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© ENFORCADO — A GRANDE CRISE 101 tomada de posigao ou a uma mudanga de diregao. Contudo, ela nao quer dar a falsa impressio de que é possivel evitar essas crises com esperteza, devogio ou um comportamento exemplar. Jung diz, como se descrevesse esta cart “Quem se encontrar no caminho para a totalidade, nao pode escapar da suspensio caracteristica representada pelo enforcado. Pois fatalmente encontrara o que o ‘cruza’: em primeiro lugar, 0 que rio quer ser (sombra); em segundo, o que ele nao é porém o outro é (realidade individual do tu); ¢ em terccito lugar, o que € 0 seu nao-eu psiquico, exatamente o inconsciente coletivo.” E pouco adiante, cle acrescentou: “O encontro com o in- consciente coletivo é um acontecimento do destino, de qual 0 ser humano natu ral nada intui, enquanto nao estiver envolvido nele.”* Com freqiiéncia, essa crise despertada por um medo primordial, que Karl- fried Diirckheim descreve como a necessidade trfplice de todos os homens:* 0 me- do da destruigio (morte ow ruina), 0 medo da solidao inconsolivel ou o medo de duvidar da questio sobre o sentido da vida. Este tiltimo medo é especialmente trai- goeiro, porque somente poucos © esperam. Mas € exatamente um profundo sen- tido da vida que nos permite vencer as mais duras crises sem cair; as pequenas cri- ses, a0 contritio, podem ser vividas como crises insuportaveis, por nos parecerem sem sentido ¢ absurdas. Mas € exaramente aqui, perto do final do segundo tergo do caminho, em cujo percurso se tratava do desenvolvimento do cu, que nos aguarda a grande crise do sentido. Tudo ia indo tio bem. Haviamos desenvolvido um eu sadio ¢ alcangado todos os objetivos dignos de nota: automével, moradia, sucesso, uma boa conta bancaria, um belo homem, uma mulher maravilhosa, uma familia feliz. Gozamos de boa fama, nos sentimos importantes ¢ nos saimos realmen- te “bem”, Era o que nés pensdvamos! Talver até tenhamos realizado 0 sonho de nossa vida na “ilha da fanta ia”; acreditamos seriamente que podemos “sait”. E, de repente, constatamos, assustados, que estamos no meio dela ¢ que nao exis- te saida. Subitamente, perccbemos como 0 gosto de tudo é insosso. Tentamos nos anestesiar ou conseguir o mesmo desejo em doses cada vez maiores. Mas a a ajuda é cada vez mais forte. Agora, que temos praticamen- te tudo, nos vemos subitamente vazios ¢ vemos, com desespero, que s6 nos es- peraa morte, Isso ¢ terrivel! E esse problema piora cada vez mais, porque acre certeza de que n ditamos poder responder as novas perguntas com as velhas respostas, aparentemente eficazes. Mas Jung nos leva a refletir; “Nao podemos viver a tar- de da vida com 0 mesmo programa com que vivemos a manha, pois o que é G. Jung, Die Pychologie der Ubertragung [A Psicologia da ‘Transferéneial, Obras com- pletas, vol. 3, p. 210. 4. Ver Karlfried Gi p. 36. af Diirckheim, Meditieren — wnzn und wie [Meditar — para que ¢ como], 102 © TARO E A VIAGEM DO HERO! muito pela manha, & noite sera pouco, ¢ 0 que é verdade pela manha, 4 noite sera mentira.”” O pesquisador da consciéncia, Ken Wilber, também descreve 0 segundo pl no dessa crise de forma muito insistente: “Nés nos identificamos com 0 no So cor po, com 0 nosso espirito € com a nossa personalidade ¢ julgamos que esses obj nosso “eu” real, ¢ entao pa defender, proteger e prolongar o que é uma mera ilu valiosas: “Ao contrdtio da opinitio da maioria dos peritos, contundente insatisfacao com a vidi nao é sinal de uma doeng: tos mos toda a nossa vida fazendo a tentativa de 10.” Mas ele também ressal- ta como essas crises essa ‘animico-es- piritual’s nao é um indicio de adaptagao social insuficiente, ¢ tampouco ¢ um dis- itbio de cardcer. Pois, oculto nessa insatisfagao bisica com a vida € a existéncia, esta 0 germe de uma inteligencia em desenvolvimento, de uma inteligéncia ex- I cial.” O sofrimento ajudaré na sua irrupgio, razéo pela qual no devemos neg: traordindria que em ge ii enterrada sob 0 peso imensurivel da hipocrisia so- lo, desprez-lo ou permitir que a conscientizagio fracasse. Tampouco devemos glorificar 0 softimento, apegarmo-nos a ele ou dramatizé-lo, mas usé-lo co- mo impulso para o conhecimento. deste tipo nos pegam na maioria das vezes pelo pé es querdo, isto é, pelo lado inconsciente, 0 Enforcado esta pendurado pelo pé Como situagdes esquerdo nas a ntigas cartas de tard. Waite foi o primeiro a mudar esse sim- bolismo, a fim de explicar que pode ‘@ ENFORCADO. haver boas razGes para adotar essa po- siga » conscientemente (lado direito) © Enforcado sempre significa que estamos no final de um cam OFnforcado no Enforcado no Tard de Marselha esta Tard de Rider esta pendurado pelo —_pendurado pelo pb asus pé direito € que temos de regressar; que temos um modo de ver equivocado € que ¢ aho preciso inverter o pensamento; que uma situagao estagnou porque deixamos de ver algo importante ou 0 esquecemos. E sempre, além da disposigéo de repensar, é necessério ter paciéncia, muitas vezes muita paciéncia. Essa carta também foi muitas vezes interpretada como o sacrificio, porque a crise que ela representa, na maioria das ve exige a desisténcia de uma expectativa compreensivel, até entao ural, € © seu sa ificio, para que a vida possa continuar, Diante desse segundo 5. C. G. Jung, Die Lebenswende [A Mutagio da Vida], obras completas, vol. 9, p. 73. 6. Ken Wilber, Wage zum Selbst |C: 7. Adem, p. 114 nhs para o Si Mesmo], p. 82. O ENFORCADO — A GRANDE CRISE 103 plano, a apresentacao modificada de Waite estimula a nao esperar até que 0 des- tino nos obrigue a uma mudani temente, para que desse Angulo de visio totalmente modificado, a posigao sobre a cabega, possamos descobrir verdades valiosas. Por isso a cabega do Enforcado € enyolta por um: rmacao das raf- zes € crescimento profundo é portanto o objetivo desta carta, um significado que de direcio, mas a adotar essa postura conscien- auréola, como sinal de que Ihe surgiu uma luz. complementa a carta da Imperatriz, com a qual esta ligada pela soma transversal € que, por sua vez, representa o crescimento em sua plenitude exterior. Num Ambito profundo esta car- ta representa tim homem que se ofere- ce yoluntariamente ao sacrificio. A cruz em forma de T é uma indica da letra grega’Tau (1), cujo correspon- dente hebraico Thau (m) s lha ao cadafalso na carta do Taré de Marselha. cao asseme- m épocas biblicas, no en- tanto, a letra hebraica ainda tinha a mesma forma da letra grega® ¢ valia como sinal dos escolhidos. Era a mar- Desenvolvimento e Formagdo de raizes ca de Caim, que ao contrario da cren- crescimento na e crescimento na ¢a popular nao era uma marca vergo- plenitude exterior. profundidade. hosa, mas o sinal daqueles que Deus colocou sob sua protegio especial (Genesis 4:16). Até 0 tempo dos juizes, cra tatuado na testa dos membros da li- - de membros eta escolhi- do 0 rei sagrado, que se sacrificava pelo seu povo ao final do seu reinado. Combinadas entre si, as cartas 12 ¢ 21, OQ ENFORCADO ¢ O MUNDO, re- to. Na unio a séri nhagem dos israclitas como uma marca real: des sultam na Ankh, a antiga cruz egipcia composta de um circulo e um bi desses simbolos os egipcios véem o sinal da vid: cullino e fe Chegar de © Enforcado (XII) até O Mundo (XX1) ¢ unir esses dois pélos grande tarefa que nos é apresentada. Amarrados na cruz terrena (O ENFORCA- DO) sentimos um anseio profundo pelo paraiso (O MUNDO). Algo em nés cap- ta 0 chamado do si mesmo, que quer levar © nosso eu até a toralidade Ambito superior, a Unidade total, Se o homem seguir esse chamado ou se entrar a enum por esse portal de iniciagao, fica em aberto. E mesmo se o fizer, nao existe garantia de que alcangaré 0 objetivo. Mas ele é livre também para continuar “pendurado”. O “capitulo do dever” da jornada termina com a carta seguinte, A MORTE. Com toda a certeza todos nds, sem excegao, chegaremos l4. continua além até o superior, depende de cada pessoa. Pois o si mesmo, que deve o caminho termina af, ou 8, Ver Robert von Ranke-Graves, Die Weisse Gorin (A Deusa Branca], p. 210, 104 © Tard € A VIAGEM DO HERO! ser alcangado como objetivo da vida — como acentua Emma Jung — “nao est pronto, mas existe como uma possibilidade disponivel para nés e s6 pode formar- se ao longo de um determinado processo”. Mas nfo existe garantia de que “ao lon- go do proceso natural da vida biolégica o si mesmo seja infalivelmente compreen- dido. Parece até mesmo haver muitas vidas em que nao se chega a isso”. O Mundo e O Enforcado formam juntos ‘OENFORCADO a Ankh. Palayras:chave para a carla © ENFORCADO ARQUETIPO: A prova TAREFA: Regresso, visdio e disposicdo de fazer um sacri OBJETIVO: Crescimento na profundeza RISCO: Deixar-se pendurar, virar-se infinitamente em circulos DISPOSICAO ANIMICA:| Estagnar sem ver saida na rotina da vida ou num lugar errado. Crise existencial. Criar os préprios obstaculos, vida sem sentido, esgotamento, exercicio da humildade, prova de paciéncia 9. Emma Jung ¢ Marie-Louise von Franz. Die Graalilegende in psychologischer Sicht, p. 141. [A Lenda do Graal, publicado pela Editora Cultrix, Sao Paulo, 1990] A descida ao inferno Nama histéria zen, o mestre adverte seu discipulo, a beira da morte: “A ‘cia interes morte € uma expe ante, porém 0 medo apenas estragard essa expe- riéncia.”' O mesmo vale para A MORTE, uma das mais temidas cartas do taré — @, a0 mesmo tempo, uma das mais incompreendidas. Ela representa o fim natu- ral; cla representa uma forga que se esgotou ¢ precisa regenerar-se. Em todo 0 ca- 80, essa carta significa que uma fase chega ao fim e que é hora de dizer adeus. Nao podemos recusé-la, quer temamos essa despedida ou talvez jaa esperemos saudo- samente hé muito tempo. ‘As pessoas mostradas na c: esquerdo é 0 oeste, 0 ocaso, 0 escuro, o fim, a noite. A prépria Morte cavalga pa- olham ou se dirigem para a esquerda, O lado nhe ria direita, para o leste, para uma novo amanhecer. Essa também é a diregio do vento ¢ a diregao para a qual vai o faraé na barca dos mortos, que pode ser vista no rio. No leste o Sol imortal mostra-se por tras das torres singelas, os premincios da Jerusalém cel tial que tornaremos a encontrar na décima oitava carta, Por meio desses movimentos, a carta simboliza que nds, os homens, s6 vemos 0 da direc: escuro ness s fases ¢ temos diante dos olhos apenas 0 exterm{nio, o fim, 0 nada, ntido dess enquanto o verdadeiro s experiéncia esté em sofrer um profundo pro- cesso de transformagao, em chegar a uma nova manha, em conquistar uma nova vivacidade. Mas essa indica cimento, a carta da Morte como 0 inicio de algo novo ¢, precipitadamente, enco- y nao deve animar-nos a interpretar, com aparente esclare- 1. Janwillen van de Wetering, Das Koan [O Koan], p. 40. 