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Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagio (CIP) (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Le Breton, David [As paixdes ordindrias ; antropologia das emodes / David Le Breton ; radugdo de Luts Alberto Salton Peretti. ~ Petropolis, RJ : Vozes, 2009. ‘Titulo original : Les passions ordinaires : anthropologie des émotions, Bibliografia. ISBN 978-85-326-3771-0 1. Antropologia filoséfica 2. Emogées I. Titulo. 08-0536 CDD-128, Indices para catdlogo sistemitico: 1, Emogdes : Antropologia filos6fica 128 or David Le Breton As paixoes ordinarias Antropologia das emocdes ‘Tradugdo de Luis Alberto Salton Peretti y EDITORA VOZES hand Ver o Outro Olhar e interagaéo O outro é, por principio, aquele que me observa. SARTRE, J-P. O sere 0 nada. tatilidade do olhar ‘A condig&o corporal do homem o faz imergir num banho sensorial inin- .pto. Em principio, ele jamais cessa de ver, de escutar, de tocar, de sentir ‘mundo que o entorna. A menos que pertenga ao mundo da cegueira, a visio portanto, o olhar que a expressa, se verifica uma constincia da existéncia specialmente da relagio com os outros'. Quando ele esté no principio de um contro possfvel, de um excesso, de um imprevisto podendo exacerbar-se, ‘as convencdes sociais cuidadosamente limitam o perigo. Pousar 0 olhar sobre ‘6 outro ndio & um acontecimento anédino, Em verdade, 0 olhar favorece ¢ se propria de algo para o melhor ou o pior. Pode-se dizer que ele seja imaterial, jnobstante, que aja simbolicamente, Nao € somente um espetéculo, ¢ sim o exercicio de um poder. Em certas condigdes, ele contém um temfvel poder ‘metamorfoseador. O olhar de um ator sobre 0 outro é sempre uma experién- cia afetiva, mas ele também produz consequéncias fisicas: a respirago ace- Jera, 0 coragdo bate mais rapidamente, a pressao arterial eleva-se ¢ a tensio psicolégica aumenta. Os olhos do outro tocam metonimicamente 0 rosto & atingem 0 sujeito no seu todo. linguagem corrente 0 comprov: amos, metralha: ‘mos, inspecionamos com o olhar, exercendo forga sobre 0 olhar alheio. Ele TLEBRETON, D Anthropologie de cons et modernit. Pris: PUF. 1990, p. 935, as a a terno, metoso, O olhar transpassa e fixa a pessoa no lugar onde est, Os insistente ¢ unilateralmente os olbos alheios importa em privar a vitima congelam, amedrontam, neles enxergamos a traigdo, etc. Diversas expres g020 da fruigio de seu rosto numa confrontagao que dela faz um objeto traduzem a tensio dos olhares que se fitam, expondo a nudez miitua dos investigagio, salvo se ambos os atores aceitarem 0 desafio com « mesma tos: fitar com ojeriza, olhar atravessado, com bons olhos, de um maui 0 tinéncia, dando margem a uma guerra de nervos. A experiéncia mostra de soslaio, etc. Do mesmo modo, os amantes expressam olhares carinhe ‘um olhar inadvertidamente pousado pode ser percebido por aquele que 0 protegem-se, devorum-se com os olhos, etc. Seria longa a enumeragio be, mesmo que o observador esteja sittuado a suas costas ou oculto a sua qualificativos que atribuem uma tatilidade ao olhar, fazendo dele uma a stio. Ao virar-se, o observando cruza instantaneamente com esse olhar, a ‘ou um gesto de carinho de acordo com as circunstancias, a qual alveja snos que o indiscreto tenha tido tempo de desvié-lo. Pontos mais intimos e vulnerdveis. Em nossas sociedades ocidentais, o olhar expée ¢ toma indefesa a inti dade do rosto do ator a uma tomada de poder simbélica. As andlises clis: de Sartre mostram a qual ponto o olhar reifica o outro, tranformando-0 inseto”, como dizia Stendhal. Diminuido, o individuo é tolhido de uma p. de seu ser, encravado irremissivelmente enquanto os olhos nao largam § presa. Ele perde momentaneamente soberania de sua existéncia, recon! cendo sa impoténcia em escapar ao julgamento, a investigagao do outro; ex ‘ceto se deixa o lugar ptiblico ou caso se insurja contra tal atitude. “NAO é ext tamente que eu perca minha liberdade para tornar-me um objeto, diz Sartre, Mas ela Ié esté, fora da minha liberdade vivida, como um atributo deste sep que eu sou para 0 outro, Eu percebo que o olhar alheio se integra ao ato que executo como solidificagao e alienagao de minhas préprias possibilidades”, pois manifesta certa ascendéncia sobre sua identidade, causando-Ihe um sentimento de nao mais pertencer a si mesmo, de estar sob influéncia. Veremos que a crenga no “mau-olhado” é uma forte cristalizagao social desta impressio. No rosto do outro, o olhar encontra uma ‘moral a preservar, uma intimidade a respeitar. O oprébrio é a sango imposta Aquele que menospreza a regra e altera as feigdes alheias sem vergonha. A ordem simbolica que rege os encontros funciona como uma disciplina, uma moral da ago reciproca cuja transgressio provoca um mal-estar para aquele que se sente vitima de indiscrigio ou de injustificada insoléncia. A ttvca de olhares poe face a face dois individuos por meio da “mais imediata ‘itualismo do olhar O olhar, diz Simmel, é um elo “ao mesmo tempo tdo intimo ¢ tao sutil que pode formar-se seguindo a via mais curta: a linha direta de um olho a ‘outro. O minimo desvio, 0 minimo olhar de lado destr6i completamente seu “cardter tinico... Todo o comércio dos homens, suas simpatias e antipatias, sua intimidade ou frieza, seria consideravelmente transformada caso inexistisse a {roca de olhares". Este contato dissipa toda distancia, abole a reserva. Breve ‘palpacdo ocular na qual se pode sentir a miitua nudez facial numa reciprocida- ‘de limitada apenas pela duragio do intercambio. Desviar os olhos implicaria (© rompimento do encanto, a retomads da liberdade, 0 reencontro da reserva pessoal. No curso das interagbes da vida cotidiana, 0 contato operado pelos ‘olhos ¢ infinitamente fragil. A reciprocidade baseia-se num fio precario que geralmente nfo tarda a romper-se: um ou outro dos atores, frequentemente os dois ao mesmo tempo, desvia o olhar e segue seu caminho. Em principio, essa troca furtiva permanece inconsequente. A interagdo, que repousa em nossas sociedades ocidentais sobre uma supressio ritualistica do corpo, exige que 0 ‘olhar nao se detenha sobre nenhum ponto para que ninguém sinta 0 peso de sua insisténcia, Nas calgadas, nas lojas ou nos cafés, uma espécie de estado de graca social permite o cruzamento inécuo dos olhos dos transeuntes ¢ dos ‘consumidores. A troca de olhares entre desconhecidos nas ruas ou nos cor redores resta usualmente neutra, 0s rostos permanecem impassiveis e nada TSIMMEL, G. “Eva srl socologie des sens” Soioogle et Epistémolgie. Paris: PUR, 1981, p. 227 “Wd * LEBRETON, D. Anthropologie du corps et maderie Op it VARTRE, J.