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A FUNGAO SOCIAL DA PROPRIEDADE SuMAnio: 1. Limitag6es, vinculos e énus impostos 3 propriedade. 2. A fingo social. 3. Fonte da concep¢io. 4, Determinantes ideol6gicas. 5. A propriedade é uma fiango social? 6, Fungao social e limitagdes. 7. Sentido da expressio. 8. Conclusio. 1. LimitagSes, vinculos e énus impostos 4 propriedade O ponto de partida para uma anilise da fungao social da propriedade no sistema econémico, no regime politico ¢ no contexto histérico do tempo presente ¢ o reconhecimento do significado que o respectivo direito vem assumindo nos paises ocidentais. Salta aos olhos que o direito de propriedade despiu-se das suas vestes romanas, que deixou de ser um atributo da personalidade do individuo, identificado, como direito natural, 4 sua liberdade. As transformagdes por que est4 passando atingem-lhe a estrutura e a fungéo, concorrendo para a desagregagio do poder do proprietério, que definia outrora a esséncia da propriedade capitalista 1, O confronto entre os dois significados da propriedade no plano histérico denota que os modelos juridicos sio tio diferentes que o observador percebe sem esforgo a crise do instituto através da notéria inadequacdo das suas formas antigas as novas condigSes materiais de existéncia ¢ as racionalizagdes 1 Henrr re Pace, Pourquoi /a proprieté, Paris, Hachette, 1985, p4g. 126. 424 Homenagem ao Prof. Anténio de Arruda Ferrer Correia ideolégicas que o justificam nos dias de hoje. O descompasso é tio notério que dispensa uma sinopse de suas causas ¢ fatores, muito embora o sentido que adquiriu na realidade contemporanea tenha de ser extrafdo dos «reflexos das estruturas sociais do momento hist6rico e do seu clima cultural», tanto na sua forma como no seu sistema, Uma observagio superficial do instituto da propriedade na sua configuragao e articulagdes hodiernas revela, 1 primeira vista, que as transformagSes ocorrem precipuamente no contetido do direivo — uti, frui, abuti. Aos limites. tradicionais do direito de propriedade que tinham maior reperctissio social acrescenta~ ram-se progressivamente novas limitagdes mais incisivas, Nao s6.a lei, mas 0 juiz por via de interpretacio, e a autoridade administrativa por meio de decretos, restringem crescentemenre a autonomia do proprietario, até mesmo dos bens de uso?. Mas nioé apenas 0 esvaziamento dos poderes do proprietétio ou a redug3o do volume do direito de propriedade que traduzem sua transformacio. Se fosse, a sua substancia nao teria sidoafectada, por, isso que o fenémeno consistitia em nada mais do que um simples aumento da quantidade de limitagdes. A modificagio sob +o impulso de fatores conhecidos integrou-se a um contexto-no qual as estruturas mentais estavam adquirindo nova inspiracao. Por efeitoimediato da mudanga de mentalidade, 0 respeito a propriedade privada como direito intocdvel enfraqueceu, favorecendo: aa multiplicagao das transferéncias coativas, b) a defesa de interesses difusos, c) a limitagio do seu uso. Avultaram os motivos que 2 Como sucede, por exemplo, com a lei municipal que proibe a erradicagio de uma dtvore do seu quintal, sem licenga do alcaide, ou com as “medidas da mesma autoridade que, para defender o ambiente, operant ‘a socializagio da natureza, Limitagdes também severas, impGem-se, principalmente, A propriedade das empresas, jd se tendo chegado ao extremo, na Franca, de se legitimar a ocupagio de uma fibrica com epis6dios de pilhagem; que implicavam © reconhecimento do direito dos trabalhadores'sobre a empresa, A fungio social da propriedade 425 justificam a desapropriagaio; na drea empresarial, amiudaram-se as estatizacdes; a protecio do ambiente passou a ser um interesse geral da sociedade ¢ 0 exercicio do direito deixou de ser absoluto, limitada que foi a sua extensio objetiva pelo obstéculo do abuso do direito, Essas variagdes nao mudaram, contudo, 0 espirito do dircito de propriedade como poder do sujeito de direito sobre uma coisa, seu objeto. a As limitagées, os vinculos, os dnus ¢ a propria relativizago do direito de propriedade constituem dados auténomos que atestam suas transformagées no direito contemporaneo, mas. que nao consubstanciam um. principio geral que domine a nova fungiio do direito com reflexos na sua estrutura ¢ no.seu significado e que seja a razio pela qual se assegura ao. proprietirio a titularidade do dominio. 