106 © TARO E A VIAGEM DO HERO! brira noite que fica entre 0 anoitecer ea manha. A morte significa despedida ¢ fim. E somente quando essa despedida ¢ realizada, quando 0 velho realmente terminou, sio apresentados os pressupostos para a mudanga. Hermann Weidelener’ esclarece © que significa de fato dizer adeus quando nos intima a perguntar constantemente se sentimos 0 que um lugar pede de nés, antes de o abandonarmos. Sé com a cons- ciéncia dessa realizagio podemos nos por dignamente a caminho. Mas se ficarmos devendo essa rei um espaco para outro, levados sempre pela esperanca de encontrar algo melhor, mais excitante ou satisfatério. Depressa escancaramos uma porta depois da outra, sem fechar a que ficou para trés; ainda menos fazemos a nés mesmos a pergunta sobre a realizacao, Estamos sempre fugindo de nos despedir ¢, nessa fuga, existe uma maldicao, Nesse ponto a exigencia &a seguinte: um desapego auténtico como pres- iza¢do, nossa saida é uma fuga. Em ver disso tendemos a correr de suposto irrenuncivel, para que possa surgit algo realmente novo. © desapego au- céntico significa despedir-se com toda a atengao. A solugdo, que nos liberta da situa- io de impasse da carta precedente, O ENFORCADO, sempre pressupde que em primeiro lugar nos libertemos do velho, sem com isso olhar de esguelha para 0 no- vo. Sem uma verdadeira solugéo néo existe uma verdadeira mudanga. Em vez dis- so, tornamos a cair sempre na situagio precedente do Enforcado ¢ ficamos oscilan- do cnere essas duas cartas, pata Id e pata ci Esse estado pode comparar-se com perfeigio com um arranhio num disco, em que ficamos ouvindo interminavelmente 0 mesmo trecho da mtisica. Na vida, pre que tivermos a sensagio de estar entalados num desses “riscos do disco” € de fazermos sempre a mesma experiéncia, podemos partir consolados com o fato de que estamos no Enforcado evitando a Morte, A correlagio tipica para isso so todas as situages em que nés mesmos criamos nossos obsticulos, em que fugi- mos repetidamente dos passos importantes do desenvolvimento. Se no ousamos dé-los por timidez ou pelo medo de fracassar ou nos culpamos por r 10 nos sen- ninado caso, tirmos capazes de dar esse passo nao faz grande diferenga. Em deter © nosso ego ¢ fraco demais; no outro, é cheio de si. Mas em cada um desses casos - mesmo quando somos timidos demais — nos damos demasiada importincia Sobre isso diz 0 Tao te King: € com isso pomos obstéculos em nosso caminho. S Quem fica na ponta dos pés, nao estd firme. Quem anda de pernas abertas, nio vai em frente. Quem quer brilhar, nao fica iluminado. Quem quer ser alguém, nao se torna grandioso. in Weidelener, Die Gorter in uns [Os Deuses em Nés}, p. 68. A MORTE — A DESCIDA AO INFERNO 107 Quem se vangloria, nao realiza as obras. Quem se enalrece, nao serd enaltecido? Por i 0, neste ponto vale a pena superar 0 egos por isso, precisamos apren- dera nos dar tanta importinci e deixar 0 nosso eu de lado, para que o cami- nho para a continuagao do desenvolvimento fique livre. “tiscos no disco” também é um motivo central de A Histéria sem Fim, a maravilhosa jornada do heréi Bastian Balthasar Bux. Bastian é um meni- no gorducho que esté sentado no sétao da escola ¢ lé 0 livro A Historia sem Fim. Um desses E quanto mais cle Ié, tanto mais é atraido para dentro da histéria. (Quanto maior a vida, tanto maior a profundidade com ) E, de repente, ele ¢ intimado pela historia a sal- for o tempo em que lemos o livro da no que somos atrafdos para a vid: tar para dentro dela, pois sem ele ela nao poderd continuat. Mas Bastian nao rem coragem, ele fica com medo. E, imediatamente, a histéria volta ao inicio ¢ é nar- rada outra ver, ¢ outra vex, até chegar 20 momento em que ele tem de pular. E, fi- nalmente, ele cria coragem. Bastian sal para a Fantasia, assim se chama o infer- no na histéria intermindvel; € assim a ago continua. O hamster que gira na roda ¢ outra imagem que representa bem a marcha da vida em ponto morto, simbolizada pelo O ENFORCADO. Com o prazer, aalegria de viver ¢ o entusiasmo da carta A FORGA comegamos muitas agoes, que subitamente se transformam num giro continuo e sem sentido (O EN- FORCADO), como a roda do hamster. Mas nés teceu, por que aquilo que antes nos dava tanta alegria ¢ nos fazia florescer de nao entendemos 0 que acon- energia, de repente se transformou numa marcha no vazio. Em vez de buscar uma solugao real, como talvez sair da roda pela lateral, tentamos 0 método des- crito por Paul Watzlawick como bastante duvidoso de oferecer “mais da mes- da vez mais a veloci ma coisa’, aumentamos ¢ jade, continuamos a girar ¢ nos fatigamos cada vez ma (MORTE) sub mo o hamster também ficaria, Desnorteados, rentamos fazer a roda girar m: . antes de abandoni- sna roda da loucura. Entao, quando uma forca exterior tamente detém a roda, a principio ficamos muito perplexos, co- algumas veze ja com o coragao pesado, com a firme con- viegdo de que tudo acabou. Mas, com um certo distanciamento, conseguimos talvez entender 0 absurdo de tudo isso ¢ compreender de repente a situagio sem safda em que nés mesmos nos haviamos colocado. Sé desse distanciamento en- tendemos como a morte nao sé € olugdo, mas uma verdadeira libertagao pa- ra nos. 3. Tio te King, verso 24, 4. Ver Paul Waczlawick, Von Schlechten des Guten [Do Mal no Bem], p. 23. 108 © Taro € A VIAGEM DO HERO! Enforcado corresponde tam- bém a um fruro que amadureceu na dr- vore ¢ que precisa cair a fim de gerar nova vida e novos frutos. Esse deixar-se cair é vivido pelo fruro como a morte. Se cle se recusar a cait, ficaré pendura- do na arvore ¢ ali apodrecers aos pou- cos, sem ter gerado nova vida. Mas ele também nao pode com isso evitar 0 seu fim; cle apenas ficou estérl a i : ‘h DENFORCADO ada ao ser humano, ess: - plicad we umano, €882 Sem a verdadeira solugdo, fornamos a ignifica que ninguém nos cair no estado do Enforcado. prender com as nossas cri- imagem obriga a ses. Mas quando vivemos O'Enforca- a-idade, ele pode valer para toda a segunda meta da nossa vida, Quem néo procurar outra resposta para a crise da mudanga de vi da, ou encontrar lamentagées, queixas e dores, poder passat o resto da vida com de do como nossa crise da me isso. Nesse caso, um belo dia A Morte significard 0 fim da viagem ¢, ao mesmo tempo, o fim da vida. Mas também temos a possibilidade de aprender com as nossas crises, de nos desapegarmos ¢ experimentar a Morte como um tema cen- tral na metade da nossa vida, da qual s6 entao surge o homem verdadeiro. Este €o motivo pelo qual a rao seu fim. Com isso se assemelha & visio de mundo das culturas antigas, por rta da Morte aponta para o meio do caminho e nao pa- “Se os seus exemplo a dos celtas, de cujos druidas disse 0 poeta romano Luka cantos contém verdades, a morte ¢ apenas a metade de uma longa existéncia.”* Nessa correlacio também devemos compreender a mensagem: “Se vocé morre antes de morrer, nao morrerd quando morrer.” Por esse motivo, os sdbios dos povos sempre afirmaram que o encontro ¢ o confronto com a morte era o tema central de sua vida e sempre enfatizaram que 0 homem tem de morrer e renas cer, para poder reconhecer a realidade. Quando a Biblia diz: “ zo contando os nossos dias, para que venhamos a ter um coragio sdbio” (Salmos 90:12), talvez © nosso ego prefira entender isso no sentido inverso como: “Ensi- do espertos, que acreditemos nao mais precisar morrer!” ‘aze-nos criar jui- na-nos a ser Em tudo isso nd podemos esquecer que mudangas profundas levam tem- po. Trata-se aqui da descida ao inferno, A volta para a luz, 0 nascimento do novo s6 acontece seis cartas adiante com a décima nona carta, O SOL. Essas cartas cor- respondem uma a outra como a noite ¢ 0 dia. Em ambas as cartas vemos um cavalo claro, Na carta da Morte trata-se do quarto cavalo do Apocalipse (Apocalipse 6:8), o corcel livido cavalgado pela mor- incelot Lengyel, Das geheime Wisten der Kelten [A Sabedoria Secreta dos Celtas), p. 24. A MORTE — A DESCIDA AO INFERNO 109 te, O SOL, ao contririo, nos mostra o cavalo branco, 0 cavalo imperial, que é ca- valgado pelo herdi renascido. Na carta da Morte, o Sol se pe," enquanto brilha com todo 0 seu esplendor na carta do Sol. Na carta da Morte, quem cavalga é um esqueleto; na carta do Sol, uma crianga. (Em virtude dessa transformagio, pode- mos imaginar que existe uma fonte da juventude entre essas duas cartas, caso con- tritio esse rejuvenescimento nao teria explicagao. Nés a encontraremos na 17? car- ta.) A crianga brande um tecido da cor vermelha, da vida; a Morte, a0 contritio, carrega sua bandeira negra, cuja rosa mistica branca é um simbolo de vida, na ver- dade uma indicagio da fase renovadora de vida que introduz. A pena no elmo da morte pende flacidamente para baixo; a que esté na cabeca da crianga esté reta, em pé. Tudo isso mostra como essas duas cartas esto interligadas uma com a outra, € que simbolizam os dois pdlos da morte ¢ do vir-a-ser. Elas simbolizam a descida ao inferno (Morte) ea volta & luz, (Sol); entre elas est a viagem pelo céu noturno. As cartas 13 a 18 também sao chamadas de cartas noturnas, Elas tém moti- vos sombrios como A MORTE, O DIABO e A TORRE, ou simbolos da noite, co- mo A LUA ¢ A ESTRELA. A carta A'TEMPERANGA aparece nessa sociedade sombria como algo a primeira vista fora de lugar. Mas logo a conheceremos como uma forga indispensdvel no inferno. Ela corresponde ao condutor de almas, descri- to em varias culturas nos livros dos mortos. E como em nossa tradigao crista oci dental os condutores de almas so anjos, a carta mostra um anjo. : O motivo da viagem para o além, a viagem pelo céu noturno, em algumas religides e tradig6es dos povos orientais ¢ ocidentais nao sé é conhecida como de- termina todos os pontos essenciais do caminho. Todas essas culturas “con- templam a morte como uma viagem com 0 objetivo de conquistar nova mente o cerne verdadeiro do ser, mes- mo se essas viagens levarem tempora- riamente ao céu ou ao inferno ou & volta em um novo corpo; também ha unanimidade em que sé é sébio quem tem consciéncia da morte, ¢ que ¢ ne- ‘AMORTE (Os dois pélos do “Morra e tornese” c io preparar-se para ela moral, ¢s- piritual c imaginativamente —se qui- sermos morrer bem. 6.0 Sol poente corresponde ao tema da carta. Outros comentirios a interpretam como 0 Sol que nasce. Um argumento favorivel a essa afirmagio & que 0 Sol pode ser visto no oriente, mas a arta em si mesma na representa uma nova manha, Em todo caso, o Sol est no horizonte, em con- traste com o Sol a pino visto 1 OSol. 7. Carol Zaleski, Nah-Toderlebnisse und Jenseitsvisionen [Experiéncias de Quase-Morte ¢ Vi- ses do Além], p. 40. 110 © Taro E A VIAGEM DO HERO! A descida ao inferno ou a viagem do heréi pelo céu noturno. Para observarmos 0 que essa viagem pelo céu noturno nos traz, vamos dar uma olhada no inferno dos egipcios, pois nenhum outro povo deixou tantas € to impressionantes imagens daquilo que « como a alma se eleva do corpo do fale ‘bios viam nos mundos do além, Vemos ido, Ela se chama Ba e é representada por um passaro, que entéo comeca a viagem. A deusa do céu, Nut. O péssaro da morte se eleva do corpo do falecido O falecido ¢ velado por divindades protetoras como a deusa do céu, Nut, ou a deusa escorpiio, Selket, enquanto Anubis, com cabega de chacal ou Upuaut, com cabega de lobo, como condutor de almas conduz. Ba pelo caminho através do além, aré Maat, a deusa egipcia da justiga. Maat sempre é representada com a pena do ramalhete. Essa pena sozinha ja vale como sinal da presenga da justiga divina. No saléo que tem 0 nome da deu- sa, 0 sao de Maat, acontece a prova decisiva, o julgamento dos mortos. Vemos como Aniibis, como condutor dos mortos, leva o falecido até o salio., No prato esquerdo da balanga encontra- ‘eum recipiente com 0 coragio do mor- to; no prato da direita, a pena, simbolo de Maat ¢ da justiga insuborndvel, abso- cer nO gr E ees ‘A MORTE — A DESCIDA AO INFERNO A deusa protetora Selket. Maat, a deusa da justica a 2 © Tard E A VIAGEM DO HERO! A pesagem do coragdo no saléo de Maat. luta. Também no centro da balanga pode-se ver 0 seu simbolo, Antibis Ié o resul- tado dos ponteiros eo participa ao escriba colocado & sua direita. Trata-se do deus Thot, deus egipcio da sabedoria, que aqui anota o resultado dos protocolos do in- ferno. Se 0 peso do corasio do morto for igual ao da pena — o ponteito da ba- langa se assemelha a um fio de prumo —, ento 0 morto esté “no prumo”, viveu corretamente ¢ deve ir para Osiris, o senhor do reino dos mortos. Mas se, a0 con- tririo, seu coragao for leve ou pesado demais, cle falhou ¢ esta perdido. Exatamente por isso © monstro aguarda junto & balanga. O devo- rador, como os egipcios 0 chamavam, pode engoli-lo para sempre. Na cena apresentada, 0 morto passou na prova. Por isso, na metade direita do quadro vemos Horus levé-lo até Osiris, por turds de cujo trono o satidam [sis € Néftis. No rein de Osiris ele ficaré até Anti- bis envolvé-lo com o hdlito da vida, no ritual da abertura da boca, para que possa voltar a0 mundo superior. Assim, a balanga é 0 simbolo do equilf- brio, tema central no inferno egipcio. No ta- 16, encontramos © equilibrio correspondente na carta ATEMPERANGA. O espago decisi- vo dessa viagem pelo inferno esté no salao de Maat, a deusa da justiga, cujo sinal é a pena. Nas cartas dos Arcanos Maiores sé trés figuras portam uma pena na cabega: O Bobo, a Mor- te € a crianga na carta O Sol. Andbis faz 0 ritual da abertura da boca. A-MORTE — A DESCIDA AO INFERNO 3 ‘0 BOBO Tiés carlas que esido inferligadas pela pena. Es 0 herdi que precisa descer is trés Cartas est