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e a 3 om Adolescéncia, Psicanalise e Eaticacao O MEsTRE “PossiveL" DE ADOLESCENTES Beatriz Cauduro Cruz Gutierra = COPYRIGHT © 2003 by ‘TODOS Os DIREITOS RESERVADOS. EDITORA AVERCAMP LTDA, - ME \Nenhuma parte dest lvto Av. al, 796. 358 podera ser reproduzida (04082-600 - s30 Paulo - sP fejam quale forem 08 melos ‘elsFax: (11) 5042.0567 Tol: (11) 5082-3645, ‘empregados sem 2 permissto, Email avercempaterra.com br or esto, da Edtora, Sites www avercamp.com br ‘os inratores apicarm-s as ‘angées preistas nos artigos Inmpresso no Bras 102,104, 106 ¢ 107 da Let Printed in Bra 19-9610, de19 deteversiro de 1998, 1 edigdo 2002 ‘teimpressdo 2005, capa: Revisio: LUMMI Producto Visual Glducia Teixeira Milled Thomé ‘e Asvestoria Ltda, Vera Helena RC. Monteiro Composicéo: Produc: LUMMI Produsao Visual ‘Adriana Mauro fe Assessoria Ltda, Dados Internacionais de Catalogasae na Publicagio (CIP) 984 Gotierra, Beateiz Couduro Cruz Adolescéncia, psicandlise © ‘edueagao: 0 maatre *possivel” de Sdolescentes / Beatriz Cauduro Crus Gatierra, ~ Sdo Paulo: Avercenp, 2003 TSB 95-89511-10-4 1. Adolescentes - Aepectos psicalégicos. 2. Sducacac de Jovens. 3. Peicandlise, I, Titulo. opD-155.5 Capitulo 3 OMestre TFnacamos 0 coin antier eres ales nis sobre © possivel lugar ocupado pelo mestre de adolescentes — balizado pelo papel do Homem Mascarado. Entretanto, 0 que é um mestre para a Psicandlise? Seguiremos a trilha desse questionamento para, ento, construir as articulagdes do interesse de nosso trabalho: 0 mestre de adolescentes, Nesta parte nos dedicaremos a abordagem de algumas contribui- Ges te6ricas psicanaliticas que fornecem elementos de reflexio sobre 6s aspectos psiquicos que envolvem a relagio professor-aluno ¢ 0 lugar do mestre, visando sustentar nossa discussio espectfica sobre os mes- tres “possiveis” de adolescents sob a dtica e a ética psicanalitica, Iniciamos nossa discussdo abordando o papel da transferéncia na relagio professor-aluno, considerando que tem sido este um dos gran- des temas da psicanalise estendido ao processo educativo. Em seguida estabelecemos algumas articulagées sobre o ““dever” jesejo”, presentes nesse processo. eo Continuamos nossa discussiio apresentando os quatro discursos ‘em psicandlise que fazem lago social, dentre os quais est o Discurso do Mestre. Assim, como advertimos na introdugio deste trabalho, utilizamos a palavra “mestre” para nos referir ao “respeitavel” pro- « Acosta, Pcs e Even fessor de adolescentes, diferentemente do que em psicanilise ¢ no- meado Discurso do Mestre, lugar discursivo passivel de ser ocupado por qualquer ser falante Gata Transferéncia e o Professor no Lugar de Ideal-do-Eu © termo transferéncia nos remete inicialmente & idéia de deslo- ceamento, ou seja, de levar algo de um lugar para outro. Em dltima instincia, articula-se & idéia de repetigéo, relacionada 3s vivéncias infantis atualizadas nas relagdes humanas, nfo apenas no setting ana- ltico Freud, em sua abordagem sobre 0 Caso Dora, nos oferece uma definicao do conceito de transferéncia que contribui para a reflexiio sobre a relago professor-aluno: (€las) so as novas edigoes ou fac-simies das tendéncias e fan tasias despertadas e tornadas conscientes no decorrer do trata- ‘mento psicolégico; mas (que) tom uma partcularidade, carac- terstica de sua espécie, que consiste na substituicio de uma pessoa anterior pela pessoa do médico. (1905{1901a) Assim, a transferéncia pode ser pensada sob o prisma da repeti do. Miller, em sua anilise sobre as elaboragSes freudianas do con- ceito de transferéncia, esclarece este aspecto: s humanas e também nas relagdes escolares esté em Nas relag jogo a transferéncia. O aluno recortaré, despedagard as palnvras e Copies " contetido transmitido pelo professor a pantir de suas “placas esteriott- picas”, dentro do que permite 0 jogo da linguagem. Da mesma forma acontecer do lado do professor. Ele recottara o discurso do seu aluno conforme suas marcas subjetivas e de acardo com as representacoes que possui sobre 0 que € um aluno e qual 0 lugar do professor, esta- belecidas no decorrer de stas relagées. Esse: aspecto-du-translerénoia & importante para.nossos. objeti ‘vos, tenclo em vista que retrata quanto na relagdo educativa a subjeti vvidade e a dindmica inconsciente estio presentes, tanto para 0 aluno quanto para 0 professor. A forma como este se posiciona e lida com cesses aspectos “incontroliveis” marca as relagdes educativas e, mui tas vezes, inerementa ou barra 0 provesso. Fo caso de professores de adolescentes que entram em embates imagindrios com seus alunos. Sobre isso, nos alerta Cordié: (9 um professor ndo deveria se tio profundamente ferido pela secede des anata onsen causas edipianas na figura do mestre, (1996, p. 26) Freud aborda essa dimensio de “reatualizagiio” em seu texto so- bre a Psicologia do Escolar “Traisterimos_para cles respeilo-e as expectatias liga ao pai onsciente de nossa Infancia e depois comeamos a tat I «a ambivaléncia que tishamos adquirids em nosss prGpria fa mils , audados pore, lutamos como tinhamos o habito de lutar com nossos pais em came e oss. (1914, p. 288) 0 trecho acima encaminha nossas discusses para outro aspecto da transferéncia, extremamente necessdrio para que ocorra a aprendi- zagem: a transferéncia de expectativas e ideais, ou seja, 2 colocacio do professor no lugar de Ideal-do-Eu, O professor € coiocado no lugar de “modelo”, representando a figura paterna e carregando em si 0 Tugar de Tdeal-do-Eu: Mannoni (1997) desenvolve esse aspecto ao mencionar que Freud, num momento menos formal de sua teoria, elaborou seu saber, seu 2 bocca, Pando Edu aprender, movido pela inguagem do desejo e do inconsciente, veicu- lada na relagdo transferencial estabelecida com Fliess. Este € destina- Uirio de um discurso e lugar a partir do qual Freud encontra suas res- postas, realizando sua criagao, sm de cleito transferencialmente por Freud, co Nesse sentido, a transferéncia é abordada sob outra vertente, que niio a afetiva ou da ordem da repetigao de estereétipos. Como diz Kupfer (1982), trata-se de uma transferéncia de poder, pois é fruto da cleigio de alguém que fica numa posigo de destinatirio do discurso, Millot afirma, nesse sentido, que 0 que faz.um professor assumir esse lugar especial, investido de importincia e poder, € 0 fato de ele ser colocado no lugar de Ideal-o-Eu: “O fato, para o sujeito, de ocu- par o lugar de Ideal-do-Eu de um outro sujeito, confere-lhe 0 poder de submeter este timo & sua palavra que, a partir dai, se torna lei” (1979, p. 135) Segundo 0 Vocabuldrio de psicandilie, de Laplanche e Pontalis (1998, p. 222), 0 Ideal-do-Eu uma instincia da personalidade, um subestrutura do superego, comportando a sua fungdo de ideal. f re- sultante da convergéncia do narcisismo e das identificagSes com os pais, com seus substitutos e ideais coletivos. O Ideal-do-Eu constitui lum modelo ao qual 6 sujeito procura acomodar-se. Na segunda t6j ca, 0 Ideal-do-Eu € derivado do superego, representando a transfor- magio da autoridade parental por meio de. um modelo. Esse processo fundamenta a constituico do grupo humano; 0 ideal coletivo retira sua eficacia na convergéncia dos Ideais-do-Eu individuais, Isso se concretiza quando certos individuos colocam um apne Oey s 56 © mesmo objeto no lugar de Ideal-do-Eu; em conseqiléncia disso, identificam-se uns com os outros em seu ego e € nesse processo de identificagdes que ao mesmo tempo esse ideal também se constitui: Lacan aborda esse assunto a partir da discussiio do estadio do cspelho e da metéfora paterna quando analisa temas como eu-ideal (narcisismo) ¢ Ideal-do-Eu. Segundo ele, no tempo inicial de consti- twig do sujeito, a crianga apropria-se da imagem que vé em sua rela- Esse eu-ideal vai ancorar o Ideal-do-Eu ¢ as identificagdes do sujeito, O Ideal-do-Bu é uma instancia simbélica que corresponde aos tracos que 0 sujeito supde que esperam cele. Com a intervengio pa- terna, no tempo final do Edipo, a erianga percebe que nao é tudo para ‘a mae, que © que pode completar 0 desejo materno est em outro lugar que néo nela e comporta tragos a serem almejados, pois supos- tamente esses tragos responderiam a questo instituida ~ “0 que 0 Ou- tro quer de mim”. Nesse sentido, 0 Ideal-do-Bu comporta os ideais que, se atingi- dos, restituiriam por