-P. 'Bire ele nea. Pass: Galland, p. 309. 216 27 Setiedieiatinieada i ae ‘sem incorrer no risco de incomoda-lo. Na promiscuidade dos trans- um possivel encentro, de um excesso, de um incidente que pode se. coletivos, o olhar acrescenta uma ameaga intolerdvel, aquela de ver-se convengées sociais limitam cuidadosamente os riscos. Quando os indi nte furtado de sua intimidade, de perda de autonomia, No nilo se conhecem ¢ que nenhuma troca foi claramente iniciada, nenhum on elevador, todos se esqurdam em seus universosprvados, & deve sentir o peso da atengao do outro, os olhares afloram rapidamente Selos-caferyos exigidos pore manier eesn shia deastencto, site envolver os rostos nem os corpos. Caso um olhar dissimulado seja dirigi el quando o outro esta frontalmente contraposto. A preservagiio Outro sem que ele saiba, esse pode fingir nao se aperceber. Do mesmo imidade do rosto quando se esti cara a cara realiza-se por um turvamento hum terraco de café, os consumidores observam discretamente 0s pas fblher, que imerp6e uma espécie de tela simbélica entre os atores. PosigSo Para assim protegé-los do incdmodo e para evitar serem descobertos. N CT cesdyie crdasnn mabe recoelbrcerinediataneats, di mecina forma que situagdo, em meio a0 caminhar da multido e dos transeuntes, iuenttestiocneepes cingeiet vel um deleite visual tranquilo e inconsequente*, I Gras cnfettacia ol do am aprenectesSnidésdestroa0 600 ‘ io, os olhares da platéia so unanmemente fixados sobre aquele que se sa. Aqui, no entanto, a reciprocidade dos olhares € impensavel. ar do orador flutua sobre a sala, ele fita, por um instante, um rosto, mas mmete-se desde logo ao mesmo constrangimento que surgiria nas ruas ou cafés. Caso se demore observando um dos membros do piblico, ele dard em @ interrogacdes, O olhar de um desconhecido, ditigido de forma inopinada, surpreende, suscita questionamentos acerca do motivo de tal aten- ‘go e aumenta a tensio emocional. No mais das vezes, € 0 observando quem desvia 0 olhar, recordando, por intermédio de sua afetada indiferenga, a regra que 0 observador negligenciou intoleravelmente. Contudo, um olhar imoti- vadamente aferrado suscita uma reago de incmodo ou de fuga. Conhece- mos a experiéncia de Ellsworth ¢ seus colaboradores, os quats soliitaram a seus auxiliares que fixassem um olhar neutro sobre os condutores retidos no sinal vermelho, Confrontados com essa insisténcia.inesperada, que rom- pe claramente com as regras de discri¢lo, ¢ incomodados por uma situago incompreensivel a seus olhos, os condutores arrancavam mais rapidamente, r fugir dessa tensio*. Feces mnie paquerar ou na tentativa de intimidagao, é comum olhar inconscientemente para outras pessoas, Os olhos vagam, escorregam sobre “0 oulro sem se deter. Se, por inadverténcia, eles se cruzam por uma fragio de segundo, 0 incémodo é mutuamente aliviado pela continuagao do movi- torna-se pos Ohomem que espia um insignificdncia, apropriando-se furtivamente do objeto cobigado e afastan se-como se nada tivesse acontecido, sem interpelar qualquer pessoa com rosto, do qual ele apaga cuidadosamente toda aspereza suscetivel de chatty @atengdo. Uma “falta de atencdo polida” (Goffman) preside o contato oculiit € dissipa o incémodo que poderia surgir nesse momento. Uma discrigao emis nentemente ritual cumpre seu papel de manutengdo do recato individual. No entanto, parece que pedestres, ao cruzarem-se, trocam olhares uma fracao de: segundo mais longos caso sejam de sexos opostos’. A duragio suplementap ue diferencia uma olhadela da observaco submete-se a regras imperativas, A interagio fortuita nos transportes coletivos, nas salas de espera ou nos elevadores, proibe os contatos visuais, exceto quando da entrada de um novo companheiro, geralmente acolhido com um breve sortiso. A proximidade fisica torna o olhar alheio inconveniente, eventualmente o tranformando num, inal provocativo ou despudorado — num “abuso da situagio” Senta-se como uma barreira sagrada do individuo, rosto apre- © olhar do outro niio pode “Ba seagan wo si forma masculina de observa di “volar norma, segundo J-C. Kaufmann p10. "CARY. MS, "Gaze and ficial display in pedestrian passing”. Semiotica, 28, 1979, snc ae pe (Cre eo gad {ELLSWORTH aT me ao tgh abun ts — A er of lepine, ‘of Personality and Social Psychology, , 2, 1972. 219 218 ee nos espeticulos, elas falam com os olhos, cuja linguagem am perfeitamente™. Os olhos recebem e simultaneamentetransmitem informagSes, eles con- sm para o desenrolar da interago. Da mesma forma, informam nee - {micas que acompanham a voz e sobre os momentos propicios & tomada da lavra. Para convencer-se, basta pensar no incémodo causado pelo desvio olhar do interlocutor durante uma conversa. A dissimulagao dos olhos por s dos éculos escuros filtra ume larga parte das informagées confidveis, mento ocular em outra diregdo, como um olhar comprometedor em busca uma saida honoravel. Afirmando a Pureza das intengdes, um rapido so também pode fornecer uma maneira elegante de escapar ao embarago, ‘mesma forma, um olhar prolongado que é detectado pelo observando, tum incOmodo frequentemente reciproco. Os desvios visam entdo a pi 9 embarago ow @ apagi-lo. Ao ser encarado, o homem pode sair da posi