ligadas em varios planos. Em primeito lugar, o Bobo € com o Sol vé novamente 10 inferno pela morte, e qu a luz do dia. A pena é uma indicagao das provas intermedidrias, que correspon- dem ao que ocorre no salio de Maat. Uma outra ligagao das cartas O BOBO e O SOL esti nas duas figuras, que se pa do totalmente di- ferentes: 0 bobo in! cles esté a morte como pressuposto inevitivel para es recem, € que, no entanto, fantil e 0 bobo sdbio, o ingénuo tolo e o ingénuo puro. Entre a transformacao essencial. Do mesmo modo, na carta do Bobo o ingénuo Sol branco encontra seu pélo opos- to no encontro com a morte (seu nigredo alquimico) ¢ por isso pode aparecer co- mo 0 ouro imortal na carta do Sol. Nossa tradigao judeu-crista conhece a viagem pelo mar noturno sobretudo através da histéria biblica de Jonas, que foi engolido por uma baleia (Jonas 1:3). Para comegar, Jonas recebe uma incumbéncia de Deus: “Levanta-te, vai a Ni- nive, a grande cidade, e proclama sobre ela que a maldade deles subiu até Mim!” (Jonas 1:2) (Isso significa: ameace-os com a punigao), Como sua tarefa, esse man- damento corresponde a carta A RODA DO DESTINO. O que Jonas faz? Ele fa 0 que todos preferimos fazer, quando nos encontramos pela primeira ver.com um aspecto da nossa misao de vida. Ele foge. Em geral imaginamos que nossa tarefa de vida ¢ algo clevado, significativo ¢ feliz, ¢ muitos pensam cheios de ansei : “Ah, se eu soubesse qual é minha verda deira missio de vida’, sobretudo se a imaginamos no campo de nossos talentos ¢ forgas. Mas a tarefa ‘0, precisamos lidar por empre € tornar ¢ inteiro, ¢, para is bem ou por mal com nosso pélo oposto, com nosso lado inferior, primitivo, visco- so, lento, até ent (0 deixado de lado e muitas vezes desprezado (veja p. 77 ss.). Mas encontramos os temas ligados a ele, imediatamente ficamos revoltados € os re- amos com um zangado: “Tudo, menos isso!” Poderiamos diz« mpre que 4 © Tard € A VIAGEM DO HERO! gritamos do fundo da nossa alma: “Tudo, menos isso!”, com toda a certeza encon- tramos uma pedra do mosaico que compde nossa missio de vida. Assim também pensou Jonas: “Eu? Ira Ninive? Nunca! Eu nao sou maluco! Com certeza, eles vio me matar. Tudo, menos isso!” e, em ver disso, ele parte a bordo de um navio na diregao exatamente contréria, a Grécia, Uma tal recusa de seguir a ordem divina era chamada pelos gregos de Hibris, que significa arrogin- ci pessoal ¢ birra malcriada. Como vimos na décima primeira carta, um sacrilé- td no espectro de significado da carta A FORGA. Segundo a con- cepcaio grega, trara-se antes de tudo desses delitos que os deuses castigam imediatamente, ¢ assim, também no caso de Jonas 0 forma do ENFORCADO. Existe uma armadilha ma vio que corre perigo no mar? Aconteceu exatamente isso com ele. Indecisos e mor- gio como esse tigo nao se fez esperar na s sem safda do que um na- tos de medo, os marinheiros deitam a sorte para descobrir de quem é a culpa des- sa desgraca, Ela recai sobre Jonas que, sincero, logo se mostra arrependido, confe: a e assume a culpa pela desgraca. Pelo fato de ter-se recusado a cumprir 0 mandamento de Deus, ele estd disposto a morrer ¢, assim, depois de hesitar um pouco, 0s marujos o langam ao mar. Mas, em vez. de morrer afogado na corrente- za como eles pensaram, ele foi engo- lido por uma baleia, em cujo ventre ficou trés dias ¢ trés noites (0 perio- do tipico de uma viagem pelo céu noturno) antes de ser cuspido em terra pelo animal. Depois dessa pu- rificagao, Jonas est4 pronto a aceitar a tarefa de Deus ea cumpri sua mis- so de vida. Por meio das cartas de taré foi facil contar essa histéria outra vez. Porém, como a Biblia somente nos: dé a orago que Jonas pronunciou no ventre da baleia, ¢ nao fala sobre o que ele vivenciou ali, nao hé corre- lagdes da décima quarta atéa décima oitava cartas. Com a décima terceira carta chegamos ao fim do segundo tergo do caminho, em cujo percurso se trata do desenvolvimento ¢ da supe- ragio do ego, da sua submissao ao Jonas, que é engolido pela baleia. Eu Superior. Marie-Louise von Um motivo tipico de uma viagem Franz diz, como se estivesse descre- pelo céu noturno. A MORTE — A DESCIDA AO INFERNO 5 Ordem de —-Hibris._—-Navioem Arremessono Prolecdoe Volta é tera Deus. perigo. mar. diregéo. vendo © Enforcado: “Sempre que a personalidade consciente entra em conflito com 0 processo interior de crescimento, ela sofre uma crucificagao.” (...] “A tei- mosia da personalidade consciente precisa morrer e se submeter ao processo inte- dor deawctmenns” B por SO que essa estagao significa a superagao do eu, por assim dizer, um egocidio — nao um suicidio — para 0 qual 0 Enforcado nos tor- na pouco resistentes ¢ maduros. Mas nao devemos chegar & conclusio apressada de que as forcas do cu no representam nenhum papel no resto do caminho. No sentido positivo elas estao a servigo do eu, o simbolo do todo maior. Elas também podem se formar sempre de modo problematico, sedento de poder ¢, assim, fazer fracassar 0 futuro processo de transformagao. As cartas do taré unem 0 Imperador ¢ a Morte por meio da soma transver- sal ¢ mostram com i 10 0 efeito reciproco desses dois principios. Enquanto o Im- perador constréi estruturas ¢ ergue os muros do sentimento do eu, aqui se trata da sua destruigéo c supcracao, O cu sempre estabelece limites, limites entre 0 eu € 0 nao-cu, entre o eu € a sombra, entre espirito ¢ corpo, entre Deus e homem, entre o bem ¢ 0 mal e assim por diante. Neste ponto deverfamos ou temos de re- conhecer que, em tiltima anilisc, esses limites sao falsos. Originalmente, eles t¢m seu valor, sua fungao ¢ sua justificagéo, pois cles servem a construcio do eu, que tem dese limitar, a fim de tornar-se. E, contudo, todos os limites sao falsos ¢ alea- t6rios.’ Por isso nao devem tornar-se duradouros. Sempre que chegamos a esse ponto do caminho, temos de destruir e superar limires a fim de dar lugar a uma experiéncia maior. Este € um dos sacrificios, para os quais O ENFORCADO nos prepara até estarmos prontos. Da unio que ambas as cartas tém entre si, depreende-se uma outra afirma- ao. Neste ponto da viagem nds alcangamos definitivamente o limite do que é pos- sivel realizar (Imperador = fazer ¢ poder). A partir dai, nada mais nos pode ser im- 8, Marie-Louise von Franz, Der Schatten und das Bose im Mirchen [A Sombra ¢ 0 Mal nos Contos de Fadas], pp. 5051. 9. Ver Ken Willber, Wege zum Selbst (O ttulo original No boundries significa “Sem limites”). (A Consciéncia sem Frontciras, publicado pela Editora Cultrix, So Paulo, 1991.] 116 © Taro EA VIAGEM DO HERO! posto. Tampouco podemos nos fazer adormecer ou nos obrigar a dormir, velar so- bre o nosso préprio sono ou observarmo-nos dormindo. Tudo isso sao tentativas de controle do ego, nas quais le fracassaré. Nés podemos criar os pressupostos, -omo durante o sono — confiar podemos praticar a arte do deixar acontecer e— que passaremos para um outro estado. Desde a Antigiiidade, 0 ser humano teme tudo 0 que pie a vida em perigo ¢ enobrece muito mais 0 que eleva a vida, Tanatos, a morte, ¢ Eros, como energia vi- tal, sao os representantes desses dois polos no mundo mitico dos gregos. A magia primitiva sempre tentou banir o pélo da morte ¢ evocar 0 pélo da vida. Hoje faze: mos 0 mesmo, na medida em que nos calamos tanto quanto possivel sobre o tema da morte ¢ 0 transformamos em tabu, enquanto exaltamos tudo o que eleva a vida no cinema e na televisio, na propaganda ¢ no consumo, no culto ao corpo e na ado- ragao 4 juventude eterna. Nos Arcanos Maiores encontram-se ambos os pélos nas cartas A FORGA" c A MORTE, entre as quiais est O ENFORCADO, desde que coloquemos a carta A FORGA no seu primitivo décimo primeiro lugar. O ser humano é crucificado (O ENFORCADO) entre o polo da morte (A MORTE) ¢ 0 pdlo da vida (A FORGA). Com 0 avangar da idade, com freqiién- cia cada vez maior o ego se torna consciente da sua transitoriedade ¢ do fato de nao poder fugir da morte, Em seu desespero, cle sempre tenta evocar o pélo da vi- 0, diz. Elias Canetti: “Cada .oa é para si mesma um digno objeto de queixa. Cada pessoa est teimosamen- da, a fim de desviar-se do destino inevitavel. Sobre i pes te convencida de que nao deve morrer. Por meio de programas de atividades, por meio do esporte, da sexualidade ¢ dos prazeres de todo tipo geramos desejo, provando sempre de novo nossa vivaci- dade inquebrantével ¢ evitamos — da melhor forma possivel — olhar na outra di- regio, olhar para o nada, para aquela parede negra da qual o ego tem tanto hor- rot. Muitos conselhos bem-intencionados mantém nas pessoas essa postura temerosa com relago ao caminho, Mas também algumas psicoterapias-relampa- go seduzem os pacientes com suas pscudo-solugées e se vangloriam do seu suces- soe da aparente superioridade diante dos métodos de terapia transpessoal, que sio mais demorados, porém mais motivam 6 homem animicamente atormentado a empreender algo excitante, ese essa tal centelha se ateia, entao, durante certo tempo, ele de fato se sente bem. Mas, como mostram as cartas do tar, 0 caminho do Enforcado para a Forga é um re- trocesso. Por isso, para a conjuragao do pélo da vida sempre se exige também uma profundos. Muitos desses procedimentos répidos 10, Eros, que aqui ¢ cquiparado & forga ¢ nao a carta OS AMANTES, nessa correlagio precisa ser entendido em sua forma original como a orga primitiva, assim como descrevem as antigas tra digées gregas, como 0 violento deus criador primitivo, que somente virios séculos depois foi rebai xado a0 rapaz Eros, com seus dardos 11. Elias Canetti, Masse und Macht [O Povo ¢ 0 Poder}, p. 526. A MORTE — A DESCIDA AO INFERNO 7 boa dose de forga, porque a certe- za da morte bate com cada vez mais forga as portas da conscién- fa. Mais cedo ou mais tarde, aah da nos obriga, to inevitavel quan- to inexoravelmente, a continuar na outra diregio ¢ a olhar de frente para o inevitdvel, para a morte ¢ a transitoriedade, Portanto, n Jo importa quao inceligente, refletida ou abran- gRMEMESeeRIESe gente seja nossa idéia da morte. © IMPERADOR e Beat ‘A construgao de O fim de uma estruturas. estrutura. O que importa éo modo como nos aproximamos dela, 0 quanto nos aproximamos d ssa experiencia ¢ a profundidade com que somos tocados por ¢ Assim como uma catedral é um museu sem vida quando nos limitamos a ins- pecioné-la, rampouco conseguimos captar o significado da morte enquanto ape- nas refletirmos sobre cla. Mas assim que nos ajoelhamos, transformando-nos de observador em pessoa que ora, de mero espectador em participante devoto, no mesmo instante © muscu se transforma em templo, ¢ a morte fria, inimiga, se transforma numa vivéncia sagrada. Qui periéncia que faremos; por um lado, porque na proximidade da morte aumenta o nto mais sincero for esse cair de joelhos, mais enriquecedora seré a ex- respeito pela vida; por outro, porque a morte éa verdadeira iniciagio, 0 tinico por- tal para o realmente secreto. ‘Tudo 0 que assim foi chamado no caminho que fi- cou para trés nao passou de segredos sem nenhum valor. Eros (Forca XI) e Tanatos (Morte Xill) pélo da vida e pdlo da morte, entre os quais o homem é crucificado (O Enforcado XIl) 118 © Tard € A VIAGEM DO HERO! Mas, quanto mais obstinada ¢ medrosamente desviarmos o olhar dela, tan- co mais desenfreado ¢ extremo se torna o vaivém entre a cuforia e a depressio, Em sua forma extrema essa recusa leva a sintomas manfaco-depressivos. Quanto mais humanamente 0 pélo da vida (A FORGA) é enfatizado, tanto mais profunda se- rd a depressiio que se segue (O ENFORCADO). A solugao aponta para a Morte. Ela nos mostra a diresao correta. Em sua grandiosa obra sobre o desenvolvimento do espirito humano, Ken Wilber deixa claro que somente através de Tanatos, 0 pélo da morte, acontecem as verdadeiras mudangas, a0 passo que Eros, 0 pélo da vida, sé cuida de mudan- gas no s de varios andares. Se o ego se instala confortavelmente num andar e se acostu- intido de variagao."