completo o eu-ideal (narcisismo). ‘Assim, tem-se que, para aprender algo com alguém, este alguém tem de ocupar uma posigio especial, deve ser possuidor de certo po- der e deve ser suposto, inconscientemente, como alguém que com- porta os tragos ideas, ou seja, esti no lugar de Ideal-do-Eu, Desse modo, ¢ conferido ao professor um poder outorgado pelo préprio altno, quando seu desejo de saber se aferra & figura do mestre. Isso ocorre pelo mecanismo de transferéncia, Kupfer, fundamentada em Baseada em Freud, ticulado A angustia de castragio, que sobrevém quando 0 sujeito hu- ‘mano se depara com a falta. As investigagSes sexuais infantis se ini “ _____ Abt, Pantin 0 ae ciam com a constatagio da diferenga sexual anatOmica, segundo Freud, © a percepsio de que algo falta ou pode vir a faltar ~ esse € © cerne da angiistia de castragio e motor do desejo de saber. Anis de tudo, trata-se do processo de busea por conhecer 0 Iu ar sexual e, mais profundamente, o lugar em relago ao desejo de [Nesse sentido, o desejo de saber pods se aferrar a figura do pro- fessor, suposto saber, pelo mecanismo da transferéncia. Todo esse saga aber, instala-o Se 0 professor nio perceber, aienaré totalmente seus alunos aos seus desejos, impedindo a separagio e a possibilidade de os alunos lidarem com os conhecimentos da cultura como sujeitos desejantes, passiveis de construir um saber préprio, ial qual ocorreu com Freud ‘em sua relagao com Fliess © processo de atribuir ao professor um lugar especial contribu com a aprendizagem. Isso porque, ao verificar “o brilho” nos olhos de seu professor em sua relagio com o objeto de saber, 0 aluno passa a desejar 0 objeto de desejo dese professor. Esse mecanismo outorga poder a figura do professor, e a forma com que lidara com esse poder que Ihe € atribuido marcaré um tipo de educagdo: ou mais voltada para 0 campo da alienagao ou visando a separa Essa "separagao” nos remete ao posicionamento de Séerates nia relagio com seus aprendizes. A ele era suposto um saber; ele era colo- cado no lugar de Ideal-do-Bu, mas no se mantinha nesse lugar a par- tir do momento que devolvia as questées dirigidas a ele, provocando 4 construgio do saber pelo proprio aluno. Nesse sentido, podemos pensar num professor que diante do alu- no que pretende servic (submeter-se aos seus desejos ideai tribui para que esse aluno possa servir-se dele, uilizando o estilo ea cultura transmitidos pelo professor para construir seu préprio estilo de relago com o saber. Para tanto, seria neces: transmissio. ia uma especial posigdo no campo da Grnndos One 6 {3.2 A Transmisséo: Entre o Dever e o Desejo A transmissdo nijo se restringe ao atc de oferecer saber teérico. “amos os seguintes aspectos ‘missio e sustentando a lei ¢ a cultura, ou seja, algo da ordem da fungao pa haverd, professor. se (1997) 0 mesire deve sustentar seu dever, E 0 que isso quer dizer? fodo aprendiz, 20 apre(e)nder um conhecimento, fica sujeito ‘toda uma tradigo, parece-se um pouco com 0 mestre © com seus companheiros. © conhecimento adquirido € uma marca de pertinén- cia, um trago identificatério, marca que carrega um “saber fazer com a vida” A educagio, entio, supe a transmissio de um saber existencial {que nilo se reduz a0 puro conhecimento, Ao aprender matemdtica, por cexemplo, © sujeito passa a poder lidar com a insOnia tal qual seus com- panheiros que contam carneiros. Ble passa a fazer como 0s outros, sua vida se “existencializa’”, adguirindo uma divida por sua existénci conhecimento Além disso, 0 aprendiz. nada deve concretamente, nio é algo quamtficavel, pois o que foi transmitido nflo pertence ao mestre, mas a uma tradigdo de sistemas epistémicos. Assim, essa nfo é uma divida passivel de ser saldada © mestre deve se autorizar na transmissio desse legado, dessa tradigfo, Ele invoca a potestade propria da tradigio dos mestres hon- rados ~ € essa invocagio (0 reconhecimento da divida nela embutida) ue outorga 0 caréter simbstico ao transrutide. 