inconveniente onde se encontra ignorando deliberadamente 0 olhar que I € dirigido, isentando seu rosto de qualquer comprometimento. Assim, . Here demonstra ritualmente que nao se ie com a insisténcia. Salvam-se 1e reforgam a comunicagio. Ela desequilibra atroca e eer an aparéncias, os olhos se cruzam, mas retomam simultaneamente sua re inferiorizagio daquele que nao dispde do mesmo meio € cuja expre original, sem qualquer quebra sensivel da regra de discrigaio. Caso o des sce com uma perturbante nudez. ae ‘ocorra tardiamente, a vitima ainda pode encabular o indiscreto no intento BB Nesse peatiio;o olhané meis-ra aceinaaniiaes se defender: “vocé quer tirar uma foto minha?”, “vocé nunca me viu?” Ao InformagGes sobre esse ltimo do que para ee po agir desse modo, ela impoe resisténcia a uma agao percebida como a tor ‘eobriu ao perceber 0 desconforto de sua avé doente: ee eaes ilegitima de uma parte de sua substncia. no enxergava pela estranheza do sorriso de acolhida que e: ae Em outro contexto, o olhar firmado funciona como indutor da troe: abrimos a porta, e que manteve até que se Ihe tomava i “ aie sous gargom de um café nio pode ignorar o cliente que procura chamar sua riso comegara prematuramente e permanecera a a ae io, mesmo que prefira por um momento negligenciar os impacientes a ios, fixo e frontal para que fosse visto de toda parte, Ela ce codnge de poder organizar coerentemente seu trabalho. Da mesma forma, o medi nha da ajuda visual para regulé-lo, para Ihe indicar 0 ee aie dor de um debate nao pode, em principio, “esquecer” por muito tempo ‘para ajusté-lo, fazendo-o variar conforme os deslocament s expresso indignada do participante que solicita a palavra, mesmo que da pessoa que chegava”" 5 aucieila(ics tacidcauaiatiaiAs hesite em concedé-Ia por se tratar de um personagem notoriamente con! Uustapostns numa discuss, os stores das socieda Galecee cido como habitual causador de problemas. O ato de Paquerar submete-se ‘mente deixam de se fitar nos olhos, seus rostos aoe uae uum ritual diferente, pois que se tolera o olhar insistente do homem sobre respondéncia, um refletindo as expressdes do ee ‘mulher, que faz, em prinefpio, finta de ignoré-lo (o incémodo também su ie alla aia lene career amitide quando © homem € submetido ao mesmo olhar). Nesse caso, 0 ato fe trocam olhares que sinalizam 0 eomprometimento pio : rae encarar alguém tem, sobretudo, valor avaliativo, ele mede a disponibilid: ‘tengo prestada as indicagdes exibidas pelo rosto. O olh eel faz testes para ponderar suas chances. Se os olhos nao so desviados, 0 ¢ {ea de enunciados. Para tanto, os alores podem buscar soci ear eae Pode responder com um sorriso encorajador. A partir desse momento, insti: TAO assenfimento do olhar alheio, inquirir em qual eee eee la-se um encontro. Ao evitar responder a tal convite, 0 individuo mantém suit palavra, mostrar ao interlocutor que ainda tém algo a dizer ou pel Teserva, recusa-se a entrar em comunicacao e bloqueia essa via de acess, : a Em otro contet socal, Meat e Bateson ds Toda troca de olhares cria provisoriamente uma afiliagdo, uma intimidade, TCASANONA Wei Ps ans 11m nnn i Med Bw ‘eevem os comportamentos de paquets entre os joven halineses como Casanova descreveu as estratégias de olhares das madrilenhas & procura de NE corneas Cueecae 27) ma s sas no rigido a é " ARGYLE, M. Boil communication Londres Netbun, 1975p. aventuras amorosas no rigido ambiente espanhol do século XVIII. “Nos pas- SR Mela rere: eocnee 220 to fisico € especialmente auditivo, prejudicado pelas condigdes externas Para avaliar sua sinceridade, etc. Diversos estudos mostram que, em no relaco. Pode acontecer também que um olhar expresse a indisponibili- Sociedades, os sujeitos em interacdo observam-se durante 60% do tempo troca, embora existam relevantes variagGes individuais. No mais das ve quando pousa sobre 0 outro e sobre ele se detém momentaneamente. quem detém provisoriamente a palavra reduz a atengao visual dedicada a narrador de Em busca do tempo perdido descreve esta atitude do Sr. de Parceiro. A situagao se inverte quando o falante anterior passa a ouvir! jis: “Conversando com um colega, ele por vezes me langava olhares olhares sio ferramentas de sincronizagio", eles tendem a se acentuar no Jue, ap6s examinarem-me inteiramente, desviavam-se impassivelmente na ‘mento em que o interlocutor termina seu discurso e constituem uma demi rego de seu interlocutor. Omitindo o mfnimo sorriso ou aceno, parecia que de aprovaco, de posicionamento, ou um convite para que outra pessoa fi nem ao menos me conhecia. Pare esses importantes diplomatas, observar Por sua vez, uso da palavra. Eles duram entre trés e dez segundos, Al 8a maneira nao tem por objetivo anunciar que eles o viram; mas que eles dessa duragio, provocam ansiedade. Nao fosse pelos contatos ‘oculares, © notaram € que esto a tratar de uma questao importante”, individuos presentes nao teriam o sentimento de estar em interagao. Ot Fugir da vista alheia, disfargar 0 olhar por tras de dculos escuros ou re- ‘vamos muito mais a pessoa pela qual temos uma afei¢do mais acentuada usar a fitar os olhos (expresso carregada de sentido) cria uma impressiio apaixonados passam muito mais tempo trocando olhares do que os cas desajeitada duplicidade, de dissimulagao, ou sinaliza 0 surgimento de um {idos por pouco apaixonados'. O individuo ao qual se atribui, de maneira pelos Diealindes Cason nite nde. posse) bitrdria, uma competéncia qualquer, ou uma apreciagao social positiva, cm Sua para si mais olhares do que os sujeitos incégnitos'’. Algumas experiéncias'* colocam em relagao 0 olhar sobre 0 outro @ status social dos locutores. O sujeito hierarquicamente inferior s6i fitar detidamente seu interlocutor. A porcentagem é ainda mais acentuada caso blema; em todo caso, a.comut jjustificar essa tude embaragada com sua timidez ou com uma emogao par- ular, ele perderd a estima de seus pares. “Quando Ihe