* Wilber compara a consciéncia humana com uma ca- ma com 0 panorama, ele quer permanecer ali ¢ (0 quer saber de mudar-se para outro andar. Se, no entanto, a vida ali comegar a ficar insossa, vazia de contetido ¢ desconsolada, ou se houver fases de depressio gragas & monotonia dese plano, entao 0 ego logo conjura 0 plano da vida ¢ cuida de arranjar um pouco de varia- Gao. Isto é mudamos os méveis de lugar, mas permanecemos entre as mesmas pa- Em outras palavras, procuramos uma nova ocupacio, comesamos um no- vo relacionamento, buscamos excitagio no sexo € nos jogos, nos entregamos ao rede: consumismo c fazemos alguma coisa que prometa mudanga em nossa vida sem re- presentar perigo para o nosso ego. Mas uma mudanga profunda s6 pode aconte- cer por meio do pélo da morte, pela qual abandonamos nosso estado de conscién- cia até aquele momento. $é entio existe a chance de chegar 3 i prego dessa mudanga essencial é o risco de cair. Eé so que reside o perigo asso- ciado a esta estagao ¢ a esta carta. Pois, na jornada através da noite, no caminho 0 garanti- de iniciagdo que tem aqui seu ponto de partida, nao ha cartas de regre: das. Mas, por certo, hi condutores de almas! Palavras-chave para a carta A MORTE ARQUETIP Morte TAREFA: Despedida e descida ao inferno, recolhimento voluntario, encerrar algo, libertarse OBJETIVO: Solus, superagdo do ego, destruigéio de limites, mudanga profunda RISCO: Fingir de morto por medo, queda DISPOSIGAO INTIMA: | Viver um fim, esgotamento — busca da paz e regeneracGo, experiéncia de despedida 12. Ver Ken Wilber, Halbzeit der Fvolution [A Meio Caminho da Evolugio|, p. 93. A MORTE — A DESCIDA AO INFERNO ng A Morte indica a diregéo. A Temperanga O condutor de almas O significado desta carta néo fica muito claro quando buscamos entender seu nome. Embora a temperanga faca parte das virtudes cardinais, essa palavra est tio desvalorizada no uso moderno da lingua que dificilmente associamos valores po- sitivos com “moderagao”. Mas se, ao contrério, reconhecemos em seu motivo o sim- bolo da mistura correta, logo descobrimos o verdadeito enunciado desta carta. Muito j4 se especulou sobre 0 que 0 anjo mistura, ¢ se de fato mistura algo ou apenas o despeja. Esta tiltima suposicao expressaria que as energias, que até en- tao flufam no crescimento externo, agora finalmente sao vertidas, para dai em diante provocar 0 crescimento interior; nisso esté certamente um enunciado es- sencial da carta. Mas é ainda mais expressio da bem-sucedida uniao, um tema basico deste tiltimo trecho do cami- importante entender a mistura correta como a nho. Depois que a morte destruiu os limites que o ego teve de construir, wrata-se, daqui em diante, de unir 0 que antes estava separado. Mas a carta também repre- enta a medida correta como expressio de uma sensibilidade apurada, indispen- sével para superar os perigos & espreita no restante da viagem. Esse conhecimento arta nos mos- iniludivel do caminho certo simboliza 0 condutor de almas, que a tra como um anjo. Na tradigio crista ¢ 0 arcanjo Miguel que assume essa tarefa. Antigas representacées 0 mostram num tema que lembra muito a prova no salio de Maat. Um diabo tenta tirar a balanga do prumo, mas ¢ impedido por Miguel, ¢ assim a balanga (¢ 0 homem) recuperam o equilibrio. Apesar das suas cores claras a carta mostra um tema do inferno, Os litios sto uma chave para essa interpretagao. Segundo a tradigao grega eles crescem no in- ferno, motivo pelo qual Hades também era chamado de cho de Asfodelias (um A TEMPERANCA — © CONDUTOR DE ALMAS, 121 tipo de lirio). O Iirio nao s6 traz o nome de fr também € 0 seu simbolo eo , a mensageira dos deuses, mas al da pre- senga dessa deusa grega experimentada no inferno. No simbolismo cristao, 0 li- tio da Pascoa equivale ao maracuja, quando contemplamos o trecho de cami- nho em que nos encontramos, 0 paralelo com a época da paixio ¢ imenso. As car- tas desde O ENFORCADO (XII) até O DIABO (XV) mostram a via-cricis de Cristo ea des no com a profissao de fé crista, que diz: cida ao inferno em unfsso- “Foi crucificado, morto ¢ sepultado, des- ceu aos infernos...”; tanto mais que a Bi- blia fala de um anjo no timulo. O caminho quea carta mostra é um simbolo do caminho estreito da indivi- o do cu. Ele leva (de volta) & luz, a0 Sol no qi duagao, da forma Miguel, 0 condutor de almas. se oculta uma coroa, Se movimentarmos a carta de um lado para 0 outro podemos vé-la na linha pontilhada. Depois da morte do velho rei (0 ego) tem inicio 0 ca minho até 0 Sol ¢ a coroagéo do novo rei (0 si mesmo), um motivo que tem sua correlagdo em todos os contos de fada nos quais o heréi se torna rei no final da historia. Assim segue 0 caminho do desenvolvimento ¢ da superagao do ex, da sexta até a décima segunda carta, no tiltimo terco do caminho transpessoal da verdadeira experiéncia e desenvolvimento do si mesmo, no sentido mais profundo do termo. O si mesmo, orca organizadora da alma, quer levar 0 homem & totalidade. Nao sé podemos ler esse objetivo em varios motivos de sonho, mas também no plano das brincadeiras, talvez. no impulso de resolver um enigma, uma palavra- cruzada, de levar um jogo de paciéncia até o final ou no desejo de completar uma colegio; € possivel reconhecer essa forca inconsciente no dia-a-dia, € possivel ob- servar como cla nos impele a roralidade. Enquanto 0 desenvolvimento do eu que ficou para tras significou libertagao do todo, agora o empenho do si mesmo € le- yar-nos, no restante do caminho, outra vez a unidade, a totalidade. Uma agravante esté no fato de que temos de nos confiar a essa diregao até entdo inconsciente, contra 0 que resiste tanto um cu tornado orgulhoso quanto um eu medroso ¢ fraco. No primeiro caso falta visio, no segundo, confianga, Por isso, o si mesmo logo cuida para que nos enredemos numa situagao sem safda, nu- istencial, em que o cu tem de fraca ma crise & 1, porque todos os refinamentos, 122 © TARO E A VIAGEM DO HERO! Crucificado morto sepultado —_desceu ao inferno. € mesmo 08 truques mais espertos da nossa consciéncia até entio ncia, surgem o des toda espert muito habil e sagaz, de repente no ajudam mais. Na seq paro, a desesperanga ¢ uma profunda resignaca forcas, nada mais reste senao, totalmente desesperado, desapegar-se com a firme convicgao de que esté tudo acabado. Mas, em vez de afundar ou cait no vazio — como esperado —, para sua grande surpresa, o homem sente que é carregado por é 10, até que ao eu, no fim das suas que é muito maior do que tudo o que conhecia ¢ que o sustentava mo corresponde a escolha na histéria uma for entio. Esse encontro decisive com o sim de Jonas. Jung contou numa carta como ele mesmo passou por ¢: “Bu estava livre, totalmente livre e inteiro, como nunca me ha- experiénci ao ter um enfart via sentido antes... Foi uma festa silenciosa, invisivel ¢ permeada por um senti: mento incomparavel, indescritivel de bem-aventuranga eterna; eu nunca pensei que pudesse hayer uma experiéncia como essa no plano humano. Vista de fora e enquanto estamos vivos, a morte se reveste da maior crueldade, Mas assim que es- ramos dentro, temos uma sensagio tio forte de toralidade, de paz. ¢ de realizagao, que ja nfo se quer voltar.”! Hy ‘ATEMPERANGA ‘OENFORCADO A crise sem saida. Fracasso e O encontro com desapego do eu. © Si mesmo 1, Citado por Lutz Miller, Der Held, p. 109. (O Heréi — Todos Nascentas para Ser Herdis, pu ‘io Paulo, 1992.] blicado pela Editora Cultrix, A TEMPERANCA — © CONDUTOR DE ALMAS 123 Essa capacidade rara da psique inconsciente de transformar 0 ser humano, que ficou preso numa situagao desesperangada ¢ levé-lo a outra, foi chamada por Jung de fungao transcendental. As cartas O ENFORCADO, A MORTE e A ‘TEMPERANGA nos mostram essa transformagio como a passagem do tergo mé- dio do caminho para o tiltimo: No tiltimo trecho do caminho muito do que antes era natural e também ob- jetivamente correto se modifica ¢ muitas coisas ficam obsoletas. Assim se dé tal- vez com 0 nosso tempo de vida, mas também com a nossa posigao diante da mor- te e com todo 0 nosso sistema de valores. Quando crianga, viviamos © tempo ciclicamente. O ano girava em torno da festa do Natal. Estévamos longe dele, de- no Natal. Depois que crescemos, vivemos o tempo linear, cronolégico, Um ano se segue a outro. O pois cle se aproximava outra vez de nés, Mas era sempre o mes circulo rompeu-se, 0 tempo virou uma linha que tem comeso ¢ fim, Desde entio sentimos 0 rempo como quantidade ¢, assim, como limitado. Isso de inicio pou- co importa, porque vivemos a ser sagio de que ainda nos resta todo 0 tempo do mundo. Mas no maximo ao chegar & meia-idadc, percebemos que ele se torna ca- da vex mais veloz ¢ escasso. Calculamos quanto tempo talvez nos reste, tentamos deté-lo.€ nos esforyamos por fazer muita coisa ao mesmo tempo fim de “econo- mizar” tempo; vivemos cada vex mais depressa, cada vez mais agitados e, no en- tanto, obrigados a ver, desamparados, como 6 tempo transcorre impiedosamen- “Mas quando estamos a s6s”, assim Jung descreve esses medos, “e é noite © ouvimos nem vemos nada a nio s estd to escuro € silencioso que na pensamentos, os quais somam e diminuem os anos de vida como a longa série de fatos de: agradaveis; os quais provam impiedosamente o quanto o ponteiro do re- légio se adiantou, como 0 lento aproximar-se daquela parede negra que engolird definitivamente tudo 6 que cu amo, desejo, possuio, espero e pelo que luto; entdo toda a sabedoria da vida se esconde num esconderijo que no pode ser encontra- do eo medo cai sobre o insone como um cobertor sufocante.”* Mas quando conseguimos chegar ao tltimo tergo do caminho, entendemos cada ver mais que o tempo nao ¢ igual ao do relégio e que estava etrado medi-lo em quantidades, pois s qualidade. Por isso nao € to importante 6 quanto nds vivemos, mas o quio profiin- é decisiva a sua intensidade. O tempo nao é quantidade, mas ionamento dian- damente. Diante desse segundo plano também surge um novo posi te da morte. EI nos proc custo por uma rematerializagio, acontesa ela no Dia do Juizo ou numa préxima en- a nao & mais 0 terrivel fim, por trés do qual tudo acaba, Muito me- amos por emplastros de consolacio sagrados para o cu, que espera a todo 6, aprendemos a compreendet uma parte do todo indestrui 2. A maior a significativa de descober ws da cra da tecnologia serve pa -a economizar tempo, porém, extraordinariamente, o homem tem menos tempo do que antes 3. C.G. Jung, Seele und ‘fad |A Alma ea Morte obras completas, vol. 9, p. 79. 124 © Taro E A VIAGEM DO HERO! vel, do qual nunca estivemos separados ¢ do qual logo faremos parte outra vez. As- sim como a onda nunca esteve separada do mar, o nosso eu nunca esteve separado do todo. E assim como a onda tem de tornar-se uma com 0 mar outra ver, 0 nosso cu se libertard ¢ se uniré novamente ao cerne original de tudo o que existe, Natural- mente, cada parte de uma onda jé foi muitas vezes parte de muitas outras ondas. Mas nao seria absurdo se uma onda afirmasse que tes? [gualmente disparatado ¢ arrogante soa quando o eu afirma ter vivido muitas vezes (¢, naturalmente, como uma personalidade importante). Isso nio quer dizer jd foi onda muitas vezes an- que a idéia da reencarnagao seja errada, Mas fazer dela um anestésico barato contra o medo da morte do ego, parece muito questiondvel ¢ desvia de uma compreensio mais profunda do significado da morte. Em ver disso, Ken Wilber aconselha: “Sa- ctifique a imortalidade do eu ¢ descubraa imortalidade de tudo o que existe.” E em outro ponto ele diz: “Mover-se do inconsciente para a consciéncia do eu € rornar a morte consciente; mover-se da consciéncia do eu para a supraconsciéncia significa tornar a morte definitiva.”” Nisso parece haver muito mais verdade do que em to- dos os modelos contraidos de explicagéo do caminho da morte. Nesta seqiiéncia dos Arcanos Maiores também fica muito claro o que signi- fica criatividade auténtica, Se um homem vive inconsciente o primeiro tergo do caminho, ele desenvolve sua consciéncia do eu no trecho central do caminho. Em- i um pressuposto essencial para todo 0 proceso criativo, a verdadei- ra criatividade ¢ impedida pela nossa consciéncia do eu, mas também somente na bora exista medida em que quer provar como ¢ extravagante, Podemos ver esse fendmeno em pessoas que tiveram uma boa idéia, uma experiéncia realmente impressionante ou ctiaram algo ¢, entao, pelo resto da sua vida contam orgulhos A esse beco sem safda do qual duz 0 conhecido em uma nova embalagem ruim, corresponde O Enforcado. O mente sempre a mesma hist6ria surge nada novo, mas se repro- ego repete apenas conhecimentos antigos que, com 0 passar do tempo, se torna- ram tao estimulantes quanto 0 centésimo giro da roda do hamster. A criatividade auténtica s6 existe no tiltimo tergo do caminho, que segue ao Enforcado. Ela pres- supde a retirada do ego. $6 entéo uma forga superior pode fluir ¢ nos levar a no- vos conhecimentos, afirmagées e modos de agao. A carta da Morte simboliza o limiar para esse reino. Ela representa mudan- a profunda, gragas ao fato de sua consciéncia nao mais ser dominada por um ego sedento de poder. O eu que se tornou humilde, entregou a direcio a uma instin- ‘a superior, o Si mesmo. Naturalmente, o verdadeiro potencial criativo esta na profundidade. Onde mais poderia estar, a nao ser nos reinos em que nao olha ci mos antes? O que se en- 4, Ken Wilber, Halbacit der 5, Idem, p. 389. Evolution [A Meio Caminho da Evolugio), p. 169. A TEMPERANCA — © CONDUTOR DE ALMAS. 