O Reino de Tephos era a base e o ponto de equilíbrio para tudo e
todos.
Respirei fundo. Precisava me acalmar. Historicamente
haviam sido poucas as ocasiões em que o Grande Rei e os
anteriores a ele reprovaram a iniciação.

— Sua impressionante tomada do trono tem sido um tanto


comentada, Rainha Cera.

Já tinha ouvido falar de pessoas que acreditavam que eu


havia matado cerca de cinquenta soldados com as próprias mãos.
Outros acreditavam que eu não só havia matado o rei, como havia
lhe arrancado o coração do peito.

Eu sorri.

— Posso afirmar que algumas versões são apenas rumores,


Majestade.
— Claro. — Ele inclinou a cabeça para o lado ao me fitar. —
Quantos anos tem?

— Dezenove.

— É um tanto jovem. A regente mais jovem atualmente.

— Idade é apenas um número, Majestade. Você herdou o


trono apenas alguns anos mais velho que eu.
Meu argumento pareceu agradá-lo.

Um pequeno sorriso quebrou em seu rosto lentamente.


Então, ele suspirou fundo. De repente, se tornou sério.

— Meus inimigos serão os seus?


Eu assenti.

— Sim.
— Então, vá em frente. — Ele fez um breve movimento de
cabeça, e a porta do lado oposto do salão se abriu. — Prove.

Eu me virei.

O homem estava encapuzado, foi posto no centro do salão


por dois guardas. Ele não lutou, apenas manteve a cabeça
abaixada. Suas roupas não passavam de fiapos com manchas de
sangue seco.
Coloquei-me em posição ao passo que um guarda me
entregou uma suntuosa e enorme flecha com um arco. O material
era pesado em minhas mãos. Eu inspirei fundo.

Havia treinado nos dias anteriores em preparação para


aquele momento, mas não houve tempo o suficiente. Antes de me
tornar rainha, nunca havia segurado uma flecha. Garotas não
precisam de flechas em Umbra, precisam de vestidos bonitos.
Mas aquilo estava prestes a mudar.

Ergui a flecha e a coloquei em posição.

Aquela não era apenas uma cerimônia, era um teste, um


processo de iniciação. Eu receberia um prêmio depois, caso
acertasse o alvo e me provasse. Mas o verdadeiro prêmio, todos ali
sabiam que era a benção do Grande Rei.

Eu fechei um dos olhos e mirei no alvo. Meus dedos tremiam,


tornando difícil a precisão.
Ele estava do lado oposto do salão, cerca de cinquenta
passos. Mas, por causa dos dois enormes guardas e as mãos
atadas, o alvo não se movia, o que facilitava.
O silêncio era absoluto, escutava apenas a minha respiração.
Posicionei a flecha e puxei a corda do arco com a mão direita. Uma
gota de suor escorreu pela minha têmpora.
A tensão era puramente devido à vontade de acertar e me
provar. Não havia uma gota de hesitação em meu corpo em ferir
aquele homem, o que tornava tudo muito mais fácil.

Ele merecia.

Sentia todos os olhares sobre mim, mas apenas um deles me


faz desviar. Meu olhar deixou o alvo apenas por um segundo para
encará-lo.

Sarkian tinha os olhos em mim. Eu estava longe demais para


ver a sombra de suas íris por detrás da máscara. Mas encarei o
olhar como um desafio.

Voltei ao meu alvo, prendi a respiração e soltei a corda.

O primeiro som foi o assovio da flecha no ar.

O segundo foi o rugido de agonia do alvo.

Quando a flecha encontrou seu ombro, ele foi empurrado


para trás com a pressão. O homem caiu.

E eu finalmente voltei a respirar.


Não o matei. Um ferimento no ombro muitas vezes era
tratável. O que era uma decepção, eu havia mirado no coração. Mas
não importava. Eu acertei. Eu consegui.

Abaixei o arco e a flecha, sentindo os meus braços um tanto


dormentes.
E, então, ouvi o aplauso atrás de mim.
O Grande Rei.

Era o único som por um breve momento, mas, então, o resto


dos aplausos começaram devagar, hesitantes. Alguns até mesmo
desgostosos.

Os guardas ergueram o homem ferido e o retiraram conforme


eu passei o olhar pelo salão, analisando todos os regentes. E não
deixei de notar um deles em especial, o Rei de Kazeth. Tinha o rosto
mais indignado de todos. Enquanto ele batia palmas, não havia
nada de celebração no ato. Era difícil para ele.

Fiz uma nota mental para descobrir mais sobre aquele rei
mais tarde.

E claro, Sarkian Varant.

O que não era uma surpresa. Ele só me deu a graça de suas


palmas quando meus olhos o encontram. Suas mãos se levantam
devagar, tão despretensiosas que pensei que, talvez, ele de fato não
iria fazer. Foi um movimento lento e debochado. Suas palmas
cobertas por luvas bateram provavelmente três míseras vezes antes
de cessar.

— Parabéns, Majestade.

Virei-me para encarar o Grande Rei. Não sabia se ele parecia


satisfeito ou decepcionado, era um homem difícil de ler. Mas parecia
entretido.

— Obrigada — respondi, entregando o arco e a flecha para


um dos guardas.
— E como é de tradição, você pode fazer um pedido para
qualquer um dos regentes. Incluindo a mim. — Ele fez uma pausa e
sorriu. — Um presente.

Eu engoli em seco.

— Qualquer coisa?
Ele soltou uma risada. Um som abafado, rouco e um pouco
desagradável.

— É claro que esperamos que seja razoável, jovem rainha.

Mais cedo, eu havia me informado do que os regentes


costumavam pedir. Aparentemente, os presentes costumavam variar
bastante.

O antigo Rei de Kystramore pediu uma noite com a amante


do Rei de Vadronia. Fiquei chocada ao saber que ele concedeu.
Mas, ao que parecia, o Rei de Vadronia tinha muitas amantes e
aquela em questão não era sua favorita.

Outro pediu uma mesa de ouro maciço.

Outro, um pedaço específico de terra fértil.

Sarkian Varant pediu uma quantidade considerável de uma


matéria prima chamada álpago, que só era encontrada no Reino de
Derfir. Era mais forte e resistente do que aço, excelente para
fabricar armas.
Eu olhei em volta, para todos os regentes que me encaravam
em expectativa. E, inevitavelmente, meu olhar parou no Rei das
Sombras.
Seus dedos batiam no braço de sua cadeira em uma sinfonia
vazia. Sua mandíbula nunca me pareceu tão afiada. Em seu rosto
não havia expressão, mas em seus olhos, eu via o fogo brilhando
em desafio.

“Tome cuidado, muito cuidado, com o que vai dizer agora,


farren.”

Era um aviso silencioso porque, naquele exato momento em


que nossos olhares se cruzaram, ele sabia muito bem o que eu
estava prestes a fazer.

Eu me voltei para o Grande Rei.

Provocá-lo era um erro do qual eu estava muito ciente. E


muito contente em cometer.

— Diamantes.

— E de quem os deseja? — indagou o Grande Rei.

O silêncio pesou.

Senti seu olhar queimando sobre mim.

Uma pausa longa se deu antes que eu voltasse a abrir a


boca.
— Do reino que mais possui diamantes. — Lancei um
pequeno sorriso ao virar meu rosto e encará-lo. — Khrovil.
capítulo 5

Depois da iniciação foi servido um jantar repleto de


entretenimento. Dançarinos se apresentavam no centro do salão e
nobres dançavam ao som da sinfonia estimulante.

— O Rei parece indeciso — comentou Willow. — Ele achou


que ia errar. Acho que parte dele esperava que você errasse. Mas a
questão não é a sua idade, é que é uma mulher. — Isso eu já
imaginava. E continuou: — Mas gostou de sua atitude e conduta.
Parece que está disposto a… lhe dar uma chance.

Eu estava prestes a responder quando vi a figura pequena


com a bengala.

— Ei — chamei, me aproximando dele.

O velho se virou.

— Majestade. — Deu-me um sutil reconhecimento com a


cabeça. — Parabéns pelo lançamento.

— Obrigada. Mas acertei o ombro. Estava mirando no


coração.

— Mas acertou, é o que importa. E é menos uma morte em


sua consciência.

— A morte de um assassino de uma mulher grávida não


pesaria na minha consciência — rebati honestamente.
Ele ficou em silêncio por um momento. A parte de baixo de
seu rosto se moveu no que eu suspeitava ser algo parecido com um
sorriso.
— O que foi? — indaguei.

O homem desviou o olhar do meu e encarou a bengala por


um instante.

— Ele não matou a esposa grávida.

Pisquei um par de vezes.


— Como assim?

— O homem que você acertou não matou ninguém. Pelo


menos, não que eu saiba. — Deu de ombros.

— Inventou aquilo?! — Minha voz era pura incredulidade. E


ele apenas assentiu. — Você mentiu para mim?

Era para ser uma pergunta, mas soou muito como uma
acusação.

— Eu te ajudei a acertar o alvo, mas se deseja ver dessa…


— Você mentiu — repreendi com a voz levemente alterada.
— Para uma rainha.

Mas ele não parecia culpado. Nem mesmo abalado pelo fato
de ter sido pego.

— Uma mentira insignificante — disse simplesmente.

Eu estava em choque com o desenrolar daquela conversa e


com aquele senhor estranho que provavelmente não batia bem da
cabeça. Não iria discutir com um homem que sem dúvidas não era
completamente são.

Respirei fundo.

— Me conte a verdade, então. Pelo menos me deve isso. O


que aquele homem fez?

Ele deu de ombros.

— Não faço ideia.

Eu abri a boca, mas a fechei logo depois.

A cena da flecha atravessando o desconhecido voltou à


minha mente e uma sensação ruim se formou em meu estômago.

— Mas não precisa ficar abalada. Não o matou, consciência


limpa. — Ele sorriu, satisfeito consigo mesmo. — Viu?

Semicerrei os olhos.
— E se eu o tivesse matado?

E se eu tivesse matado um homem completamente inocente?


Porque era isso o que eu pretendia quando ergui aquela flecha.

Eu mirei para matar.

Ele pensou por um breve momento.

— Eu provavelmente não teria te contado a verdade.

— Está dizendo que mentiria para mim de novo?

— Certas mentiras fazem mais bem do que mal.

— Não sei se concordo.


— Bem — ele ajustou a sua bengala e suspirou de forma
dramática —, você ainda é jovem demais.
Ele não falava comigo se estivesse diante de uma rainha. Era
brutalmente honesto — exceto quando estava mentindo
descaradamente, claro — e beirava a indiferente. Isso era enervante
e ao mesmo tempo fascinante.

— Fez para me ajudar, então? — perguntei, com sarcasmo


no tom.
— Sim. Com a consciência limpa, ficou mais tranquila e
motivada a acertar o alvo.

Eu não podia discordar daquilo. De fato, tinha me auxiliado


no momento em que puxei a corda da flecha.
— Por que me ajudou? — Ele deu de ombros diante da
minha pergunta. — Pretende ganhar algo com isso? Porque não
planejo presentear alguém que mentiu para mim.

— Não desejo nada, Majestade.

— Então, por que me ajudou? — insisti.

— Preciso ter um motivo?


— Ninguém faz nada pela pura bondade do coração. Todos
têm um motivo.

Ele sorriu. Daquela vez, foi um sorriso diferente. Mais atento,


menos invasivo.

— Talvez não seja tão jovem assim.


— Ainda não me respondeu.
Seu sorriso foi embora. Ele olhou para longe de mim por um
instante e, quando voltou a me encarar, suspirou.

— Você me lembra alguém.

Foi tudo o que disse.


— Quem? —perguntei, curiosa.

— Alguém que conheci há muito, muito tempo.

E, sem me dar a oportunidade de dizer mais nada, ele se


retirou.

Mirvin era extremamente furtivo para alguém tão velho e


lento.
Naquele exato momento, Sarkian Varant atravessou o salão a
alguns metros de mim. Eu o tinha perdido de vista depois da
iniciação, depois de ter-lhe tomado uma quantidade obscena de
diamantes.

Mas agora, ele não estava sozinho. Aquela mesma mulher do


dia anterior falava alguma coisa próxima ao seu ouvido. Tinha os
dedos finos envolta de uma taça de vinho, a qual entregou ao
Sarkian.
Foi um movimento natural, quase íntimo. Ela se inclinou um
pouco e colocou a boca próxima ao rosto dele, tão próxima que eu
tinha certeza de que podia sentir seu cheiro. Ele assentiu para o que
quer que ela tivesse dito, virando a cabeça sutilmente para a mulher.

Fitei seu perfil, a linha de sua mandíbula e, logo acima, a


máscara negra. Fiquei hipnotizada com a simples interação, porque
Sarkian Varant estava permitindo que alguém estivesse tão próximo
dele. Ele sempre me pareceu tão inalcançável. Mas lá estava ele,
permitindo que ela se inclinasse e exigisse toda a sua atenção.

Forcei-me a desviar, mas não fui rápida o suficiente. O rosto


dele se moveu e os olhos caíram diretamente em mim. Rubor cobriu
minha face ao ser pega encarando. E fiquei com raiva de mim
mesma. Mas agora era tarde demais, então fiz o melhor para
sustentar seu olhar.

Um grupo de nobres atravessou na minha frente, e eu o perdi


de vista por um instante. Quando eles finalmente passaram, Sarkian
já não me encarava. Ele estava deixando o salão. Eu já o conhecia
o suficiente para saber que provavelmente iria sair para fumar e se
distanciar das pessoas.

Procurei por Willow e a encontrei ao lado da mesa de


vinhos. Tirei a taça de sua mão e recebi uma careta em troca, mas,
antes que ela pudesse reclamar, eu disse:

— Me encontre no jardim em cinco minutos.


Ela franziu a testa.

— Por quê?

— Preciso que espie enquanto converso com o Sarkian. Do


lado de fora, vai conseguir ler sua mente sem interferências.

— Ok. — Willow respondeu, nada entusiasmada.


— Cinco minutos — repeti. — E se esconda bem e seja
silenciosa. Caso contrário, ele vai te notar.

Deixei o salão atrás dele. Eu o segui para fora do palácio a


uma distância segura, e adentramos a noite estrelada enquanto
atravessávamos o jardim.

Mas Sarkian não parou do lado de fora. Ele permaneceu se


aprofundando no enorme jardim.

Meu coração começou a bater mais rápido. A música atrás de


mim foi ficando cada vez mais distante, e eu sentia frio, mas
continuei.
De repente, ele se misturou à escuridão, e eu o perdi
completamente de vista.

Merda.

Dei mais alguns passos até notar que estava cercada apenas
por árvores e a centenas de metros de distância do palácio.

Olhei em volta. Estava escuro demais. A única iluminação era


graças à lua cheia juntamente com a luz distante que emanava do
palácio.
— Descuidada demais para uma rainha. — Sua voz
reverberou por todo o meu corpo como uma corrente elétrica. —
Nenhum outro líder daquele salão teria sido estúpido o bastante
para ficar a sós comigo.

Virei-me na direção do som de forma abrupta, mas não


encontrei nada.

Eu deveria estar com medo, mas não estava. Não sabia o


que estava sentindo, na verdade. Meu coração palpitava
rapidamente e adrenalina pulsava em meu corpo.
Onde ele está?
— Posso ter deixado guardas à espreita — rebati para as
sombras.

Não via nada além de árvores banhadas pela escuridão.

Houve uma breve pausa. Só escutava a música distante e o


meu coração batendo alto.

— Não deixou.

Estava perto. Sua voz grave me alcançou sem esforço.

— Como tem tanta certeza? — devolvi.

Girei de novo, o procurando. Sentia-me em desvantagem,


exposta.

Odiei aquele jogo.

— Porque sei o quanto subestima a minha vontade de feri-la.

Engoli em seco, tentando ajustar meu olhar à noite para vê-


lo.
— O que é um erro. — Ele continuou. — Um grande erro.

— Apareça. — Minha voz soou mais alterada e frustrada do


que pretendia.

Estava completamente perdida na escuridão. E começava a


entender a magnitude da minha estupidez ao escolher encontrá-lo
completamente sozinha, distante de todos os meus guardas.

— Isso é uma ordem, Majestade?


Havia uma sutil, mas perceptível mudança de tom na sua
voz. O sarcasmo deu espaço para um toque de desprezo.
— Tem perdido o sono com esse fato? — provoquei, na
esperança que isso o fizesse aparecer. — Quão miserável está por
saber que somos iguais? Está te corroendo a ponto de perder o
sono?

O silêncio retornou e permaneceu até se tornar tortura.

Vá embora.

Vá embora enquanto há tempo, pensei.

— Aqui, Majestade. — Sua voz reverberou num sussurro, me


assustando.

Girei abruptamente ao som da sua voz mais uma vez.

A escuridão finalmente se moveu entre as árvores.

Levou um tempo. 5 segundos, talvez menos.

Para mim, pareceu um século. Tive medo de que meu


coração fosse explodir.

Mas aconteceu.
Sarkian apareceu diante de mim.
capítulo 6

Estava escuro, e ele ainda estava coberto de sombras. Mas


eram sutis o suficiente para que a sua imagem me arrebatasse.
Estava sem máscara, o que tornava tudo mais intenso.

Porque naquele momento, eu vi. Naquele momento, eu


entendi.
A sua aparência não era magnética apenas porque era bela,
era porque era sobrenatural. Ele não era humano. Nenhuma pessoa
tinha aquele tipo de aparência, o tipo que fazia você querer se
aproximar e observar por horas, como uma pintura valiosa e
abstrata. Querendo absorver, querendo compreender. Sarkian era
místico. E cada fio de seu cabelo entregava isso.
Como não tinha visto antes?

— Enfim, a sós. — Ele constatou com uma faísca de diversão


sádica brilhando em seus olhos.
Precisei de alguns segundos até encontrar a minha voz.

— Está esperando uma reverência? Porque jamais irá tê-la


de mim novamente. Somos iguais agora.
O comentário pareceu diverti-lo.

— Você acha que isso vai me impedir de fazer o que bem


entendo? — Ele colocou as mãos nos bolsos da longa capa negra e
deu três passos à frente. — Acha que seu novo título me assusta?

— Temos um tratado de paz. Deseja mesmo quebrá-lo?

Agora não era apenas uma guerra entre mim e ele, era uma
guerra entre reinos.

Sua feição se transformou ao dizer:

— Paz é a última coisa que pretendo manter com você.

Engoli em seco.

Eu ainda tinha as marcas das queimaduras em meus pés,


daquele dia em que ele havia me feito atravessar sobre o fogo.
Ainda tinha a memória clara de quando ele havia me deixado a noite
toda amarrada e suspensa em um quarto escuro. E acima de tudo,
eu ainda era capaz de sentir seus lábios nos meus, daquela noite na
sacada.

— Seus súditos sabem o que você é?

Ele semicerrou os olhos.

— E o que eu sou?
Um monstro. Uma aberração. Um demônio.

— Um caído.

Ele não falou por vários segundos. Sarkian não reagiu à


acusação, apenas a absorveu.

O silêncio se tornou insuportável novamente. Parecia


palpável. Era tenso, desconfortável e pesado.

Eu pensei naquela noite. Na sacada. A faca em seu pescoço.


Então, seus lábios nos meus.

— É uma acusação e tanto.

— É um fato. Eu vi.

Eu senti.

Seu sangue negro em meus lábios.

— Acho que muitas pessoas estariam interessadas em saber


essa informação.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Isso é uma ameaça?

— É um aviso. Estamos jogando com a mesma quantidade


de cartas agora. Não sou uma súdita qualquer, sou uma rainha.

Sarkian estalou a língua e pendeu a cabeça levemente para a


esquerda ao me fitar.

— Muita coragem para alguém que está a sós comigo. E


alguém que acabou de me tomar dezenas de diamantes. Ninguém
te ensinou a não cutucar uma onça com vara curta, farren?

— Sabe quais seriam as consequências de matar uma


rainha, não é? Guerra.
Ele quase sorriu. Quase.

— Não ouviu falar? — O Rei das Trevas deu mais um passo


à frente e tive que resistir a vontade de recuar. — Eu sou um grande
amante da violência.

— Como escondeu esse tempo todo?


— Matei todos que chegaram remotamente próximos de
descobrir.
— Você já teve muitas oportunidades para me matar, Sarkian,
mas não o fez.

— Exceto que, agora, as coisas mudaram. Tentou cortar a


minha garganta. Ou esqueceu daquela noite?
— Jamais seria capaz de esquecer daquela noite.

A forma como as palavras deixaram a minha boca fizeram


com que eu me arrependesse.

Silêncio pesou entre nós mais uma vez.

A verdade chegou a ser dolorosa ao sair de meus lábios de


forma rouca.
Será que ele pensava naquilo tanto quanto eu? Será que
havia sido atormentado em seus pesadelos também?

Um pensamento assustador bateu contra mim como um


banho frio.
E se ele fosse como Willow? E se fosse capaz de saber
exatamente o que se passava em minha cabeça?
Deuses.

— Qual é o seu poder?


— Acha mesmo que vou te contar?

— Por que não?


Ele entortou sutilmente a cabeça ao me fitar.
— Qual seria a graça?

— Lê mentes? — atirei.

Sarkian não respondeu. Seus olhos brilharam em uma faísca


de diversão sádica que não me dizia absolutamente nada.
— Quando ela vai se juntar a nós? — Ele indagou, de
repente.

— Quem?

— Sua amiga.

Eu congelei.
Ele sabia. Claro que sabia.

Pensei em minhas opções, mas não vi nenhuma. Não


adiantava mentir.

— Pode sair — disse à Willow.


Demorou um momento, mas a garota aos poucos surgiu na
escuridão. Incerta, ela se aproximou.

Sarkian a analisou e, apesar de não sorrir, seu olhar brilhou


em diversão em vez da raiva que eu antecipava.

— Essa é a sua grande protetora para o caso de eu atacá-la?

Preferi que ele pensasse que esse era o plano. Não fazia
ideia de qual poderia ser a sua reação se soubesse do poder de
Willow.
— Não confio em você.

— Bom, o sentimento é mútuo.


Ele torceu a cabeça, e eu rezei para todos os Deuses que
Willow estivesse bem concentrada naquele momento, porque os
olhos dele me fitavam com aquele brilho enigmático que eu estava
desesperada para desvendar.
— O que está tramando, farren?

Ele, então, moveu a cabeça lentamente até Willow e deixou o


seu olhar penetrante ali. Os segundos se tornaram séculos e,
naquele espaço de tempo, eu vi suas íris mudarem.

De alguma forma, ele soube.

Seu rosto abandonou a expressão avaliativa e desconfiada,


se tornando obscura. E eu fiquei observando, completamente
incapaz de impedir o que iria acontecer em seguida. Cheguei a abrir
a boca, mas, antes que qualquer som saísse, ele avançou na
direção de Willow.
— Quem é você? — Ele exigiu.

Willow recuou. Ela nunca havia me parecido tão pequena.

— Ela é minha criada! — disse, tentando me colocar entre


eles, mas Sarkian não deu espaço.

— Não é só isso. — Ele murmurou meio que para si mesmo


enquanto sua mente parecia tentar montar um quebra-cabeça. —
Eu a vi sussurrando em seu ouvido a noite toda.
Willow recuou outra vez, mas, em um movimento rápido, ele
passou a mão direita coberta de anéis pontiagudos em seu rosto.
Willow cobriu a bochecha com a palma assim que ele baixou o
braço. Ao tirar a mão do machucado foi quando eu vi. Só entendi o
intuito do movimento quando fiquei diante de sangue.

Sangue negro.

Willow encarou o próprio sangue horrorizada. Então, levantou


o olhar. E, antes que ela pudesse fazer qualquer outra coisa,
Sarkian tinha uma lâmina em seu pescoço.
— Qual é? — Ele exigiu com a voz sombria.

— Abaixe a faca, Sarkian!


Mas ele não o fez.

Willow olhou para mim, os olhos azuis arregalados.


— Tire as mãos dela! — gritei, me aproximando.

Estiquei a mão para puxar seu braço, mas a ameaça me


impediu.

— Dê mais um passo e a faca entra. — Ele disse para mim,


mas sem deixar de encará-la.
Eu congelei. Willow fechou os olhos com força.

— Qual é?! — Sarkian exigiu.


Ele apertou mais a lâmina contra o pescoço de Willow. Ela
engoliu em seco e uma gota de sangue negro escorregou pelo seu
pescoço.

— Água! — Eu exclamei, de repente. — Ela manipula a água!

Foi a primeira coisa na qual consegui pensar e cuspi as


palavras quase aos gritos.
Demorou um momento, mas eventualmente ele afrouxou a
faca até estar completamente longe do pescoço dela. Willow recuou
com um suspiro audível.

O Rei das Sombras permaneceu onde estava, a fitando. Sua


expressão era severa e indecifrável.

Não sabia se ele tinha acreditado ou não, então não perdi


tempo em tentar nos tirar dali o mais rápido possível.

— Chega. — Eu peguei o braço de Willow enquanto


recuávamos. — Meus criados e o que fazem não são da sua conta.

Avançamos alguns passos antes que ela virasse o rosto para


mim.

— Ai, meu Deuses... — Ela soprou tão baixo que mal fui
capaz de escutar. — Eu consegui.

Sua voz era um sussurro na escuridão.

Não precisei perguntar o que, já conhecia muito bem aquela


expressão. Ela tinha conseguido ler algo. Algo importante.

Eu a encarei fixamente em expectativa.

E Willow abriu a boca para sussurrar, mas tudo o que saiu foi
um gemido estrangulado.

Eu notei o movimento, mas foi tão rápido que não pude fazer
nada além de assistir. Em um instante, Sarkian estava a mais de
três metros de distância e no outro, estava ao nosso lado.

A faca a atravessou na barriga.


E por dois segundos, talvez três, mas que pareceram uma
eternidade, eu fitei seus olhos arregalados. Seu rosto congelou em
uma expressão de completo choque e desespero, sua boca ainda
aberta com as palavras presas na garganta.

Soube naquele instante que jamais chegaria a ouvi-las.

Ela chegou a tentar dar um passo à frente, como se para se


aproximar de mim. Como se em um pedido de ajuda. Mas era tarde
demais.

O corpo de Willow caiu sobre meus pés.


Eles sempre falam de mim
como se eu fosse cruel

injusta
sanguinária

Mas a verdade é que eu posso ser muito gentil


silenciosa

e paciente

Eu posso chegar em uma brisa fria e aconchegante

tão rapidamente e sorrateiramente

que mal sou notada


capítulo 7

A respiração agarrou em minha garganta e, por um momento,


eu não consegui me mover.

Willow.
Willow.
Eu caí de joelhos.

Não! Não! Não!


Seu corpo estava de lado, e eu coloquei o rosto dela entre
minhas mãos. Chamei pelo seu nome. Gritei o seu nome. Mas a
única coisa que aconteceu foi um espasmo que fez seu corpo
tremer sutilmente em meus braços.

Sangue negro derramou de sua boca e seus olhos piscaram


uma última vez. Quando voltaram a abrir, não havia nada. Não havia
brilho algum.

Não havia vida.

Meus olhos salpicaram. Minha garganta queimou.


Eu soltei o rosto dela devagar, com cuidado. Então, levantei o
olhar. Para ele.

Sarkian me encarava de cima sem qualquer expressão


humana no rosto.
Porque ele era um monstro.

E eu queria matá-lo.

Queria matá-lo como nunca havia querido antes.

Ele começou a se virar, guardando a faca com o sangue de


Willow. Sem dizer qualquer coisa, sem mostrar qualquer tipo de
emoção. Pura e crua indiferença.

Levantei-me em um pulo, puxando a lâmina escondida na


lateral da minha perna.
Não fui ágil o suficiente, não como ele. Sarkian se esquivou
como se previsse o movimento.

Ele segurou meu ombro e braço, e me empurrou contra o


chão com forca. Eu caí com os joelhos e as palmas na grama.

Meus olhos ardiam com lágrimas de ódio.

— Vamos, Majestade. — A palavra era carregada de


desprezo juntamente a um pequeno sorriso grotesco em seus
lábios. — Quer me machucar, não quer?

Eu me levantei de novo, agora a faca firme entre os dedos.


Empurrei com toda a minha força e raiva, mas ele segurou o meu
pulso no meio do movimento. Torceu com força, e a lâmina caiu. Um
grito escapou pela minha garganta. Sarkian girou meu braço até
colocá-lo atrás das minhas costas. E continuou a torcer e empurrar
até que eu caísse de joelhos ao lado do corpo de Willow.

A dor atravessou a minha espinha e me deixou cega. Eu


tentei me debater, mas a dor era paralisante.
Estava à sua mercê.

Sentia meu coração na boca e a respiração irregular


deixando meus pulmões.

— Quietinha — ele agachou ao meu lado, colocando um


joelho no chão — ou vou quebrar.

Sarkian fez pressão nas minhas costas até que meu rosto
estivesse colado na grama. Ele só aliviou o aperto quando eu estava
completamente deitada, completamente derrotada.

Ele era um sádico doente, fazia de propósito. Porque,


naquela posição, com meu rosto colado ao chão, minha única visão
era dos olhos arregalados e vazios de Willow. Ela estava tão
próxima que nossos narizes quase se tocavam.

Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Tentei não


fazer barulho porque não queria lhe dar a satisfação de escutar meu
choro, mas falhei.

Eu o notei se aproximar mais, se inclinando. Fechei os olhos,


as lágrimas caíram.

— Não deixe o título enganá-la. — Ele murmurou próximo ao


meu ouvido, tão perto que senti sua respiração em minha têmpora
direita. — Por dentro, você continua imunda de insignificância,
farren.

Sarkian liberou meu braço, e eu soltei a respiração devagar.


Assim que ele começou a se levantar, ouvi uma voz feminina em
uma língua que eu desconhecia.
Estava prestes a pedir ajuda, mas, então, ergui o olhar e me
deparei com a bela mulher que o acompanhava. Ela tinha os olhos
em mim e sua reação não mostrava nenhum indício de que
pretendia me ajudar. Muito pelo contrário. Não havia nem mesmo
qualquer tipo de surpresa em sua expressão.

Sarkian a respondeu na mesma língua, indo em sua direção.


Coloquei-me de joelhos. Minha visão estava turva e meu pulso
irradiava uma dor latejante. A minha faca estava caída ao lado do
corpo sem vida de Willow.

Queria gritar. Queria consertar aquilo.

Ela estava morta e era minha culpa.

Sentia raiva dele, mas sentia ainda mais de mim mesma.


Sarkian estava se afastando com a mulher, como se nada
tivesse acontecido. Como se não tivesse acabado de matar uma
garota inocente.

Eu não pensei. Quando vi, a lâmina estava novamente em


minhas mãos.

Porque eu precisava machucá-lo. Precisava de alguma forma


infligir dor, mesmo que não o matasse. Mesmo que isso me
matasse.

E torcendo para que o lado da lâmina o acertasse, eu a lancei


com toda a minha força.
Por um momento, o tempo parou.

Tudo congelou.
O tempo. O mundo. Ele.

Até as folhas das árvores à nossa volta pararam de se mover.

Porque a lâmina o acertou.


Mas pegou de raspão.

Ela atingiu a lateral do seu braço, rasgando o tecido negro


que o cobria.

Achava que a mulher tivesse se virado para mim em


surpresa. Mas eu não sabia dizer com certeza porque toda a minha
atenção estava nas costas dele.

Meu coração palpitava tão rápido que eu sentia em meus


ouvidos.
Eu o havia acertado.

A satisfação não durou muito. Talvez não tenha durado nem


um segundo. Porque, de repente, eu fiquei muito ciente das
consequências.
Ele se virou lentamente, de uma forma que fez um calafrio
subir pela minha espinha. E, assim que encontrei seus olhos, tive a
certeza de que estava diante da minha morte.

Sarkian estava irritado de verdade agora, de uma forma que


eu nunca tinha visto antes. Seu olhar mudou de cor.

Engoli em seco.
Ele queria me matar.

Ele iria me matar.


Pensei em abrir a boca, pensei em sair correndo, tentei
pensar na melhor forma de sair daquela situação. Mas era tarde
demais.

Pensei nos meus guardas, sem saber da minha localização.

Pensei em quão estúpida eu havia sido.


— Eu vou te dar dez segundos de vantagem.

E, apesar de seu aviso vir em um sopro frio, o prata em seus


olhos queimava como metal derretido.

Pensei em gritar, mas estávamos longe demais. Ninguém me


escutaria dali.

Esperei que ele avançasse, mas não foi o que aconteceu. Em


vez disso, Sarkian permaneceu parado no mesmo lugar e apenas
uma palavra deixou a sua boca ao passo que me fitava sem ao
menos piscar. Desconhecia a palavra, mas, por alguma razão, me
causou arrepios.

A mulher ao lado dele, da qual eu já havia esquecido


completamente a presença, deu um passo à frente.

Ela estava olhando para mim.


Eu me perguntei o que ele havia dito a ela, mas, então, algo
aconteceu.

A mulher começou a se contorcer, como se estivesse


sentindo dor. Ela caiu no chão, as mãos encontrando a grama.
Gemidos deixaram seus lábios.
Minha cabeça girava. Não conseguia processar o que estava
acontecendo. Talvez aquilo tudo fosse um maldito pesadelo.

Mas então…

Então, ela começou a se… transformar.


Apesar da escuridão, vi suas unhas se tornarem garras e
uma pelugem negra cresceu por toda a sua pele. Eu pisquei os
olhos várias vezes, pensando que, talvez, eu estivesse ficando
maluca.

Estava escuro demais, talvez eu não estivesse vendo direito.

Mas, então, eu vi uma calda balançando no ar. E, mesmo no


escuro, não havia dúvidas do que eu estava vendo. Os gemidos que
deixavam a sua boca de repente soaram muito como rugidos.

Sua figura esguia se tornou bruta e monstruosa.

Eu tentei me mover, mas não consegui. Sabia que deveria


correr, mas era incapaz.

Quando pisquei mais uma vez, estava diante de uma pantera.

Não pode ser.


— Se eu fosse você — Sarkian disse —, começaria a correr.

Eu olhei para ele, então de volta para ela.

Dei um passo para trás, ainda incrédula.

O felino avançou um passo com a enorme pata e um rugido


brutal deixou seu corpo. O som ecoou pelos meus membros. Eu tive
a impressão de que havia chegado a fazer tremer o chão sob meus
pés.
E foi só então que eu consegui sair do transe.
— Dez segundos, farren.

Eu comecei a correr.
capítulo 8

Eu corri até sentir meu peito próximo a explodir. Tropecei no


meu vestido ridiculamente longo, mas não parei. Também não olhei
para trás.

A escuridão tornou tudo mais difícil. Tinha que desviar das


árvores e tomar cuidar para não cair. Se eu caísse, as poucas
chances que eu tinha seriam perdidas.

Eu gritei por ajuda, mas minha voz saiu patética e falhada.


Desesperada.

Escutei algo próximo. Mas a minha respiração e a batida do


meu coração eram tão altas que não conseguia ouvir mais nada
direito.
Já havia se passado dez segundos?

Pensei nas garras.

Pensei nos dentes.

Pensei que aquilo só podia ser um pesadelo.


A música começou a ficar mais alta conforme eu ia me
aproximando do castelo. Ouvi passos. Pisadas em folhas secas que
eu tinha quase certeza de que não eram minhas.

Já havia se passado dez segundos.


Olhei para trás pela primeira vez.

Sabia que não deveria, mas o fiz. Porque tinha certeza de


que ela estava perto e queria a olhá-la nos olhos antes. Girei o
pescoço para encarar a fera prestes a me matar e, então, bati contra
algo sólido.

A pancada foi tão forte que eu quase caí no chão. Mas fui
segurada. Senti dedos ao redor dos meus braços.

— Majestade, o que aconteceu? Está bem?

Olhei para cima.

Era Bax. E, ao lado dele, mais três dos meus soldados.

O alívio foi tão grande que, por um momento, pensei em


afrouxar as pernas e deixar que ele me segurasse completamente.

— Ah, Bax...! — Eu soltei, com a respiração entrecortada.

— Está tudo bem? O que houve?


Eu me recompus. Ou pelo menos tentei, dando um passo
para trás e os encarando.
— Está tudo bem. — Ajeitei meu cabelo e tentei soar
controlada e corajosa, apesar da situação insana em que me
encontraram. — Pensei ter ouvido algo e... me assustei por um
momento.

Foi tudo o que disse. Por que o que eu mais diria? Que
estava sendo perseguida por uma mulher que se transformava em
uma pantera?

Não. Definitivamente não.


Eu olhei para trás, para as sombras, antes que me
escoltassem de volta para o palácio. E podia jurar que na escuridão
entre as árvores, vi um par de olhos felinos brilhando.

Allegra me perguntou sobre Willow quando nos recolhemos


para o quarto não muito tempo depois.

Eu não tive coragem de lhe dizer.

Fomos embora pela manhã no dia seguinte.

Eu só saí do quarto quando me foi dito que estava tudo


pronto para partida. Não queria arriscar ver Sarkian novamente. Em
parte, porque temia o que ele faria. Mas, principalmente, porque
temia o que eu faria.
capítulo 9

— O quê?! — Vesper indagou. — Como assim?!

Eu desviei o olhar. Não conseguia encará-lo.

Estávamos na sala de reuniões. Em breve, conversaríamos


com o conselho.
— Cera.

Apesar de terem as suas diferenças, Vesper e Willow


acabaram se aproximando devido às circunstâncias. Eles discutiam
o tempo todo, mas, no fim do dia, de alguma forma, se entendiam.
Era uma dinâmica estranha, mas que funcionava para os dois.

Finalmente me virei para ele.

Mas era difícil falar. Ainda não parecia real.

— Morta, Vesper. Ela está morta. — Minha voz soou mais


áspera do que eu pretendia.

Ele ficou calado por um instante.


Vesper caiu no sofá e, por um longo momento, não disse
nada. O silêncio era pesado. Ele passou a mão pelo cabelo raspado
em um movimento exasperado. Processou a informação e inspirou
com força.

— Como? — perguntou, finalmente.


Eu fechei os olhos com força. Desviei o olhar mais uma vez.

— Sarkian.

A palavra arranhou a minha garganta e causou uma


dormência pesada no meu corpo.

— O Rei de Khrovil?! — Ele franziu a testa e piscou um par


de vezes. — Por quê?

Willow podia ser petulante, arrogante e muitas vezes difícil de


lidar. Eu não confiava nela, muito menos a amava. Mas ela era só
uma garota. Uma garota sob minha proteção e que havia me
ajudado a conquistar tudo o que eu tinha.

— Foi minha culpa. Ele descobriu sobre ela, sobre seu poder.
Ela iria o expor.

Vesper se inclinou, apoiando os cotovelos nos joelhos, e


cobriu o rosto com ambas as mãos.

— Deuses...

— Ele é um caído também — confessei.

— Puta. Que. Pariu. — Ele ergueu o olhar. — O Rei das


Sombras tem poderes?!

Eu assenti.

— E o que é?

— Não faço ideia. Ainda.

Seria aquilo que Willow estava prestes a me contar antes de


ele matá-la?
— E a pantera dele… A que eu achei que fosse apenas seu
animal exótico de estimação... — Engoli em seco. — Ela é uma
mulher.
Vesper franziu as sobrancelhas grossas, mais confuso do que
nunca.

— Ela também é um caído. Pelo menos, eu suponho que sim.


É a única explicação. Ela se transformou em uma pantera na minha
frente, Vesper.

Ele encostou as costas no sofá e jogou a cabeça para trás,


encarando o teto.

— E o que vamos fazer?

— Não faço ideia.

Eu a havia deixado lá. Fui embora no dia seguinte sem ao


menos trazer de volta seu corpo. Willow não teria sequer um funeral.

— Não consegui fazer nada. Eu sou uma maldita rainha e…


— Minha voz falhou. — Eu não pude…

— Não é sua culpa.

— É — rebati. — É, sim.

Eu a tinha levado até lá. Eu a tinha exposto a ele. Willow


jamais estaria naquela situação se não fosse por mim.

Eu havia falhado com ela.

— Suponho que o tratado de paz entre Umbra e Khrovil não


exista mais, certo?
Fiquei em silêncio porque aquela pergunta não precisava de
resposta. Vesper a viu em meus olhos.

No fim da tarde, estava a caminho do pátio de treinamento


acompanhada de General DeLarosa e Bax.

— As meninas poderão estudar até os 18. Também poderão


se alistar para o exército, caso desejem. O ritual de sacrifícios anual
vai acabar. E, por fim, será abolida a execução por crime de
relações entre pessoas do mesmo sexo. — Eu inspirei fundo,
repondo o ar. — É isso, por enquanto.

DeLarosa ficou em silêncio por mais tempo que eu esperava.


Eu sabia que minhas palavras o surpreenderiam, mas não
que iriam chocá-lo por completo.

— Eles não vão aprovar. — Ele disse finalmente, se referindo


ao conselho.

— Tecnicamente, não preciso que aprovem. Eles são meu


conselho, e conselheiros servem apenas para aconselhar, não
tomar decisões.

O som metálico de espadas batendo preencheu meus


ouvidos conforme nos aproximávamos.
— O povo não vai aprovar.

Aquilo me preocupava mais, porém, eram mudanças básicas


e necessárias. Eu havia tomado o trono por uma razão, e não era
apenas por vingança.
— Alguns não, mas outros sim. E como com a maioria das
mudanças, eles eventualmente irão se adaptar.

DeLarosa ficou em silêncio outra vez e eu entendi isso como


concordância, mas, em seu rosto, havia puro pessimismo e
resignação.

Adentramos o pátio coberto e, aos poucos, o som se


dissipou. Os soldados notaram nossa presença e pararam o
treinamento.
Com um sinal do general, fizeram uma formação perfeita.

— Esse é o pelotão 3 — explicou DeLarosa.


Centenas de homens me encaravam fixamente em uma linha
muito bem-organizada. A maioria, suados e ofegantes.

— E quantos são, no total? Todos os pelotões juntos?


— Vinte e dois mil homens, Majestade.

— Quantos Khrovil tem?


DeLarosa hesitou por um instante.
— Não tem como ter certeza sobre esses dados. Mas menos.

— Ótimo.

— Mas o exército deles é melhor. — Bax interveio pela


primeira vez desde que começamos a conversa. — Um homem
deles vale dois dos nossos.

Olhei para ele, então para DeLarosa.


— Por quê? Qual é o problema com os nossos soldados?
— Não há um problema. — O general parecia ofendido ao
retrucar. — Mas os selke são conhecidos pela alta… crueldade.

— E habilidade — adicionou Bax.

— Eles lutam de forma suja, não têm honra alguma.


— E são melhores que os nossos — interrompi o general. —
Prefiro meu exército malfalado e vivo do que repleto de honra e
morto.

Virei-me para Bax.

— Ensine-os a jogar sujo.

O homem enorme e cheio de cicatrizes tinha vivido as últimas


décadas de sua vida com lutas clandestinas nos becos mais
imundos e perigosos do reino. Se alguém sabia como jogar sujo, era
ele.

Encarei ambos com seriedade.

— Quero que trabalhem para tornar esse exército preparado


para qualquer coisa, contra qualquer oponente. — Olhei para os
soldados à minha frente. Centenas de vidas que agora lutavam por
mim e, possivelmente, morreriam por mim. — Não quero que eles
sejam como os selke. Quero que sejam melhores.
Comecei a me retirar de volta para o palácio.

— Majestade. — Era a voz de DeLarosa. Virei-me. —


Estamos nos preparando para uma guerra?

Fiquei em silêncio por um instante. Olhei para os soldados e,


então, voltei a fitá-lo.
— Não — respondi. — Não agora, pelo menos.

Eu mal havia entrado no palácio quando um soldado me


interceptou.

— Majestade! Encontramos um homem escondido no navio


que veio de Tephos. Não é um dos nossos.

— Quem é?

— Não sabemos, mas ele diz te conhecer.

Aquilo me intrigou. Tentei pensar em alguém que conhecia


que não fosse de Umbra e que poderia estar escondido no navio,
mas nada me veio à mente. Provavelmente, o homem estava
mentindo.
Mas fiquei curiosa.

— Onde ele está?

— Nós o levamos para o salão principal.

Cruzei os corredores, tentando pensar em quem poderia ser,


mas o homem com quem me deparei ao finalmente entrar jamais se
passou pela minha cabeça.

— Mirvin. — Seu nome deixou minha boca quase como uma


pergunta.

O velho estava de costas quando entrei, mas a sua bengala o


tornava inconfundível.

Ele virou ao escutar seu nome e fez uma reverência sutil com
a cabeça.
— Majestade.
Pisquei um par de vezes. Ainda estava em choque.

— O que está fazendo aqui?

— Vim lhe ajudar.

Aproximei-me, ficando diante dele.

— Me ajudar? — Eu estava mais confusa do que nunca. —


Não pedi ajuda.

— Eu sei — ele assentiu —, mas creio que precise.

Se ainda não estivesse me recuperado do choque, teria


sorrido.

— Assim você me insulta.


— Não era a intenção. — Ele sorriu. — Todos os grandes
líderes precisam de ajuda.

Cruzei os braços. Estava cética, mas intrigada.

— E no que você pode me ser útil?

— Eu sempre gostei mais da companhia de livros do que de


pessoas. E pode ficar surpresa com a quantidade de coisas que se
aprende em mais de 40 anos rodeado por livros.

Semicerrei os olhos.
— E o que você quer?

— Ajudá-la.
— Mas o que quer em troca?
— Nada.

Olhei para o soldado ao nosso lado, que observava nossa


interação e parecia ainda mais confuso e surpreso do que eu.

— Mal me conhece. Por que quer me ajudar?

Ele sorriu, um pequeno e sutil sorriso que enrugou ainda mais


seu rosto.

— Como eu disse, você me lembra alguém.

Eu o fitei em silêncio por vários segundos.

Quem era aquela criatura estranha e quais eram as suas


verdadeiras intenções?
Eu não tinha mais Willow para me dizer o que se passava em
sua mente. E aquela não era uma resposta boa o suficiente.

Olhei mais uma vez para o soldado.

— Dê um quarto para ele no segundo andar e fique de olho.


Quero alguém perto dele o tempo todo. E nada de deixar o palácio.
Mirvin moveu a bengala.

— Sou um prisioneiro agora, Majestade?

Sorri.

— Um convidado com restrições — corrigi.

Fiz um aceno para o soldado e ele se aproximou do velho


para escoltá-lo.

— Então, um prisioneiro com privilégios. — Mirvin retrucou.


— Prisioneiros ficam em celas, Mirvin— argumentei, e me
virei para sair. — Seu quarto terá até vista para o jardim principal.
capítulo 10

Uma semana depois, finalmente encarei o que estava


protelando. Marquei uma visita com meu pai, minha madrasta e meu
irmão no palácio.

— Talvez não deva beber tanto — aconselhou Vesper depois


que dei uma golada no meu terceiro copo.
— Olha só quem fala — retruquei, sentada no trono.

Eles chegariam a qualquer minuto, e eu estava tensa, para


dizer o mínimo. Ansiosa. Mas também estava animada e curiosa.

Tantas coisas haviam mudado em menos de um ano que


ainda era difícil de acreditar que aquilo estava acontecendo.
Virei-me para Allegra, que estava ao lado direito do trono.

— Não precisa estar aqui, se não quiser.


Eu não queria que ela tivesse que encarar meu irmão se não
se sentisse confortável.

Mas ela balançou a cabeça e se manteve firme.


— Quero ficar.

— E você? — indaguei ao Vesper.

Ele esfregou as palmas e me lançou um meio sorriso.


— Ah, vou ficar. Isso vai ser ótimo.

Eu tamborilava os dedos da mão livre no braço do trono


quando o soldado anunciou a chegada dos três. As enormes portas
de madeira foram abertas, e eu me deparei com a minha família
pela primeira vez em semanas. Mas parecia muito mais tempo.

Em duas semanas, tudo havia mudado.

O rosto dos três ao me verem sentada no trono foi algo


surreal. Queria poder congelar o tempo.

Meu pai parecia surpreso demais, me olhou quase como se


não me conhecesse. Meu irmão parecia mais confuso do que
qualquer outra coisa, mas igualmente chocado. E minha madrasta,
bem… Ela mal sustentou o meu olhar. Parecia fitar qualquer coisa
ao redor, menos eu.

Eles cruzaram o salão em silêncio até estarem diante de


mim. Notei que meu irmão mancava, arrastando a perna direita com
certa dificuldade conforme andava.

Meu trono ficava sobre um tablado de madeira maciça com


cinco degraus, o que os obrigou a olhar para cima para me encarar.

Meu irmão notou Allegra ao meu lado e algo atravessou seus


olhos, então ele rapidamente desviou. Seria preocupação? Talvez
medo?

Eu esperava que sim.


A presença dela pesou ao meu lado. Allegra se manteve
calada e parada o tempo todo, mas eu não conseguia parar de me
preocupar com como estava se sentindo.
Os três se demoraram a reverenciar. E achava que nem tinha
sido de propósito, simplesmente seu cérebro não conseguia
conceber a ideia de dobrar os joelhos para mim. O soldado que os
havia escoltado precisou arranhar a garganta para avisá-los.
Choque pareceu atravessar seus rostos ao notarem que
tinham que fazer uma reverência.

Foi difícil para eles, principalmente para a minha madrasta, e


me deliciei com o momento. Assim que terminaram, meu pai foi o
primeiro a abrir a boca:

— Olá, filha, que…

— Majestade — corrigi.

Ele hesitou. Piscou um par de vezes.

— Devo te chamar de Majestade?

— Sim. É o meu título.

Sua testa franziu.

— Sou seu pai.

Sou sua rainha, quis responder. Mas o meu silêncio e o meu


olhar fizeram com que eu não precisasse.

— Majestade — ele começou de novo com certa dificuldade


após pigarrear —, estamos muito felizes com os últimos
acontecimentos. Tenho tantas perguntas.

Aillard finalmente tinha perguntas. Finalmente tinha algum


interesse em mim.

Tive vontade de rir. Talvez chorar.


— Imagino que sim.

Meu irmão se pronunciou:

— Eu ainda não consigo acreditar que…

— Vejo que machucou seu pé. — Eu o interrompi, como


muitas vezes ele havia feito quando éramos mais novos. Como se
nada que eu dissesse era remotamente importante ou interessante.

Ele olhou para própria perna e a movimentou um pouco.

— Ah, sim. No dia da sua… coroação. Foi tudo muito — ele


pausou e sorriu — caótico e chocante.

— É permanente?
Seu rosto mudou de expressão.

Pesar e um pouco de vergonha.

— O médico disse que há chances de eu voltar a andar


normalmente, mas que é quase improvável.
— Uma pena — comentei, e não sabia ao certo se ele notou
o sarcasmo na minha voz.

Eu queria prendê-lo. Queria que pagasse pelo que havia feito


com Allegra e muito possivelmente com outras garotas. Mas vendo
de forma lógica, prendê-lo não seria bem-visto. A rainha mandando
sua própria família para a cela.
E também tinha a minha mãe, pensei nela por um momento.
Nicklaus havia herdado seus olhos. Pensei que ele era metade dela
também. Ele era metade bondade, mas, de alguma forma, eu não
conseguia enxergar. Tentei me lembrar que ela o amava tanto
quanto me amava. Eu não podia simplesmente me livrar dele.

Mas eu podia transformar a sua vida em um inferno.

— Vamos ser otimistas, porque vai precisar dela quando for


trabalhar no exército.
— N-no exército? — Ele gaguejou.

Assenti.

— Claro. Será ótimo para o povo ver o irmão da rainha lutar


por eles. Vai mostrar nossa força e aliança.

Ele olhou para o nosso pai, então voltou a olhar para mim
com um sorriso fraco no rosto.
— Mas acho que eu seria muito mais útil em…

Foi a minha vez de sorrir. Ele sempre havia sido um covarde.

— É assim que será mais útil para mim.


Nicklaus era um garoto mimado que costumava ter tudo o
que queria e jamais era contrariado. Eu sabia como o exército seria
para ele. Um pesadelo. Ele estaria sob o comando de outras
pessoas, recebendo ordens o tempo todo e tendo que enfrentar
oponentes armados.

— Mas eu…
— Está decidido.

Ele calou a boca e seu rosto ficou sério. A fachada de bom


irmão finalmente caindo. Ele estava morrendo de raiva de mim. Eu
tinha todo o controle sobre sua vida agora e isso o estava matando.
Ótimo.

Voltei-me para a minha madrasta.

— Está tão quieta hoje. O gato comeu a sua língua, Nusa?


Ela olhou para mim. Eu conseguia sentir seu ódio e
ressentimento.

— Como está o Malakay? — perguntei, referindo-me ao meu


irmão mais novo.

— Bem — respondeu com a voz seca.

— Falando nele, quero que venha morar no palácio comigo.


Quero que cresça, estude e treine entre os nobres.
Seu rosto se contorceu em completa confusão e ela
finalmente me encarou fixamente.

— Vamos morar no palácio?

— Vocês, não — corrigi com deleite. — Malakay. Só ele.


Ela se agitou.

— Como assim?

— Quero que meu irmão more comigo e tenha a educação de


um nobre. Uma espécie de escola integral. É uma honra, na
verdade.

Ele era a única pessoa que compartilhava o mesmo sangue


que eu e que eu não detestava. Eu o queria perto de mim e longe
dela. Não queria que ele se transformasse em algo parecido com
Nusa ou Nicklaus.
— Ele não pode morar aqui, sem mim. — Ela olhou para os
lados e piscou algumas vezes. Sua boca tremeu. — É meu filho.

— Pode e vai. Mas não se preocupe, poderá visitá-lo a hora


que desejar. Precisará apenas da minha permissão com
antecedência.

Ela piscou, incrédula. Olhou para o meu pai, pedindo alguma


intervenção, mas recebeu apenas o silêncio em troca.

— Não pode fazer isso! — Ela exclamou. Seu rosto estava


vermelho e os olhos lacrimejavam em horror.

Nunca a tinha visto daquela forma. Foi estranho, mas não de


um jeito ruim.

Ela pegou o braço do marido.

— Aillard, ela não pode! — Ela chorava agora. — Diga


alguma coisa!
Meu pai se virou para ela e, em um tom baixo, porém grave,
disse:

— Nusa, controle-se!

Foi como se ela tivesse levado um tapa. Uma lágrima


escorreu por sua bochecha, e ela voltou a me encarar.
— Não! Não vou deixar você levar o meu filho! — Ela
exclamou, dando um passo à frente. — Ele é meu!

O soldado que os havia levado até ali deu um passo na


direção dela, se preparando para caso ela avançasse mais.

Eu levantei do trono e desci as escadas até parar diante dela.


— Está irritada, não está? — perguntei baixinho com o rosto
bem próximo ao seu. — Aposto que quer me bater. Aposto que sua
mão está coçando para me estapear.

Se ela o fizesse, perderia a mão.

Infelizmente, ela não me atacou fisicamente, apenas


verbalmente.
— Menina insolente! Você não sabe o que está fazendo! Uma
garota nunca deveria ser uma rainha! É um erro de acordo com os
Deuses, todos sabem disso!

Um instante de silêncio completo e ensurdecedor se instalou.


Senti todos à nossa volta ficarem tensos. Mas eu continuei parada e
focada. Aquelas palavras naquele momento não me atingiam da
mesma forma. Eram o reflexo de puro medo e desespero.

Ela estava perdendo e eu, ganhando.

— Vou lhe poupar a língua dessa vez — declarei. — Mas não


na próxima.

A ameaça a fez engolir em seco, mas seus olhos ainda


brilhavam de angústia e raiva. Lágrimas escorriam pelo rosto bonito,
porém envelhecido.

Olhei para o meu pai.


— Tenho a sua permissão para criar Malakay no palácio? —
indaguei.
Porque, no fim das contas, era tudo o que importava. Na
nossa sociedade, o pai tinha controle sobre os filhos homens. E era
uma sociedade à qual minha madrasta sempre pareceu muito
contente em pertencer e obedecer.

Ele assentiu.

— Será uma honra.

Senti o olhar da minha madrasta queimando sobre ele. Ela


nunca o perdoaria por aquilo. Mas meu pai não se importava, nunca
havia se importado com nada além de si mesmo.

Virei-me e voltei para o trono.

— Tudo certo, então. — Cruzei as pernas. — Desejam mais


alguma coisa?

Antes que meu pai abrisse a boca, eu já sabia o que viria.

— Eu estava pensando que, devido às novas circunstâncias,


faria sentido que eu tivesse um…

— Título — completei com certa satisfação.

Tão previsível.
Era o que sempre havia desejado. O que sempre havia
buscado.

E agora, como rainha, eu tinha o poder de nomear lordes,


tornar pessoas comuns em nobres.

Ele assentiu e, pela primeira vez, senti meu pai apreensivo.


Ele estava me pedindo algo. E era difícil para ele, um homem tão
orgulhoso. Os papéis haviam se invertido tão brutalmente e tão
rapidamente que chegava a ser cômico.