2. Fung&o Social Esse principio geral é o da fungao social. Com,-essa expressio de .conceituagéo vaga.o direito de propriedade —o -direito subjetivo por exceléncia, na ordem patrimonial — passa a ser encarado como uma complexa sitwasiio jurldica subjetiva,. activa e passiva’. Deixaria de ser um direito subjectivo sem se converter, entretanto, em simples interesse legitimo. — .- A qualificago da propriedade como sitwagao juridica abran~ gente de direitos, obrigagdes ¢ énus nao é suficiente, contado, para a definicio do principio consubstanciado no conceito de i ieta, Cametino, 3 Pertinetent, Introduzione alla problematica ‘della propriet, . Jovene, pag. 70. Para o conceito de situacio jurfdica em Konuer, Ducurr, Carnsturti e Berm, cons. Torquato Castro, Teoria da Situagio Juridica em Direito Privado Nacional, So Paulo, Saraiva, 1985, pigs. 54 a 66. 426 Homenagem ao Prof. Anténio de Arruda Ferrer Correia JSungiio social, necessario, que é, para possibilitar a sistematizagio de suas virtualidades. Importa, para mais, encontrar o seu significado, como se propés Root’, através da anilise separada e sucessiva dos termos da expresso — fungdo e social. Vamos segui-lo. Acomegar pelo vocdbulo fungao. Esclarece o citado professor que o termo fungdo contrap6e-se a estrutura e que serve para definir a maneira concreta de operar de um instituto ou de um direito de caracteristicas morfolégicas particulares e notérias. A partir do momento em que o ordenamento juridico reconheceu que o exercicio dos poderes do proprietério nio deveria ser protegido to somente para satisfagio do seu interesse, a fungdo da propriedade tornou-se social. O novo esquema manifestou-se pela consisténcia da fungdo, sob triplice aspecto: 1.°—a privagio de determinadas faculdades; 2.°—a criagio de um complexo de condigées para que o proprietério possa exercer seus poderes; 3.°—a obrigacio de exercer certos direitos elementares do dominio. A fincionalizajao da propriedade se resolveria na distingao entre espécies particulares de bens, classificados mediante critério economico, e pela modificac&o das normas que disciplinam a actividade do proprietério. Quanto aos bens, é relevante a classificagao entre bens de produgiio, bens de uso ¢ bens de consumo, por isso que «36 os bens produtivos sdo idéneos A satisfacao de interesses econémicos ¢ coletivos que constituem o pressuposto de fato da Sungio social. S6 apedeutas estendem aos bens de uso 0 principio da Sungéo social, falando em fungio social da propriedade edilicia ou, até mesmo, na dos bens durdveis. Quanto 4 mudanga do regime legal, as novas disposigées normativas voltam-se para um momento da actividade do proprietério, que € o da empresa, ou, segundo outros autores, «a propriedade chamada a absorver a fang4o social no € a propriedade direito-subjetivo, mas a 4 Proprieta, verb. in Novissimo Digesto Italiano, vol. XIV. A fansao social da propriedade 427 propriedade institutonjurldicon, indicativa de que «a funcionalizagio nao toca o contetido do direito, ficando de fora, muito ao contrario». Jé 0 adjetivo que qualifica a fungao tem significado mais ambiguo. Desaprovando a férmula negativa de que social é equivalente a ndo-individualistico, aplaude o emprego, para defini- lo, como critério de avaliagio de situagdes juridicas ligadas a0 desenvolvimento de determinadas actividades econédmicas», para maior integragio do individuo na colectividade. Em substancia: como um «pardmetro eldsticon por meio do qual se transfere para 0 Ambito legislativo ou para a consciéncia do juiz certas exigéncias do momento histérico, nascidas como antitese no movimento dialectico da aventura da humanidade. Apesar da imprecisio da expressio fungao social e, sobretudo, da dificuldade de converté-la num conceito jurldico, tornou-se corrente o seu uso na lei, preferencialmente nas Constituigées, sem univocidade mas com expressiva carga psicolégica, recebida, sem precaugdes, pelos juristas em geral. 