125 ee Aarmadilha A superagéo Entrega d O potencial Rupture Novas do eu. do eu. direcaio da das velhas _esperanas, superior. __profundeza. _estrufuras. novos horizontes. contra na superficie ¢ no claro jé foi assimilado pelo ego hii muito cempo. Somen te os conhecimentos intuitivos dos reinos escuros, inconscientes, evitados até o momento, nao demarcados ou temidos rompem as estruturas existentes € pos bilitam novas perspectivas, novas esperangas ¢ novos horizontes. ‘Tudo isso se ve nas cartas, desde O ENFORCADO (XII) até A ESTRELA (XVII). Ha uma antiga lenda chinesa sobre pérola magica, que narra que nessa su- 10 do eu esta © passo decisivo na busca da verdade, do misterioso, do mara- pera vilhoso:’ O senhor da terra amarela viajava para além dos limites do mundo. Che- gou a uma montanha muito alta ¢ viu a circulagio do regresso. Entio cle perdeu sua pérola magica. Mandou o conhecimento ir buscé-la e nao a tevede volta. Man- dou a perspicacia ir buscd-la € nao a teve de volta. Entio ele enviou 0 esquecimen- to de si mesmo.’ O e: quecimento de si mesmo a encontrou. O senhor da terra amarela disse: “E estranho que justamente o esquecimento de si mesmo tenha si- do capaz. de encontré-la!” Na nossa v jagem, nés nos aproximamos do inferno, 0 ponto mais profundo € escuro da jornada. Como aqui se trata de descer penhas cos ingremes, atravessar abismos profundos ¢ como & preciso vencer perigos desconhecidos e peregrinag&es por cumeciras, o herdi estaria totalmente perdido sem um condutor digno de con- fianga. Mas onde encontrar um condutor de almas? Procurar por ele nao tem sen- tido, pois aqui na segunda metade do caminho nao hé nada a fazer; aqui s6 po- demos deixar acontecer. Mas ab: r-se para ele e estar disposto a manré-lo o atrai. Mais precisamente, ele sempre esteve ai, nés apenas deixamos de vé-lo ¢ ouvi-lo. 6, Dschuan Dsi, Das bre Buch vom siidlichen Blitenland |Q Verdadeiro Livro do Pats da Plotescéncia] p. 131 7. Quando diferenciamos entreo eu ¢ o si mesmo no sentido dado por Jung, teria necessaria- mente de haver 0 esquecimento de si mesmo. O esquecimento de si mesmo como 0 pélo positive ‘oposto da afirmagio: “ Eu esquego logo de mim!” © Taro € A ViAGEM 0X Virgilio conduz Dante na descida ao inferno Naturalmente, como arquétipo, 0 condutor de almas € uma instincia interior, mesmo que gostemos de projeté-lo sobre outras pessoas, sobre um terapeuta, um sacerdote, um amigo, uma musa ou um guru. Como 0s mitos nos ensinam, tra- ta-se quase sempre de uma pessoa do sexo oposto. Assim, Perseu de Atenas e Te seu foram conduzidos por Ariadne, O famosfssimo Ulisses agradeceu a Circe nao A TEMPERANGA — © CONDUTOR DE ALMAS: 127 Asibila cumaica conduz Enéias pelo inferno ter sido vitima das perigosas sercias ou dos monstros Squila e Caribdis. Engias dei- a.¢ Hercules seguit 0 conselho de Ate- na. Sem sua ligago com Eros, Psiqué teria continuado inconsciente no inferno. xou-se levar pelo inferno pela sibila cum Em Dante, de inicio foi Virgilio quem o levou pelas profundezas do inferno até a montanha da purificagaio. Mas isso aconteceu devido & intensa busca por Beatriz, a verdadeira condutora da alma de Dante, que entao continuou a guid-lo pelo res- co do caminho at 0 parafso ¢ & visio do Mais Elevado. Do ponto de vista psicolégico, 0 condutor de almas interior, a anima ou o animus. Quem se entrega a essa forga de inicio inconscien- te, seré por certo melhor conduzido do que alguém que ouve os conselhos das ou- tras pessoas, por melhores que eles sejam. Por isso € titil estabelecer um verdadei- ro didlogo com sua anima ou seu animus. Mesmo se no principio parecer bastante > NOSSO Sexo posto estranho falar em voz alta “consigo mesmo”, gracas & psicologia de Jung ¢ altamen- te conhecido o fato de que essas conversas logo podem tornar-se muito produti- vas. O proprio Jung enfatizou que as considerava uma técnica, ¢ disse: “A arte con- siste somente em dar voz ao invisivel, colocando momentaneamente & sua 128 © Tard & A VIAGEM DO HERO! unis disposigo o mecanismo de expressao, sem ser sufocado pela repugnancia que pos- samos sentir com um jogo téo absurdo com nés mesmos, ou pela diivida quanto A autenticidade da voz que esta do lado oposto.”* Ele continua explicando que, de inicio, acreditamos que todas as respostas obtidas foram dadas por nés mesmos, exatamente porque gostamos de acreditar que “fazemos” nossos pensamentos; mas na verdade, como nos sonhos, eles nao séo intencionais ou arbitrérios, especial- mente se forem for nulados com afeto. Mas, para nio ser vitima de uma ilusio, cle adverte, finalizando: ‘A honestidade dolorosa consigo mesmo ¢ nenhuma ex- clusao precipitada do que a outra parte possivelmente possa dizer, técnica de educacéo da anima.” Por meio desses didlogos com 0 tempo aumenta a dispos 0 condigdes icao da consciéncia de levar cada vez mais as na rotina didria, em con- sideracao as imagens e mensagens do inconsciente e de inclut- Se analisarmos 0 ambiente escuro da carta A TEMPERANCA, vemos que ela nada tem a ver com benignidade ou inexpressiva hipocrisia. O tard a coloca entre A MORTE ¢ O DIABO. A correlagéo com o Diabo é bastante compreen- sivel. Um dos seus significados ¢ 0 excesso em oposicgéo a TEMPERANGA, que ta a medida correta. Assim, o fato de as duas cartas estarem lado a lado é repres como um espelho de muitos desenvolvimentos, que muitas ve a medi antes inesperado acontece quando incluimos as duas cartas que cercam a ranga; A MORT! a rentincia total, & abstinéncia. O DIABO, ao contririo, representa a cobica ¢ 0 excesso. Quando A TEMPERANGA esté entre e: comegam com correta, mas, cedo ou tarde, caem no imoderado, Mas um enunciado ‘empe- significa dar adeus, abandonar tudo e, portanto, corresponde ses dois temas, torn: e claro que Renéncia e abstinéncia. A mistura correta. Excesso, cobiga e dependéncia, 8.C. G, Jung, Die Beziehung zwischen dem Ich und dem Unbewussten (O Relacionamento en- tre 0 Eu € 0 Inconsciente], Obras completas vol. 3, pp. 84, 85. 9, Idem, p. 86. ‘A TEMPERANCA — O CONDUTOR DE ALMAS. 129 a medida correta fica entre a abstinéncia ¢ 0 excesso. E é exatamente por isso que é tao dificil manter a medida certa. A maioria de nés por certo acha mais Facil dei- xar de comer chocolate (abstinéncia, Morte) ou comer logo uma barra inteira (co- biga, Diabo) do que comer um tinico pedagos ¢ isso nos parece muito comedido. Mas ¢ exatamente af que esté a importante mensagem da carta A TEMPERAN- GA. Nao renunciar a nada e, no entanto, nio apegar-se a nada; nao evitar nada, mas nunca tornar-se viciado ou dependente. Uma postura como essa diante da vi- da é certamente mais dificil, ¢ amplamente mais intensa, do que flutuar hipocri- tamente ao redor das coisas, tirando 0 corpo fora desde 0 inicio, deixando de fa- zer algumas coisas ¢ simplesmente ser um corajoso aluno-modelo. Ao contritio, entregar-se com toda a confianga ao condutor de almas significa aceitar totalmen- tea vida sem prender-se em lugar nenhum. ‘A Temperanca (XIV) estd ligada ao Hierofante (V) através da soma trans- versal, Se o Hierofante foi o educador que preparou o heréi para a viagem no mun- do exterior, na Temperanga temos 0 condutor de almas para a viagem pela noite. Se 0 Hicrofante corresponde a conscientizacao, ao nosso isolamento da totalida- de, que também pode ser entendido como 0 pecado original (veja p. 59), agora é 0 condutor de almas que quer nos levar de volta a totalidade, ou como dirfamos num viés espiritual: da desgraca para a salvacéo, Nosso conceito de pecado pro- veio da palavra hebraica chato ¢ da palavra grega hamartia ¢ significou original- mente “falta do verdadeiro”. Exatamente nesse sentido, 0 condutor de almas nos salva dos nossos pecados & medida que nos permite encontrar 0 nosso centro (0 verdadeiro). Se o Hierofante transmitiu ao herdi 0 cddigo de ética e Ihe dew a ar- madura moral que 0 trouxe até aqui, entao herdi pode e deve, a partir de agora, confiar na forga superior que, como sua consciéncia amadurecida, é a vinica que Ihe pode dar certeza ao longo do restante do caminho. Em contraste com todos os critérios validos e confidveis até 0 momento pa- ra nés, 0 condutor de almas nao distingue entre 0 certo ¢ 0 errado, 0 nobre e 0 profano, o titil ou o intitil, 0 valioso ¢ 0 sem valor, ¢ também nao distingue entre agradavel ¢ desagradavel. Neste ponto, até a avaliagéo entre bem ¢ mal ensinada pelo Sumo Sacerdote torna-se obsoleta, porque a consciéncia madura compreen- de que nada na Criagao ¢ somente bom ou matt, mas que em tudo a medida é de- cisiva: 0 maior veneno na dose correta pode ser 0 tinico remédio para uma cura, a0 passo que 0 bom demais — vivido com excesso — logo se transforma em mal. A partir daqui vale unicamentea diferenciagio entre afinagio e desafinacao. E, nesse sentido, afinado 0 que o homem percebe como uma voz interior que lhe da certeza total. Essa vox dei (vox de Deus) como é muitas vezes chamada, é descrita por Jung como um sussurto interior, que leva o homem a uma “reacéo verdadeira- mente ética”, a um modo de agir que pode colidir com a idéia ou com as leis mo- dernas da moral. © poder explosivo que esta implicito é evidente, ¢ em todos os ca- 130 © Tard & A VIAGEM DO HERO! (O AMEROFANTE "ATEMPERANCA OIA. O educador O condutor A medida correta. O excesso e guia no de almas pelos mundo exterior. espagos interiores e pela noite. sos pressupGe uma consciéncia amadurecida, que nao se deixa enfeitigar por puras quimetas ¢ por achar-se sempre certo, um sabichio, que necessita ser valorizado ou que sabe diferenciar a sedugao do poder das inspiracées mais clevadas, Por esse mo- tivo ess passo é dado somente agora, no final da superacao do ego. Pois, natural- mente, nao se aqui de um salvo-conduto que permite ao herdi agir como quer; {vel, examinar se sente por isso, todo homem que estiver nessa posigao deve, se pa uma inspiraga do seu © superior ou se na verdade se trata de influéncias duvidosas ego, que talvez 86 tenham sido bem disfargadas. A proximidade do Diabo, a carta seguinte, torna cl blia enfaticamente, quando diz 8 que se apresentam, para ver se sio de Deus” (I Joao 4:1). Vivida de modo ima- laro o grande perigo da confusio, contra a qual adverte nao s6 a Bi- “Nao acreditcis em qualquer pessoa, mas examinai tur, essa posi¢ao parece justificar atos de terror ¢ outras agoes intrigantes; segundo consta, atos assassinos destinados & melhoria do mundo. Vivida com maturidade, cla leva & exemplar e imperturbavel estabilidade de um homem realmente piedoso, que serve a Deus ¢ nao aos homens, sem buscar elogios ou admiragio. ida “impos fvel” de E sempre o condutor de almas, a vox dei que aponta a e€0 te um dilema ou de uma culpa trégica em que o ser humano se enredouw. E ma central da tragédia grega, em que o personagem principal torna-se inevitavel- mente culpado, na medida em que entra em conflito com a realizagio de duas ta- refas que se excluem. Quando Antigone tem de escolher entre a sua divida de enterrar seu irmao Polineiques e o dever de cumprir as ordens do seu tio, 0 rei que acabou