dirigimos a palavra, no nos olha nos olhos”. Aquele que continuamente desvia o olhar, que ‘simbolicamente se recusa a tomar a expresstio do outro em consideragaio ~ “negando igualmente a apreciacaio de sua propria expresso como penhor mo- ‘ral da palavra proferida aos demais ~ cria um mal-estar e se sujeita ao rece- bimento do mesmo tratamento. Ele impde certa distancia, uma desigualdade ‘em detrimento do outro, ao qual restara indagar-se sobre 0 suposto signifi do de tal atitude. Em alguns casos, nao olhar o falante pode indicar uma des gradavel distragdo ou até mesmo a indiferenga. A aparente falta de anuéncia do audit6rio leva o locutor a gaguejar ou a perder sua linha de pensamento, ‘sentindo que sua palavra carece de interesse na opiniaio de seus parceiros. Re- conhecendo-se que 0 olhar niio é neutro, é de se notar que a evasio tampouco ‘0 €. No imaginério popular ou nas revistas em quadrinhos, o traidor tem um olhar obliquo, fitando de soslaio. Os olhos fugidios denotam mal-estar, uma vere Vontade de manter a distincia. Interrompendo a dialética (haseada na igual soe tpn cee es Aan Ae 3. RIME.B “Les dite dignidade dos individuos presentes e no valor compartilhado dos semblantes) "” ARGYLE. M. "La communication pre ear La Recherche 0132, 1082 entre 0 ato de ver e 0 de ser visto, aquele que “perde a face” em consequéncia RUBIN, 2. “Measuremen of rami oe" Jou of Personality and ScialPaychology, 1, 1970, , Por exemplo), quanto mais aumenta a distinc! com relacio a0 outro, maior é a solicita¢ao do olhar como um dos supoi da comunicago, como o canal visual que compensa as perdas impostas ARGYLE. M. & COOK. M. Gaze and Mutal Gaze, Cambridge: Cambwidge Universty Pow, 1976, a verbaes Paris: PUR, 1980, p. 111 "Les déterminans regard en situation sociale. Arce, "SPROUST, M. Le corde guermantes. Op. cit p. 382 respectivas posigdes sociais dos atores presentes, seu grau de pareniehea de familiaridade, seu sexo e idade, Nesse sentido, toda andlise eXeOie dda da interagio dos olhares expée-se ao desmentido de uma de uma agao moralmente repreensfvel, perde simultaneamente o direito olhar © outro:nos olhos. Eventualmente, ele sera apedrejado pelos olhares: testemunhas de sua falta. Confuso e envergonhado, ele baixa os olhos cobre com as maos. Agindo deste modo, ao menos em nossa sociedade, confere ao semblante uma eminéncia simbélica apta a sustentar o sentime de identidade pessoal"®, o individuo traduz seu acanhamento ou sua cu y ele se entrega a0 olhar julgador dos demais e consente em nao mais 0 los no rosto. O individuo reconhece desse modo seu erro € se esforg: ‘compensé-lo. O fracasso pessoal é evidenciado; porém, tal atitude pres: ator. Caso insistisse em manter a reciprocidade do olhar malgrado 0 con! mento de sua falta, ele deixaria indefesa sua interioridade, aceitando ter mago perscrutado pelos outros e sendo assim despossufdo de si mesmo, ‘mesmo modo, aquele que comete um ato de violencia contra alguém tet evitar seu olhar. Na famosa experiéncia de Milgram" em que um colabor Pedia aos sujeitos, em nome de um pretenso protocolo cientifico de pes que disparassem choques eletrOnicos num homem ligado a uma cadeira verdade, um ator fintando 0 sofrimento), aqueles que aceitavam fazé-lo toleravam ver a “vitima’ retorcer-se de dor, Igualmente em relagao ao ‘esse mesmo processo de dissimulago que causa a duplicidade do sembl reduz os olhares na diregéo do sujeito tapeado, a menos que a experié _Seja encenada por um excelente comediante. E certo que o olhar nao esta desvinculado da atitude global que mobil a integralidade do corpo”. A tonalidade afetiva traduz-se tanto pelos mo) ‘mentos do corpo e do rosto quanto pela qualidade, pela duracao e pela di ‘s%0 do olhar. E preciso evitar 0 isolamento do olhar da trama simbélica alravessa as préticas fisicas dos parceiros de interagiio. O olhar solidariza-se com a maneira de ser diante do outro, ele nao é analiticamente destacavel mente a mtd identifieago,/Na relacdo com o outro, o olhar ¢ fortemente efetivo independentemente. Seu ritualismo varia de acordo com as sociedie apreendido como experiéncia emocional, ele € sentido como uma marca de des, correspondendo a uma ordem simbélica®. Ele também varia consoante autorreconhecimento: suscita no locutor © sentimento de ser apreciado e Ihe grupos. ms Entretanto, o viés antropolégico rompe com a evidéncia de que toda troca .a primeira e necessariamente por uma relagio face a face, onde 0 ge sempenha seu papel regulatério. Na verdad, conhecem-se posturas dife- es em outras sociedaules, onde os atores podem ficar quase de eostas uns outros, de sorte que as modulagdes da voz oferecem preciosas indicagoes bre a tonalidade da troca. Os vezo, marinheiros seminomades do sudoeste Na dea cultural vezo, quando um Madagascar, revelam um exemplo: sutor emite palavras defronte a alguém, ele baixa os olhos, ao passo que 5 mos podem manipular pequenos galhos no cho ou desenhar figuras na tam-se os olhares durante as con- ja", Também na sociedade japonesa e' Yersas: fitar 0 outro nos olhos € considerado inconveniente e sinaliza agres- Sividade, No sumé, cujas condutas submetem-se a um rigoroso ritualismo, (9s ltadores poem-se em guarda com as mos coladas ao solo ¢ se divisum Jongamente, medindo suas forgas e procurando desestruturar moralmente © adversério. Oencontro dos olhos : ‘A troca de olhares por vezes excede a indiferenca cortés ¢ modifica a relacio do individuo com o mundo mesmo que no provoque uma interagdo mais duradoura. LE BRETON, D. Des vsages Essa d'anthropolope, Pars: Meili, 1992 = MILGRAM, 8, Sounssiow I autrité- Un poit de vue expérimental. Pars: Calmann-Lévy, 1974 ® Um exemploproveninte a0 Magrebe: “Como observa ¢ come set csr sho o objeto de um preci € iaciso aprendzad, parte intgrante da socalizaio do magulmano.. Uma sée de prescrigSes comand ool Ht, “Dew. o Sublime, disse aim: ‘O olka € coro uma Recha demoniacadispraa por Ils O homer ae es cons ‘else dsviar por medo de nim ver a wansformage deste ofr em at de cua dora ee sabercats eM ‘prio corago" (BOUMDIBA, A La sexual en lam, p I-83). 