— Que dia é o meu aniversário?


A pergunta repentina o pegou de surpresa.

— O quê?

— Que dia eu nasci? Meu aniversário?

Eu já sabia qual seria a sua resposta. Ou melhor, a falta dela.


Mas uma pequena parte de mim, emotiva e frágil, desejava que ele
soubesse. Porque, no fim das contas, eu ainda era uma garota que
havia perdido a mãe muito cedo e passado a vida toda procurando
pela aprovação e adoração do pai.

Ele abriu a boca uma vez. Então, outra. E, por fim, a fechou.

— Você não precisa de um título — eu disse, tentando


mesclar a decepção em minha voz com frieza —, a honra de ser pai
de uma rainha é o suficiente para te deixar acima de praticamente
qualquer outra pessoa.

E era verdade.

Não importava o que eu fizesse, ele sempre estaria ligado a


mim. Seu nome ao meu. Sangue compartilhado. Ele finalmente
havia conseguido a honra e a superioridade que desejava. E por
ironia, eu quem lhe tinha entregado sem intenção alguma de fazer
isso.

Ele assentiu, concordando.


— Claro. Está certa.

Eu fiz um sinal para o soldado, e ele começou a acompanhá-


los para fora.
Minha madrasta chorava em silêncio e meu irmão tinha o
rosto fechado e tenso. De repente, meu pai se virou e me fitou.

— Sabe — ele sorriu, um pequeno sorriso que parecia


sincero e que eu nunca tinha visto ser direcionado a mim antes —,
eu sempre soube que um dos meus filhos me deixaria muito
orgulhoso.

Eu sorri. Mas era um sorriso amargo, quase triste.


Havia passado boa parte da minha vida sonhando com
aquelas palavras. E finalmente, lá estavam elas. Mas naquele
momento, elas não me preenchiam da forma que eu esperava.

— Só nunca imaginou que seria eu, não é?

Ele não respondeu. E achava que tinha sido a coisa mais


inteligente a se fazer. Nada mudaria aquele fato, ambos sabíamos
da verdade.

Aquilo encerrou o nosso encontro.

Eles foram embora, e eu finalmente inspirei fundo quando as


portas se fecharam.

— Você está bem? — perguntei à Allegra.

Ela assentiu. Parecia forte, resiliente. Tive orgulho dela. Não


parecia a mesma garota de meses atrás.

— Achei um pouco… duro. — Foi a primeira coisa que


Vesper disse. Eu o encarei confusa. Achava que havia sido muito
bondosa devido às circunstâncias. — Sobre o seu irmão mais novo
— explicou.
— Ele vai crescer em um castelo cercado dos melhores
tutores e melhores cuidadores do reino.

— É, mas separá-lo da mãe…

O olhar que lancei o fez se calar.


Parte de mim tentava me convencer de que só estava
pensando no melhor da única família que ainda considerava e que
aquilo não tinha a ver com a minha madrasta ou com o meu desejo
de vingança.

Mas não adiantava.

No fundo, eu sabia a verdade.

A segunda volta que fiz pelo reino foi em uma manhã


movimentada. A cidade estava a todo vapor naquele dia ensolarado.

Navegar por entre a cidade era importante para que eu


estivesse mais ciente do dia a dia do povo e suas questões.
Também era importante para que me vissem como sua nova rainha.
Eu estava em uma carruagem com Vesper, Bax e DeLarosa,
cercada por soldados que nos escoltavam. Pela janela da
carruagem, observava os olhares curiosos dos cidadãos. Havia
muita agitação e gritos por onde passávamos.

“A Rainha!”, eu escutava sendo exclamado.

Às vezes, eu ainda achava que estava sonhando.

— Tem que ir ao casamento.


Estávamos falando sobre o casamento do Rei Rascal de
Vadronia com a quarta esposa.

— É a última coisa que gostaria de fazer no momento —


rebati enquanto acenava pela janela e sorria. Alguns deles
acenavam de volta, outros não.

— Eles podem considerar a sua recusa como ofensa —


comentou o general.
— Eu sei.

— E não é o momento de fazer inimigos.

Virei-me para ele.

— Eu sei — disse mais alto do que pretendia. — Sei disso


tudo. Em algum momento, eu disse que não ia?
— Quem é que precisa de quatro esposas? — murmurou
Vesper ao meu lado.

Eu estava prestes a concordar quando vi uma garotinha


próxima à minha janela. Ela pulava e gritava, tentando chamar a
minha atenção. Tinha uma flor na mão e a chacoalhava tanto que a
pobre planta mal tinha pétalas. Era de longe a espectadora mais
entusiasmada que eu tinha visto o dia todo.

— Pare aqui — pedi.


A pequena garota parecia tentar chegar até mim. Ela estava
perto, mas no meio da multidão, tinha dificuldade de me alcançar.

A carruagem estagnou, e eu abri a porta.


— Aonde está indo? — Ouvi a voz de Bax.
Coloquei o pé direito no chão e me estiquei em direção à
garota. Não cheguei a deixar a carruagem, mas me inclinei o
suficiente para pegar a flor que ela queria me entregar.
— Obrigada! — exclamei ao envolver meus dedos no caule.

Ela tinha um sorriso enorme no rosto.


Eu estava me recolhendo para voltar à carruagem quando
algo atingiu meu peito. Uma exclamação de surpresa deixou minha
boca. Fui puxada para dentro da carruagem e a porta foi fechada
com um baque alto. Eu ainda estava em choque, tentando entender
o que havia acontecido.

— Você está bem?!

Meu coração batia acelerado e a tensão em volta era


palpável. Fora da carruagem, a gritaria aumentou.

Eu olhei para baixo, para o meu vestido. Por meio segundo,


pânico congelou meu corpo. Achei que havia sido ferida. Achei que
o vermelho era sangue.

Mas não.

Era... tomate.

Alguém havia jogado um tomate em mim.


— Isso foi proposital?! — indagou Vesper para ninguém em
particular. — Puta merda. Quem fez isso?

Ele colocou a cabeça para fora e começou a gritar todo o tipo


de palavra de baixo calão.

— Está machucada? — Bax indagou.


Eu me ajeitei no assento e balancei a cabeça.
— Estou bem. — Olhei para baixo, para o meu próprio
vestido sujo. — É só tomate.

Mas não era só tomate.


Era o povo insatisfeito. Eram cidadãos que não me queriam
no trono.

Viramos a carruagem e voltamos para o castelo. O caminho


todo foi feito em silêncio.
Havia um caroço em minha garganta.

Eu sabia que nem todos gostariam de mim e também sabia


que aquele tipo de coisa aconteceria. Mesmo assim, não anulava o
fato de que doía.

— São apenas rebeldes, senhora. — O General DeLarosa


quebrou o silêncio. — Todo reino tem desses.

— O que eu devo fazer? — perguntei, fitando a janela com o


olhar perdido.
— Eu entendo de exércitos, Majestade, não de política.

— Não é a mesma coisa? — Vesper murmurou.

Deixei a carruagem e entrei no palácio me sentindo


derrotada.
Eu ainda precisaria conquistá-los.

Havia tomado o trono, mas precisaria me manter nele.


— O que você entende de política? — indaguei assim que
entrei no quarto.

Mirvin se virou para mim, nada surpreso. Quase como se já


esperasse aquela visita.

Ele nem pestanejou ao dizer:


— O suficiente para ser útil.

— Por acaso, você fala vadroniano?


Ele sorriu e, então, sua boca se moveu. Palavras que não
consegui compreender deixaram seus lábios.

Tomei aquilo como um sim.

— Se arrume. Vamos viajar.


Um par de dias depois
a Usurpadora de Sangue
recebeu
uma grande caixa de madeira
vinda de Khrovil
Por dentro
estava repleta de diamantes
Ela procurou joia por joia
mas não demorou para chegar à conclusão
de que o colar de sua mãe
não estava ali

É claro, pensou
ele não tornaria aquilo tão fácil
c a p í t u l o 11

A noiva não tinha mais de dezessete anos. E o rei, menos de


sessenta.

Foi difícil cumprimentar o casal sem torcer o rosto em uma


careta de nojo, mas fiz o meu melhor para ser cordial.
Observei o casal trocando os votos, exausta e ansiosa só de
pensar nos dias que se seguiriam.

— São duas noites e três dias de celebração. — Mirvin disse


na viagem até lá. — Começa com a cerimônia de casamento em si.
Na noite seguinte, tem o baile em que a atração principal é a dança
da noiva. Depois, há os torneios. Lutas entre nobres, e são mais
sobre entretenimento do que qualquer outra coisa. Não é uma luta
até a morte. O torneio é finalizado com a luta do rei e…

— E é claro, ele ganha — concluí ao interrompê-lo.


— Sem dúvidas.

Ninguém seria burro o suficiente para ganhar uma luta


cerimonial com um rei.

— E por fim, na última noite, tem o luau.

Então, aquilo era apenas o começo. Em Umbra, os


casamentos duravam algumas horas e pronto.
Foi inevitável não pensar no meu próprio casamento e em
Theon enquanto assistia aos noivos trocarem seus votos. Na
emoção que havia sentido no começo, quando ele havia me
entregado a bela promessa de liberdade e paixão. Em como mordi a
isca como uma idiota e nos meses que se seguiram em que paguei
o preço.
Seu olhar, aquele último que ele me lançara — horrorizado e
eterno — surgiu à minha mente. Essa memória costumava aparecer
com frequência. Nos últimos tempos, eu raramente pensava nele,
mas, quando o fazia, era sempre aquele olhar que me vinha à
cabeça.

Mas estaria mentindo se dissesse que era assombrada por


ele. Apenas memórias ruins podiam te assombrar. E aquele havia
sido um dos primeiros momentos da minha vida em que me senti
verdadeiramente no controle.
Olhando para a jovem noiva coberta com um grande véu, me
perguntei como seria seu futuro. Lembrava-me de encará-la mais
cedo, quando os cumprimentava antes de a cerimônia começar. Ela
estava sem o véu, e eu consegui ver o seu rosto. Jovem, bela e
definitivamente infeliz. Aquele, sim, era o tipo de olhar que me tirava
o sono.

E falando de olhares que me assombravam, Sarkian me veio


à mente.

Olhei em volta do extenso e lotado salão mais uma vez.

Ainda não o tinha visto, mas sabia que ele estava ali. E sabia
que eventualmente iria encontrá-lo.
Não haveria escapatória.

Na noite do baile, usei um vestido branco adornado por


pedras e luvas de ceda que iam até os meus cotovelos. Também
usei um par de saltos um pouco mais confortáveis do que estava
acostumada porque sabia que teria que dançar.

Quando a jovem rainha terminou sua dança delicada e bem


coreografada com outras belas moças, todos os nobres se dirigiram
para o núcleo do salão. No centro, o casal recém-casado liderava a
coreografia. Não era uma dança muito difícil. Era bem parecida com
a tradicional dança de Umbra e, em determinados momentos,
também havia trocas de parceiros.

— Me concede essa dança, Majestade?


Virei-me para o homem que havia acabado de falar ao passo
que ele fazia uma reverência perfeita. Era alto e os cachos do seu
cabelo eram ruivos, a pele bem branca e o nariz consideravelmente
comprido. Mas essas não foram as primeiras coisas que notei,
foram seus músculos. Ele parecia um armário.

Ele era um soldado. Cheguei a essa conclusão pelas


medalhas de títulos coladas em seu traje.

— Qual é o seu nome?

— Sir Taron de Miscam, Majestade.

Apesar do tamanho impressionante, seus olhos eram


surpreendentemente doces. E embora não fosse tradicionalmente
atraente, eu conseguia ver certa beleza em seus traços.
Ergui a mão direita.

— Me guie até a pista, Sir Taron de Miscam.

Com um sorriso satisfeito, ele obedeceu, mas eu podia notar


certo nervosismo. Não era qualquer homem, nem mesmo um nobre,
que tinha coragem para convidar uma rainha para dançar.
Seu toque era gentil, apesar das mãos enormes. Eu me
sentia pequena, mesmo estando de saltos e sendo um pouco mais
alta que a média. Mas, curiosamente, não me sentia intimidada pelo
seu tamanho, até seus passos eram leves.

Por um momento, não sabia quem estava guiando nossas


passadas: ele ou eu. E eu gostava disso.
— Nem estou acreditando nisso.

— No quê?
— Nesta dança. Nunca dancei com uma rainha antes. — Ele
fez uma pausa e, então, desviou o olhar quando suas bochechas
coraram. — Ainda mais com uma tão bonita.

— Obrigada — disse, sendo pega de surpresa pelo elogio. —


E está fazendo um excelente trabalho. Dança nunca foi o meu forte
— assumi.
— Não se preocupe, pode pisar no meu pé à vontade. Na
verdade, seria uma honra.

Uma risada genuína escapou de meus lábios.

— Fico aliviada em saber, mas vou tentar te poupar. Precisa


dos seus dedos inteiros no campo de batalha.
Não recebi uma resposta porque os casais foram trocados.
Assim como todas as mulheres, fui rodopiada em um movimento
fluido e, quando voltei, meu novo parceiro era um homem mais
velho. Não houve muito diálogo, felizmente. E também não demorou
muito para que eu estivesse de volta com Taron.
— Sobre o que estávamos falando? — Ele indagou, sorrindo.

Sir Taron tinha um sorriso agradável. Dentes brancos, um


deles levemente torto, mas isso lhe dava certo charme.
— Sobre eu estar tentando poupar seus dedos com a minha
dança.

— Você não é tão ruim quanto pensa. — Ela se inclinou um


pouco, aproximando o rosto do meu ouvido. — A minha parceira de
agora há pouco pisou no meu pé três vezes. Acredite ou não, mas
estou mais seguro com você.
Eu sorri de novo e, antes que pudesse responder, precisamos
trocar de parceiros mais uma vez. Taron me rodopiou. Mas daquela
vez foi diferente porque, de repente, senti o toque enluvado na
minha mão.

Não precisava ver seu rosto porque já sabia.

Podia sentir.

Quando terminei de girar, estava de frente para Sarkian.


A música continuou, mas, por um breve instante, meus pés
fincaram no chão. De perto, conseguia ver o prata por trás da
máscara, e ele brilhava em deleite ao ver meu olhar de choque e
desgosto. Ele havia feito de propósito porque sabia muito bem que
eu preferiria morrer a ficar próxima dele. Muito menos ser tocada por
ele.

Alguém esbarrou no meu ombro, me fazendo acordar para o


fato de que éramos o único par parado, dessincronizado com o
resto. Sarkian colocou a outra mão na base das minhas costas, e eu
quis gritar. Mas ambos sabíamos que não o faria. Não podia. Então,
em vez disso, comecei a me movimentar.

Meu corpo todo estava tenso e eu sentia pontos de


adrenalina onde seus dedos encontravam meu corpo. Tinha medo
do que seria capaz de fazer se ele mencionasse o nome de Willow.
Ou se me provocasse de alguma forma. Não podia criar uma cena,
não na frente de tanta gente importante.

Mas não conseguia esconder a expressão em meu rosto. Às


vezes, gostaria de usar uma máscara também.

— Você está bem? Sua expressão parece um pouco…


azeda.
Sua voz cínica fez meu sangue ferver.

— Sei o que está fazendo e não vai funcionar.

A diferença entre a dança era bruta. Sarkian era um


dançarino audacioso, confiante e fluido. Seu toque era exigente e
controlador. Por mais que eu estivesse rígida e tensa, era como uma
boneca de pano sendo guiada pelo salão.

— E o que seria? Me explique esse terrível plano.

— Está tentando me provocar, me intimidar.


— Talvez eu só queira dançar com você.
Rangi os dentes dentro da boca.

— Talvez eu deva matar a sua amiga felina — ameacei. —


Você matou uma amiga minha, eu mato uma sua. Olho por olho.

Ele soltou um suspiro ao passar o olhar pelo salão.


— Será que deveríamos ir para a guerra e acabar logo com
isso?

Eu havia pensado sobre aquilo. Desde a morte de Willow, era


a única coisa na qual eu conseguia pensar. Mas, quanto mais eu
pensava em acabar com ele, mais me parecia uma má ideia.

Porque não seria uma luta entre dois.

Seria uma luta entre milhares. Milhares de pais, irmãos e


filhos.
— Não quero punir milhares de soldados porque você é um
merda.

Seus lábios quebraram em um meio sorriso satisfeito.

— Covarde.

— Assassino — devolvi.

— Hipócrita.

— Não sou como você. Não sou uma assassi...

— Ah, não? — Ele me cortou. — Porque já presenciei você


rasgar a garganta de duas pessoas e atirar uma flecha em outra.
Sem contar o seu pobre marido. Então, me diga, farren, na sua
historinha, eu sou o terrível vilão e você é a grande heroína?
Desviei o olhar e engoli em seco.
— É… diferente. Não somos iguais.

— Tem certeza?

Eu tentei guiar o passo, mas ele resistiu. Isso fez com que eu
tropeçasse. Mas Sarkian segurou firme na base das minhas costas,
me estabilizando e nos fazendo voltar em sincronia.

— A única coisa que está conseguindo com isso é fazer


papel de ridícula. — Ele zombou.

Eu cerrei a mandíbula, tentando manter a compostura. Mas


eu o odiava. Odiava tanto que era difícil estar tão perto dele sem
tentar feri-lo.

— Não acho que seja possível odiar alguém mais do que te


odeio agora.
Ele me girou e, quando voltei para os seus braços, havia a
sombra de um sorriso em seus lábios.

— Calma — ele murmurou próximo demais do meu ouvido


—, ainda é cedo.
O rei das trevas a odiava
Mais do que isso
a desprezava
Só havia uma coisa
que ele considerava
mais abominável
do que dançar
e isso
era tocá-la

Ainda assim
antes de soltá-la
ele aproximou o nariz
apenas o suficiente
para sentir o cheiro do cabelo dela
capítulo 12

— O Duque Orion de Stirlah convida o Príncipe Dyleus de


Tollymore — anunciou o apresentador do torneio.

Outra luta começaria.


Os nobres se dirigiram para ao redor da arena. As pessoas
torciam animadas, escolhendo seu lutador. Houve um aperto de
mãos amigável antes de levantarem as espadas.

Aqueles embates não eram como os de Umbra. Os homens


não eram pessoas comuns se atracando até a morte, eram nobres
em um pequeno espetáculo. O máximo que tinha visto até o
momento havia sido um corte de raspão no braço de um deles.

Olhei para cima. Estava abafado e as nuvens acima de nós


prometiam chuva. Eu usava um vestido amarelo-pastel sem
mangas. Perguntei-me se, caso chovesse, as lutas iriam continuar
mesmo assim, já que a arena era toda aberta. Observei a luta
bebericando uma taça de alguma bebida terrivelmente doce. Pelo
menos, não era um baile e não havia dança envolvida.

Sarkian estava ali, sentado em um dos assentos privilegiados


e acompanhado da mulher pantera. Estava de máscara e, por mais
que estivéssemos de lados opostos da arena, podia sentir seu tédio
dali.
Ignorei sua presença. Ou pelo menos tentei. A bebida
ajudava.

Sir Taron também estava presente. Eu o avistei sentado ao


lado do Rei de Miscam. Ele olhou para mim e acenou. Eu devolvi
um sorriso.

— O que sabe sobre aquele homem? — perguntei ao Mirvin.

— Sir Taron? É sobrinho-neto do rei e chefe de sua guarda


pessoal. É um dos melhores lutadores de Miscam. Por que a
pergunta, Majestade?

Felizmente, Mirvin sabia alguma coisa sobre todo mundo.


Achava que devido a todos os anos sendo um lorde no grande
reino.

Dei de ombros.

— Conversei com ele ontem e fiquei curiosa.

— Dizem que ele já salvou a vida do velho tio várias vezes


em campo. Acho que o rei gosta mais dele do que dos próprios
filhos.

Eu o encarei.

— Você acabou de chamar aquele homem de velho? Ele


deve ter metade da sua idade, Mirvin.

— Não fale bobagem, Majestade.

Eu sorri.

— Quantos anos tem?


— Isso, minha jovem rainha — ele olhou para mim fixamente,
com um sorriso conspiratório atravessando seu rosto enrugado —, é
a única coisa que jamais irei compartilhar.
Fui pegar algo para comer durante o intervalo das lutas e,
antes que eu chegasse na mesa do banquete, alguém me chamou.

— Rainha Cera.
Virei-me e me surpreendi com o homem à minha frente. Era
tão pequeno que precisei abaixar o olhar para encará-lo. Ele era
ainda mais baixo que Mirvin. E usava uma coroa.

Demorou um momento, mas eu me lembrei.

— Rei Wullfric. É um prazer conhecê-lo.

— Igualmente. Bela mira no dia da iniciação.

— Obrigada.

— Não sabia que mulheres aprendiam a usar flechas em


Umbra.

Eu sorri. Ou pelo menos tentei.

— Acredito que há muitas coisas que não saiba sobre o meu


reino.

— Seu reino. — Ele repetiu, entortando seus lábios tão


sutilmente que mal fui capaz de perceber. — Claro.

O homem me encarou fixamente sem dizer mais nada e o


silêncio se tornou desconfortável. Apesar de não ter interesse algum
de continuar aquela conversa, ele era um rei. Então, procurei por
assuntos banais para quebrar o gelo.
— Esse tempo está...

— Não sei se está ciente — ele me interrompeu


abruptamente, fez uma pequena pausa e cruzou as mãos atrás das
costas —, mas Niverville, parte do seu reino, pertencia à Alodias.
Porém foi tomada injustamente por Umbra.

Pisquei, um tanto surpresa com o rumo da conversa e por


não fazer ideia do que ele estava falando.
— Ah. E... quando foi isso?

— Cerca de oitenta anos atrás.

Eu combati o desejo de rir.

— Bem, então parece que isso é um assunto mais do que


esquecido, não é?
Apesar do meu tom de bom humor, seu rosto permaneceu
muito sério.

— Discordo. E estava na esperança de que, como uma


rainha justa, fizesse o que é certo.
O sorriso foi embora do meu rosto.
— E o que seria certo? — perguntei devagar.

— Me devolver o que me foi roubado.

Surpreendi-me com o pedido e, principalmente, com a


audácia.

— Se foi roubado e faz tanta questão, por que não resolveu


isso com o antigo Rei de Umbra? — Eu fiz a pergunta, mas não
precisava da resposta.
Ele me achava mais fraca. Pensava que, agora que Umbra
estava sob meu comando, ele finalmente conseguiria recuperar o
que considerava ser a sua terra.

Wullfric hesitou.

— Estávamos… conversando sobre isso. Inclusive,


estávamos chegando a um acordo antes de…
— Eu matá-lo? — completei.

Silêncio caiu sobre nós por um momento. A tensão era


palpável.

Eu já odiava aquele pequeno homem oportunista.

— Creio que seja uma rainha inteligente. E que não queira


fazer inimigos tão cedo, certo? — Ele professou a ameaça e, então,
se afastou, encerrando a nossa conversa.
Eu não sabia muito sobre a história de Niverville, uma
pequena região ao norte de Umbra, e suas origens. Mas pertencia à
Umbra agora e era meu trabalho proteger e manter as terras do
reino. Eu não abriria mão dela diante daquela intimidação. A
questão era saber até onde aquele homem iria para ter a terra de
volta.

Talvez eu tivesse acabado de travar uma guerra com o Reino


de Alodias.
— Vou te ver no campo, Majestade?

Virei-me e dei de cara com Taron. Ele fez uma reverência


com um sorriso no rosto. Precisei de um momento para entender o
que havia dito e ao que estava se referindo.
— Eu? — indaguei, copiando seu sorriso. — Claro que não.
Acho que nem é permitido que uma mulher lute.

— Tenho certeza de que abririam uma exceção para você.

— Como na dança, está superestimando as minhas


capacidades.
— Não sei, não. Acho que daria um show.

Abri um sorriso gentil em sua direção.

— Mulheres não lutam por diversão, Sir Taron. Lutamos para


sobreviver.

Ele ficou em silêncio por um momento, até que desviou o


olhar do meu. Nós observamos a nova luta que já se desenrolava no
centro da arena por um instante.

— Quem você acha que vai ganhar? — perguntei, quebrando


silêncio.

— O Duque.
— Como sabe?
— Sou um soldado, já lutei o suficiente para reconhecer um
bom lutador.

E como se fosse o destino, naquele exato momento, o duque


desarmou o oponente, fazendo a sua espada cair longe.
Taron voltou a me encarar com um sorriso satisfeito no rosto,
mas nem um pouco convencido.

Nós aplaudimos os lutadores com o resto dos espectadores.


— Ouvi dizer que é um ótimo soldado, por sinal.

Taron me fitou.

— Ouviu?
Assenti.

Ele desviou o olhar e deu de ombros.

— Sou ok.

Ambos sabíamos que aquilo não era verdade.

— Falsa modéstia não combina com você, Sir Taron de


Miscam.

Ele sorriu, um sorriso de garoto que me pareceu


particularmente atraente.

— Eu...

— O Rei Sarkian Varant de Khrovil convida o Sir Taron de


Miscam.

Ao ouvir aqueles nomes sendo anunciados, Taron e eu


olhamos para o centro da arena.

Sarkian estava de pé, ao lado do apresentador. Estava


mascarado, mas eu sabia que sua atenção estava em mim. Em nós.

Eu pisquei.

Não podia ser.

Comecei a me perguntar se havia entendido direito e a


resposta me foi entregue pela quantidade de olhares que se viraram
em nossa direção.
Aquilo realmente estava acontecendo.
Eu me virei para Taron. Ele parecia tão surpreso quanto eu
ao passo que fitava a arena. E, quando finalmente falou, não estava
olhando para mim.

— Com licença, Majestade.

Eu cheguei a abrir a boca, mas ele já estava se afastando.

Tive o estranho impulso de segurar seu braço e pedir para


que não participasse. Mas sabia que ele jamais faria isso. Recusar
seria um enorme sinal de covardia e também desrespeito ao rei
anfitrião. E Taron era nobre demais para isso.

Também não era meu lugar dizer a ele o que fazer ou deixar
de fazer.

Aquela luta iria acontecer e não havia absolutamente nada


que eu pudesse fazer além de assistir e torcer.
capítulo 13

Os olhares acompanharam Taron até que ele se encontrasse


no centro da arena.

Tinha certeza de que estava confuso. Como não estaria?


Nenhum rei, além do próprio anfitrião, costumava entrar no
ringue. E com tantas pessoas ali para serem convidadas, por que
logo Taron?

De alguma forma, eu sabia que aquilo era minha culpa.

Fazia parte do seu jogo.


Voltei para o meu acento com vista privilegiada para a arena.
Observei Sarkian tirar a máscara e entregá-la para um soldado seu.
Também o observei dispensar a armadura de combate. Havia um
burburinho correndo pela plateia diante da decisão.

Nenhum nobre lutava sem a proteção.

Arrogante.

Fiquei feliz em ver que Taron a aceitou.


As pessoas em volta estavam mais interessadas do que
nunca. Era um rei lutando contra um renomado soldado. Perguntei-
me para quem estavam torcendo.
Eu não queria apenas que Taron ganhasse, queria que ele o
machucasse. Queria que humilhasse Sarkian na frente de todas
aquelas pessoas.
Era uma decisão um tanto arriscada por parte do Rei das
Trevas, diria até estúpida. Se Taron o machucasse e o fizesse
sangrar, todos ali presentes veriam quem Sarkian Varant realmente
era. Mas eu o conhecia, era presunçoso o bastante para achar que
nada aconteceria com ele. Que Taron jamais o faria sangrar.

O apresentador anunciou o início de combate. As espadas se


ergueram. O aço afiado das lâminas brilhou. E o primeiro choque de
espadas fez um eco metálico que ecoou por toda a arena. Houve
um completo silêncio entre a multidão.

Taron avançou uma vez.

Apesar de serem praticamente da mesma altura, Taron era


maior. Seu braço era o tronco de uma árvore. E também parecia um
pouco mais velho que Sarkian, tinha anos de experiência em
batalha. Já Sarkian era a própria realeza. Havia crescido em um
palácio cercado de luxos e de uma vida extremamente confortável.
Ele era bom em torturar, em comandar soldados com seu tom
arrogante e gélido.

Taron avançou mais uma vez.

A força com que ele desceu a espada em direção ao


oponente foi impressionante.

Era selvagem.

Eu fiquei impressionada.
Um sorriso atravessou meu rosto.

Taron atacou de novo.

Mas, em momento algum, chegou perto de acertar o


oponente. Sarkian continuava defendendo com a espada e
desviando com facilidade. Odiava admitir, mas ele tinha técnica.

Como na dança, Sarkian era gracioso, meticuloso, mas firme.


Ele calculava cada movimento e previa cada ataque.

Apesar de Taron ter experiência e claramente saber usar uma


espada muito bem, ele usava principalmente a força.

Sarkian usava a mente. Ele tinha um método que não era


apenas eficaz, era também terrivelmente elegante.

Passados alguns minutos de combate, Taron já estava


cansado e frustrado.

Já Sarkian parecia estar... se divertindo.

Isso tornava tudo pior. Ele parecia zombar de Taron, estava


mexendo com a sua cabeça.

Minhas palmas começaram a suar.

— Vamos, Taron... — Eu murmurei baixinho entre os lábios.

Suando e tenso, o soldado avançou mais uma vez. Um som


feroz escapou de sua garganta. Só que, em vez de parar o ataque
com a espada, Sarkian desviou completamente. Foi um movimento
tão fluido e inesperado, que Taron tropeçou e caiu com os joelhos e
punhos no chão.

Um “oh!” coletivo atravessou a multidão.


Sarkian, ao contrário de aproveitar e render o oponente,
concedeu espaço para que se levantasse.
O bastardo queria mais.

Enquanto aguardava, Sarkian girou a pesada espada entre


os dedos da mão direita como se ela pesasse menos que uma
pluma. Uma manobra fluida e completamente exibicionista. Estava
brincando com a arma como se não estivesse no meio de um
combate.
Eu tive a súbita vontade de entrar naquela arena e enfiar uma
espada em seu coração apenas para tirar aquele olhar petulante de
sua expressão.

A multidão reagiu. Alguns se divertiam com ele, torcendo.


Outros gritavam para Taron se levantar.
O que ele fez.

E eu já não tinha mais certeza se achava que isso era uma


boa ideia.

Vi a irritação e a humilhação no olhar de Taron, mas agora eu


também via outra coisa: receio.

O céu acima de nós se fechou e a primeira trovoada chegou.


Eles ficaram parados se encarando por um momento. Mas,
daquela vez, Taron não avançou.

Foi quando notei que Sarkian ainda não tinha atacado uma
vez sequer. Minutos se passaram, Taron já tinha ido para o chão, e
Sarkian ainda não tinha levantado a espada em ataque uma única
vez.
O tempo pareceu congelar. Cada segundo era uma década.
Eu podia sentir a tensão por toda a arena.

Então, os lábios de Sarkian se moveram em direção ao


Taron. Não sabia o que havia dito, ninguém além de seu oponente
era capaz ouvir. Mas eu sabia que era puro veneno.

Sabia porque eu o conhecia. Sabia porque Sarkian Varant e a


crueldade eram amantes.
Não caia nessa, Taron.

Não deixe que ele brinque com você.

Assim que as palavras deixaram a boca de Sarkian, Taron


avançou com um rugido feroz.

Foi um erro.
Eu sabia disso antes mesmo do choque entre as espadas.
Porque, depois que Sarkian defendeu o golpe, ele começou a de
fato atacar. Taron driblou os primeiros golpes, mas com dificuldade.
Ele começou a recuar. Vinham rápidos demais, imprevisíveis
demais. Sarkian mal colocava força, mas sabia exatamente o
momento de pressionar e avançar.

Em algum momento, um golpe pegou no braço de Taron.


Consegui ver o rasgo abrir na manga da roupa. Ele tropeçou para
trás, recuando do oponente.
A multidão se agitou.

Minhas mãos se contorciam em punhos.


Sarkian parou apenas por um momento. Não tinha certeza do
porquê, mas sabia que não era por misericórdia pois,
diferentemente de todos ali, eu o conhecia. E só entendi de fato
quando seu olhar encontrou o meu na multidão.
A sombra lenta de um sorriso atravessou seu rosto.

Satisfeito. Convencido. Perverso.


E era para mim.

As trovoadas se tornaram mais altas. O céu estava tão


furioso quanto eu.
Sustentei o seu olhar, tentando parecer indiferente. Mas sabia
que tinha falhado porque ele parecia satisfeito. E, por um instante,
pensei que pelo menos era o fim. Pelo menos, aquela maldita luta
tinha acabado.

Mas eu estava errada.

Porque Sarkian avançou para um último ataque. Um ataque


que lançou a espada na direção do rosto de Taron. A lâmina
atravessou a carne e vermelho coloriu a minha visão.

Eu compartilhava o choque com todos os espectadores. A


multidão prendeu a respiração em conjunto.
E só voltamos a inspirar quando escutamos o som brutal
deixando a garganta de Taron.

Ele caiu, gritando.

Eu não conseguia enxergar seu rosto por causa da


quantidade de sangue.
E era horrível.

Era assustador.

Um pesadelo.
— Chega! — O grito quebrou o silêncio da arena. Procurei
pela voz e me deparei com o Rei de Miscam de pé enquanto
encarava o sobrinho-neto com clara revolta e desespero. — Chega!

O apresentador parecia incerto do que fazer, em choque


demais para anunciar o fim do embate e a clara e brutal vitória do
Rei das Trevas. Mas não fazia diferença porque Sarkian já estava
deixando a arena.

Já tinha conseguido o que queria. Já tinha ferido e humilhado


Taron. Já tinha me provocado.

Eu o observei se afastar conforme o apresentador se


aproximava de Taron para ajudá-lo.
O aplauso começou incerto, mas eventualmente se tornou
alto o bastante para abafar os gritos horripilantes de Taron.

Provavelmente, o ferimento o havia deixado cego.

— Aonde vai, Majestade? — Ouvi Mirvin perguntar.

Cruzei a plateia angustiada em direção à saída da arena. Em


menos de um minuto, estava diante de um túnel largo e mal-
iluminado que se abria para o campo. Era a passagem que
separava a arena do exterior.

Parei na entrada ao vê-lo. Sarkian atravessou a escuridão


como se pertencesse a ela.
Éramos só nós dois. O barulho da plateia era alto, porém
distante.

Sarkian já tinha a máscara em mãos e a estava posicionando


de volta em seu rosto conforme deixava o lugar.

Ele me viu, mas mal reagiu à minha presença.

— Qual é o seu problema?! — Eu indaguei, com as mãos em


punhos.

Mas ele não respondeu. Continuou andando até passar por


mim como se eu não estivesse ali, o que só me deixou mais furiosa.
Eu o segui, e agora estávamos do lado de fora da construção. O
campo ao nosso redor era verde e amplo, e estava praticamente
vazio. Apenas carruagens e cavalos.

Sentia as primeiras gotas de chuva no meu rosto.

— Seu bastardo…!

Eu estiquei a minha mão e peguei o seu braço para obrigá-lo


a se virar e me encarar.

Funcionou.

Sarkian de repente parou.


Seu rosto torceu sutilmente para encarar o lugar em que eu
havia acabado de tocá-lo. Recolhi a mão como se tivesse acabado
de tocar em chamas.

Dei um passo para trás assim que ele se virou. Vi as


manchas de sangue fresco na parte de sua pele que a máscara não
escondia. Eram apenas alguns respingos no queixo e na mandíbula,
mas, quando segui o rastro vermelho, notei que desciam pela
camisa preta.

— Veio me parabenizar pela vitória?

Engoli em seco.

As gotas de chuva caíam mais rapidamente, e eu as sentia


molhando meu rosto e cabelo.

— Por que ele?! Por que escolheu ele?

— Qual é a diferença? Mal o conhece.

Uma trovoada alta estourou sobre nós, e Sarkian olhou para


cima, completamente indiferente à minha raiva.
— Nem você! — exclamei para ser ouvida, apesar da
tempestade. — Ele não fez nada para você!

— Ele vai sobreviver. — Passou a mão no cabelo negro,


afastando os fios molhados que caíam em seu rosto. — Só não será
mais tão bonito de se ver, sinto muito.

Não havia um pingo de remorso em suas palavras.

Ele começou a se virar, mas, então, eu disse:

— Se não te conhecesse, atreveria dizer que está com


ciúmes. — As palavras deixaram a minha boca antes que eu
pudesse impedi-las.

Ele soltou uma risada abafada. Puro escárnio. Pura maldade.


O som fez meu ego se contorcer.

Cruel. Tão cruel.


Sarkian tirou a máscara em um movimento gracioso e casual,
dando um passo à frente.

Seu rosto era tão terrivelmente familiar e tão


insuportavelmente belo que me fez querer recuar. Ele era
assustador de máscara, mas mil vezes pior sem ela.

Sua beleza se equiparava à sua maldade.


— Para sentir ciúmes, teria que te querer. — Seus olhos
encontraram os meus porque ele precisava me encarar fixamente
enquanto destruía qualquer resquício de autoestima que me
restava. — E para querer você, não poderia te achar tão
repugnante.

Cerrei o maxilar, mas não recuei.

Não deveria me importar com o que ele achava de mim. Não


deveria me abalar daquela forma.

Estava completamente molhada naquele momento. Sentia os


fios de cabelo grudando no rosto e o tecido da roupa colando em
meu corpo.

— Já me beijou uma vez.

A frase deixou meus lábios como uma acusação. E eu me


arrependi delas no segundo em que as ouvi.
Ele não respondeu de imediato, mas continuou me fitando
intensamente. E eu podia jurar que o prata em seus olhos se tornou
um tom mais escuro.

— E o que te faz pensar que não achei repugnante?


Porque eu estava lá.

Porque você me beijou como se eu fosse sagrada.

Silêncio caiu sobre nós mais uma vez. Mas eu não recuaria.
Porque eu não era louca. Eu havia repassado aquele
momento em minha cabeça tantas vezes que chegava a me sentir
repulsiva. Lembrava de cada segundo, cada toque.

— Então, me diz... — Dei um passo à frente. — Qual é a


sensação de desejar algo que despreza?

Sarkian ficou em silêncio.

Notei a mudança em seus olhos ao absorver as minhas


palavras.

Achava que, pela primeira vez na vida, tinha conseguido


deixá-lo sem palavras.

Um estrondo ensurdecedor preencheu meus ouvidos, e eu


olhei para o céu furioso. Quando voltei a fitá-lo, Sarkian ainda tinha
os olhos fixos em mim.

Ele passou a mão direita pelos cabelos molhados mais uma


vez. A água escorreu dos fios escuros pelo rosto, até os longos e
negros cílios estavam encharcados com a água da chuva. Observei
uma gota em particular descer pela sua bochecha e lábios até o
queixo, se misturando com o sangue em sua pele.

Mas meus olhos voltaram-se para sua boca.

E eu odiava que parte de mim esperava que ele me beijasse.


A parte de mim que pensava constantemente naquela noite.
Naquele toque. Em seu cheiro. Em seu gosto. E acima de tudo,
naquela sensação. A explosão em meu peito e a dormência de
meus membros. O calor em meu rosto e os arrepios na nuca.

Querê-lo era um pesadelo.

Perguntava-me se tinha sido de propósito. Se Sarkian tinha


me feito querer algo que eu odiava porque sabia que isso iria me
assombrar. Achava que ele era cruel e calculista a esse ponto.
Pensei nele dando um passo à frente. Suas mãos tocando
meu corpo. Seus lábios roçando nos meus.

Tentei afastar a imagem assustadora, mas foi inevitável.


Seus olhos me fitavam fixamente e, de repente, morri de
medo de que ele pudesse saber o horror que se passava em minha
cabeça. Tive a assustadora sensação de que ele conseguia ler
exatamente o que se passava por detrás dos meus olhos. Cada
pensamento secreto e impuro que eu tinha sobre ele. A exata forma
como eu me sentia em relação a ele.

Nunca me senti tão apavorada.

— Você lê mentes? É isso?

A pergunta repentina o intrigou. Vi pela faísca que brilhou em


suas íris.

— É a segunda vez que pergunta isso. Por que a


preocupação?

O vento era gelado e a água da chuva se tornava congelante,


mas eu não sentia frio algum.
— A ideia de que eu possa saber exatamente o que se passa
na sua cabeça te perturba?

Me atormenta.

— Não.

A mentira veio rápida demais. Desesperada demais.

A sombra de um sorriso perigoso atravessou seus lábios.

Seu rosto era um pesadelo pintado pelos próprios Deuses. O


sorriso, a tempestade, o sangue... Era tudo tão cruelmente belo.

— Não tem nada a esconder, farren? — Sarkian provocou.

Meu vestido estava completamente colado ao meu corpo


agora. Arrependi-me de não estar usando um corselet porque sentia
meus mamilos endurecidos. Ele notou também porque seus olhos
desceram pelo meu pescoço. Tive a dolorosa vontade de cruzar os
braços, mas não o fiz.

Seus olhos voltaram para os meus. O prata estava da cor da


tempestade que caía sobre nós.
Sentia-me exposta de todas as formas possíveis e minha
vontade era fugir, mas fiz o contrário. Já estava cansada demais de
me esconder ou fugir dele.

Éramos iguais agora. Eu era uma rainha tanto quanto ele era
um rei.

Dei um passo à frente para fitá-lo fixamente, mas, no instante


em que fiz, Sarkian vacilou. Seu corpo todo tensionou em um
pequeno reflexo que mostrou intenção de recuar. Foi sutil. Na
verdade, foi tão sútil que pensei que, talvez, tivesse imaginado. Mas,
então, me recordei do instante em que o toquei no braço para fazê-
lo me encarar. Sua reação.
Minha cabeça girou ao relembrar de cada toque e promessa
de contato.

Com exceção das vezes em que tínhamos dançado juntos —


nas quais sua intenção era puramente me intimidar e torturar —, ele
pareceu hesitante em me tocar.
Como se tivesse receio do meu toque.

— Isso é medo?
A frase saiu mais como uma afirmação do que uma pergunta.

Houve um longo momento de puro silêncio. O único som à


nossa volta era o da chuva.

— O quê?

— Quando eu ameaço tocá-lo… — falei devagar, tentando


compreender ao mesmo tempo em que tentava colocar em palavras
—, parece que tem… medo.
Ele piscou.

Achava que era a primeira vez que via confusão genuína em


seu rosto. Mas, rapidamente, a sua feição voltou para o sarcasmo
manipulador usual.

— Tentou me matar duas vezes. Talvez eu tenha razão para


isso.

Mas não é isso.


Eu torci a cabeça ao fitá-lo, tentando entender. Tentando
desvendar o enigma que era o homem diante de mim.
— Você não tem medo do ataque, do combate... Poderia se
defender com facilidade, sabe disso melhor do que ninguém. — Eu
pisquei algumas vezes, tentando afastar a água da chuva conforme
o encarava. — O que é, então?

A resposta poderia sair facilmente.


Porque não quero tocar em algo tão repugnante.

E talvez fosse isso mesmo. Talvez ele realmente sentisse


essa enorme repulsa por mim. Afinal, era a única explicação que eu
podia pensar.
Mas, então, por que ele tinha me beijado? Por que tinha me
beijado daquela forma?

Eu esperei pacientemente pela resposta que iria me destruir,


que iria comprovar o quanto ele me desprezava e quão
insignificante eu era e sempre seria aos seus olhos.

Mas ela não veio.

Em vez disso, ele jogou a cabeça para trás e fechou os olhos


por um instante. Observei os pingos de chuva escorrendo pelo seu
rosto e pescoço, e, por um breve — e repulsivo — momento, tive
inveja da chuva.

Quando voltou a me encarar, seu rosto estava


completamente sério. Inteiramente cru. Não havia sarcasmo nem
mesmo a maldade familiar, apenas intensidade desconcertante.

— Astak var kela langar kare var ihala far.


Era selkiano. Não entendi uma palavra do que disse e tinha a
sensação de que essa era a sua intenção. Como se as palavras
fossem para si mesmo. Para o céu acima de nós. Para o Universo
inteiro.
Menos para mim.

Então, ele foi embora.


Toda vez
que ele olhava para ela
ele sentia que estava lutando
uma batalha
a qual não tinha a menor chance

de vencer
capítulo 14

Na última noite de cerimonia, tendas luxuosas foram postas


no extenso jardim do palácio para o luau. Felizmente, não havia
lutas nem danças formais. Havia apenas música, bebida e muita
comida. Tudo terminaria com o nascer do sol, ao qual iríamos
assistir com a privilegiada vista do extenso campo. Assim que a
noite caísse e o sol subisse, o casamento de três dias finalmente
teria sido completado, e eu poderia voltar para Umbra.

As tendas mais exuberantes foram erguidas para os reis e


rainhas convidados, as quais o interior estavam decorados com
grossos cobertores de lã e almofadas detalhadas em ouro.

Sarkian estava a duas tendas de distância. Não conseguia


parar de pensar nas suas palavras do dia anterior. Na sua reação.

Queria poder ler a sua mente. Tinha tantas coisas que eu


precisava saber. Qual era o seu poder? O que Willow estava prestes
a me revelar naquela noite antes de ser morta? Por que ele parecia
temer que eu o tocasse?

— Parece aborrecida, Majestade. — Allegra comentou, e eu


levantei o olhar até ela. Ela estava tirando os meus vestidos das
malas e os organizando.

— É Cera quando estamos a sós, lembra?


— Cera. — Ela corrigiu.

Suspirei.

— Não estou aborrecida, só pensando.

— Em quê?

Debati comigo mesma por um momento se queria ser


honesta ou não. Foi surpreendente, mas acabei escolhendo ser
verdadeira.
— Rei Sarkian.

— Hum… — Ela apalpou um vestido que tinha acabado de


dobrar. — Ele me assusta.
— Não se preocupe, não vou deixar que ele faça nada com
você.

E até acreditei nas minhas palavras, mas logo pensei em


Willow e uma sensação ruim cobriu a base do meu estômago. Eu
também tinha achado que nada aconteceria a ela.

— Não, Majes… Cera. Não é comigo que me preocupo. É


com você.
Franzi o cenho ao encará-la fixamente.

— Por quê?
— Ele… olha muito para você. E acho que ser o objeto de
tanta atenção de um homem como ele não é uma coisa boa.

Eu deixei a cabeça cair no monte de almofadas e encarei o


teto por um momento, absorvendo as suas palavras.
Suspirei outra vez.

— Não, não é. — Então, abri um pequeno sorriso em sua


direção. — Mas não se preocupe, Allegra. Sou mais difícil de matar
do que pareço.

Ela sorriu de volta, mas o sentimento não pareceu atingir


seus olhos.
Murmurei para mim mesma a sequência de sons que havia
deixado os lábios de Sarkian no dia anterior, mas ela não me dizia
absolutamente nada. Na verdade, nem sabia ao certo se me
recordava com precisão dos sons. Queria ter um dicionário de
selkiano, mas nada adiantaria se eu me esquecesse do que havia
sido dito. Cheguei a anotar o que achei que tinha ouvido em um
papel, para quando voltasse a Umbra, mas tinha quase certeza de
que havia feito um péssimo trabalho em transmitir o que que tinha
escutado para a folha.

— Aonde estamos indo, Majestade? — perguntou Bax um


segundo depois que deixei a minha tenda. Ele estava fazendo a
guarda na entrada.

— Na tenda do Rei Sarkian.

A expressão em seu rosto deixou claro sua insatisfação com


aquela ideia. Mas ele não disse nada, sabia que não devia.

Um bêbado cambaleou em minha direção, parecia


desorientado e prestes a esbarrar em mim. Mas Bax o empurrou
antes que o peso de seu corpo se chocasse contra o meu.

Tinha muita gente espalhada pelo jardim. Gente dançando,


cantando, bebendo e rindo abaixo da lua cheia.
Quando cheguei na tenda de Sarkian, notei que não tinha
nenhum soldado na entrada fazendo guarda, como se ele não
tivesse receio algum do que pudesse atingi-lo. A prepotência me
irritava. A verdade era que cada pequeno detalhe sobre Sarkian me
incomodava.

Simplesmente passei a mão direita no tecido grosso da tenda


e entrei.

Estava mais escuro do que imaginei que estaria. A única


iluminação do lugar vinha de uma fogueira no centro e algumas
velas espalhadas.

Ele estava relaxado em uma cadeira, fitando o fogo. As


longas pernas esparramadas à sua frente e o torso reclinado para a
direita. O cotovelo descansava no braço da poltrona e seu queixo
estava apoiado preguiçosamente na palma da mão. Na outra, ele
balançava lentamente um copo de vinho quase vazio.

Eu observei seu perfil em silêncio por alguns segundos antes


de dar um passo à frente.
Parecia afogado em seus próprios pensamentos. Parecia…
infeliz.

Era uma cena melancólica e um tanto irônica. Um rei que


tinha tudo: poder, beleza, dinheiro, juventude... E, ainda assim,
parecia miserável.
Sarkian levantou o olhar perdido.

— Ah, você. — Ele fechou os olhos e deixou a cabeça cair no


encosto da cadeira conforme um pequeno sorriso cínico atravessou
seu rosto. Ao abrir os olhos, me encarou diretamente. — Não está
satisfeita em me assombrar no meu sono e precisa fazê-lo quando
estou acordado também?

Ergui as sobrancelhas.

— Sonha comigo?
— São mais como pesadelos.

Ele levou a taça de vinho até os lábios e deu um último gole.

— Está bêbado.

Sarkian lançou o corpo preguiçosamente para frente e ficou


de pé.
— Muito observadora.

Ele se dirigiu até uma mesa cheia de garrafas e pegou uma.


Encheu sua taça e depois outra, se virou para mim e a ergueu no ar.

— Não, obrigada.
— Não está envenenada, se é isso que a preocupa. — Ele
ergueu uma sobrancelha. — Esse é mais o seu estilo.

Ignorei a provocação.

— Prefiro não arriscar.

O comentário pareceu diverti-lo, e ele deu de ombros ao


devolver a taça à mesa.
Com seu copo abastecido, ele encostou a parte de trás do
corpo na mesa e me fitou.

Eu usava um vestido verde-escuro aberto nas costas e sem


mangas, preso apenas por um laço em minha nuca. Senti um
arrepio, mas não sabia se era frio ou apenas a sua presença.

Cruzei os braços, talvez porque não tivesse a menor ideia do


que dizer ou fazer em seguida. Seu olhar tinha um poder
desconcertante. Era tão invasivo.

Durante toda a minha vida, quis ser vista. Quis deixar de ser
invisível e finalmente ser notada. E ali estava eu, odiando a forma
como alguém parecia ter sua completa e indubitável atenção em
mim. Era como se Sarkian conseguisse ver através de mim, como
se eu fosse a única coisa na Terra.

O silêncio pesou.

De repente, as palavras deixaram a minha boca como se


tivessem vida própria.
— Odeio a forma como olha para mim.

Se a afirmação o pegou de surpresa, ele não demonstrou.


Seu rosto mal se moveu. Sarkian nem piscou.

— Não, não odeia.

Foi uma frase terrivelmente confiante. A voz baixa e tranquila,


porém convicta.
Ele levou a taça à boca enquanto me observava por debaixo
dos longos cílios negros. Esperava por uma resposta, talvez uma
negação. Mas não o fiz.

Porque, talvez, ele estivesse certo.

Porque eu talvez eu não odiasse a forma que ele me olhava,


e sim, justamente, o fato de não odiar.
Ele encarou o próprio copo ao colocá-lo de volta na mesa e
voltou a me fitar, finalmente quebrando o silêncio.

— É desesperador.

Eu pisquei.
— O quê?

— Você me perguntou como é desejar algo que desprezo. —


O foco e a seriedade em seus olhos me fizeram perder o fôlego. —
É desesperador.
O tempo parou. O meu coração deu uma galopada em meu
peito.

Engoli em seco.

— Então, me… deseja?

Sarkian não respondeu e o silêncio pesou mais uma vez.

Ele se aproximou, passos lentos beirando a cautelosos, mas


confiantes. Sarkian parou bem em frente a mim, e precisei erguer o
olhar para encontrar seu rosto. Ele me fitou por muito tempo. E eu já
não ouvia nenhum barulho do lado de fora da tenda, apenas o meu
coração galopando no peito.

Sarkian levantou a mão direita e tocou meu rosto com o


indicador. Senti o couro da luva no ponto em que a minha bochecha
encontrava a minha mandíbula, e foi como um choque. Eletricidade
percorreu meu corpo inteiro. Ele o arrastou pela minha pele até
chegar no queixo, acompanhando o movimento com o olhar.
— Tão cruel... — Ele murmurou com a voz rouca e quase
inaudível. E, por um momento, não sabia se estava falando comigo
ou consigo mesmo. — Sabe quão cruel você é?

Sabia que deveria pará-lo. Sabia que deveria recuar e ir


embora.

Mas não conseguia.


Estava fascinada. Curiosa. Hipnotizada.

Porque Sarkian era como um acidente trágico acontecendo


bem a sua frente. Você sabia que deveria desviar o olhar. Sabia que
o resultado seria apavorante, mas você simplesmente não era
capaz de desviar. Era fascinante demais. Era tão terrível, mas tão
hipnotizante ao mesmo tempo.

— Eu? — Minha voz arranhou a garganta como uma lixa. —


Você é a personificação de maldade, Sarkian.

Sua mão abandonou meu rosto, e ele sorriu. Mas era um


sorriso amargo e repleto de enigmas.

Ele deu mais um passo à frente, e eu fui obrigada a recuar.


Minhas costas encontraram a pilastra de madeira no centro da
grande tenda.

— Já lutei muitas batalhas, já tirei muitas vidas, já conheci o


pior da humanidade... E ninguém nunca me assombrou como você.
Por mais que eu tente, jamais vou conseguir te atormentar da forma
que faz comigo. — Sarkian se aproximou ainda mais. Esticou o
braço direito e o apoiou na pilastra atrás de mim, acima da minha
cabeça. — E sabe o que é pior?
A pergunta pairou no ar, e ele se inclinou, me cercando e
deixando o rosto a centímetros do meu.

Prendi a respiração.

— Você nem precisa se esforçar. Isso é a verdadeira


crueldade. — Um pequeno sorriso lento e melancólico quebrou em
seus lábios, e ele soprou: — Você, minha querida, é o ápice da
maldade.
Senti o vinho em seu hálito e o calor do seu corpo.

Tudo era eletricidade. Meu coração batia desesperadamente


enquanto eu tentava encontrar sentido naquilo.

Aquilo não estava acontecendo.

Não podia ser verdade, certo?


Talvez fosse um jogo. Talvez ele estivesse brincando comigo,
me manipulando por puro tédio e maldade. Era isso o que ele fazia.
Era isso o que nós fazíamos.

Mas havia algo desconcertante em seu olhar. O prata nunca


havia me parecido tão cru e escuro.

Queria dizer alguma coisa. Minha boca chegou a abrir, mas


nada saiu.
Ele estava perto demais. Sentia-me cercada. Era tudo
demais. Seu olhar, seu cheiro, suas palavras...

A mão livre, que não estava na pilastra, voltou ao meu rosto.


Ela hesitou por apenas meio segundos antes acariciar a lateral da
minha face. Seu polegar se arrastou pelos meus lábios em um toque
suave e torturante, e ele o acompanhou com os olhos como se
estivesse tão absorto quanto eu.

— O meu ódio por você me consome... Não há outra coisa


em que eu pense além disso. — Sarkian aproximou os lábios e,
conforme sussurrava com a voz rouca, arrastava suavemente a
ponta do nariz pelo meu maxilar. O calor de suas palavras causando
arrepios em todo lugar. — É no que eu acordo e vou me deitar
pensando. Até quando estou dormindo. É você… o tempo todo. E
eu odeio. Eu realmente — ele fechou os olhos e alinhou seus lábios
com os meus — odeio.

A última palavra foi soprada contra minha boca.

Senti o poder dela em cada célula do meu corpo.

Porque a conhecia tão bem. Porque a sentia da mesma


forma.

Fechei os olhos.

Ouvia meu coração martelando forte. E ouvia também a


minha respiração descompassada. O barulho da festa lá fora de
repente tinha ido embora.

Era só ele.

E eu sabia que ele iria me beijar. Porque Sarkian olhou para


minha boca com um tipo de atenção e desejo que me fez engolir em
seco. Mas ele ficou alguns segundos hesitantes, como se não
tivesse certeza se deveria fazer.

Como se meus lábios tivessem um gosto tentador, mas


fossem veneno, e ele estivesse se perguntando se valia a pena
morrer pelo desejo.

Eu não me movi. Não fiz nenhum movimento para fechar a


pequena distância, mesmo que todo o meu corpo estivesse
implorando pelo contrário.

Em vez disso, eu sussurrei contra seus lábios:


— Odeio você. Odeio. — Engoli em seco, a promessa
deixando os meus lábios com a voz rasgada. — Eu vou te destruir,
Sarkian. Talvez não agora, talvez não tão cedo. Mas eu vou. Eu juro.