0 transmitido, entio, néo seré um indice do amor magistral, mas tum signo, um significante “tanto da divida do mestre pelo emprésti- ‘mo parcial do qual goza, quanto do desejoem causa no ato educativo” (Lajonquiére, 1997, p. 31), Transmite-se também certo saber sobre a forma do (que é) ideal. Ao ensinar matemética, por exemplo, trans- mite-se 0 “dever ser” um pouco matematico Esse ideal articulado ao “dever ser” é de ordem simbélica, apon- ta para um ideal futuro relacionado & divida simbélica, a uma tradi- cultural Assim, nos diz Lajonquiére: tangas, (1997, p. 10), Estamos no campo do simbélico, no na seara do ideal imaginé- rio, narcisico, que muitas vezes permeia a transmissdo. Esse ideal & ‘um mandato constituida de puro estofo especular, é um pedido de complementagio narcisica por parte daquele que o enuncia. Assim, para que seja possivel 0 ato educativo, deve-se sustentar a lei ea tradigfo, além de veicular um “dever ser”. Isso implica no reconhecimento (inconsciente) da castrago por parte do adulto no lugar de mestre, o reconhecimento de que aquela crianga niio deve ser poupada da lei em nome de ideais narcisicos. Trata-se de um mestre {que nao tem horror ao alo educativo, pois nesse ato esto embutidas es que ecoam subjetivamente como ferida narcisica. OO _ Capiulo3 Ove o sustentar 0s enunciados bésicos do grupe social, mas para isso 0 pai (educacior) deve destituir-se da imagem ideal, sustentando a lei para Permitir 0 processo desejante: Diante dos fihos adolescentes os pais devem poder sustentar tas enunciados. Estamos falando que é a construcdo da ima- ‘gem do pai, autorizado a enunciar com palavras de certeza os tenunciados do grupo social, e do lute desta mesma imagem, que se possibilta 0 saber ao filho, o filho enquanto sujeito Processo possivel desde que nio se pretenda ser 0 bom pai, ‘ ideal, sem falhas, pai perfeito; desde que se fagaluto da ima gem de seu pai e da propria, frente ao filho adolescente; mas desde que assegure que som lei ndo ha desojo. (2000, p. 247) ‘No entanto, ndo nos parece suficients que o professor realize sua transmissilo apenas sustentando seu “dever” e sem ter “horror” educativo. Estarfamos diante de um ensino superegéico. Ha de haver 1a dimensio do amor, mas, como dissemos anteriormente, nio é um amor restito a um pedido de complementagin narcisiea, mas na ver- dade algo caracterizado como desejo. Um professor também é sujeito desejante em seu ato de transmissa0, pois por ter desejado é capaz de transmitir ao aluno a possibilidade de desejar, de subjetivar o aprendi- do, Assim como uma mae que, porque desejou, transmite a possibili- dade de desejar ao filho. Algo que poderfamos associar ao “materno” ~ “porque eu te desejei, voc® pode desejar”. Esse aspecto & possivel para ‘mie que no captura o filho como puro tamponamento narcisico, mas ela mesma esté atravessada pela castragio © submetida a lei Para tanto é preciso estar na posigaie paradoxal de ser um sujeito ‘em falta para que o desejo de saber do aluno possa circular e produzir seus efeitos. Pela transferéncia, 0 professor seré usado pelo aluno como suporte para a construgio de conhecimentos. Para isso, ele tem de suportar de uma forma contraditéria © lugar em que é colocado na transferéncia ~ o de suposto saber ~ sem, entretanto, acreditar demais nisso, abrindo espago para a fala ¢ 0 saber do aluno. o lesen, Pando» Eacaio Silva aponta o quio paradoxal é esse estabelecimento de articu- lagGes sobre a paixio de formar, presente no discurso de reconheci- dos professores: FU FERRD Weormanconiém em sium confito, uma contradi- Zo: envolve a idéia de paixéo, que designa uma situacdo de posse « de narcsismo; e formar, que designa uma idéia de lagio com 0 outro, de desenvolvimento, de dar e tomar forma, «te libertar-se, (1994, p. 107) A autora constata que © “professor zpaixonado” consegue lidar com esse contfito: © professor apaixonado 6, entdo, aquele cuja chama se man- tém; sua paixdo nao se apaga pelo fator idealizacio, nao se entrega 2 erotizagio da relacio professor-aluno, atuando a libi- do da pulssio do saber-paixio, que 0 esvaziaria e olevaria a sair dda posigio de mediador do saber. Permite que 0 outro se dife- rencie, se discrimine, sem ter necessidade de té-lo & sua ima fem e semelharkit, Eid asin, nai ikém respeito pelas pos sibilidades de desenvolvimento e conhesimento de ambos, pro fessor-aluno. (p. 