9-85.19) et um (0 ‘em Bali, na Opera de Pequim, no Kathakili Os wores ovienais praticam um riualismo afirmaco do olbar: em Bali, ma Oper ees er tee dogtes rela, yr en Jum wo quote do lt. De fs caeciah u. iver person -¢ acontecimentos de maneira concreta em cena. “i LIN “Aqul age pdie ures membes des commana busines? Gente Image, 225 informa, a ntensh = — ane do audit6rio por sua palave invoce f de btso, confer uma inesperaa digidade, Orage Lami aie anne que legitima a presenga do ator no mundo e a ieee pose ra para o melhor ou renegado, incapacitado, ete.) ¢ Ges eaeis = Posigdo dificil (doen J. Agee descreveu o abrasante momento do encontro com uma mulher em contesivelidentidade socch Porm od pate sinais de uma i jrcunstncias nas quais as convengées impedem qualquer explicitagao dos ado problemtica acreita ser reconhceide er implice, o ator em sith sentimentos € onde nenhuma palavra pode ser pronunciada para manter a 10 pelo que €. Logo, seu sentimer |intensidade do instante, sem, entretanto, criar implicagdes para o futuro. Ele nduzia uma pesquisa sobre as condicdes sociais de existéncia de algumas familias de cultivadores pobres do Alabama. Numa noite de tempestade, uma familia desconhecida convidou o estudioso a abrigar-se em sua casa. Ele en- tra, 0 espaco é sombrio, parcamente clareado por um lampido de querosene. ‘O homem e a mulher sentam-se préximos & lareira, diversas criangas brincam, pelo chio ou sobre a cama, Louise, « filha mais velha, segura em seus bragos ‘0 bebe recém-nascido. O pai apresenta J. Agee & familia sem dizer qualquer lidade da qual ele se acreditava privado. O ‘cones ‘palavra, nenhuma conversa foi iniciada. A solenidade do siléncio envolve a instante, mas seus efeitos permanecem sensfvere Pode se encerrar ness “espera enquanto cai a chuva no exterior. De tempos em tempos, o pai, que © sentiment de ientdate de wor ae A 4 884 metamoro no aguenta o siléncio, profere uma palavra, sem lograr qualquer respos efeito de una consrcio saben naa € wm ito objetivo, mas Repentinamente, Louise e Agee trocam um olhar, a cumplicidade logo se mento alheio, Por vezes, “primera ee submetida ao assent instaura. O escritor percebe que ela nao deixou de fité-lo desde sua chegada, aoroso ou amistso pode se entclager Quan seat a lenda), um encontig Para dissipar o mal-estar vindouro, ele Ihe envio um sorriso. “Eu permiti Loup, seu amante repentinamentedesaparcceu de wiseonscinnn eae que todo o meu sentimento por ela, tudo © que eu poderia ter-Ihe dito horas respond distaidamente no gucea eng cana“ a fio se as palavras pudessem tudo exprimir, fosse expresso em meus olhos, lados. Durante alguns minutos, senti que é possivel estes pena olhos arregae ‘Voltei meu rosto ¢ plantei meus olhos nos seus, ¢ ficamos Id sentados, em $e ama e, no entanto,ndo t-laconsigo. Eles pareciam este ngn eta meio a uma vibrago crescente que me deixou em parte inconsciente, de conversa privada, emudecida por minha ier iam estar numa miserio ‘maneira que eu persistia, ao invés de, cego e mudo, fugir dali”. A situagao grado seus esfrgo, Albertine Rann ee sent Da mesma forma, mal durou um longo momento, ao mesmo tempo discreto, invisfvel aos olhos dos “Seu olarexretoe aelndedo Renee eee $24 amor das mulheres ‘outros, mas intenso para os dois protagonistas. “Eu continuava a observa-la, aderente e corrosive, parceende wr nc eee sobre uma transeunte, e ela a mim, cada um de um olhar ‘fri’ e ‘inexpressivo’. De minha parte, © imperativo de manter uma “cortés indiferenca” arrancar-Ihe-ia a pele’ acrescentei um sentimento de protegiio. Ela correspondia sem medo, surpresa ferenga” nao foi capaz de veneer ‘ou qualquer admiragio, mas com uma aura extraordindria de aplicagao e de . "el ‘emogio nesse encontro, ¢ 0 rito foi estendido pela atragio suplementar, A 'm val yotag4o sexual do olhar agiu sem encontrar obsticulo. Olhos nos olhos, charme entrou em ago, operando um miituo reconhecimento. Sob uma 1a metonimica, a abertura do rosio ao olhar jd prenunciava a ligagdo que Para o pior, at via se seguir™. A faci é ah e pe © recuperada por meio do encontro miituo dos rostos, me: nr olhar que restitui simbolicamente ao ator a concretude da iden ROUSE M. Sone oa ® Gomi Ps Galina 6p. 470 Cal, ay PROUST.M. prone Pas Le Live de ace 9 af oa PHO ROUSSE, Laws ju se rencontrven! La seine del premire ve dans le yoman, Pais: Com, 1981. © AGEE, J. Lawns maintenant Tes grands hommes, Pacis: Plo, 1972p. 388 226 Ul 227 ei eh. ke eld etoee Re a chave secreta de sua atitude: se se tratava de calor, de raiva, ou de de pura ¢ simples”. Louise finalmente baixou os othos, observou as ios do pesquisador. Quando elevou novamente o olhar “fui eu quem, bescendo, desta vez mudou de atitude, como se a ela dis Prejudicial, se eu fui na sua diregzo e a toquei de forma ofensiva, perdoes Se puder, menospreze-me se for preciso, mas pelo amor de Deus, nio tet medo de mim” Os olhares se separam. Entre Agee e Louise nenhuma Pi vra foi trocada, poucas sero em seguida, mas tudo foi inequivocamente di Reconhecimento mituo, momento precioso de encontro pelo efeito de olhar em outra dimensao da realidade, o qual nao tem outra incidéncia sol essa ultima. Contudo, a emogo nao seria menor se os dois corpos estives entrelagados", Os olhos tocam aquilo que percebem, ¢ implicam o sujeito no mundo, Numa passagem do seu didtio, Charles Juliet também expressa a forca site bélica do olhar. Ele se senta num terraco de café em frente a uma mulhéh “Ela estava com a cabega abaixada e meus olhos chamavam-na. Ao levanta © Fosto, ela foi literalmente empalada pelo meu olhar. Permanecemos assifi durante dez a quinze longos segundos, entregando-nos, investigando-nos, misturando-nos um ao outro. Ela logo recobrou o alento, a tensao caiu e ela desviou o olhar. Nenhuma palavra foi pronunciada, mas acredito nunca ter ‘me comunicado t2o intimamente com alguém, nem haver penetrado de forma ‘0 completa uma mulher. Em seguida, nao mais ousamos olhar um ao outro, cu sentia que ela estava perturbada e que parecia que haviamos acabado de fazer amor”. Hi casos em que um olhar trocado niio deixa a pessoa indene, Podendo até mesmo transformar sua existéncia®, 0 olhar que pousa sobre 0 outro pode significar encontro, ‘emogao com- Partilhada, alegria inconfessa. Ele contém a ameaga do excesso. Nao é nada Surpreendente que a Igreja haja combatido os olhares “concupiscentes” ou assim supostos. Olhar jé € dar-se em excesso e ser visto causa um despo- SLEBRETON, D, Anthropologie du corset modemité. 