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Raízes da

Prisão Eterna
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Prólogo

O Sol, avançando para o auge de seu poder, castigava Mürta Rossa com seu
calor abrasador. O ar era quente, carregado de umidade e quase sufocante; fazia arder
o nariz só de ser inspirado com mais força. Como o usual, a fina camada de vapor
pairava preguiçosamente nas vielas sinuosas e ruas da cidade, envolvendo os
transeuntes e acalorando ainda mais o ambiente.
O verão havia enfim chegado, transformando aquele local antes temido e
perigoso em um oceano de turistas — embora, na maioria das vezes, fossem viajantes
em busca de pechinchas imperdíveis. As ruas estavam repletas de lojas, suas tendas
coloridas e carruagens decoradas transbordavam com uma infinidade de mercadorias
tentadoras.
— Antílopes de barriga-serena! — berrou um mercador com entusiasmo. —
Escamas de Serpiscor! Para aqueles que desejam provar o incrível sabor de Mürta
Rossa!
As palavras se perdiam no tumulto das multidões.
— Runas de minsú! — bradou mais alguém. — Runas de baixo a médio
Vínculo!
Distraído, Kraals alcançou o telhado de uma das muitas construções que se
alinhavam ao longo da estreita rua principal. Apoiando-se na balaustrada de pedra,
ele alçou seu corpo e, com olhos investigativos, estudou a cena abaixo. A visão revelou
a rua principal lotada, que se estendia infinitamente à sua esquerda e à sua direita.
Inúmeros transeuntes se moviam agitadamente, como formigas em um formigueiro,
indo e vindo em um frenesi constante.
Kraals sorriu.
Formigas com dinheiro, pensou.

Gabryel Valvano
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De repente, um outro rapaz subiu, também chegando ao terraço da


construção. Era um pré-adolescente de cabelos loiros e vestimentas pobres, comidas
por traças. Ele ergueu-se usando o balaústre e ficou ao lado do outro.
— Olhe, Kraals, parecem ratos amontoados! — falou alto.
— Ratos com dinheiro, Rioran!
— Ééé!
Kraals rapidamente procurou algo em sua cintura. Suspendeu a camisa
desgastada e retirou um estilingue que estava preso no cós da calça. Olhou de modo
brincalhão para o amigo.
— É melhor prevenir do que remediar, não é? — comentou, retirando uma
pedra do bolso e posicionando-a na alça do estilingue.
Rioran não perdeu tempo e também pegou sua arma: um longo pedaço de
pano amarrado em uma pedra. Certamente não causaria um dano relevante, mas
seria menos pior do que usar os seus braços magros.
Kraals se afastou da balaustrada que ficava de frente para a rua e se dirigiu para
a do lado, que dava visão para o beco. Lá embaixo, visualizou outras três crianças
maltrapilhas. Duas estavam recostadas na parede, tendo como foco uma garota de
cabelos curtos e pretos que fitava a saída do beco.
— Wun, tem certeza que consegue? — indagou Kraals de cima do telhado,
olhando para a jovem.
— Aham… — A garota olhou para cima, mostrando um sorriso de canto de
boca. — Deixa comigo!

Wun voltou a olhar para a rua e franziu o cenho. Dos diversos "ratos" que
passavam para lá e para cá, buscou destacar apenas os sacos de discos que alguns
tinham atado à cintura. Era difícil, mas não impossível. Achava que seria deveras

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complicado encontrar alguém com dinheiro à mostra, mas, diferente do que


imaginava, muitos haviam se descuidado. Devido ao evento, a quantidade de
Sentinelas na rua principal era consideravelmente maior, o que pode ter despertado
certa segurança nos comerciantes e compradores. Na verdade, certa ingenuidade.
Vamos, Wun, do jeitinho que tu aprendeu…
Destacou uma a uma, decidindo a que seria mais fácil de atrair.
— Você, não… Não! — Wun pensava alto enquanto escolhia. — Ah! Muita
gente na frente…
— Pessoal — Ceshei chamou, olhando na direção do telhado, de onde Kraals e
Rioran olhavam ansiosos —, Wun está com medo!
— Não tem problema, Wunny. — Frigolin tentou abrandá-la. — Podemos
pegar os discos do jeito antigo.
— Ela deveria ao menos ter treinado antes… — Ceshei murmurou, meneando
a cabeça.
— Fiquem… — Wun olhou para trás, erguendo uma das mãos. — em silêncio,
tá legal? — Voltou a encarar a rua. — Especialmente você, Ceshei.
Com uma inspiração profunda, tentou se concentrar, evocando na mente os
trechos do livro que estudara com tanto afinco. Recitou, para si mesma, frase após
frase, como se fosse um mantra.
“Busque a Essência em seu interior… Quando vinculada, Ela sempre estará lá,
ociosa.”
Fechar os olhos foi o primeiro passo para iniciar sua busca pela tal "Essência".
De repente, uma sensação estranha de formigamento começou a se intensificar em
seu âmago, surpreendendo a garota.
“Depois de encontrá-la, converse com Ela… Forneça um contexto…”
Wun engoliu em seco. Dezenas de gotas de suor escorriam da testa, e ela
sentia-se incapaz de discernir se era resultado do calor ou de sua crescente apreensão.
“Pense em um dos sete Verbos…”, continuou. “Seus símbolos…”
Imaginou um simples círculo, que flutuou solitário em meio ao escuro
perpétuo de sua mente. Se sua memória não falhava, o círculo era o símbolo de
Manipulação. Erguendo uma das mãos e tremendo em receio, finalmente abriu os
olhos, direcionando seu olhar para uma bolsa de discos pendurada na cintura de um
cliente apressado.