de Ihe negar o enterro, ela se torna culpada, seja qual for a sua digo de tradigées, que 0 Sumo Sacerdote transmitiu como base da consciéncia casos fracassa ou leva diretamente ao conflito por causa da sua contradi nes aio. ‘A TEMPERANCA — O CONDUTOR DE ALMAS: 131 Uma solugio sé acontece depois de uma grande paixio, um tempo de sofrimen- to em que a alma parece se perder em meio aos opostos. Mas, de repente, cis que cla ressurge, a certeza inegavel que é maior e mais clara do que as conviegées an- teriores. Ela nao s6 da aos seres humanos a forea de tomar a decisio até entao im- possivel, mas também os ajuda a suportar as conseqiiéncias muitas vezes graves pa- ra 0 restante do caminho, com firmeza ¢ de livre e espontinea vontade. Mas nao existe garantia de que tudo “saia bem” quando ouvimos nossa voz interior. Ao menos nao no sentido de sairmos ilesos da situagao. Por fim, Antigo- do com a vida. Tudo vai bem na medida em que agi ne precisou pagar sua de: mos com plena consciéncia ¢ quando estamos firmemente dispostos a suportar até mesmo as conseqiiéncias mais graves provenientes da decisao. A vox dei, no entanto, nao é audivel apenas num caso de conflito. Ela tam- bém pode atingir uma pessoa de repente, surpreendendo-a com uma instrucio, através da qual nao raro ela ¢ levada a um conflito como esse. Quando a Biblia nos diz como a voz de Deus estimulou o profeta Oséias a casar-se com uma prostitu- ta (Oséias 1:2) e se pensarmos 0 que isso deve ter significado para um homem jus- to, naquela época, reconhecemos como pode ser estranha ¢ chocante uma tarefa como essa. Isso mostra mais uma vez que 'TEMPERANGA nao significa benigni- dade, Essa carta néo tem nada a ver com moderagao média ou indiferenga e mui- to menos com indecisio mediocre; mas ela representa a descoberta da mistura cor- reta, que nos permite continuar nosso caminho original sem erros, © qual ainda pode levar-nos a trilhar muitas cumeeiras criticas Polayras-chave para a carta A TEMPERANCA _ARQUETIPO: © condutor de almas TAREFA: Aceitar orientagGo superior, encontrar a mistura certa OBJETIVO: Encontrar certeza interior insuborndvel, encontrar 0 centro e a totalidade RISCO: Seguir uma falsa inspiragdo, moderagéo DISPOSICAO INTIMA: | Ser levado por uma grande forca, harmonia, trangiilidade e saide O Diabo No reino da sombra Ositdames eaparedendamiies cent aalteas dares Da mesma forma, 0 herdi desceu ao local mais escuro da sua viagem. Aqui no la- birinto do inferno, o tesouro perdido, a bela prisioneira, a erva da vida ou qual- quer que seja 0 bem de dificil alcance, é guardado por um monstro horrivel, um dragao perigoso, um adversirio maldoso. Com essa imagens os mitos ¢ contos de fadas descrevem a ameaga que par re do inconsciente e que sentimos tao logo entramos em contato com suas forgas, pois trata-se de algo bem diferente do que ficar pensando sobre 0 inconsciente com toda a calma de espirito. Com 0 contato verdadeiro podemos ficar com me- do ¢ entrar em p ‘inico, o que Jung explica por meio da analogia que esse encon- tro tem com uma perturbagio espiritual. “Portanto, analisar o inconsciente como um objeto passivo” ele continua dizendo, “nada tem de perigoso para o intelecto; ao contrario, essa atividade corre ponderia a uma expectativa racional. Mas dei- xar oii consciente acontecer ¢ vivé-lo como uma realidade, isso supera a coragem bem como o poder do homem mediano. Fle resolve nao entender essas coisas, Pa- ra 0s fracos de espirito, ¢ melhor assim; pois essa coisa no é de todo inofensiva. Nesse ponto da viagem, contudo, é preciso encontrar ¢ experimentar o lado som- brio do nosso ser. Como no Ocidente cristio 0 diabo tornou-se 0 summum malum, a soma de tudo o que é mau, nele esto reunidos alguns aspectos de sombra, [ss0 nao 6 atri- 1. C.G. Jung, Traumsymbole des Individuations prozesses (Simbolos Oniricos do Proceso de Individuagao], obras completas, vol. 5, p. 59. © DIABO — NO REINO DA SOMBRA 133 O horror diante da viséio dos deménios interiores. bui muitas facetas ao significado desta carta, mas também as tarefas nesta estagio se a um tinico motivo. arquetipica, visto que nao podem reduzi c aqui do inconcebivel no sentido duplo da palavra. Ao lado do que nunca concebemos em nos concebivel, na firme convicgao de que nada tem de ver cono: s, pensamentos, caracteristicas que achamos muito desagradé- tamente, trata-s vida, tudo 0 que recusamos como in- . Ages, motivos, desejos, inteng 134 © TARO E A VIAGEM DO HERO! veis, que nos enchem de horror, dos quais nos envergonhamos, de que até entio s6 tomavamos conhecimento nos outros; comportamentos, opinides e expresses que ach4vamos repetitivas, insistentes ¢ revoltantes, mas que nos excitam bastan- te, que podem nos abalar profundamente e que, pela primeira ver, temos de reco nhecer como nossos — quando achdvamos que estavam restritos aos outros. Aqui no reino escuro da sombra vive tudo o que reprimimos téo bem a ponto de nada ou quase nada sabermos a respeito. Tudo de que temos horror quando escurece. ‘Tudo de que nos envergonhariamos até 0s ossos, caso nos pegassem ou se nds mes- mos nos pegdssemos “em flagrante”. E temos de reconhecer e aceitar agora que tu- do isso faz parte de nés. Nao é de admirar que s6 0 fagamos com repugnancia ¢ com grande mal-estat. Devemos a Albert Camus uma descrigéo impressionante de uma confissio impiedosa, um autodesnudamento sem compaixio que, além disso, estimula & imitagdo. Em seu livro Der Fall’ [A Queda] ele conta a histéria de um advogado famoso, bem-comportado ¢ bem-sucedido nos melhores citculos, que tem uma imagem totalmente impecavel de si mesmo. Mas, certa noite, ao atravessar uma ponte deserta, ele ouve um riso atrds de si. E esse riso nao 0 deixa mais em paz, até que amargamente tem de confessar a si mesmo quem realmente é: enxergar a vai- dade do seu ego, reconhecer a sua sombra impetuosa e compreender os verdadei- ros motivos que estao por trés do seu cardter distinto de todas as suas agées. Ness¢ local escuro vive com dificuldade tudo 0 que gostaria mas nao pode estar vivo em nés, uma vida infeliz de sombra. So as malquistas “pessoas interio- res” que 0 nosso ego nao considera dignas de sociabilizar-se ¢ que expulsou sem mais nem menos. Elas encontram-se num lugar incOmodo, naquela prisio real- mente infernal que ¢ baixa demais para permitir que alguém fique em pé ¢ peque- nna demais para esticar-se, & qual durante a Idade Média se arremessava o ctimino- so, deixando-o totalmente esquecido. Nosso ego n 0s lados nao amados da nossa personalidade. Eles sio impiedosamente trancados o lida menos brutalmente com © esquecidos. Nao é de admirar que se transformem em deménios ¢ atormentem a nossa consciéncia, € nao sé nos pesadelos. Na linguagem dos contos de fadas esse ¢ 0 local das almas vendidas. Aqui no inferno, Lucifer vela sobre as partes divididas do nosso ser, sobre tudo 0 que nds, como seres humanos, nao achamos que nos pertenga. E € por isso que aqui esté tudo 0 que nos falta para. totalidade ¢ que, ao mesmo tempo, é a fonte de nos- sos ertos. Do ponto de vista psicolégico, no caso do bem de dificil alcance, trata-se dos aspectos das nossas quatro fungées da consciéncia que nés nao desenvolve- mos, que permaneceram inconscientes ¢ que faltam & nossa consciéncia (veja pp. 2. Ver Albert Camus, Der Fall [A Queda], pp. 345s. © DIABO — NO REINO DA SOMBRA 135 Assim que a razGo desperta, que tudo controla, quer dormir, os deménios reprimidos a atormentam. a falta € os erros resultantes dessa falta somos violentamente con- frontados nesse aspecto. Pelo fato de termos de confronté-los inevitével ¢ repeti- damente na vida exterior ¢ de, bem ou mal, termos de lidar com eles, ou porque finalmente entendemos que temos de voltar-nos para esse ra nossa toralidade, O mais d volvido, rude e primitivo. Enquanto ao longo dos aspecto, visto que fal- csagradivel é que esse lado do nosso ser ficou muito pouco desen- nos desenvolvemos com ele- gancia as outras fungoes da consciéncia ¢ as aprimoramos, essa parte abandonada ficou cada vez mais para td da, inferior, obstinada ¢ caéti ca. Por isso nao a queremos, considerando-a incdmoda; achamos que ¢ supérflua , continuou incivili as. Assim que nds mesmos temos de aprender a desenvolver essa fungio da consciéncia, is- so nao sé é desu e dispensavel e a desprezamos — quando a percebemos em outras pe sado ¢ penoso, mas sobretudo toma muito tempo, Parece-nos que outros éculos 0 tio claros ¢ limpos. E como se tivéssemos de nos mostrar em sociedade como somos obrigados a usar éculos embagados, quando todos os nossos 136 © Tard € A VIAGEM DO HERO! Lcifer vela sobre as partes divididas das almas que cairam nessa posictio incmoda um velhaco desleixado ou como uma prostituta mal vestida. por isso que até agora nos recusamos teimosamente a comecar com isso. Muitas vezes a nossa consciéncia ¢ suficientemente soberba para acreditar que tudo o que reprimimos ou esquecemos nao existe mais. O que reprimimos ou esquiccemos, no entanto, tornou-se inconsciente mas continua bem ativo. Apenas ndo temos mais consciéncia disso. E é jus amente nisso que hd um grande perigo, porque s6 podemos controlar ¢ viver com responsabilidade aquilo de que temos consciéncia, Um velejador que tem consciéncia do vento, pode a do prop dessa forga, ele seria um joguete em suas maos. O mesmo vale para os nossos de nesmo velejar contra 0 vento com a ajuda io vento. Mas se nao tivesse conhec nento samados lados de sombra. Nao saber nada sobre eles nao quer dizer que eles nao estejam presentes ou que nao sejam efi ‘Todos jé viveram momentos em que subitamente “foram possuidos pelo de- ménio”. Assim di fore: esse lado demonfaco da nossa consciéncia, por assim dizer a ocupa ¢ nos leva a ientes. crevemos uma situaao em que imprevistamente surgiu uma , que € demonfaca porque a separamos de nés ¢ a reprimimos. De repente, fazer coisas para as quais néo temos explicagao, diante das quais posteriormente © DIABO — NO REINO DA SOMBRA 137 No inferno, o reprimido coresponde ao estado obstinado, indiferenciado e caético da fungao negligenciada da consciéncia. perguntamos perplexos, como isso pode acontecer conosco. A psicologia chama essas parte no integradas da nossa personalidade de “complexos auc6nomos”, que, por assim dizer, levam uma vida de va a alma, movi bundagem em nos mentam-se como uma corja que tem medo da luz, fora do ambito organizado da nossa consciéncia, & espera de um momento favordvel e de descuido — um mo mento de excitagéo ou também de embriaguez — para tomar conta da conscién- cia e viver “desavergonhadamente”. Eles nos levam a fazer coisas que depois acha- mos estranhas, visto que nosso cu no conhece esses lados ¢ tampouco quer aprender a conhecer. 