4 Pais: PU, 1998 JULIET, C, Journal (1957-196), Paris: Hache, 1578, p 259, Nej-se, por exempl, a tradustoltrsris deste tema ta como anlisa Jean Rousse, 228 tw ser fixados em ninguém, pois quando vocé encontra homens, nao pode furtar- se de vé-los ou de ser visto. Os maus desejos nio nascem somente com 0 to- {que, mas também com os olhares ¢ os movimentos do coraco. Nao pensem {que seus coragées possam ser castos quando seus olhos nao o so. O olho que ‘no tem pudor anuncia um corag2o que tampouco tem. Quando, apesar do silencio, seus coragdes impudicos se comunicam ¢ aproveitam do seu ardor iituo, de nada serve que o corpo se mantenha puro: a alma tera perdido sua castidade” 5 distincia; ele implica envolvimento mundano. O desejo imaginado é para a er ene en ee € compelida a uma “modéstia do othar”. Elas siio submetidas sidade de humildemente baixar os olhos em todas as cireunstancias" fim de evitar os maus pensamentos ou 0 contato fatal com a ambivaléncia ‘mundo, O olhar faz aparecer o risco do pecado. Aflorar simplesmente 0 jo, mesmo que ele permanega confinado & intimidade, jé macula a alma, into Agostinho é explicito: “Se seus olhos pairam sobre alguém, nao devem ®, Aos olhos da Tgreja, 0 olhar jamais se resume contemplacao e alma um desejo realizado que a conspurca. O Evangelho o expressa inequi- vocamente: “todo aquele que langar um olhar de cobiga sobre uma mulher, ja cometeu adultério em seu coragiio Viruléncia do olhar No amor ou na ternura, 0 olhar “toca” 0 outro com uma rara emogao, po- dendo oferecer a ele um formidével poder criador. Ao revés, 0s cities ou 0 mau-olhado podem conferir-lhe uma temerosa forga destrutiva. O filésofo F. Bacon observa que “Existem to-somente dois sentimentos: o amor ¢ a inv ja, que podem fascinar ou enfeitigar. Os dois comportam desejos veementes {que cedem de bom grado a imaginagdes e a sugestdes, os quais sobem fa ‘mente aos olhos, especialmente em presenga do seu objeto, ¢ engendram as- sim a fascinagao, se & que algo parecido existe... Parece ser sempre posstvel reconhecer no ato volitivo uma erupgd0 ou irradiagao do olho”™. O rosto é sensivel as emanagdes positivas ou negativas advindas de coisas ou pessoas, "ARNOLD, O. Le corps ei 'dme —La ve des reliieuses ou XIX sil. Paris: Seu, 1984, p. 88, “Rtg de Saint Augustin”, In: Riles des moines. Pars: Seu, 1982.43, © MUS 28. Biblia Sagrada, Petropolis: Vows, 1982 BACON, F.“De envi" Essa. Pris: Auber 148, p37. 29 pois ele é © mediador identidade”, Socialmente hi te a existéncia, 0 Privilegiado da c¢ ‘ag “Bl comunicagdo e a sede essencial mo ordinario” frequentemente reside naquele olhar cortante furtivo que dispara sua flecha de menosprezo ao partir imediatamente. A tima pode ignorar a agressio ritual de que é objeto e seguir seu caminho, “onstitu(-la com uma tirada de humor ou com uma atitude desembaraga- ¢ desenvolta. No entanto, ela também pode ceder & agressio abaixando olhos ¢ aceitando ser “fuzilada pelo olhar”, proporcionando ao ofensor satisfago que esperava obter, Temendo uma exagio mais grave, a vitima se submeter, ao menos provisoriamente, a esse tratamento, esperando 1e 0 ofensor esteja satisfeito, Ela também pode altivamente desviar o olhar, ifestando um menosprezo reeiproco. Exasperada, pode também respon- com uma agressio fisica & agressiio simbélica ¢ querer “quebrar a cara’ abilitado a conferirlegitimidade e a garanti simbolicam > olhar tem igualmente 0 condao de contesté-la, de negée eae aA fonalidade das trocas oculares nem sempre é amisto senso vend pelo deinen om seote nat = Pian a oe grande indiferenga com a mim’, “ele quase nem te olha qua rsnhci, de nom mesmo stale ae a que, mesmo fugaz, ampara a certeza de existir @ Palavra a outrem impede a sustentagdo de Pelo simples fato de que no foi nem mesmo € como rise4-lo do mapa simbolicamen insignificante, isto é: vilific igares € expressiio do declinio de uma “face”; ela i jwele que intentou fazé-la “ficar com a cara no cho”: “Vocé viu como ele ou pra mim?” Podem decorrer sinistras consequéncias — ilustradas pelos imagindrios istas, que levam tais fantasias ao pé da letra ~ caso o olhar alheio seja per- ybido como uma influéncia, como um contato fisico ou mesmo como uma Imacula. Observar os rostos das pessoas que estiio em volta nao é um direito, ‘mas um privilégio que o racista concede a si, sem tolerar a réplica de suas vitimas. Ele deseja a assimetria do olhar, espera ver as pessoas baixarem a ‘eabega quando se aproxima e assim testemunhar do medo e da subordinacao fs mesma dizer ve pans © on os outros. Quando é a sua vez de ser observadeo, ele se sente ameacado, re- aman bem, pore mene ¢eia 0 questionamento de sua autordade fantasiosa sentindo sua dignidade 3 me enxergr.. Mina ivisibilidade tampoes ee eats Fees atingida e mesmo comprometida pela ofensa percebida. O racista somente aum acidente bige tolera sobre si um olhar deferente ou, ainda melhor, o abaixamento dos olhos; ‘mas ele nao se priva de exaltar a sua posigao de forga por intermédio de um othar carregado de agressividade e de menosprezo, um olhar praticamente fatal. De fato, isso seria apenas a primeira etapa da progressio hist6rica natu- ral, que somente espera as condigdes