O que se seguiu foi um momento paralisante.

Três galopadas em meu coração.

No fim das contas, a resposta foi: sim, vale a pena morrer


pelo desejo.
Sarkian fechou a distância entre nossas bocas como alguém
que pulava de um penhasco em direção à água profunda.
Aterrorizado e completamente entregue.

Foi lento, mas não suave. Foi mais desesperado do que na


primeira vez.
Senti um choque tão grande que fez todos os pelos do meu
corpo se arrepiarem.

Sua mão esquerda se tornou mais firme na lateral do meu


rosto enquanto a direita continuava apoiada na pilastra, o aparando.
A parte de trás da minha cabeça se chocou contra a madeira devido
à pressão do seu toque.

Ele sugou meu lábio interior e, logo depois, deslizou a língua.


Eu ergui meus braços, o segurando pela nuca e peito. Ele
vacilou por um instante, seus lábios deixando os meus.

Sarkian inspirou fundo, tomando fôlego. E eu fiz o mesmo.

Ele abriu os olhos para encontrar os meus. No escuro, o


prata brilhava como a lua. Era puro desejo e pura… dor.

Tanta dor.

Havia um brilho de agonia em suas pupilas que eu não


conseguia decifrar.

E não houve tempo, porque seus lábios estavam nos meus


mais uma vez.

Aflito. Desesperado. Necessitado.


Seu braço direito deixou a pilastra e encontrou a minha
cintura. Ela começou a descer, e senti os dedos enrolando na saia
do meu vestido. O toque causou efeito direto no ponto entre as
minhas pernas.

Um gemido escapou dos meus lábios, e minhas unhas


correram pela sua nuca, a única parte de seu corpo com pele
exposta.
Sarkian pegou um dos meus braços e o prendeu contra a
pilastra, acima da minha cabeça. Eu arfei devido ao movimento
fluido e surpreendente. Então, fez o mesmo com meu outro braço.
Ele separou os lábios dos meus e me fitou na posição em que me
colocou. Estava presa contra a pilastra, com ambas as mãos acima
da minha cabeça. A respiração descontrolada, e eu tinha certeza de
que com desespero explícito no olhar.
Queria tocá-lo. E queria que ele me tocasse.
Desesperadamente.

Remexi-me contra seu aperto, mas sua mão direita não


vacilou.

Ele gostava de ver minha angústia.


Seus lábios estavam inchados e avermelhados, e suas
pupilas, dilatadas.

A sombra de um sorriso malicioso atravessou seu rosto, mas


não encontrou seus olhos. Eles continuavam brilhando em luxúria
violenta.
Com a mão que não prendia meus pulsos acima da cabeça,
ele percorreu o meu peito. Com o dedo indicador, arrastou pela
extensão do tecido fino, roçando em meu mamilo de propósito.

— Me solta. — Eu arfei.

Porque eu não aguentava mais a provocação, a lentidão.


Queria me aproximar. Queria seu corpo contra o meu, sua boca em
minha pele.

Mas ele não soltou.


Em vez disso, seus dedos subiram tão lentos quanto haviam
descido e, por fim, encontraram o laço em minha nuca. A única
coisa que prendia meu vestido no corpo.
Eu exalei com força.

Sarkian ergueu o olhar. A intensidade no prata era


arrebatadora.
E, sem quebrar contato visual, ele puxou.

O material afrouxou e o cetim escorregou pelo meu corpo até


encontrar o chão. Eu arfei, sentindo a brisa fria na minha pele
nua. Aquele vestido não me permitia usar corselet, então sem ele,
eu estava completamente nua.

Sarkian deu um pequeno passo para trás, como se para me


observar melhor.
Tudo ficou muito quieto por um momento.

E eu fiquei parada, totalmente exposta enquanto ele me


fitava, completamente coberto.
O prata escureceu em uma sombra que eu não sabia decifrar.
Seu rosto aos poucos tomando uma expressão… excruciante.

Minha respiração era ofegante e meu coração galopava como


se eu tivesse corrido centenas de quilômetros. Eu esperava que ele
fizesse alguma coisa. Eu queria que ele fizesse alguma coisa. Mas
Sarkian só ficou parado, me fitando com a expressão de alguém que
estava lutando uma batalha em sua própria mente.

Os segundos se transformaram em décadas, e eu lutava


contra a vontade de me cobrir ou tentar me esconder.

Eu tomei uma decisão. Juntei toda a confiança que tinha e


arrisquei um movimento. Eu dei um passo à frente e ergui o braço
para tocar seu rosto, para me aproximar.

E o que Sarkian Varant fez em seguida me quebrou.


— Não.
Ele virou o rosto, se esquivando dos meus dedos.
A palavra rouca rasgou o espaço entre nós.

Minha mão congelou no ar.


Sarkian cerrou o maxilar e teve os olhos fechados por um par
de segundos. Então, me encarou com algo muito semelhante à…
repulsa.

Ele deu um passo para trás, e eu recolhi a mão, me cobrindo


da melhor forma que pude.
E o que sobrou de mim quando ele foi embora não foi muito
mais do que alguns pedaços de mágoa e vergonha.
capítulo 15

— Morta. — Bax disse com a ponta da lâmina perto do meu


peito. — De novo.

Treinávamos desde o amanhecer. O suor escorria pelo meu


rosto e os fios de cabelo colavam em minha pele.
— Sua quarta hoje.
Eu recuei, irritada.

— Vamos de novo.

Entrei em posição.

Bax atacou. Eu consegui desviar e contra-atacar, mas ele


parou a minha espada facilmente.
— Está esbaforida. — Deu um passo para trás. — Está ávida
demais para o ataque e está perdendo o timming.

Ataquei de novo.
O som metálico ecoou e, em menos de três segundos, ele
tinha sua lâmina próxima da minha jugular.

— Cinco.
Eu grunhi, jogando a minha espada no chão.

— Suas emoções estão atrapalhando. Sua raiva pode ser


incentivo para vencer um duelo, mas precisa saber contê-la.
— De novo — disse.

— Estamos treinando tem tempo demais. Precisa descansar.

Eu cheguei a abrir a boca para rebater, mas, no fim das


contas, sabia que ele estava certo.

Deixei o pátio de treinamento sentindo os braços doloridos e


a endorfina percorrendo pelo meu corpo. Estava treinando pesado
nas últimas semanas.

Desde que voltei do casamento em Vadronia.


Desde que Sarkian Varant me rejeitou como se eu fosse
contagiosa.

Ele havia deixado sua própria tenda de tão desesperado que


estava para se ver longe de mim. Eu me lembrava da sensação
dolorosa que se espalhava pelo meu peito conforme me vestia.
Lembrava de como minha garganta doía e meus olhos ardiam
quando voltei para a minha tenda.

Depois de um banho, fui em direção ao salão principal. Mirvin


me esperava à porta.

Franzi o cenho.

— Nossa aula não é até às 7.

Desde que retornamos, Mirvin estava me ensinando a falar


selkiano. Ele era fluente na língua; era apenas uma das seis línguas
que ele falava fluentemente. Todos os dias tínhamos, pelo menos,
uma hora de aula. Não era uma língua fácil, e, muitas vezes, eu me
frustrava. Mas Mirvin dizia que meu progresso estava bom para
apenas um mês. Eu já conseguia compreender algumas palavras-
chaves.

Mirvin balançou a cabeça.

— Não é sobre a aula.

— O que é, então?

Ele moveu a bengala e deu um passo à frente.

— Eles estão aqui, Majestade.

— Quem?

Mirvin sorriu. Um pequeno sorriso lento e conspiratório.

— Seus caídos.

Eu parei abruptamente, lançando um olhar para a porta.

— Estão aí dentro? — indaguei.

Ele assentiu.

De repente, um estrondo seguido de um grito ecoou por


detrás da porta. Lancei um olhar para Mirvin.

— Acho melhor entrarmos.

Pouco depois da minha volta, eu havia mandado aos


soldados que fossem à procura dos nomes que Willow havia me
dado.

Eu não tinha a menor ideia do que esperar, mas estava


ansiosa, animada e um tanto apreensiva. Quando a porta foi aberta,
me vi diante de DeLarosa, alguns soldados e quatro estranhos um
tanto agitados.
Um desses estranhos era uma garota que, no momento,
discutia com um dos soldados.
— Não fizemos nada de errado! Me deixe sair daqui, agora!

— Shiv, acalme-se! — Um deles pediu a ela, tentando puxá-


la.
Mas a garota de cabelos curtos e escuros avançou.

Um dos soldados colocou a mão na espada como se fosse


erguê-la.

Eu arranhei a garganta, visto que nenhum deles notara a


minha presença na confusão. Eles se viraram e me fitaram. Até
mesmo Shiv parou onde estava. Com exceção da garota, todos eles
fizeram uma reverência. Até que ela foi cutucada pelo colega ao
lado e se juntou a eles.

Atravessei em silêncio até estar diante do trono. Senti seus


olhos me seguindo por todo o caminho.

Passei o olho pelos quatro. Shiv, uma garota de pele clara,


cabelos na altura do queixo e estatura média. Ao seu lado, um
garoto grande de rosto redondo e pele escura. E dois garotos de
cabelos castanho-acobreados que deduzi serem gêmeos, porque a
semelhança chegava a ser desconcertante.

— Falta um. — Eu disse, finalmente.


— Ele escapou, Majestade. — Um dos guardas respondeu.
— Alguns soldados ainda estão no local onde o vimos pela última
vez tentando rastreá-lo.

Assenti e, então, fitei os quatro de novo.


— Bem-vindos. — Sorri. — Estou muito feliz por estarem
aqui. Gostaria que se apresentassem.

Demorou um instante, até que um dos gêmeos, o que vestia


uma blusa azul, deu um passo à frente.

— Pode me chamar de Brasa, Majestade. — Ele fez uma


bela reverência e sorriu. — E, se me permite dizer, me disseram que
era bonita, mas os rumores não chegam perto de fazer jus à sua
beleza.
— Deuses, você está realmente flertando com a rainha?! —
Shiv indagou.

Brasa lançou um olhar a ela.


— Ciúmes, meu amor?

Ela fez uma careta de nojo ao desviar o olhar. Eu a fitei,


esperando, e ela finalmente cedeu com a voz seca:

— Shiv Galene.

O outro gêmeo levantou uma das mãos em um movimento


casual e me lançou um meio sorriso ao dizer:
— Kit.

Assenti e, então, levei meu olhar ao último deles, que apenas


me encarava. Seu rosto suava, e ele abria e fechava as mãos sem
parar, em um gesto nervoso.

Kit o cutucou com o cotovelo, e isso fez com que ele


gaguejasse:
— E-eu... Meu nome é Rooke. — Ele arranhou a garganta. —
Majestade, não fizemos nada de errado.

— Eu sei. Sinto muito pela forma como foram trazidos até


aqui, minha intenção não era assustá-los.

— Por que estamos aqui, então? — Shiv perguntou.


Inspirei fundo.

— Sei de suas habilidades. Vocês são... especiais.

Brasa soltou uma risada abafada.

— Especiais — murmurou. — Essa é nova.


— E eu tenho interesse em saber mais sobre vocês
— continuei. — Do que são capazes de fazer.

— Olha, Majestade, eu não... Eu não sei do que você está


falando. — Rooke se remexeu, claramente apreensivo. — Acho que
nos confundiu. Somos cidadãos comuns.
— Ela sabe o que somos, gênio. — Kit disse mais baixo. — O
que todos nós aqui temos em comum? Ou você acha que é pura
coincidência que pegou justamente nós quatro?

Eu entendia a sua apreensão. Eles tinham vivido escondendo


sua verdadeira identidade desde que nasceram. O medo de como
as pessoas reagiriam fez com que passassem toda a sua vida
fazendo de seus dons um segredo.

Seus dons, seu sangue..., eram uma sentença de morte em


Umbra.
— Ele está certo. Eu sei.
— E o que quer de nós? — indagou Kit.

— Tenho uma proposta a lhes fazer.

— Não estamos interessados — rebateu Shiv, dando um


passo para trás. — Se não fizemos nada de errado, nos deixe ir
embora.
Ela se virou e começou a andar em direção à porta. Lancei
um olhar para os soldados, e eles pararam em seu caminho.

— Me deixem sair. — Ela pediu, com a voz cortante.


A garota avançou, mas eles não recuaram. Corpos se
chocaram. Um dos guardas pegou o braço dela, tentando imobilizá-
la.

— Soltem ela! — pediu Rooke, abalado.


De repente, o lustre no centro do salão começou a balançar.
Olhei para cima, confusa e surpresa, mas, então, escutei um grito e
desci meu olhar de volta para Shiv, que havia literalmente jogado
um dos soldados para o outro lado do salão como se ele pesasse
como um livro ou uma vela.

Os soldados à nossa volta se agitaram.

Levantei-me do trono.
Mais homens foram para cima dela.

— Parem!

O lustre começou a balançar freneticamente. Os gêmeos


notaram, assim como alguns soldados. Mas Shiv e alguns dos
guardas estavam ocupados demais trocando golpes.
Kit foi até a garoto grande e colocou os braços em seus
ombros, como se para tranquilizá-lo. Ele murmurou algo que eu não
consegui entender. Na verdade, tinha tanta coisa acontecendo ao
mesmo tempo, que eu não conseguia entender absolutamente
nada.

Shiv empurrava ou nocauteava os soldados com pequenos e


breves movimentos. Tinha cerca de cinco homens caídos quando
DeLarosa saiu do meu lado com a espada em mãos.

— Não os machuquem! — pedi.

A garota podia ser forte, mas, com certeza, não era à prova
de espadas. Mas, ao mesmo tempo, eu estava dividida em proteger
meus soldados. Não sabia a extensão do estrago que Shiv poderia
causar.

Dei um passo à frente e cheguei a abrir a boca para ordenar


que parecessem, mas, então, ouvi um estalo.
Congelei e, assim como os outros, olhei para cima.

O enorme lustre se soltou.


A briga foi interrompida e os corpos se espalharam
desesperadamente antes que o pesado e pontiagudo lustre caísse
no centro do caos.

Um baque estilhaçado preencheu meus ouvidos ao passo


que vários cacos e pedaços de metal se espalharam pelo
chão. Todos olharam para o lustre caído conforme se recuperavam
do susto. A briga foi esquecida por completo e felizmente ninguém
foi atingido pelo metal.
— O que aconteceu?! — perguntei, trocando o olhar entre o
lustre e os quatro. — O que foi isso?!

Shiv e os gêmeos olharam para Rooke.

— Desculpe, Majestade. — Ele respondeu, nervoso. — Eu


não tive a intenção...
— Está tudo bem, Rooke. — Shiv passou a mão direita nas
costas dele, como se para acalmá-lo.

— Ele não consegue controlar quando fica estressado ou


ansioso. — Kit explicou casualmente, como se aquilo fosse algo
com o qual estivessem acostumados.

— O que é basicamente sempre — completou Brasa, se


levantado. Ele havia se jogado no chão ao escapar do lustre.

Olhei para Rooke.

— Você fez isso?! — indaguei.

Ele assentiu, envergonhado.

— Com a mente. — Pisquei

— Telecinese — explicou Shiv.

Meus Deuses...

Aquilo era inacreditável. E assustador. E incrível. Tudo ao


mesmo tempo.

Todos olhavam para mim, em expectativa.

Aquele tipo de dom já havia levado milhares de pessoas para


a forca. Em Umbra, os reis, por gerações, caçaram e exterminaram
os caídos.

Inspirei e me recompus.

— Não tem problema. — Voltei para o trono e me sentei. —


Mas gostaria que vocês, pelo menos, escutassem a minha proposta.
— Lancei um olhar à Shiv. — E se não gostarem, estão mais do que
livres para ir embora.
Eles quatro trocaram um olhar, e levou um momento até que
um dos gêmeos cruzou os braços e disse:

— Estamos ouvindo.

— Como disse, sei das suas habilidades e gostaria de poder


saber mais sobre elas. Pode ser que sejam úteis para mim em
certas... ocasiões.

— Ocasiões? — Shiv indagou. — Quer dizer, batalhas e


guerras?

— Possivelmente.

Rooke balançou a cabeça veementemente.

— Eu não gosto de guerra, Majestade.

Eu sorri para ele, um pequeno sorriso tranquilizador.

— Eu também não, Rooke. Não se preocupe, não vou exigir


de vocês nada que não se sentirem confortáveis a fazer. Mas
fiquem. Me deixem conhecê-los, e podemos entrar em um acordo
da extensão que podem participar.

— E o que ganhamos em troca? — indagou Kit.

Dei de ombros.
— O que desejarem.

Brasa ergueu o olhar.

— Qualquer coisa?
— Vou fazer o melhor para atender seus desejos. Precisam
ser razoáveis, no entanto.

— Dinheiro? — Kit sugeriu.

Assenti.

— O que acham de 100 salins para cada um de vocês e um


quarto no palácio pelas próximas semanas? Depois, vamos
acertando conforme as coisas vão evoluindo.
O olhar de Kit brilhou. Achei que Brasa fosse se engasgar.
Até Shiv pareceu surpresa.

— Fechado! — responderam os gêmeos em uníssono.

Olhei para Shiv.

— Não quero os 100 salins.

— Tudo bem — respondi. — O que quer, então?

— Ragnfred Elvellon. Ele foi preso por furto tem 8 meses. —


Ela engoliu em seco e fez uma pausa, mas manteve o queixo
erguido. — Gostaria que me pagasse com a sua liberdade.

— Feito.
Ela piscou, meio surpresa, meio emocionada. Aquele tal de
Ragnfred deveria ser importante para ela porque desde que havia
chegado aquela foi a primeira vez que vi sua expressão mudar para
algo que não fosse dureza.

Virei-me para Rooke.

Ele olhou para os três por vários segundos, abriu a boca e


fechou um par de vezes. Ainda parecia um pouco indeciso ao olhar
para mim e responder:
— Tudo bem.

Assenti, satisfeita.

— Agora, já sei que a Shiv tem super força e o Rooke


controla as coisas com a mente. — Lancei um olhar para os
gêmeos. — E vocês dois?

A sombra de um sorriso atravessou seus lábios ao trocarem


um olhar. Brasa foi o primeiro a dar um passo à frente.
Ele estalou os dedos e, de repente, uma chama surgiu no ar.

Ele simplesmente criou fogo com um único movimento e do


nada.
— Claro. — Sorri em compreensão. — Brasa.

Ele sorriu de volta e piscou. A chama simplesmente evaporou


de seus dedos quando ele abaixou a mão.

Eu ainda estava chocada, tentando me convencer de que


aquilo não era um sonho, quando um vulto atravessou a minha
visão. E precisou que eu piscasse o olhar uma vez para que notasse
que Kit não estava mais ao lado do irmão.
Ele estava do meu lado. A centímetros do trono.
Kit havia atravessado o salão em um piscar de olhos, tão
rápido que só notei o movimento quando ele já estava parado ao
meu lado.

Os soldados vieram em sua direção, apreensivos com a


repentina e intensa aproximação.

— Está tudo bem. — Eu os tranquilizei.

Kit sorriu torto ao me fitar.

— Eu sou rápido.

— Posso ver — foi a única coisa que fui capaz de responder,


minhas sobrancelhas erguidas.

Ele se distanciou e voltou para se juntar aos três, dessa vez


em velocidade normal.
Aquilo era impressionante. Cada um deles era simplesmente
fascinante.

Eu tinha tantas perguntas. Mas muitas coisas já haviam


acontecido, eles precisavam se sentir confortáveis primeiro. Eu tinha
que ir devagar para criar confiança.
Suspirei fundo e os fitei.

— Bem... — Ainda estava tão perplexa que era difícil


encontrar palavras. — Foi ótimo conhecê-los. Tomem um banho,
comam alguma coisa. Conversaremos mais tar...

De repente, uma sombra nublada começou a tomar formar


entre eles. Eu pisquei algumas vezes e, quando comecei a me dar
conta de que aquilo não era fruto da minha imaginação, algo surgiu
diante de mim. Ou melhor, alguém.
Do absolutamente nada, um garoto apareceu.

Pequeno, magro e completamente nu.


Ele tinha as mãos entre as pernas, se cobrindo.

— Estou dentro também — disse, com a voz baixa e um


pouco hesitante.

Eu estava sem palavras.

Com exceção de Shiv, Rooke e os irmãos, todos ali presentes


estavam absolutamente chocados.
Ouvi um dos soldados soltar um palavrão.

— Esse é o Benji — apresentou Kit. — Ele fica invisível.


— Eu... — Tentei organizar os meus pensamentos e precisei
de alguns segundos. — Espera, você estava aqui esse tempo todo?

Ele assentiu.

Deuses.

— Ahm... É-é um prazer conhecê-lo, Benji — consegui dizer.

— Foi ele, Majestade! — Exclamou um dos soldados,


apontando. — Foi esse menino que havíamos perdido de vista.
— Faz sentido. — Olhei para Benji. — Você deve ser
incrivelmente bom em se esconder.

Suas bochechas coraram.


— Alguém traga algo para ele vestir. E mandem os soldados
pararem as buscas. — Virei-me para os cinco. — Os guardas irão
levá-los para seus quartos. — Sorri. Estava animada, nervosa e
fascinada. — Vejo vocês em breve.
Com um sinal meu, dois guardas os guiaram para fora do
salão.

Assim que a porta se fechou atrás deles, DeLarosa disse:


— Não podemos tê-los lutando por Umbra.

— Por quê?
— Eles são... selvagens. Não temos como treiná-los ou...
controlá-los.

— Claro que temos. O incentivo do que posso proporcionar a


eles vai fazer com que estejam dispostos a aprender.
— Quando o povo souber disso...

— Eles não precisam saber — interrompi. — Pelo menos,


não agora.
A parte da população mais religiosa e conservadora de
Umbra, que era a grande maioria, acreditava que eles eram
amaldiçoados. Eles haviam nascido com o sangue envenenado de
maldade, segundo os mais fanáticos.

— E os soldados? — insistiu o general. — Acha que todos


eles vão estar dispostos a lutar lado a lado deles?

— Quando eles salvarem suas vidas, provavelmente


mudarão de ideia. — Mirvin ponderou.
Olhei para o velho.
— Exatamente. Por enquanto, vamos treiná-los
separadamente. — Lancei um olhar para DeLarosa. — Apenas seus
soldados mais fiéis podem saber sobre isso.

Sua expressão mostrava sua clara desaprovação, mas ele


não discutiu.

Quando fui para o meu quarto naquela noite, havia um corvo


parado na sacada. Parei por um momento ao vê-lo sob a luz da lua.

Não era a primeira vez que eu o via parado ali.

Corvos eram muito raros em Umbra, então sua presença


sempre me chamava atenção. Algumas pessoas acreditavam que o
animal era um mau presságio.
Ignorei o pássaro e me preparei para deitar.

Ajeitei-me na cama e fui apagar a luz da cabeceira, só então


notei que o corvo continuava parado ali. E olhava diretamente para
dentro do quarto. Tive a incômoda sensação de que olhava para
mim.
Havia sido um longo dia, eu estava cansada demais para me
preocupar com corvos inofensivos.

Suspirei e apaguei a luz.


capítulo 16

— O Duque de Estol mandou uma mensagem urgente. — O


guarda anunciou ao adentrar a sala do conselho com um papel nas
mãos.

Eu, Vesper, General DeLarosa, Allegra, Mirvin e Bax o


fitamos. Ele estava sem fôlego, como se tivesse corrido até ali.
Lancei um olhar ao Vesper, que se levantou e pegou a carta
de suas mãos, logo o dispensando. Ele abriu a carta e passou os
olhos pelo papel com a testa franzida.

— O Rei Wullfric está conversando com os donos de terra em


Niverville, tentando persuadi-los a renegarem você. E possivelmente
se juntarem para... — Vesper levantou o olhar da carta e me
encarou — um ataque contra Umbra.

O clima da sala pesou. Senti os olhares em mim.

— Você não parece surpresa. — Vesper quebrou o silêncio.

— Ele falou comigo sobre Niverville no casamento do Rei


Rascal. Achei que isso pudesse acontecer, mas não sabia que seria
tão cedo. Ou, pelo menos, sem mais uma troca de palavras antes.

Relembrei-me da minha conversa com aquele rei desprezível.


Eu já imaginava que ele não iria recuar, que iria me subestimar. Mas
achei que tentaria entrar em um acordo antes, tentar me persuadir.
— O que sabe sobre ele? — indaguei ao Mirvin.

— Sobre o Rei Wullfric? É um homem ganancioso e


orgulhoso.

Olhei para DeLarosa.

— E o seu exército?

— Do mesmo tamanho do nosso. — Ele fez uma pausa. —


Talvez maior.
Inspirei fundo.

Mirvin se levantou da cadeira e se inclinou levemente sobre a


mesa de mármore maciça. Em sua superfície, estava lapidada o
mapa de todos os reinos. Todas as terras já descobertas estavam
desenhadas ali.

Ele apontou para Umbra, o dedo enrugado traçando a região


de Niverville.

— A terra fica ao norte de Umbra, uma pequena parte


fazendo fronteira com Alodias. E o resto, com Khrovil.

— Ele vai sair pela sua fronteira, obviamente, atacando por


aqui — disse DeLarosa, apontando no mapa. — Nós vamos precisar
proteger essa parte, segurar o ataque.

— E acha que pode ser feito? — indaguei.

— Como eu disse, o exército deles é tão grande quanto o


nosso. Talvez, até maior.

— Temos os caídos.
— Eles não estão prontos. Não para esse tipo de combate.
Podem ajudar, mas não na proporção que precisamos.

Ele estava certo quanto aquilo. Era cedo demais.

Passei vários segundos em silêncio, fitando o pequeno


pedaço no mapa.

— Não posso abrir mão de Niverville.

— Por quê? É só uma terra pequena comparada ao tamanho


de Umbra. — Vesper falou, analisando o mapa.
— É uma terra rica, fértil e repleta de rios. Mas,
principalmente, porque isso iria mandar uma mensagem para todos
os outros reis.

— Que é fraca — pontuou Mirvin. — Vulnerável.

Eu assenti.

— Se eu ceder uma terra em menos de seis meses de


regência, outros virão.

Se eu demonstrasse qualquer resquício de fraqueza


naqueles primeiros meses no trono, eles viriam como leões atrás de
uma gazela indefesa.

— Temos até chance de vencer, mas vai ser uma batalha


sangrenta — comentou DeLarosa. — Perderemos muitos soldados.

— Não se o pegarmos de surpresa — disse Mirvin.

Eu o fitei.

— Como assim?
— Se o atacarmos por onde ele não espera.

— Por onde? — Allegra franziu o cenho.

Mirvin voltou a apontar para o mapa e seu dedo parou onde


eu mais temia.

— Khrovil. — Eu disse, soprando a palavra como uma


maldição.

— E como faríamos isso? — indagou Vesper.

— Com a ajuda do rei.

Na mesma hora, Vesper e Allegra olharam para mim.


Uma parte de mim queria soltar uma gargalhada diante do
absurdo, mas me mantive séria e simplesmente balancei a cabeça
em negação.

— Isso não é possível.

— Por que não? — Mirvin indagou.


— Umbra e Khrovil não tem um bom... histórico.

— Mas recentemente vocês fecharam um tratado de paz.


Ainda está de pé, certo?

Eu abri a boca e, então, fechei. Pensei por um momento


enquanto fitava os olhos que me encaravam em expectativa.

— Na teoria, sim — respondi, hesitante.


Mas na prática...

— É uma boa ideia, Majestade — adicionou DeLarosa. — Na


verdade, acho que é a única forma de sairmos vitoriosos e sem uma
grande perda em nosso exército.

— Fora que teríamos o dobro de soldados. Seriam cerca de


dois homens para cada um dos de Wullfric. É uma vitória certeira. —
completou Bax.

Até ele concordava com aquela ideia ridícula.


— Ele não vai nos ajudar. — Eu disse, por fim.

— Por que não? — Mirvin me fitou. — Ele seria


recompensado. Metade do que tomarmos de Alodias pode ser dele.
É assim que essas alianças costumam funcionar, é benéfico para
ambos.
Eu desviei o olhar e cerrei os dentes dentro da boca. Se, ao
menos, eles soubessem... Balancei a cabeça.

— Não posso.
Mirvin voltou a se sentar e me fitou.

— Não pode ou não quer?


A pergunta pairou no ar como uma onda de tensão cortante.
— Vocês não entendem.

— Você é uma rainha agora. Pense no seu reino — a voz de


Mirvin suavizou, o que tornou tudo ainda pior —, no seu povo.
Levantei-me da cadeira e deixei o conselho, sentindo um
gosto ruim na boca.
Um barulho grave ecoou quando o guarda abriu a porta de
metal enferrujada.

A princesa estava encolhida na pequena cama no canto da


cela. Ela levantou o olhar, e eu pude ver como seu rosto estava
magro e cansado.

— Pode nos deixar a sós — disse para o soldado, o


dispensando.
Ele pareceu confuso e surpreso com o pedido. Olhou para a
princesa, então para mim mais uma vez.

— Acho que não é uma boa ideia, Majestade. Ela pode tentar
alguma coisa e…
— Pode ir — interrompi, dessa vez como uma ordem.

Ele ainda estava hesitante, mas foi embora.

Entrei na cela escura, e ela desviou o olhar, não querendo me


encarar.

Já era quase madrugada, e a única iluminação ali vinha de


um par de velas e da luz da lua pela estreita janela.
Olhei em volta. Havia livros espalhados pelo quarto. Só na
cômoda, eu podia contar mais de dez. Eu a havia enviado dezenas
de livros para que tivesse algo para fazer, estava preocupada que o
isolamento e todos os últimos acontecimentos a fizessem perder a
sanidade.

Parei no meio do pequeno quarto.


— Eles disseram que você tem recusado a comida nos
últimos dias.

Ela ainda se negava a me encarar.

— Sinto muito por ter demorado tanto tempo para vir e…


— O que você quer? — Ela interrompeu, finalmente me
encarando.

Vendo mais de perto, eu era capaz de notar as grandes


olheiras abaixo de seus olhos. Os ossos de seu rosto estavam muito
salientes, como se a energia houvesse sido sugada de si. Seus
lábios estavam rachados e seu cabelo sujo.

Apesar da imagem ser chocante, não era surpreendente.


Afinal, já haviam se passado meses desde a tomada do trono. Eu a
tinha deixado apodrecer.

Um momento se passou. Arrastei o indicador por um dos


livros acima da cabeceira, um que eu já tinha lido.

— Me sugeriram matá-la — eu disse —, para não gerar mais


dúvidas sobre a sucessão do trono.

Sua expressão estoica vacilou.

— Sou uma mulher, não represento ameaça para o trono.


A fitei.

— Foi isso que pensaram de mim, e agora sou a rainha.

Ela se remexeu na cama, abraçando os joelhos e os trazendo


próximo ao peito.
— Não quero ser rainha. Nunca foi uma opção para mim, e
eu sempre estive satisfeita com esse fato.

— Por quê?

— Por que importa? Não vai me matar mesmo? Como fez


com o resto da minha família? — atirou.

— Por que nunca quis ser uma rainha? — repeti.

Ela desviou o olhar.

— Sempre foi o meu irmão, nunca houve uma hipótese de


que fosse diferente. E mesmo que houvesse…, nunca quis o poder.
— Ela fez uma pausa, engoliu em seco. — Sempre quis ser livre.

Eu a entendia. Agora, mais do que nunca.


Eu sempre desejei minha liberdade e independência, de meu
pai e madrasta, e depois de Theon. Quando me tornei rainha,
ganhei isso, de certa forma. Eu podia ir aonde quisesse, falar o que
desejasse, ter o que bem entendesse. Mas, no fim do dia, qualquer
passo errado me traria consequências terríveis.

Eu era a pessoa mais poderosa do reino e ainda não possuía


a minha liberdade. Naquele momento, eu tinha o reino e o povo, que
esperava muito de mim. Ainda estava presa, de uma forma
completamente diferente, mas ainda assim.
Porém eu sempre soube disso. Quando decidi tomar o trono,
sabia do que teria que abrir mão. Aquele era o custo a ser pago, e
eu havia aceitado.

— Eu sinto muito pelo que aconteceu com você.


— Não faça isso. — Ela me encarou com ódio no olhar. —
Não peça desculpas por ter assassinado toda a minha família.

— Não sinto por ter feito o que fiz, mas sinto muito por como
te afetou. Você sempre foi uma boa princesa, bondosa... Nunca tive
intenção de feri-la.

— Eu nunca vou perdoá-la. — Ela cerrou os dentes dentro da


boca. — Nem os Deuses. Sabe disse, não sabe?
Não discordei dela. Não disse nada.

O silêncio reinou novamente.

Até que ouvi o barulho do lado de fora do cômodo, indicando


que estava tudo pronto. Ela também ouviu. Olhou para a porta e
depois para mim. Engoliu em seco.

— Vai me matar?

— Vou lhe dar o que tanto queria: sua liberdade.

Ela parecia confusa, olhou de novo para a porta. Aproximei-


me, e ela se afastou abruptamente até estar com as costas coladas
na parede atrás da cama.

— Tem um homem te esperando do lado de fora, vai te levar


para uma carruagem que eventualmente te deixará em um navio.
Ela piscou, atônita.

— Para onde?

— Um lugar bem longe daqui — respondi. — Estou te dando


uma chance. Uma nova vida.
Eu abri a porta do cômodo ao lado da cama e peguei algo
que se assemelhava a uma capa, para que escondesse seu cabelo
e seu rosto. Por mais que estivesse tarde e escuro, não podia
arriscar que alguém a reconhecesse.

— Levante — falei, erguendo a roupa em sua direção.

Ela se colocou de pé diante de mim e, com as mãos


tremulas, pegou a capa. A princesa me seguiu até a porta, mas
antes que eu a abrisse, me virei mais uma vez.
— Se você colocar os pés em Umbra novamente, — disse —
ou se alguém descobrir sua verdadeira identidade, eu vou te achar.
E vou te matar.

Seus olhos estavam cheios de água. Ela piscou, e uma


lágrima desceu pela sua bochecha. Encarou-me por vários
segundos em completo silêncio, e eu não sabia se ela estava
prestes a me abraçar ou a cuspir na minha cara.
Quando falou, sua voz era baixa e quase suave:

— Eu não tenho certeza se é incrivelmente bondosa ou se é


a pessoa mais aterrorizante que já conheci.

Abri a porta para que passasse e a fitei uma última vez.

—Não volte e não precisará descobrir.


Ela não disse mais nada, apenas se virou e foi embora.

— Onde arranjou isso? — indaguei para Vesper, que, em


menos de cinco minutos depois, entrava na cela arrastando um
corpo completamente queimado.

— Não compartilho as minhas fontes. — Ele murmurou,


ofegante.

Observei conforme ele posicionava o corpo no centro do


cômodo, que agora cheirava a carne queimada.
— Hum... — Passei a mão na nuca e troquei o peso dos pés.
— Mas não… a matou, certo?

Ele congelou o movimento e me encarou fixamente. Tinha a


testa franzida e o olhar surpreso.

— Acha mesmo que eu mataria e queimaria uma mulher?!

— Não. — Balancei a cabeça veementemente. — Claro que


não, só estou… me certificando mesmo.
— Consegui o corpo em um cemitério — explicou, na
defensiva. — Tudo o que fiz foi dar um troco para o coveiro incinerá-
lo.

Tentei não deixar transparecer, mas parte de mim relaxou de


alívio.
Vesper olhou de novo para o corpo e parecia prestes a
continuar posicionando-o, mas, então, colocou as mãos na cintura e
voltou a me fitar.

— Eu estou ofendido, sabia? Para sua informação, tudo o


que eu fiz de moralmente mais duvidoso na minha vida foi depois
que te conheci.

— Ok, entendi. — Ergui ambas as mãos no ar. — Desculpe.


Depois que terminou de posicioná-la, Vesper tirou uma
garrafa da mão e espalhou líquido inflamável pela cama e pelos
livros. Ele me lançou um olhar quando terminou. Peguei uma das
velas da cômoda e a soltei no chão, deixando que o fogo se
espalhasse pela cela.

Então, saímos dali o mais rápido possível.

Pela manhã, seria anunciado que a princesa havia cometido


suicídio incendiando a si mesma após descobrir sobre as minhas
intenções de executá-la. Ela não havia aguentado a ideia de ser
morta pelo mesmo monstro que assassinou toda a sua família,
então fez isso por conta própria. Seria considerado uma atitude
valente e nobre.

Vesper foi comigo até meu quarto. Allegra estava sentada na


cama, nos esperando. Tinha as costas eretas e as mãos nos
joelhos.

— E aí? — indagou, nervosa. — Deu tudo certo?

— Tudo como planejado. — Vesper respondeu, se jogando


na cama ao seu lado. — Tirando a parte que incendiamos a
princesa por acidente.

Allegra arregalou os olhos e colocou a mão sobre o peito.


— Meus Deuses! — As palavras deixaram a sua boca em um
murmúrio de choque.

— O idiota está brincando. — Eu a tranquilizei. — Deu tudo


certo.
Ela deu um tapa no peito de Vesper, que respondeu com uma
careta afetada ao rolar sob meus lençóis.

— Dá para vocês vazarem? Essa cama é minha e estou


exausta.

Vesper se apoiou nos cotovelos, parecendo extremamente


confortável, e nos fitou.

— A gente deveria fazer uma festa do pijama. — Ele se virou


para Allegra e colocou o braço ao redor de sua cintura. — O que
acha, Allegra? Essa cama é enorme!

Vesper a puxou, jogando seu delicado corpo contra o colchão


e lhe arrancando uma gargalhada doce.

— Me solta! — Ela exclamou enquanto Vesper lhe fazia


cócegas.

Sorri ao me livrar dos meus saltos e, então, segui em direção


à cama.

Nos últimos tempos, aqueles breves momentos com os dois


eram os únicos em que eu me sentia feliz e relaxada.

— Tudo bem... — cedi. — Podem dormir aqui essa noite.


Vesper jogou os braços para cima e exclamou em
comemoração. Eu engatinhei até estar no meio deles e me deitei.
Vesper já tinha o corpo quase todo coberto e se ajeitava entre
milhares de travesseiros, quando Allegra indagou:

— O que vai fazer sobre Khrovil?


Vesper suspirou.
— É proibido falar de política na festa do pijama.

— Não sei... — respondi. — O que acha que devo fazer?

— Acho que Mirvin tem razão. — Ela fez uma pausa e me


fitou. — E acho que, no fundo, sabe disso.
Suspirei, encarando o teto.

— Às vezes, eu realmente odeio aquele velho.


— Nem me fala... — Vesper murmurou.

Segundos se passaram em que ficamos em completo


silêncio, todos nós pensando no que aquilo significava. Poderia
apostar que, como eu, também pensavam em Willow.
— Vesper — chamei, já no escuro.

— Uhm?
Eu provavelmente me arrependeria daquilo no futuro, mas já
havia tomado a minha decisão.

— Amanhã, mande um mensageiro a Khrovil para marcar um


encontro com o rei.
ela passava metade do seu tempo
pensando em como destrui-lo
e a outra metade
se perguntando como seria tocá-lo

ele passava metade de seu tempo


a odiando
e a outra metade
se perguntando quando a veria de novo
capítulo 17

Fitei os fios castanhos enrolados entre meus dedos logo após


passar a mão pelo meu cabelo.
Eu estava notando a queda, principalmente após o banho. A
minha escova ficava repleta de fios após pentear. Era o estresse,
não tinha dúvidas. Meu cabelo havia começado a cair desde
algumas semanas antes da tomada do trono. Por sorte, costumava
ser muito cheio, então, até ficar completamente careca,
provavelmente teria alguns anos pela frente.

Tentei rir com o pensamento mórbido conforme me livrara dos


fios mortos pela janela da carruagem.
— Chegamos, Majestade. — DeLarosa avisou assim que
paramos.

Claro, o lugar de encontro tinha sido escolhido por Sarkian.


Bem mais conveniente para ele, visto que era uma região ao sul de
Khrovil. O que dava uma viagem de algumas horas de seu castelo
até o local, e quase onze do meu. Mas eu não discuti, preferi deixar
as brigas e desentendimentos para quando estivéssemos cara a
cara.

Ao sair da carruagem, me encontrei em um campo aberto.


Apenas uma construção antiga e claramente abandonada se
encontrava no local. A base era de concreto, com grandes pilastras
corroídas pelo tempo. Ao lado da construção, duas carruagens
pretas estavam estacionadas. Contei cerca de vinte cavalos e vinte
soldados de Khrovil. Eles eram fáceis de reconhecer pelas
vestimentas e as máscaras que cobriam tudo, exceto os olhos.

— Onde ele está? — perguntei ao Vesper no momento em


que saí da carruagem.

Ele foi até os soldados e conversou com o que se encontrava


mais perto. Quando voltou, falou:

— Está te esperando nos fundos.

Dei a volta na construção e, a cada passo, o meu coração


batia mais rápido. Eu desejava fazer de tudo, menos vê-lo. Então,
era difícil convencer meus pés a se moverem em sua direção
quando tudo em minha mente implorava o contrário.

Sarkian tinha me visto completamente nua, tinha me


recusado e me humilhado. Eu praticamente tinha implorado para
que me tocasse, e ele me negou.

Eu nunca havia sido tão exposta e desmoralizada.

Você é uma rainha agora. Pense em Umbra, pense em seu


povo. Você é maior do que isso.

Assim que ele apareceu em meu campo de visão, meus pés


se agarraram ao chão.

Vesper, ao meu lado, parou também.

Sarkian estava sentado sozinho no pátio, em um dos bancos


de cimento maciço que haviam resistido ao tempo. Estava de costas
para mim, fumando enquanto olhava para o vasto campo à frente.
Eu só era capaz de ver a capa longa e negra e a parte de trás de
sua cabeça.

— Por que eu sinto que está prestes a fazer um tratado com


o próprio Deus da Maldade? — Vesper indagou, o observando
também.

Fechei as mãos em punhos e, então, as abri. Fiz o


movimento um par de vezes e inspirei fundo.

— Porque estou.

Sarkian notou a minha aproximação e virou o rosto para me


fitar.

Ele soprou a fumaça da lavena no ar ao dizer:

— Majestade.

Havia o toque habitual de sarcasmo em sua voz.

Eu planejava agir como se o nosso último encontro não


tivesse acontecido, que tivesse sido um delírio ou um completo
pesadelo. E esperava que ele fizesse o mesmo. Caso contrário, eu
poderia muito bem entrar em combustão e morrer de pura
humilhação ou ódio na frente dele.

Sentei-me no banco, o mais distante que pude. Cruzei as


pernas e virei o rosto para encará-lo.

— Vamos direto ao assunto.


Ele fez um gesto com a cabeça e esperou em silêncio, me
fitando. Seu corpo, diferentemente do meu, estava direcionado para
mim. Estava completamente relaxado, diferente do meu, que estava
inteiramente tenso.
Parecia entretido.

De repente, eu estava muito ciente de cada centímetro do


meu corpo. Eu usava uma calça preta de tecido leve com fendas
nas laterais, que, dependendo do movimento que eu fazia, o
material esvoaçava, mostrando parcialmente as laterais das minhas
pernas. Na parte de cima, usava uma blusa branca com detalhes
em prata colada ao corpo e sem mangas. Era o tipo de roupa que
eu não poderia usar em Umbra, principalmente em grandes eventos
abertos para o público.

Uma vez, Vesper me disse com um sorriso conspiratória no


rosto que tinha visto um lacaio desmaiar ao me ver de calças. Eu as
usava apenas para montaria ou meu treinamento com Bax, mas era
o suficiente para chocar os criados.

Mas, pensando bem, naquele momento, eu não conseguia


imaginar nada que pudesse usar que me sentiria confortável, de
qualquer maneira.
Sob o olhar de Sarkian, minha pele sempre parecia queimar,
independentemente de qualquer coisa.

— Wullfric quer uma terra que me pertence. — Eu disse. —


Ele está planejando um ataque contra Umbra para tomá-la, caso eu
não devolva. Mas não posso abrir mão da região.
Ele levou o cigarro de lavena aos lábios e puxou.

— Não vejo como isso possa ser problema meu — rebateu,


as palavras deixando a sua boca com a fumaça.
— Niverville faz fronteira com você. Se eu o atacasse pela
região de Khrovil, o surpreenderia e me daria vantagem.

Um meio sorriso satisfeito quebrou em seus lábios.

— Então, precisa da minha ajuda.


Cerrei os dentes dentro da boca.

— É uma proposta.

Depois de dar uma última tragada, Sarkian apagou a lavena


no concreto e descartou o cigarro.

— E o que eu ganho com isso?


— Metade do que tomarmos de Alodias. Metade de um reino
inteiro.

Ele me fitou fixamente e reformulou a frase como se eu não


tivesse compreendido direito:

— O que eu ganho com isso de você?


Minha boca abriu, mas demorou um segundo antes que as
palavras saíssem:

— O que quer de mim?

Sarkian se inclinou levemente, colocando o braço direito na


parte de trás do banco. A ponta de seus dedos estava a centímetros
do meu ombro.

— Eu adoraria vê-la implorando — disse. — Eu te quero de


joelhos desde o minuto em que te conheci.
Seu olhar era desconcertante. E a vontade de desviar o olhar
era excruciante, mas resisti.

— Eu não imploro.

O Rei das Trevas desviou o olhar para o campo à frente e


sorriu. Ou, pelo menos, a sua versão de um sorriso. Aquele sombrio
e sutil retorcer de lábios cheio de interpretações.
— Vamos ver.

Cruzei os braços e mordi o interior da bochecha.

Eu já sabia que aquilo seria difícil, não esperava que ele


fosse concordar tão facilmente.

— O que gostaria, além de metade do que conquistarmos de


Alodias?

Seu olhar continuou fixo no além, e eu aproveitei para


observar seu belo perfil.

Os segundos se passaram, e Sarkian não me respondeu.


E eu daria absolutamente toda a riqueza que possuía para
poder ler sua mente naquele instante.

— Vamos. — Ele disse, se levantando de repente.

Pisquei devagar, atônita.


— Para onde?

— Dar um passeio.
Levantei-me e me virei para fitar os soldados que nos
observavam de longe, me esperando. Estava prestes a fazer um
sinal para DeLarosa, mas escutei a sua voz:

— A sós.

Eu o observei com uma expressão um tanto surpresa e


hesitante.
— O que foi? — Sarkian provocou. — Está com medo,
farren?

Ele seguiu, indo em direção ao seu cavalo antes que eu


pudesse responder.
Eu o acompanhei com os olhos por um momento até tomar
uma decisão. Distanciei-me da construção e fui até DeLarosa e
Vesper.

— Vamos cavalgar — anunciei.


— Ok. — DeLarosa assentiu. — Vou preparar o meu cav…

— Não — interrompi. — Apenas ele e eu.

Vesper piscou.
— Perdeu a cabeça?!

Ao mesmo tempo em que DeLarosa disse:


— Não acho que seja a melhor ideia, Majestade.

— Vou ficar bem — garanti, fitando os dois. — Volto em meia


hora.
Não fiquei para discutir.

Montei no meu cavalo e segui na direção de Sarkian,


deixando nossos exércitos para trás.
capítulo 18

Conforme cavalgávamos, a paisagem se abria diante dos


meus olhos. Montanhas atrás de montanhas com belos pastos
verdes. Não era exatamente um dia quente, porém estava sol. E
ainda assim, Sarkian estava completamente vestido. Preto cobrindo
toda a pele, com exceção do rosto.

Estávamos em completo silêncio e já não era possível avistar


nossos soldados.
Sarkian montava um animal esplêndido, negro como a noite.
Negro como suas vestimentas, seus cabelos e seu coração.
Meu cavalo, Zoran, era um belo animal do tipo baio amarilho
que pertencia ao antigo Rei de Umbra. Tinha um bom temperamento
e era incrivelmente robusto. Apaixonei-me no segundo em que botei
os olhos nele.

Cavalgávamos lado a lado. Eu tentava ignorar o silêncio


pesado e os pensamentos intrusos que me voltavam para aquela
noite fatídica.
Talvez, Sarkian estivesse bêbado o suficiente para não se
lembrar de tudo com clareza, pensei.

Quem eu queria enganar? Podia apostar que ele se lembrava


de cada segundo humilhante.
Apertei os dedos contra o arreio, tentando afastar as
imagens. Mas era um tanto difícil com Sarkian me encarando.
Diferentemente de mim, que observava o caminho à frente, ele
olhava diretamente para mim, sem o menor pudor. Talvez de
propósito, para me provocar.

Ele devia saber que seu olhar me deixava desconfortável.

Queria pedir para que parasse de me fitar, mas isso acabaria


com a minha pose de indiferença.

— Está corando. — Ele disse de repente, quebrando o


silêncio.

Eu o fitei.
— É o calor.

Ele olhou para cima e franziu a testa ao fitar o sol.

— Engraçado. Apesar do sol, não está tão quente.

E de fato, estava sol, mas estávamos em Khrovil e ali até os


dias ensolarados costumavam ser refrescantes.

— Faz sentido — comentei.


— O quê?

— Você não estar sentindo calor. — Expliquei. — O seu


coração produz gelo o suficiente para regular a sua temperatura
corporal.

A sombra de um sorriso atravessou seu rosto, e ele desviou o


olhar por um instante. Eu cutuquei a barriga de Zoran com os
calcanhares, acelerando e deixando Sarkian um pouco para trás.
Silêncio reinou, mas não por muito tempo.

— Faz muito isso. — Ele disse.

Olhei para trás, com um ponto de interrogação no rosto.

— Corar — esclareceu, aproximando o seu cavalo até


estarmos lado a lado novamente.

Desviei o olhar, provavelmente corando de novo.

Maldito.

Ventou, e meus cabelos dançaram no ar. Cerrei os dentes


dentro da boca.

— Talvez devesse parar de prestar tanta atenção em mim.

— Não consigo.

Meu coração pulou uma batida assim que processei o que ele
tinha dito.

Virei o meu rosto em sua direção.

— Se eu me distrair por um segundo sequer, pode tentar


enfiar uma faca no meu peito. — Ele argumentou.

Então, por mais que eu odiasse admitir, até para mim mesma,
algo no meu peito, pequeno, porém pulsante, murchou.

Eu ainda estava pensando no que dizer em seguida quando,


em nosso campo de visão, dezenas de árvores apareceram.
Árvores altas, repletas de galhos e frutos.

Sarkian guiou seu cavalo até lá, e eu segui logo atrás.


Amarramos os animais em galhos grossos depois que paramos.
O lugar era de fato lindo, um amontoado de belas árvores no
meio de um campo vasto. Os galhos altos e compridos faziam uma
passarela de sombra em seu centro, com várias folhas caídas
formando um tapete de folhagem. Alguns fios de sol adentravam
pelos galhos, tornando tudo mais mágico.

Sarkian tinha as mãos atrás das costas enquanto caminhava


lentamente entre as sombras das árvores.

— Por que matou seu marido?


Eu o fitei, surpresa.

Ele falou tão casualmente, que parecia que estava me


perguntando sobre as horas ou o clima.
— Não é da sua conta.

O Rei das Trevas ergueu sutilmente o cenho em uma careta


presunçosa.
— Esqueceu que está me pedindo um favor? Que precisa de
mim para ganhar uma guerra?

— Não preciso de você para lutar contra Alodias — rebati.


Ele parou, sorriu e inclinou a cabeça de leve.
— Então, por que está aqui?

Respire, Cera.
— Não preciso, mas quero — reformulei, na defensiva. — Vai
tornar muito mais fácil.

— Claro. — Ele concordou de forma irônica. — Agora,


responda à pergunta.
Ele tinha a vantagem. E o bastardo se aproveitaria disso.

Resisti à vontade de lhe dar um soco.

Pense em Umbra, Cera.


Pense no povo.

— Ele mereceu — foi tudo o que eu disse.

— Isso não é uma resposta.

Desviei o olhar. Pensei em Theon, no nosso começo, em


como havia adorado aquelas primeiras semanas e em como havia
odiado as últimas. Pensei no tapa que me deu e na raiva que se
seguiu. Pensei em seu olhar quando o envenenei.
— Ele me… humilhou.

Sarkian não respondeu por vários segundos, apenas me


fitou, ainda com as mãos nas costas. E o silêncio pesou.

Olhei para cima, para as árvores repletas de frutos, tentando


ignorar o seu olhar.
— Combina com você.

Eu o fitei.

Um vento soprou novamente, e meus cabelos voaram contra


o ar. Na sombra, senti uma corrente gelada percorrer pelo meu
corpo.

— O quê?
Ele passou os olhos por todo o meu rosto, como se me
analisasse antes de responder:
— A crueldade.

Eu o observei de volta, me decidindo se me ofendia ou me


lisonjeava com o comentário.

Então, ele se virou e pegou um dos frutos no galho próximo à


sua cabeça. Comeu a pequena fruta enquanto eu me fascinava com
cada pequeno movimento.
— Você come? — perguntei. — Achei que se alimentasse
apenas de almas inocentes.

Um pequeno sorriso sarcástico quebrou em seus lábios.


— Elas são a sobremesa.

Estiquei o braço e peguei uma fruta também. Não conhecia


aquele tipo, já que nunca tinha visto delas em Umbra.
Provavelmente, ela crescia apenas em lugares mais frescos.

— Sempre planejou usurpar o trono?

Eu o fitei no meio do processo de colocar a fruta na boca.


— Por que o interrogatório?
Sarkian deu ombros.

— Acho que gostaria de saber um pouco mais sobre alguém


com quem possivelmente vou criar uma aliança.
Mastiguei a fruta cítrica e engoli devagar, ganhando tempo.
Gostei do sabor. Era azeda, mas, ao engolir, havia um leve gosto
adocicado que nos surpreendia. Como se a fruta estivesse nos
compensado no fim.
Eu sabia que Sarkian me provocaria, que aproveitaria o fato
de que eu precisava de sua ajuda para me torturar de todas as
formas possíveis. E se eu quisesse vencer Wullfric, infelizmente,
teria que ceder.
— Não. Jamais pensei em fazer algo do tipo. Pelo menos,
não conscientemente. — Talvez, já houvesse uma vontade
silenciosa. Algo no subconsciente que crescia com cada absurdo
que eu via ou vivia. — Mas algumas coisas aconteceram nos meses
anteriores, e… tomei a decisão. — Fiz uma pausa e o lancei um
olhar — E você?

Ele havia me inspirado. Vê-lo tomar o trono bem diante dos


meus olhos mudou a minha forma de pensar. Não achava que fosse
possível fazer algo como aquilo. Sarkian Varant, de fato, foi um
empurrão para que eu tomasse a decisão. Mas jamais admitiria isso
a ele, claro.

— Desde que era criança, provavelmente.

— Foi difícil matar sua família?

Para qualquer pessoa, muito provavelmente, aquela pergunta


ofenderia ou pelo menos chocaria. Mas Sarkian não. Sua feição mal
reagiu.

— Não. — Ele esticou o braço e pegou mais algumas frutas.


— Surpreendentemente foi muito fácil.

— Nem mesmo sua mãe?

— Ela não era minha mãe.

Pisquei.
— A Rainha Visha não era a sua mãe?
Ele negou com a cabeça.

— Oh. — Franzi o cenho. — Que engraçado.

— Engraçado? — Ele me fitou com uma das sobrancelhas


erguida.

— Não. — Balancei a cabeça. — Não foi isso o que eu quis


dizer. Os rumores afirmavam que era o Rei Zagreus que não era o
seu pai.

— Que rumores?

— Os que dizem que é um bastardo — respondi. — Mas


porque sua mãe havia dormido com o Deus da Morte.
Ele sorriu após colocar as frutas na boca.

— Criativo.

— O Rei Zagreus é seu pai?


Ele assentiu.

Então, era a mãe biológica dele que tinha lhe passado o


sangue. Porque o Rei Zagreus não era um caído. Ele havia lutado
em batalhas o suficiente para que as pessoas soubessem, caso
fosse. Havia sangrado na frente de muita gente.

— Sua mãe verdadeira era um caído, então? Porque é assim


que funciona, não é? Um dos pais precisa ser para passar o gene.

— Garota inteligente — murmurou com certo sarcasmo, o


qual escolhi ignorar.
Queria perguntar mais sobre a sua mãe, mas senti que não
deveria me aprofundar. Sarkian era tão difícil de desvendar e
impossível de se abrir. Eu teria que ir devagar e com muito cuidado,
caso quisesse que aquela conversa continuasse.

— Você já usou seu poder em mim?

— Não intencionalmente.

— Pretende usar?

— Estou tentando não o fazer.

— É difícil?

— Você torna difícil — murmurou. — Geralmente, sou muito


bom em controlar.

Aquilo estava me matando. E ele sabia disso. Eu queria tanto


saber do que ele era capaz. E a possibilidade de ele ler meus
pensamentos me assombrava.