Gabryel Valvano
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Rápido, apressou a si mesma.


— Agora… — começou a murmurar, rangendo os dentes, concentrando-se o
máximo que podia.
De repente, da ponta dos seus dedos, diversos fios bizarros se projetaram como
chicotes, balançando e se debatendo contra as paredes da viela. Tinham uma
coloração inconstante e vagamente leitosa, e luziam em branco a cada batida. A jovem
recordou ter lido algo desse tipo, mas se assustou mesmo assim. Contudo, manteve o
foco, e em poucos segundos, os fios desapareceram. Notou mais um Verbo se
manifestar em sua mente, e Wun finalmente sentiu que podia declarar:
— Libere! — Fez um gesto no ar, como se puxasse algo invisível.
Então, veloz como uma flecha, o saco de discos voou na direção da garota,
acertando-a em cheio. Wun caiu para trás, seu nariz latejando e ardendo com o
impacto das rígidas moedas. Porém, não demonstrou preocupação ou dor alguma.
Orgulhosa, levantou-se e se voltou para os amigos.
— Fig! C-Ceshei! E-e-eu consegui!
Uma explosão de risos e alegria ecoou pelo grupo. No entanto, Ceshei, atenta
aos arredores, rapidamente percebeu o barulho que estavam causando e fez um gesto
para que se acalmassem.
— Temos discos fáceis! — Kraals exclamou, entusiasmado.
— Definitivamente mais fáceis do que se fosse na “moda antiga” —
complementou Rioran, fazendo aspas com as mãos. Deu um leve soco no braço de
seu colega. — Já podemos chamar assim?
— Aquele bocó nem percebeu. — Frigolin comentou, rindo às gargalhadas. —
Você foi incrível, Wun!
— Aqui, segure. — Wun entregou o saco para Frigolin, ansiosa para fazer de
novo. — Só mais dois desses e não teremos que trabalhar para o velho Dotte por pelo
menos uma semana.
— Que a Lua te ouça… — murmurou Ceshei, sorrindo em seguida.
Wun retornou até a posição de antes. Ainda sentia algo dormente dentro de si,
um formigamento estranho que não conseguia compreender. Entretanto, deixou as
preocupações para depois. Do lugar de onde aprendera esse… truque, lera algo sobre
as consequências e essas besteiras. Haveria tempo de sobra para isso mais tarde. Por
que se preocupar agora? Afinal, eram apenas...

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Mais dois…
Buscou a Essência e pediu para que Ela ajudasse-a novamente. Ergueu os
braços, procurando alguma bolsa de fácil acesso, mas nenhuma outra aparecia;
estavam sempre guardadas nos bolsos ou escondidas dentro das largas roupas dos
civis. Esperou alguns minutos, enquanto mantinha latente o verbo de Liberação da
Essência, aguardando o momento perfeito para declará-lo.
— Acho que demos sorte na primeira vez — disse Wun. — Não acho mais
nenhum bobão deixando dinheiro à mostra…
— Uma hora aparece — comentou Frigolin.
Parecia que o garoto havia previsto o futuro, pois nesse instante, surgiu uma
figura musculosa, alta e de semblante carrancudo, carregando um saco de discos em
uma de suas quatro mãos. Seria arriscado, mas...
Wun atraiu. Os Fios saltaram da sua mão e, novamente, desapareceram após
poucos segundos. O saco de discos foi catapultado em sua direção. Agora sagaz, a
jovem abaixou-se e permitiu que o objeto continuasse seu voo até cair no chão sujo
do beco, fazendo com que alguns discos se espalhassem.
Porém, diferente da primeira vez, escutou uma voz grossa vinda da rua adiante:
— Alguém… Quem roubou o meu dinheiro?! — A voz aos poucos começava a
se alterar.
Depois, dois sons de impacto: um golpe e um baque surdo. Em poucos
segundos, uma briga generalizada acometeu a rua do comércio.
Wun lançou um olhar para trás, um sorriso tímido brincando em seus lábios,
enquanto deslizava dois dedos de sua boca da esquerda para a direita, fazendo um
gesto de silêncio. Observou Ceshei, com um sorriso radiante, recolhendo os discos
um a um e guardando-os na bolsa, enquanto os meninos do grupo riam da confusão
e da gritaria que o recente alvo do roubo estava causando no meio da multidão.
A dormência aumentou, Wun pensou, voltando a encarar a rua. Mas, agora só
falta mais um.
Já estava se sentindo mais familiarizada com o processo de comunicação com a
Essência, e a segunda vez foi notavelmente mais rápida do que a primeira. Até mesmo
os estranhos fios haviam desaparecido mais rápido daquela vez.
A terceira vai ser ainda mais rápida!, afirmou para si mesma, empolgada.