favordveis para se iniciar. O morticinio {j estd simbolicamente contido na viruléncia do olhar racista, que se contenta em apreender apenas a aparéncia corporal de sua vitima. Nas relagdes entre homens ¢ mulheres, especialmente nos estados me- ridionais dos Estados Unidos, o olnar é uma obsessao, de forma que cada negro deve ostensivamente baixar os olhos quando passa uma mulher branca, que poderia sentir-se perturbada pela promiscuidade de um possfvel contato te, rejei Somente sou invisfvel, compreenk A mimica da desaprovagio ou do menosprezo, forma ritual de rompi= iscrigdo, marca uma tentativa d ai a iqueta de dseri va de intimidagaio do ou Biernio de sua aparéncia ou de sua conduta, a qual pode ser nals = teed Segundo as situagdes. Apoiado, ostentatério, redobras Jeclppee aa formula um julgamento de valor. Diferindo, ele simbolica do sentimento ‘identitario, dey ; . depende do acordo dos SLEBRETON,D Devt es visage. Op it ELL SON, R. Homme isi pour gut chante? Pts: Cre, 1969.20 230 231 ocular. Nos anos sessenta, colocando-se “ ‘na pele do negro”, Griffin rec fiviado quando ela partiu™. Nas agéncias de emprego, “cada vez que a pes- ‘encarregada de interrogar os postulantes era uma mulher branca, todos os is misculos ficavam contraidos minhas maos encharcadas de suor, Um tive de abreviar a entrevista e precipitei-me para fora da agéncia”*'. Os alos inter-raciais so marcados pela obsessdo da sexualidade nos estados listas. Nos encontros amorosos entre brancos ¢ negros abundam os mal-en- \didos. Os casais “mistos” dificilmente convivem sem sofrer ostracismo ou mbaria. Griffin, maquiado de negro e pedindo carona, assombrou-se com quantidade de perguntas a respeito de sua sexualidade que os condutores .cos incessantemente faziam: seus supostos parceiros, 0 comprimento do 1 membro, as posigdes que pratica, etc. Protegida pela discrigaio do auto- ‘mével e pela assimetria da relagao, toda uma mitologia era liberada®. hesitardo em fazer disso um pretenso incide Hernton, um negro nunca deve fitar o fingir que ignora sua existéncia, Nos cer distante te”, De acordo com Calvig s olhos de uma mulher branca ¢ dev meios de transporte, deve permanes + graceja-se que um negro deve descer da calgaa Pouco falta par Palavra elogiosa a respeito de uma mulhop ‘Osa Caso seja ouvida por alguns brancos sulistas. O 20 uma fotografia de mulher brane: branca torna-se perigi “Mau-olhado” Segundo Jean Starobinski, “Ver é um ato perigoso. E a paixao de Linceu, ‘mas provoca a morte das esposas de Barba-Roxa. Nesse ponto, as mitologias € as lendas so peculiarmente undnimes. Orfeu, Narciso, Edipo, Psique e ‘Medusa ensinam-nos que, ao tentar estender o alcance do olhar, a alma se submete a cegueira ¢ & noite”®, Mas, ser visto, nos exemplos citados, revela- se igualmente virulento, Na mobilidade dos olhos e em sua capacidade de apoderar-se das coisas apesar da distancia, reside uma periculosidade latente que surge em relagdio Aquele que foi visto e cujo rosto foi atingido diretamen- te pela nocividade do olhar. O mau-olhado, por exemplo, é uma ago que forca a vulnerabilidade do individuo em seu préprio rosto. Ele requer uma confrontagdo, mesmo distante e fugaz, e na viruléncia de um olhar do qual niio foi possivel se esquivar e que atingiu seu alvo. A obsessiio de se macular em con: S08 epis6dios. C. Hernton lembra de sequéncia do olhar alheio rendeu diver um caso de estupro mediante “olhadela | 's dos anos cinguenta no S\ fe Pa 10 Sul. Uma her branca havia se sentido agredida pelo olhar de um negro, que a obser. il lado da a io Suro lado da rua. Ela comegou a grtar, dizendo que o homem tink aintencao de estupré-ta. Os passa santes fizeram-na observar es pass que 0 homem es: outro om ‘ud e parecia seguir calmamente seu caminho, indo na diregao oposta, “1 i ; i? on +. jlesme assim ele olhou pra mim como se tivesse a intengiig | donee tt © homem foi preso e condenado™. C. Hemnton, tendo cress Se contexto ambfguo, relatou seu deslumbramento ao chegar em Nova Torque, podeni 7 pes Renta Pes Por onde desejasse, sentar-se em qualquer lua le meio de transporte. No entai ! - into, ele igualmente rec " i . recordou ee due sentia cada fez que defrontava uma mulher branca, mess €m situagdes ordindrias da existéncia, * b -xisténcia. “A primeira vez que uma Sentou-se ao meu lado no m i mente tema do mav-do agindo nas crengas ligadas ‘su débats de 'époque moderne” Car Havelangesnaisa os posers. nascenga, especialmente 0 do Basilsco, © most gu Tbnouuta, eh HAVELANGE, C.“Autour du bastie ~ Les pouvoirs da regard oir. 3,191 sei rm rnc, referee a gulgerentrecerar ox lho, car de mance dstryada. z r 0 FAVRETSAADA, J es mos, la mort les sors. Pais: Gallimard, 1977,p 130-130 234 235 - de protezio visavam a neutralizar os efeitos do mau-olhado”’. As mulhet deviam igualmente cuidar em nio fazer de seu seio repleto de leite um m ¥o para despertar a inveja em outras maes menos aquinhoadas. Entendiasse que 0 citime conferia um poder destrutivo ao olhar, de eficdcia deliberada ou incontrolivel, mas que somente algumas mulheres detinham esse poder. Eli Podiam secar 0 peito matemo e assim colocar uma crianga em perigo. Amite mentando, as mulheres eram particularmente vigilantes nesse aspecto. Un noite, conta Martino, um homem atravessou um vilarejo onde uma mulhes sentada na soleira de sua casa, aleitava seu bebé, Ele olha para ela enquante, passa, seu desejo é por um instante aceso, porém segue seu caminho quand, repentinamente, sente seu peito cheio de leite, Ele entdo retorna para resti- tuir & mulher aquilo que havia involuntariamente subtraido ao observé-la, Q homem a encontra aos prantos, pois nada mais possufa que pudesse oferecer a seu filho. Um curandeiro local desfaz o incidente gragas a uma formula e execugdo de um ritual: a pigliata d'occhio* tem forca capaz de roubar 0 leite do peito da mulher. Este olhar carregado de desejo, mesmo que permanega Pudico © nao formulado, apropria-se