1101 Em outras palavras, Silva esté dizenddo que nfo se trata de wrt relagio narefsica, imagindria © de complementagio a qual desenvol- ‘eimos acima, No entanto, certamente inclu algo earncterizado como amor ¢ desejo ~ desejo de transmitir aquilo que 0 marcou, ou seja, a possibilidade de subjetivar o aprendido, de servit-se dele ‘Trata-se de um professor que no s¢ identifica com o saber que transmite, ou seja, nao se coloca como detendo ou sendo o saber. Sequndo Mrech. “Como assinala Marilena Chavi, é preciso que.0 pro- fessor esvazie o seu lugar, para que ali 0 aluno possa realmente criar. Por tras das mascaras de saber hd um lugar vazio”. (1999, p. 82) Tsso nos evoca 0 depoimento do professor Zerbini, que introdu- zu o transplante de coragao no Brasil e se dedicou intensamente & carreira académica, Em entrevista para a Rede Globo, fez 0 seguinte ‘comentirio sobre os seus alunos que naquela época jé ocupavam In gar de ptestigio cm insituicdes hospitalares ou ligadas 2 pesquisa: “Fui um bom professor, pois meus alunos me ultrapassaram...” etiod One ® G33 O Mestre: Uma Questo de Discurso ‘Ao falarmos em mestre no campo da psicanilise lacaniana, s0- mos remetidos imediatamente aos “quatro discursos”, quatro modos de Lago social. Um deles & 0 “Discurso do Mestre”. Lacan (19696) trabalha esse tema em “O seminério 17: 0 avesso da psicandlise”. Nele Lacan toma 0 discurso como estrutura, sem palavras, mas néo sem linguagem, Bssas estruturas discursivas for- malizadas por ele so os quatro modos possiveis de relagio com o ‘com 0 impossvel de gozo, resultado do proceso de consti- 0s termos utilizados sto os seguintes: $1 = significante mestre; ‘82 = bateria dos significantes; $ (sujeito barrado) c um resto imposs(- vel de ser significado, de ser simbolizado, 0 “objeto a” (objeto causa de desejo). As mudangas de posigdo desses termos tém como resulta- do os quatro discursos, que, em tltima instdncia, sie os modos de relagiio com esse “resto”, mods de lago social. justamente sobre esta impossbilidade que Lacan fundamen tou sua nogo de lago social, ou Seja, os lacos sociaistraduzem (os mados de relacio (possivel] com esse impossivel de gozo para sujeito, Nessa medida, podemos dizer que Lacan articu- la quatro modos de relacio social na estruturagao dos quatro discursos. (Oliveira, 1999, p. 127-28) ‘Sao quatro os discursos que fazem o Iago social: 0 Discurso do Mestre (M), 0 Discurso da Universidade (U), 0 Discurso da Histérica (H) ¢ © Discurso Analitico (A). A estrutura biisica dos discursos comporta as seguintes posigdes: Agente —» __ Outro verdade produto/perda Os elementos que circulam nessas posigdes sio: $1 (significante rmestre); $2 (o saber — bateria de significantes); $ (sujeito barrado); € 60 “objeto a” (0 mais de gozar). As mudancas de posigio desses ele- ‘mentos nos lugares acima descritos produzem os quatro discursos: 0 leet, Pando @ Edo s2 2 a2 Bi Nesse discurso, a posigo do agente € ocupada pelo $I (ignificante mestre), significante sem nexo ou sem razio, que deve set obedecido apenas por que assim estabelece. A dialética do senhor € do escravo jhustra esse discurso Si. ~3 + SI. ass M-% A Dessa relagao, o que fica oculto como verdade € 0 $, a verdade de que o mestre, como ser de linguagem, também sucumbiu & castra mhalien 0 § fica velado no Discurso do Mestre. © Discurso da Universidade, por sua vez, coloca © $2 (saber) de agente, em que o saber sistematico, racional, vado é a antoridade maxima, O saber interroga a mais-val bjeto a” em posigao de outro), racionalizando-o ou justificando-o. produto ou perda é 0 sujeito dividido ou alienado. O sujeito do inconsciente € produzido, mas ao mesmo tempo é excluido, O que fica oculto é o significante mestre ($1), mas o trabalho é a servigo dele e a racionalizagao & seu disfarce. No Discurso da Histérica, quem esti no lugar de agente € 0 $, que se dirige ao Outro como mestre (SI) para que se produza um saber. O resultado é um saber (S2), e no 0 goz0, que fica oculto, O sujeito dividido esta em posigtio deminante e se dirige ao St, colocando-o em questio. A histérica dirige-se ao mestre para que este mostre sua indole pela produgdo de alguma coisa séria em