Gabryel Valvano
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Então, emanando confiança, Wun preparou-se para declarar uma última vez.
O processo durou menos de três segundos. Sentiu que tinha talento, que havia
nascido com o dom. Ela observou a saída do beco, esperando que outro alvo
desavisado não demorasse a aparecer. No entanto, havia pouco espaço para
vislumbrar os civis, uma vez que a grande maioria deles estava ocupada se debatendo
e se espremendo na confusão.
De repente, uma figura desajeitada surgiu na entrada do beco: um humano
acima do peso, vestindo um uniforme de cozinheiro manchado de laranja. Ele
obstruiu a visão concentrada da menina que, assustada com a repentina aparição,
liberou acidentalmente a magia até então latente.
Ela gelou, acreditando que o homem voaria contra ela num instante.
Entretanto, Wun era apenas uma pré-adolescente e, como tal, era mais leve do que
um adulto. Desse modo, ao contrário do que imaginava que aconteceria — que o
senhor seria atraído até ela —, foi Wun quem sentiu que estava sendo arrastada até o
homem. Ela retesou a panturrilha, tentando retardar a atração bizarra e invisível que a
fazia deslizar centímetros para frente.
E, de súbito, a garota sentiu seu tronco impelir na direção do senhor. Em um
piscar de olhos, Wun foi lançada em um arco pelo ar, até colidir com o mercador. A
colisão a deixou atordoada, caída no chão imundo do beco. O homem, por outro
lado, cambaleou para trás, segurando o estômago, visivelmente assustado com o que
acontecera. Afinal, uma jovem voando repentinamente em sua direção é uma
experiência difícil de assimilar.
— Masss o quê?! — exclamou o cozinheiro. Olhou para as outras duas crianças
mais atrás.
— Estávamos brincando, feioso — mentiu Frigolin, pondo as mãos no bolso.
— Você nos atrapalhou.
Kraals e Rioran saltaram do telhado e deslizaram pelas paredes, habilmente
apoiando-se nos canos, tijolos e saliências da construção com uma agilidade invejável.
Quando estavam próximos o suficiente do chão, deram um salto preciso e
aterrissaram com firmeza. Em seguida, empunharam suas armas improvisadas.
— E oss ssacos de disscos voando eram asssombrassões? — indagou de modo
retórico o senhor. — Olhem, se vocês fizeram o que estou pensando, estão em
apuros.

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Wun se recuperou um pouco e logo se levantou. Com passos cuidadosos, se


dirigiu de costas de volta ao grupo e, a partir de sua calça surrada, extraiu um punho
de macaco feito com cordas desbotadas e nós malfeitos.
O homem bufou, impaciente.
— Crianças, guardem essas gambiarras — continuou. Havia preocupação em
sua voz. — Não sou eu o problema de vocês… Peguem seus discos e saiam logo daqui.
Atrás do homem, o burburinho continuava.
— Ainda precisamos de mais um. — Wun disse. — Sai da frente, velhote!
De repente, um Radiante, de pele vermelha, quatro braços e beirando os dois
metros e meio de altura, surgiu ao lado do cozinheiro.
— Foi você?! — rosnou com uma voz áspera, que ecoou de maneira cortante
ao longo do beco. Dois dos quatro braços se estenderam, apertando com firmeza os
ombros do mercador, enquanto os outros dois se curvaram em arco, com os punhos
cerrados e prontos para desferir um golpe.
O c'leckapureano varreu o olhar pela viela e notou as cinco crianças. Não
demorou muito para perceber Frigolin e Ceshei segurando um saco de discos cada. O
ser sorriu de um modo maquiavélico. Então, largou o homem e caminhou a passos
pesados e decididos na direção do grupo. Sua testa estava franzida, e o rosto rubro,
irado.
— Me devolvam — grunhiu, apertando os punhos com força. Sua voz pareceu
fazer todo o beco vibrar.
Os jovens deram passos quase sincronizados para trás, olhando uns para os
outros, incertos sobre o que fazer.
— Pessoal… — Ceshei sussurrou, atraindo os olhares do restante. — Vamos
dar no pé…
Todos assentiram.
— Eu dou um jeito nele. — Kraals sussurrou, confiante. Preparou seu
estilingue, puxando a alça na qual estava fixa uma rocha áspera e afiada.
Veloz, o rapaz ergueu sua arma e apontou para o ser, soltando a pedra com
uma precisão surpreendente. Ela cortou o ar e acertou em cheio a testa do Radiante.
Entretanto, ele não demonstrou sentir dor alguma. Somente passou uma das mãos
pela região atingida, removendo os pedaços da rocha, e prosseguiu.