138 © Taro € A VIAGEM DO HERO! Mas, mesmo quando nao chegamos ao ponto de set possuidos pelo demé- nio, em que a consciéncia acha que esté no controle, somos acuados ¢ influencia- dos pelos lados nao vividos da nossa sombra, Quem pode afirmar que nao é sedu- zido ou manipulado, ¢ quem pode afirmar que nio repete coisas que hé muito tempo se propusera nao mais fazer? Todo ser humane luta contra as préprias fra- quezas, os sedutores interiores. E quem acredita que superou essa problemética é possivelmente sébio, mas provavelmente apenas um ingénuo. Pelo fato de esses la- dos de sombra faltarem 4 nossa totalidade, por no desejarmos tomar conhecimen- to deles, eles se transformam em nossos erros ¢ fraquezas, raizes da nossa falta de liberdade. Aquilo que nos falta, toma conta de nés ¢ constantemente nos puxa ou- tra vez para o fundo, talyez somente para se tornar percebido, para que no nos esquecamos dele, Esses lados desamados nao vividos querem ser libertados de sua incémoda prisio, querem tomar forma e ser vividos. E por isso que apesar das nossas boas intengdes sempre recaimos no erro, para que nao acreditemos poder passar sem eles. Mesmo que nao nos demos conta disso, aqui estamos num local de cura. Aqui esta aquilo que nos falta para a cura, para a nossa totalidade. Enquanto nao aceitamos esse nosso lado de sombra, continuamos unilaterais ¢ infelizes. Mas, na- turalmente, essas reflexdes néo devem ser interpretadas como uma ordem para fa- zer desenfreadamente tudo o que nao se fez antes, agredindo 0 vizinho, reagindo mal no trabalho ou em casa, ou passando a viver dai em diante segundo o princi- pio do prazer e, sem nenhuma vergonha, dando vazao as emogoes. Trata-se mui- to mais de confessar as inclinagdes e desejos reprimidos e depois procurar uma possibilidade de integré-los & personalidade consciente e vivé-los responsavelmen- te, Entdo o que era destrutivo pode tornar-se novamente construtivo porque vol- fou a0 proprio lugar. Isso nao impede o sentimento da amargura. Uma pessoa que romou conhecimento da sua sombra ¢ que vive os lados antes reprimidos do seu ser, nunca ¢ inofensiva, Ela pode, no minimo, ser incmoda, provocante ou cho- cante, Mas ela sabe 0 que faz e o faz conscientemente, Nio nos libertamos daquilo que nao pode ou nao deve ser enquanto — no duplo sentido do termo — nao o deixamos ser. Quanto mais lutamos contra al- go € 0 reprimimos, tanto mais somos atraidos ¢ ficamos fascinados por ele. En- 10 nos declararmos dispostos ou nao estivermos em condigao de ver 0 que consideramos uma forca sombria em nés, temos de encaré-la de frente nos quanto n outros — o que para 0 ego nacuralmente é muito mais agradével. Como conse- qiiéncia, a prépria sombra nos ameaga cada vex mais, a partir do exterior, Em de- corréncia disso ndo s6 surgem animosidade pessoal, suspeitas monstruosas ¢ atri- 3. Ver Marie-Loui las, p. 52 von Franz, Der Schatten und das Bise im Méirchen (A Sombra e 0 Mal nos © DIABO — NO REINO DA SOMBRA 139 Aquilo que nos falta sempre nos torna reincidentes. buigdes insustentaveis de culpa, mas também codas as teorias de traigao pessoal ou coletiva, em conseqiiéncia das quais o mundo é dominado por um grupo que quer poss todo © poder, como a corrente da moda ¢ a posigao politica determinam ou determinaram, por exemplo, os comunistas, 0s magons, os zionistas, os reis da droga, os fundamentalistas, as bruxas, os judeus, os verdes, os neonazistas, os he- reges, os cientologi as, 05 bolcheviques, os mafio 0s, os jesuitas, os grandes capi- talistas, a CIA. O pérfido nisso é que 0 grupo incriminado nao tem a minima 140 © TARO E A VIAGEM DO HERO! chance de se livrar da projecio coletiva. Onde é projetado, 0 ser humano ¢ total- mente insensato, porque seu juizo normalmente licido entio fica imune mesmo s esclarecedores. O bode expiatério nao rem chance. Seja 0 que for que fizer, ele é acusado ¢ fortalece todas as suspeitas tidas até o momento. aos argumentos ma A luta contra a sombra, no exterior, corresponde sempre a uma succio inte- rior, O que é reprimido, por sua vez, tem tal fasc{nio que, com mais freqiiéncia do que qualquer outra coisa, encontramos exatamente essas pessoas ou temas temi- dos, contra os quais lutamos com tanta persisténcia, Mas, muito pion, é que o re- primido nos leva a fazer secretamente 0 que no devemos — especialmente quan- do um ego vaidoso se permite concessdes especiais — ou com toda a franqueza a fazer algo que parece bom ou nobre, mas que depois de uma observagio mais acu- rada nao apresenta nada de muito positivo. Talvez como um sacerdote, que, a0 querer expulsar todos os deménios, com demasiada precipitagao cai num exorcis- mo orgidstico, que é a caracteristica de uma missa negra. Quando um homem de bem se vé compelido a ser um censor de pornografia e com grande sofrimento tem de assistir a toda aquela sordidez contra a qual ele luta, acaba consumindo muito mais pornografia do que qualquer cidadao comum. Seu ego naturalmente se sai bem da situagao, porque pode a usando um traje imaculado. Quando os protetores de animais matam pessoas pa- ra proregé-los, quando seres humanos lutam pela paz usando armas, quando os homens limpos da nagio subitamente “se véem imersos na sujeira’, quando pes- istir 4s cenas mais sujas ¢, no entanto, continuar soas crentes em Deus de repente matam ¢ esfolam tomadas de fervor religioso, quando grandes libertadores do povo se transformam em tiranos e déspotas, quan- do gurus exaurem a energia dos seus adeptos, entéo, com fervor mais apressado do que sagrado, os homens nem percebem isso. Aqui, na profundeza da noite, mora mais uma sombra muito especial, que sempre tornamos a encontrar no decurso da vida. Eo nosso sexo oposto incons- Ao vitimas de suas sombras e, na maioria das vezes, ciente, que Jung chamou de anima ¢ animus. Ambos, como todas as imagens in- teriores, tém dois pélos: um iluminado ¢ outro sombrio. O polo iluminado da ani- ma ou do animus j encontramos ha tempos. Naquela ocasiio em que nos apaixonamos perdidamente pela primeira vez. Nese momento, a mulher encon- ta seu animus, o homem se deixa encantar pela anima, pois essa forga magica s6 pode provir do inconsciente, visto que mais nada é capaz de encantar a nossa consciéncia. Estar apaixonado significa estar enamorado da propria imagem interior A pessoa que faz 0 nosso coragao bater com mais forga, talvez tenha o nariz.apro- sibi- (0. Mas esse algo & bem pouco em comparagio com 0 que vivemos; priado no qual podemos pendurar nossa imagem. Alguma coisa nela nos po lita essa proje talvez. corresponda ao relacionamento do quadro com 0 prego. Segundo a expe- rigncia, a paixao raramente dura mais do que seis meses. Enta a imagem maravi- (© DIABO — NO REINO DA SOMBRA 141 Ihosa paulatinamente adquire rasgos, fica quebradiga e mostra contornos cada vez mais estranhos ¢ feios, De inicio, ainda fazemos 0 melhor possivel para salvar 0 quadro original, porém, mais cedo ou mais tarde, censuramos zangados o princi- pe encantado ou a mulher dos nossos sonhos: “Mas vocé mudou muito!” ¢ que- remos dizer naturalmente, “para piot!” Nés chamamos o outro de “trapaceiro”, sentimo-nos decepcionados ¢ acreditamos ter enxergado finalmente a sua verda- deira natureza. Mas, durante todo esse tempo, 0 nosso oposto nio se modificou, 56 a nossa forca de projegao foi ficando cada vez mais fraca. Para muitas pes so € motivo para jogar tudo fora ¢ procurar um novo objeto de projecéo, para oas durante mais seis meses entregar-se & embriaguez da paixio. Outras, com 0 tem- po, esto dispostas a se tornar mais maduras e a aprender, aos poucos, a diferen- ciar entre a imagem animica e a realidade. Para elas 0 verdadeiro relacionamento s6 comega depois que acaba a paixio." Com 0 Diabo chegamos ao pélo oposto escuro da anima e do animus. Se fi- camos encantados com 0 aspecto claro da nossa imagem animica, até a vida nos en- sinar a reconhecer nele as nossas projegdes, sentimo-nos profunda- mente ameagados pelo aspecto sombrio da nossa imagem interior. D compreender que se trata de nossas essa vez ¢ ainda mais trabalhoso proprias imagens ¢ nao das pessoas sobre as quais transpomos esses la- dos de sombra. Por isso, fazemos realmente tudo para provar 0 con- trério, Estamos totalmente certos ( se trata de proj mas de riscos bem reais que nos de que ni ameagam ¢ por isso tém de ser ba- nidos ¢ destruidos o mais depressa possivel. Mas, por mais que amea- cemos bater em nossa sombra, de queimé-la ow tentar nos livrar dela de alguma outra maneira, estra- nhamente ela vem outra vez & to- na. Ela nos pertence ¢, assim como a nossa sombra fisica, tampouco O aspecto escuro da deusa hindu Kali. pode ser eliminada. 4, Para mais informagées sobre o tema, ver Hajo Banzh inf elle (Voce €Tudo 0 4 fe Brigitte Theler, Du bist alles, was 142 © TARO E A VIAGEM DO HERO! Medusa com a cabega coberta de cobras As antigiiidades patriarcais quase s6 nos legaram imagens sombrias femini- nas, antes de tudo o lado escuro da Medusa, que tem seu correspondente no as- pecto escuro da deusa hindu Kali c na danagio que perdurou durante o delirio das as da Idade Média Quando um homem a anima & sua parceira ¢ sabe com toda certeza que cla é exatamente assim, para brux ribui cegamente essa imagem do pélo escuro da sua cla com certeza fica dificil manter um relacionamento harmonioso com ele. O mesmo vale, naturalmente, p a uma mulher que sem qu alquer inibigao proje ta 0 seu guerreiro furioso, 0 seu carrasco ou 0 seu monstro atroz sobre 0 seu ho- mem. Se jé era dificil descobrir e retomar a projecio luminosa, é muito mais tra- se refere as nos: balhoso entender que essa projecao sombri préprias imagens, embora as percebamos ¢ sintamos to de perto ¢ de modo tio convincente em nosso oponente. Mas, quanto mais obstinadamente nos fechamos a essa com- preensio, tanto mais freqiiente ¢ intensamente es n na nos: s sombras aparece sa vida, Ficamos profundamente decepcionados com todas as pessoas nas quiais ‘© DIABO — NO REINO DA SOMBRA 143 podemos repentinamente perceber essas caracteristicas negativas. Com raiva sa- grada nos separamos até mesmo da pessoa mais préxima, que antes amavamos, vez. Mas por mais que tentemos es- tar bem seguros € por mais que tentemos testar ¢ avaliar 0 outro, assim que a ¢ juramos tomar mais cuidado da préxima proxima paixao arrefece constatamos com surpresa que nos relacionamos outra vez. com um diabo — ou com uma bruxa. Depois de algum rempo achamos ter reunido suficientes experiéncias negativas, para podermos definir 0 homem ou a mulher. Com orgulhosa resignacao nés nos insurgimos ¢ determinamos nun- ca mais nos relacionar. Nunca mais! Talvez nos demos conta de que nés também trazemos em nds es cias irritantes ¢ decepcionantes, ¢ voltamos a libert mento com as outras pessoas; é a nossa sombra que se projeta em nosso ambien- s experién- outra vez no relaciona te ¢ temos de reconhecer esse mundo de sombra interior em nds, temos de integré-lo, em vez de combaté-lo no exterior ferro ¢ fogo. Em todo 0 caso, a men- sagem de muitos mitos, que dizem que nao é0 caminhante solitério que chega a0 objetivo, mas somente o herdi levado pelo seu condutor de almas (do sexo opos- to), nos deve dar 0 que pensar. S6 em nossa lida intensa com o sexo oposto pode- mos nos tornar totais. O retraimento amargurado, o endurecimento brusco ou a independéncia auto-imposta nao sio solugdes. Quem fracassa nos relacionamen- tos, quem foge persistentemente do outro sexo, fracassa numa parte essencial de sua tarefa de vida, Um solteirao permanece como meia totalidade. A carta do taré most a-nos Adao ¢ Eva amarrados por correntes em poder do diabo. Ela representa a dependéncia, o vicio ea falta de liberdade, e significa que temos de fazer algo contra a nossa convicgio, contra a nossa vontade. O mo- tivo € notério: nao estamos livres, estamos presos ¢, portanto, somos manipuld- veis, Mas como podemos ver na carta, as correntes estéo suficientemente frouxas para que ambos possam se soltar delas. Mas para isso eles teriam de compreender © que os mantém presos. E é exatamente nisso que esté o problema. FE. tremenda- mente dificil para nds reconhecermos as causas originais de nossas dependéncias € vicios. Por tr ter-relacionamentos sio tao re de cada vicio esté uma busca que nao deu certo. Muitas vezes os in- alcados que nao sabemos mais 0 que realmente procuramos ¢, de varias maneiras, ndo temos mais certeza se estamos procurando alguma coisa. Apenas sentimos as conseqiién s, por exemplo continuar a fumar, embora jé tenhamos renunciado varias vezes ao cigarro. Ao menos na primeira me- tade do caminho, procuramos solucionar esses problemas com 0 método “mase lino” da “eliminagio”, fidis ao lema: “Quando cu quero, eu posso!” ou “Seria ridi- culo cu nao conseguir controlar isso!” Aparentemente algumas pessoas sio bem-sucedidas nessa tarefa. Com grande firmeza, elas reprimem o sintoma e acre- ditam que assim resolveram todo o problema. Mas é claro que essa niio é a solu- ¢40. Dessa maneira, nenhum famante deixa de sé-lo, mas na melhor das hipéte- 144 © TARO E A VIAGEM DO HERO! ses torna-se um fumante que nao fuma. Mais cedo ou mais tarde o problema acha outro sintoma para nao cai cia entende esse inter-relacionamento, Muitas pessoas tornam-se reincidentes an- tes ¢ fracassam nas boas intengdes com que sabemos que o caminho para o infer- no esquecimento; em casos muito raros a conscién- no é pavimentado. E é exatamente af que nos encontramos agora. Aqui no mundo da sombra esta o verdadeiro problema. Quando 0 solucio- amos, termina com isso também o sintoma. A