termos de co " saber. A histérica mantém a primazia da divisto subjetiva, a natureza confltante do desejo. O produto, a perda resultant, € 0 saber ($2) No lugar do gozo, do resto produzido, vem o saber. © que fica ocultonesse discurso, mi posigto de verdade, & 0 “ob- jeto a”. Isso quer dizer que a verdade, a forga motriz oculta do Dis- curso da Histériea, ¢ 0 real Por fim, temos o Discurso Analitico como avesso do Discurso do Mestre, A agente & 0 “objeto a” — 0 analista como semblante de “objeto a’”-, que interroga o sujeito em sua divisio (atos falhos, lap- sos etc,), © produto € o $1, ou seja, os significantes que marcaram a constituigio subjetiva, O S2 aparecerd no lugar da verdad, mas nao 6 saber tal qual o Discurso da Universidade, mas 0 saber inconscien- te, imbricado na cadeia significante e que precisa ser subjetivado. ‘Apés essa breve apresentacio sobre a teoria lacaniana dos dis- ‘cursos, fagamos a ponte para o tema de nossa dissertagao, © mestre do Discurso do Mestre pode ser relacionado ao profes- sor “autoritério”, pois estar na posigdo de mestre nesse discurso & no poder mostrar nenhuma fraqueza, ter de ocultar sua castragto simbé= Tica, apresentando-se como um “mestretodo”. 0 produto dessa post gio discursiva € 0 gozo, obtido pela alienagdo do escrava/aluno ~ sio 6s “alunos papagaios”. Professores que produzem alunos “sua ima- zgem e semelhanga’” O agente do discurso fica na posicio de mestre ($1), assim como ‘© pai para uma crianga, Nesse sentido, podemos verificar no cotidia- no pedagégico quio facilmente as criangas se submetem a esse tipo de mestria, pois sua propria condigao infantil € marcada pela subju- gagiio ao Outro, No entanto, é também nesse cotidiano pedagégico que verifica- ‘mos a indisciplina estourando quando os alunos sio adolescents. Em relagio os quatro discursos, podemos situar a adolescéncia no tempo de predominio do Discurso da Histérica. Conforme abordamos nos capitulos anteriores, na adolescéncia 605 idenis sio colocados em xeque, assim como seus representantes. Em seu reencontro com a castraglo e com a impossibilidade da rela- do sexual, 0 adolescente esté tal qual o $ na posigio de agente no Discurso da Histérica, questionando 0 SI visando extrair dele um saber. Ele aponta a divisao a0 mestre, justamente © que 0 “mestre- 2 ils, Parle «Eaucagio todo”, sustentado no Discurso do Mestre, visa ocultat; Daf ocorrer um curto-cireuito na relagdo professor (mestre-todo)-aluno (adolescents). A questo que 0 adolescente dirige ao Outro visa denunciar a falta no Outro, tal qual a histérica. Mas visa também a tentativa de tuma nova inscri¢io, da possibilidade de construir um saber que 0 sustente na vida e no lago social. Ele questiona o mestre, mas, para- doxalmente, chama por ele esse sentido, um professor situado apenas no Discurso do Mes: tre estaria numa situagao delicada diante do adolescente, como tam- bbém diante de uma visio psicanalitica, pois © Discurso Analitico visa 20 aparecimento do sujeito desejante ($), que coloca em questo sua alienagZo significante A partir dessas consideragées e articulagées sobre a teoria dos discursos em Lacan e das atuais conexées entre psicanilise c educa 0, como poderiamas pensar o “bom professor", psicanaliticamente falando? G 3.4 0 “Bom Professor” sob a Otica e a Etica Psicanalitica O termo “bom professor” aponta, necessariamente, para um ideal Pereira (1998) afirma que esse termo vem ao encontro do discurso pedagégico idealista, pois supde intrinsecamente um juizo de valor e mncia instrumental nas atividades do magistério. © autor comenta que sio extensos os estudos pedagégicos que visam abranger as caracteristicas do perfil desse mestre que consegue se sait bem em seu oficio, ou seja, ensinar os contetidos propostos além de conseguir estabelecer uma relagio de proximidade com seus alunos. ses estudos, no entanto, seguem uma tendéncia comportamental, pois buscam arrolar as atitudes e principalmente metodologias desses professores, as quais supostamente determinariam esse sucesso, Disso decorrem extensos manuais que apresentam a0 professor 0 “caminho, ni muito suave” de atingir 0 sucesso em sua agio pedagdgica, © autor destaca