Gabryel Valvano
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Sem perder tempo, o grupo virou e correu na tentativa de escapar para o outro
lado do beco. No entanto, os jovens foram detidos por uma figura ainda mais
imponente e amedrontadora: um Sentinela se postava diante deles, como sempre,
completamente envolvido por uma impressionante armadura.
A couraça ostentava um tom pálido, quase etéreo, como se fosse forjada de
uma liga de metais divinos. Cada peça da armadura era meticulosamente trabalhada,
repleta de entalhes dourados que contavam histórias antigas. Os padrões
serpenteavam pelas placas da armadura de maneira intrincada, formando desenhos
complexos e belos. A luz do Sol refletia suavemente nos entalhes, criando um brilho
quase angelical que contrastava com a tonalidade geral da armadura.
Wun olhou para trás, percebendo que tanto o ser que os perseguia quanto o
cozinheiro haviam desaparecido.
O Sentinela ajoelhou-se lentamente diante do grupo, e sua voz saiu abafada
pelo elmo quando indagou:
— Quem de vocês...?
As crianças trocaram olhares entre si, sem compreender completamente a
pergunta do guarda real.
— Nós não roubamos nada, senhor Sentinela — mentiu Rioran, erguendo as
mãos com medo evidente. — Estávamos apenas brincando…
No entanto, Wun sentiu que não era disso que o guarda falava. A garota de
cabelos curtos ergueu o olhar para o céu. Lembrando-se do ocorrido recente com o
cozinheiro, uma dúvida reluziu em sua mente. Seria impossível empurrar o chão para
baixo, então…
Será que...
— Se agarrem em mim — disse Wun, sua voz quase inaudível, enquanto todos
se afastavam lentamente do Sentinela.
Ceshei e Rioran a olharam com confusão, mas seguiram suas instruções.
Kraals a segurou firmemente, enquanto Frigolin parecia não ter ouvido.
— Me respondam. — O Sentinela insistiu, sua voz começando a mostrar sinais
de irritação.
Wun buscou a Essência.
— Frigolin... — chamou, tentando falar o mais baixo possível.

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Fechou os olhos por um tempo, preparando-se para liberar. Um símbolo


simples, semelhante a uma seta apontando para cima, flutuou no breu, como se
estivesse desenhado na parte interna de suas pálpebras. Então, finalmente, ela abriu os
olhos.
No mesmo instante, o Sentinela riu, alçando uma das mãos.
— Tão bonitinha…
Estranhos fios de um tom roxo-claro surgiram no ar, esculpindo o contorno de
uma espada curta. Em menos de meio segundo, os fios materializaram a espada. Sem
hesitação, o ser avançou com um golpe direto, mirando a cabeça de Wun.
Para a garota, o mundo pareceu congelar por um instante, a lâmina se
aproximando de sua face suada, a poucos centímetros de empalar sua cabeça. Porém,
Wun agiu com rapidez.
Abrindo a mão e apontando-a para o chão, ela liberou.
Wun e aqueles que seguravam-se nela foram arremessados metros acima por
aquela força invisível. Desesperada, a menina tentou pensar num plano o quanto
antes, no tempo em que alcançavam a altura máxima do impulso.
— Ah, merda! — Kraals praguejou num misto de surpresa e medo.
— Não me soltem! — bradou Wun para os colegas. — P-por favor, confiem
em mim.
Wun fixou os olhos num ponto específico em um dos telhados ao redor. Ela
permitiu que continuassem caindo um pouco mais para reduzir o impacto iminente.
Quando achou que era o momento certo, Wun atraiu a superfície do teto.
Os quatro foram então puxados em direção ao telhado, colidindo
violentamente com sua superfície áspera. Wun rolou até bater contra uma
balaustrada; um grito de dor acabou por escapar de seus lábios. Ela fechou os olhos,
rangendo os dentes devido à intensidade do impacto. Após alguns agonizantes
segundos, Wun finalmente abriu os olhos.
Viu Kraals adiante. Ele parecia ter sofrido apenas ferimentos leves, uns
arranhões aqui e alí. Rioran estava no chão, segurando o braço e chorando de dor. E
Ceshei…
Ceshei não parecia estar consciente. Estava de bruços no chão, imóvel.