3, Fonte da concepgio Essa receptividade conduz o jurista de hoje aos planaltos onde se movimentam as idéias, movido por dois propésitos: 1 — identificar a fonte da qual jorrou a ideaco; 2—indicar as determinantes ideoldgicas da concepsio. Pela influéncia que a sua obra do comego do século exerceu nos autores latinos, Lzon Ducurr pode ser considerado o pai da idéia de que os direitos s6 se justificam pela missdo social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietério se deve comportar e ser considerado, quanto a gestdio dos seus bens, como 428 Homenagem ao Prof. Anténio de Arruda Ferrer Correia um finciondrio 5: Tornou-se cléssico 0. seu texto explicativo da fungéo social da propriedade. Vale a pena transcrevé-lo: «A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do individuo ¢ tende a se tornar a fungao social do detentor da riqueza mobilidria ¢ imobilidria; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigacio de empregé-la para o crescimento da riqueza social e para a interde- pendéncia social. $6 0 proprietdrio pode executar uma certa tarefa social. $6 ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua prépria; a propriedade nfo é, de modo algum, um direito intangtvel e sagrado, mas um direito em continua mudanga que se deve modelar sobre as necessidades sociais As quais deve responder» 6 — (minha tradugiio). Ressaltando' os discipulos a visio profética do mestre, iveram, no entanto, o desencanto de ver a doutrina da funcionalizagao da propriedade incorporada ao idedrio politico de Estados totalitarios, 4 frente dos quais se colocou a Itélia fascista. A margem da consolidagio da idéia nesses regimes politicos, teve o respaldo da doutrina da Igreja no pensamento de Jacques Maritain, na doutrina personalista de Emmanuel Mounier.e em enciclicas que precederam & Mater et Magistra. Qualquer que tenha sido, no campo dessas influéncias, o impulso para a cristalizag3o juridica da ideia de fungao social, sua sobrevicéncia ¢ difusio nos regimes pluralistas do apés-guerra explicam a sua forga ¢ a sua «finalidade racional, Essa energia moral da concepgio de que a propriedade é uma funcdo social nao tem, entretanto, inspirago socialista, como se supée, por desinformacio, particularmente os socialistoides levianos ou.contrabandistas de idéias. 5 Jacques de Lanversin, La Proprieté, une nouvelle régle du jeu?, Paris, Presses Universitaires, 1975, p4g. 44. 6 .Traité de Droit Constitutionel, t. 3. A fungio social:da propriedade 429 Muito pelo contrério. Se nio chega.a ser uma-mentira convencional, é um conceito ancilar do regime capitalista, por isso que, para os socialistas auténticos, a férmula fungao social, sobre ser uma concepgio sociolégica e nio um conceito técnico-juridico, revela profunda hipocrisia pois «mais nio serve do que para embelezar ¢ esconder a substincia da propriedade capitalistica. E que legitima o lucro, ao configurara actividade do produtor de riqueza, do empresdrio, do capitalista, como exercicio de uma profissio no interesse geral. Seu contetdo essencial permanece intangivel, assim como seus componentes estruturais. A pro- pricdade continua privada, isto ¢, exclusiva ¢ transmissivel livremente. Do facto de poder ser desapropriada com maior facilidade e de poder ser nacionalizada com maior desenvoltura nfo resulta que a sua substancia se estaria deteriorando. 4, Determinantes ideolégicas A mudanga de significado é que adelgaca as colunas do direito de propriedade no préprio sistema que 0 abriga, acoberta defende. Outra no ¢ a raz¥o por que funciona mal ou simplesmente no funciona a aplicag3o do principio nos paises neo- liberais. Somente no quadro ideolégico dos regimes fascistas possfvel construir a figura do proprietério funcionalizado como a de um concessiondrio de servigo piblico, — sentenciou Ropor, recordando a experiéncia do seu pats. No seu livro de pesquisa sobre as origens do totalitarismo, PEKorr transcreve a opiniiio de um dos responsdveis pela propaganda nazista, segundo a qual o direito de propriedade somente se justifica quando o proprietirio respeita e cumpre suas obrigacées relativamente 3 colectividade. Explicando-a Henri Lerace, esclarece que, para o nacional- socialismo alemio, o que contava nao era o aspecto legal do poder 430 Homenagem ao Prof. Anténio de Arruda Ferrer Correia do proprietirio de usar, gozar e dispor dos seus bens, pouco importando que os