Sarkian moveu os dedos parar pegar mais frutas e o sol


bateu contra seus anéis. A luz refletiu em meus olhos, e eu pisquei.
Isso me fez lembrar que ele tinha algo meu. Algo que havia roubado
de mim.

— E, independentemente do que decidir hoje, eu quero o


meu colar de volta.

— Não acha que já tomou diamantes demais de mim?

— Não me obrigue a decapitar a sua namorada para


consegui-lo.

Ele olhou para mim. Divertido. Entretido.


— Eu não tenho namorada — foi tudo o que respondeu.

— Concubina, amante… Eu não me importo.

Mais silêncio.

Seu olhar queimava em mim, mas eu tinha meus olhos em


tudo, menos nele.

Encarei dois frutos em um dos galhos da árvore à minha


frente. Queria pegá-los, estavam bem maduros e grandes.
Chegavam a brilhar contra a luz do sol de tão perfeitos. Mas eles
estavam muito altos. Mesmo na ponta dos pés, meus dedos não
conseguiriam chegar até eles. É sempre assim, pensei, os melhores
frutos costumam ser inalcançáveis.

— Vai lutar contra Alodias? — Eu perguntei, depois de um


momento.

— Achei que fôssemos inimigos. Na última vez que nos


vimos, se me recordo bem, você jurou me destruir.
E apenas com aquelas palavras, partes daquela noite terrível
voltaram à minha mente como flashes aterrorizantes.

“Eu vou te destruir, Sarkian. Talvez não agora. Talvez não tão
cedo. Mas eu vou. Eu juro.”

Eu disse logo antes de nos beijarmos. Logo antes de ele me


humilhar e me abandonar.

E Sarkian se lembrava de tudo.

Engoli em seco, tentando afastar as imagens.


— E daí? — murmurei, a voz arranhando minha garganta.
— Vai contra o meu caráter, sabe? Me juntar com um inimigo
para uma batalha.

— Você não tem caráter.

— Você não está fazendo um bom trabalho em me


convencer.
Coloquei as mãos na cintura e inspirei fundo.

Ele era tão frustrante.

— Faz sentido para você, não estaria me fazendo um favor.


Vai ganhar terras, armas e todo tipo de riqueza que Alodias tem
para oferecer. — Ele não disse nada. Então, eu continuei, dessa vez
com outra estratégia. — Nunca pensei em você como alguém que
se esquivasse de uma batalha — provoquei.

Ele me lançou um olhar.

— Tem pensado muito em mim?

Você não faz ideia.

Ou talvez ele fizesse. Pela forma como ele me encarava,


talvez soubesse exatamente como estava me atormentando.
— Não penso em você de forma alguma.

— Três.

Pisquei.

— O quê?

— Estou contando suas mentiras desde que essa conversa


começou. — Ele levantou três dedos na mão direita enluvada. —
Essa é a terceira.

As palavras agarraram em minha boca e, por um instante,


tentei me recordar de cada frase dita nos últimos minutos. Mas logo
abandonei a ideia. Eu não cairia em seu jogo.

— O que mais posso fazer para persuadi-lo a mudar de


ideia? — fui direto ao assunto. — O que quer, além de metade do
que tomarmos?

Ele se aproximou, ficando de frente para mim.

— Já está pronta para começar a implorar?

— Nunca.

Ele sorriu. Aquele sorriso aterrorizante que fazia meu coração


masoquista pular uma batida.

— Mais dinheiro? — indaguei. — É isso?

Em um movimento sutil e lento, ele balançou a cabeça em


negação.

— Armas?
Balançou mais uma vez.

— Terras?

E, então, de novo.

— O que você quer?!

Sarkian deu um passo à frente. Agora, estávamos a


centímetros de distância. Quis recuar porque, sempre que
ficávamos próximos daquele jeito, eu me machucava de alguma
forma. Mas mantive meus pés firmes.

— Você deve saber o que eu quero.

— Não, não faço ideia. Esse é o problema.

Seus olhos viajaram pelo meu rosto até descerem para a


minha boca.

Meu coração começou a bater mais rápido. Eu conhecia


aquele olhar.

Mas não fazia sentido. Nada naquilo fazia sentido.

O que ele estava fazendo? Que tipo de jogo era aquele?


— Por que você faz isso? — perguntei com a voz rasgada. —
Me olha e fala como se me desejasse, se não consegue ao menos
conceber a ideia de me tocar?

Ele me fitou por vários segundos sem dizer uma palavra. Por
um momento, seus lábios entreabriram, e eu tive a impressão de
que diria algo, mas não.
Sarkian não respondeu. Virou-se, finalmente tirando o olhar
do meu. Em completo silêncio, ele esticou o braço, alcançando as
frutas grandes e maduras que eu estava olhando há pouco, mas
que estavam altas demais para alcançar. Ele nem precisou ficar na
ponta dos pés para pegá-las, simplesmente esticou o braço direito e
as tinha em mãos. Mas, em vez de comê-las, as estendeu para
mim. Eu ofereci a palma, e sem dizer uma palavra, ele abriu o
punho, as deixando cair sobre a minha mão, sem que nossa pele se
tocasse.
Eu as levei até a boca, o fitando. Confusa, irritada e
fascinada. Mas Sarkian já tinha se virado e pegava frutas em outros
galhos.
Dei um passo à frente, com a intenção de terminar com
aquela negociação que não parecia ir a lugar nenhum, mas, então,
escutei algo.

Virei-me no mesmo instante que Sarkian o fez.


No topo da montanha, cerca de vinte homens em cavalos se
aproximavam.

Por um momento, pensei que talvez pudessem ser nossos


homens, mas eles vinham do lado oposto que nossos exercícios se
encontravam. E logo notei, pelas suas vestimentas e armaduras,
que não eram soldados meus nem de Sarkian.
— Quem são? — perguntei, olhando para Sarkian.

Ele tinha os olhos nos homens, que se aproximavam


rapidamente.

— Não faço ideia.


capítulo 19

Por mais que soubesse que não daria tempo, fui até Zoran.

Estávamos a cerca de quinze minutos a cavalo de nossos


exércitos, e isso era mais do que o suficiente para que não nos
escutassem. Não havia a quem recorrer. A única coisa a fazer era
rezar para que aqueles homens não estivessem ali com más
intenções.

— Boa tarde, senhores — cumprimentou um deles, o que


estava mais à frente. Era barbudo e robusto.

Eu ainda terminava de desamarrar Zoran da árvore.

Não pude deixar de notar as espadas que todos brandiam na


cintura.
O homem falou em minha língua, mas com um sotaque forte
o qual não soube identificar. A língua selkiana era falada em cerca
de quatro reinos diferentes e algumas pequenas aldeias, então era
difícil saber sua origem com precisão.

Sarkian deu um passo à frente.

— Boa tarde, senhores — respondeu, dando alguns passos à


frente, se colocando entre mim e os homens. — De passagem?

Ele parecia extremamente calmo para alguém que estava


cercado por vinte homens armados.
— Sim. — O desconhecido sorriu e, de alguma forma, o
gesto só tornou seu rosto mais grotesco. Notei que faltavam, pelo
menos, três dentes em sua boca. — Pode-se dizer que sim. E
vocês?

— Somos daqui. Minha esposa e eu estamos aproveitando a


tarde agradável para comer algumas frutas.

Senti os olhares sobre mim e fiz um pequeno gesto com a


cabeça. Sabia o que Sarkian estava fazendo e joguei junto, fazendo
o papel de uma simples esposa do campo. Era melhor que não
soubessem quem éramos, estávamos expostos demais.

— E essas roupas são apenas para catar frutas? — O


homem se remexeu em cima do cavalo e passou a perna direita por
cima do animal para descer. — Devem ser pessoas importantes.

A maior parte dos outros homens fizeram o mesmo. Cerca de


quinze homens começaram a descer de seus cavalos.
Merda.

Dei um passo instintivo para trás.

Sarkian descansou a mão na sua espada, em um claro sinal


de que estava disposto a lutar, caso houvesse necessidade. Era
uma ameaça velada. Passiva.

Ele virou o rosto, me fitando pela visão periférica, mas sem


tirar os olhos dos homens.
— Suba no cavalo — mandou com a voz rouca e cortante.

Peguei na cela e me posicionei para montar.


— Não — interrompeu o homem, alto o suficiente para que
todos escutassem. — Ela fica.

Congelei no meio do movimento.

A tensão recaiu sobre nós como um manto pesado.

Sarkian torceu a cabeça, e eu notei a sua mão apertar o cabo


da espada.

— Isso é um assunto de homens, não acha?

O barbudo sorriu, dando um passo à frente e ficando bem


próximo de Sarkian. Aquele sorriso grotesco e repleto de maldade.

— A presença de mulheres bonitas nunca me incomoda.

Sem tirar os olhos de Sarkian, ele fez um movimento na


cabeça, e um dos seus homens se aproximou de mim. Dei um
passo para trás, segurando a crina de Zoran com a mão direita e a
minha faca favorita que estava presa em minha cintura com a
esquerda.

— Você tem uma esposa, soldado? — Sarkian indagou.

Ele assentiu com a cabeça.

— Claro. Tenho uma boa mulher em casa.

— Então, você deveria mandar que seu colega não toque na


minha, se deseja voltar para a sua vivo.

— Está me ameaçando, Majestade? — Ele arrastou a última


palavra com ironia.

Cerrei os dentes dentro da boca, sentindo meu coração bater


mais rápido.
Eles sabiam quem éramos. E estava mais do que claro que
estavam ali com a intenção de nos encontrar. Eles não nos
deixariam simplesmente ir.
— Se sabem quem somos — eu disse alto o bastante para
que todos ali ouvissem —, devem saber muito bem quais são as
consequências para o que quer que pretendam fazer.

O barbudo me fitou por um momento.


— Então, a rainha fala.

— Nos deixem ir e não sofrerão nenhuma consequência —


ponderei, com a voz firme e controlada.

Ele riu, como se meu comentário o divertisse. Quis arrancar


seus lábios do rosto com a minha faca. Quando terminou, lançou um
olhar para o homem que estava mais perto de mim.

— Cale a boca dela.


O homem diante de mim avançou. Eu não carregava uma
espada, o que me deixava em desvantagem. Para acertá-lo com a
minha faca, precisava dele mais perto. Ele pegou meus braços e os
colocou atrás das costas, me imobilizando.

Sarkian olhou para nós.


Sua expressão mudou. Vi o prata se transformar.

— Você não vai querer fazer isso.

O barbudo sacou a espada. Havia satisfação por toda a sua


feição.
— Você está em minoria aqui, Majestade.
No instante em que Sarkian brandiu sua espada, joguei a
cabeça para trás com força, acertando o homem no rosto. Ele
recuou e me soltou com um grunhido de dor deixando os seus
lábios. Virei-me ao mesmo tempo em que saquei a minha faca na
cintura. Enfiei a lâmina em sua barriga e o observei cair.
Bati no traseiro de Zoran, o assustando. Isso fez com que o
animal disparasse. Minha esperança era de que ele fosse em
direção ao meu exército. Zoran chegando lá sem mim fariam meus
homens virem à minha procura instantaneamente, pois saberiam
que havia algo muito errado.

Virei-me mais uma vez, procurando por Sarkian, mas pude


ver apenas um breve reflexo de sua figura lutando porque, naquele
instante, dois homens avançaram em minha direção. Eles bradavam
as espadadas.

Agachei e peguei a arma caída do homem que eu tinha


acabado de matar. Com a espada erguida, recuei.

Treinei com Bax o suficiente para saber que conseguia lutar


contra um soldado decente, mas com dois deles, minhas chances
não eram boas.

Continuei recuando, e eles continuavam avançando. Eu


estava apenas ganhando tempo.

— Solte a espada. — Um deles ordenou.


— O que vocês querem?!

— Solte a espada, rainha — Ele repetiu. — Não vamos pedir


de novo.
Eu a mantive erguida, e um deles avançou. Bloqueei o
ataque, mas não tive muito tempo para me recuperar porque o
segundo homem atacou. Vi-me em uma dança frenética, e meus
únicos movimentos eram de tentar bloquear os golpes pelo maior
tempo possível. Mas eles vinham rapidamente, e eu estava cada
vez mais lenta e cansada. Meus braços tremiam.
O som de lâminas se chocando soavam ao fundo, e era a
única forma de eu saber que Sarkian ainda estava vivo e lutando.

Aproveitei a oportunidade quando me vi diante dela e acertei


um golpe no ombro de um dos homens. Estava mirando na
garganta, mesmo assim, o ferimento o desacelerou. E, ao mesmo
tempo em que a minha lâmina atravessou um dos meus inimigos, a
espada do outro me cortou a pele.

Senti a ardência na região da barriga e recuei, um grito


estrangulado deixando meus lábios. A hesitação foi o suficiente para
que eles agissem. Senti a pressão em minhas costas e fui jogada no
chão. O ar deixou meus pulmões, e minha mão soltou a espada.

Não tive tempo de tentar me erguer ou recuperar a arma.


Senti o baque de algo duro na minha cabeça e, de repente, tudo se
tornou preto.

Eu ia e voltava. Quando conseguia abrir os olhos, avistava


vultos embaçados e escutava espadas batendo.
Pensei em Sarkian. Em como iriam matá-lo. Porque, por mais
que o que diziam a seu respeito fosse verdade, ele não era páreo
para aquela quantidade de soldados e espadas. Era impossível.
E aquele pensamento não deveria me abalar, não deveria me
desesperar. Mas era a única coisa na qual eu conseguia pensar nos
breves momentos de consciência.
Eu tentei abrir a boca, mas não conseguia. Tentei mover as
minhas pernas, mas nada acontecia.

Em todo aquele tempo, sempre havia me imaginado o


destruindo. Minha faca em seu peito. Eu tirando-lhe a vida. Nunca
havia pensado que outra pessoa poderia fazê-lo.

Não conseguia abrir os meus olhos, minhas pálpebras


estavam pesadas demais. Mas eu ainda escutava.

O barulho de espadas sessou. E gritos tomaram o seu lugar.


Apenas gritos. Muitos deles. Era um som assustador,
completamente animalesco e desesperado.

Aquilo durou pelo que pareceu uma eternidade. Mas pode ter
sido apenas alguns segundos.

E, então..., completo silêncio.


Era isso.

Sarkian Varant estava morto.

Eles o haviam matado.


Meu pesadelo, meu rival, meu vilão.

Eu perdi a consciência pela centésima vez.

— Não durma. — O som rouco, profundo e familiar soou ao


longe.
Não podia ser.
Mas só podia ser, porque eu não só ouvia sua voz, como o
sentia. Ele tinha as mãos no meu rosto, o couro das luvas roçando
nas minhas bochechas.

Eu pisquei. Ou, pelo menos, tentei.

— Sarkian...

A palavra deixou a minha boca em um sussurro rouco e


difícil.

— Olhos abertos. — Ele ordenou, mas, apesar de firme, as


palavras deixaram a sua boca de forma suave. Quase como um
pedido. Quase como se ele estivesse implorando.

Mas Sarkian Varant não implorava.

Talvez, eu estivesse delirando. Talvez, fosse um pesadelo.


Ou pior, talvez, eu já estivesse morta.

Eu tentei obedecer, mas era como se as minhas pálpebras


pesassem toneladas.

Consegui abrir os olhos por um momento breve, mas foi o


suficiente apenas para ver duas coisas: primeiro o rosto de Sarkian;
estava embaçado, mas o prata me encarava de perto e
intensamente.
A segunda coisa era o mar de corpos caídos atrás dele.

Ele havia matado todos aqueles homens?

Como?

Não era possível.


— Preciso que fique acordada.

Sua voz me trouxe de volta.

— Não… consigo.
Meu corpo pesava.

Eu só precisava descansar, apenas por um instante. Apenas


um cochilo.

— Olhe para mim, Cera.

Eu queria obedecer, queria tanto olhar para ele. Mas não


conseguia. Abrir os olhos exigia uma força extraordinária a qual eu
simplesmente não possuía.
Percebi que foi a primeira vez que ele havia dito o meu
nome.

E aquele foi o último pensamento que atravessou a minha


mente antes de eu apagar por completo.
capítulo 20

Abri os olhos com dificuldade. Como se minhas pálpebras


tivessem sido coladas.

A primeira coisa que processei foi a dor incômoda na cabeça.


E, então, a mulher parada à minha frente.
Uma senhora de cerca de sessenta anos, cabelos grisalhos e
roupas escuras tinha as mãos e os olhos na minha barriga. Recuei,
em um impulso assustado. Mas o movimento fez com que a dor na
cabeça piorasse.

Ele me fitou, finalmente notando que eu havia acordado.

— Onde estou?! — indaguei. — Quem é você?!


Ela respondeu em selkiano. Não entendi tudo o que disse,
apenas a palavra “ferida”. Olhei para baixo, para a minha barriga. A
mulher apontava para o corte em minha pele. Ela parecia estar
terminando um curativo.

— Caralho. — Escutei uma voz familiar. — Graças aos


Deuses! Achei que estivesse morta.

Vesper apareceu no meu campo de visão, e meu corpo


relaxou. Ele se agachou ao lado da cama onde eu estava, o alívio
era explicito em sua feição.
— Onde estamos? — indaguei, passando o olhar pelo quarto
ao qual não reconheci. Um cômodo grande, repleto de mobílias
antigas e suntuosas.
— Khrovil.

Eu o fitei com o cenho franzido.


— Por quê? Quem decidiu que viríamos para cá?

— O Rei Sarkian.
— E vocês aceitam ordens dele?

— Parecia o mais sensato a fazer. Como ele mesmo disse,


era mais perto de onde estávamos.
A mulher disse alguma coisa, e Vesper se virou para ela.

— Eu já expliquei que não consigo te entender, senhora. —


Ele disse lenta e desnecessariamente alto em meio a uma mímica
um tanto cômica. — Não. Falo. A. Sua. Língua.
Ela balançou a cabeça e voltou-se para o curativo, com uma
expressão frustrada.
— Quem é essa? — perguntei a ele.

— A curandeira daqui. Sarkian a chamou assim que


chegamos. Ela está cuidando de você desde então.
— Por quanto tempo fiquei desmaiada?

— Umas dez horas.


Franzi o cenho ao colocar a mão na cabeça.

— Como vocês nos encontraram? A gente estava no campo.


Era a última coisa da qual eu me lembrava.

Aqueles homens. As espadas. Sarkian cercado...

— Sarkian te levou até nós.

— Como?

— Ele a carregou. Você estava inconsciente.

Engoli em seco.

A mulher se levantou, parecendo ter acabado o curativo. Ela


deixou o quarto, nos deixando a sós.

Ergui-me devagar e reparei no copo na mesa de cabeceira. A


minha garganta parecia uma lixa e a minha boca estava muito seca.
Eu o peguei e dei três grandes goles.

— Deveríamos estar em Umbra. — Ajeitei-me na cama e o


fitei. — E o meu exército não deveria responder a ninguém além de
mim.

— É porque você não viu como ele estava assustador, dando


ordens e bravejando. Ninguém quis contrariá-lo quando disse para
onde iríamos com você. Até o general não discutiu. — Vesper fez
uma pausa. — E, para ser bem honesto, você estava meio… morta.
Não era como se você estivesse apita a ordenar alguma coisa.

— Onde estão todos os soldados?

— Hospedados aqui, esperando a próxima ordem.

— Ótimo. Diga ao DeLarosa que estou bem e que vamos


voltar o quanto antes.

— Certeza? Não parece bem.


— Vesper — sibilei.

— Tudo bem. —Ele assentiu, se levantando.

Ele começou a se virar, mas então indaguei:

— E o Sarkian?

— O que tem ele?

Arranhei a garganta antes de continuar:

— Está… bem?
Antes que Vesper pudesse responder, a senhora voltou, mas
agora acompanhada. Sarkian estava ao lado do batente da porta,
tinha os olhos em mim enquanto ela falava alguma coisa em
selkiano.

Ele assentiu quando ela terminou mas sem, em momento


algum, quebrar o contato visual comigo. Usava as mesmas roupas e
não tinha um arranhão sequer na pele. Pelo menos, nada visível
pelas extensas vestimentas negras.

A senhora se retirou, e Vesper foi logo atrás.


Estávamos a sós.

Ele se apoiou no batente e cruzou os braços, me fitando.


Apesar não ter nenhum ferimento visível, parecia cansado. Seus
olhos estavam mais profundos, como se ele não tivesse dormido.
Remexi-me na cama.

— O que ela falou?


— Que a ferida na barriga foi superficial. E a pancada na
cabeça foi uma contusão, mas que não deve trazer pioras. Vai se
recuperar em um par de dias. — Ele indicou com a cabeça para um
frasco de remédios que a mulher havia deixado sobre a cômoda. —
Mas precisa tomar isso.
— O que é?

— Para dor.
Eu o fitei por alguns segundos. O silêncio pesou. E não fui
capaz de segurar a minha língua.

— Para alguém que tanto me queria morta, você fez um


esforço e tanto para me manter viva.
Sua resposta não foi o que eu esperava. Nada de sarcasmo
ou provocações. Ele repousou os olhos no curativo na minha barriga
e desviou o olhar, cerrando os dentes dentro da boca.

— Por pouco.

Olhei para as minhas próprias mãos.

— Quem eram aqueles homens?


— Ainda estou tentando descobrir.

Franzi o cenho.

— Não sobrou nenhum para interrogatório?


Ele balançou a cabeça.

Pisquei devagar.
A imagem de todos aqueles homens caídos, pouco antes de
eu apagar por completo, me veio à mente.

— Você matou todos eles. — A palavras roucas saíram mais


como uma acusação do que uma pergunta. — Como?

Sarkian olhou para mim.


— Não importa. Eles quase… — Fez uma pausa, engoliu em
seco. — Achei que tivesse sido morta.

E, por um momento, quase... quase pareceu que ele se


importava.
— Não sou tão fácil de matar assim, Sarkian. Você, melhor
que ninguém, já deveria saber disso.

Um pequeno sorriso ameaçou quebrar em seus lábios.

Me remexi abaixo dos lençóis. Foi quando notei que não


estava usando as minhas roupas. Estava de pijamas.

— Como ficou tão boa em combate? — Ele perguntou.


— No meu treinamento para te matar.
A sombra de um sorriso atravessou seu rosto.

— Fico feliz que servi para alguma coisa.


Demorou alguns instantes para que adentrasse o quadro,
mas Sarkian eventualmente o fez. Desencostou o corpo do batente
e veio em minha direção. Ele se sentou na ponta da cama, o mais
distante de mim possível. Agora que estava mais próximo, eu
conseguia sentir o forte cheiro de lavena.
— Não se preocupe. Vou embora assim que os soldados
estiverem prontos.

— Precisa descansar.

— Já estou bem — rebati. — Por que me trouxe aqui, afinal?


Eu deveria estar em Umbra.
— Mais perto. Você precisava de cuidados urgentes.

— Interessante.
— O quê?

— Ver você fingir que se importa.

Silêncio tomou conta de novo. E demorou um momento para


que ele indagasse:

— Acredita mesmo nisso?


Resisti à vontade de desviar o olhar. O prata parecia querer
me incendiar.

— Por que não deveria?

Ele só havia me dado razões para eu acreditar que me


menosprezava. Desde o momento em que nos conhecemos.
Sarkian fitou a parede branca do quarto à sua frente. Sorriu,
mas um sorriso cansado e sem qualquer humor.

— Você realmente não faz ideia, não é?


A irritação borbulhou.

— Não. Não faço, Sarkian. Porque, em um segundo, acho


que me quer tanto quanto eu te quero. Porque você diz coisas e me
olha com desejo genuíno. Mas, então, logo após me beijar, me trata
como se eu fosse… repugnante.

Ele voltou a me encarar, a expressão um tanto incrédula.

— Acha que eu não te toquei porque não queria? Porque não


te acho desejável?

— Você me disse que sou repugnante. Em mais de uma


ocasião.

Ele suspirou fundo e desviou o olhar. Observei seu perfil


derrotado.

— É cansativo pra caralho. — Disse, com a voz rouca.

— O quê?
Sarkian voltou a me fitar.

— Fingir que não te desejo mais do que qualquer outra coisa.

Fiquei em silêncio por um momento, arrebatada pelas suas


palavras. Elas soavam honestas, até sua expressão parecia
verdadeira. Mas as memórias ainda eram vívidas.
Não fazia sentido.

— Você olhou para mim como se eu fosse… — Desviei o


olhar do seu. A palavra agarrou na minha boca e, quando finalmente
saiu, tinha um gosto amargo. — repulsiva. Imunda. Feia.

As memórias eram dolorosas e as emoções borbulhavam.


Isso somado à dor fez com que meus olhos lacrimejassem.

Ele riu.
Sarkian literalmente riu. Mas uma risada sem humor algum,
que aos poucos se tornou melancólica, beirando à frustrada e
exausta.

— Quão cega você pode ser?

Mesmo que com um pouco de dificuldade, me coloquei de pé.


Ignorei o fato de que usava apenas uma fina camisola e não fazia
ideia de onde estavam as minhas roupas. Virei-me porque estava
chorando agora e não queria que ele visse.

Tentei ir até a porta do que parecia ser o banheiro, mas uma


tontura me arrebatou. Perdi o equilíbrio e meus joelhos cederam.

Mas, antes que eu caísse, seus braços me apararam.

Senti os seus dedos na minha cintura e seu cheiro me


inundou.

— Tudo bem? — Ele indagou, o rosto próximo do meu rosto.


— Não finja que se importa. — Tentei me desvencilhar de seu
aperto, mas ele segurou mais firme. — Estou cansada do que quer
que seja esse jogo.

— Você não entende o esforço que preciso fazer para não


tocar em você. É a coisa mais difícil que já fiz na vida. — Ele fez
uma pausa, como se estivesse com dificuldade de colocar os
sentimentos em palavras. Sua voz baixa e áspera. — É no que eu
penso o tempo todo. Desde a hora em que acordo até a hora em
que vou me deitar. Até mesmo nos meus sonhos, eu preciso me
impedir de tocar em você. Dar as costas para você naquela noite,
daquele jeito, foi a coisa mais dolorosa que eu já fiz em toda a
minha vida.
Pisquei devagar. Meu coração galopava no peito.

A minha voz saiu em um sopro rouco:

— Está me tocando agora.

— É. E dói como o inferno.

— Por quê?

— Porque eu não quero te machucar. E eu não consigo me


controlar. — Ele aproximou o rosto um centímetro a mais do meu e
fitou meus lábios. — Eu estava tentando te proteger.

— De que?
Seus lábios entreabriram e demorou algumas batidas do meu
coração para que ele por fim dissesse:

— De mim

Pisquei.

— Eu não… entendo.

Ele ficou em silêncio pelo que pareceu décadas. Seus olhos


voltaram a fitar os meus, enfim desviando a atenção dos meus
lábios.

— Você me perguntou qual era o meu poder. — Ele disse,


finalmente. — Dor é o meu poder, Cera.
capítulo 21

— Dor? — A palavra arranhou a minha garganta.

Tudo à nossa volta parou. O peso de nossos batimentos


cardíacos e respirações eram as únicas coisas que eu ouvia.
— Eu faço com que as pessoas sintam dor — explicou.

Pisquei, em um misto de surpresa e fascínio.

— Como?
— Com a mente... — ele fez uma pausa e encarou a mão
que segurava meu braço sob o couro — e com o toque.

Olhei para as suas mãos com o entendimento finalmente me


acertando.
— Por isso as luvas.

Agora, tudo fazia tanto sentido. As luvas de couro, as roupas


compridas... Com exceção do rosto, Sarkian nunca deixava a pele
exposta.
— Hoje em dia, eu consigo controlar e tocar sem ferir, mas as
uso por precaução.

— Foi assim que acabou com todos aqueles homens?

Ele assentiu com a cabeça uma vez.


— Consegue fazer isso com várias pessoas ao mesmo
tempo?

— Sim.

A memória nublada de vários homens o cercando me veio à


mente. Ele lutando. E, então, todos os corpos caídos no chão à sua
volta.

— Por que não fez assim que eles ergueram as espadas?

— Você estava muito perto. Com uma manifestação naquela


escala, eu não tenho tanto controle. Qualquer um próximo pode
sentir. Só consegui quando você se afastou o suficiente.

Ele não queria me machucar. Ergueu a espada e lutou com


todos aqueles homens porque poderia me ferir como efeito
colateral.

— Já usou em mim?

Ele hesitou.

— Talvez. Sem querer. E bem menos. Caso contrário, você


saberia.

E, então, me veio.

— Nosso primeiro beijo. — Eu disse. — Eu lembro que,


quando nossos lábios se tocaram, eu senti algo parecido a um…
choque.

Foi um fio de dor que percorreu a minha espinha. Mas me


recordo de não ter estranhado tanto na época. Estava tão
anestesiada com a sensação de estar beijando Sarkian Varant que
ignorei a dor.

Ele cerrou os dentes dentro da boca e sua expressão de


tornou culpada.

— Não foi de propósito.

Acreditei naquilo.

Seu olhar nunca havia me parecido tão honesto. Eu nunca


conseguia enxergar por trás de Sarkian. Nunca conseguia entender
suas verdadeiras intenções, mas, naquele momento, era cristalino.

— É por isso que não me toca.

Seu rosto não se moveu, Sarkian não assentiu. Mas não


precisava, estava tudo ali.

Senti uma lágrima escorrer pela minha bochecha. Eu não


tinha certeza se era de tristeza, dor, culpa ou simplesmente
exaustão.

— Achei que tivesse aversão a mim.

Sua outra mão tocou meu rosto. Senti o couro na pele da


bochecha quando ele secou a lágrima.

— Você não tem ideia do autocontrole que precisei para ir


embora naquela noite. Para te ver daquele jeito e não fazer todas as
coisas que eu desejo. — Em vez de tirar a mão, ele arrastou o
polegar pela pele até meus lábios e o descansou ali, seus olhos
acompanhando o movimento. — De ter você tão perto e não poder
fazer todas as coisas mais perversas e depravadas que me
assombram dia e noite.
Engoli em seco.

Meus joelhos estavam fracos, e não tinha nada a ver com os


meus ferimentos.

— Como o quê? — indaguei, minha voz rouca.

Porque eu precisava que ele me dissesse o quanto me


desejava. Eu precisava saber que ele queria a mim tanto quanto eu
a ele.

Sarkian fechou os olhos por alguns segundos, angústia


tomando a sua expressão. E quando o prata voltou a me encarar,
disse:

— Não posso. Não posso começar algo com você porque,


talvez, não seja capaz de parar até ser tarde demais.

— Sei que já esteve com mulheres antes. Se elas


conseguiram… — O desespero na minha voz era terrivelmente
explícito, e senti meu rosto esquentar. — Eu consigo também.

— É diferente.

— Por quê?
— Porque, com você, eu não tenho o mesmo controle. Passei
toda a minha infância e adolescência aprendendo a dominar os
impulsos. Me manter calmo. Manter a pulsação controlada diante de
qualquer situação. E geralmente sou muito bom nisso. Mas desde
que te conheci…

As palavras se perderam no ar entre nós.

O silêncio pesou mais uma vez.


Hesitantemente, estiquei minha mão direita e toquei com
extrema cautela seu peito. Observei seu rosto e notei sua expressão
tensionar.

— O que eu posso fazer?

— Não pode. É você. — Ele falou com a voz rasgada. — É


simplesmente… você.
— Quão ruim pode ser? — indaguei. — Caso você perca o
controle?

Ele não respondeu. E, pela forma como seus olhos me


encararam, soube que a resposta não seria a qual eu gostaria.
— É fatal?

— Pode ser. — Ele respondeu. — Depende de como seu


corpo reage. Às vezes, a pessoa só fica inconsciente por um tempo.
Mas, na maioria das vezes, o coração dispara e, eventualmente —
Sarkian fez uma pausa e murmurou a última palavra me fitando
fixamente —, para.

Engoli em seco e, em um impulso, afastei a minha mão de


seu peito.

Porque foi quando finalmente entendi que não havia


escapatória. Não poderíamos nos arriscar. Estar junto dele poderia
significar literalmente a minha morte.
Sarkian poderia me matar pelo simples fato de eu ser a razão
de seu desejo.

E ele notou esse entendimento no meu rosto porque deu um


passo para trás.
O ar pesou entre nós conforme nos encarávamos pelo que
pareceu uma vida inteira.

Sua expressão estava séria e havia angústia por todo o seu


rosto quando disse:

— O que dizem sobre os caídos é verdade. — Sarkian falou,


quebrando o silêncio. — Somos amaldiçoados.
Ele se afastou e se virou para ir embora.

E eu o deixei ir.
Foi então

que ela finalmente entendeu


que o Rei das Trevas

era na verdade

o Rei da Dor
capítulo 22

Dormi pesado naquela madrugada. Provavelmente, devido


aos remédios. Quando acordei, nevava do lado de fora. Eu nunca
tinha visto neve. Em Umbra, ficava bastante frio no inverno, mas
nunca o suficiente para nevar.

Notei um vestido sobre a cadeira. Não fazia ideia de quando


ou por quem havia sido posto ali. Era todo preto com mangas
compridas, passando um pouco dos pulsos, e gola alta.
Com cuidado para não estragar o curativo em minha barriga,
eu o coloquei. Então, me olhei no espelho. Gostei do caimento e de
como a minha pele destoou com o material tão negro que parecia
azulado dependendo da luz.
Era o tipo de vestido que eu jamais usaria em Umbra.

Deixei o quarto logo após me vestir.

O corredor era longo, repleto de portas. Perguntei-me se


Vesper ou DeLarosa estavam em um daqueles cômodos. Cheguei a
abrir um deles após bater na porta de leve, mas não encontrei nada
além de um quarto vazio bem parecidos com o qual eu dormi,
apenas um pouco menor e menos mobiliado. Também havia
quadros ao longo das paredes; todos retratos do que pareciam ser
as gerações dos Reis de Khrovil.
Segui pelo corredor até reconhecer o antigo Rei Zagreus, pai
de Sarkian. Parecia um pouco mais jovem do que da última vez que
o vi, mas o olhar e a postura orgulhosa eram as mesmas. A
memória dele morrendo nas mãos do próprio filho atravessaram a
minha mente.

O sangue, as máscaras, os gritos de choque...

Desviei o olhar e, logo ao lado, estava o último retrato do


corredor.

Sarkian olhava para mim quase em desafio, o prata brilhando


em uma mistura familiar de arrogância e tédio. Seu rosto não era
sério, e sim neutro. Não havia um resquício de emoção ali. E sua
postura, diferentemente dos outros reis, não era tão rígida. Era
relaxada, com a mão direita repleta de anéis apoiada casualmente
no braço da cadeira.

Perguntei-me quando aquele retrato havia sido feito. Parecia


recente.

Olhei para os dois retratos, lado a lado, e pensei sobre a


ironia.

Filho e pai.
Assassino e vítima.

Deixei o corredor e desci uma escada. No andar de baixo,


também não encontrei ninguém. Mas ali não havia tantas portas ou
quadros. Inclusive, havia apenas três.

Uma em particular me chamou a atenção.


Observei o local por um momento e, de repente, tive a
estranha sensação de já ter estado ali.

Demorou um instante para que eu me recordasse.

A noite em que encontrei Sarkian torturando aquele homem.


A noite em que ele me pendurou no teto pelos braços.

Contive a vontade de passar a mão pelos pulsos quando a


memória me arrebatou.

Parei em frente à porta, me debatendo se deveria entrar ou


não. Não demorou muito para que eu tomasse uma decisão. Estava
curiosa. E queria saber se aquele era de fato o mesmo cômodo no
qual havia estado quase um ano atrás.

Eu não fazia ideia do que encontraria li, mas girei a


maçaneta.

— Ei, senhora!

Virei-me, levando um susto.

Um criado me encarava no fim do corredor. Não estava


mascarado, então não era um guarda. Provavelmente, era um
criado do palácio.

— Não pode entrar aí.

Minha mão deixou a maçaneta por um momento, e eu o


encarei.

— Estou à procura de alguém — expliquei.

E não era uma completa mentira. Se Sarkian estivesse ali,


fazendo o que quer que fosse, pelo menos poderia me dizer
exatamente onde eu podia encontrar Vesper e os outros.

O homem deu alguns passos à frente.

— Tenho certeza de quem quer que seja, não vai encontrar


aí.

Franzi o cenho, levemente irritada. Eu ainda estava com um


pouco de dor de cabeça.

— Como sabe disso? — rebati. — Não sabe quem procuro.

Então, ergui a mão direita novamente para abrir a porta.

— Não pode entrar! — Ele repreendeu. Dessa vez, mais alto.


E agora estava ao meu lado, como se estivesse pronto para
me impedir se fosse preciso.

— Esse cômodo é proibido. — explicou, com o rosto duro.

Eu abri a boca para responder, mas as palavras não


chegaram a sair.
— Sabe com quem está falando? — Escutei a voz grave
atrás de mim.

Virei-me.

Sarkian estava no fim do corredor, logo abaixo da escada


pela qual eu havia descido ainda pouco. As mãos nos bolsos
conforme encarava o criado.

O homem ao meu lado paralisou. Seus olhos se arregalaram


conforme Sarkian, lentamente, se aproximou de nós.
O criado fez uma reverência rígida e longa. Observei,
impressionada como a postura do criado mudou tanto em questão
de segundos.

— Te fiz uma pergunta. — Sarkian disse ao parar ao meu


lado.

O homem olhou para ele com a boca entreaberta e, então,


me fitou. Ele fez isso mais um par de vezes; dava para ver o
desespero e o medo em seus olhos.
— Eu não… Eu não sei, Majestade. — Ele gaguejou.

— Essa à sua frente é Cera Novak, a Rainha de Umbra.


Eu achei que o homem fosse chorar. Ou desmaiar.

— Eu… Meus Deuses... — Ele olhou para mim. Fez mais


uma reverência. — Eu não sabia, Majestade. Sinto muito. Por favor,
perdoe a minha ignorância.

— Tudo bem — respondi, louca para aquela tortura acabar.


Chegava a ser doloroso de ver. — Está perdoado.

O homem tremia.
— É muita bondade su…

— Está dispensado — interrompeu Sarkian.

O homem assentiu veemente, alívio claramente tomando seu


corpo. Fez mais uma reverência e fugiu dali o mais rápido que pôde.
Virei-me para Sarkian.

— Não precisava ter feito isso. Ele não sabia.


— Você é uma rainha. — Ele retrucou, sério. — As pessoas
devem saber quem é.

Troquei o peso dos pés.

— Aposto que aquele pobre homem nunca vai se esquecer.


Ele ignorou meu comentário sugestivo, observando meu rosto
por um momento mais longo do que eu gostaria. Odiava como seu
olhar me deixava desconfortável.

— Como está se sentindo? — indagou.

— Melhor. Apenas uma leve dor de cabeça.

— Para onde estava indo?


Olhei para a porta ao nosso lado.

— Estava explorando.

Ele seguiu o meu olhar. E, então, nos fitamos. Não era


preciso palavras porque, de alguma forma, era como ele soubesse
exatamente que eu estava repassando tudo em minha mente.
Mas eu disse mesmo assim.

— Nove horas — lembrei. — Você me deixou presa por nove


horas. Eu deveria te matar por isso.
— Você tentou. — Ele sorriu. Ou quase. O canto direito de
seus lábios se ergueu bem suavemente. — Duas vezes.

Touché.
Eu semicerrei os olhos em sua direção.
Como era possível eu querer socá-lo com a mesma
intensidade que queria beijá-lo?

— Explorou o suficiente? — Sarkian indagou, quebrando o


silêncio.

— Ainda não.
Ele ergueu uma sobrancelha.

— O que falta?
— Quero ir lá fora — respondi. — Ver a neve.

Aquilo pareceu surpreendê-lo.

— Nunca viu?

Nós deixamos o corredor e descemos mais uma leva de


escadas até estarmos no primeiro andar. Alguns criados circulavam
por ali, um par de guardas mascarados também.

Eles repararam na nossa presença assim que adentramos o


lugar. Notei conforme andávamos pelo castelo que todos ali
mudavam de postura instantaneamente, faziam reverências tensas
e evitavam seus olhos. Pareciam desesperados para se verem
longe de sua presença.

— Eles o temem. — Eu disse conforme andávamos.

Sarkian me encarou.

— Seus criados — expliquei.

— Eles me respeitam.
— Eles têm pavor de você.
Aquilo não pareceu abalá-lo. Nem mesmo pareceu
surpreendê-lo.

— Não quero ser adorado, Cera.

Tentei ignorar a forma estranha como meu coração reagiu ao


meu nome deixando a sua boca.

— Por que não?

Ele desviou o olhar por um instante.

— É muito mais fácil ser temido.

Atravessamos o portão principal e finalmente estávamos do


lado de fora do castelo.

O frio me acertou de forma brusca.

Uma fina camada de neve cobria a grama e as árvores,


formando um cobertor branco.

Coloquei os braços em volta do corpo e olhei para cima.


Pequenos flocos de neve caíam sobre nós. Fechei os olhos por
alguns segundos, sentindo as pequenas gotas congelantes
repousando em minha pele.

Quando voltei a abrir os olhos, senti seu olhar sobre mim.

Ele não estava olhando para neve. Sarkian estava olhando


para mim.

Fixamente.

Apesar do frio, corei.


Queria pedir que parasse. Era quase como se eu o sentisse
me tocando apenas com o olhar.

— O que está olhando?

Ele não desviou. Abriu a boca, mas demorou um momento


para que falasse:
— Você está…

As palavras se perderam no frio congelante conforme ele


percorria meu rosto com dolorosa atenção.

— Está tentando me elogiar? — indaguei. — Cuidado para


não se engasgar nas palavras e acabar morrendo. Sei como é difícil
para você.

Sua boca se entortou bem suavemente, e ele olhou para


frente. Tirou do bolso um cigarro de lavena e o colocou entre os
lábios.
— Engraçada.

Coloquei uma das mãos sobre o peito de forma dramática e


continuei:

— Deuses, Sarkian, estava tentando dizer que sou bela e


graciosa?
Ele acendeu um fósforo e protegeu a chama do frio conforme
o aproximava do cigarro.

— Quem dera que fosse só isso. — Sugou forte ao voltar a


me encarar. E, então, repetiu as palavras como se elas fossem
ridículas: — Bela e graciosa.
O sorriso aos poucos deixou o meu rosto e o silêncio recaiu
sobre nós por uma eternidade.

Sarkian tinha a forma mais estranha de me elogiar, era quase


como se não tivesse intenção ou como se achasse que não
precisasse. Ele parecia pensar que sua atração por mim era a coisa
mais óbvia do mundo.

Mas não era. Pelo menos, não para mim. Até ontem, eu
ainda não tinha certeza se ele sentia completa repulsa em me tocar.
E mesmo assim, mesmo aquele tipo mais excêntrico e seco
de elogio, tinha um efeito arrebatador em mim.

Porque era cru e genuíno.

Eu não era apenas bela e graciosa.

Aparentemente, eu era aquilo e muito mais.


— Você fuma demais — disse, mudando de assunto. Eu
nunca sabia o que dizer quando ele falava aquele tipo de coisa.

— Eu não fumo tanto.

Contive a vontade de rir.

— Está em negação, então. Basicamente, em todas as vezes


que estive com você, fumou em algum momento.

— Exatamente. — Ele respondeu como se aquilo explicasse


tudo. — Quando esteve comigo.

Franzi o cenho.

Sarkian sugou mais uma vez, e as palavras deixaram sua


boca com a fumaça:
— A lavena ajuda a controlar.

— Seu poder?

Ele assentiu.
— Me ajuda a relaxar, equilibra a minha pulsação.
Basicamente me deixa anestesiado — explicou. — Quando não
estou com você, não preciso usar tanto.

Pisquei.

Um momento se passou, e tudo o que eu consegui dizer


diante daquilo foi:

— Oh.
— Ah — ouvi —, achei você!

Virei-me.

Vesper estava logo atrás de mim. Ele olhou para Sarkian, que
agora o fitava também. O rosto de Vesper ficou sério e ele fez uma
sutil reverência com a cabeça.
Sarkian o encarou com o rosto impassível.

— Olá. — Meu amigo disse, então se virou para mim. —


Estava te procurando. Fui ao seu quarto, mas não estava lá.

— Levantei agora há pouco e desci.

— Vou deixá-los a sós. — Sarkian disse, claramente


desinteressado com a nossa conversa. Ele me fitou. —
Conversaremos mais tarde. O jantar será servido às sete no salão
principal.
Assenti, e ele se foi.

— Eu tenho a leve impressão de que ele não gosta de mim.


— Vesper murmurou.

Eu o encarei.
— Ele não gosta de ninguém.

— Parece que gosta de você. — Ele franziu o cenho. — Ou,


pelo menos, às vezes. Na real, na maioria das vezes, eu não sei se
ele quer te foder ou te matar.

Pisquei. Meu rosto esquentou.

Nem ele, pensei.

— Onde você estava? — indaguei, desesperada para mudar


de assunto.

Vesper deu de ombros.

— Por aí — respondeu. — Esse lugar é sinistro. Ninguém


sorri aqui. Sério, tentei conversar com um dos guardas do castelo e
usei meu melhor repertório de piadas, e adivinha?
Ele parecia genuinamente revoltado.

— Uhm?

— Nem um sorrisinho!

— Não é possível — comentei com clara ironia que, no


entanto, pareceu passar despercebida por ele.
— A gente pode entrar? — Ele balançou os braços de forma
dramática, como em uma tremedeira. — Eu acabei de descobrir que
odeio neve pra caralho.

Nós caminhamos de volta para dentro.

— Esteve com DeLarosa e os soldados?


Ele assentiu.

— Tudo em ordem. Estão todos em um casarão próximo


daqui, mas querem saber quando iremos voltar.

— Amanhã cedo — respondi.

— Você já está melhor? — perguntou. — Não é melhor


esperarmos mais um pouco? É uma viagem meio longa.

— Estou bem. Até iria hoje, mas já está um pouco tarde e


quero evitar a neve. — Ele me seguiu até a escada. — Avise a eles
que estou melhor e que iremos sair amanhã. Quero todos prontos
antes das sete.

Vesper fez uma reverência exagerada.

— É para já, Majestade.

Rolei os olhos e subi as escadas de volta para o meu quarto.


Estava planejando enviar uma mensagem para Umbra, atualizando
Mirvin e Allegra do que estava acontecendo.

Torci a maçaneta e, assim que dei o primeiro passo para


dentro do cômodo, fui surpreendida.

Alguém me esperava ao lado da porta. Senti o impacto e,


antes que pudesse processar o que estava acontecendo, minhas
costas estavam contra a porta e uma mão apertava a minha
garganta.
Era Despinna.
capítulo 23

Arregalei os olhos em sua direção. O choque tomando conta


do meu corpo.

Despinna tinha os olhos verdes fixos em mim.


Perversos, desesperados, vidrados.

— Eu te avisei para ficar longe dele. — disse entredentes.

Com a mão direita, ela apertava meu pescoço, forçando meu


corpo contra a porta. Com a esquerda, segurava uma faca.

Meu coração explodiu dentro do peito e meu corpo se tornou


dormente. Qualquer dor que eu sentia antes se esvaiu.

Ela não estava ali apenas para me assustar, Despinna estava


ali para me matar. Dava para ver em seus olhos.

Empurrei seu braço para cima com toda a força que tinha, me
livrando de seu aperto. Esse era um golpe de defesa que havia
treinado dezenas de vezes com Bax. Ela se surpreendeu com o
movimento, o que me deu tempo de tirar as costas da parede e me
afastar.

Despinna avançou em minha direção com a faca em punho.


Desviei de seu primeiro golpe e me preparei para o próximo. Meus
olhos estavam fixos na lâmina brilhante da faca enquanto eu
buscava uma brecha para contra-atacar.
Despinna era rápida, mas não habilidosa. Em um movimento
ágil, consegui agarrar o braço que segurava a faca e torcê-lo para
trás. Ela gritou de dor, mas não desistiu. Tentou me acertar com o
cotovelo, mas eu consegui desviar da maior parte do impacto. O
golpe pegou de raspão na minha barriga, bem onde a ferida
repousava, ainda recente.
Senti a dor atravessar a minha espinha e um grito
estrangulado escapou da minha boca.

Mas não recuei, nem mesmo hesitei.


Em um golpe preciso, consegui desarmar Despinna e jogar a
faca longe. Agora, ela estava desarmada e vulnerável. Eu não perdi
a oportunidade e avancei. Mas, assim que dei um passo em sua
direção, Despinna flutuou para longe.

Literalmente flutuou para longe.

Seus pés deixaram o chão e seu corpo se afastou de mim


pelo ar.

O movimento me deixou em completo choque. Congelei onde


estava, a observando flutuar diante de mim para o outro lado do
quarto. Sua cabeça estava a alguns centímetros do teto e seus pés,
a mais de um metro do chão.
Pisquei em descrença.

— Você…
Estava surpresa demais para sequer terminar a frase e as
palavras se perderam antes mesmo de saírem.
Despinna era um caído.
Claro.

Como eu não havia pensado nessa possibilidade antes?

— Ele nunca vai te amar. — disse, me fitando de cima. Seus


olhos brilhando em ódio. — Você não foi feita para alguém como
ele. Você é só uma humana.

Minhas mãos se transformaram em punhos.

— Você é patética. — Eu murmurei.

Despinna cerrou os dentes dentro da boca.

E foi só quando ela olhou para a faca jogada no chão do


quarto que forcei meu corpo a se recuperar do choque. Joguei-me
na direção da arma na mesma velocidade que ela. Nossas mãos
alcançaram o cabo no mesmo momento. Lutamos por ela, com os
dedos entrelaçados na arma enquanto rolávamos no chão.

Em determinado momento, senti meu braço ser puxado e o


peso do meu corpo, elevado. Despinna estava flutuando, e como eu
não estava disposta a soltar a sua mão que segurava a faca,
também saí do chão. Segurei firme com as duas mãos e giramos no
ar.

— Solte! — Ela rosnou.

Eu chutava o ar, tentando acertá-la de alguma forma, mas


tudo o que fazia era nos girar mais rápido enquanto flutuávamos
pelo quarto. Meu braço começou a cansar. O aperto de Despinna
era firme, ela não iria soltar.
Mordi a parte de seu corpo mais próxima da minha boca.
Finquei os dentes em sua bochecha com tanta força que senti
perfurar a carne.
Ela gritou e, de repente, em um impulso brusco, ambas
voamos alto. Fui jogada contra o teto, e batemos contra ele. Soltei a
faca, assim como ela. O impacto foi forte, mas o seguinte foi mais
ainda.

Caímos entrelaçadas com um baque forte no chão.


O ar deixou meus pulmões.

Pisquei para o teto acima de mim, me recuperando do


impacto. Por sorte não bati a cabeça nem caí sobre o ferimento da
barriga.
Ao meu lado, Despinna se esticava para tentar alcançar a
faca caída próxima.

Mas fui mais rápida.

Não avancei em direção à faca. Subi em cima da barriga de


Despinna, a imobilizando com meu peso. Prendi as coxas em sua
volta e acertei cerca de quatro socos antes de ver o sangue negro
tingir seu rosto.

Quando ela deixou de reagir, finalmente parei.


Eu ofegava e meu cabelo bagunçado cobria parte do meu
rosto. Respirei fundo um par de vezes enquanto a encarava. Meu
punho pulsava, e meu peito subia e descia com força.

Despinna ainda respirava. Suas pálpebras se moviam, como


se tentassem se abrir.
Inclinei-me e peguei a faca caída ao nosso lado. Por um
momento, eu a fitei com a mão direita segurando o cabo com força.

Ela não significava mais uma ameaça para mim, não


conseguia nem se mover. Eu não precisava matá-la.

Mas eu queria.
Eu queria tanto matá-la.

Ela merecia. Despinna era má e violenta, eu deveria…

— Me mate...! — As palavras deixaram a sua boca em um


sopro rouco e fraco. Seus olhos se entreabriam apenas o suficiente
para eu visse as lágrimas. — Faça logo. Não posso viver sem ele.

Congelei com a faca na mão.


Ela estava falando de Sarkian.

— Me mate — implorou.

Engoli em seco.
E foi quando entendi. Despinna não tinha escolha. Havia tido
um illyrium por Sarkian.

Abaixei a faca. Saí de cima dela e recuei.

Despinna continuou deitada, imóvel. Apenas as lágrimas


rolando pelo seu rosto e se misturando com o sangue negro como a
noite.

Chamei os guardas, e ela foi levada.


Sarkian já estava me esperando para jantar quando entrei no
salão. Sozinho, sentava-se na cabeceira da mesa comprida de
madeira maciça. No lado oposto, estava meu prato, talheres e a
taça de vinho. A criada me conduziu até a outra cabeceira.
O salão gigantesco estava vazio, além de nós três.

— Seremos só nos dois? — indaguei.


Ele assentiu. E automaticamente me senti mais nervosa.

Assim que me sentei, notei o colar de diamantes brilhando ao


lado do meu prato.
O colar da minha mãe.

Levantei o olhar.
Sarkian me fitava.

— Não ache que irei te agradecer por devolver algo que


roubou de mim. — Eu disse.
O comentário quase o fez sorrir.
— Jamais esperaria isso de você.

Sarkian lançou um olhar para a criada, a dispensando.

Ficamos completamente a sós.

Voltei meu olhar para o colar e, por um breve instante, senti


uma saudade esmagadora da minha mãe. A sensação era rara
ultimamente. Havia aprendido a conviver com a sua ausência e a
saudade vinha em ondas, mas geralmente leves.

— Quantos anos tinha quando ela morreu?


Levantei o olhar.

Demorou para que eu entendesse sua pergunta. Fiquei


surpresa diante do que Sarkian falou, pelo fato de ele saber que o
colar era da minha mãe. Mas, então, me recordei do que disse a ele
naquela mesma noite em que o perdi, quando implorei para que
devolvesse.

E ele se lembrava.

— Cinco.

— Ela era como você?

Balancei a cabeça.

— Melhor. Mais bonita — fiz uma pausa e engoli em seco —,


mais bondosa.
Coloquei o colar em volta do meu pescoço.

Sarkian não tirou os olhos de mim em momento algum, o que


tornou tudo pior.

— E a sua mãe? — indaguei, aproveitando a deixa. — Está…

— Morta? Sim.

A forma indiferente e rápida como respondeu me


desestabilizou um pouco. Não havia nenhum traço de emoção em
seu rosto.

— Como?

— Assassinada.
Aquilo me fez hesitar. Quis perguntar por quem, mas o
conhecia o suficiente para entender seus limites. Se empurrasse
demais, Sarkian se fecharia por completo.

— Como ela era?

— Não me lembro. — Ele pegou a taça de vinho. — Eu era


um bebê.
Algo no fundo do meu peito se contraiu.

— A rainha te criou como se fosse dela desde então?

Sarkian deu um gole antes de responder.

— Não exatamente. Ela me apresentou como dela para


Khrovil porque meu pai não lhe deu opção. Mas ela não me criou.
— Quem te criou?

Ele ficou em silêncio. Pareceu pensar genuinamente em uma


resposta, até que, por fim, disse:

— Ninguém em especial. Alguns criados.

Sua vida havia sido muito mais trágica do que sempre


imaginei.

Quando o conheci, achei que era apenas mais um príncipe


mimado que havia crescido com tudo. E talvez eu não estivesse de
todo errada porque, no fim das contas, Sarkian cresceu, sim, com
todos os privilégios e luxos que o dinheiro e o status podiam
proporcionar. Mas havia a parte obscura no meio daquilo tudo. A
parte que nem todo mundo via.
Sua infância havia sido pior que a minha. E eu sabia o que
tragédias como aquela em uma idade terna faziam com você.

Talvez, aquilo explicasse sua personalidade. A crueldade.

Não justificava, mas definitivamente explicava.

Silêncio recaiu sobre nós.

Tomei um gole do vinho e experimentei a comida. Era carne


vermelha e algo que se assemelhava a um risoto.

— Que carne é essa? — indaguei.

Seus lábios se moveram, mas eu não consegui escutar.

— Não entendi.

— Bufallo. — Sarkian respondeu, dessa vez um pouco mais


alto.

— Isso é ridículo. — Eu protestei, me levantando. — Estamos


praticamente tendo que gritar.

Com meu prato e taça em mãos, andei até o lado oposto da


mesa e me sentei na cadeira mais próxima, ao lado esquerdo da
cabeceira onde ele estava.

Sarkian descansou o corpo nas costas da cadeira e abriu um


meio sorriso.

— Realmente não consegue ficar longe de mim, não é?

Rolei os olhos.

— Cala a boca.
Voltei a cortar a carne, mas sua atenção não me deixou.
Sarkian estava parado, apenas me observando.

— O que foi? — perguntei, piscando em sua direção.

— Não quer saber.


— Quero.

— Estava imaginando como seria seu rosto quando goza.