Gabryel Valvano
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Wun se levantou com cuidado, mantendo uma das mãos pressionando


cautelosamente suas costas feridas. Sentia o ferimento latejar enquanto um líquido
quente escorria em meio aos seus dedos trêmulos.
Ao chegar até Ceshei, ajoelhou-se e a sacudiu.
Nenhuma resposta.
O peito de Wun pareceu se contrair. Ela olhou para os amigos, intensificando
sua expressão de desespero. Voltou a olhar para baixo e tocou com cuidado os cabelos
castanhos da outra.
— Ceshei — chamou angustiada, balançando o corpo inerte. — Ceshei,
responda!
Os outros dois rapazes, aos poucos tomando ciência da situação, se alarmaram;
seus olhares expressando uma crescente preocupação, profunda e discreta.
— Shei-shei? — Rioran se sentou, usando o braço que não estava ferido. Havia
dor em sua voz. Dor e medo.
Foi…, Wun começou a pensar, erguendo as mãos e as encarando com os olhos
sobressaltados.
— Por favor… — murmurou a menina com a voz vacilante. Hesitou, mas com
as mãos ainda trêmulas, Wun virou Ceshei.
O rosto da amiga estava pálido, os olhos vidrados olhando para o vazio, e duas
grossas tiras de sangue escorriam de seu nariz. Seu pescoço estava visivelmente
deslocado.
Um silêncio se sucedeu, quebrado apenas pelo súbito baque do defunto
quando Wun o largou. A menina rastejou para trás, levando uma das mãos à boca e
chorando.
Rioran olhou furioso para a garota.
— Por que você fez aquilo?! — gritou. — Você é LOUCA?
Kraals deu um passo à frente e empurrou de leve o ombro do outro.
— Fala baixo — murmurou ele, olhando para trás com temor. Voltou-se para
Rioran. — Fica quieto e vamos dar o fora.
— Desculpa… — Wun sussurrava repetidamente. O som, assim como as
gotículas de choro e saliva, escapavam por entre seus dedos.

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— Ela poderia ter matado TODOS NÓS! — O garoto se alterou. Sua voz
fraquejando com a perda de sua melhor amiga. — Como você não está surtando,
Kraals?
— Desculpa, desculpa, desculpa…
Wun sentiu o formigamento. Dessa vez, por todo o corpo. Parecia deixá-la
mais fraca, mais sonolenta. Sua respiração, apesar de frenética, se tornou curta e
entrecortada; os pulmões pareciam estar minúsculos.
Rioran sentou-se e levou a mão à testa, olhando para o chão, perdido em
pensamentos.
— O Sentinela sabe que estamos aqui, Rioran. — Kraals comentou. O rapaz
encarou Wun e notou seu estado. Logo, tentou tranquilizá-la: — A ideia não foi de
todo mal, Wunny. Só… deu azar.
— Ela… — começou Rioran, estupefato. — Ela deixou Frigolin para trás… —
Seu rosto se contorceu de dor. Apertou o braço machucado.
— Depois a gente discute! — Kraals tentou erguer o amigo. — Agora temos
que focar em fug…
Um forte impacto se fez ouvir na retaguarda dos garotos. Kraals saltou sobre si
mesmo e deu alguns passos para trás, virando-se para encarar o ser responsável pelo
estrondo.
— Astuta, pequena — murmurou a voz cortante do Sentinela, fazendo Wun
se levantar em desespero. Por detrás de uma translúcida nuvem de poeira, a
imponente silhueta do guarda se ergueu, olhando fixamente para a garota de cabelos
negros. A superfície do telhado estava agora levemente rachada pelas suas
inquebráveis botas de A’nzi. — Parece ser do tipo que aprende rápido… É mesmo
uma pena.
Wun olhou para os amigos, as bordas de sua visão escurecendo à medida que o
desespero a envolvia. Não conseguia pensar, não conseguia respirar, nem mesmo
enxergar.
— Nos deixe em paz! — Escutou Kraals dizer, a voz distante, ecoando
incessantemente.
Fuja…, suplicou o subconsciente da garota. É você que ele quer. So-…
Sobreviva…

Gabryel Valvano
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Procurou dentro de si aquela força. Aquela que não entendia, que não
conhecia direito. Aquela que a fez matar sua amiga e fazia todo o seu corpo formigar.
Aquela que apertava seu peito, mirrava seu pulmão e aos poucos tirava sua
consciência.
Ao menos uma última vez. Só… mais… uma…
Quando se deu conta, Wun sentiu um impacto nas costas, e seus pés já não
tocavam mais o chão. Não conseguia mover sequer um músculo, nem mesmo abrir os
olhos. Apenas escutava, da mesma maneira reverberada e distante que a voz de Kraals,
os passos metálicos da sua iminente morte, trajada com uma armadura branca e
dourada.