particulares continuassem titulares do direito de propriedade, contanto que o Estado controlasse seu: use efectivo 7. Nos regimes anti-totalitdrios, o proprietério nao é funciondrio, nem concessiondrio. Todavia, o controle estatal da propriedade no conduz nenhum pafs ao socialismo, mas, sim, ao corporativismo. Nem por isso, a limitag¥o moderada do exercicio do direito pela cléusula geral da chamada fungao social se reduz a uma simples sindicagio programética». Se bem que se trate de uma formula que adquiriu dignidade constitucional, a garantia que as. Constituigées oferecem ao direito de propriedade contrabalangam a sua erosio. Desse equilibrio, nascem problemas para a definigio da formula fora do corporativismo ou do neo-corporativismo. Dentre esses problemas, dois deles despertam, no meu entender, maior interesse: 1.°—a propriedade é uma fungZo social ou tem funcio’ social? 2.°—a fungGo social confunde-se com as limitacdes ¢ vinculos legalmente impostos ao direito de’ proprie~ dade ou é o substracto de um principio geral a ser observado na interpretag3o e na aplicag3o das normas constitutivas do respectivo instituto? 5. A propriedade é uma fungio social? Ao que me consta, o primeiro problema foi levantado por PeruiNciert na sua obra Introdugio 4 Problemitica da Pro- priedade, publicada em 1971 pela Escola de aperfeigoamento em 7 Pourquoi la propriété, cit., pdg. 23. A fungio social da propriedade BL direito civil. da Universidade de Camerino. Registrando a evidente diferenga estrutural ¢ politica existente entre a pro- priedade que tem fungSo social e propriedade que é funcio social, esclarece que, na primeira colocagio, a propriedade permanece como uma situag%o subjetiva no interesse do titular, e que s6 ocasionalmente este é investido na fungio social, enquanto na outra perspectiva a propriedade é atribuida ao proprietdrio, nio no interesse preponderante deste, mas no interesse piblico ou colectivo. Pondera, em seguida, que nao é nitida a linha de demarcagio entre a propriedade como direito subjetivo, isto é, como propriedade que tem fungio sociale a propriedade como potestas que é fungio social, mas que, no direito actual os titulares de situacdes jurfdicas subjectivas sio,a0 mesmo tempo, titulares de situagdes. activas e de situagées passivas. A propriedade seria uma situag3o jurfdica subjectiva coma naturezadeum poder (potesté) que encerra deveres, obrigaces ¢ énus ®. Nesse sentido, a propriedade seria hoje uma fungo social quando exercida para certos fins. 6. Fungio social e limitagées O segundo problema consiste em saber «se a fungao social da propriedade se identifica com as limitagées, os vinculos e os énus ou se guarda, ao contrério, uma autonomia que prescinde da existéncia das mencionadas restrigdes, das quais constitui a justificagaon. A resposta segundo a qual a funcio social da propriedade se identifica com 0 conjunto de limitagdes impostas pelo ordena- mento jurfdico confunde a ratio das leis restritivas com 0 seu texto. E verdade que se essas leis fossem a expresso resumida da fungao 8 Op.cit., pig. 75. 432 Homenagem ao Prof. Anténio de Arruda Ferrer Correia social da propriedade, a sua garantia constitucional teria:maior seguranca e certeza, muito embora a exequibilidade do controle exclusivamente legislativo esteja condicionada a uma espécie de delegagio que o transfere para o Executivo,a pretexto de que a lei nao deve descer ao nfvel de. regulamento. Dessa estiatégia resulta inseguranga ¢ incerteza. Nao € contudo sob esses aspectos que 0 problema deve ser abordado para a conceituago da fungio social da propriedade. Sua solug%o exige a determinag4o do alvo do conceito. A diferenga esté em que as limitagdes atingem o exercicio do direito de propriedade, nao a sua substincia, eem que 86 se justificam, se uma nova concep¢io do direito de propriedade éaceita. A resposta segundo a qual a fung&o social da propriedade é antes uma concep¢do com eficdcia aut6noma eincidéncia directa no proprio direito consente elevé-la a dignidade de um princfpio que deve ser observado pelo intérprete, tal como sucede em outros campos do dircito civil, como o principio da boa fé-nos contratos. E verdade que, assim considerada, se torna uma nogio vaga, que todavia nfo é inttil