O garfo parou no meio do caminho até a minha boca. Todo o


meu corpo congelou conforme as palavras dançavam nos meus
ouvidos.

Meus lábios entreabriam, mas eu não tinha ideia do que


responder diante daquilo.
De repente, a criada entrou na sala. Tinha a garrafa de vinho
em mãos e se aproximou. Ela reabasteceu nossas taças.

Ajeitei-me na cadeira, me recompondo. Coloquei o pedaço de


carne na boca e mastiguei devagar.

Quando a criada se retirou, o silêncio desconfortável


permaneceu.

Mas eu já não aguentava mais.

Dei um par de garfadas antes de perguntar:

— Descobriu quem eram os homens que nos atacaram?

— Tenho fortes suspeitas que foram a mandado de Wullfric.


Mas nenhuma prova concreta ainda.
— Faz sentido. Ele me quer morta. Mas ir atrás de você
também? É loucura.

— Talvez, ele soubesse que estávamos nos encontrando ali


para uma possível aliança.

Balancei a cabeça em descrença.


— Mesmo assim, é muita estupidez tentar atacar ambos. Se
for o caso, ele acabou de declarar guerra não com um, mas com
dois reinos.

Achei que Sarkian fosse responder, mas ficou em silêncio.


Ele, então, fitou meu colar e deixou os olhos ali por um momento.

— O que aconteceu hoje..., não vai se repetir — disse, por


fim. — Não vai ter que se preocupar com ela novamente.

Eu não precisei perguntar a quem se referia. Sarkian soube


do que havia ocorrido assim que Despinna foi levada do meu quarto
pelos guardas.

— O que você fez? — indaguei.

— Não a matei, se é isso o que está pensando — respondeu.


— Ela está bem. Só a mandei para longe.

Talvez, fosse o vinho começando a fazer efeito, mas as


palavras simplesmente escaparam de minha boca:

— Ela te ama.

A frase soou como uma acusação. Uma acusação que o


pegou de surpresa, apesar de seu rosto não expressar
demasiadamente. Sarkian não respondeu, entretanto.
— Ela teve um illyrium por você, não é?

— Como sabe sobre isso?

— A garota que você matou. Willow. — Foi necessário certo


esforço para dizer o nome dela na frente dele. Parecia errado. Estar
ali com ele, de repente, parecia traição.

Desviei o olhar. A memória da noite em que a havia matado


atravessou a minha mente.

— Eu não consigo entender... — Eu murmurei, quebrando o


silêncio.

— O quê?

Voltei a fitá-lo.
— Como posso desejar você.

— Por que sou ruim?

— Porque é terrível — reformulei, com seriedade. — O pior


de todos.

— Nunca te disse algo diferente. — Ele se inclinou em minha


direção, aproximando o rosto. — Sou o vilão, lembra? — Apesar de
não sorrir e nem ter humor em sua voz, havia uma diversão sádica
em seus olhos. Aproximou-se ainda mais, apoiando os braços sobre
a mesa. — E sabe o quê? Talvez, me deseje justamente porque não
somos tão diferentes assim.

Engoli em seco e recuei o rosto um par de centímetros.

— Tem uma grande diferença entre nós.

O prata cintilou.
— E qual é?

— Você gosta — acusei. — Gosta de ser cruel. Quer ser o


vilão.

Ele semicerrou os olhos.

— E você não?

Balancei a cabeça em negação.

— Eu luto contra isso todos os dias.

Sarkian, por fim, recuou. Pegou a taça de vinho e descansou


o corpo novamente nas costas da cadeira conforme me fitava.

— Talvez, devesse parar — disse, então. — Deixar a sua


verdadeira natureza tomar conta.

Não respondi. Em vez disso, peguei a minha própria taça e


terminei o vinho em duas grandes goladas.

O resto do jantar foi feito em completo silêncio.


Ele queria levá-la para a sua escuridão
queria banhá-la com as sombras

E queria que ela enxergasse

o que ele enxergava


capítulo 24

Ele me acompanhou até o quarto. Eu segurava uma taça de


vinho, a qual ele havia dito que eu deveria deixar, mas escolhi
ignorar seu conselho educadamente o mandando se ferrar.

— Onde é o seu quarto? — indaguei, conforme andávamos


pelo corredor.
— No andar de cima.

— Hum.

Queria vê-lo.
Não fazia ideia de como seria o quarto de Sarkian. Será que
ele havia tomado o quarto do pai como eu havia feito com o antigo
Rei Boran?

Paramos em frente à minha porta e a encaramos por alguns


segundos.

Não queria dormir. Jamais admitiria em voz alta, mas não


queria me despedir dele ainda. Eu o odiava, sem dúvidas, mas
estava começando a ficar viciada em sua presença. Em seu cheiro,
seu olhar, seu sorriso.

Deuses, eu devia mesmo estar bêbada.

— Não vai entrar? — Ele perguntou, por fim.


— Não estou com sono.

— Tem livros na estante.

— Tonta demais para ler.

Tecnicamente, não era uma mentira. Eu havia tomado cerca


de três taças de vinho no jantar e aquela na minha mão era a
quarta. Mas não era a verdadeira razão pela qual não queria ler.
Abrir um livro naquele momento era a última coisa que eu desejava
fazer.

Estava imaginando como seria seu rosto quando goza.

As palavras ecoaram pela milésima vez em minha cabeça.

Troquei o peso dos pés.

— Acho que, talvez, devesse entrar para checar se está


seguro — sugeri. — Da última vez que entrei nesse quarto, tinha
alguém escondido e pronto para me matar.

— Com o qual você lidou muito bem praticamente


desfigurando a sua face — rebateu.

Fiz uma careta.


— Mesmo assim. Pode ser que eu não tenha tanta sorte
dessa vez.

Sarkian ergueu uma das sobrancelhas.

— Quer mesmo que eu acredite que está com medo?

Dei de ombros.
— É o seu castelo — argumentei. — A segurança é a sua
responsabilidade.

Ele semicerrou levemente os olhos, mas não discutiu. Girou a


maçaneta e entrou.

Dei um gole no vinho conforme o seguia.

— Tudo certo — afirmou ao olhar em volta.

Franzi o cenho.

— Você nem checou.

Ele parou, chegou a entreabrir os lábios, mas nada saiu.

Sarkian foi ao banheiro e, depois de checar o cômodo — com


muita má vontade —, anunciou:

— Nada aqui.

Dei mais um gole na taça e assenti.

— Ótimo.

Logo depois, foi até o armário e o abriu. Completamente


vazio. Sarkian se virou para mim com uma expressão sarcástica.

— Nada aqui também.

Fingi seriedade e assenti.

— Excelente.

Ele parou no meio de quarto, com as mãos na cintura.

— Mais algum lugar, Majestade?


Pensei por um instante. Meus olhos fizeram uma breve
escolta pelo quarto.
— Ah, olhe embaixo da cama também! — Apontei com a taça
na mão.

Sarkian me lançou um olhar, e eu sorri; meu melhor sorriso


doce de donzela indefesa. Mal acreditei quando ele foi em direção à
cama e se abaixou, apoiando um joelho no chão e inclinado a
cabeça. Tive que me esforçar para segurar o riso.
Nunca achei que seria tão fácil assim fazê-lo se ajoelhar.

Demorou um instante até que Sarkian me lançou um olhar


após revistar abaixo da cama. Ergueu uma sobrancelha irônica.
— Adivinha?

— O quê?
— Nada aqui também. — Sarkian se colocou de pé. — Está
segura.

Suspirei fundo, o sorriso deixando o meu rosto.


Ele parou de frente para mim, e nos encaramos por um
instante.
— Vai lutar contra Wullfric comigo? — indaguei.

Ele assentiu brevemente.


Surpreendi-me com a resposta direita.

— Mesmo que aquele ataque não tenha nada a ver com ele?
Colocando ambas as mãos nos bolsos, Sarkian assentiu de
novo.

— E quando tomou essa decisão? — perguntei.

— No momento em que me pediu.


Semicerrei os olhos.

— Então, estava me provocando.

A sombra de um sorriso atravessou seu rosto.

— Jamais.
Dei um passo à frente e ergui levemente a cabeça para fitá-
lo.

— Sabe... Para alguém que é meu inimigo e diz me odiar,


você parece bem disposto a me ajudar.

Ele não respondeu. Em vez disso, seus olhos desceram até a


minha boca e repousaram ali.
Era uma sensação tão estranha saber que ele me queria.
Fazia todo o meu corpo formigar e meu coração parecer querer
explodir no peito. Eu nunca havia sentido nada como isso antes.

Eu dei mais um pequeno passo à frente, fechando a distância


entre nós. E ele se manteve parado, praticamente
congelado. Aproximei meu rosto de seu pescoço. Consegui sentir a
tensão tomando conta de seu corpo.
Sua jugular se moveu. O Rei das Trevas engoliu em seco.

— Não faça isso — pediu, em um murmuro rouco.


Sarkian ainda tinha as mãos nos bolsos, como se fosse mais
seguro para ambos que as mantivessem ali.

Eu precisava que ele me tocasse. Sentia que, caso ele não o


fizesse, talvez eu pudesse literalmente morrer.

— Não estou fazendo nada... — murmurei de volta, com a


boca bem próxima da pele de seu pescoço.
— Está me provocando.

Alinhei meus lábios ao dele e sussurrei:

— Jamais.

Estava prestes a fechar a distância entre eles quando Sarkian


recuou o rosto.
— Eu não quero te machucar.

— Não vai.

— Vou.
— Eu aguento — rebati.

— Não entende.

— Estou sob efeito de remédios para dor — argumentei.

— E bebida. — Ele acrescentou, com certo julgamento no


tom, o qual resolvi ignorar.
— Isso também.

Soltei a taça de vinho sobre a cômoda atrás de mim e, com a


mão direita, empurrei seu corpo. Sarkian recuou alguns passos até
que a parte de trás de seus joelhos se chocaram contra a cama.
Ele caiu sobre o colchão com a graciosidade de um felino.
Apoiou o tronco nos cotovelos e me encarou, a princípio em
completa surpresa, mas, então, com curiosidade.
Até que chegou em fascínio.

Segui até a ponta da cama e levantei as minhas saias.


Ajoelhei-me no colchão, com um joelho de cada lado, e me sentei
por cima de sua cintura.

Sarkian engoliu em seco conforme me fitava fixamente. O


prata cintilou em desejo tórrido.

Eu o fitei por um momento em silêncio. Ele era tão bonito...


Às vezes, não parecia real. Como naquele momento, me fitando
com os olhos brilhando sob os longos cílios negros.

Meu coração galopava no peito.

Eu tinha o controle.
Eu tinha controle sobre Sarkian Varant. O Rei das Trevas. O
homem mais poderoso e temido de Khrovil. Era enervante.

Lentamente e sem quebrar contato visual, peguei suas mãos


enluvadas e as posicionei em minhas laterais. Senti a rigidez entre
as minhas pernas, bem em meu centro. Sarkian estava duro.

Deuses.

Eu o queria tanto que estava começando a me sentir


dolorida.

Movimentei meus quadris lentamente sobre sua extensão.


Ele fechou os olhos por um instante e inspirou
profundamente. Um som baixo e rouco escapou de sua garganta.

— Você é cruel... — disse, com a voz rasgada.

Ele parecia sentir dor. E de uma forma distorcida, isso me


estimulou ainda mais. Inclinei-me em sua direção, o que o fez se
deitar, e apoiei ambas as mãos no colchão, ao lado de sua cabeça.
— Só agora descobriu?

Alinhei meus lábios aos dele e o fitei.

— Não me faça implorar.

Três segundos se seguiram depois disso. Vi o prata em seus


olhos mudar.
Ele tomou uma decisão.

Sarkian se ergueu sutilmente. E, em um movimento fluido,


nos girou, invertendo nossas posições.

Perdi o fôlego quando a minha cabeça bateu no colchão.

Então, ele me beijou.

Coloquei a mão em seu rosto, um murmuro de prazer deixou


a minha garganta quando ele puxou meu lábio inferior com os
dentes.

Quando sua mão começou a descer, sussurrei seu nome.

De repente, um grito ecoou.


E demorou um instante antes que eu notasse que o som
agonizante vinha da minha boca.
capítulo 25

Dor.

Dor inundou meu corpo. Minha cabeça, meus braços, minhas


pernas, a base do meu estômago...
Cegou-me.

Por um instante, tudo o que vi foi escuridão.

A sensação terrível irradiava dentro de mim. Como se tivesse


vida própria e estivesse tentando me matar. Era como se centenas
de agulhas estivessem me perfurando de dentro para fora. Como se
um animal estivesse tentando me rasgar inteira.

Eu achei que fosse desmaiar.

Eu queria desmaiar.

Só queria que aquilo parasse.

Eu sentia a minha cabeça prestes a explodir. Meu coração


parecia bater em todos os lugares do meu corpo. Contorcia-me em
espasmos e era capaz de me escutar gritando, mas não sabia como
estava fazendo isso. Não tinha controle algum do meu corpo.

Deuses.

Eu ia morrer.

Eu queria morrer.
Não sabia quanto tempo aquilo tinha durado, podiam ter sido
segundos ou horas. A sensação foi de décadas.

Aos poucos, a vibração violenta e agonizante se esvaiu. A


dor deixou o meu corpo em uma lentidão quase insuportável.
Vagarosamente, a minha visão voltou. Pisquei algumas vezes,
sentindo todos os meus membros dormentes. Mas ainda sentia os
resquícios da dor, como se eu tivesse sido eletrocutada e a energia
permanecesse ali.

Quando finalmente fui capaz de enxergar, a primeira e única


coisa que vi foi Sarkian parado diante da cama. A uma distância de
um metro e me fitando fixamente. Sua boca se movia, mas eu não
compreendia.

Vi o medo no prata. O desespero em sua expressão. Nunca o


tinha visto assim.

Nunca tinha visto algo tão apavorante.


A escuridão o rodeava. A dor o amava.

— Cera... — Ele murmurou.

Chegou a dar um passo à frente, como se fosse se


aproximar.

Meu corpo tensionou, e eu recuei, em completo desespero.


Foi instintivo. Eu estava fugindo do que quase acabara de me matar.

— Não! — Solucei, o fitando como um animal selvagem


ferido. — Não me toque!

Eu estava chorando. Notei quando senti as lágrimas


escorrendo pelas minhas bochechas.
Ele parou no meio do movimento. Suas mãos se
transformaram em punhos, e Sarkian me encarou com uma
expressão que não fui capaz de ler. Parecia dor, parecia angústia,
parecia raiva. Provavelmente, de si mesmo.
Eu me apoiava no colchão e minhas costas estavam
grudadas na cabeceira, segurava os lençóis com força entre os
dedos. Meu coração batia violentamente.

Precisava que ele se afastasse. Precisava que ele fosse


embora. Eu jamais queria sentir aquilo novamente.

E achava que ele havia entendido, mesmo eu não sendo


capaz de colocar em palavras. Sarkian viu em meus olhos.

O Rei da Dor parecia derrotado. Parecia ter acabado de


perder uma guerra e estivesse finalmente entendendo que aquele
era o fim.

Ele se afastou e foi embora.


capítulo 26

Eu segui em direção à carruagem que me esperava em frente


ao palácio. O sol mal havia subido e o frio não era nada acolhedor.
Mas, pelo menos, não nevava.

Não tinha visto Sarkian desde a noite anterior.


Pensei que, talvez, ele pudesse querer me acompanhar
quando eu estivesse saindo, mas, felizmente, não o fez. Não havia
sinais dele conforme eu me afastava do enorme palácio.
Eu não estava preparada para vê-lo depois do que havia
acontecido. Não entedia exatamente por que, mas precisava de um
tempo. E, talvez, ele soubesse disso.

Sarkian sempre parecia saber o que eu estava sentindo ou


pensando.
Mas havia aquela parte de mim, a pequena e obscura parte
de mim, que sempre desejava ter meus olhos nele. Um vislumbre,
ao menos.

— Bom dia, Majestade — cumprimentou o general ao abrir a


porta da carruagem para mim.

— Bom dia, DeLarosa.

Ergui a perna direita para entrar no exato momento em que


um corvo ralhou aos céus. Aquele som desafinado e assustador
ecoou acima de nós. Levantei o olhar para ver o animal repousando
em uma das torres pontiagudas do palácio. Quando o fitei, parecia
ter os olhos negros diretamente em mim.
— Tudo bem, Majestade?

Voltei-me para DeLarosa, que me encarava.


Assenti brevemente e entrei.

— Cacete, Brasa! — Shiv gritou, no meio do pátio. — Se


você me queimar mais uma vez, eu juro pelos Deuses que vou te
fazer atravessar pelas paredes!

Brasa respondeu com um sorriso traiçoeiro nos lábios


enquanto fazia malabarismo com bolas de fogo.

— Brasa. — Bax se pronunciou, a voz séria. — Se continuar


brincando com o fogo em vez de levar a sério, vai queimar todo
mundo aqui antes mesmo da batalha.

Eu estava assistindo ao treinando deles pela primeira vez. E


estava um tanto impressionada com quão desastroso aquilo parecia.
Pelo que Bax e DeLarosa haviam dito, eles estavam treinando todos
os dias desde que chegaram ao palácio pela primeira vez. Há quase
duas semanas.

Passei o olhar pelo pátio. Shiv levantava dois troncos de


árvore grossos, um em cada mão. Kit fazia circuitos pelo pátio,
passando tão rápido que era difícil acompanhar com os olhos.
Rooke, o garoto grande e de coração sensível, se concentrava em
manusear uma espada apenas com o poder da mente, enquanto
Brasa jogava bolas de fogo cada vez maiores para o ar.

— Está vendo o Benji? — indaguei ao Vesper, que observava


todo aquele caos ao meu lado.

— Aqui, Majestade.

A voz surgiu do nada e tão próxima que quase me fez pular.


Vesper ficou igualmente assustado, soltando algo que soou muito
parecido com um grito engasgado.

— Deuses! — Coloquei uma das mãos sobre o coração.

Benji tomou forma ao meu lado. Estava completamente nu,


ambas as mãos seguravam as partes íntimas.

— Sinto muito — disse, nos fitando com o rosto levemente


corado. — É o meu treinamento. Ficar invisível e fazer com que não
me notem.

— Nos fazer infartar também?! — indagou Vesper,


exasperado.

— Hum... — respondi, piscando devagar. — Ótimo…


trabalho, então.

— Você precisa ficar nu sempre? — Vesper perguntou.

Benji assentiu, corando ainda mais.

— Não consigo deixar objetos invisíveis, mesmo que estejam


presos a mim.

Aquilo talvez fosse um problema, pensei. Colocar o garoto


completamente nu em um campo de batalha.
Kit esbarrou em Rooke, o desequilibrando e eventualmente o
derrubando. A espada que ele levantava voou em direção ao Brasa,
quase o acertando. Ele conseguiu desviar, mas perdeu o controle do
fogo, deixando uma bola de chamas cair a centímetros de Shiv. Ela
derrubou os dois troncos, causando um estrondo. A garota se virou
para ele com o tipo de olhar que faria qualquer pessoa começar a
correr.
Brasa colocou as mãos para o alto.

— Dessa vez, não foi minha culpa!


Bax interveio antes que ela quebrasse Brasa no meio.

General DeLarosa cruzou os braços e parou ao nosso lado.


Tinha a postura cansada e um tanto desanimada.
— Eles não estão prontos. — Eu comentei, os observando.

DeLarosa balançou a cabeça em negativa.


— Não. Definitivamente não.

— Majestade. — Um dos guardas se aproximou. — Seu


irmão mais novo está aqui.
Tinha mandado buscar Malakay, e suas coisas, para morar
comigo no palácio naquela manhã. Perguntava-me como havia sido
a reação da minha madrasta.

Deixei o pátio de treinamento e segui até o corredor principal.

Estava animada para vê-lo. Curiosa também. Fazia meses


desde a última vez que o encontrei.
Assim que o vi, meu coração esquentou no peito.
Com a mão esquerda, Malakay segurava a mão de Allegra, e
com a direita, um animal de pelúcia. Seus cabelos castanhos
estavam mais curtos do que eu me lembrava, mas ele continuava
pequeno e com perfeitas bochechas roliças.

Ele soltou a mão de Allegra assim que me viu, e eu apertei o


passo para alcançá-lo. Agachei-me, e ele colocou os bracinhos
gordos em volta do meu pescoço.

Com o passar do tempo, fui me afeiçoando à sua presença.


Havia jurado que odiaria qualquer coisa que fosse metade da minha
madrasta, mas Malakay era adorável. Aos poucos, me rendi à sua
risada gostosa e ao seu cheiro de neném. Ele era a única pessoa na
minha casa que eu, de fato, eu gostava. E, por mais que não
passássemos tanto tempo juntos, por causa da minha madrasta,
criamos certo vínculo.

Eu o peguei no colo e estalei um beijo em sua bochecha


macia.

Ele enrolou os dedos no meu cabelo, como gostava de fazer,


e disse:
— Papai falo que você é raia.

Sorri. Ele tinha quase quatro anos e, na maior parte do


tempo, ainda era preciso desvendar o que dizia.
— Rainha?

Ele assentiu.
— Sou. E sabe o que isso te faz?
Ele balançou a cabeça negativamente e me encarou em
expectativa.

Arregalei os olhos para efeito e disse:

— Um príncipe.
Ele pareceu confuso.

— Eu sou um píncipe?!

Assenti.

— Isso é muito legal, sabia? Quer dizer que pode ter todos os
gizes de cera do mundo!
Ele me fitou, sua boca fazendo um pequeno e delicado “O”.

— Todos?! — devolveu, incrédulo.

Eu assenti, um sorriso se espalhando pelo meu rosto.


Virei-me para a Allegra.

— Obrigada por trazê-lo.

Ela sorriu docemente ao encará-lo.

— Foi um prazer. Amo crianças. E ele é adorável.


— Pode ficar de olho nele hoje? Ele parece ter gostado de
você.

— Cadê a mamãe? — Malakay indagou, de repente.

Eu o fitei, o sorriso deixando meu rosto.


— Em casa.

— Quelo vê a mamãe.
— Vai vê-la em breve. Enquanto isso, o que você acha de ver
a sua nova coleção de giz de cera?

Sua expressão rapidamente se transformou.

— Vá com a tia Allegra. — Eu o coloquei no chão. — Ela vai


te levar até seu novo quarto.
Ele se virou, oferecendo a mãozinha à Allegra e me deixando
com uma sensação estranha no peito.

— Eles vandalizaram a praça principal. Escreveram coisas


sobre você e sobre a situação atual de Umbra — disse Mirvin
conforme me acompanhava até o quarto.

A notícia da aliança com Khrovil contra Alodias foi recebida


com muita hostilidade. Os rebeldes, que já estavam insatisfeitos
com a minha tomada, estavam causando certo alvoroço nas ruas.
Virei-me para ele.

— Coisas que valem a pena eu saber?

Mirvin balançou a cabeça.

— Algumas palavras… inapropriadas foram referidas a você.

Assenti.

Claro.

— Conseguiram prendê-los?

— Alguns. A maioria escapou.

Suspirei de frustração.
— Coloque mais soldados de vigia na cidade, principalmente
à noite. Não quero que isso escale. — Virei-me para ele. — O que
mais sugere que façamos?

— Ganhe a batalha. Uma vitória para Umbra vai apaziguar as


coisas.

— Você diz como se fosse tão fácil — rebati quando paramos


em frente à porta do meu quarto.

— Já fez coisas mais difíceis que isso, Majestade.

Um pequeno sorriso quebrou em meus lábios.

— Boa noite, Mirvin.

Ele fez uma reverência. Mais curta e pouco graciosa, mas,


ainda assim, uma reverência.

— Boa noite, Majestade.

Entrei no meu quarto e troquei de roupa. Estava exausta,


mas duvidava que iria conseguir dormir assim que me deitasse.

Penteei meu cabelo em frente ao espelho, fitando o meu


reflexo cansado. Em momentos como aquele, eu me perguntava se
havia feito a coisa certa. Se as minhas escolhas nos últimos tempos
não haviam sido um erro.

Perguntava-me o que a minha mãe diria naquele momento.


Se teria algum conselho.

Suspirei fundo ao encarar a minha escova, repleta de fios de


cabelo.
Tirei o colar de diamantes do meu pescoço e, quando fui
guardá-lo, notei algo estranho. Um dos diamantes, um dos menores,
estava faltando. O pequeno lugar que costumava acoplá-lo estava
vazio.

Perguntei-me se havia sido culpa minha, se havia perdido


nos últimos dias. Ou se havia sido Sarkian, e eu não tinha reparado
a falta da pedra quando me devolveu.

Eu não tinha certeza, mas, ainda assim, de alguma forma,


isso me fez ressenti-lo um pouco mais.
capítulo 27

Sarkian chegou na manhã seguinte.

Um exército negro o seguindo como uma sombra tomou


Umbra como um manto de escuridão. Senti a tensão na cidade
aquela manhã. O povo nunca gostou de Khrovil; mesmo com o
tratado de paz feito pelo seu pai, os keld ainda torciam o rosto. Mas
quando Sarkian tomou o trono, tudo piorou. Ele era visto como um
assassino sem escrúpulos, afinal, tinha matado a família inteira. Era
um pecador e jamais poderia ser confiado.

Cheguei a ficar preocupada com a possibilidade de algum


ataque rebelde em sua vinda, mas sabia que Sarkian e seus
soldados eram mais do que capazes de lidar com o que quer que
fosse.

O conselho já o estava esperando quando foi anunciado. Se


tudo ocorresse como o planejado, atacaríamos Alodias na noite
seguinte.

Eu, Mirvin, DeLarosa, Vesper, Allegra e Bax estávamos


sentados à mesa de estratégias quando Sarkian entrou. Estava
acompanhado da mulher pantera e de um homem com o rosto
dividido ao meio por uma cicatriz horrenda. Sem muitas cerimônias,
se sentou na ponta da cadeira oposta a mim. Seus companheiros se
sentaram ao seu lado.
Lançou-me um olhar.

— Cera — cumprimentou em reconhecimento, seco.

— Sarkian — devolvi da mesma forma.

Um momento de silêncio pesado recaiu sobre nós.

Minha mente se voltou para aquela noite. E eu tinha certeza


de que a sua também.

Ao meu lado, Mirvin se ajeitou na cadeira.

— Que bom que chegou, Majestade. Como foi a viagem?

— Excelente — respondeu, sem tirar os olhos de mim.

Sustentei seu olhar, por mais que estivesse desesperada


para fugir do prata.

— Ótimo. Estávamos aguardando o senhor para organizar a


estratégia.

Ele finalmente desviou o olhar de mim e encarou Mirvin. Fez


um sutil movimento com a cabeça e disse, em tom blasé:

— Vão em frente.

Demorou um momento para que alguém falasse.

— Bem... — General DeLarosa arranhou a garganta —, o


plano é basicamente atacá-lo ao mesmo tempo, pelos dois lados.
Você, na fronteira de Khrovil e nós, na fronteira de Umbra.

— Dividir seu exercício — adicionei.

Sarkian voltou o olhar para mim.

Todos o encaravam, esperando.


Ele então observou o mapa na mesa por um momento.
Descansou a mão direita sobre a superfície e bateu a ponta dos
dedos de forma ritmada.
— Concordo em dividir as posições de ataque. Mas não
lutarei saindo de Khrovil. Lutarei na fronteira de Umbra com alguns
dos meus homens.

A reação de todos na mesa foi a mesma: completa confusão.

— Trazer seus homens para lutar ao lado dos de Umbra? —


Vesper se pronunciou, com uma expressão nada otimista. — Não
acho que seja a melhor ideia.

Sarkian lhe lançou um olhar. Vesper se encolheu um pouco


na cadeira.

— Nossos exércitos podem não conseguir trabalhar bem


juntos — ponderou DeLarosa —, considerando as suas…
diferenças.

— É. Não vão aceitar. — Vesper balançou a cabeça em


negativa.

— O meu exército faz o que eu mandar que façam. —


Sarkian respondeu e, então, me fitou. — Acha que consegue isso
com o seu também?

Cerrei os dentes dentro da boca.


Ele estava me provocando. Na frente do meu conselho.

— Sei como lidar como meu exército, não se preocupe —


respondi. — Mas de todo modo, faz mais sentido tomar frente do
seu exercício em seu reino. Não é necessário por aqui.
— Meu exército sabe o que fazer e tenho alguém de
confiança em seu comando. Serei mais útil aqui.
— Discordo — rebati.

Silêncio tomou conta de novo. Pesado. Tenso.

Sarkian me encarava em desafio.

Eu sentia os olhares correndo entre nós dois.

— Conselho dispensado. — Eu anunciei, com os olhos ainda


em Sarkian.

As cadeiras se arrastaram. A mulher pantera e o homem com


a cicatriz encararam Sarkian, esperando. Ele os dispensou com um
sutil movimento da cabeça.
Em questão de segundos, estávamos a sós.

Assim que a porta se fechou, quebrei o silêncio.

— Está duvidando da minha capacidade?


— Não.

— O que é, então?

Ele me fitou fixamente. Não desviou. Não vacilou.

— Não posso te proteger se estiver do outro lado do mapa.


Pisquei, surpresa com a constatação.

— Não preciso de sua proteção.

— Cera, querida, não foi uma sugestão — retrucou, com


certo sarcasmo.
Seu rosto estava impassível. Sarkian não iria desistir daquele
absurdo.

— Você é tão frustrante.

— Você é tão teimosa.


Não dissemos nada por um instante. Minha mente voltou
para nossa última noite mais uma vez. Remexi-me na cadeira
conforme sentia o prata me avaliando.

— Foi culpa minha.

Não demorou nem um segundo para que ele devolvesse:

— Fui eu que te machuquei. — O tom de sua voz era


sombrio, assim como seu olhar.
Engoli em seco.

— Eu te pressionei.

— Eu podia ter parado. — Cerrou os dentes dentro da boca.


— Eu deveria ter parado.
Mais silêncio.

Ele revistou meu rosto com uma precisão desconcertante, até


que indagou com a voz crua e grave:

— Está com medo de mim?

A dor que Sarkian havia me causado foi a pior que já senti


em toda a minha vida. Foi algo que não achei que fosse possível
sentir. Algo que não desejava nem para o meu maior inimigo.
Mas, ao mesmo tempo, sabia que não havia sido sua
intenção. Eu sabia muito bem que aquilo provavelmente o tinha
machucado tanto quando a mim.

— Não — respondi, por fim.

Não sabia se sua expressão se mostrou aliviada ou


decepcionada. Acreditava que um pouco dos dois.
Sua voz saiu rouca e carregada quando disse:

— Talvez devesse.

Sarkian tirou algo do interior da capa negra e lançou o objeto


sobre a mesa comprida de madeira até chegar em mim.

— O que é isso? — indaguei, analisando o pequeno frasco


em minha mão. Não era maior do que uma caixa de fósforos.

— Uma poção — explicou. — Bloqueia parte dos efeitos do


poder dos caídos.

Ergui o olhar.
— Como conseguiu isso?
— Uma nymeria.

Eu o fitei, incrédula.
— Achei que nymerias fossem lendas.

— Não, mas são extremamente difíceis de achar — E, então,


completou: — E de negociar.
Olhei para o líquido, um verde azulado.

— Isso quer dizer que…


As palavras se perderam conforme eu o fitava, e não
consegui terminar.

Mas não precisava.

Devagar e com cautela, conforme avaliava meu rosto,


Sarkian assentiu.
Senti a minha face esquentar e arranhei a minha garganta.

— E funciona mesmo?
Ele demorou um par de batidas do meu coração para
responder.

— Nunca conheci alguém que usou.


Olhei novamente para o pequeno frasco, em parte porque
não conseguia sustentar o seu olhar penetrante.

Ouvi a cadeira arrastar pelo piso e levantei o olhar.

— Deixe a sua porta destrancada hoje à noite — disse, a voz


rouca ecoando pela sala vazia e chegando aos meus ouvidos como
uma promessa. Antes de se virar, me fitou sobre o ombro. — Se
estiver trancada, vou entender.
Então, ele deixou a sala, e eu fiquei lá, com a pulsação
frenética e a cabeça girando.

— Fiz para você — disse Bax, me entregando uma bela


espada de aço.

Peguei a arma, surpresa.


— Deuses, como é leve!
Ele assentiu.

— Vai ser mais fácil de manuseá-la. Você vai ficar mais


rápida do que com as espadas que treinamos.
Eu ainda estava apreciando a minha nova arma quando ele
me entregou outro objeto. Era uma flecha automática. Nunca tinha
usado uma antes, apenas as comuns.

— Pode ser útil amanhã — ponderou. — Para acertá-los a


uma distância segura.

Havia uma certa melancolia naquele momento. Era nosso


último treinamento antes do combate contra Wullfric. Todas aquelas
aulas seriam postas em prática no dia seguinte.

— Acha que estou pronta? — perguntei, o fitando.


Ele não respondeu de imediato, seu rosto permaneceu sério.

Tive medo da resposta, mas precisava dela.

— Você é ágil com uma espada. Também é empenhada.


Treinou duro nesses últimos meses e se aprimorou muito como uma
lutadora. Mas estará diante de milhares de soldados que foram
postos no exército antes mesmo de completar a maioridade.

Assenti.

Sabia daquilo. Quando tomei o trono, tive o elemento


surpresa em minha vantagem; ninguém esperava que uma garota
fosse fazer o que fiz. Mas agora, todo o exército inimigo estaria
prestando atenção em mim. Querendo meu coração em uma
estaca.

— Meu conselho é: deixe que lutem por você. Lute apenas se


tiver que se proteger.

Quando eu terminei o treinamento, o sol já descia.


Eu estava ansiosa. Na verdade, ansiedade era eufemismo.
Eu estava uma poça de tensão.

Deixe a sua porta destrancada hoje à noite.

A poção estava segura em meu bolso. E mesmo que fosse


um pequeno frasco, eu sentia o seu peso a cada passo que dava.
Às vezes, eu colocava a mão dentro do bolso apenas para confirmar
que ainda estava ali.

Tomei um banho e coloquei a minha camisola branca de seda


favorita. Estava uma pilha de nervos. O mais engraçado e insano
era que eu estava mais ansiosa pelo que poderia acontecer naquela
noite do que pela guerra na seguinte.
Parei em frente à minha porta. Fitei a fechadura.

Havia passado a tarde toda debatendo mentalmente sobre o


que faria.
Eu sabia o que eu queria. Mas também sabia o que deveria
fazer.
Eu queria que a porta ficasse destrancada. Queria Sarkian.
Estava desesperada por seu toque, chegava a ser agonizante. A
quantidade de tempo que eu passava pensando nele durante um dia
chegava a ser repulsivo.
Mas deveria mantê-la trancada. Deveria colocar aquela
barreira entre nós dois, deveria parar de pensar nele daquela forma.
Ele era o rei de um povo há pouco inimigo, um povo com uma
história terrível contra o meu. E era, sem dúvidas, a pior pessoa que
eu já tinha conhecido. Era cruel, frio e havia me machucado de
todas as formas possíveis.

Levei a mão até a fechadura.

E a destranquei.
Quem eu queria enganar?

Antes mesmo de ir tomar banho, havia liberado o guarda


noturno que às vezes revezava a segurança do meu quarto com
Bax.

A dor não havia me ensinado nada. Talvez, aquele fosse o


problema. Talvez, Sarkian estivesse começando a me fazer gostar
dela.

Pode ser que eu morra amanhã, disse a mim mesma.


Usando isso como desculpa para, talvez, me odiar um pouco
menos.

Não queria entrar naquele campo de batalha com


arrependimentos.

Deitei-me e peguei o pequeno frasco que havia deixado na


minha cabeceira. Eu o fitei por um par de segundos antes de tomar.
O gosto era doce, como uma bebida alcoólica repleta de mel.

Depois, fiquei encarando o teto pelo que pareceu décadas.

Não fazia ideia de que horas Sarkian iria entrar.


E, em dado momento, me perguntei se ele de fato iria
aparecer.

Talvez, mudasse de ideia.

Talvez, soubesse tão bem quanto eu que aquilo era um erro.

Seria melhor, disse a mim mesma.

Virei-me na cama e fechei os olhos. Então, mudei de posição.


Fiz isso algumas vezes. Não seria capaz de dormir tão cedo. O que
era um problema, já que precisava descansar.

Até que ouvi a maçaneta girar.

Meu coração disparou.


Abri os olhos, mas não me movi. Escutei a porta ser aberta,
e, então, os passos suaves e lentos. Por mais que estivesse deitada
de lado, encarando a direção oposta, consegui sentir a sua
presença pairando próxima à cama.

Esperei.

Sarkian não disse nada e os segundos de silêncio se


transformaram em uma eternidade.
Eu não sabia o que fazer e era como se meu corpo tivesse
congelado. Mas, eventualmente, me virei.

Sarkian se misturava com as sombras do quarto. Estava a


três passos de distância da lateral da cama, iluminado apenas pelo
fio de luz da lua que escapava pela janela. Mas, ainda assim, o
prata brilhava. E ele me fitava fixamente, como se esperasse
alguma coisa. Algum sinal.
Como um predador pedindo permissão para devorar sua
presa.

Fiz um breve movimento com a cabeça, quase imperceptível.


Mas foi o suficiente. Ele entendeu.

E eu não sabia se o que vi no seu rosto foi extremo alívio ou


extremo receio.
Sarkian tirou a capa negra e a jogou na poltrona ao lado,
afrouxou a gola alta da camisa. Isso tudo sem quebrar contato
visual. Então, se arrastou até a cama com a graciosidade de um
felino.

Conseguia escutar as batidas insanas do meu coração. Ele


nem havia me tocado, e eu já sentia um formigamento entre as
minhas pernas.
Sarkian se ergueu sobre mim. Cercando-me, apoiou ambas
as mãos no colchão ao lado da minha cabeça.

Minha respiração estava mais audível, meu peito subia e


descia com força. Seu cheiro me inundou. O aroma familiar
misturado com uma boa dose de lavena.

Na escuridão, nos encaramos. Seu rosto a centímetros do


meu. Lutei contra a vontade de erguer o rosto e beijá-lo.

— Eu não vou te foder hoje à noite.

Pisquei. Em parte, por puro choque diante da constatação


forte e direta. E em outra, por pura frustração.

Consegui reunir as palavras e indagar, com a voz rouca:


— Por quê?

— Não sei da proporção dessa poção — explicou. — Não sei,


ao menos, se funciona.

— Ah.

Decepção deve ter atravessado o meu rosto por completo,


porque a sombra de um sorriso perigoso atravessou o rosto do Deus
da Dor.

— Não fique assim, meu amor. Não vou te foder — ele


aproximou a boca do meu ouvido, e todo o meu corpo se arrepiou
quando soprou —, mas vou te provar.
Estremeci abaixo dele. Minhas mãos estavam coladas no
colchão, mas coçavam para fazer alguma coisa. Qualquer coisa que
o envolvesse.

Sarkian fitou meus lábios.

— Mas preciso que me ajude. Preciso que me obedeça. Acha


que pode fazer isso? — indagou, tirando os seus olhos da minha
boca para encarar os meus olhos. — Sei como se sente sobre
receber ordens, especialmente vindas de mim.

Por incrível que pareça, fui capaz de abrir a boca para


responder:
— Vou abrir uma exceção.
Ele sorriu. Aquele meio sorriso repleto de maldade e
promessas veladas.

Algo no meu coração se contorceu. Odiei e amei a sensação.


— Boa garota.

Seu rosto desceu. A ponta do seu nariz tocou meu pescoço e


se arrastou suavemente pela minha pele. Sarkian inspirou.

Arrepiei-me por inteira.


— Esse cheiro... — murmurou, com a voz rasgada. —
Deuses, esse cheiro.

Ele arrastou a boca pela minha pele até chegar nos meus
lábios.
— Tem certeza? — perguntou contra a minha boca.

Um momento eterno se passou. Eu ouvia apenas meu


batimento e nossas respirações.
Em vez de responder, fechei a pequena distância entre
nossas bocas. Quando nossos lábios se tocaram, senti a explosão
dentro de mim. Mas, com a excitação, veio a lembrança daquela
noite.

Da dor.
Fechei os olhos com força, tentando afastá-la.

Cada toque de Sarkian era cauteloso. Quando tocou meu


rosto, senti a hesitação.

Ergui as mãos para tocá-lo também, mas ele afastou o rosto.


— Sem me tocar, meu amor... — murmurou docemente
contra minha boca. — Essa é a regra. Quero ser capaz de manter
as coisas sob controle, e se você me tocar, pode ser que eu não
consiga.
Meu amor, as palavras ecoaram.
Engoli em seco.

— Tudo bem.
— Junte os braços acima da cabeça.

Demorou um instante, mas eu o fiz.


Com a mão direita, Sarkian os segurou ali, apertando meus
pulsos juntos. Voltou a me beijar, e um dos seus joelhos encontrou o
caminho entre as minhas coxas. Ele afastou minhas pernas, e eu
senti a deliciosa e torturante tensão na base do meu estômago.

— Deveria me fazer parar... — murmurou contra meus


lábios.

Mordi seu lábio inferior como resposta. Acreditava que não


pararia nem se aquilo me matasse.

Um gemido rouco ecoou de sua garganta.


Sarkian descolou nossos lábios para afastar o lençol que nos
separava. Ainda segurando meus braços, olhou para baixo. Para
minha camisola de seda branca. Para meus mamilos empurrando
contra o material.
Ele engoliu em seco. Com a mão livre, abaixou o material
seguro por uma alça frouxa até expor meu mamilo.

Sua boca o encontrou. A língua se arrastou em um


movimento circular.

Arfei.

Em um impulso, meus braços lutaram contra seu aperto.


Sarkian segurou mais forte.
— Por favor... — murmurou com a voz atormentada, depois
de arranhar o mamilo entre os dentes. — Me faça, parar.

Gemi em resposta. O ponto que ele mordia e lambia atirava


ondas elétricas de prazer por todo o meu corpo.
Ele se mexeu sobre mim, e eu senti a sua ereção na minha
barriga.

Mordi meu lábio inferior com força.


Sarkian soltou as minhas mãos conforme desceu os beijos
pelo meu corpo. Subiu a minha camisola fina. E quando tocou a
minha calcinha de renda, ergueu o olhar.

Segurei a respiração ao fitar o prata. Suas pupilas estavam


dilatadas e seus lábios, inchados.
Lindo. Dolorosamente lindo.

Minhas mãos continuavam acima da minha cabeça, como se


tivessem congelado naquela posição.

Sarkian desceu o material, o arrastando pela minha pele até


tirá-lo por completo. Então, se ajoelhou ao fim da cama e me puxou
pelos lençóis. O ar deixou meus pulmões com o movimento ágil e
rápido. Ele me colocou mais próxima ao fim do colchão e apoiou o
interior dos meus joelhos em seus ombros. Passou às mãos pela
minha bunda e apertou.
O Rei da Dor deixou um beijo no interior da minha coxa,
terrivelmente próximo ao meu núcleo.
Joguei a cabeça para trás e fechei os olhos com força.

Então, ele mordeu.

Deuses...

— Está encharcada para mim. — A satisfação era clara em


sua voz.

Senti meu rosto corar. De fato, nunca estive daquela forma


antes.
— Última chance, Majestade. — Ele soprou contra a minha
pele inchada e me fitou.

Contorci-me.

Aquilo era tortura.

— Sarkian... — gemi em desespero, minha voz saindo mais


autoritária do que pretendia.
Quando sua boca tocou meu núcleo, senti a eletricidade em
todo o meu corpo.

Ele beijou, lambeu, chupou, mordeu. Cada pequeno


movimento fazia com que eu me contorcesse na cama.

Suas mãos me seguravam pela bunda fortemente, não me


deixando escapar. Mesmo quando o prazer parecia demais para eu
aguentar.

Sarkian arranhou meu clitóris com os dentes, e eu não


aguentei. Um grito estrangulado deixou minha boca e minhas mãos
desceram até sua cabeça.

Assim que meus dedos tocaram seu cabelo, Sarkian parou.


Quase choraminguei em desespero. Estava tão perto.
— As regras, meu amor — murmurou, a voz tão próxima da
minha boceta que apenas a vibração pareceu ser capaz de me levar
um pouco mais próxima ao clímax.

Soltei seus fios e, no mesmo instante, sua boca voltou à


minha pele necessitada. Uma de suas mãos deixou a minha bunda
e, antes que eu pudesse processar, ele inseriu um dedo.
Um grito, dessa vez mais alto, deixou meus lábios.

Sarkian ergueu apenas o olhar, me fitando por entre os


longos cílios, como se soubesse exatamente que aquele era o
momento e não quisesse perder a visão.

E a junção de sua boca ao movimento de seu dedo me fez


gozar quase que instantaneamente.

A explosão de prazer percorreu meu corpo inteiro de forma


avassaladora. Por um instante, me cegou. Minha cabeça foi jogada
para trás e meus olhos se reviraram com o espasmo.

Pisquei, encarando o teto por um instante.

Devagar, Sarkian se ergueu, subindo até nossos rostos


estarem alinhados.
Minha respiração era de alguém que havia corrido cinquenta
quilômetros.

— É ainda melhor.

Pisquei devagar. Ainda me recuperava do que tinha acabado


de acontecer.
— O quê?
— Seu rosto quando goza. Fiquei tanto tempo imaginando
como seria... — respondeu enquanto avaliava cada detalhe do meu
rosto, como se não existisse mais nada no mundo. Até que o prata
voltou a fitar fixamente meus olhos. — E é ainda melhor.
E ela negava
mas estava se apaixonando

pelo Rei da Dor


capítulo 28

Ele não passou a noite comigo. Quando acordei ainda de


madrugada, Sarkian não estava mais lá. Olhei para a poltrona, sua
capa negra também havia sumido. Não tinha nenhum resquício de
que Sarkian havia estado ali.

Bem, com exceção dos lugares em meu corpo que ainda


sentiam os rastros de prazer do seu toque. Se não fosse isso, eu
poderia imaginar que tudo havia sido um sonho.
Por sorte, ou não, tinha coisas muito mais urgentes do que
Sarkian e o que tinha acontecido entre nós a pensar. Como a guerra
que estava muito perto de acontecer.

Cruzei o corredor à procura de Vesper. Estávamos prestes a


sair, e eu não o achava em lugar nenhum. A maior parte dos
soldados já estava em sua montaria e em posição.

Era uma viagem de cerca de 5 horas até a fronteira.

Mas, em vez de encontrar Vesper, me deparei com Allegra


deixando o quarto de Malakay.

— Ele está dormindo? — indaguei. Era o começo da tarde, e


Malakay sempre tirava uma soneca após o almoço.

Ela assentiu.

Entrei no quarto dele e depositei um suave beijo na testa.


Allegra nos observou da porta. Quando voltei ao seu lado, e
nos encaramos paradas no corredor, notei que tinha uma expressão
estranha no rosto.
— Está nervosa? — Ela indagou, mas antes que eu pudesse
responder, se adiantou: — Claro que está. Que pergunta idiota. É
uma guerra.

Eu sorri.

— Tudo bem. E sim, estou nervosa, mas otimista.

— Queria poder ir com você.

Eu a fitei, minha expressão se tornando séria.

— Não pode, Allegra.

— Eu sei. — Trocou o peso dos pés e desviou o olhar por um


momento. — Mas me sinto tão preocupada e… inútil esperando aqui
enquanto você está no meio de uma batalha.

— Fico mais tranquila sabendo que está aqui. E também,


preciso de alguém de confiança no palácio. Só tenho você e Mirvin
para cuidar das coisas enquanto não voltamos.

Ela cruzou os dedos das mãos e os fitou, parecia


angustiada.

— Eu sei. Mas… ainda assim...

— Allegra, pode lutar junto a mim um dia. — Repousei minha


mão direita em seu ombro e a fitei fixamente. — Mas preciso que
treine pra cacete antes que eu te coloque em campo. Não estou
disposta a arriscar um dos únicos amigos que tenho.
Ela sorriu, mas então notei que havia lágrimas em seus
olhos.

Allegra jogou seus braços em minha volta. Fui pega de


surpresa, mas, aos poucos, retribui o abraço.

— Por favor, tenha cuidado. — Ela murmurou, em meio a um


soluço.
— Pode deixar.

Queria dizer para que não se preocupasse, que eu iria voltar,


mas não podia ter certeza disso. Eu achava que sim, mas não havia
como saber. E eu odiava fazer promessas vazias.

Ela me soltou de repente.

— Desculpe. — Passou as mãos no rosto depois de fungar,


envergonhada.

— Não se desculpe. Não lembro qual foi a última vez que


alguém me abraçou — devolvi, honesta.

Ela me encarou e franziu levemente a sobrancelha.

— Nem eu.

Eu sorri.

— Vamos fazer mais isso, então.

— Nos abraçar?

Assenti em resposta. E ela riu, com lágrimas ainda


escorrendo pelo seu rosto doce.

— Viu Vesper por aí?


Allegra pensou por um momento e, então, balançou a
cabeça.
Droga.

Eu o mataria quando o achasse. Se o achasse.

Eventualmente, o encontrei. Estava na biblioteca do segundo


andar.

Abri a porta e congelei com a mão na maçaneta.

Porque Vesper definitivamente estava lá, mas não estava


sozinho.

Tinha as mãos em volta de Brasa enquanto o mesmo o tinha


contra uma das estantes. Eles interromperam o beijo assim que
notaram a minha presença.
Houve um instante de silêncio em que ambos pareceram
quase tão surpresos quanto eu. Mas, então, Brasa lentamente abriu
um meio sorriso sedutor.

— Quer se juntar a nós, Majestade?


Eu pisquei devagar, ainda boquiaberta.
— Ew! — Foi a resposta de Vesper ao fitá-lo com uma careta.

— Posso falar com você por um momento? — perguntei


entredentes, encarando Vesper.
Ele se afastou de Brasa com um suspiro e veio em minha
direção. Passou a mão direita pelos cabelos que não tinha, já que
os mantinha praticamente raspados.
Fechei a porta da biblioteca, para que Brasa não nos
ouvisse. Mas ele nem deixou que eu abrisse a boca.

— Qual é, Cera — começou. — Não me olhe assim. Pode ser


que eu esteja morto nas próximas vinte e quatro horas.

— Seu otimismo é louvável.


Ele rolou os olhos.

— Não acho que vai acontecer, mas…

— Que seja. Ainda assim, não acho que isso seja uma boa
ideia.

Vesper franziu o cenho.


— Por quê?

— Se envolver dessa forma com alguém que vai para o


campo de batalha com a gente.

Notei a ironia e a hipocrisia assim que terminei a frase.


Flashes da noite passada atravessaram a minha mente como um
tapa na cara.
Vesper sorriu e cruzou os braços de forma beirando à
entretida.

— Olha quem fala...


Semicerrei os olhos em sua direção.

— Estamos falando de você aqui.


Deuses, eu era mesmo uma hipócrita.
— Bem, diferentemente de você, Majestade — disse, de
forma prepotente —, não há com que se preocupar em relação a
sentimentos aqui. O que tenho com Brasa é puramente físico.

Hesitei.

— Eu... Não tem nada de... sentimentos com Sarkian


também.
As palavras me chamaram de mentirosa assim que deixaram
a minha boca. E tamanha compreensão causou uma sensação
entranha no meu estômago.

Vesper riu.
— Você é uma garota inteligente demais para dizer algo tão
estúpido.

— Não sabe do que está faltando — retruquei.

— Ah, sei. Talvez todo mundo saiba.

Abri a boca e fechei um par de vezes, o que pareceu diverti-


lo.
— Estou seriamente pensando em te levar direto para a
forca. — Foi a única coisa que consegui dizer.

Ele deu de ombros.

— Só estou sendo sincero — rebateu. — E sobre Brasa,


fique despreocupada. Realmente não há nada. Depois de Rafe…
As palavras se perderam no ar.

Seu rosto de repente se tornou sério. Cru. Sem a máscara de


sarcasmo e piadas sugestivas usual.
Silêncio tomou conta.

— Sabe... — ponderei, quebrando a quietude —, ele me


pediu para cuidar de você antes de…

Não consegui dizer. Mesmo depois de todo aquele tempo, eu


não gostava de relembrar, muito menos de falar sobre o assunto.
Vesper assentiu e sorriu. Um sorriso fraco e melancólico.

— Ele me pediu a mesma coisa.


Daria tudo para que Rafe estivesse ali com a gente. Vendo
tudo o que havíamos feito, participando bem ao nosso lado. Ele mal
acreditaria. Às vezes, nem eu acreditava.

Eu suspirei fundo.

— Não demore aí. Estamos saindo daqui a pouco.

Ele fez uma reverência ridícula.

—Sim, Majestade. É pra já.

Semicerrei os olhos. Em alguns momentos, eu não sabia se


queria estapeá-lo ou abraçá-lo. Aquele era um deles.

— Se cuide hoje no campo. — E antes de me virar, adicionei:


— E não tente bancar o herói, idiota.

Vesper fez uma careta, como se apenas a ideia fosse


ridícula.

— Jamais.
Estavam todos à postos quando deixei o portão do palácio.
De um lado, meu extenso exército de homens em vermelho e
armaduras pratas. Do outro, um cobertor de homens de máscaras e
trajes negros.

Zoran, meu cavalo, já esperava por mim, selado.

Subi no animal, sentindo os olhares dos soldados sobre mim.


Eu usava calça preta sob medida e uma blusa de manga três
quartos vermelho-sangue. Meu cabelo estava preso em uma trança
e a espada pendia em minha cintura.

Os soldados me avaliavam, muito provavelmente duvidando


da minha capacidade. Uma mulher em um campo de batalha era
algo inédito.

— Tome cuidado, jovem Majestade — disse Mirvin, ao lado


do meu cavalo.

Estava me despedindo quando algo no ar mudou.


Virei meu rosto para ver Sarkian cruzando seu exército. Ele
tinha sua máscara no rosto. Os corpos saíram do caminho, abrindo
espaço para que passasse. Cabeças se abaixaram, e quase poderia
jurar que até os cavalos também se agitaram.

Ele montou em seu animal. O belo cavalo se agitou assim


que ele subiu, ameaçando a ficar sobre as duas patas, mas Sarkian
o manteve sob controle com a rédea curta.
Vento soprou, e alguns fios soltos fizeram cócegas em minha
pele. A capa negra de Sarkian também se balançou no ar.
Nossos olhares se encontraram. Mesmo usando a máscara,
eu sabia que era para mim que ele olhava.

Porque havia aquela sensação. Aquela maldita sensação que


tomava conta do meu corpo inteiro toda vez que seus olhos
pairavam sobre mim.

Meu ridículo coração reagiu instantaneamente. E as


memórias da noite anterior atravessaram a minha mente mais uma
vez.

Nosso segredo sujo.

— Vamos! — exclamei, cutucando com os calcanhares a


barriga de Zoran.

Cavalos relincharam e homens exclamaram.

Começamos a viagem.

A ideia de que estava indo, por vontade própria, em direção a


uma guerra sangrenta parecia insana. A Cera de um ano atrás
jamais imaginaria isso.
Sarkian só se aproximou quando estávamos a minutos do
local no qual pretendíamos parar. Atravessou o mar de soldados
que nos separava e começou a cavalgar ao meu lado.

Não conversamos de imediato, mas logo senti o seu olhar


sobre mim. Penetrante, desconcertante.

— Dormiu bem? — indagou, depois de vários segundos em


completo silêncio.
Senti meu rosto esquentar.

Olhei em volta somente para ter certeza de que nenhum


soldado conseguia nos ouvir.

— Dormi. — E, então, baixei meu tom de voz, para que


apenas ele ouvisse. — Não estava lá quando acordei.

Não quis soar magoada quando falei, então meu tom saiu
mais autoritário e rancoroso do que eu pretendia.

— Não durmo de conchinha, Majestade. — Sarkian


murmurou de volta, com aquele familiar tom sarcástico e perverso
banhando as palavras.

Vergonha queimou meu rosto, e eu desviei o olhar.


Amaldiçoei-me por dizer algo tão estupido e sentimental.

— Mas abriria uma exceção por você — completou, sem tirar


os olhos de mim. — Só que não sabia por quanto tempo a poção
faria efeito.
Aquela resposta aqueceu meu estúpido coração.

Uma pequena tenda havia sido montada no lugar em que nos


estabeleceríamos, para que eu e Sarkian pudéssemos planejar o
ataque. Estávamos em Niverville, a alguns quilômetros de onde
começava o Reino de Alodias. Os homens e os cavalos estavam se
hidratando e descansando da viagem antes que finalmente
atacássemos.
A nossa frente pairava a enorme e bela ponte de Martus.
Abaixo dela, corria o rio que separava as terras. A ponte tinha
centenas de anos, nunca a tinha visto pessoalmente. Era bem mais
extensa e larga do que tinha imaginado. Ela tinha sido nomeada em
homenagem ao Deus da água.