— Há uma lista de combinações Verbo-Essência proibidas — informou o


Sentinela com uma voz enfática, como se estivesse recitando uma lei. — E qualquer
cidadão ou forasteiro que for sentido declarando uma delas dentro dos limites de
Mürta Rossa será condenado à pena de morte. Sem exceções.
Rioran se levantou em um pulo e buscou sua arma, mas não a encontrou nos
bolsos, tampouco caída pelo chão. Olhou para o amigo, franzindo o cenho em um
misto de fúria e tristeza.
Kraals assentiu. Olhou para o chão e verificou o estado de seu estilingue,
notando que ele estava completamente partido em pequenos pedaços de madeira. No
entanto, mesmo desarmado, o jovem enrijeceu sua expressão e cerrou os punhos,
resoluto a combater o tirano. Rioran fez o mesmo.
O Sentinela prosseguiu em seu caminhar, convicto de que nenhum dos dois
ousaria sequer dar um passo adiante. Porém, de súbito, os garotos saltaram para
frente. Rioran partiu em disparada até o guarda, gritando…, chorando.

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No entanto, Kraals viu-se subitamente consumido por um medo avassalador


que o paralisou por completo, impedindo-o de dar sequer o segundo passo. Seu
corpo e mente, sob a influência desse pavor incontrolável, travaram, e ele se viu
imobilizado.
Em um movimento surpreendentemente rápido, o Sentinela contra-atacou,
lançando um golpe preciso na direção de Rioran. O impacto foi brutal, e o garoto
sentiu a lâmina do Sentinela cortar sua bochecha, abrindo um ferimento profundo
que começou a jorrar sangue. Ele cambaleou para trás, o rosto virado para o lado
devido ao golpe. Sem delongar, o tirano chutou-o diretamente no abdome. O rapaz
voou cerca de um metro para trás, caindo desacordado no chão.
Kraals não sabia o que fazer. Por que ele não conseguia simplesmente reagir? A
perspectiva fúnebre de testemunhar a morte de todos os seus amigos o assolava.
Tinha de fazer algo… Mas, minando qualquer vestígio de heroísmo em suas
intenções, a voz do velho Dotte ecoou em sua mente: “Apenas sobreviva.”
Ele quer Wun, não eu, o jovem pensou, persuadido. Sentia-se desolado por
abandonar a garota à sua própria sorte. Entretanto, diante da perspectiva de
sobreviver, isso se tornou irrelevante.
O Sentinela alcançou o corpo moribundo de Wun.
— Sei como se sente, menina. — falou, ajoelhando ao lado dela. — O
formigamento… A escuridão… — Alçou a ponta afiada da espada conjurada,
apontando-a direto para o coração de Wun. — Fique tranquila, vai acabar logo. Que
a Lua te guarde. — De repente, o Sentinela, misterioso e impenetrável sob o elmo,
voltou-se para Kraals.
O jovem franzia o cenho, imaginando qual expressão sinistra poderia estar
oculta por baixo daquela armadura impessoal. Um sorriso horripilante? Uma feição
entristecida e relutante? Ou apenas um rosto insosso de um ser acostumado a findar
vidas? No entanto, seus pensamentos foram abruptamente interrompidos pelo som
sôfrego de aço penetrando carne.
O rapaz desviou os olhos, incapaz de encarar a morte de sua amiga. Embora
sentisse que tinha razões para não tentar impedir o guarda, a culpa ainda estava lá,
fortalecendo-se conforme a lâmina irrompia o coração da garota, arrancando dela
suspiros dolorosos e choros morrediços.

Gabryel Valvano
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O som do retirar da lâmina do corpo de Wun ecoou, sucedido por um súbito


suspiro do vento. E depois disso, apenas o incessante alvoroço das atividades
comerciais na movimentada rua.
Ao abrir os olhos, Kraals notou que o Sentinela já não estava mais lá.
Sentindo-se fraco, desabou no chão, com um sentimento de gratidão por ter sido
poupado; uma gratidão amarga, cuja correção ele questionava. Ao seu redor, os
corpos de três de seus amigos estavam caídos.
Você não conseguiria impedir, Kraals…, escutou a voz de Dotte. Morreria como
eles.
Enfim, se levantou e percorreu os olhos pelo terraço, prendendo-os em cada
morto, se despedindo deles. O vapor da cidade agora preponderava o local como uma
densa névoa, quente.
Kraals, logo antes de descer do terraço, sentiu uma queimação estranha na
costa da mão. Embora não fosse uma dor cruciante, era desconfortável.
Instintivamente, ele ergueu a mão e examinou o dorso ardente em busca de algum
ferimento que a adrenalina pudesse ter mascarado até então. No entanto, o que
descobriu foi algo completamente inesperado e, acima de tudo, aterrorizante:
Um símbolo bizarro começara a se formar lentamente em sua pele,
correspondendo à sensação de queimação que ele experimentava. Era como se uma
ponta incandescente de metal estivesse marcando-a, traçando formas ondulantes que
lembravam raízes. No momento em que ele percebeu isso, a sensação de queimação
se intensificou.
Sem delongas, Kraals se virou, subindo pela balaustrada em um esforço
desesperado para chamar por ajuda. Porém, sua garganta parecia estrangulada,
incapaz de produzir som algum. Em um piscar de olhos, o vapor da região se
transformou em densa névoa; o dia se obscureceu, transformando o céu claro e
ensolarado, repleto de nuvens, em um perturbador tom de azul meia-noite mórbido.
O burburinho da multidão desapareceu, mas o silêncio não tomou conta. Como se
sincronizado com uma sinfonia de dissonâncias cacofônicas, o céu pulsava, urrando
um som ensurdecedor.
Em um gesto de desespero, Kraals se atirou de bruços no chão. Fechou os
olhos em busca de refúgio, mas a escuridão, incerta, apenas aprofundou seu medo.