na medida em que inspira a inter- pretagio da actividade do proprietério. Nessa optica, a acco do juiz substitui a do legislador, do Congresso ou da Administragio Pablica. O comportamento profissional do magistrado passa a ser, no particular, «uma acco de invengo e de adaptago»,como se exprime Lanversin definindo a acgo pretoriana como um meio de realizar a modernizagio do direito °, E verdade que, nessa colocagio se corre o risco de uin uso alternativo do direito ou de uma resist€ncia empedernida. Como quer que seja, o preceito constitucional que atribui fung%o social 4 propriedade nao tem valor normativo, porque. nao se consubstancia nas normas restritivas do moderno direito de propriedade, mas simplesmente se constitui no seu fundamento, na sua justificacHo, na sua ratio. 2 Op.cit., pag. 67. A fungio social da propriedade 433 7. Sentido da expressio Estabelecidas essas premissas, pode-se concluir pela neces- sidade de abandonar a concepg4o romana da propriedade para compatibilizé-la com as finalidades sociais da sociedade contem~ poranea, adoptando-se, como preconiza ANDRE Prerrre!®, uma concepsao finalista, a cuja’ luz se definam as funydes sociais desse direito. No mundo modero, o direito individual sobre as coisas impde deveres em proveito da sociedade ¢ até mesmo no interesse dos néo-proprietdrios ‘1. Quando tem por objecto bens de produgao, sua finalidade social determina a modificagao conceitual do préprio direito, que nao se confunde com a politica das limitagdes especificas ao seu uso. A despeito, porém, de ser um conceito geral, sua utilizagao varia conforme a vocagao social do bem no qual recai © direito —conforme a intensidade do interesse geral que o delimita, e conforme a sua natureza na principal rerum divisio tradicional. A propriedade deve ser entendidacomo fungao social, tanto em relac3o aos bens iméveis como em relagio aos bens médveis. A concepsao finalista apanha a propriedade rural, em primeiro lugar, porque a terra era até poucos tempos atrés o bem de produgao por exceléncia, ¢ a empresa, que é 0 seu objectona propriedade produtiva da sociedade industrial, bem como, embora sem a mesma eficdcia, os valores mobilidrios. Nao se trata de uma posigao aprioristica, mas sim de uma posi¢io de rigor Iégico com «o conceito de fungao social que polariza a propriedade para a realizagao de finalidades ow objectivos sociaisy. N3o me parece, com efeito, como entende BarcELona ', que a funcAo social da propriedade se resolva em 40 Apud Lanvensin, Op. cit., pag: 133. 11 Op.cit., pag. 133. 12 Gli istituti fondamentali del Diritto Privato, Napoles, Jovene, 1970, pag. 148. : 28 434 Homenagem ao Prof. Anténio de Arruda Ferrer Correia uma atribuigio de competéncia ao legislador para intervir na telagio entre 0 sujeito e 0 objeto do direito real e na qualificagao das causas que justificam a intervengio. Essa politica interven- cionista compreende técnicas que encontram apoio na necessidade de defender os chamados interesses difusos, como é 0 caso da proteccio do ambiente, ou de restringir certas faculdades do dominio até ao ponto de desagregé-lo, como jé aconteceu em algumas legislagdes com o direito de construir. Essas técnicas também so aspectos da modernizagéo do direito de propriedade, mas aspectos distintos de sua concepgio finalfstica. Limitagdes, vinculos, énus comprimem a propriedade, porque outros interesses mais altos se alevantam, jamais porque o propriet4rio tenha deveres em situagao passiva caracteristica, 8. . Conclusio Concluida esta andlise teérica, o estudo estaria incompleto se nio se fizesse um flash da recepgio do conceito de fungio social no direito positivo. Nas Constituigdes das democracias ocidentais, o melhor texto, a meu aviso, ¢ o artigo 14, alinea 2, da Constituigio da Repiblica Federal da Alemanha, de 1949, que transcrevo: «A propriedade obriga». O uso da propriedade deve con- correr também para o bem da coletividades *, Entre nés, a insergio de um dispostivo na Constituigao, declaratério de que a propriedade tem uma funcio social ¢ nao pode ser exercida contra o interesse colectivo, se deu, decla~ radamente, na tltima. E verdade que a Constituigio de 1946 prescreveu que o uso da propriedade deveria ser condicionado ao 13. Traduzido