o que tem sido encontrado nesses compéndios educacionais. Do ponto de vista metodolégico, o “bom professor” & Captules oMeee ey criativo, variando as formas de ensinar e sendo mais pragmético que dogmitico, Ele acompanha o processo de aprendizagem do aluno de forma individualizada. Suas avaliagées so mais dingnésticas que persecut6rias, avaliando o que 0 aluno sabe: “...como se 0 sujeito- professor estivesse, no minimo, isento, mantendo quase sempre um padrio ideal e funcional de acompanhamento do aprendizado do alu- no”. (Pereira, 1998, p. 156) No que diz respeito & formagdo, 0 “bom professor” pensa no fa- zet, tende a refletir sobre sua ago. Ble demonstra investit em seu oficio buscando atualizagées continuas, conseguindo integrar 0 saber tw6rico, o saber fazer eo saber ser. Subjaz a hipétese de que o profes- Sor sabe fazer, controla 0 seu ato pedagégico ¢ seus efeitos sobre os alunos. Como afirma Pereira: “Ora, aqui 0 ser sabe” Do ponto de vista relacional, esses mestres caracterizam-se por gostar do que fazem, sendo afetivos e receptivos em relagdo aos alu- nos, além de acreditarem no potencial deles. Esse aspecto foi pouco estudado, tendo sido priorizados os aspectos metodolégicos. Entre- tanto, mesmo quando se considerou 0 aspecto relucional, isso foi fei- to em sua face positiva Face abordada sob a influencia do positivismo, que visa a cons- titwigao de uma racionalidade técnica, de preserigdes acerca da aga0 docente em sua relagio com aluno, Trata-se de preserever regras de relagio a despeito das imprevisibilidades cotidianas, incertezas, di- rgencias e conflitos, aspectos constitutivos do ato de educar, Sob a ética e a ética da psicanélise, o autor considera o relacional por seu préprio avesso, levando em conte na relagiio educativa o que 6 da ordem da descontinuidade, das rupturas, da pulsio © do goz0, nijo abarcados pelo racional, consciente: No campo da educaglo, professores e alunos so sujeitos falan- tes e falads, portanto, condicionados 3 linguagem, que possui sempre um carster restaurador de uma imagem de completude jamais alcanciivel. O relacional, pois, diz respeito também a dispersio dos sujeitos confrontados uns com os outros. Lé onde © social fenece. L4 onde ha o iredutivel do desejo. (Pereira, 1998, p. 157-58) Estio em jogo, de um lado, a particularidade, a pulsao, o residual, a falta; de outro lado, a universalidade simbética, a palavra, 0 signi- ficante, o ideal, a certeza, o pensamento, £ nisso que 0 professor est envolvido, Sua posi¢ao de mestre o impuisiona para a tentativa de controlar © incontrolivel, profissio impossivel. © “bom professor”, diante do que a psicandlise constata a partir sua teoria de sujeito (do inconsciente, ca falta, da ruptura), no & {que possui competEncias instrumentais que possam ser usadas ou calar as emergéncias dos aspectos relacionais, asse- ara evitar as rupturas, Acreditamas que nio recuar frente ao makestar &, a0 invés de se posicionar enquanto dono do saber. fazer-se objeto para ‘ausar no aluno o seu desejo de saber, produzindo, assim, algo novo, ali, onde hava somente o sem sentido. Logo, © sen tido do professor enquanto “sabe-tudo", aqui, nao vale nada (p. 176) Trata-se de suportar o lugar de objeto na relagilo com 0 aluno ~ objeto de erengas, valores, fantasias, identificagbes e idealizagées ‘causando nele um constante reposicionamento stibjetivo, movendo seu plulod oleate % desejo de saber. E um compromisso de supotar esse lug, aeionando 0 desejo de saber do aluno. “bom professor” consegue por meio de seu estilo préprio acio- nar o desejo de saber do aluno inclinando-se sobre ele, explorando sempre o lugar do sujeito, além das idéias, permitindo que ele se en- volva e se implique como desejante, deixando a marca de sua particu- laridade em cada tarefa executada, Entretanto, isso € da ordem do ato, de um saber fazer que nem 0 proprio professor 6 capaz de definirtradazindo-o em métodos peda- g6gicos a serem copiados. Esse professor coloca-se plenamente como mestre, mas um “mestre no-todo”, que faz semblante de “"mestre- todo”, acionando e reforgando com seu eto 0 lugar de suposto saber, de Ideal-do-Eu, que deve ser estabelecido na