Raízes da Prisão Eterna


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Tentou abafar o som dissonante, cobrindo os ouvidos, porém a cacofonia persistiu a


retumbar dentro de sua mente, tornando-se cada vez mais alta...
E mais alta.
E mais alta.

Enfim, no topo do telhado, palco para tal tragédia, restaram somente os corpos
dos amigos de Kraals. O local onde o jovem estava deitado continha apenas vestígios
de suas roupas, agora espalhadas desordenadamente pelo chão. Alguns dias depois,
quando o odor dos cadáveres de Wun e Ceshei se tornou menos suportável e as
autoridades foram acionadas para recuperar os corpos, Kraals foi oficialmente
declarado desaparecido.

Gabryel Valvano
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Capítulo Um

O calor que emanava da cozinha aquecia o ambiente por completo,


entrelaçando-se a um aroma delicioso que fluía e se infiltrava em cada fresta das
tábuas envelhecidas que compunham o humilde chalé.
Um homem permanecia diante do balcão, recolhendo duas cenouras e
depositando-as sobre uma tábua de cortes. Mais à frente, alcançou um facão e o
posicionou sobre os legumes. Com a outra mão, pressionou com cuidado até que
ambas as cenouras se partissem. Em movimentos precisos, embora apressados,
fatiou-as em pequenos cubos. Depois, agrupou todos e os despejou na grande panela
fervente, que expelia um turbilhão de vapor até o teto. O aroma da sopa já permeava
o casebre, despertando no homem uma fome que sequer imaginava que sentia; uma
fome que a ansiedade havia suprimido.
Suspirando profundamente, ele secou o rosto suado com a parte interna do
antebraço, afastando os cabelos úmidos de seus olhos. Ansioso, olhou para trás, na
direção de sua maior preocupação: deitada no sofá, sua pequena ainda estava
adormecida, enroscada em alguns lençóis. O homem lançou um olhar sucinto e aflito
pela janela. Em seguida, dirigiu-se à garota. Ao alcançá-la, baixou os espessos lençóis
que cobriam seu pescoço e pôs o dorso da mão nele com cuidado. Ainda estava
fervendo, quase tão quente quanto a panela de sopa. Então, ajoelhou-se ao sopé do
sofá, reflexivo.
— Vai ficar tudo bem, Violla… — murmurou, passando os dedos grossos pelos
cabelos loiros da filha. — Aguente firme.
Levantando-se bruscamente, ele se dirigiu à cozinha para mexer a sopa. No
entanto, parou a meio caminho assim que ouviu um som do lado de fora. Cavalos se
aproximavam, fazendo um barulho molhado ao baterem os cascos contra a terra
úmida pelo relento.
O homem rapidamente inseriu uma pequena chave hexagonal em uma
abertura no fogão de latão e ferro fundido, girando-a para apagar as chamas. Sem

Raízes da Prisão Eterna


18

hesitar, foi até a entrada do casebre e abriu a porta. O frio noturno atingiu-o como
um sopro gélido; uma rajada cortante que penetrava as vestes e envolvia cada
centímetro de sua pele. Antes que o frio pudesse invadir completamente o aconchego
do chalé, ele fechou a porta com um estrondo abafado.
Como era de se esperar, Frigolin e Aldric haviam retornado.
— Frigolin! — Rioran chamou, acenando com um sorriso de alívio no rosto.
O homem sobre o cavalo tinha uma estatura mediana. Estava enrolado em
roupas folgadas e descontraídas, que refletiam a simplicidade de sua aparência geral.
Seu cabelo castanho fluía em uma cascata sobre ombros largos, complementando
uma barba rala de mesma tonalidade.
Frigolin virou o rosto na direção do chamado e, ao avistar o amigo, desmontou
do cavalo rapidamente, dirigindo-se até ele com passos decididos. Em uma das mãos,
carregava um pequeno saco de pano. Conforme se aproximava, uma extensa cicatriz
vertical tornava-se visível, começando no queixo e subindo até o inferior dos lábios.
Apesar do cansaço evidente em seus olhos, sua expressão era serena e alegre.
— Como a sapeca está? — indagou.
— Nada bem… — respondeu um pai preocupado, andando até a janela e
olhando para onde a filha dormia. — Conseguiu os oyros?
— Aqui estão! — exclamou Frigolin, entregando a sacola ao amigo. Do bolso,
retirou um cachimbo de prata envelhecido e o acendeu. — Confesso que foi mais
difícil encontrá-las do que eu imaginava. Estão ficando escassas, Rioran... Mas você
me conhece: o que eu não encontro, não existe. — Frigolin deu uma risada, sugando
a fumaça e soprando-a tranquilamente no ar frio das montanhas.
Junto do fumo, um cheiro leve de álcool invadiu as narinas de Rioran.
Entretanto, não se importou. Agradecido, cerrou os lábios e deu um tapinha fraco
nas costas do amigo.
— Muito obrigado — falou. — Me pergunto quando irei retribuir todo o seu
apoio.
O outro riu sem jeito, fixando os olhos na parede de pinheiros ao redor.
— Já retribui — disse após alguns segundos. — Pode acreditar… Ah! Aliás,
tome isso aqui. — Retirou um odre preso à sua cintura e o entregou para Rioran,
que bebericou sem ao menos ponderar o que havia nele.