Sarkian entrou na tenda com algo nas mãos. Parou à minha


frente e estendeu os braços. Parecia metal, mas com uma coloração
quase negra.

— O que é isso?

— Uma armadura.

Pisquei.

— Já tenho uma.

— Não como essa. Levante os braços.


Eu tomava uma taça de vinho. Obviamente, não o suficiente
para ficar bêbada, apenas o suficiente para acalmar meus nervos.
Deixei a taça de lado e levantei os braços. Ele desceu o material
rígido sobre mim.

Voltei a abaixar os braços, e ele ajustou a armadura,


prendendo as laterais. Seu rosto ficou extremamente próximo do
meu. Sua feição era concentrada, as sobrancelhas retas e os lábios
em uma linha rígida.

Eu não pude ignorar as cenas sujas que atravessaram a


minha mente conforme ele manuseava a armadura em mim.

Deuses.

Eu precisava me controlar.
Deu um passo para trás e me analisou por um instante, sério.

— Perfeita — murmurou.
Achava que eu tinha corado.

Ele está falando da armadura e do caimento, idiota, repreendi


a mim mesma.

— O que tem de especial nessa armadura? — indaguei.


Sarkian subiu a atenção para os meus olhos.

— É álpago.

Olhei para baixo e passei a mão na armadura.

— É mais resistente do que qualquer outro material —


completou.
Levantei o olhar.

— Obrigada.

Sarkian não respondeu. O silêncio pesou conforme ele me


fitava fixamente. Não havia resquício algum de sarcasmo ou humor
negro. Seu olhar era sombrio.
— Não saia da minha vista — disse, finalmente.

Estava falando sobre a batalha. Sobre o momento que


estávamos próximos a enfrentar. Mas eu odiava que Sarkian me
considerasse fraca, vulnerável.

Eu não precisava que me protegesse.

— Não me trate como uma criança — retruquei.

— Por favor, querida — ele reformulou, com um quê de


sarcasmo —, não saia da minha vista.

— Lutarei ao seu lado, como todos os homens ali.


— Não é como todos os homens ali.

— Eu…

— É mais importante — interrompeu-me. — Infinitamente


mais importante. A vida deles não importa, Cera. A sua, sim.

Eu recuei. Meu cenho franziu diante da constatação absurda


e cruel.

— A vida deles importa, Sarkian. Eles têm esposas, filhos,


pais...

— Eu quero que suas famílias se fodam — rebateu, com a


voz cortante. Ele deu um passo à frente, aproximando o rosto do
meu. O prata brilhava em algo assustador. — Preste bastante
atenção em mim: são substituíveis. Cada um deles ali não faz a
menor diferença. São peões nesse jogo. Todos eles podem cair,
desde que permaneça de pé. Você é uma rainha, não se esqueça
disso quando estiver naquele campo. Você é valiosa. A única coisa
valiosa. — Fez uma pausa e inspirou fundo. Por fim, completou: —
Deixe que lutem por você. Deixe que morram por você.

Sarkian estava alterado de um jeito que eu nunca tinha visto


antes.
Pela primara vez, entendi por que homens caíam de joelhos
só de fitar aquele prata.

Pisquei, atônita, contendo a vontade de dar um passo para


trás.

Eu discordava de suas palavras. Apesar de entender seu


ponto, aqueles homens lutavam por mim. Eu me importava com
cada um deles. Mas escolhi pensar que aquela era a forma
distorcida de Sarkian dizer que se importava.
Abri a boca para responder. Mas, então, um som familiar
soou do lado de fora.

O grito agudo e rouco ralhou assim que o corvo parou na


entrada da tenda.

O animal entrou, e eu estava prestes a afastá-lo quando


começou a se contorcer de forma estranha.

Dei um passo para trás conforme ossos e penas negras se


embolavam em movimentos frenéticos. Produzia sons estranhos,
violentos, como se sentisse dor.

Olhei para Sarkian com olhos arregalados.

— O que é isso? — indaguei.

Mas ele não parecia nada chocado. Inclusive, me fitou e


disse:

— Está tudo bem. Dê um momento a ela.


A ela?

— O-o quê?! — gaguejei. — Como assim?

E quando voltei a olhar para o animal, já não era um corvo.


Tinha longas pernas agora, e não penas. Tinha braços também. E,
aos poucos, uma cabeça.
O ar denso deixou meus pulmões.

Pisquei um par de vezes.


Aquilo não era possível.
De repente, me vi diante de uma mulher.

Uma bela mulher. Completamente nua.


Ela ficou deitada no chão por um momento, com penas
negras caídas ao seu redor. Sua respiração era forte, como se
estivesse se recuperasse de uma longa e cansativa corrida. Até
que, aos poucos, se ergueu. Ela se esticou, se alongando em um
movimento gracioso. E, então, se virou para nós.

Achava que naquele ponto, o meu queixo havia encontrado o


chão.

Eu a reconheci no mesmo instante.

A pantera.

Minha cabeça parecia girar.

É claro.
Ela se transformava em animais. Qualquer animal.
Na hora, me veio em mente o corvo na minha sacada. Aquele
corvo que parecia estar sempre ali, por mais que em Umbra fosse
um animal raríssimo.

Era ela.
— Eles souberam do ataque. — Ela anunciou, fitando
Sarkian. Notei que não tentava se cobrir, parecia extremamente
confortável com sua nudez.

Eu pisquei devagar, ainda estava em choque. Virei-me para


Sarkian à procura de uma explicação.
— Eu mandei Vitrah para o centro de Alodias para fazer uma
vistoria — explicou, me fitando.

De repente, aquela notícia terrível me fez voltar para a


realidade e, aos poucos, superar o choque.

— Como? — Consegui finalmente perguntar. — Como eles


souberam?
— Provavelmente, algum camponês nos avistou no caminho.
— Sarkian explicou. — Sabíamos que isso poderia acontecer.

Assenti.

— Eles estão vindo ou se preparando na cidade? — Eu


perguntei a ela.

Seus olhos escuros e penetrantes fitaram os meus.


— Estão vindo.

Não ter o elemento de surpresa era ruim para nós, mas o que
Wullfric estava fazendo era burrice. Ir nos encontrar no meio do
caminho definitivamente não era a melhor ideia. Se ficasse na
cidade e fechasse os portões, pelo menos, teria a proteção dos
muros em sua vantagem.
— Já que não vamos pegá-los de surpresa, é melhor
esperarmos aqui. Nos estabelecermos no local. — Eu disse. —
Deixe que venham até nós.
capítulo 29

— Aqui, beba. — Sarkian disse, colocando um frasco na


minha mão.

Olhei para a minha palma. Parecia o mesmo frasco da noite


anterior, o líquido da mesma cor.
— É o que estou pensando?
Ele assentiu.

— Por quê?

O prata brilhou em algo sombrio. Em seu rosto havia uma


expressão séria, beirando à preocupada.

— Talvez precise se proteger.


De mim, quase pude ouvi-lo completar em pensamento.

Virei o líquido em um gole conforme ele me observava.


De repente, um som distante, mas persistente se fez
presente. Aos poucos, ficou claro o que era.

Nós saímos da tenda e nos dirigimos para a frente do


exército. Os homens em volta também haviam notado. Agitavam-se,
montando em seus cavalos.

Paramos lado a lado, à frente de nossos homens.


A vibração do chão abaixo de nós anunciou a chegada do
exército inimigo.

Meu coração disparou dentro do peito. Minhas pernas ficaram


dormentes. A adrenalina explodiu.

Subi em Zoran e Sarkian montou em seu cavalo negro.


Trocamos um olhar antes de nos dirigir aos nossos soldados, que
aguardavam a próxima ordem.

— Formação! — A voz grave de Sarkian ecoou contra o


campo.

Os homens se colocaram à postos. Em questão de


segundos, todos estavam em suas montarias e com espadas em
mãos. Eles nos observavam em expectativa.

O ar era tão pesado e denso. Repleto de tensão e agitação.

— Não peço que lutem por Umbra ou por Khrovil — exclamei,


a plenos pulmões. — Não peço nem mesmo que lutem por mim.
Lutem por si mesmos! Lutem pela glória! O que quer que aconteça
aqui hoje marcará a história, então escolham lutar para serem
lembrados como os vitoriosos! Arkayd! — A última palavra gritei na
língua do povo de Khrovil, que significava glória.
Espadas foram erguidas e os homens gritaram, o som
reverberando por todo o meu corpo. A energia era pulsante. A ideia
de se jogar em direção à morte era inebriante.

O exército inimigo surgiu sobre a montanha, do outro lado da


ponte. Uma longa fila de homens em seus cavalos.
O vento nos atravessou, soprando alguns dos meus fios de
cabelo e a capa negra de Sarkian.

Ao meu lado, ele disse:

— Não vou deixar que nada aconteça com você.

Vi a intensidade da promessa em seus olhos e


acreditei. Realmente acreditei que, ao lado dele, nada de mal
poderia me acontecer. O que era uma ironia, já que eu ainda tinha
certeza de que, na maioria das vezes, Sarkian Varant era a
personificação da maldade.

Seu cavalo relinchou, e ele segurou a rédea curta.

Foi, então, que notei.

Em sua mão direita, por cima da luva de couro, anéis cobriam


seus dedos. Mas havia um novo. Porque, até àquele ponto, eu
basicamente já havia gravado cada um que usava.

No mindinho, brilhava uma pequena pedra de diamante. Do


exato tamanho e corte da que estava faltando no colar da minha
mãe.

O tempo parou.

E por um instante, apenas por um breve instante, não havia


guerra. Não havia soldados, espadas e a promessa do caos.

Era apenas ele e eu.

E foi naquele momento que eu entendi.

E talvez já até soubesse. Talvez já sentisse há muito mais


tempo do que gostaria de admitir.
Mas foi naquele instante, logo antes de erguermos nossas
espadas e enfrentarmos a morte de cara, que finalmente notei que
meu coração já não me pertencia mais.
E então
a Usurpadora de Sangue

se apaixonou

pelo Rei da Dor


capítulo 30

Nós corremos. Aos gritos e com espadas erguidas conforme


o exército inimigo atravessava a ponte, tão ávido quanto nós.

Um grupo de cavaleiros me cercava, fazendo um círculo de


proteção à minha volta, incluindo DeLarosa e Bax. Sarkian estava
logo ao lado, com seu próprio escudo humano mascarado.
O primeiro impacto foi brutal. O som metálico de espadas
explodiu, ensurdecedor.
Aos poucos, nossos homens se misturaram aos inimigos em
uma dança corporal violenta. Mais à frente, eu conseguia ver
sangue jorrando e corpos caindo. Havia muita gritaria. Exclamações
de vitória e berros de dor.

Um espaço abriu bem adiante, dando a oportunidade de os


soldados inimigos se aproximarem de nós. Eu cheguei a levantar a
minha espada, mas, então, entendi por que Sarkian havia
sobrevivido desde muito jovem em batalhas. Entendi por que seu
nome era uma lenda e a reação que causava em seus inimigos. Seu
próprio escudo humano se afastou, dando espaço para que ele
atravessasse os inimigos com a espada. Ele movia a lâmina com
uma rapidez inacreditável.

Cortava a garganta de um ao mesmo tempo em que


derrubava o outro do cavalo com seu escudo.
Desviava de golpes com a graciosidade e a rapidez de um
felino.

Era como se tivesse nascido para aquilo.

Chegava a ser assustador.

Tudo o que fiz foi me defender com o meu escudo de uma


flecha que veio em minha direção. Fora isso, nenhum golpe chegou
a, ao menos, se aproximar de mim.

Isso durou pelo que pareceu horas, décadas até. Cada


segundo naquele inferno parecia uma vida inteira.

O meu soldado à direita foi jogado no chão por um golpe forte


de um escudo. Foi pisoteado assim que bateu com as costas no
chão. Como consequência, um buraco foi formado na minha parede
humana, me deixando desprotegida na dianteira. Isso deu
oportunidade para um soldado de Wullfric se aproximar. Ele golpeou
com a espada, mas me defendi com o escudo. Com a mão livre,
atirei a minha lâmina em sua direção.

Era difícil matá-los com apenas um golpe devido à forte


armadura metálica, mas o golpe foi o suficiente para tirá-lo de sua
montaria. E depois que caíam no chão, no meio daquele caos, era
improvável que se reerguessem.
Tudo acontecia muito rápido. Homens caíam por todos os
lados. Em um instante, estavam ao meu lado e no outro, haviam
desaparecido.

Procurei Vesper na multidão, mas o havia perdido de vista


pouco depois do grande impacto.
Esteja bem, idiota.

Esteja vivo.

Mais à frente, meus homens sofriam.

Um cobertor de corpos começou a se formar à nossa volta.

Ergui meu rosto para encarar a ponte e fiz a terrível


descoberta que continuava lotada do exército inimigo. Mais
soldados de Wullfric chegavam. O número de homens continuava
crescendo, começando a ultrapassar o nosso.
Isso não faz sentido, pensei.

Com a adição do exército de Sarkian, éramos para ser, pelo


menos, a maioria.
Foi, então, que notei as bandeiras em suas hastas. Havia as
azuis e brancas de Alodias, mas também havia uma outra bandeira,
verde e dourada.

Wullfric havia se juntado a outro reino para nos atacar.

Merda.

As palavras ressoaram na minha mente.

Você é uma rainha, não se esqueça disso quando estiver


naquele campo. Você é valiosa. A única coisa valiosa.

Deixe que lutem por você. Deixe que morram por você.

Mas eu não podia.

— Cadê o Rooke?! — gritei para DeLarosa.


Ele olhou para mim, apenas um instante depois de fincar a
sua espada no estômago de um soldado.
— No quinto pelotão, à direita! Aonde está indo?! —
perguntou ao me ver puxar a rédea de Zoran.

— Tenho um plano!
Bati os calcanhares na barriga de Zoran e avancei, cruzando
o exército. Eu o ouvi gritar atrás de mim, mas não parei. Não parei
até conseguir avistar Rooke, Brasa e Kit.

Eles lutavam lado a lado. Rooke jogava homens para longe


apenas com o olhar, Brasa os incendiava ao passo que Kit os
matava sem mesmo que o notassem chegar tamanha era sua
rapidez. Perguntei-me onde estava Shiv. Era para ela estar com
eles.
Avancei até eles e desci de Zoran. Corri até Rooke. Um
soldado de Wullfric veio em minha direção, abaixei quando ele
lançou a espada na minha cabeça e, então, o acertei na base da
barriga.

— Rooke!

O menino olhou para mim, surpreso em me ver ali.

Ele chegou a abrir a boca, mas o interrompi. Não tínhamos


muito tempo.
— Destrua a ponte! — exclamei.

Rooke olhou para a enorme ponte, congestionada de homens


com sede de sangue atravessando para nós atacar.
Arregalou os olhos.

— O quê?!

Ao nosso redor, Brasa segurava os inimigos com as chamas,


lançando bolas de fogo a cada um que se aproximasse. Homens
gritavam, incendiados, até que caíam no chão completamente
queimados.
DeLarosa chegou, juntamente com um par de soldados
acabando com os que restavam.

— Derrube a ponte!

Ele balançou a cabeça. Olhou para ela e, então, para mim.

— Eu… Eu não consigo! — gaguejou.


Suor escorria pela minha pele devido ao calor das chamas ao
redor e ao esforço físico.

— Consegue! — gritei. — Apenas se concentre!

Ele fitou a ponte com os olhos semicerrados. Seu rosto


tremia e sua respiração era forte, o peito subindo e descendo
intensamente. Depois de alguns segundos que pareceram uma
eternidade, ele se virou para mim.

— Não consigo, Majestade! Sinto muito, não consigo...

Seu rosto estava abatido em pura decepção e frustração.


Olhei ao redor, os homens de Wullfric não paravam de
chegar. Estávamos em desvantagem. Mesmo se vencêssemos,
haveria tantas mortes... Tantos soldados que não voltariam para
suas esposas e filhos. Tantas famílias destruídas.
Ouvi um grito próximo, então virei o resto e vi o exato
momento em que um soldado enfiou uma faca na barriga de Brasa.

As chamas se dissiparam no ar quando ele caiu de joelhos no


chão.

— Não! — urrou Kit, tão alto e de forma tão dolorida que o


som ecoou em minha alma.
Ele caiu ao lado do irmão.

Mas era tarde demais. Brasa não reagia. Em seus braços, ele
era um monte de membros sem vida. Seu irmão o chacoalhou,
gritou, chamou seu nome... Porém nada aconteceu.
Ao meu lado, Rooke começou a tremer. Sua feição mudou.
Havia lágrimas em seus olhos ao fitar Brasa e Kit.

Era tristeza. Mas também era raiva. Tanta raiva.

Um grito gutural deixou sua boca. Animalesco e assustador,


como um rugido.

O chão começou a tremer.


Eu dei um passo para trás. E, então, mais dois.

Rooke encarou a ponte. E dessa vez, eu não tinha dúvidas.

Não me surpreendi quando ela começou a sacudir. Os


homens que a atravessavam pareciam confusos. E quando ela
começou a balançar mais e mais, eles pareciam
desesperados. Alguns tentaram correr para terra firme, mas havia
tantos deles que acabaram se embolando. Cavalos tropeçando e
homens sendo esmagados.
Ela cedeu com um estrondo tão alto, que fez até mesmo os
homens em combate desviarem o olhar por um instante.

Centenas de corpos desapareceram na poeira que subiu


quando a enorme ponte caiu.

Em um instante, ela estava ali, bruta e majestosa. E no outro,


não.
Outros homens, mais atrás e que estavam prestes a
atravessar a ponte, também acabaram caindo nos destroços porque
não conseguiram parar seus animais rápido o suficiente.

Em menos de 10 segundos, Wullfric tinha perdido centenas


de soldados, boa parte de seu exército.

Os homens em terra firme, do outro lado do rio, que ainda


esperavam para atravessar, pararam. Não havia como atravessar. E
mesmo que conseguissem, provavelmente se machucariam ou
perderiam suas montarias no processo.

Olhei para Rooke. Lágrimas escorriam pelo seu rosto.


— Bom trabalho... — Eu soprei, ainda perplexa.

Ele chegou a olhar para mim, mas não havia nada em sua
íris. Rooke parecia anestesiado. Piscou um par de vezes e, então,
foi em direção ao Kit e seu irmão. Perdi os três de vista conforme a
luta à minha volta se intensificava.
Por mais que não estivesse chegando mais homens do
exército inimigo, ainda havia os milhares de homens que
permaneciam lutando ao nosso redor.
Um soldado veio em minha direção depois de decapitar um
dos meus homens. Era enorme, não usava um escudo. Em uma das
mãos, tinha uma espada e na outra, um machado. Seus olhos
brilharam ao me ver, claramente faminto para matar a rainha do
reino inimigo.

Eu não usava uma coroa em campo, mas era muito óbvio me


identificar.

Era a única mulher ali. Bem, além de Shiv.


DeLarosa e os outros soldados estavam muito ocupados em
suas próprias lutas para me auxiliar.

Éramos apenas ele e eu.

Ergui o meu escudo e levantei a minha espada. O impacto de


sua lâmina me fez recuar até quase cair. Agachei-me quando ele,
então, golpeou com o machado, passando a centímetros da minha
cabeça. Cheguei a escutar o zumbido do mental em meu ouvido.
Tentei golpeá-lo com a minha espada, mas ele desviou e deu um
passo à frente para atacar. Foi muito rápido, mal tive tempo de
erguer meu escudo. Recuei, mas tropecei sobre alguma coisa,
provavelmente o corpo de algum soldado.

O homem enorme se ergueu sobre mim. Satisfação no rosto


assustador.

Eu vi a morte em seus olhos.

Pensei na minha mãe. Pensei em Rafe. Pensei em Vesper e


Allegra.
Pensei em Sarkian.
O homem ergueu o machado.

Eu fechei os olhos.

O som metálico soou. Espada contra pele e um rugido de dor.


Mas o golpe não veio.

Abri os olhos.
DeLarosa tinha fincado sua espada no tronco do soldado.

Ele cambaleou para direita. Chegou a levantar a espada para


o general, mas DeLarosa foi mais rápido e lhe cortou a garganta. O
homem caiu em um baque alto.

Porque estava de costas, contudo, DeLarosa não viu o outro


homem chegando.

Mas eu vi.

Eu o vi erguer sua arma.


— DeLarosa! — gritei.

Levantei-me, pegando a minha espada. Lancei-me em sua


direção.

Mas foi tarde demais.

Assim que o general se virou, o homem já tinha lhe fincado a


espada no estômago.

Um grito deixou a minha boca ao atravessar a minha lâmina


em seu tronco.

Ele caiu por cima de DeLarosa.


Com certa dificuldade, empurrei o corpo do homem para
encontrar o rosto do general. Tinha os olhos abertos, assim como a
boca. Parecia tentar falar alguma coisa.

Senti as lágrimas nos meus olhos.

Não...

Não!

Procurei a ferida e coloquei a mão ali, tentando estancar o


sangue. Mas havia tanto... Minha mão rapidamente se tornou
escarlate.

— Vou te tirar daqui, DeLarosa — disse, com minha voz


trêmula. — Aguenta firme!

Ele piscou devagar, os olhos parecendo pesados.

Mexeu a boca, mas nada saiu. Parecia exigir muito esforço.

— Aguenta firme, por favor!

— Foi uma honra, Majestade... — As palavras deixaram seus


lábios em um murmúrio rouco e fraco.
E aquelas foram as últimas palavras que DeLarosa falou para
mim.

Seus olhos se tornaram vazios e sua respiração cessou. As


lágrimas quentes escorreram pela minha bochecha. E eu fechei
seus olhos com delicadeza.

Um grito soou ao meu lado. Um homem caiu a centímetros


de mim, me trazendo para a realidade. Trazendo-me de volta para o
caos.
Ao meu lado, estavam as dezenas de corpos caídos dos
meus homens.

Ergui o olhar, para só então notar que estava completamente


rodeada de soldados inimigos.
capítulo 31

Com o coração martelando no peito, peguei a minha espada


e me ergui lentamente.

— Pode se entregar! — exclamou um deles, me fitando. —


Pedir clemência!
— Não, vamos matar a puta! — disse o outro. — Entregar
apenas a cabeça ao Wullfric!

— Podemos ficar com o resto... — comentou um terceiro,


com um sorriso assustador nos lábios grotescos.

Por um breve e assustador momento, pensei em largar a


espada e me entregar. Talvez houvesse misericórdia. Talvez Wullfric
tomasse Umbra, mas me permitisse viver. Mas só a ideia de aquilo
ocorrer me deixava nauseada. Eu não conseguiria viver comigo
mesmo. Com a vergonha, com o fracasso. Fora que aquilo era
apenas uma remota chance. Eu duvidava que Wullfric me deixasse
viver. Provavelmente brincaria um pouco comigo, me torturaria e me
humilharia antes de me matar.
Ergui a espada.

— Quem vai ser o primeiro?! — indaguei, proclamando a


minha própria sentença de morte.
Um deles chegou a dar um passo à frente.
Mas parou assim que ouviu o barulho forte do trote.

Como eles, virei o rosto.

O Rei da Dor atravessava o exército a toda velocidade em


seu animal negro como a noite. Cada pisada no seu cavalo parecia
fazer o chão abaixo de nós tremer. Sua capa voava contra o vento e
sangue cobria praticamente todo o seu belo rosto. Sangue
vermelho, sangue de seus inimigos.

Seu olhar não desviou nem por um momento, nem mesmo


quando homens tentaram interceptá-lo. Ele cortou a garganta de um
homem no caminho e derrubou outro de um cavalo, mas não parou.
Não perdeu um segundo sequer.

O prata se fixou em mim e apenas em mim.

O alívio que correu por meu corpo foi tanto que, por um
instante, achei que meus joelhos fossem ceder. A adrenalina e o
medo que me mantinham de pé simplesmente abandonaram o meu
corpo.

E chegava a ser engraçado pensar que o que costumava ser


meu pesadelo, era agora a minha salvação.

Sarkian abriu caminho quando os homens se afastaram para


não serem pisoteados pelo seu animal. Em um único movimento ágil
e fluido, ele desceu do cavalo e parou bem ao meu lado. O animal,
no entanto, continuou correndo.

Eles nos cercaram. Dezenas de homens formaram um círculo


em torno de nós, espadas em mãos e olhos famintos. Com as
costas coladas em Sarkian, ergui a minha espada. Nós giramos em
passos lentos e cautelosos, observando nossos oponentes. Aos
poucos, eles avançavam.

Éramos nós dois contra mais de cinquenta homens.

Tive a repentina e impulsiva vontade de dizer alguma coisa


para Sarkian, exclamar a plenos pulmões o que eu sentia. Porque
se eu estava prestes a morrer ao seu lado, queria que ele soubesse.
Mas apenas eu te amo parecia tão vazio.

Um eu te amo não chegava aos pés do que eu precisava que


ele soubesse.

— Se encolha — ordenou Sarkian, virando o rosto para me


olhar sobre o ombro. — E feche os olhos.

Demorou um momento para que eu processasse o que havia


dito. Não queria abaixar a espada, mas se ele estava pedindo isso,
era porque provavelmente tinha um plano.

Soltei minha espada e me agachei. Coloquei a cabeça entre


os joelhos e abracei as minhas pernas.

Não demorou muito.

Talvez três batidas do meu coração.

Então, começou.

Primeiro foi uma dor percorrendo o meu corpo, uma


eletricidade afiada que fez meu estômago se revirar. Era parecida
com a dor que havia sentido naquela noite em que Sarkian me
beijou, mas agora era suportável. Era horrível, definitivamente. Mas
eu conseguia aguentar.
Então, vieram os gritos.

E dessa vez, não era da minha garganta que saíam.

Em volta, os homens caíram. Todos os eles. Alguns


demoraram um pouco mais, mas, eventualmente, todos o fizeram.
Joelhos no chão e gritos horripilantes deixando suas gargantas.
Gritos de todos os tipos, agudos, graves, longos, curtos,
roucos... Berros desesperados. Alguns falavam, imploravam.
Pediam por favor. Pediam para que parasse. Pediam aos Deuses.
Alguns chegavam a uivar. Era uma sinfonia horrorosa de gritos de
desespero.

Eram gritos de dor.


Foi o som mais horripilante que já tinha ouvido em toda a
minha vida.

Fechei os olhos com força.


Eu não sabia o que era pior: o que eu estava sentindo ou que
estava ouvindo.

Tentei me concentrar na minha respiração, inspirando e


expirando lentamente.
Isso durou pelo que pareceu uma eternidade. Até que, aos
poucos, os sons foram diminuindo. Alguns parando por completo.

A dor deixou o meu corpo como uma onda deixando a areia.


A maré baixou, se afastando.

Lentamente, ergui a cabeça. Abri os olhos. Em volta, não


havia um homem de pé. Próximo de nós, havia apenas corpos no
chão.

À nossa direita, um deles se moveu, como se tentasse se


levantar. Sarkian deu alguns passos em sua direção e enfiou a
espada em seu peito.

Os soldados vivos que nos observavam a vários metros de


distância estavam tão perplexos quanto eu. Alguns nem lutavam
mais, apenas fitavam Sarkian. Em vez de se aproximarem para
atacar, vi os homens de Wullfric se afastando.

— Cera.
Escutei meu nome.

Foi só então que notei que ainda estava no chão. Minhas


pernas não pareciam funcionar.

Sarkian parou à minha frente, vi as botas de couro e ergui a


cabeça até encontrar os seus olhos. O sol brilhava atrás dele,
fazendo uma sombra em seu rosto ensanguentado. Fios de luz
escapavam ao seu redor, formando uma aura.

Daquele jeito, Sarkian Varant parecia um anjo caído.


Quanta ironia...

Ele estendeu a mão em minha direção, e eu a peguei.

Sarkian me ergueu até que nossos olhos tivessem alinhados.


Ele avaliou o meu rosto com uma precisão desconcertante, os olhos
intensos e os lábios em linha reta. Ergueu a mão que não segurava
a espada e limpou a minha bochecha delicadamente com o polegar.
Foi somente nesse instante em que notei que estava
chorando.

— Está bem? — perguntou.

Assenti devagar.
Ele me observou por mais um momento, até que um som alto
nos fez desviar. Passamos os olhos pelo campo de guerra.
Soldados corriam na direção oposta, alguns a pé e alguns — mais
sortudos — em suas montarias.

— Os homens de Wullfric estão recuando — constatei, com a


voz rouca.
Ele assentiu e, então, deu um passo para trás.

— Está segura — disse, olhando em volta. — Seus homens


estão aqui.

Olhei para trás. Vários dos meus soldados nos observavam,


assim como um par de mascarados. O barulho de espadas batendo
havia diminuído consideravelmente, quase que completamente.

— Aonde está indo? — indaguei.


— Já volto.

Ele se virou.

Dei um passo à frente, segurando seu pulso. Foi automático,


um impulso natural. Não queria que ele fosse. Porque, pelo seu
olhar, eu sabia que não era algo bom.
— Sarkian.
Ele parou, olhou para a minha mão que o segurava e, então,
fitou meu rosto fixamente.

— Vou voltar — afirmou, com firmeza.

— Não sabe disso.


— Ah, sei. — Sarkian desdenhou, quase como se desafiasse
o destino a contrariá-lo. — Disso eu tenho plena certeza. Vou voltar,
Cera. E ninguém vai me parar. — Ele se aproximou o suficiente para
ficarmos cara a cara. — Se for preciso, vou matar todo o meu
caminho até você.

O prata se fixou em minha boca. O tempo parou. Congelou. A


guerra, os corpos, o sangue e o desespero... Tudo sumiu. E, por um
momento, achei que ele fosse me beijar.

Mas ele não o fez.

Soltei seu pulso, e Sarkian se afastou. Montou em um cavalo


próximo de nós e sumiu campo adentro, me deixando sozinha
apenas com a promessa de que voltaria.
Sequei meu rosto com as costas das mão, as lágrimas
haviam se misturado ao sangue. Eu conseguia sentir o cheiro
metálico no ar. Estava em minhas roupas, no meu cabelo, até
mesmo nos meus lábios.

Recompondo-me, me virei.
— Cadê o Vesper?! — indaguei aos soldados que me
fitavam.
Eles trocaram um olhar e apenas balançaram a cabeça, sem
saber o que responder.
Engoli em seco, analisando em volta.
Você não, Vesper...

Por favor, você não.

Comecei a atravessar o campo de homens caídos. Os


soldados me acompanhavam na busca.

Naquele ponto, poucos homens continuavam de pé lutando.


Alguns soldados de Wullfric estavam desistindo, se ajoelhando e
pedindo clemência para os de Umbra.

Eu olhava pelos homens andando ao redor, procurando por


Vesper de pé com uma espada na mão e, talvez, até mesmo um
meio sorriso no rosto convencido. Mas eu também procurava pelo
chão, pelos homens caídos e amontoados entre si. Por mais que
doesse, eu sabia que era uma possiblidade.

Até que vi algo que fez minhas botas congelarem no chão.

Uma mão.

Os dedos longos, a pele negra, as unhas bem rentes...

Meu coração parou.

O corpo estava caído por baixo de outro.

— Tirem de cima! — gritei, me agachando ao lado dos


corpos.

Os soldados removeram o corpo.

O dono daquela mão estava de cabeça para baixo, então não


podia ver seu rosto. Mas a sua nuca me era terrivelmente familiar.
Cabelo escuro, raspado...
Não. Não. Não.

Levou um momento para que eu criasse coragem.

Toquei em seu ombro para virá-lo.


Prendi a respiração.

— Cera.
Ergui a cabeça, ainda de joelhos.

Vesper estava parado a cerca de cinco metros de mim, com o


rosto cheio de sangue e um corte considerável sobrancelha.
E vivo.

Completamente vivo.
Um palavrão escapou da minha boca conforme eu me ergui o
mais rápido que consegui e avancei em sua direção. Alívio
atravessou meu corpo, deixando meus membros dormentes.
— Nossa, isso é tudo saudade? — Ele indagou quando eu
coloquei meus braços ao seu redor. — A gente se viu não tem mais
de algumas hor...

— Cala a boca, idiota — interrompi. — E você está fedendo.

— Você também — Ele retrucou, me abraçando de volta.

O abraço durou alguns segundos, até que nos afastamos.

— Cera... — Ele disse de repente com a voz sombria,


olhando para algo por cima do meu ombro.

Seu rosto era uma mistura de surpresa e seriedade. Ele


piscou um par de vezes.
E, então, notei que os soldados ao nosso redor também
olhavam para algo atrás de mim. Virei-me devagar, quase com
medo do que quer que fosse.

Sarkian estava montado no cavalo e olhava para mim. Mas a


parte verdadeiramente chocante, no entanto, era o que ele segurava
na mão direita.

A cabeça do Wullfric, Rei de Alodias.

O crânio tinha os olhos arregalados e a boca escancarada.


Como se a última coisa que tivesse visto antes de morrer havia sido
o próprio Deus da Maldade.

E como se fosse um presente, Sarkian a jogou aos meus pés.


capítulo 32

Exclamações de vitória e de glória me seguiram pelo resto do


dia. O povo, assim como os soldados, estavam mais do que
satisfeitos com a vitória.

Por mais que tenhamos sido pegos de surpresa pela aliança


de Wullfric com o exército de Conelys, Rei de Kazeth, perdemos
bem menos soldados em comparação a eles. Protegemos Niverville
e tomamos Alodias. Depois da batalha e com a morte de seu rei, a
tomada foi pacífica. Os camponeses não se opuseram, estavam
com mais medo de retaliação do que qualquer outra coisa. Mas
proibi que meu exército aterrorizasse o povo, como muitos faziam
depois de uma vitória.
Era de costume alguns exércitos, depois de vencer,
avançarem para as cidades, roubarem casas, estuprarem suas
mulheres e matarem inocentes. Isso era inaceitável para mim. O
povo não tinha nada a ver com aquela guerra.

— Parabéns, Majestade! — cumprimentavam alguns


conforme eu passava.

— Viva a rainha! — gritavam outros.

Desde que havia tomado o trono, aquele foi o único momento


em que me senti verdadeiramente aceita e adorada pelo povo.

A sensação foi boa. Muito boa.


Mas, apesar da vitória, não era de todo um momento feliz.
Além de algumas centenas de soldados, enterrei DeLarosa e Brasa
naquele dia.
Organizaria para que parte das riquezas tomadas de Alodias
fossem para as famílias daqueles soldados, incluindo para a esposa
do general e seu filho ainda de colo. O garoto só saberia sobre seu
pai por histórias, era muito pequeno para manter qualquer memória
que fosse. E eu faria com que as histórias fossem dignas de um
herói.

— O que quer fazer com aquilo? — indagou Vesper, assim


que pisamos no palácio.

— Com o quê?

— A… — ele fez uma pausa, arranhou a garganta — cabeça.

Pensei nos olhos azuis de Wullfric, a expressão de terror


eternizada...

Então, decidi.

— Mande para Conelys.

Não era uma ameaça.

Apenas um aviso.

A celebração oficial aconteceu na noite seguinte, e


convidamos alguns regentes de reinos mais próximos. Isso seria
bom para fortalecer alianças.
Eu usava um vestido azul com detalhes em dourado, para
combinar com a coroa em minha cabeça. Meu cabelo estava solto, e
as mechas castanhas caíam pelos meus ombros e costas.
Assim que entrei no salão, com os guardas anunciando a
minha chegada, palmas explodiram.

O Rei de Stirlah estava presente, assim como a Rainha


Astoria. Eu os avistei assim que cheguei, estavam acompanhados
de alguns de seus nobres.

Sarkian não estava lá. Pelo menos, não ainda. Ele não
costumava chegar cedo em eventos como aquele. Provavelmente,
seria o último a aparecer.

— Estava preocupada, sabia? — indagou Astoria, de repente,


enquanto conversávamos. — Quando tomou o trono.

Pisquei, surpresa com a confissão.

— Por quê?

— Outra mulher como rainha. — Ela respondeu com


honestidade. — Sabe como foi difícil de convencê-los de que era eu
boa o suficiente? De que poderia ser tão competente quanto o meu
pai? Foi um inferno. Passei por muitas coisas. Não tive a glória
desde cedo, como muitos dos outros reis assim que sucederam o
trono. Então, quando ouvi sobre você…, fiquei preocupada que
estragasse tudo. Porque é preciso apenas um deslize para que eles
nos julguem, Cera. Para que nos diminuam. E para que isso afete
todas nós. — Ela fez uma pausa e me fitou fixamente. Seu rosto era
sério, mas seus olhos eram quase gentis. — Lembre-se, você não
pode ser apenas boa. Você tem que ser impecável.
Engoli em seco.

Entendia o que ela estava falando. E odiava aquilo, mas era a


realidade.

Pelo menos, por enquanto.

— Não planejo ser boa ou impecável — respondi. — Planejo


ser a melhor.

A rainha me encarou em silêncio por um longo momento,


seus olhos pareciam carregar uma sabedoria que ultrapassava
muito a sua idade. Até que um sorriso aos poucos tomou seus
lábios.

Ela ergueu sua taça, e eu sorri de volta, fazendo o mesmo.


Assim que brindamos, ouvi a comoção do outro lado do cômodo.

Sarkian Varant entrou no salão sugando toda a atenção para


si.
Não que a desejasse, no entanto. Tenho certeza de que não
dava a mínima, mas era inevitável.

Ele recebeu aplausos também, mas mais cautelosos. E não


pareceu reconhecê-los, nem mesmo sorriu para as pessoas à sua
volta. Notei, com certo incômodo, que sua arrogância e sua
indiferença já não me irritavam mais.
Eu não o via desde a batalha. Desde que me presenteou com
a cabeça do meu inimigo.

Sarkian atravessou o salão e foi até o pequeno grupo em que


Vitrah, a mulher pantera, se encontrava. Ele avaliou o salão, como
se procurasse alguma coisa.
Alguém.

Meu coração idiota tropeçou em uma batida.

Nossos olhares se cruzaram na multidão. E, de repente,


estávamos sozinhos, no nosso pequeno mundo. Apenas ele e eu.
Nada além parecia importar ou sequer existir.
Eu amava essa sensação.

Nunca quis ser o centro das atenções, mas eu queria ser o


dele.

— Ele a reverência com os olhos toda vez que olha para


você.

Eu fitei a rainha, processando suas palavras.


Ela tinha um olhar reflexivo conforme o observava. Então, se
voltou a mim.

— Não é amor. Não o dos comuns, pelo menos.

Seu rosto era sério. Melancólico, quase triste.


Senti algo na base do estômago.

Dei um gole em meu vinho. Um grande gole.

— Me dê licença, Cera — disse, de repente com a expressão


completamente casual. — Estou faminta e esses bolinhos parecem
incríveis.

Vesper passou ao meu lado. Tinha um copo de vinho nas


mãos e andava cambaleando. Estava bebendo mais do que o
normal. Eu o havia contado sobre Brasa, e, apesar de não ter
chorado ou demonstrado grandes emoções no momento, sabia que
estava abalado.

Segurei seu braço. Ele parou, se virando e derrubando um


pouco de vinho no processo.

— Ah, merda... — murmurou ao olhar para o chão. — Que


desperdício.
— Não acha que já bebeu demais?

Ele me fitou. Tinha um curativo na testa e olheiras abaixo dos


olhos.
— Acho que bebi pouco — retrucou. — Estou comemorando!

— Não tivemos apenas vitórias — afirmei suavemente — e,


talvez, essa não seja a melhor forma de…

— Não preciso que cuide de mim — cortou-me. — Mas


deveria ficar de olho no seu namorado. — Vesper virou o rosto para
o outro lado do salão e fez uma careta maldosa. — Posso sentir a
boceta dela pulsando daqui.

Soltei seu braço ao franzir o cenho. Segui seu olhar e notei


que, do outro lado do salão, Sarkian conversava com uma mulher.
Bonita, de cabelos loiro-escuros como ouro. Era baixa e
delicada. Rosto fino e traços bem desenhados. E, pelas roupas,
parecia ser importante. Uma nobre de alto escalão. Até porque,
ninguém insignificante teria coragem o suficiente para falar com um
rei. Ainda mais um rei como ele.

E pela forma como ela se inclinava e sorria de lado, parecia


que Vesper, apesar da escolha de palavras, não estava de todo
errado.

Uma sensação estranha tomou meu corpo. De repente,


qualquer resquício de felicidade que tinha se foi. Um gosto ruim
tomou o fundo da minha garganta.

Desviei o olhar antes que me pegassem encarando e dei um


gole na minha taça.
Então, dei de cara com um homem muito bem-vestido e o
cabelo escuro perfeitamente alinhado.

— É um prazer conhecê-la, Rainha Cera. — Ele parecia


nervoso quando fez uma reverência com a cabeça. — Eu sou o
Príncipe Petrón.

Ah, o filho mais novo do Rei Oheis. Segundo na sucessão do


trono. Era um tanto atarracado. Devia ter vinte e tantos anos, talvez
trinta.

Sorri.

— É um prazer conhecê-lo.

— Queria parabenizá-la por ontem. Foi uma vitória incrível.

— Obrigada. Tenho um exército excelente, e a ajuda de


Khrovil foi crucial.
Ele assentiu.

Tentei não olhar, mas falhei. Meus olhos voltaram até Sarkian
e a garota.

Mas, dessa vez, os olhos dele não estavam nela.

Estavam em mim.
— É claro. — O príncipe falou e, então, fez uma pequena
pausa. — Se me permite dizer, é ainda mais bonita ao vivo do que
dizem.

Eu sorri, mal processando o que tinha dito.

— Obrigada.

Sentia o olhar queimando em minha pele. Voltei a encará-lo.


E assim que meus olhos repousaram nele, Sarkian fez um sinal sutil
com a cabeça para a porta.

— Se me der licença, vou pegar outra taça de vinho —


informei, apenas para depois notar que meu copo estava
praticamente cheio e que aquela havia sido uma desculpa terrível.

O príncipe pareceu notar também.

— Ah, claro — concordou, confuso e um tanto sem graça.


Virei-me e vi a figura negra se afastando, sabendo muito bem
que eu iria atrás dele.

Deixamos o salão com alguns segundos de diferença e


cruzamos o corredor até chegar à biblioteca do primeiro andar.

Entrei no cômodo amplo e meio escuro.


Sarkian apoiou a parte de trás do corpo nas costas de uma
das poltronas próximas da lareira, como quem não queria nada. E
eu o fitei por alguns instantes antes de finalmente perguntar:

— Deseja alguma coisa?

Afinal, ele que havia me chamado ali.

Um meio sorriso quebrou em seus lábios.


— Acho que já sabe a resposta para essa pergunta.

Senti meu rosto esquentar, e ele se deliciou com a visão.


Tinha certeza de que amava me fazer corar.

Tive que resistir à vontade de desviar o olhar.

— Está com pressa, por acaso? — Ele indagou, cruzando os


braços. — Interrompi alguma coisa?

— Apenas uma conversa agradável com alguém importante.

Sarkian inspirou fundo e, então, jogou a cabeça para trás.


Fechou os olhos, ficando dessa forma por um instante. Quando
voltou a me encarar, tinha a expressão sarcástica e maliciosa, mas
os olhos penetrantes.

— Não me obrigue a matar um príncipe — disse,


terrivelmente casual. — Não me obrigue a começar mais uma
guerra.
Ciúmes.

Sarkian estava com ciúmes.

Aquilo cobriu o meu corpo com uma felicidade repugnante.


Odiei-me.

— Não estou te obrigando a nada.

— Pense em toda a morte... — Fez uma careta. — Todo o


sangue... Só porque outro homem teve a audácia de tentar tocar no
que é meu.

Meu coração começou a bater mais rápido. Por mais que


gostasse de seu ciúme, precisava que entendesse que eu não
pertencia a ele. Eu não pertencia a ninguém.

— Não sou sua.

Ele sorriu como se eu tivesse contado uma piada ridícula.

— Eu me pergunto se algum dia teremos uma conversa


completa sem que um de nós desfira uma mentira.

Aquilo me fez recuar. Sarkian me deixou sem palavras.

E se eu fosse uma garota verdadeiramente inteligente, daria


meia volta e deixaria aquela biblioteca.

Mas eu não era tão inteligente. Não quando o assunto era


Sarkian Varant.

Meu cérebro e meu corpo não pareciam entrar em consenso


se tratando dele.

— Não achei que estava prestando atenção, de qualquer


forma — retruquei, tentando soar blasé. — Parecia muito entretido
na conversa com a loira.

— Estou sempre prestando atenção em você. — Ele disse,


simplesmente. Em uma constatação simples e crua.

Sarkian tirou as costas da cadeira e se aproximou.

Parou à minha frente e ergueu o braço. Por um momento,


pensei que fosse me tocar, mas, em vez disso, pegou a taça da
minha mão.

— Não fique com ciúmes, meu amor. Ela jamais vai me


atormentar como você.
Ele levou a taça aos lábios e bebeu o líquido em uma grande
golada.

Quando voltou a me fitar, suas pupilas estavam mais


dilatadas. Ele avaliou meu rosto por um tempo demasiadamente
longo. Seu rosto se tornou um tanto melancólico.

— É realmente trágico.

Minha garganta estava seca.

— O quê?

— Cada vez que eu te vejo, você está mais bonita... —


constatou, com a voz rouca. — Você é uma tragédia, Cera.

Engoli em seco.

— Te observar assim, sem poder te tocar, é um tipo de tortura


que nunca achei que sofreria. — Sarkian confessou, erguendo o
dedo indicador e tocando em uma mecha do meu cabelo. — É pior
do que cruzar um exército de homens querendo a minha cabeça.

Meu corpo inteiro pulsava para que eu me aproximasse. Para


me jogasse contra ele, colasse a minha boca na sua.
Mas me mantive parada, com o coração batendo forte e o
desejo deixando meus joelhos fracos.

— Não tem mais… poção? — murmurei, com a voz rouca.

Ele balançou a cabeça, fitando a minha boca.

— Não, aquilo era tudo.

Cerrei os dentes dentro da boca. Tive a patética vontade de


chorar, literalmente chorar. Como uma criança mimada que não
conseguia o que desejava em seu aniversário.

Sarkian afastou o dedo dos meus fios.

— Não faça isso — disse, de repente.

— O quê?

— Não pareça tão decepcionada — pediu. — Não me olhe


como se me quisesse tanto quanto eu quero você.

— Por quê?

— Porque não sou tão bom assim. E meu autocontrole tem


um limite.
— Você é melhor do que pensa.

Ele sorriu, mas não com seus olhos. Sarkian se virou e


deixou a taça vazia sobre uma das mesas de madeira maciça.

— Você não tem ideia do que está falando — disse, de


costas para mim.
— Sei. Há um lado bom em você. — Aproximei-me. —
Ninguém é completamente ruim…

— Cera. — Ele murmurou, me interrompendo.

Mas eu continuei, até ficar de frente para suas costas.

— Você salvou a minha vida. Não faria isso se fosse tão


ruim…

De repente, Sarkian se virou.

— Às vezes — cortou-me outra vez. Seu rosto era sombrio e


seus olhos, penetrantes —, te quero tanto que penso em te
machucar. — A declaração feroz me fez querer recuar, mas ele logo
continuou. — Só penso em perder o controle. Penso em como seria
e até onde você aguentaria. Às vezes, quero tanto saber como seria
estar dentro de você que não me importo que isso te destrua. Eu
não sou bom, Cera. Não há um resquício de bondade em meu
corpo. Se eu salvei a sua vida, foi porque simplesmente não suporto
a ideia de ficar sem você.
Há centenas de quilômetros
um rei recebia uma bela caixa de presente

com um laço de seda vermelho


Dentro

havia a cabeça decepada de um homem

A caixa caiu de suas mãos depois que a abriu

E a cabeça rolou pelo chão de mármore

Não uma ameaça

um aviso
capítulo 33

— Não acho que seja uma boa ideia — disse Mirvin, assim
que a carruagem negra parou na frente do palácio, à minha espera.

Sarkian me disse no começo daquela tarde que havia


marcado um encontro com a nymeria que havia lhe dado as poções.
Segundo ele, ela poderia ser capaz de encontrar uma solução
duradoura para a questão do toque e da dor. E para isso, precisava
me conhecer.
A única pessoa para quem contei sobre o encontro foi Mirvin.

— Por quê?

Ele hesitou um momento para responder.


— Ela pode ser capaz de ver coisas sobre você que…

As palavras se perderam no ar e ele não finalizou.

— Que…? — insisti, impaciente.

— Que talvez não queira ver — finalizou em um suspiro.


Semicerrei os olhos.

— O que quer dizer?


— Acho que certos mistérios da nossa vida devem
permanecer mistérios.
— Pare de falar em códigos. Está me estressando.
— É magia negra, Majestade — disse de uma vez,
seriamente. — Muito poderosa.

Alguns metros à frente, Sarkian abriu a porta da carruagem,


esperando por mim.

— Vou ficar bem — garanti e fui em direção à carruagem.


— Majestade. — Ouvi Mirvin chamar e parei, me virando. —
Não peça para ver seu futuro.

Seu rosto era sério. Preocupado.


Hesitei diante do pedido. Pisquei um par de vezes, mas, por
fim, concordei.

Foi uma viagem de quase duas horas. Paramos em frente à


pequena construção próxima de uma floresta.

A vila mais perto dali ficava a cerca de trinta minutos de


carruagem. O lugar era completamente isolado.

— É aqui?

Sarkian assentiu, deixando a carruagem primeiro.

Coloquei os pés no chão de terra e fitei a casa. As paredes


gastas eram cobertas por uma folhagem verde-escura que crescia
em volta da construção como se quisesse engoli-la.

— Essa é a casa dela?

— Duvido. — Sarkian respondeu. — Acho que nenhuma


nymeria leva ninguém à sua própria casa. Quando conversei com
ela pela primeira vez, foi em um casebre parecido em Khrovil.
— Então, por que ela não pode simplesmente ir até o
castelo?

Sarkian andou até a porta e eu o segui.

— As nymerias não vão até nos. Nós vamos até elas.

Ele bateu. Olhou para mim conforme esperávamos, não


parecia nervoso. Pelo menos, não tanto quanto eu. Fitou a porta e
estava prestes a bater mais uma vez, quando ela finalmente foi
aberta.

Eu não sabia exatamente o que esperava de uma nymeria,


mas achava que não era aquilo.

Ela era pequena, cabelos quase completamente brancos,


pele queimada do sol e rugas expressivas. Mas foram seus olhos
que mais me chamaram atenção. Eram quase brancos, nublados.
Perguntei-me se era cega, mas, então, ela nos fitou fixamente ao
dizer:

— Entrem.

Nada de oi ou boa tarde.

Ela usava um vestido comprido e largo na cor púrpura com


detalhes em verde. Seus dedos e pescoço eram cobertos de joias.

A primeira coisa que notei ao entrar foi o cheiro forte. Não


necessariamente ruim, mas era um aroma que nunca tinha sentido
antes.

— Olá — comecei a me apresentar, visto que ela não havia


dito mais nada —, sou…
— A Usurpadora de Sangue — interrompeu-me, se virando.
— É um prazer conhecê-la. Pode me chamar de Ergyle.
Aquilo me pegou de surpresa, mas não tive muito tempo para
processar. Ela atravessou o pequeno cômodo, repleto de frascos e
pilhas de livros velhos.

— Venham — chamou ao passar por uma pequena abertura.


Não tinha uma porta para separar os cômodos, e sim várias cordas
com minúsculas pedras brilhante como se fossem cortinas. Quando
atravessou por uma delas, as cordas se movimentaram e tilintaram.
Sarkian fechou a porta principal atrás de nós e fomos até a
mulher.

O outro cômodo era ainda menor, um pequeno quarto com


uma mesa baixa e redonda no centro, e duas cadeiras de madeira.
Tinha mais livros e frascos ali também. Um gato atravessou o
cômodo assim que entramos, malhado e arisco. Saiu correndo
assim que nos viu.
— Sente-se. — Ela indicou, se acomodando em uma das
cadeiras.

Fiz o que pediu, ficando diante dela. Sarkian ficou de pé, logo
atrás de mim.

Havia algumas coisas espalhadas na mesa. Duas velas, uma


caixa de fósforos, um baralho e uma faca.

— Estava curiosa para vê-la pessoalmente. — Ela apoiou os


cotovelos na mesa e me encarou fixamente. Seu olhar me deixou
desconfortável, mas seus olhos eram fascinantes. Não conseguiria
desviar nem mesmo se quisesse. — A poção funcionou?
— Fez efeito, mas não… completamente.

Assentiu.

— Precisa de algo mais forte.


— Algo permanente — corrigiu Sarkian, se pronunciando pela
primeira vez. A voz grave tomou o cômodo. — E que ela não precise
ficar tomando toda hora. Algo menos invasivo.

— Tenho limitações. — Ela rebateu, o fitando com certa


hostilidade. — Algo nesse nível é complexo.

— Tenho certeza de que o que te paguei servirá como


incentivo.

A mulher não gostou da resposta, e eu tive que me segurar


para não dizer ao Sarkian que não a provocasse. Ela não parecia
ser o tipo de pessoa que gostaríamos de aborrecer.
Ergyle ficou em silêncio por um momento, até que disse:

— Caídos não nasceram para se relacionarem com


humanos, sabia? Foi por isso que tudo isso aconteceu, para começo
de conversa. Foi por isso que Arawn caiu.
Quem era Arawn? E por que exatamente ele havia caído?

As perguntas estavam na ponta da minha língua, mas, então,


ela se concentrou em Sarkian.

— Trouxe o que eu pedi?


Ele deu dois passos à frente e colocou um anel na mesa. Um
anel de diamante, enorme e lapidado em formato redondo.

Ergyle pegou a joia e a analisou.


— Boa escolha. É uma bela joia.

Ergui o olhar para fitá-lo, mas Sarkian não me encarou de


volta.

Que anel era aquele? E por que precisávamos dele?


Eu estava mais confusa do que nunca.

A nymearia colocou o anel no centro da mesa.

— Preciso do seu sangue — disse de repente, me fazendo


piscar em sua direção.

Estava falando com Sarkian.


Ele não hesitou, deu um passo à frente e puxou a manga da
camisa, oferecendo o pulso. As tatuagens negras foram expostas,
fazendo contraste com a pele branca.

Sarkian nem vacilou.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela arrastou a


lâmina da faca que antes descansava na mesa em seu pulso. O
sangue negro escorreu, caindo diretamente sobre o anel.
— Do seu também.

Estava falando comigo agora.


Eu tirei os olhos do anel e a fitei. Ao meu lado, Sarkian se
agitou.

— Por que o dela? — interveio.


— Preciso de ambos — explicou. Parecia estar perdendo a
paciência. — É só um pequeno corte.
Ergui meu braço, oferecendo meu pulso.

Senti a ardência quando a lâmina passou e fiz uma


careta. Ergyle fez o mesmo corte, com a mesma faca. Mas, dessa
vez, sangue vermelho pingou por cima do anel.

Recolhi o braço, colocando os dedos da outra mão sobre o


corte.
Ela murmurou alguma coisa que eu não entendi. Então,
levantou a cabeça em um movimento brusco.

— Precisamos de um momento a sós — disse ao Sarkian.

Ele hesitou. Olhou para mim.

Tentei, de alguma forma, dizer com o olhar que estava com


tudo sob controle.
— Não se preocupe. — Ergyle disse. — Ela vai ficar bem.

Ele a lançou um último olhar antes de se virar. Sarkian


finalmente deixou o cômodo, mesmo se mostrando insatisfeito.

— De todos os caídos que já conheci, acho que nunca vi um


tão atormentado — comentou, assim que ficamos a sós.
— Por quê?

— A dor. Nunca tinha conhecido um com esse tipo de poder.


Explica a sua personalidade. Eu também seria assim se sentisse dor
o tempo todo.

— Ele não sente dor o tempo todo — retruquei. — Apenas


quando não consegue controlar e precisa internalizar.

Ela balançou a cabeça em negação.


— Ele sente dor o tempo todo — repetiu. — Mas quando
perde o controle e não pode externalizar, fica pior.

— Eu achei que…

— Ele sente dor desde que nasceu.


Aquilo me fez parar. As palavras ecoaram em minha cabeça.
Ainda estava tentando processar a informação, mas ela continuou.

— Mas piora com você porque não consegue a controlar com


facilidade. É surpreendente que você ainda esteja viva. Ele está
realmente lutando.

Engoli em seco.

Apertei o corte com mais força mas, de repente, já não sentia


mais a ardência.

— Mas eu sabia que seria assim para você, Usurpadora. —


Ela disse, com a expressão beirando a satisfeita. Um brilho estranho
no seu olhar. Quase conspiratório. — Sabia que não seria fácil. E
que seria ele.

— Por que continua me chamando assim?

Aquele era o título que o povo havia me dado quando tomei o


trono, mas ela o dizia como se fosse natural para ela. Como se
fôssemos íntimas. E como se aquele fosse meu nome de
nascimento.