transferéncia para que haja a aprendizagem. No entanto, abre espago para a construgio de saber do aluno pelo esvaziamento do lugar de mestre absoluto. Assim, finaliza Pereira AA pratica de bons professores ndo parece obedecer a algum ‘modelo determinado, madelo este que domariaa pulsdo. £ pos- sivel, sim, encontrar professores cuja propria pratica é instau- radlora de um modelo particular, novo e original. (p. 190) ‘© que temos em mios, pela reflexio proposta por Pereira, & que 20 pensar no “bor professor” 2 luz da psicandlise, devemos procurar 0 que nele, em seu posicionamento subjetivo, possibilita o advento da aprendizagem, instaurando-se a “transferéncia de trabalho”. Mrech aborda este conceito: A autora continua: _ lst, Picardie o Eswraio ideia Mrech afirma ainda que essa producto tem sido bastante dificil nna escola atual, j que os professores nic conseguem despertar esse ‘no aluno. Nao um desejo de ser professor como profissiio, mas de construir com sua propria linguagem um saber, ser mestre desse si ber. Isso decorre da posig7o subjetiva assumida pelo professor em seu ato de transmissio. Segundo Kupfer, 0 ato educativo na v-sdo psicanalitica &a “trans missdio da demanda social além do desejo, como transmisstio de mar- cas € de estilos de obturago da falta no Outro”. (2000, p. 119) 0 conhecimento transmitido s6 fard sentido caso atinja 0 sueito (conceito psicanalitico - sujeito do inconsciente), pois “a obtencaio de informagdes pode ser objetiva, mas a real s6 se da se hd uma implica gio, uma presenga do sujeito, efeito, paradoxalmente, de sua queda’ (p. 119) Porém, se isso 6 caracteristico do incontrokivel, do “impossfvel”, tendo em vista que ndo € posstvel 0 controle dos processos incor cientes, como alguns educadores sustentam essa posigao de transmiis- io, conseguindo ensinar para grande parte de seus alunos, enquanto outros educadores fracassam nessa empreitada? Existe algo na posigio do mestre que failita essa relagio com 0 aluno na aprendizagem, que instiga a transferéncia de trabalho e certa- mente estérelacionado com um posicionamento subjetivo, com sua im- plicaglo subjetiva, que atravessa a ago pedagégica desse professor. (Sena d OMe 7 Em se tratando de transmissdo de marcas, de estilo, o mestre deve estar numa posigdo de crenga de que aquilo que tansmite & importan- te como uma marca a ser impressa, tem valor como forma de lidar com a falta do Outro, com o mal-estar na sivilizagio. O estilo contempla a marca de um sujeito em sua singular ma- neira de enfrentar a impossibilidade de ser. Assirm ‘Ao contemplar 0 outro no exercicio de seu estilo proprio, uma crianga construire se construiré em seu estilo. Ao contemplar © professor no exercicio de seu estilo proprio de apropriacso do objeto de conhecimento, 0 aluno constuiré e se construiré rum estilo cognitivo préprio. (p. 129) Nao neguemos os processos inconscientes de cada aluno que por ‘vezes torna um professor especial, valoriza seu estilo, em detrimento do resto da classe. Entretanto, nos deparamos com alguns professores {que permitem maiores engajamentos, cujo estilo permite que os alu- rhos criem os préprios estilos cognitivos. 6bvio que niio 6 com essa simplicidade que as coisas ocorrem. Parece-nos que além de 0 estilo ser composto do “contetido”, 0 pré- prio fato de realmente desejar ensinar e de produzir um real desejo de saber nos alunos faria parte, em nossa hipstese, do estilo do profes- sor. Um professor cuja proposta educacional possa reatar com o sim bélico, com a tradigdo. Um professor responsivel por sua divida sim- bilica, Um professor entusiasmado com o patrim@nio da humanida- o iden, Pande e Ego de, “enodando as conquistas do pensamento humano com seu proprio desejo de saber” (Kupfer, 2000, p. 147). Um professor que mantenha em seu ensino um desejo vivo, “um saber que seja vivo, © nao um saber morto, como o faz o Discurso Universitério”. (Gorostiza, 2001, p.3) Trata-se, entio, de um mestre matizado pelo Discurso Analttico. O resultado € que os alunos desse professor ter30 0 que transmitir a seus filhos, Especificamente sobre o mestre de adolescentes, 0 que temos?

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