dificuldade esta somente em ras- treat 0 problema ¢ descobrir 0 que realmente buscamos, que lado nao vivido em nds quer tornar-se vivo. Quebrar a cabega e pensar é 0 que menos nos ajuda’ pros- seguir. Nossa consciéncia apenas nos dard sugestées que passam ao lado da verda- de. Pois o verdadeiro jd esta dividido por “boas razdes”. O ego sente-se muito ameagado pelo que lhe falta, ¢ por isso 0 baniu para o reino da sombra. Ble de pre- feréncia “fard o diabo” antes de deixé-lo entrar na consciéncia. Mas 0 nosso si mes mo, que nos quer levar 8 totalidade, cuida continuamente para que encontremos outra vez esse tema pelo qual procuramos, mesmo que a nossa consciéncia par- tout nao queira reconhecé-lo e, em vez disso, negue firmemente que essas coisas tenham algo a ver conosco. Para quem de fato quer compreender, uma atengao amigavel nesse ponto é de grande ajuda, isto é, observar com atencao tudo 0 que sempre voltamos a encontrar, tudo o que vive nos ocupando interiormente ou se mostra em nossos sonhos. Se a nossa razo nao se opuser hostilmente aos conhe- cimentos intuitivos, porém até deixar que entendamos que a fuga nao é uma so- lugdo, que exatamente para onde “queremos fugit”, onde nos esquentamos e fica- mos zangados, pode estar 0 verdadciro tesouro, muito se alcangou. Para a solugio do problema, em muitos casos, caracteristicamente nem sequer é necessirio com- preendé-lo, Basta acontecer 0 certo, Isto é, a nossa busca termina no momento em que damos o passo certo, mesmo que nunca reconhecamos ou entendamos o que aconteceu, € como esses dois temas estavam interligados. Chama a arengio como em certos circulos ditos esotéricos se costuma fazer um grande rodeio para falar de tudo 0 que parece escuro, oculto ou sinistro como 0 diabo. Para muitas pessoas parece nio haver contradigao em falar constantemen- te de salvagio e de totalidade para, no mesmo momento, jurar nada ter a ver com © “preto”, ou sem querer logo transformé-lo em branco, sempre que 0 encontra. Por isso muitas vezes preferem-se os trajes brancos, ¢ a meditagao sobre a luz é uma centativa desesperada de manter longe todo 0 escuro todo 0 mal. A conseqiién- cia pode ser uma mania psicolégica de perseguigio. Em compensacao, como o in- consciente sempre se comporta como se fosse consciente, um consciente branco doentio exorciza necessariamente um inconsciente negro como piche. E como 0 ego nao é conquistado pelos contevidos escuros, eles tém necessariamente de cons- telar-se no exterior como o mal, com que essas pessoas se sentem cada vez mais ameagadas, Jung nos pede para refletir: “Nao nos salyamos por imaginar o claro, mas pelo fato de tornarmos 0 escuro consciente. Esta tiltima coisa ¢ desagradével (© DIABO — NO REINO DA SOMBRA 145 €, portanto, nao é popular.”* Deve dar 0 que pensar que o nome do diabo seja Lii- cifer, que significa portador da luz. Como a forga que conceituamos como escura ¢ ma pode ser um portador da luz? O nosso ego é muito habil ao colocar-nos sem- pre na luz correta, para que em comparagio com as outras pessoas sempre nos saia~ mos bastante bem. Nao que a nossa avaliagao de nés mesmos esteja incorreta, ela é apenas muito unilateral, porque deixa 4 margem lados essenciais. E por isso s bemos muito pouco sobre nés mesmos enquanto sé ouvimos os elogios do nosso ego. Mas se encontramos nossos lados de sombra ¢ reconhecemos que cles tam- bém fazem parte de nés, abre-se em nés uma luz que diz que nds também somos isso. Por isso os gnésticos gostavam de comparar 0 mal com um espelho quebra- do caido do céu. Um espelho nao tem imagem propria. Ele mostra a cada um que olha para ele uma imagem, que ele nao poderia ver sem o espelho. Nessa verdade ampliadora da consciéncia esta o aspecto lticido do diabo. Enquanto um ser humano nao sabe nada sobre a sua sombra, ele se acha inofensivo. Mas diz. Jung: “Quem conhece a prépria sombra sabe que nao ¢ ino- fensivo.”* Quanto menos reconhecermos 0 escuro em nés, tanto menos confia- remos no nosso oponente. Uma pessoa amargurada, amargura também as pes- soas com as quais convive. Ela também foge de confrontos necessérios, na medida em que simplesmente afirma que todas as pessoas sto boas. Seu ego a adula com a idéia de que tem tanto amor por todas as pessoas que se encontra num nivel superior de desenvolvimento ao dos pobres nio-iluminados, que ain- da tém de lidar com uma vida repleta de conflitos ¢ com pessoas inoportunas. Mas nao é um amor grande demai se engajar realmente em sus anseios ou de lutar pelos seus direitos. Isso nao ra- ro faz dessa pessoa uma vitima, porque ela ndo quer ver como os outros usam sua ingenuidade, traindo-a ou tornando-a ridicula. Assim como ela teme o en- contro com a prépria sombra, ela também foge ao confronto com os aspectos de sombra das outras pessoas. Em vez disso, ela embeleza ou torna indcuo 0 que niio quer ver. A desvantagem aparente nao é sé que a pessoa se torne vitima, mas mas a mais pura covardia que a impede de que fique enrijecida no papel e no nivel de consciéncia de uma crianga inocen- te, que nao consegue acreditar que o mundo é mau. Como crianga, talvez tenha aprendido que é suficiente ser bom. Mas como adulto, essa posigao infantil lo- go se torna ridicula e cada vez mais problematica. Marie-Louise von Franz dis- se sobre isso: “A nica possibilidade de passear pela vida como um tolo inocen- te, bem educado, protegido pelo pai ¢ pela mae de todo 6 mal deste mundo ¢ portanto batido, traido ¢ roubado em cada canto, esté em descer as profunde- nda e 5. Citado por Gerhard Wehr, Tiefenpsychologie und Christentum (Psicologia Prof Cris tianismo], C. G. Jung, p. 120. 6.C.G. Jung, Die Pyychologie der Uberiragung [A Psicologia da Transferéncia), obras comple- tas, vol. 3, p. 192 146 © Taro E A VIAGEM DO HERO! zas do prdprio mal, 0 que nos coloca na posigio de reconhecer instintivamente 0 elemento cortespondente nas outras pessoas.”” As cartas OS AMANTES (V1) ¢ O DIABO (XV) estio ligadas pela soma transversal. No Taré de Rider, essa correlagéo ainda é acentuada por um motivo semelhante. Vemos Adio ¢ Eva antes ¢ depois do pecado original. Na carta OS AMANTES, eles esto sob a protegao de Rafael, 0 guardido da Arvore da Vida, 0 curador da Terra ¢ dos seres humanos. Esse arcanjo também vale como guia atra- vés do inferno ¢ como domador do anjo negro Asael, um correspondente do dia- ima quin- bo no Velho Testamento, sob cujo poder se encontram as pessoas da di ta carta. A ligagio dessas duas cartas nos estimula a nos livrarmos de entre- lacamentos, dependéncias ¢ da falta de liberdade (Diabo) a fim de tilhar 0 caminho da livre decisio do coragto (Os Amante). As duas cartas, contudo, se mos- tram como 0s dois pélos da mesma vi- véncia; um conhecimento que na ver- dade esconde algo monstruoso. O ser humano sente-se muito nobre, bom 0 e acredita estar livre de toda mal- = — pu — Ocaminho da livre Dependéncia e decisGo do coragao. entrelagamentos dade do seu coragio. O entrelagamen- passionais, to dessas duas cartas mostra que dade quando ama com toda a intensi- mesmo quando estamos totalmente convencidos da pureza dos nossos motivos e do nosso verdadeiro amor, surge um pélo contrario sombrio na forma de cobiga, luxtiria, sede de poder e sentimento de posse, € outros aspectos atrozes. No entanto, também acontece 0 contrério: mesmo quando s6 enxergamos 0 mal nas outras pessoas, quando juramos vingan- cae de preferéncia gostarfamos de destrui-las, mesmo entio existe um pélo opos- to claro, apesar de reprimido. Por tras do édio, da raiva ¢ da repugndncia escon- dem-se sentimentos de amor condensados até tornarem-se insuportéveis. O conhecimento de que esses pélos de fato se pertencem e sé juntos formam a totalidade — como 0 claro € 0 escuro, como o dia ¢ a noite — ¢ insuportavel principalmente para os nossos sentimentos nobres ¢ sagrados. Gostarfamos de sé manter em nés 0 lado clato e de deixar o lado escuro para o inferno. A tristeza des- sa tenso aparece nas famosas palavras de Fausto, com as quais Wagner explica a ingénua benignidade ao representante: “Vocé sé tem conhecimento de um dese- 7. Marie-Louise von Franz, Die Suche nach dem Selbst, (A Busca do Si Mesmo], p. 18. ‘O DIABO — NO REINO DA SOMBRA 147 jo. Nunca queira conhecer 0 outro! Ah! Duas almas moram no meu peito! Uma quer separar-se da outra.”* 8, Johann Wolfgang von Goethe, Fausto, I, 1110. A libertagao dramatica Desorquectiersiciverticoenvencaras takemoyeledeveentis salvar da violéncia do adversério © bem perdido, a alma vendida, ou seja 0 que for que estiver preso nas garras dele, Essa tarefa corresponde a carta A TORRE. Ela repre- senta vencer o guarda, matar o dragao, a destruigio repentina da prisio, a liberda- de da alma aprisionada, 0 arrombamento dos portais io, que atinge a torre ¢ derruba a sua coroa, Uma coroa do inferno. dessas, fechada em cima, significa que nao se reconhece nenhum poder acima do seu. Isso faz da Torre um simbolo do orgulho, da megalomania ¢ da exaltagio do eu, como a famosa torre da Babilénia. Como 0 dedo indicador de Deus, o raio simboliza um acontecimento exte- rior que leva ao desmoronamento de uma velha ordem. Da mesma forma, pode tratar-se de um raio do espirito, que nos permite per- ccber instantaneamente como nossas idéias até 0 momento esta- vam erradas, como as haviamos construido sobre areia, No entan- to, 0 seu significado fica mais cla- ro quando a comparamos com a carta QUATRO DE BASTOES que, nos Arcanos Menore repre- A torre da Babilénia. Simbolo da megalomania, senta o pélo oposto da Torre, A TORRE — A LIBERTACAO DRAMATICA 149 Ambos os motivos mostram uma grande construgao: um castelo, uma torre. Em ambas as cartas estao as _mesmas pessoas, usando. trajes idénticos. Enquanto elas alegremente deixam o castelo na carta QUATRO DE BASTOES, na carta A TORRE, clas so arremessadas para fora. Para compreender o inter-relacionamento das duas cartas, podemos imaginar ‘A Torre e 0 Quatro de Bastées como motivo da carta QUATRO DE come pales opoates BASTOES 0 lar ideal da nossa infan- cia. O castelo em segundo plano re- presenta — como o lar paterno — a seguranga que sentfamos por tras de nés, enquanto saiamos curiosos receptivos para conhecer 0 mundo, acompanhados da certeza profunda de poder voltar & seguranga do lar paterno. Assim, a carta QUATRO DE BASTOES significa paz, franqueza ¢ seguranga dentro de uma moldura apropriada. Mas quando conti nuamos a viver no mesmo quarto de crianga aos quarenta anos, ¢ a mae nos s ve o café da manha como antes, entao o que originalmente era harmonioso e afi- nado jé se torna muito apertado porque nés crescemos. Essa estrutura apertada demais tem de ser destruida. Por isso a Torre significa que algo vai se romper, al- go a que estamos demasiadamente apegados, algo que jé foi apropriado mas que se tornou muito limitado, timido, superado ou cristalizado e que, em tiltima and- lise, representa uma prisio, Assim, a carta pode representar a destruigao de uma imagem demasiado li- mitada do mundo, de um sistema de valores antiquado ou ingénuo demais, a li- bertagio de um condi Jamente limitado ou também o des- moronamento de uma falsa auto-imagem. Mas, a0 mesmo tempo, a Torre representa a ruptura para uma liberdade maior. O problema se resume no fato de ‘ionamento dem: que nos acostumamos muito bem & nossa prisdo. Ela cra apertada, mas nés a co- nheciamos, E costumamos nos apegar ao conhecido, mesmo que seja um mal. Por isso, via de regra, vivemos com medo o desmoronamento simbolizado pela Torre € muitas vezes o consideramos uma catdstrofe. $6 mais tarde, olhando retroativa- mente, reconhecemos nele a libertagao decisiva. Se provocado interna ou externamente, o rai simboliza uma modificacio stibita, que faz ruir 0 que cra natural. Pode ser um aviso de demissio do emprego, uma separagio repentina, 0 fracasso de expectativas firmes ou 0 abalo da nossa au- to-imagem. Nesses casos, tomame consciéncia de que a realidade é maior e dife- rente do que a haviamos imaginado. E é exatamente nisso que esté 0 conhecimen- to claro que nos espera para climinar todas as incertezas, “esclarecer” todas as

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