— Faz muito tempo que sei sobre você. Sobre vocês.

O ar ao redor se tornou um pouco mais pesado.

As palavras de Mirvin atravessaram a minha mente.


Magia negra.

— Como assim?

Ela sorriu. Um sorriso estranho, que causou sensações ainda


mais estranhas no meu estômago.

Muito poderosa.

— Sou uma nymeria, sei das coisas. Sei sobre elas antes
mesmo de acontecerem.

Fiquei em silêncio por vários segundos. Queria sair dali, o


cômodo parecia estar cada vez menor.

Remexi-me na cadeira.
— O que mais precisa fazer? — indaguei, fitando o anel
ensanguentado no centro da mesa.

Ela voltou a se concentrar na joia, o pegou com a mão direita


e o fechou entre seus dedos. Murmurou alguma coisa que não fui
capaz de ouvir, piscou um par de vezes e, então, fechou os olhos
por completo. E quando voltou a abri-los, eu poderia jurar que, por
um breve instante, eles ficaram completamente brancos. Sem íris,
sem pupila.

Então, piscou uma última vez e abriu o punho.


O anel estava no centro de sua palma enrugada, mas não
havia mais sangue escorrendo. Agora, o diamante não era
transparente, e sim escarlate. Como se o sangue tivesse sido
absorvido pela joia.

Entreabri os lábios, em choque.


Naquele momento, ouvi o tilintar atrás de mim. Sarkian entrou
no cômodo outra vez.

— Acabou?

Ela lhe lançou um olhar, mas não respondeu.


Entregou-me o anel e, assim que tocou em minha pele, notei
que o material estava quente. Quase como se tivesse sido posto no
fogo por alguns segundos.

— Pronto. — Ela disse. — Ele vai protegê-la dele.

A escolha de palavras me fez hesitar por um segundo. Sabia


que Sarkian as escutou, ecoaram pelo cômodo de forma pesada.

Protegê-la dele.
Coloquei o anel no dedo anelar da mão direita.

— Obrigada — disse a ela, em um murmuro rouco.

Fiz menção de me levantar, até que ela perguntou:


— Não quer ver o seu futuro?

Hesitei.

Mirvin me veio à mente.

— Não — respondi.

Ela ergueu o cenho. Seus olhos tomaram um brilho diferente.

— Tem certeza?

Assenti brevemente, logo me levantando.


Mas ela pegou meu pulso, me fazendo parar no meio do
movimento. Levei um susto com o toque. Fitei seu rosto, paralisada.

Ergyle se inclinou sobre a mesa, se aproximando. E quando


falou, foi em um sussurro. Um sussurro que apenas eu fui capaz de
escutar.

— O amor de vocês vai ser o triunfo de um e a ruína do


outro.
Então, ela me soltou.
capítulo 34

Ouvi o girar da chave quando Sarkian trancou a porta. Virei-


me para encará-lo, já no centro do meu quarto.

— Tire a roupa.
Foi a única coisa que disse. Sem sorriso, sem hesitação. E
sem qualquer resquício de sugestão na voz.
O ar pesou. Eu não me movi. Na verdade, congelei.

E ele esperou.

Eventualmente, as minhas mãos obedeceram. Desabotoei o


vestido e o deixei escorregar pelo meu corpo. Logo depois, me livrei
da calcinha e do sutiã de renda preta.

Eu assisti ao prata se tornar quente, violento. Sua expressão


se transformou também.

Suas mãos enluvadas se fecharam em punhos e, então,


voltaram a se abrir.

Aquela era a primeira vez que me via nua em um quarto


completamente claro. Nas outras vezes, estávamos no breu ou à
meia luz. Ali, contudo, não havia como me esconder ou fugir.
Sarkian não disse nada por um instante, como se estivesse
sem palavras. Aquele era o único momento em que eu o via dessa
forma, arrebatado.
Eu amava aquele olhar. Estava completamente viciada,
enchia meu corpo de algo delicioso.

Nunca me considerei uma garota incrivelmente confiante com


meu corpo, tinha coisas das quais não gostava, mas a forma como o
Rei da Dor me fitava fazia com que eu pensasse que era
verdadeiramente bela.

Era como se ele estivesse diante de algo sagrado.

Completamente nua, eu o fitei do centro do quarto.

Ele se demorou no olhar, me avaliando de uma forma tão


intensa que, se fosse qualquer outra pessoa, eu correria para me
cobrir.
Mas era Sarkian, e o prata brilhava em um desejo furioso.

— É a terceira vez que estou nua diante de você e nunca vi


nada além de seu rosto e nuca — reclamei, quebrando o silêncio
grosso. — Não é justo.

Ele andou lentamente até mim, como um predador cauteloso,


e parou a um passo de distância.

— O que não é justo é você usar roupas. Deveria ser um


crime se cobrir.

Meu coração respondeu ao elogio pulando uma batida.

Sarkian começou a tirar seus anéis. De um a um, foi se


livrando deles, deixando as joias caírem no chão. Mas sem quebrar
contato visual em momento algum.
Quando terminou, começou a retirar as luvas, jogando-as aos
nossos pés quando terminou. Seus dedos longos e compridos
ficaram expostos. Ele hesitou apenas por um momento. Fitou-me,
quase como se me perguntasse se eu estava preparada. Se ele
estava preparado.

Inspirei fundo.

Então, Sarkian me tocou.

Com os dedos nus, os arrastou pelo meu pescoço. Um toque


suave, tão suave que fez todo o meu corpo se arrepiar. Ele fitou
meu rosto, procurando alguma coisa. Talvez um resquício de dor.
Mas não havia nada ali além de desejo cru. Logo voltou a observar
seus próprios dedos em minha pele, hipnotizado. Sarkian os desceu
pela minha clavícula, seguindo o rastro do osso. Então, desceu mais
um pouco.

Senti o toque na curva do meu seio esquerdo.

Fechei os olhos.

Ele circulou meu mamilo, o tornando duro como pedra.


Estremeci. Sarkian fez a mesma coisa com o outro. Meu peito subia
e descia com cada respiração pesada.
Quando retornei a abrir os olhos, ele encarava meu rosto.

Tão bonito, tão perfeito... Chegava a ser demais.


— Quero te tocar — confessei, em um sopro rouco.

Queria me jogar sobre ele. Queria absolvê-lo.


— Vou deixar me tocar. Mas me deixe fazer o que venho
sonhando... — Seus dedos desceram pela minha barriga. — Me
deixe tocar cada centímetro do seu corpo primeiro.
Foi um pedido tão honesto, tão dolorido, que não fui capaz de
resistir.

Ele fez círculos lentos na minha barriga conforme se


aproximava da pele abaixo do meu umbigo. A umidade se formou
entre as minhas pernas. Prendi a respiração quando a sua mão
desceu até o local sensível.
Ele fixou os olhos nos meus conforme me provocava. Os
dedos acariciando em volta, mas nunca exatamente lá.

Aproximou o rosto dos meus cabelos.


— Sempre tão pronta para mim... — murmurou, um tom
satisfeito e convencido na voz rouca.

Estremeci.

E, quando eu menos esperava, ele adentrou um dedo. O


choque foi tão surpreendente que todo o meu corpo reagiu. Um
gemido de surpresa deixou a minha boca e o prazer atingiu a minha
espinha.

— Tudo bem? — indagou, procurando meus olhos.


Segurei-me em seus ombros conforme ele lentamente
circulava o dedo dentro de mim.

Eu sabia sobre o que ele perguntava, estava se referindo à


dor. Queria saber se o anel de fato funcionava.
Por fim, assenti.

E vi o exato momento em que o entendimento o


bateu. Quando Sarkian finalmente entendeu que podia me ter da
forma que queria.

O prata mudou, sua pupila dilatou, e a sombra de um sorriso


perverso e sujo quebrou lentamente em seus lábios.
Ele retirou o dedo de dentro de mim e eu me senti
terrivelmente vazia. Mas, então, ele levou o mesmo até os próprios
lábios e chupou.

Meu núcleo pulsou.


— Cera... — Sarkian rosnou, com o rosto bem próximo do
meu. — Eu vou te devorar inteira.

A promessa ecoou dentro de mim como um estalo.


Eu levantei meus braços e, sem quebrar contato visual, tirei
sua capa preta, que caiu no chão ao redor de nós. Ele
permitiu. Também deixou que eu desabotoasse sua camisa. Abri os
botões, revelando a pele clara repleta de tatuagens negras. Fiquei
hipnotizada pelos desenhos, pelas linhas dos músculos. Tracei com
os dedos. Seus membros ficaram tensos com o primeiro toque, mas,
aos poucos, relaxaram.

Toquei sua pele de forma parecida como fez comigo, até


chegar na sua calça.
Eu o fitei enquanto desabotoava.

Seus olhos me encararam de volta em desafio, em desejo,


em algo beirando à dor. Mas não o tipo de dor a qual você quer
evitar.

Sarkian já estava incrivelmente pronto.

E como seu rosto, Sarkian era belo. Dolorosamente belo.


Esguio, mas com músculos sutis adornando seu corpo firme. As
tatuagens ocupavam praticamente toda a parte superior de seu
corpo.
Meus olhos vagaram pelo seu membro duro como uma
pedra.

Era impressionante.
Senti meu rosto esquentar.

Sarkian se aproximou, passando os braços a minha volta e


os descansando em minha bunda. Ele apertou, me colando contra
seu corpo. Eu senti firme contra a minha barriga, e meu núcleo
pulsou outra vez.

Então, me girou em um movimento ágil, pegando-me por trás.


Senti seu membro no começo da minha bunda.

Estremeci com a sensação.


— Pensei tanto sobre isso... — murmurou contra a lateral do
meu pescoço. — Fantasiei tanto sobre esse momento.

Joguei a minha cabeça para trás, arqueando as costas.

Deuses, como eu o queria.


— É? — indaguei, com a voz quase derretida.

— Aham. — Seus dedos brincaram com meus seios


novamente. — E decidi que vou começar gentil.
— Começar?

Rocei contra ele. Procurando. Querendo.

Sarkian xingou em meu ouvido.


— Malvada — disse, e beliscou meu mamilo com os dedos.

Soltei um gemido estrangulado.

Sarkian me girou de volta.

— Sim, começar. Você vai ficar trancada nesse quarto por


uns dias, meu amor.

Com isso, me pegou no colo. Automaticamente, enrolei


minhas pernas à sua volta. Ele me jogou na cama, me cercou como
um felino. Colocou os braços no colchão à minha volta e desceu o
corpo sobre mim. Lambeu meu pescoço, atirando prazer por todo o
meu interior. Desceu para meus mamilos, os colocou entre os
dentes. Suas mãos deslizaram.

Eu me contorci abaixo dele. Arqueei as costas.

Ele estava me torturando, brincando.

Sarkian segurou o pau próximo à minha abertura, próximo à


pele sensível e molhada. Eu engoli em seco. Ergui meus quadris,
mas ele não cedeu.

— Sarkian... — pedi.

Ele beijou meus lábios. Beijou em um misto de desespero e


suavidade que me fez derreter, me fez virar líquido puro sobre o
colchão.

— Mais uma vez — exigiu contra a minha boca.


Engoli as palavras.
E, então, soprei seu nome como pediu.

— Sarkian.

Saiu como uma prece dos meus lábios.

E, então, ele estava dentro de mim. O movimento foi lento e


fundo.
Como tudo sobre ele, Sarkian fodia com confiança,
desenvoltura e um toque de perversidade. Ele recuava e empurrava
seus quadris contra mim, ocasionalmente torturando meus seios
com os lábios.

O movimento era lento, propositalmente lento. Quando eu


sentia a tensão aumentar a ponto de quase ficar insuportável, ele ia
ainda mais devagar.
Apertei seus ombros com força.

— Sarkian...! — rosnei.

Tentei acelerar os movimentos, erguendo os quadris.


Um meio sorriso surgiu em seus lábios, seu olhar brilhou em
perversidade. Ele me levava tão perto apenas para me tirar de
lá. Agarrei seus cabelos e joguei a cabeça para trás quando ele fez
um movimento circular dolorosamente preguiçoso. Senti a fricção
em meu clitóris e fechei os olhos com força.

— Implore — soprou.

Pisquei, tentando raciocinar apesar de tudo o que estava


acontecendo com o meu corpo.
Eu não podia acreditar naquilo. Mas na verdade, podia.

Deuses, ele era cruel.

Cravei minhas unhas em seus ombros.


— Eu te odeio.

— Implore. — Ele repetiu, com a voz rasgada.


Sarkian parou de se mover. Esperou um par de segundos,
então fez um movimento circular bem lento, mais uma vez. Fechei
os olhos com força, estava bem próxima de ceder. O desejo era tão
pulsante que se tornou insuportável.

Mas, então, empurrei seus ombros, o jogando contra a cama.


Girei sobre ele, me colocando por cima.

Sarkian me fitou, os cabelos negros fazendo contraste com o


travesseiro branco. O prata brilhava em um misto de surpresa,
satisfação e fascínio.

E, claro, fome.

Seus olhos desceram pelo meu peito até o lugar em que nós
nos encaixávamos. Ele agarrou meus quadris. Mas eu me mantive
firme, não me movi. Coloquei as minhas mãos em seu peitoral e me
inclinei, aproximando o rosto do seu ouvido.
— Implore — soprei.

Demorou um instante, mas, eventualmente, um meio sorriso


perverso quebrou em seus lábios.

— Você vai pagar por isso mais tarde — devolveu, cravando


os dedos em minha carne.
— Implore.

Seu sorriso aumentou, mas seus olhos continuavam a


queimar.

E, então, o Rei da Dor cedeu.


Ele implorou.

— Por favor.

As palavras deixaram a sua boca como uma ameaça.

Sorri de volta.

E alívio atravessou o meu corpo quando finalmente comecei


a me mover. Seus olhos me fitavam como se quisessem me engolir
inteira, o que me excitava ainda mais. Ele deixou que eu me
movesse sobre ele, apenas segurando meus quadris para firmar o
movimento. E não demorou quase nada para que eu começasse a
sentir o orgasmo chegando.

Sarkian apanhou meu seio esquerdo com uma das mãos e


xingou.

— Cera.

Torceu o mamilo e isso foi o suficiente para o estalo final.

Gemi alto quando a sensação explodiu dentro de mim. Tão


forte que joguei a cabeça para trás e meus olhos rolaram em um
prazer violento.

Eu ainda estava sentindo os espasmos de prazer quando


Sarkian acelerou o movimento. Indo mais forte, mais fundo. Sua
mão deixou o meu seio e agarrou o meu cabelo, puxando os fios e
forçando a minha cabeça para trás. Eu o senti tremer sob mim, e ele
ergueu o tronco. Seus dentes encontraram o meu pescoço exposto
e ele rosnou contra a minha pele quando gozou.

— Minha.

Nós ficamos daquele jeito por um momento. Ele dentro de


mim, a respiração contra o meu pescoço. Os dedos agarrados em
meus fios e meus olhos fechados.
Meu peito subia e descia com força, cada batida chamando
seu nome.
Com o rosto enterrado na curva do pescoço dela

pela primeira vez


ele sentiu o monstro dentro de si

ficar um pouco menos barulhento


capítulo 35

Assim que acordei, notei seu olhar sobre mim. Sarkian estava
de barriga para cima, com o rosto virado para o lado, em minha
direção. Eu tinha a cabeça apoiada em seu braço esticado.

Lá fora, o sol havia descido. O quarto estava no breu, devia


ser de madrugada.
Pisquei um par de vezes, ajustando a visão.

— Você está encarando — acusei, em um murmuro rouco.

Ele não se afetou. Inclusive, seus olhos desceram para os


meus seios que, então notei, estavam expostos. Puxei o lençol para
cima, tentando me cobrir, mas Sarkian impediu o movimento. Tirou o
material de cima de mim, deixando a minha pele nua.
— Estou com frio — reclamei.

Não era totalmente mentira. Estava, sim, um pouco frio,


porém eu não o sentia.
— Você tem a mim. — Ele me puxou um pouco mais para
perto pelo quadril. — Calor humano.

Soltei uma risada abafada, prestes a retrucar que,


tecnicamente, ele não era humano. Mas, então, sua expressão
mudou, se tornando avaliativa, curiosa. Um pouco fascinada
também.
— O que foi? — indaguei, confusa.

— Você está rindo — respondeu, olhando para a minha boca,


como se isso explicasse tudo.

— Você disse algo engraçado.

— Nunca te vi rir assim.

— Como?

Sarkian fitou meus olhos, sério.

— De perto. Por minha causa.

Pensei naquilo por um momento. E ele estava certo. Sarkian


não me fazia rir, me fazia querer matá-lo. Fazia-me querer arrancar
meus próprios cabelos, querer chorar.

Não disse isso em voz alta, mas não precisava. Poderia


apostar que estava pensando naquilo também.
— Eu não rio muito — quebrei o silêncio, finalmente.

— Só a vi rindo um par de vezes, com aquele merda de


Miscam. Quis matá-lo.

— Bem, quase o matou.

— Deixei uma pequena cicatriz — retrucou. — Ele está bem.

Sarkian começou a brincar com os meus mamilos, traçando


círculos preguiçosos com os dedos. Meu corpo instantaneamente
respondeu ao toque, se arrepiando por inteiro.
— Há quanto tempo está acordado?

— Uma hora. Talvez duas.


— Nem amanheceu, então você mal dormiu.

— Eu cochilei.

— Você não dorme? Tipo, você não precisa dormir como…


nós?

Ele sorriu. De verdade. E meu coração pulou uma batida.

— Durmo. Quando estou sozinho.

Semicerrei os olhos.

— Está dizendo que eu te atrapalho?

— Você ronca.

— Mentira.

— Mentira. — Ele concordou, confessando. — Estava


esperando você acordar para resolvermos isso.

— Isso o quê? — indaguei.

Sarkian puxou meu corpo ainda mais para perto. Senti a


ereção dura como pedra contra a minha coxa.

— Ah. — ofeguei, surpresa.

Ele desceu a mão pela minha barriga.

— Acha que podemos resolver isso? — Eu assenti devagar à


sua pergunta, meu rosto ficando quente. — E como quer fazer isso?

— Na minha boca.

Eu mal acreditei que aquelas palavras saíram dos meus


próprios lábios. Mas Sarkian fazia isso comigo, me tornava mais
ousava, me fazia querer chocá-lo.
E eu consegui.

Achei que Sarkian fosse engasgar. Nunca o tinha visto tão


deliciosamente surpreso.

O prata brilhou em algo obscuro. Perigoso.

— Porra — murmurou com a voz rasgada, aproximando o


rosto do meu —, você vai ser a meu fim.

Eu comecei o beijando no queixo. Então, fui descendo pelo


seu peito coberto de tatuagens, que subia e descia com a
respiração forte. Quando cheguei próximo de seu umbigo, meus
seios nus roçaram em seu membro duro. Sarkian xingou.

Sorri internamente.

Alcancei a base da sua barriga dura, seguindo os traços dos


músculos. Sarkian colocou a mão direita na minha cabeça, os dedos
se enrolando nos fios. A sensação em meu couro cabeludo atirou
correntes de prazer pelo meu corpo. Parei quando finalmente
cheguei em seu pau e olhei para cima.

Ele tinha os olhos fixos em mim. Vidrados.

Terrivelmente belo.
Uma sobrancelha lentamente se ergueu, em uma expressão
beirando a desafiadora.

Bastardo arrogante, pensei.

Soprei sobre a cabeça, então a beijei delicadamente. Seu


rosto vacilou e seu abdômen tremeu abaixo de mim. Sua jugular se
moveu quando engoliu em seco.
Por fim, o coloquei na boca, lentamente me ajustando ao seu
comprimento e fazendo o possível para tomá-lo por inteiro.

Um som rouco deixou a sua garganta quando sua cabeça


caiu para trás.

Comecei a lambê-lo e a chupá-lo. No início, mais lento, até


que peguei um ritmo. Eu fitava o seu rosto, fascinada. Cada
movimento que eu fazia com a minha língua e lábios o fazia reagir.
Sentia-me sentia no controle, sentia que eu o estava enlouquecendo
e aquilo era enervante.

— Cera... — Ele soprou, segurando meus fios entre os dedos


com mais firmeza.

Eu não tinha experiência naquilo, fazia apenas me baseando


em suas reações. Me guiava pelo seu corpo. E aparentemente
estava funcionando.
Como se fosse possível, ele parecia ainda mais duro em
minha boca. Senti o pulsar entre as minhas pernas. Eu já estava
molhada, podia sentir. Desci a minha mão direita pelas coxas,
procurando meu próprio alívio. Mas meu toque congelou assim que
chegou à pele sensível.

— Para. — Sarkian ordenou, com a voz rouca de desejo,


mas, ainda assim, firme.
Afastei a minha boca e pisquei em sua direção. Seus olhos
estavam mais escuros do que nunca. Ele se ergueu dos
travesseiros e me puxou para cima.

— Fique de quatro.
Hesitei apenas por um segundo antes de apoiar meus joelhos
e palmas no colchão, de costas para ele. Minha respiração era
entrecortada e meu coração batia em antecipação.

Sarkian se posicionou atrás de mim.

— Eu quero um quadro seu assim para poder olhar todos os


dias pelo o resto da minha vida. — Senti seus dedos pela minha
bunda, traçando caminho até o local que pulsava. — A Grande
Rainha de Umbra de quatro para mim.

Fechei os olhos quando senti a cabeça do seu membro na


minha entrada. Um gemido deixou a minha garganta. Com uma
mão, ele segurou o meu quadril e com a outra, arrastou o pau pela
minha entrada molhada, circulando preguiçosamente.

Deuses.
Eu movi meus quadris descaradamente. Desesperada.
Empurrei em sua direção, buscando.

— Sarkian... — soprei.

— Sim, minha querida?

Gemi em resposta.
E ele continuou o movimento.

Engoli em seco.

— O que você quer? — perguntou, com a voz falsamente


doce.
Eu estava vendo estrelas. Estava tão fora de órbita que diria
qualquer coisa.
— Quero você dentro de mim — confessei.

Sarkian não hesitou. Assim que as palavras deixaram a


minha boca, eu o senti me preencher fundo.

Um som estrangulado deixou minha garganta. Apertei os


lençóis entre os dedos. Ele se inclinou sobre mim, seu peito
praticamente colando nas minhas costas, e suas palavras sopraram
em meu cabelo:

— Era isso o que queria?

Eu quase podia escutar o sorriso sujo em sua voz.

Gemi.

Precisava que ele começasse a se mover.

— Não escutei — provocou.

— Sim. — engasguei.

Ele depositou um beijo na minha coluna antes de segurar


meus quadris e começar a se movimentar. Não demorou para que
tomasse velocidade, um ritmo constante e forte. Segurei-me
firmemente na cama conforme gemia todo o tipo de coisa.
Gritei seu nome quando o ápice me atingiu, terrivelmente
rápido.

Mas Sarkian não parou. Muito pelo contrário, empurrou mais


um par de vezes quando trocou de posição. O ar deixou meus
pulmões quando bati as costas no colchão diante do movimento
ágil. O Rei da Dor se encaixou entre as minhas pernas, apoiando as
mãos na cama ao lado da minha cabeça, e não hesitou ao adentrar
em mim com força. Meu interior já estava sensível do orgasmo
recente e eu me contorci abaixo dele.

Suas pupilas estavam dilatadas e seus lábios, entreabertos.


Sua expressão era obscura, violenta.

A sua mão direita deixou o colchão quando ele levou os


dedos até meu pescoço. Sarkian apertou. Não o suficiente para me
enforcar, mas foi o suficiente para me fazer abrir a boca e arfar.

Ele afastou e empurrou o quadril mais rápido e mais forte.


Fechei os olhos, agarrando o braço que me prendia pelo pescoço.
Eu estava tão sensível que a fricção doía. Mas, conforme as
estocadas ritmadas aceleravam, a dor se transformou em prazer
novamente.

Um gemido estrangulado deixou meus lábios quando ele me


fez gozar mais uma vez.

Sarkian quebrou logo em seguida.

— Cera...— rosnou, empurrando uma última vez com força.

Então, caiu sobre mim. A respiração forte soprando contra


meu peito e os cabelos negros fazendo cócegas em minha pele.
Sua mão afrouxou em meu pescoço, mas não soltou por completo.
Ele abocanhou meu seio e o colocou entre os dentes enquanto os
últimos choques de prazer ecoavam em seu corpo.

Pus meus braços em volta dele.


Eu conseguia sentia a sua pulsação reverberando em meu
corpo.
Depois de um instante, sua respiração se regulou e Sarkian
saiu de dentro de mim, caindo ao meu lado. Fitou o teto, e eu
observei seu perfil bonito. Estava suado como eu, alguns fios de
cabelo molhado colados em sua testa.

Nós não falamos nada por vários segundos. Até que eu


quebrei o silêncio.

— Desde aquela noite em que o encontrei na festa de…


sexo, me perguntei como você seria na cama. Me perguntei que tipo
de coisa você gostava.
Ele virou o rosto para mim. Não disse nada, apenas me fitou
com interesse.

Engoli em seco, me perguntando se ficaria a marca de seus


dedos em volta do meu pescoço. Não que eu me importasse.

— Gosta daquele tipo de coisa? Gosta mais… violento? —


indaguei, com certa dificuldade. — Chicotes. Algemas.

A pergunta pareceu diverti-lo. Sarkian deu de ombros.


— Não desgosto.

— Então, gosta — concluí.

— Sim. Mas não é só disso que gosto.


— Do que você gosta?

— De você.

— Estou falando sério.

— Eu também — retrucou tão seriamente que me fez recuar.


Ele se virou, apoiando o cotovelo no colchão, e me fitou.

— Gostava dessa forma com outras mulheres porque, às


vezes, precisava de algo para tornar as coisas mais… interessantes.
Mas não preciso disso com você. Você me deixa interessado o
suficiente.

Meu rosto esquentou, assim como meu ridículo coração.


— Já fez sexo com muitas mulheres?

— O suficiente.

— Não tem um número?

Ele balançou a cabeça, negando.

— E você?

— Nunca fiz sexo com nenhuma mulher.

Ele sorriu levemente, irônico.

— Engraçada. Responda à pergunta.

— Theon, meu ex-marido.

O sorriso deixou seu rosto.

— Deuses, como eu gostaria de tê-lo matado.


— Não se preocupe, ele sofreu o suficiente.

Estava claro que havia sido um erro trazer o nome de Theon


à conversa. O humor de Sarkian mudou visivelmente.

— Por que dizem que os caídos são amaldiçoados? —


indaguei, mudando de assunto.
Estava curiosa para saber sobre aquilo há tempos.

— É o que reza a lenda — respondeu. — Os Deuses nos


amaldiçoaram.

Franzi o cenho.

— Achei que não tivessem Deuses.

— Temos. Bem, pelo menos alguns de nós têm.

— E por que foram amaldiçoados?

Ele inspirou fundo e soltou o ar devagar. Voltou a olhar para o


teto por um instante.

— Reza a lenda que morávamos nos céus, com os Deuses.


Mas, então, um caído se apaixonou por uma humana. Ela não podia
subir aos céus, por isso, ele abriu mão de tudo e, sem a permissão
dos Deuses, caiu para ficar com ela. Os Deuses castigaram todos
os abençoados, como éramos considerados antes. Não perdemos
os poderes, mas fomos proibidos de ficar nos céus e fomos
amaldiçoados.

— Amaldiçoados como?
— Amor eterno.

Franzi o cenho.

— Isso é uma maldição?


Ele me fitou. E a sombra de um sorriso atravessou o seu
rosto.

— A mais cruel delas.


Recordei-me de Willow, da forma como ela havia me falado
sobre o homem que morreu amando.

Fitei Sarkian em silêncio por um instante. O seu desejo por


mim era claro. Mas será que aquilo poderia ser um sinal de que
havia tido um illyrium por mim?

Assim que o pensamento me atingiu, tive vontade de rir de


mim mesma.

Era claro que não. Na maior parte do tempo, eu não sabia


nem se Sarkian de fato gostava de mim. Ele me odiava na mesma
proporção que me desejava. Um illyrium não podia ser assim.

Então, um pensando terrível me tomou: será que ele já havia


tido por alguém? O ciúme me corroeu.

Afastei aquilo da cabeça.

— É por isso que a nymeria disse que caídos não deveriam


ficar com humanos — comentei. — Arawn era o nome dele, não é?
O que caiu pela mulher.

“Caídos não nasceram para se relacionarem com humanos,


sabia?”

“Foi por isso que tudo isso aconteceu, para começo de


conversa.”
“Foi por isso que Arawn caiu.”

Sarkian assentiu.

O silêncio recaiu sobre nós mais uma vez. As mãos de


Sarkian desceram pelo meu quadril, acariciando distraidamente em
movimentos circulares. Era como se agora que finalmente podia me
tocar, não queria parar.

— O que ela pediu em troca disso? — indaguei, fitando o


enorme anel escarlate no meu dedo.

— Um navio e mais um pouco.


Eu arregalei os olhos.

— Um navio? Um navio inteiro?

— Bem, minha querida, eu não poderia lhe dar a metade de


um navio.

Ignorei o seu sarcasmo, chocada demais.


Fitei meu anel mais uma vez, observando a joia reluzir
conforme movia meus dedos.

Um navio inteiro em um único dedo.

— Ela é bem gananciosa — murmurei. — E poderosa.

— Sim. — Sarkian concordou. — Mas talvez não tão


inteligente. Poderia ter conseguido mais.

Voltei a fitá-lo.

— Você pagaria mais do que um navio? — indaguei, depois


de piscar em choque. — Dois?

Ele assentiu sem hesitar.


— Três?

Sarkian assentiu mais uma vez, um sorriso lento e contido


abrindo em seu rosto. Mas algo me dizia que estava falando sério.
— Não seja ridículo... — Franzi o cenho. — Até onde iria?

Sua palma espalmou a minha bunda, e ele a apertou. Meu


corpo reagiu instantaneamente.

— Não quer saber.


Eu estava prestes a abrir a boca, mas, então, Sarkian me
puxou como se eu não pesasse mais que uma pena. Colocou-me
em seu colo e eu o senti duro abaixo de mim outra vez.

Ergui o cenho em sua direção, surpresa.


Minha expressão pareceu diverti-lo.

— Só planejo parar quando você disser que não aguenta


mais.
— Vamos ficar aqui por um tempo, então — murmurei contra
seus lábios.

Senti o seu sorriso contra minha boca quando ele me beijou.

Mirvin permaneceu na sala mesmo depois que o conselho se


retirou. Estávamos discutindo como seria a administração com a
aquisição de metade de Alodias.
Como Khrovil havia vencido o exército inimigo sem muito
esforço na outra fronteira, Sarkian não perdeu muitos soldados.
Wullfric dividiu seu exército, mas concentrou a maior parte na
fronteira com Umbra. Khrovil perdeu provavelmente menos da
metade de soldados que eu, então o rei não se importou que eu
ficasse com uma maior quantidade do exército de Alodias que havia
sobrevivido.
— O que o Rei Sarkian fez no campo de batalha? — Mirvin
perguntou, assim que ficamos a sós, tirando meus pensamentos da
nova administração.

— Como assim?
Batia meus dedos sobre a mesa de madeira maciça. A ponta
das minhas unhas fazendo barulho conforme se chocavam com a
superfície.

— Ouvi rumores. — O velho respondeu, simplesmente.

Meus dedos pararam sobre a mesa. Semicerrei os olhos.

— Que rumores?

Mirvin demorou um momento para falar. Eu odiava quando


ele fazia isso.

— Que ele fere as pessoas. Com a mente. — Houve uma


pausa. — É verdade?
Minha mente voltou para o campo de batalha, para os
homens caindo à nossa volta. E não foi preciso, sequer, um toque
de Sarkian.
— Sim.

Minha voz saiu resistente, distante.


— Ele é um caído.

Não foi uma pergunta, era uma afirmação. Mas Mirvin me


encarava como se esperasse uma resposta.
Assenti devagar.
Ele não disse nada, sua expressão nem vacilou. Mas notei
seus velhos e sábios olhos mudarem.

— Ele fez para me proteger. Salvar a minha vida. — Senti


como se precisasse me explicar. Como se precisasse defendê-lo.
— Ele se expôs. Seus soldados sabem. Eventualmente, seu
povo todo vai saber.

— Khrovil ganhou uma guerra conosco. Aceitaram ele.


Aquilo não era totalmente verdade. Ainda assim, o povo tinha
receio. Não o havia aceitado, o havia suportado devido às
circunstâncias.

— Antes de saberem que era um caído. Quando o Grande


Rei souber, talvez nem ele aceite. — Mirvin desviou o olhar por um
instante. — Um caído como um rei... Sabe o que isso quer dizer.

Eu sabia.

Porque foi assim que tudo havia começado. Foi assim que a
exterminação deles havia se iniciado. Eles eram abençoados na
visão dos humanos, tão poderosos que a maioria eram reis e
rainhas, mas nem todos souberam dosar seus poderes. Alguns
tornaram-se tiranos. Um caído por si só já era poderoso, mas um
caído rei era praticamente invencível. A revolução ocorreu depois de
muitos humanos terem sido abusados e assassinados por eles. O
jogo virou quando os homens viram que eram maioria e que caso se
juntassem, tinham chances.
Depois da revolução, nenhum caído jamais havia se tornado
rei outra vez.
— Está apaixonada?

A pergunta me pegou de surpresa. Ecoou pelo cômodo e


pesou o ar.
Demorou um instante, mas eventualmente respondi.

Balancei a cabeça em negação.


Porque eu era uma mentirosa. E porque tinha vergonha.

Amar Sarkian Varant era meu segredo sujo. Era minha


própria maldição.

— Que bom. Então, será mais fácil.

— Mais fácil o quê? — indaguei.


— Se afastar.
capítulo 36

Sarkian iria embora naquela tarde.

Havia se passado três dias da nossa vitória. Seu exército já


estava pronto para a retirada, os homens feridos já tinham se
recuperado o suficiente para a viagem.
Eu fui solicitada no salão principal, aparentemente uma
quantidade considerável de soldados havia arrumado algum tipo de
confusão.
Sem o general, as coisas estavam saindo um pouco de
controle. Eu precisava urgentemente achar alguém capaz e de
confiança para tomar frente do meu exército.

Cruzei o corredor a caminho do salão principal quando me


deparei com Vitrah.
Parei ao vê-la.

Ela usava calça de couro e uma blusa escura, os braços bem


definidos expostos. Carregava uma lâmina na cintura.
Nossos olhos se encontraram, e ela fez uma reverência com
a cabeça quando me aproximei.

A noite em que ela havia se transformado em uma pantera no


jardim do Grande Rei surgiu em minha mente. Ela me perseguindo
noite adentro, o medo que eu senti... E, agora, ela estava dentro do
meu palácio.

Uma parte de mim desejava mandá-la para forca. Ou, talvez,


colocá-la cercada de felinos para ver por quanto tempo sobreviria.

Mas, felizmente para ela, a minha curiosidade superava meu


desafeto.

— Você era o corvo na minha sacada.

Ela me fitou com aqueles fascinantes olhos negros. Não


negou nem afirmou, mas não era preciso.

— Você consegue se transformar em qualquer coisa?

A mulher hesitou em responder, mas não demonstrou


surpresa em sua expressão, que permanecia dura. Imaginava que
nunca havia sorrido na vida.

— Praticamente.

Aquilo me impressionou. Imaginei as possibilidades.

— A qualquer momento?
— Sim. Mas precisa ter um espaço de tempo.

— Por quê?

Ela inspirou devagar. Não queria estar tendo aquela


conversa, era claro. E isso só tornou o interrogatório mais prazeroso
para mim.

— Porque dói como o inferno. E é cansativo. Quanto mais


tempo como animal eu fico, mais cansada e pior me sinto quando
volto.
Torci a cabeça levemente para a direita ao fitá-la.

— Tem algum animal… favorito?

— A pantera é como geralmente me apresento.

— Por quê?

— Foi o primeiro animal no qual me tornei. E é extremamente


forte e ágil, então me torna útil para o rei.

— Ou como um corvo. — Ergui uma das sobrancelhas. —


Um gato, talvez.

Aquela noite. Meu colar.

Havia sido ela.

Vitrah não respondeu mais uma vez. Notei sua expressão


vacilar ao resistir a vontade de desviar o olhar.

— Por quê? — indaguei. — Por que está me observando?

— Não tenho nenhum interesse particular em sua majestade.


Só faço o que mandam.

Assenti.

Claro.

— Por que ele mandou que me vigiasse?

A mulher não respondeu por vários segundos, e não imaginei


que o faria. Não uma resposta honesta, pelo menos. Ela não diria
nada de confidencial em relação ao Sarkian. Sua lealdade era muito
clara.

Até que, por fim, disse:


— Você já deveria saber a resposta para essa pergunta.

Vitrah fez uma reverência e se retirou, me deixando lá, com


as suas palavras ecoando em minha cabeça.

Tentei não me deixar abalar conforme seguia para o salão


principal. Quando entrei, me deparei com seis homens. Estavam
alinhados, em posição. Quatro soldados de Umbra à direita e dois
de Khrovil à esquerda. E, com exceção de um, todos tinham
machucados nos rostos. Machucados recentes, sangue seco em
seus lábios e sobrancelhas. Não era da batalha que havia ocorrido
três dias atrás.

Eles fizeram reverências quando entrei.

— O que aconteceu?
O homem sem ferimento se pronunciou. Era um soldado
meu, de cabelos loiros que chegavam aos ombros.

— Uma briga eclodiu no pátio de treinamento — respondeu,


dando um passo à frente. — Tem mais uma dezena de homens
envolvidos, mas foram esses que iniciaram, Majestade.

Observei os cinco homens. Alguns fitaram o chão diante do


meu olhar.

— Brigando entre si? — indaguei, com a voz fria. — Foram


para um campo de batalha juntos. Esqueceram quem são seus
verdadeiros inimigos?
— Eles começaram, Majestade. Fomos insultados! — Um
dos soldados de Khrovil se justificou, não usava máscara, apenas o
uniforme negro. Um de seus olhos estava tão inchado que mal
abria.

— Não é insulto quando é verdade — retrucou um dos meus


homens. Sua sobrancelha estava rasgada, sangue fresco se
acumulava acima do olho.

O outro soldado de Khrovil ameaçou a dar um passo à frente


em sua direção.
— Repita, seu…!

— Calem a boca! — exclamei alto o suficiente para minha


voz ecoar por todo o salão principal.
Todos eles pararam, se voltando para mim com olhares
surpresos.

— Qual foi o motivo? — perguntei aos homens de Sarkian. —


O que foi dito?

O soldado com um dos olhos inchados cerrou os dentes


dentro da boca. Silêncio tomou o ambiente por um instante antes
que finalmente falasse:

— Eles disseram que não lutariam ao lado de homens que


batalhavam por um rei amaldiçoando. Que iríamos todos para o
inferno junto dele.
Olhei para os meus homens.

— Isso é verdade?

Eles não disseram nada e o silêncio foi a confirmação para a


minha pergunta.
Dei dois passos à frente, me aproximando dos meus
soldados. Com a voz mais baixa e controlada, disse:

— Vocês fazem o que eu mandar que faça. Lutam com quem


eu mandar que lutem. — Então, fui até os homens de Khrovil. Com
o silêncio violento, o barulho dos meus sapatos no piso era o único
som que ecoava pelo enorme salão. — E vocês não atacam meus
soldados em seu próprio reino.

Apesar da raiva ainda palpável, nenhum deles ousou


discordar.

— Os cinco serão responsáveis por limpar os estábulos nas


próximas horas. Juntos. E se eu ouvir de qualquer briga ou, sequer,
um desentendimento verbal, cada um de vocês terá um dedo a
menos ao fim do dia.

Deixei o salão impacientemente, com aquela sensação


horrível se apossando do meu corpo.
Mirvin estava certo.

E, por mais que eu já soubesse disso, havia a pequena parte


otimista e inocente de mim que ainda queria acreditar que, talvez,
houvesse uma outra solução.
Mas não havia.

Eu sabia o que teria que fazer.


E sabia ainda melhor como aquilo iria me quebrar.
Eu estava no meu escritório quando Sarkian apareceu. Eu já
esperava que o fizesse. Seu exército estava se aprontando do lado
de fora e, em breve, iriam embora. E ele não partiria sem antes me
ver.
— Fiquei sabendo do que houve entre os soldados — disse
ao fechar a porta atrás de si.

O cômodo não era pequeno, possuía uma mesa comprida de


madeira maciça, algumas estantes e uma lareira com duas
poltronas posicionadas à frente. Mas pareceu minúsculo quando
Sarkian entrou.

— Eles foram devidamente repreendidos — informei, me


levantando da cadeira e dando a volta na mesa.

Os ombros de Sarkian se movimentaram suavemente em um


gesto quase imperceptível. Ele não parecia se importar muito com a
questão.

Parei em frente à mesa e apoiei a base das costas na


madeira.

— Não está preocupado?


— Com o quê? — Ele devolveu, parando no centro do
cômodo.

— Com o que aconteceu em batalha se espalhar até Khrovil.


— Alguns já sabem — respondeu, com um tom casual. —
Desde que comecei a lutar na adolescência, muitos dos meus
soldados testemunharam cenas parecidas. Eventualmente, todos
saberão.
Sarkian já esperava por aquilo.
— Sempre soube que isso aconteceria — concluí, surpresa.
— Não tem medo das consequências?

— Medo? — Um pequeno sorriso quebrou em seus lábios


quando balançou a cabeça, como se o que eu disse fosse motivo de
piada. — Não.
— Tem um plano. — Era para soar como uma pergunta, mas
as palavras deixaram meus lábios como uma afirmação.

Claro. Sarkian sempre tinha um plano.

— Passei boa parte da minha vida arquitetando para tomar o


trono. — Ele deu alguns passos à frente, fechando a distância entre
nós. Eu não podia recuar devido à mesa atrás de mim. — Acha que
não pensei em todas as consequências e possibilidades depois que
me tornasse rei?

Ele tinha os olhos na minha boca. Não parecia estar muito


focado na conversa, seu interesse estava concentrado em meus
lábios.
Sarkian me cercou, colocando as mãos sobre o tampo da
mesa ao lado do meu corpo. Eu recuei um pouco o tronco, mas ele
se inclinou. Seu cheiro me rodeou.

Meu coração já batia enlouquecidamente.

— Além do mais — murmurou contra meu cabelo —, Khrovil


é mais flexível em relação aos caídos.

Então, encerrou o assunto beijando a minha jugular. Fechei


os olhos, sentindo meu corpo inteiro reagir. Os cabelos na minha
nuca se arrepiaram. Seus beijos começaram a descer para o meu
decote. E, com um dos joelhos, separou as minhas pernas.

— Para... — arfei, e seus lábios congelaram onde estavam.


— Por favor.

Demorou um segundo para que ele recuasse. Quando seus


olhos regados em desejo fitaram os meus, indagou:

— Por quê?

Engoli em seco.

Deuses.

Eu o queria. Não conseguia parar de pensar naquelas horas


que tivemos juntos, estava viciada nele. Era difícil renunciar a algo
que havia te consumido por inteira. Minha cabeça, meu corpo, meu
coração... Eu não sabia como nem quando, mas Sarkian Varant
havia tomado tudo para si.
Ele pegou meu queixo entre os dedos e ergueu a minha
cabeça, alinhando com a sua. O prata avaliou o meu rosto com uma
atenção desconcertante.

— O que há de errado?

— Umbra não é — soltei, finalmente.


Ele piscou, os longos cílios negros se movimentando em
confusão.

— Não é o quê?

— Não é tão flexível em relação aos caídos — expliquei, me


remexendo sobre a mesa. — Meus soldados viram que é um caído.
Vão contar às suas esposas e suas esposas vão contar para suas
amigas e familiares. Logo, o povo todo vai saber o que é. Pode ter
nos auxiliado com uma vitória, mas eles…

Os dedos de Sarkian deixaram meu rosto.

— Me veem como um monstro.

— São conservadores — retruquei.

Sarkian deu um passo para trás, tornando tudo mais fácil


para meu cérebro, porém, mais trágico para o meu coração.

— O que exatamente está me dizendo, Cera?

O silêncio pesou.

Tudo em meu corpo dizia para jogar meus braços a sua volta
e deixar que me consumisse. Deixar que me arruinasse.

Eu queria dizer as palavras, mas não parecia ser capaz. Mas


não era como se eu precisasse. Eu conseguia ver em seus olhos.

O entendimento cruel.

— Não podemos — finalmente quebrei a quietude.

Sua expressão mudou. Era sutil, mas eu o conhecia o


suficiente para ler cada pequeno movimento. O prata me dizia as
coisas que sua boca se negava. E, naquele momento, havia uma
mistura de raiva e ressentimento.

— Entendo — respondeu ao recuar mais dois passos.

Mas não parecia que ele, de fato, entendia.

— Eles nunca vão nos aceitar. Você é inimigo do meu povo.


— Sou o seu?

Aquela pergunta por si só era perversa. Depois de tudo o que


tinha acontecido entre nós, como ele tinha a coragem?

— Não — respondi prontamente. — Sabe que não.

Colocou as mãos nos bolsos da calça preta e fitou o chão por


um par de segundos.

— Sabe — disse, com aquele tom que eu já conhecia muito


bem. O tom que antecedia a crueldade. E, então, voltou a me fitar
—, de todas as coisas, nunca pensei que fosse covarde.

Cerrei os dentes dentro da boca, resistindo ao golpe.

— O que espera que eu faça?! — indaguei, dando um passo


à frente. — Que coloque minha imagem na linha? Que renuncie
meu povo? Pelo quê?

Parte de mim queria que ele dissesse alguma coisa. Que se


declarasse, que me pedisse para lutar porque nós valeríamos a
pena.

Queria que ele dissesse que me amava. Queria que ele me


desse uma razão ou qualquer resquício de segurança para lutar.

Mas Sarkian não disse nada, apenas me fitou com um olhar o


qual não fui capaz de ler.

Até que jogou a cabeça para trás ao se virar de costas. Deu


alguns passos lentos pelo cômodo, achava que tinha fechado os
olhos por um instante.
— Pelo o quê? — repetiu em um sussurro sarcástico que
quase não fui capaz de ouvir, talvez apenas para si mesmo. Sua voz
suave e rouca ecoou pelo cômodo. Havia um tom melancólico ali.

Senti meus olhos ameaçarem a lacrimejar. Algo se formou


dentro da minha garganta.

Eu sabia que Sarkian me desejava. Daquilo, eu não tinha


dúvidas. Seus olhos e seu corpo me diziam o tempo todo, até
mesmo quando ele parecia lutar contra. Sabia como isso o
consumia da mesma forma que fazia comigo. Mas eu não tinha ideia
quanto ao resto. Às vezes, ele me olhava de uma forma que me
fazia pensar que eu era sagrada. Mas, ao mesmo tempo, era tão
fechado que eu não conseguia me imaginar sendo capaz de
adentrar por todas aquelas camadas. Seu coração me parecia tão
distante, tão incansável.

E como eu poderia esquecer de todas as vezes que havia me


feito sofrer? Deixou-me amarrada durante uma madrugada inteira,
ameaçou me matar mais de uma vez, me fez literalmente andar
sobre o fogo, tirou a vida de Willow na minha frente... Ele era tão
imprevisível.

Ameaçava me matar e, logo em seguida, salvava a minha


vida.

Farren.

O apelido me veio à mente.

Insignificante.

Eu não havia chegado até ali para colocar tudo na linha por
um sentimento nebuloso.
Não arriscaria meu reinado por um homem. Mesmo que fosse
um homem que eu amava ardentemente.

Eu sempre soube que teria que abrir mão de várias coisas


quando tomasse o trono. E no fim das contas, amor era uma delas.

Mas continuei:
— Somos rei e rainha, Sarkian. Não escolhemos com quem
ficamos e não vivemos felizes para sempre.

Ele abaixou a cabeça e se voltou para mim, ainda com as


mãos nos bolsos.

— Está certa. Isso nunca foi um conto de fadas, não é? —


Sorriu brevemente, mas o gesto não atingiu seus olhos. — Sempre
soubemos qual papel eu fazia na sua história. O vilão, certo?

Sim.

O meu vilão. O meu herói. A minha maldição. A minha ruína.

Ele era tudo isso no formato de um homem.

— Se estivesse no meu lugar, o que você faria?


Sarkian escolheu o silêncio. E isso me disse tudo o que eu
precisava ouvir.
A Usurpadora de Sangue jamais saberia
as palavras que saíram da boca do Rei da Dor

naquele dia em Vadronia


Logo após o torneio

quando brigaram embaixo da chuva


O céu chorando acima deles

astak var kela langar

kare ver ihala far quafar

Se você ao menos soubesse

o quanto eu queria poder te tocar agora


capítulo 37

O soldado de cabelos loiros na altura dos ombros fez uma


reverência perfeita após atravessar a porta do grande salão. Passou
os olhos pela mesa onde sentava apenas eu, Vesper e Allegra. E
não pude deixar de notar que hesitou por um instante quando seus
olhos chegaram até ela. Mas foi apenas um segundo antes de fixar
o olhar em mim.

— Mandou me chamar, Majestade?


— Tem vinte e quatro anos, certo, Matteo?

O jovem pareceu surpreso com a minha pergunta.

— Sim.
— É um tanto jovem para ser encarregado de seu próprio
pelotão.

Ele não respondeu, visto que nem era uma pergunta, mas
pareceu desconfortável. Seu olhar desviou por um momento para o
chão.
— Me informei sobre você. Entrou para o exército aos
dezesseis. Lutou em quatro batalhas, contando com a de Niverville.
Na segunda, em Ralsgrove, salvou mais de cinquenta homens de
caírem em uma armadilha. Foi premiado e ficou encarregado do
pelotão 9. Tinha vinte e um anos na época. — Cruzei os dedos das
mãos em meu colo e ergui o cenho em sua direção. — É um tanto
impressionante.

A pele clara de suas bochechas se tornou levemente


vermelha.

— Só fiz o meu trabalho, Majestade.


— Claro — assenti, observando-o —, e fez muito bem-feito. E
é por isso que queria te promover a general.

Seus lábios entreabriram em surpresa.


— E não a qualquer general — continuei. — Sabe que o
General DeLarosa faleceu em batalha, lutando bravamente. Ele era
meu chefe de exército. Participava do conselho, tomava frente em
batalhas e mantinha os homens em ordem, assim como também me
mantinha informada das questões mais importantes. Preciso de
alguém para substitui-lo na posição e acho que você pode ser uma
boa opção. Acha que estou certa? Acha que pode fazer isso?

Ele piscou um par de vezes, em incredulidade.

— S-seria uma honra, Majestade — disse, assentindo


veemente.

Não era apenas seu desempenho que havia me chamado


atenção. Era a sua postura, seus olhos. Eu enxergava uma pureza
em sua expressão que não via há muito tempo, um senso de honra
e moral que não se encontrava em qualquer lugar. Claro, eu não o
conhecia. Podia muito bem estar errada e me precipitando, mas eu
realmente duvidava disso.
Matteo fez uma reverência depois que o dispensei. Mas antes
de sair, seus olhos pousaram em Allegra mais uma vez. Fitei minha
amiga e, com certo divertimento, notei que tinha o rosto levemente
corado.
Não demorou nem um segundo depois que Matteo deixou o
cômodo para que Vesper falasse:

— Que olhar foi aquele?! — Ele encarava Allegra com o


cenho erguido e o olhar sugestivo.

Ela piscou.

— Que olhar?

— Também notei. — Sorri.

Allegra me fitou, surpresa. Seu rosto delicado corando ainda


mais.

— Por favor, não se faça de inocente! — Vesper acusou,


dessa vez sorrindo de forma provocadora.

— Não estou. Foi só um olhar, nada demais.

— Ele te comeu com os olhos. — Ele rebateu.

— Deuses... — Allegra desviou olhar e se remexeu na


cadeira. — Não fale besteira.

— Ele é bem bonitinho — comentei.

— Bem bonitinho?! — Vesper franziu o cenho. — Ele é mega


gostoso.

Eu sorri mais uma vez.


— Não sejam ridículos. —Allegra balançou a cabeça em
negação. — Ele é um soldado premiado, o possível novo general
e…
— E...? — Vesper indagou.

— Eu sou uma…
Ela não completou a frase.

O sorriso deixou meu rosto no mesmo instante. Eu odiava


quando ela fazia aquilo. Odiava que não conseguia enxergar a sua
importância, seu valor.

— Você é a melhor amiga da rainha, faz parte do conselho.


Você é uma nobre, Allegra. — Fiz um gesto com a mão. — Na
verdade, escolha um título: marquesa, duquesa… Vamos oficializar.

Eu sabia que Allegra havia crescido em torno de extrema


pobreza. Teve muitas dificuldades. Os próprios pais a mandaram
trabalhar fora de casa quando mal tinha completado dez anos. Ela
cresceu como uma criada e provavelmente achou que morreria
como uma também.

— Não preciso de um título. — Ela balançou a cabeça outra


vez. — Não é isso que estou dizendo, é só que… nunca achei que
alguém como ele poderia ter interesse por alguém… como eu.

— Você é igualmente gostosa. — Vesper adicionou. — Juro


pelos Deuses que, se eu gostasse de mulheres, vocês duas
estariam ferradas.
Nós rimos, e eu voltei a fitá-la.
— Não se menospreze, Allegra. Ele teria muita sorte se você
lhe desse uma chance.

E se havia alguém que merecia um cara legal, era aquela


doce e resiliente garota.

— Feliz aniversário, Majestade! — disse Mirvin, depois que


assoprei as velas do bolo à minha frente.

Era meu aniversário de 20 anos e estávamos sentados no


salão de jantar. A enorme mesa com apenas eu, Malakay, Vesper,
Allegra, Bax e Mirvin. Já era noite, meu aniversário estava chegando
ao fim e eu estava exausta. Tínhamos feito uma celebração aberta
para o público mais cedo. Muita música, bebida e comida.
Eu descobri tarde demais que, depois que se tornava rainha,
seu aniversário não era apenas seu, e sim do reino todo. Era uma
celebração conjunta. E por mais que eu gostasse de saber que se
importavam, não estava em clima algum para aquele tipo de coisa.

De resto, estava tudo bem. Umbra prosperava desde a vitória


contra Alodias há quase duas semanas, as novas terras adquiridas
eram férteis o suficiente para gerar um bom impulso na economia. O
povo há pouco conquistado não estava resistindo tanto quanto eu
esperava. Os antigos soldados que antes lutavam por Wullfric
estavam se entendendo com os de Umbra, e foram poucas as
situações que precisaram de intervenção ou punição. As coisas
estavam se estabilizando mais rápido do que eu imaginava e não
havia ataques novos dos rebeldes há semanas.
Estava tudo bem.
E, ainda assim, eu não podia estar mais infeliz.

Malakay, que estava no meu colo, enfiou a mão no bolo,


causando um considerável buraco na massa e arrancando risadas.
Ele pegou um punhado e colocou na boca. Cortamos em volta do
buraco e comemos o bolo de chocolate com glacê. Bebemos e
conversamos sobre os acontecimentos do dia.

— A sua ideia de pagar as famílias pela educação das


garotas foi excelente, Cera. — Allegra elogiou ao meu lado.

Como tínhamos uma renda extra que tomamos dos bens


pessoais de Wullfric e de seu palácio, resolvi investir nas questões
sociais. Foi comunicado que não era obrigatório a educação das
meninas além dos 12 anos, mas que cada família que mantivesse
suas filhas na escola após essa idade ou as matriculasse, ganharia
uma quantia por ano. Não era um valor exorbitante, mas faria com
que alguns pais considerassem a ideia, sem sentirem como se
estivessem sendo obrigados.

Minha primeira tentativa de mudar as coisas havia


fracassado. Eu tinha sido radical demais, rápida demais. Estava
diante de uma sociedade arcaica e precisava jogar conforme as
regras.

— Obrigada — respondi. — Acho que vamos ver uma


quantidade considerável de garotas aprendendo a ler nos próximos
anos.

— Quelo mais! — pediu Malakay, se referindo ao bolo.


Já tinha comido dois pedaços e ainda tinha a boca toda suja
de glacê, assim como a blusa de linho. Tinha até um pouco em sua
testa, e fiquei me perguntando como ele conseguiu fazer isso.

— Já comeu demais. Vai ficar com dor de barriga.

— Não vou, não. Pometo!


Eu sorri.

— Vamos guardar e amanhã você come mais, tudo bem?

Antes que pudesse me responder, a minha atenção foi


roubada pelo soldado que adentrou a sala sem bater. Nossas
cabeças se voltaram em sua direção. Estava esbaforido e seus
olhos, cobertos de tensão. Mal terminou a reverência apressada
antes de se pronunciar.

— Acabamos de receber notícias de que uma vila em Breca


foi atacada — disse, sem fôlego. — Centenas foram mortos. Vários
feridos.