da edigio em francés, A fungao social da’ propriedade 435 bem estar, social — art. 147 —e que’ jé em 1933 Joio Manca- HRA, relator geral do ante-projecto governamental da Consti- tuigio de 1934, defendera o novo conceito em paginas brilhantes ‘4, A Constituicgio teoricamente em vigor, de 1967 revisada em 1969, inclui a funyao social da propriedade no titulo dedicado a-ordem economica e social como um dos seus princlpios fundamentais — art. 160, II, ¢ no parégrafo 22 do art. 153 assegura 0 direito de ptopriedade como um dos direitos individuais invioldveis (textual). Até por uma raz%o topogréfica, como se vé, 0 efeito compressor do princfpio da fungio social s6 se faz sentir quando a propriedade consiste numa atividade econémica, tanto assim que, no mesmo titulo que tem sede o artigo — art: 163 — que autoriza a intervencio do Estado no dominio economico. Foi, porém, no Estatuto da Terra que a fungao social da propriedade ingressou em nosso direito positivo, através de um preceito no qual declara 0 modo como a desempenha inte~ gralmente. A propriedade da terra cumpre a sua funcao social quando a) favorece, ao mesmo’ tempo, o bem estar dos proprie~ tdrios e dos trabalhadores e suas familias; 4) mantem niveis satisfatérios de produtividade; c) assegura a conservagao dos recursos naturais; d) observa as disposigdes legais que regulam as justas telagdes de trabalho entre os que a possuem ea cultivam —art. 2.% pardgrafo 1.°—do Estatuto da Terra, lei n.° 4504, de 30-11-64. Nao define propriamente: a locugao ' fungéo social, nem estabelece limitagdes ao direito do proprietério, que o comprimam. . 14” Em torno da Constituigao, Sao Paulo, Cia. Editora Nacional, 1934, pags. 216 a 224. 436 Homenagem ao Prof. Anténio de Arruda Ferrer Correia Traga o comportamento regular do proprietério,:exigindo que exerga.o seu direito numa dimensio na qual realize interesses sociais sem a eliminagdo do dom{nio privado do bem, que lhe assegura as faculdades de uso, gozo e- disposigio, Esse: com- portamento nao implica o cumprimento de obrigagées. positivas, nem determina limitagdes a0 direito sob forma negativa, devendo. té-lo também os possuidores que no sejam proprietirios. S40 exigéncias que traduzem .a mudanga qualitativa no -tratamenta legislativo. da propriedade agréria, que «operam como critério formal de legitimagio de certas intervengdes do legislador ou que servem, na observagio -licio de RoporA‘s, como. critério, necessdrio de interpretacio do material legislativo». E, em sintese, um pardmetro do exercicio do direito de propriedade. Em data mais recente, a Lei das Sociedades Andnimas—lein.° 6.404, de. 15-12-76 — alude duas vezes 4 fungdo social: no art. 116 ptescreve que accionista controlador deve. usar seu poder de controle com o fim, dentre outros, de fazer a sociedade cumptir.a sua fungao social e, no art. 154, preceitua que o administrador deve exercer as suas atribuicdes, satisfeita a exigéncia da fungio social da empresa, sem definir o que seja. Em nenhuma dessas hipéteses est4 em causa propriamente a fungao social da propriedade..A lei cogita do comportamento do empresdrio, nao, do proprietério, embora os equipare, filiando-se, ao que parece, a tese de que a empresa é um modo de exercicio da propriedade.. Como quer. que seja, 0 comportamento exigido. do controlador edo administrador na condugio da empresa nfo tem na. lei {indices que facilitem a conceituago da fungao social da companhia ou da empresa. Continua, pois, a ser um conceito indeterminado, mas como contraste da propriedade. privada .contempordnea dos. bens de produgio. 415_F. Garcano e S, Ropvora; Rapporti: Economici,-t,. Ul, Bolonha, Zanichelli, 1982, pég. 117. A fungio social da propriedade 437 Arrematando: Nesses tracos confusos de um instituto em crise, que revelam a inadequago das suas formas tradicionais, todavia no deve o jurista desesperar; mas lhe cumpre «divisar uma evolugao légica ¢ transparente» e, como falou Lucxacs, procurar compreender e aliviar as dores do parto de um mundo novo que estd para nascer. Ortanop Gomes UNIVERSIDADE DE COIMBRA BOLETIM DA FACULDADE DE DIREITO NUMERO ESPECIAL ESTUDOS EM HOMENAGEM Ao PROF. DOUTOR FERRER-CORREIA COIMBRA 1989

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