de parcela do outro, compromete o§ protagonistas do acontecimento. Um olhar repleto de citimes, mesmo sem intengao de prejudicar, e sem que 0 proprio agente saiba, provoca erupgdes de desordem e de infelicidade, E. de Martino descreve a jettatura segundo a tradigo hist6rica napolitana, Novamente, trata-se de homens e mulheres que disparam olhares reconhee dos como temfveis armas, mesmo que nem sempre tenham consciéncia desse Poder. Por sobre tudo aquilo que seus olhares se fixam, dramas so semea- dos. Numa obra do fim do século XVIII, a Cicalata de Valletta, professor de Direito, a jettatura € tratada de uma forma a meio caminho entre a seriedade © a ironia, Martino considera esse texto como um instrumento de fixagiio de difusdo da crenga’”, Nos moldes de “eu bem sei, mas em todo caso...” ele cristaliza uma f6rmula de aproximagao dos napolitanos cultos ante a jetta- ura: “Nao € verdad, mas eu acredito”, “pela qual eles se desembaragam de uma situagdo dificil rindo da imaginagao supersticiosa da jettatura, e fazen- Vimos que alguns gestos dbucenos come os comes ou 0 manguito (banana de ago) eam da mesma forma uth ‘ars pars afar 0 pego do “mau olhado™ “Bm italiano no origina, referee a toma” algo com a forga do oa. “DE MARTINO, E.tale da Sue: magi Pais Gallimard 1963, . 18 aque carregam amuletos em forma de comos, d ‘nossa pluma ndo seria capaz. de transcrever”™. ‘ohtua : as ‘duas ocasiées, Numa primeira vez “minha filha, em roups ao ao ‘nunca se sabe’ 1a das pessoas do, ao mesmo tempo, uma concessdo ao “nunca se sabe’, propria das pes de chaves, ¢ de outras coisas que Descrevendo sua forma de ago, Valleta confessou aie - sendo espiada pelo olhar torvo obliquo de um yeinaare incr i a deixar uma vida extremamente feliz € encontrar ines inane vvez, cansado de sua carga de trabalho e desejando so! ae ae rigiu uma splica ao rei, preparando um longo document eye | ‘caso, Havendo obtido uma audiéreia, ele malfadadameot ea who com um jettatore e logo em seguida uma chuva dil a Riss cidade. Seu condutor foi encontrado ébrio, seu cavalo contore ‘de dor e, no momento em que ele finamente encontrou © ro desta ntos haviam desaparecido de sua bolsa. As ambivalés : tive ar allaa {que num momento recorre a anilise psicol6gica, expli So eficdcia da Jettatura pela simples imaginagio exagerada acta fe em outro momento parece acreditar em ibaa ena a nam do corpo do jettatore, sobrenudo por meio do oll ‘ a a da ago, De Jorio, conhecido no ramo da antropologia = on aaa autor de uma obra sobre a Tnguage ae ee fee je b. ante » ire sper eenr etme matétia, ele solicitou debalde oo Se rricechioeons ‘os rumores a respeito, Fernando I recusou Umm dia enfim, tendo cedido as presses do seu meio, ele cota Oy . evidentemente, o soberano faleceu no dia seguinte em Rissa Jexia. Alexandre Dumas viveu em Napoles em 1835 € a Ee sara pela ambivaléncia dos napotitanos em relagio & jrtatu- fre ae oon ele descreveu caricaturalmente 0 aah mali ais ingénuos que no sabiam reconhecé-lo nas ruas. eacon comer“ eso se ea pra 8 ini, o mal feito. Nao existe remédio, curve a cabega € espere. Se a viu primeiro, va logo mostrar-Ihe 0 dedo médio este s Sti, p18) bid pT UU ES SOMVERSANGO Na rua em Nipoles, caso ee " ad do outro: trata-se de um jettatore, ou, a0 menos, de que desditosamente passa por sé-lo”, Dur 5 5 “lo”. Dumas faz uma ilustragao romanesca da jeitatura ao contar a histé it - tria de um principe vitimado por es > se sie Poder, © que prodigaliza infelicidade a cada passo* oa Clissicaaluséo i forga percutidora do olhar e a sua nocividade corres- ae na oe rega A medusa Gérgona, cujos olhos langam uma cha capaz. car quem ousasse divisi-la. O rosto de G . le Gorgona contéi lementos de assombro (mistura surpreendente de humanidade ¢ de mee um deles tenha a mao dobrada as lidade), de beleza (Postdon nao resta insensivel)e de fealdade. de masculin y 0 ‘aos, Sobre a mesma, todo possivel diz J.-P. Vernant, largo e arre- lhos sao arregalados, o olhar é fixo € de feminino, Em sua face, reina o ¢. reconhecimento vai desfigurado. “O rosto, dondado, lembra uma face leonina. Os olho © perfurador, A cabeleira é uma hirsuta que como um rosto”. Oassombro. encarnado no rosto nado que cruza seu olhar, log 0 caos de seus tragos, Porquanto tal é a natui limiar do inominével: de Gorgona reverbera sobre o desafortu- 0 petrificado. Medusa é uma criatura mortifera, essa desfiguracdo — que nem pode ser assim nomeada, ezat de seu rosto ~ representa a alteridade absoluta, o ‘@ morte. Mas apenas o limiar dessa, pois a insanidade EE ——— somente modificada. Gérgona rein, efetivamente, no pais dos mortos. Ela impede a entrada de qualquer pessoa viva, é a guardia do extremo confim, aquele do qual no se pode retornar, onde © homem perece imediatamente. A face de medusa jé anuncia as dissolugdes as quais o homem tomado pelo fogo de seu olhar nao escapa, Em seu retiro, apagam-se as referéncias que distinguem 0 rosto da desordem, que o toma no além, Ela indica a fronteira entre 0 vivo e 0 nada, Medusa é a guardia do Hades, pois ser desprovido do seu rosto equivale a perecer e, diante de Gérgona, nao existe qualquer outro rosto possivel. Fortemente enraizada no imaginario coletivo, o tema meduseu percorre toda a arte ocidental™ e ilustra o poder ambjguo do olhar, A face da medusa, ‘ou Gérgona, ilustra vasos, moedas, esculturas monumentais, havendo mesmo, sido gravada sobre o escudo de Aquiles. Figura contraditéria, ela protege quem a detém ¢ fere mortalmente quem a ela se ope. Ela recorda a ambi- valencia do homem diante de seu préprio rosto, que resta entrepercebido, inatingivel em sua verdade, a qual prenuncia a lenta progressfio para uma ‘morte inelutével, mas que encarna, simultaneamente, sua precariedade e seu poder’® * Caravaggio, Parmesan, Rubens, Berio, Loran, Klimt ete (Wer CLAIR, J. Mets, LE BRETON, D, Des visages..Op. cit 239

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