Um silêncio pesado recaiu sobre o cômodo conforme todos


nós processávamos suas palavras.

Pisquei.

— Quando? — A palavra deixou a minha boca como um


sussurro rouco.

— Há algumas horas.

— Quem foi o responsável?

O silêncio que retornou foi tão completo de tensão que podia


se ouvir, caso uma agulha caísse no chão. O soldado engoliu em
seco antes de responder:

— Sarkian Varant, Majestade.


Enquanto a usurpadora comemorava

mais um ano de vida


eu descia sobre a pequena vila

tomando almas

e tornando aquele

seu último dia na Terra


capítulo 38

A vila de Dulahum ficava no oeste de Umbra, a quase duas


horas do meu castelo. Era uma das maiores vilas da cidade de
Breca.

Não esperei que preparassem a carruagem, montei em Zoran


e parti com cerca de duzentos soldados naquele início de
madrugada. Bax, Vesper Allegra e Mirvin — de carruagem, mais
atrás —, me acompanharam.
A noite estava fria, mas eu não sentia a baixa temperatura.

Minhas mãos estavam fechadas em punhos, tensas ao redor


da rédea. Minha cabeça girava. Eu não conseguia entender.

— Tem certeza de que foi ele? — indaguei para o soldado, no


caminho.
— Sim, Majestade.

— Tem provas?
— Ele foi pessoalmente até a vila, Majestade. Matou a maior
parte dos homens com a própria espada.

Por que Sarkian havia feito aquilo?


Porque ele é imprevisível, disse a pequena e irritante voz em
minha mente.
Porque ele é cruel.

Você sempre soube disso.

Quão ingênua foi por pensar, sequer por um instante, que ele
poderia ser diferente?

Cerca de uma hora e meia depois, avistamos a vila de longe.


Era fácil distingui-la, mesmo na escuridão da noite. As chamas
brilhavam e o barulho de caos ainda soava.

Cutuquei na barriga de Zoran, apertando o passo. E eu soube


instantaneamente, que a cena com a qual me deparei ao chegar na
vila me faria perder muitas noites de sono.

Dulahum estava destruída. Fogo havia lambido as pequenas


casas e plantações, corpos estavam espalhados por todos os
lugares, o som de choro e gritos de pesar ecoava pelo lugar.

O cheiro de fumaça se misturava ao cheiro de carne


queimada. O resto da população que havia sobrado, ou lamentava
pelo que havia perdido ou tentava conter as chamas que ainda
ardiam.

Desci do meu cavalo, assim como os homens atrás de mim.

Os moradores da vila notaram a nossa chegada. Alguns se


agitaram, outros estavam ocupados demais em seu luto ou em seu
trabalho de conter o caos para prestar atenção.

Comecei a andar pelo que havia sobrado de Dulahum.


Precisava tomar cuidado para não pisar em corpos no
caminho. Estavam por toda parte.
Perguntei-me qual seria o número. Provavelmente, algumas
centenas.

— Aquele monstro! — Levei um susto quando uma senhora


com os olhos vidrados me abordou. Colocou as mãos em mim, me
agarrando. Tinha o rosto sujo e ensanguentado. — Ele é um
monstro. Olhe o que ele fez! — Ela caiu aos meus pés conforme
soluçava. — Olhe!

Os soldados ao meu lado se agitaram com sua aproximação,


mas fiz um sinal com a cabeça para que a deixassem.

Não muito depois, passei por um homem que estremecia no


chão. Sangue escorria de sua boca, e ele piscava
desesperadamente em direção aos céus.

Agachei-me ao seu lado.

— Ele precisa de cuidados. — Eu disse para ninguém em


especial.

Os olhos do homem me encontraram. Ele tentou falar alguma


coisa, mas tudo o que saiu de sua boca foi mais sangue.

— Não vai sobreviver até lá, Majestade — disse Mirvin.

Eu cheguei a abrir a boca para protestar, para dizer que


podíamos pelo menos tentar, mas, então, o homem parou de
respirar. Seu olhar congelado em mim se transformou em completo
vazio.

Engoli em seco e passei os dedos em seu rosto, fechando os


seus olhos para sempre.

Quando me ergui, disse para um dos soldados:


— Mandem buscar curandeiras e remédios para os feridos. E
ajudem os familiares a enterrarem os entes queridos.
Ele assentiu e saiu rapidamente.

Mirvin descansou a sua bengala ao meu lado e não falou


nada por vários segundos.
— Por que ele fez isso? — perguntei, fitando dois homens
carregarem um corpo enrolado em um lençol.

— Acho que agora é tarde demais para essa pergunta.

E ele estava certo.

Não importava.
— As pessoas não só vão querer vingança depois disso —
Mirvin disse —, como vão precisar.

Disso, eu não tinha dúvidas.

Tudo aquilo era uma atrocidade.


Logo a notícia se espalharia, e Umbra se agitaria diante do
ataque. A mesma agitação que corria em meu corpo a cada passo
que eu dava naquele inferno. Cada corpo que eu via caído, era uma
batida do meu coração gritando mais alto em puro ódio.

Ouvi um choro desesperado e me deparei com uma mulher


no chão.
— Meus bebês! — Ela gritava enquanto se balançava para
frente e para trás com os corpos de duas crianças incendiadas nos
braços. — Meus bebês...!
Os gritos ecoavam, o som se tornando a melodia mais
horripilante que já tinha ouvido.

E as palavras da nymeria vieram à minha mente.

“O amor de vocês será o triunfo de um e a ruína do outro.”


E foi ali, naquele exato momento, que decidi matar o único
homem que já amei.
Porque era arruinar ou se deixar arruinar

E a usurpadora fez a sua escolha


capítulo 39

Foi como se a fúria tivesse nascido junto do sol naquela


manhã. Eu conseguia sentir a agitação do povo do lado de fora.

O total de mortes no ataque a Dulahum foi de duzentas e


quarenta e sete. Dentre os quais, crianças e idosos.
As pessoas queriam justiça. E eu, tinha sede de vingança.
Conversei com Matteo assim que voltei para o palácio. Com a
adição dos soldados de Wullfric, tínhamos uma quantidade
consideravelmente maior do que Sarkian. Fora que o exército de
Umbra estava treinando com bem mais afinco no último ano. Por
mais que os soldados de Sarkian fossem altamente treinados e
ágeis, meu exército havia aprimorado notavelmente.

— Então? Qual é o plano? — Vesper indagou. — Como


vamos acabar com ele?

Desviei o olhar. Bati os dedos na mesa de madeira, pensando


por um momento.

— Onde está o Kit?

Não o tinha visto desde o enterro de seu irmão. Ele estava


arrasado, obviamente. Não eram apenas irmãos, eram gêmeos. E
desde que os conheci, era muito clara a enorme ligação que
tinham. Vesper também não sabia de seu paradeiro, mas pedi que
eles o encontrassem. Ele era grande parte do plano que eu tinha em
mente.

Expliquei para Vesper e Allegra cada passo e o que precisava


que fizessem. Até que cheguei na parte de instruí-los caso desse
tudo errado.

— Se algo acontecer comigo, preciso que fujam com o


Malakay.

— Cera… — Alegra balançou a cabeça.

Mas continuei.

— Prestem atenção. — Fitei os dois seriamente, com a voz


cortante. — Deem um jeito de o levarem para longe. Eles não vão
poupar ninguém.

Eu sabia que se algo desse errado, minha família se tornaria


o principal alvo.

Allegra parecia resistente ao aceitar aquela possibilidade.


Demorou um instante, mas eles finalmente assentiram.

— Não é sua culpa — disse Vesper, depois de alguns


minutos de completo silêncio.

— É — rebati. — É, sim.

Eu havia me envolvido com ele, confiado nele. Baixei a


guarda. Fui inocente em pensar que Sarkian se afastaria de forma
tranquila, sem retaliação.

Você não pode se deitar com um monstro e pensar que vai


acordar com um príncipe.
Fitei o anel de diamante vermelho-escuro no meu dedo. Ele
cintilava conforme eu movia a minha mão.

O amor te tornava vulnerável. E, no fim das contas,


vulnerabilidade, de uma forma ou de outra, acabava te matando.

Quando o corvo apareceu na sacada naquela noite, me


aproximei. Mas Vitrah pulou pelo balcão de mármore e moveu as
asas, como se para fugir.

— Não! — exclamei, e parei, com medo de espantá-la. —


Espere.

Ergui o braço devagar, lhe mostrando o que tinha em mãos.

— Preciso que entregue isso a ele.

O animal não se moveu por vários segundos. Eu não sabia


se ela podia me compreender naquela forma, mas não fugiu. Então,
me aproximei com cautela.

O corvo estremeceu quando o toquei de leve ao amarrar o


pequeno pedaço de papel ao redor de seu pescoço com uma fita.

Dei dois passos para trás, e o animal abriu as asas.

Lançou-me um último olhar antes de voar para longe.

Avançamos na manhã seguinte. Com as horas de viagem,


chegaríamos a Khrovil à noite. Vesper, Matteo e Bax cavalgavam
próximo a mim, os milhares de soldados nos seguindo.
O exército estava agitado. A energia pulsava entre os
homens.
Minhas vestimentas eram escuras como a noite que, em
breve, nos alcançaria. Por cima delas, usava o escudo que o próprio
Sarkian havia me dado.

Quando o sol desceu quase por completo, estávamos a cerca


de vinte minutos de Khrovil.
— Mandem chamá-lo — pedi ao Vesper.

Em menos de dois minutos, Kit estava ao meu lado, em sua


montaria.

O garoto não era o mesmo. Kit não tinha a mesma expressão


de antes, leve e juvenil. Parecia que havia posto todo o seu luto em
fome de sangue. Isso não era nada saudável, mas, de certa forma,
era vantajoso para mim. Eu precisava dele.

Desci do meu cavalo, assim como Kit. Já havia lhe explicado


o que precisava que fizesse.

— O que está fazendo? — Matteo indagou, se agitando. —


Aonde vai, Majestade?

— Conversar com Sarkian — respondi.


— Com o Rei?! Como assim?!

Kit me entregou a capa escura, a qual coloquei. Ele fez o


mesmo. Enrolei meus cabelos embaixo do capuz da capa e o
encarei. Fiz um movimento com a cabeça, e Kit me pegou no colo,
colocando os braços embaixo das minhas pernas e ao redor do meu
tronco, me erguendo.
Lancei um olhar ao Vesper.

— Tem certeza disso? — Ele perguntou, com o rosto sério e


apreensivo.

Assenti.
Inspirei fundo e dei o sinal ao Kit.

— Segure firme — avisou, com o rosto bem próximo do meu.

Apertei meus braços em volta de seu pescoço e encolhi


minha cabeça em seu peito.

E, então, ele correu.


O vento bateu violentamente, e o zumbido em meu ouvido
era intenso. Senti-me leve, quase como se estivesse flutuando.

Supus que voar deveria ser uma sensação parecida.

A pressão dos braços de Kit ao redor do meu corpo era forte.


Eu imaginava que na velocidade em que estávamos, se eu caísse, o
estrago seria feio. Reforcei meu aperto contra ele. Eu escutava a
sua respiração e as batidas rápidas de seu coração.
Alguns minutos se passaram. Meus braços começavam a
doer pela pressão que eu fazia para me segurar. Até que, por fim,
paramos.

Pisquei devagar, erguendo meu rosto.


Estávamos ao lado da parede lateral externa do palácio, no
lado leste da construção.

Kit me colocou no chão com cuidado. Sua respiração era


forte e entrecortada. Por mais que houvesse sido breve, ele correu
dezenas de quilômetros e com um peso extra considerável no colo.

Era possível escutar a movimentação do povo de Khrovil a


distância. Ajustei o meu capuz e agachei um pouco.

— Não nos notaram?


— Está escuro. — Kit argumentou. — Alguns viram a sombra
de relance, mas não souberam identificar.

Nós atravessamos o exército em volta do palácio sem


esforço.

— Ótimo. E o exército dele já está se preparando?

Ele assentiu.
— Muitos homens já estão em formação.

Eu sabia que aquilo aconteceria. Desde o início, sabia que


não podia ter o elemento surpresa. Até agora, estava tudo de acordo
com o esperado.
Olhei ao redor. Conseguia ver alguns soldados de longe. Por
sorte, havia vegetação alta crescendo em volta do palácio, o que
tornava mais fácil para que não nos vissem. Andamos por volta da
enorme construção e não demorou muito para encontrássemos o
que estávamos procurando. A pequena porta que dava para a saída
de emergência.

Empurrei devagar. A porta rangeu em um barulho sombrio.

O que encontrei lá dentro foi escuridão pura.


Amaldiçoei-me por não ter trazido algo para iluminar o
caminho.
— Me espere aqui — disse ao Kit, me voltando para ele. — E
se mantenha abaixado, por precaução.

Voltei a encarar o buraco e engoli em seco.

Coragem, Cera.
Joguei-me na escuridão.

Tateei o caminho estreito. Odiei cada segundo daquilo, nunca


havia me sentido tão claustrofóbica. Tive que forçar meu corpo a
não dar meia volta. Precisava continuar.
Essa ideia toda é um absurdo, pensei enquanto caminhava
às cegas e sem ter a menor noção de quanto tempo faltava para
chegar.

Vesper e Allegra foram um tanto contra o plano de eu ficar a


sós com ele. Mas, por alguma razão, eu sabia que Sarkian não iria
me machucar.
Ou, pelo menos, não iria me matar.

Eu sabia dos riscos, mas valia a pena.

Eu precisava de um momento a sós com ele antes da


guerra.

O caminho era complexo. Muitas curvas, subidas e descidas.


Eu tropecei em vários momentos. Perdi a conta de quantas vezes
xinguei e amaldiçoei. Mas, por fim, fui capaz de ver a luz no fim do
túnel. Literalmente. Segui o pequeno fio de claridade, que, aos
poucos, se tornava cada vez maior.

De repente, uma onda de receio me apossou.


Podia ser uma cilada.
Sarkian podia estar ali, preparado e com vários soldados para
me prender.

Respire, Cera.
Tentei racionalizar.

Eu acreditava que ele iria querer conversar comigo antes de


qualquer coisa. A sós. Ele podia ser um homem um tanto
imprevisível, mas eu tinha certeza quanto aquilo.

Por fim, alcancei a luz.

Engatinhei para fora do buraco.

Meu olhar se abriu para um quarto enorme. Ergui-me


lentamente, notando que a passagem ficava escondida por um
grande armário, do qual eu precisei me empurrar para fora.

Nunca havia estado naquele quarto, reparei ao olhar em


volta. Era tão grande quanto o meu em Umbra, mas sem tantas
cores ou móveis. Uma cama de dossel ocupava o centro. A lareira
estava acesa, queimando em chamas suaves no canto ao leste do
quarto.

Algo se moveu em minha visão periférica.

Virei-me, com o coração batendo rápido.

E Sarkian Varant surgiu diante de mim.

Ele me esperava, como havíamos combinado.


capítulo 40

Sarkian estava no lado oposto do quarto. Tinha a lateral do


corpo aparada na parede de pedras que cercava a lareira.

Cruzou os braços ao me fitar em silêncio.


Algo no meu coração se contorceu.

Havia quase dois meses que eu não o via.

Praticamente todo aquele tempo, passei tentando não pensar


nele e falhei todos os malditos dias. Senti sua falta. Terrivelmente.

Até dois dias atrás.

Quando ele matou de forma cruel centenas do meu povo.

Dei três passos à frente, mantendo uma certa distância.

— Não achei que viria. — Ele disse, finalmente quebrando o


silêncio.
Eu odiava muita coisa em relação ao Sarkian, mas se havia
algo que me atormentava era a sua voz. O tom grave e arrastado, o
sotaque sutil, mas presente... Aquela voz aterrorizava a minha
mente dia e noite. E eu sabia que só odiava tanto pelo fato de
absolutamente amar o som, mas detestar as palavras que ele
formava. Cada frase que deixava sua boca parecia uma sentença
de morte banhada em veludo. O mal não deveria soar tão belo.
— Precisávamos conversar.

— Precisávamos? — repetiu, baixando o olhar preguiçoso.

Parecia muito tranquilo para alguém que se preparava para


uma guerra.

Dei mais um passo em sua direção.

— Dobre os joelhos para mim. — Eu disse, o fitando


fixamente. — Peça misericórdia.
Um pequeno e sutil sorriso lentamente quebrou em seus
lábios.

— É isso o que está fazendo aqui? Acha que pode me


convencer?

— Se entregue.

Ele inspirou fundo e torceu sutilmente o rosto.


— Ambos sabemos que isso nunca vai acontecer.

Silêncio reinou mais uma vez. A chama da lareira estalou ao


meu lado. Virei o rosto e a encarei.

As imagens do que restou da vila surgiram em minha mente.


A dor. O terror. O ódio.

— Por quê? — indaguei, voltando a fitá-lo. — Por que fez


aquilo?

Sarkian não me respondeu de imediato. O prata me fitou de


maneira tão intensa que, por um segundo, achei que estivesse
tentando me absorver. Até que a sombra da maldade familiar
atravessou o seu rosto. O canto de sua boca puxou sutilmente para
a esquerda, mas seus olhos permaneceram frios.

— Eu sou o vilão, lembra?

Verdade.

Ele era.

E que idiota eu fui por pensar que, talvez, estivesse errada.


Que, talvez, ele tivesse um coração. E que, por alguma chance
louca e remota, batesse por mim como o meu batia por ele.
— Mande seus homens não resistirem — insisti. — Peça
perdão.

Ele sorriu amargamente.


— Perdão? — repetiu com o fio de sarcasmo na voz
conforme se virava.

Foi até a mesa de madeira onde se encontravam duas taças


e uma garrafa de vinho. Serviu sem pressa, até que se virou. Com
ambas as taças em mão, voltou a sua atenção a mim.

— Você é capaz de me perdoar?

Assenti.

O Rei da Dor fez uma pausa enquanto o prata percorria meu


rosto.

— Eu estava começando a sentir falta das suas mentiras.

Ele se aproximou, ficando de frente para mim, ao lado da


lareira. Ergueu uma das taças. Eu fitei o líquido escuro, hesitante.
Como não fiz nenhuma menção de aceitar, Sarkian ergueu uma das
sobrancelhas, recolheu o braço e deu um grande gole na taça.
Provando que não estava envenenada.
Eu o observei engolir o vinho, o líquido descendo conforme a
sua jugular se movia.

Quando voltou a estender em minha direção, finalmente


aceitei. Dei um gole, com os olhos fixos nele. O vinho foi muito bem-
vindo. Meu coração batia rápido e cada centímetro do meu corpo
estava tenso.
— E aqui estamos nós..., em guerra. Acho que sempre
soubemos que isso iria acontecer, não é? — Deu mais um passo em
minha direção, fechando a distância entre nós. Não recuei. As
batidas do meu coração aceleraram. Sarkian inclinou o rosto até
nossas faces ficarem bem próximas e soprou: — Minha rival.

Seus olhos desceram pelo meu rosto até chegarem na minha


boca. Por um momento, achei que fosse me beijar, mas, em vez
disso, Sarkian recuou. Bebeu o resto do seu vinho e voltou a se
aparar na parede próxima à lareira.
O silêncio tomou conta mais uma vez. E eu daria tudo para
poder ler a sua mente naquele instante.

Com mais dois grandes goles na minha própria taça de vinho,


eu a esvaziei.
— Não esteja lá. — Ele disse, finalmente.

Pisquei.
— O quê?

— No campo.
Sorri diante da ideia ridícula.

— Sou a rainha deles. Preciso estar lá.

— É arriscado demais.
— Sei me defender — rebati. — Sei lutar.

Seu rosto estava sério. Sem brincadeiras, sem sarcasmo.

— Não o suficiente. E sabe disso.

Eu fiquei em silêncio por um par de segundos. Um sorriso


perverso lentamente cresceu em meus lábios.
— Está ficando bom nisso— disse, por fim.

— No que?

— Fingir que se importa.


Sarkian me fitou por um instante antes de abaixar o olhar
para a própria taça vazia. Quando voltou a me encarar, descolocou
a lateral do corpo da parede e colocou a taça em cima da pedra da
lareira. Aproximou-se de mim e tomou a minha taça, a colocando ao
lado da sua.

Então, pegou a minha mão direita. Lentamente, seus dedos


encontraram os meus. Sarkian puxou a minha mão de forma suave
até estar com ela próxima do rosto.
Seus olhos fitaram o anel de sangue por um instante antes
que descesse seus lábios até a pedra de diamante.

Meu corpo tensionou.


Seus longos cílios se movimentaram ao erguer o olhar e me
fitar. O prata brilhando em chamas parecidas com as que estalavam
ao nosso lado. Girou a minha mão e beijou suavemente a minha
palma.
— Fique comigo — soprou contra a minha pele. — Reine ao
meu lado.

Meu coração disparou.


Ele continuou, levando os lábios até a pele fina do meu
pulso. Plantou um beijo ali também.

— Estou disposto a dividir com você. — Piscou como um


felino e me encarou por entre os longos cílios. — Igualmente.
Engoli em seco. Demorou para que eu pudesse reunir as
palavras.

— Você sabe que isso é impossível. Se fôssemos rei e


rainha, você sempre seria o regente no comando. Rainhas não
reinam de verdade quando se tem reis ao seu lado.

Ele sabia disso tão bem quanto eu.

Na nossa realidade, os homens eram privilegiados. Eram


vistos como os mais adequados para reger. Sarkian me apagaria
por completo, mesmo que essa não fosse a sua intenção.
— As coisas poderiam ser mais simples, não é? — indagou,
com a voz rouca e um sorriso melancólico nos lábios. Pousou minha
mão na curva que separava o seu rosto do seu pescoço e me levou
mais para perto. Suas mãos envolveram a minha cintura e, por um
instante, achei que fosse me puxar para uma dança. — Em algum
universo paralelo — murmurou próximo do meu ouvido —, há uma
de você que não me despreza. E há um de mim que te ama sem te
machucar.
Senti meus olhos lacrimejarem. Algo se formou na minha
garganta. Pisquei devagar.

Meu coração sangrava a cada batida.


Ele alinhou o rosto no meu. Inspirei seu cheiro
profundamente. Nossas testas se tocaram.

— Eu te amo — professei, com a voz rasgada. — Odeio, mas


é verdade.

Fechei a distância entre nossas bocas e o beijei por uma


última vez.

E a grande verdade era que eu não queria dividir nada.

Eu queria tudo.

Então, enfiei a faca em seu coração.


Aquele dia
seria lembrado

para o resto dos tempos

como o dia

em que a Usurpadora de Sangue

apunhalou

o próprio coração
capítulo 41

— Majestade, nós a encontramos.

Sentada no trono, mandei que trouxessem Vitrah até mim.

Haviam se passado três dias desde a tomada.


Quando Umbra atacou naquela noite, Khrovil já não tinha um
rei. Confusos e sem ordens de como proceder, o exército selke não
resistiu bem diante do ataque. Claro, houve mortes quando meus
homens invadiram a cidade. O choque inicial entre os exércitos
causou fatalidades para ambos os reinos, mas quando foi anunciada
a morte do rei, por gritos entre a multidão, eles se renderam.

Venci a guerra, se é que se podia considerar uma. Poupei a


vida de milhares de soldados.
Matei o homem que eu amava.

Esse sempre foi o plano, desde que Sarkian havia atacado a


vila. Eu entrei no seu palácio naquela noite com uma adaga
escondida na lateral da coxa e uma missão.
Naquele instante, grande parte do meu exército se
estabelecia em Khrovil, controlando o reino há pouco tomado. Os
selke era um povo com temperamento forte e alma selvagem. A
tomada não seria tão pacífica quanto em Alodias.
Vitrah entrou com os braços nas costas, dois soldados a
segurando firmemente. Estava suja e machucada. Suas roupas
pretas, rasgadas.
Ergueu o olhar e, assim que suas íris me encontraram, vi a
raiva borbulhar.

— Você!

Ela avançou com um som animalesco deixando a sua


boca. Mas os soldados a puxaram com força, não permitindo que
ela se soltasse.

— Você o matou! — gritou enquanto se retorcia.

Outro soldado se juntou aos dois para imobilizá-la. Ao lado do


trono, Matteo e Shiv se inquietaram, fitando a mulher pantera.

— Não me obrigue a levá-la para forca, Vitrah. Posso ser


muito boa para você — respondi.

Ter Vitrah do meu lado seria muito útil. Seu poder era
inacreditável, mas a sua lealdade era muito grande. Eu sabia o quão
improvável era aquela chance.

— Ele te amava, você não vê?! — Ela exclamou, seus olhos


lacrimejavam em pura raiva. — Ele jamais te machucaria! E você o
matou!

Cerrei os dentes dentro da boca antes de rebater.

— Ele não era capaz de amar.

A mulher balançou a cabeça, a raiva se misturando com a


incredulidade.
— Como pode ser tão cega? Tão estúpida?! — cuspiu.

Inspirei fundo e fiz um sinal para os soldados.

— Levem-na.

Mas ela continuou:

— Todos os soldados foram dados apenas uma ordem


explicita: não tocar na rainha, mesmo que aquilo os matasse!
Naquela noite, eu fui designada não para lutar contra os seus
soldados, mas para te proteger de qualquer ameaça.
Engoli em seco. Apertei os braços do trono com força.

— Chega — ordenei, fitando os soldados.

Precisava que a levassem embora. Precisava que a fizessem


parar de falar.

Eles começaram a arrastá-la. Vitrah lutou contra o aperto


como um animal selvagem. Era extremamente magra, mas ágil e
feroz. Mais homens se juntaram aos três para imobilizá-la. E quando
achei que finalmente tinham conseguido, quando a tinham com o
corpo preso contra o chão, ela começou a se contorcer.

Eu já sabia o que viria.

Seus membros começaram a tomar outra forma. Os sons que


deixaram a sua boca eram assustadores e, aos poucos, soavam
muito como rugidos. Os homens a soltaram, confusos com o que
acontecia diante de seus olhos. Quando a pelugem preta começou a
aparecer, eles se afastaram dela, em completo choque e medo.
A forma negra se contorceu até estarmos diante de uma
enorme pantera.
Ela se colocou de pé.

Seus olhos me encontraram, brilhando em minha direção.

Minha mão escorregou até a faca em minha cintura.

Nenhum dos soldados ousou se aproximar, apenas fitaram


em estado atônito o animal selvagem.

A pantera avançou, disparando pelo salão em uma


velocidade assustadora.

Meu coração parou.


Quando chegou próximo o suficiente, suas enormes patas
deixaram o chão e ela pulou em minha direção. Para o ataque
final. Eu vi as presas, cheguei a sentir o hálito quente de sua
enorme boca.

Fechei os olhos.

Mas o impacto não veio.


Abri os olhos.

Shiv a tinha empurrado contra o chão. As duas rolaram pelo


enorme salão. Rugidos ecoando pelo ambiente.

Ambas se ergueram, se fitaram. Vitrah se moveu


graciosamente, a cercando. Mas Shiv não recuou. Ergueu os braços
como se estivesse pronta para o ataque. A pantera avançou com as
garras expostas. Shiv a pegou como em um abraço, e as duas
rolaram mais uma vez.
Era um cena fascinante ao mesmo tempo em que era
completamente chocante.

Elas avançavam e recuavam, em uma dança assustadora de


duas forças sobrenaturais. Em determinado momento, vi sangue
negro escorrer quando Vitrah passou as garras de raspão pelo
braço de Shiv. Mas então, não muito depois, Shiv a pegou e
literalmente a jogou contra a parede. A pantera caiu com um som
fraco e dolorido deixando a sua garganta.

Em outro momento, talvez Vitrah se levantaria, lutaria mais.


Mas já estava machucada demais. Exausta demais.

Aos poucos, voltou à sua forma humana. Estava


inconsciente. A mulher nua e encolhida no canto do salão agora
parecia terrivelmente inofensiva.

Fiz um sinal para os soldados.


— Coloquem-na em uma cela sem janelas — disse — e sem
qualquer espaço pelo qual um pássaro possa passar.

Quando fui para a cama naquela noite, resisti ao sono.

Estava exausta, mas não queria fechar os olhos e me render.


Havia dormido muito pouco nos últimos três dias. Porque
sempre que me rendia ao sono, acontecia a mesma coisa.

Eu tinha pesadelos.
E eram sempre iguais.
Eu voltava para aquela noite.
Para seus olhos prata me fitando ao sentir a minha faca
atravessando. Seu belo rosto se contorcendo em surpresa. Então, a
descrença. E depois, por fim, a mágoa.

Ele recuou um passo e eventualmente caiu no chão. Desabei


ao seu lado, com o cabo da faca manchado com o seu sangue.

Meus olhos ardiam e as lágrimas caíam freneticamente.


Eu sinto muito, murmurei bem próximo do seu rosto.

Mas ele não respondeu.

Sarkian parou de respirar.

Foi então que me ergui e, por fim, o deixei.


E achava que, no final das contas, eu havia deixado o meu
coração naquele quarto também.
capítulo 42

O inverno chegou em Umbra. Talvez, o mais frio que já havia


presenciado em toda a minha vida.

Eu usava preto da cabeça aos pés; uma blusa de gola alta e


calça. Por mais que atraísse olhares por onde passava no palácio,
ninguém ousou dizer alguma coisa.
Quase gostaria que alguém o fizesse. Quase desejava uma
razão para a represália.
Sentada no meu escritório, abri a carta que me havia sido
enviada pelo Grande Rei. Passei os olhos atentamente. As palavras
eram breves, secas. Ele queria uma reunião comigo o quanto
antes.

Eu já esperava por isso, havia tomado metade de Alodias em


uma guerra e Khrovil logo em seguida. Esse tipo de movimentação
chamava atenção.

Ergui o olhar diante de duas batidas à porta.

— Entre.

Um par de segundos depois, Matteo estava diante de mim.

Tinha se saído bem nas últimas semanas. Guiou bravamente


o exército em direção a Khrovil. Até o momento, não tinha feito com
que eu me arrependesse da decisão.
Ele fez uma reverência, e eu esperei.

Pelo seu rosto, era claro que eram más notícias.

— Majestade, chegou até mim que um dos antigos soldados


de Alodias afirmou que Wullfric soube da sua aliança com Khrovil
por um informante.
Franzi o cenho.

— Quem?
— Não sei. Mas alguém de dentro, Majestade. — Matteo
engoliu em seco. — Alguém de sua confiança.

Só notei que minhas mãos estavam se fechando em punhos


quando ouvi o som do papel sendo amassado.

— Descubra quem é — ordenei, o dispensando.

Alguém de confiança.
Eu não conseguia pensar em muitos. Na verdade, as
pessoas que eu podia considerar não completavam uma mão.

Matteo assentiu e se virou.

— Espere.

Ele retornou a me encarar.

— Chame o Mirvin. — Eu falei.

Matteo piscou. Hesitou por um instante, até que assentiu e se


foi.

Eu batia os dedos na mesa enquanto repensava cada


conversa. Cada olhar. Cada motivação.
Mirvin chegou alguns minutos depois.

— Me chamou, Majestade? — indagou ao entrar no cômodo.

Gesticulei com a cabeça para que se sentasse.

Devagar, e acompanhado de sua bengala, o velho fez seu


caminho até a cadeira à minha frente.

Mirvin havia chegado à minha vida sem ser convidado.


Introduziu-se nela com uma rapidez preocupante. Ignorei esse fato
porque ele me era útil, era um homem muito inteligente. Talvez
inteligente demais.

— Você me disse que eu te lembrava alguém. Que havia sido


por isso que quis me ajudar.

Ele pareceu surpreso diante das minhas palavras. Demorou


um instante, mas eventualmente falou:

— Minha irmã. Minha irmã mais nova. — Mantive-me em


silêncio e, ao ver que eu esperava por mais, concluiu: — Ela morreu
pouco antes de completar vinte anos.

A emoção de seus olhos parecia ser genuína, mas ele podia


muito bem estar mentindo.

Inspirei fundo, escolhendo colocar as cartas na mesa.

— Matteo disse que Wullfric soube da aliança com Sarkian


por um informante interno. Alguém de minha confiança.

Sua expressão se transformou, como se tivesse acabado de


ligar os pontos.

O velho assentiu devagar.


— E acha que pode ser eu.

Não afirmei nem neguei.

— Entendo — falou, por fim.

— Você é um caído, Mirvin?

O velho franziu as sobrancelhas.

— Não.

Tirei a faca da minha cintura e a repousei sobre a mesa, entre


nós. Ele olhou para ela por um par de segundos, até que voltou a
me fitar.
— Me mostre — pedi.

Mirvin hesitou. Por um instante, achei que fosse se negar. O


silêncio pesou sobre nós. A tensão formou uma bolha desagradável
de desconfiança e temor. Mas, eventualmente, ele ergueu o braço e
pegou a faca.

Com as mãos levemente trêmulas, passou a lâmina na pele


fina e enrugada de sua palma. Fechou a mão em um punho e
esticou o braço em minha direção.
Mirvin sangrou sobre a mesa.

Sangue vermelho.

— Tudo bem — disse por fim, soltando um suspiro. — Está


dispensado.

Com dificuldade e lentamente, ele se levantou.


Antes que se virasse, chamei:
— Mirvin. — Seus olhos encontraram os meus. — Vou
descobrir quem é e, se no fim das contas for você, farei com que se
arrependa.

Nusa, minha madrasta, entrou no salão. Eu a havia ignorado


pela manhã toda, mas ela se negava a ir embora. Estava
importunando meus soldados.

Finalmente, quando o sol já estava se pondo, eu a deixei


entrar. Ela atravessou o salão. Notei que parecia mais magra, mais
velha.

Ela fez uma reverência tensa antes de dizer:


— Quero ver o meu filho.

— Malakay está ocupado com as aulas de hoje — respondi.


— Volte amanhã.

— Faz quase dez dias que não o vejo.

— E se continuar me aporrinhando, não poderá vê-lo por


mais dez.
Fiz um gesto para o soldado, que se aproximou dela. Nusa se
agitou, sua expressão se tornando desesperada.

— Você não pode fazer isso!

— Já tivemos essa conversa.


— Você quer que eu implore, é isso?!

Antes que eu pudesse responder, minha madrasta caiu de


joelhos.
— Por favor — implorou, com a cabeça baixa — deixe-me ver
meu filho!

Hesitei, surpresa.

É uma visão e tanto, pensei conforme a fitava com certo


fascínio.
Minha madrasta, implorando...

Vulnerável.

Fraca.

Patética.
— Sabe — disse, quebrando o silêncio —, ele quase não
pergunta mais sobre você.

Aquilo era uma meia verdade. Malakay ainda perguntava pela


mãe com certa frequência, mas bem menos do que anteriormente.
Antes, ele ficava triste ao mencioná-la, chorava pela mãe quando
estava chateado. Agora, perguntava dia sim, dia não. E quando
ficava triste com alguma coisa, buscava pela Allegra ou por mim.
Ela ergueu seu rosto. Lágrimas salpicando seus olhos, a
expressão dura.

— O que aconteceu com você? Como se tornou tão cruel?

Eu não podia acreditar no que estava ouvindo.


As palavras foram um gatilho. Raiva explodiu dentro de mim
ao passo que um sorriso amargo tomou meu rosto.

A hipocrisia era inacreditável.


— Cruel? — indaguei, me levantando. Desci as escadas da
plataforma que ficava em frente ao trono e parei diante dela. —
Acha que sou cruel?
A palavra reverberou alto pelo salão.

Ela não respondeu. Continuou ajoelhada, mas abaixou a


cabeça, fitando meus pés.
Agachei-me, colocando um joelho no chão. Porque precisava
encará-la fixamente nos olhos ao soprar:

— Eu ainda nem comecei.

Seu choro intensificou. Nusa fungou ao ergueu o olhar.

— Isso não está certo... — murmurou, com os lábios


tremendo. — Os Deuses não vão se esquecer disso. Vão te
amaldiçoar. Não vão te perdoar.

— Talvez os seus, sim. Mas os meus — sorri—, eles não dão


a mínima.

Sua expressão se transformou. A sua raiva voltou com tudo.

Nusa cuspiu em meu rosto.


Fechei os olhos, recuando. Eu os deixei daquele jeito por um
instante, absorvendo o que tinha acabado de acontecer.

Silêncio recaiu sobre nós. Pesado. Tenso.

Quando voltei a abrir os olhos, me deparei com a sua


expressão chocada. Ela sabia tão bem quanto eu do tamanho do
erro que havia acabado de cometer.

Ela parou de chorar, achava até que parou de respirar.


Inspirei fundo uma vez.
— Eu poderia te matar, sabia? — Aproximei o rosto do seu.
— Poderia fazer isso, mas é bondade demais. Em vez disso, vou
deixar que viva com a dor nunca mais ser capaz de ver seu filho
outra vez. Ele vai crescer pensando que o abandonou. E
eventualmente, vai esquecê-la por completo.

Por fim, me levantei.

Eles a arrastaram para fora, seus gritos e soluços aos poucos


se tornando sons distantes.
Não se enganem

essa história

sempre foi

sobre a vilã
capítulo 43

— Eles estão resistindo, Majestade — disse Matteo, parado


no meio do salão. — Nessa manhã, houve outro ataque em Khrovil.
O povo, junto a alguns soldados selke, cercaram o palácio.
Conseguimos reverter a situação, mas houve fatalidades.

Dia após dia era a mesma coisa. Khrovil resistia, o povo de


rebelava. Quando não atacava, simplesmente não obedecia.

Cerrei os dentes dentro da boca e desviei o olhar do seu por


um instante.

— No próximo ataque que tiver, não quero apenas que


contenha a confusão. Quero que mate qualquer um envolvido.

Matteo hesitou. Entreabriu os lábios, surpreso.


— Até os cidadãos?

— Mate todos — afirmei. Quando continuei, minha voz saiu


um pouco mais rouca. Mais sombria. — E, então, coloque suas
cabeças em estacas, exibindo para toda a cidade ver. Quero que
saibam o que os espera caso decidam se rebelar contra mim.

Matteo não respondeu de imediato. Ele piscou um par de


vezes. Então, engoliu em seco antes de abrir a boca.

— Majestade, eu…
— Não foi uma sugestão, general — interrompi, com a voz
cortante.

Se o povo não estava cedendo pelo jeito fácil, teria que ser
pelo difícil. Estava cansada de tentar conquistar seu respeito. Se
não podia ter o respeito, ficaria satisfeita com o medo.

Demorou um pouco, mas, eventualmente, Matteo assentiu.


Fez uma reverência tensa para se retirar, porém, uma batida à porta
atrás de si ecoou.

O soldado entrou e abaixou a cabeça.

Seus olhos me encontraram e, então, anunciou:

— Nós encontramos, Majestade.

Ele não precisou dizer mais uma palavra sequer.

Eu já sabia do que se referia.

O antigo soldado de Wullfric afirmou não saber quem era o


informante, mas disse que o antigo rei tinha o dado uma boa
quantidade de joias como recompensa. Um tesouro e tanto pela
informação privilegiada. Então, eu havia mandado que revistassem
os quartos de todos que residiam no palácio. Quem quer que tivesse
em posse de um tesouro escondido, era quem eu procurava.

E eu finalmente o havia encontrado.

— Tragam-no até mim.


Inicialmente
o traidor negou

Inventou desculpas
palavras vazias

que não surtiram efeito algum


na rainha a sua frente

Então

o traidor implorou

pediu perdão

caiu de joelhos diante dela

Mas havia muita coisa no olhar da Usurpadora de Sangue


naquele instante

Menos perdão
capítulo 44

Eu jamais iria imaginar.

Se não tivesse encontrado as joias escondidas nos fundos do


armário de seus aposentos, jamais iria pensar que era capaz de me
trair.
Não conseguia entender como havia sido corrompido por
pedras brilhantes.

Eu já não tinha lhe dado o suficiente?

Depois de tudo pelo que passamos juntos, depois do que fez


para que chegássemos até ali...

O soldado todo de branco surgiu no palco, puxando o traidor


pela corrente que prendia as suas mãos juntas. As pessoas em volta
se agitaram.

Eu observava a execução pública em um assento


privilegiado, no centro de um círculo de guardas.
O soldado o posicionou no meio do palco. Seu corpo
tremia. Ele resistiu, mas eventualmente caiu de joelhos, atrás da
grande pedra lisa.

Foi então que, por fim, seu olhar encontrou o meu.

O soldado de branco gritou seu nome e, em seguida, o crime


cometido.
Depois que a palavra traição deixou a boca do soldado, o
povo ao redor exclamou. Bateram os pés no chão, em excitação.

Os olhos do traidor se encheram de lágrimas. Havia um


último pedido de misericórdia em sua íris.

Repassei todos os nossos momentos juntos em minha


cabeça. Nossas conversas, cada palavra trocada... Ele escondeu
tão bem. Seu rosto nem vacilou ao me encarar logo depois de me
trair.

Nosso contato visual foi quebrado quando o soldado


empurrou a cabeça dele até estar imprensada contra a pedra lisa.

Ele foi posicionado.


O soldado, então, puxou a espada de sua cintura. A elevou
sobre a cabeça dele.

Levantei meu queixo, erguendo o rosto para ver melhor.

A lâmina desceu.

E a cabeça decapitada de Bax rolou pelo chão.

O conselho já me esperava quando entrei.

Não o meu verdadeiro conselho, e sim aquele formado por


vários homens que me desaprovavam e que eu odiava
profundamente.

Seus olhares se ergueram ao me ver entrar. Senti o


julgamento dos lordes e generais diante do meu vestido escuro.
Não cheguei a me sentar. Apenas parei de pé, na cabeceira
da comprida mesa de madeira.

Eu havia arrastado aquilo por tempo demais. Queria manter a


paz e certo equilibro na direção desde que tomei o trono. Mas durou
por tempo demasiado. Sentia que a cada semana que me sentava
com aqueles homens, ficava mais próxima de lhes arrancar a
cabeça.

— Estão dispensados — anunciei, fitando cada um deles —


permanentemente.

Os primeiros segundos que se seguiram foram de completo


silêncio. O choque e a confusão recaíram sobre eles.

Então, veio a revolta.

Os doze homens abriram a boca quase que ao mesmo


tempo.

— O quê?! — Um deles perguntou.

— Permanentemente?! — Outro indagou.

— Está falando sério?! — Um terceiro reagiu.

Esperei um momento antes de abrir a boca mais uma vez.


Deixei que fizessem suas exclamações vazias.

Então, continuei em tom elevado:

— Serão recompensados no fim desse mês pelo seu


trabalho. Mas, a partir de agora, estão desligados completamente de
todos os assuntos relacionados à corte. Podem se retirar.
Nenhum deles se moveu. Fitaram-me, em completa
incredulidade. Alguns olhares também brilhavam em ódio.
— Não pode fazer isso! — exclamou Lorde Cornelius, se
levantando.

Um pequeno sorriso de satisfação quebrou em meus lábios.


— Acabei de fazer, Lorde Cornelius.

Seu rosto se tornou vermelho. Ele se inclinou, colando as


mãos sobre a mesa conforme me encarava. Como se quisesse
engatinhar pela superfície e voar para cima de mim.

— Você não sabe o que está fazendo! — cuspiu. — É só uma


garota incompetente! Você tomar o trono foi o fim de Umbra!

Fiz um gesto com a cabeça para o soldado na porta.


— Levem-no — ordenei. — E cortem a língua.

Há tanto tempo eu queria fazer aquilo.

Lorde Cornelius piscou, em choque. Encarou o soldado


conforme se aproximava para prendê-lo.
— Não! — gritou.

Seus olhos voltaram-se para mim.

Pânico.

Medo.
Arrependimento.

Mas era tarde demais.


O soldado precisou imobilizar suas mãos para arrastá-lo dali.
E ele foi embora aos gritos.

Quando, por fim, o levaram, voltei meu olhar para o resto


deles.

— Alguém mais tem algo a dizer?


Completo silêncio.

— Ótimo. Podem ir.

Todos se levantaram instantaneamente.

E eu finalmente me sentei.
Pouco depois de mandar chamá-los, Mirvin, Vesper, Allegra e
Matteo entraram na sala.

Não havia comentado sobre a minha decisão recente de


acabar por completo com o antigo conselho. Duvidava que Mirvin
concordaria com algo tão radical, então resolvi não contar de
imediato.
Começamos a discutir sobre os novos acontecimentos e
certas decisões que precisavam ser feitas. Quase uma hora depois,
achei que tínhamos terminado, mas Mirvin soltou:

— Deveríamos falar sobre sucessão.

Ergui o cenho.
— Sucessão?

— Sim. — Assentiu com a cabeça. — O Grande Rei


provavelmente vai querer saber sobre seus planos futuros quando
se encontrarem.
Remexi-me na cadeira.

— Não é um pouco cedo para falar sobre isso?

— Você é uma rainha. Precisa de um herdeiro.


Passei tanto tempo apenas pensando em tomar o trono e,
então, em como mantê-lo, que não pensei para quem o deixaria.

Um filho.

Aquela era a última coisa que eu queria.

Mas eu era uma rainha. Eventualmente, teria que fazer isso.


Era o meu dever.
— Não vou me casar — disse, quebrando o silêncio que
havia se tornado pesado.

Minha mente voltou para aquela noite. As palavras me


assombrando mais uma vez.

Fique comigo.
Reine ao meu lado.

Algo se alojou na minha garganta. Desviei o olhar por um


instante.

— Não vou dividir meu trono — falei.

— Não precisa fazer isso. Ele pode ser seu rei consorte.
Balancei a cabeça em negativa.

— Sem Rei.

— Tudo bem. Não é o ideal, mas pode não se casar. Ainda


assim, precisa de um herdeiro. E de alguém a altura.
Mantive-me em silêncio, pensando sobre aquilo. Por mais
que odiasse, sabia que Mirvin tinha razão.

— Podemos convidar alguns pretendentes para o baile anual.


— Allegra sugeriu.

Aquilo me parecia um pesadelo.


Mas cedi.

Desci o olhar para as minhas próprias mãos, fitando o


diamante vermelho-escuro.
O problema era que, por mais que eu tentasse afastar as
imagens, quando fechava os olhos e pensava em um herdeiro, ele
tinha cabelos negros e olhos prata.

Engoli em seco.
— Tudo bem, mas não pretendo fazer isso tão cedo —
anunciei. — E tenho Malakay. Por enquanto, ele é o meu herdeiro.

— Tecnicamente — falou Mirvin —, se algo acontecer com


você no momento, o herdeiro legítimo e primeiro na sucessão é seu
irmão mais velho. Por causa da idade.

Terror atravessou meus olhos. Algo cobriu meu corpo em


uma sensação tão nauseante que senti que podia vomitar.
— De jeito nenhum.

— Majestade, sinto que não é uma questão de opção.


Enquanto ele estiver vivo, é seu herdeiro caso algo lhe aconteça.

A única coisa que ouvi naquela frase foi “enquanto ele estiver
vivo”.
As palavras se repetiram em minha cabeça.
Desviei o olhar para uma das enormes janelas da sala de
reuniões.

— Nicklaus está no exército. É um trabalho perigoso, algo


poderia lhe acontecer. — Lancei um olhar significativo a eles. — Um
acidente, talvez.
Silêncio recaiu sobre a mesa conforme eles digeriam as
minhas palavras.

Matteo chegou a entreabrir os lábios, mas não disse nada.

— Cera. — Escutei o sopro de descrença.

Era Vesper.
Não cheguei a fitá-lo. Sabia o que iria encontrar em sua
expressão: choque, decepção, medo.

Juntei as mãos e inspirei fundo. Levantei-me antes que


alguém pudesse dizer mais alguma coisa.

— Estão dispensados.
Virei-me e saí. O barulho dos meus saltos batendo no chão
de mármore era o único som que ecoava pelo ambiente.

Já estava chegando ao meu quarto quando o ouvi atrás de


mim.

— Cera. — Vesper chamou ao parar no meio do corredor. —


Vai mesmo fazer isso?

Eu achava que sempre soube que havia algo de errado


comigo. Não sabia se havia nascido daquele jeito ou se a vida me
tornou o que eu era até então.

Poderia ter sido os dois.

Mas não adiantava negar ou fingir.


Não dava para fugir do monstro quando ele morava dentro de
você.

— Não te disseram? — Eu parei por um momento com a mão


na maçaneta e virei o rosto para encontrá-lo. — Eu sou a vilã.
Numa tarde de inverno

enquanto as chamas da lareira


estalavam em seu escritório

a usurpadora observava o seu reino


pela extensa janela

Ao seu lado
Mirvin falou

Estão dizendo que você bebe

Ela o fitou

confusa

O quê?

O velho se virou para ela

Sangue
capítulo 45

O baile anual de máscaras era uma tradição muito antiga,


acontecia todo começo de inverno há mais de um século. Então, por
mais que não estivesse com humor ou ânimo para festas, me
preparei. Escolhi um vestido preto com detalhes em dourado. Tiras
de ouro corriam ao redor do meu busto e desciam pelas minhas
saias, a cor combinando com a máscara em meu rosto.

O evento não era aberto para o público, apenas nobres e


pessoas de influência circulavam pelo salão.

Sentada no trono, vi Matteo tirar Allegra para dançar. Não


podia ver seu rosto direito devido à delicada máscara azul que
usava, mas podia apostar que a garota havia corado.
— Ah, o amor jovem... — cantarolou Vesper, se aproximando.

Ele usava uma máscara branca, combinando com o terno da


mesma cor. Tinha duas taças, uma em cada mão.

Ergui uma das sobrancelhas.

— Esse é o ápice do alcoolismo.

— Uma é para você, ridícula — retrucou, estendo uma taça


em minha direção. Eu a peguei, e Vesper se virou para observar o
salão. — E aí, o que achou dos pretendentes?

Suspirei fundo.
— Nada interessantes.

Por mais que a questão do herdeiro por enquanto tivesse


sido resolvida e Malakay fosse o primeiro na linha de sucessão, eu
ainda precisava pensar em longo prazo.

Passei os olhos pelo baile.


Ao todo, eram três pretendentes que haviam sido
selecionados depois de uma meticulosa pesquisa. Segundo o
conselho, aqueles homens eram todos aptos a produzir um herdeiro.
Eram nobres, tinham influência, muito dinheiro, não eram idiotas e
tinham um rosto, no mínimo, agradável.

— Aquele é bem bonitinho. — Apontou para o mais novo dos


três.

Um príncipe, o terceiro na linhagem de Derfir. Juntar-me a ele


fortaleceria as relações com o reino. Era alto e magro. Os olhos
claros faziam um belo contraste com o tom de pele que se
assemelhava a de Vesper.

Mesmo sem ser capaz de ver seu rosto por completo, era
claro que, dos três, era de fato o mais atraente. Mas era novo
demais, não tinha nem completado dezenove anos.
— Não estou escolhendo o pai do meu herdeiro pela beleza,
Vesper.

— Eu sei, mas isso tornaria todo o processo um pouco mais


divertido, não é? — Ele me lançou um olhar e deu de ombros. — E
seria um belo bebê.
Olhei para o outro pretendente, que conversava com um
casal próximo à mesa do buffet. Lorde Lamont, um homem local.
Era muito rico. Com certeza o homem mais rico de Umbra com a
faixa etária mais próxima da minha. Estava prestes a completar
trinta anos, era o mais velho dos três. Tinha o cabelo claro e mais ou
menos a minha altura. Não era muito bonito, mas definitivamente
não era um homem feio. Tinha muita influência no reino e era
conhecido por sua inteligência e perspicácia.

E por fim, um dos netos do Rei Oisis. Nossa união também


seria benéfica para fortalecer as relações com Stirlah. Tinha o porte
baixo e musculoso. Um sorriso bonito; dentes alinhados e muito
brancos.

E era terrivelmente chato.

Já tinha conversado com ele mais cedo e tive que lutar contra
a vontade de bocejar.

Levantei-me, cruzando o salão repleto de nobres


mascarados. Os olhares correram sobre mim e as pessoas abriram
caminho conforme eu me aproximava de Lorde Lamont.

Finalmente ele estava sozinho, se servindo de uma das


várias taças expostas na mesa de vinhos.

— Olá.

Ele se virou. Seus olhos azuis se arregalaram suavemente


por detrás da máscara prata.

— Majestade. — Fez uma reverência.

— Está se divertindo?
— Claro. Está tudo impecável — elogiou.

— Que bom.

— É um prazer finalmente conhe…

O sino bateu, o interrompendo e anunciando que era meia


noite. Isso queria dizer que a última e mais significativa dança
estava prestes a começar.

Lorde Lamont desviou o olhar para a pista, para os casais


que se posicionavam. Até que finalmente voltou a sua atenção a
mim.

— Me concede essa dança? — Ele perguntou, erguendo a


mão direita entre nós.

Por mais que não quisesse, ainda não tinha dançado


nenhuma vez naquela noite. E como anfitriã, eu precisava participar
pelo menos da última.
Aceitei sua mão, e Lorde Lamont me rodopiou pelo salão.

As pessoas abriram caminho e tomamos o espaço central da


pista.
— É impressionante, sabe? — comentou, de repente.
— O quê?

— O que fez desde que tomou o trono. Conquistou muitas


coisas. E mal tem vinte anos.
Aquelas palavras ressoaram em mim de forma bem mais
significativa do que se tivesse elogiado a minha aparência, como a
maioria fazia. Primeiro me chamavam de bela para então, talvez,
comentar sobre a minha inteligência ou competência.

Podia ser que Lorde Lamont fosse um bom pretendente, no


fim das contas.

— Obrigada. Mas, pelo que fiquei sabendo, também alcançou


o sucesso jovem. Fez a maior parte da sua fortuna aos vinte e cinco,
não é?
Antes que pudesse responder, tivemos que fazer a primeira
troca de parceiros.

Por sorte, dei de cara com Vesper.


— E aí? — Meu amigo perguntou com um olhar sugestivo. —
Está rolando um clima?

— Ainda não estou com vontade de vomitar.


— Ah! — Vesper cantarolou, surpreso. — Progresso, então.

Voltei para os braços de Lorde Lamont.


— Sobre o que estávamos falando mesmo? — Ele
perguntou.
— Sobre como é rico — brinquei.

Ele sorriu.
— Ah, sim. Isso mesmo.

Então, Lamont me explicou mais ou menos como fez para se


tornar um homem tão rico. Era de fato bem inteligente e não se
mostrava nada presunçoso. O conselho já tinha me deixado por
dentro de sua história, a qual era bem impressionante, já que havia
feito tanto dinheiro de basicamente nada. Porque, apensar de seu
pai ser um nobre, era um homem viciado em jogos e bebida. A
infância dele havia sido bem difícil.

Em mais uma troca, Lorde Lamont me rodopiou.

O mundo girou e, assim que meus olhos se ajustaram, me vi


diante de uma figura esguia, toda de preto. O rosto completamente
mascarado. A máscara cobria até mesmo os olhos, dava apenas
para ver a sombra de suas íris cintilando por detrás do material mais
fino.

Ele aproximou o rosto do meu.

Próximo demais.
Uma sensação estranha se apossou do meu corpo.

E achava que, antes mesmo que falasse, alguma pequena


parte de mim já sabia.

— Está se divertindo, farren?

A voz familiar ecoou pelo meu corpo.


Eu congelei.

Não.

Não podia ser.


Então, o caos eclodiu.

O barulho das lâminas preencheu meus ouvidos. Olhei em


volta. Dezenas de homens mascarados haviam sacado espadas.

Os gritos se iniciaram.
E os homens atacaram.

Em questão de segundos, a pista de dança se transformou


em um massacre.

Meus joelhos fraquejaram. Achei que fosse cair, mas Sarkian


me segurou firme. Movimentando-me como se eu fosse uma boneca
de pano.
— Não, minha querida. — Sua voz perversa soou doce. —
Continue dançando.

A música já havia parado. O som ao redor era de


morte. Sangue tingiu o salão.

Quando pisquei, as lágrimas escorreram e só assim notei que


estava chorando.

Era um pesadelo.

Só podia ser.

Sarkian estava morto.

Eu o havia matado.

Tentei me desvencilhar de seu toque, mas não consegui.


Meus membros estavam dormentes demais e suas mãos,
terrivelmente firmes.

Alguém gritou o meu nome.

Avistei Vesper andando em minha direção. Os olhos em puro


terror e a roupa branca tingida de vermelho, tinha uma espada na
mão direita.
E avistei também quando um homem mascarado se
aproximou dele por trás, enfiando-lhe o punhal.

Meu coração parou.

Não!
Não.

Vesper caiu.
Um grito estrangulado deixou a minha garganta.

E eu desabei.

Fechei os olhos e a minha cabeça caiu sobre seu peito, um


som horrível deixando a minha garganta.

— Abra os olhos, querida — Sarkian soprou, com os lábios


próximos do meu ouvido. — Quero que veja.
Com os corpos caídos em volta

e ao som dos gritos de pânico como melodia


a Usurpadora de Sangue

e o Rei da Dor

dançaram

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