Gabryel Valvano
19

Era água. A ausência de sabor fez com que ele hesitasse por um segundo, mas
logo se recordou de que também sentia sede, além do cansaço e do frio.
— Você… parece mal — comentou o outro, com olhos abatidos.
Geralmente Rioran tinha uma aparência saudável. Seus ombros eram largos,
sustentando braços bem torneados. Os cabelos, loiros e sedosos, costumavam ser
amarrados para trás, revelando um belo rosto quadrado com uma barba rala. Mesmo
considerando suas cicatrizes, a mais marcante sendo a que cortava sua bochecha por
inteiro, sua aparência robusta geralmente transmitia vigor e vitalidade. Contudo, nos
últimos dias, algo estava diferente.
Rioran respirou fundo e se amparou no guarda-corpo da varanda. Com
cuidado, abriu a sacola e segurou uma erva de oyros. Era amarelada, com manchas
brancas, e possuía um formato ondulado, uma visão confortável aos olhos. Ele
deslizou os dedos pelas suas ondulações, imerso em pensamentos.
— Acha que isso vai dar jeito? — indagou Rioran, mudando de assunto.
Ergueu a erva na direção da Lua, enxergando através dela a forte luz pálida que
emanava de Yirieda.
— Mas é claro que vai! Não há febre que resista a uma boa sopa temperada
com esse troço. Amanhã ela estará de pé, pulando pelo acampamento e atazanando a
gente de novo.
— A febre já é o que menos me preocupa, Fig… — Rioran tomou o charuto da
mão do parceiro, que aceitou serenamente. — Eu temo que… Violla esteja com o
parasita — admitiu, coçando a barba loira. — E se ela estiver, quem garante que
outro de nós também não esteja?
— Está brincando? Esses monstrinhos não resistem ao frio. Não há como eles
sobreviverem aqui nessa época… Além disso — olhou para a Lua —, não há porque
Yirieda puni-lo.
Rioran meneou a cabeça e riu baixo.
— Discordo da última parte — comentou, puxando e soltando fumaça.
— Ah, pare com isso! Falo sério.
— Há muitos motivos para Ela me punir... Na verdade, nos punir. Inclusive, se
olhar nossa situação, creio que já esteja fazendo isso. Mal se resolve um problema e
mais três surgem... — suspirou, reflexivo. — Já ouviu falar dos dotipes e suas caudas?
Corte-a e veja nascer duas no lugar.

Raízes da Prisão Eterna


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O outro revirou os olhos e apoiou-se no parapeito de madeira rústica.


— Sei que o vinho pode ter te deixado meio mole, Frigolin, mas não
esquecido.
— Eu não estou mole, só… — Frigolin bufou. Estendeu o braço e abriu uma
mão, aguardando que o outro devolvesse o cachimbo. — Só estou tentando ser um
pouco otimista.
Rioran entregou o objeto para Frigolin. Notou que ele começara a refletir;
fitava a rala grama do solo do acampamento quase sem piscar. Logo, decidiu que seria
melhor mudar de assunto.
— Rook chegou com vocês?
Frigolin sondou o acampamento de um lado a outro, buscando-o.
— Aparentemente, não — disse, finalmente, balançando a cabeça enquanto se
erguia do parapeito. — É provável que ele demore um pouco com a carne, então…
Bom, acho que teremos que tomar sopa no jantar. — Frigolin riu.
— Não está preocupado? Ele está demorando mais do que deveria… Costuma
haver algum predador onde ele foi?
— Não sei dizer… Mas você está se preocupando demais, não acha? Violla,
Rook, a gangue toda… Não é querendo desanimá-lo, mas não dá para se preocupar
com tudo e todos e ficar bem. Foque no que é mais importante agora. Foque na sua
filha.
Rioran olhou um pouco para baixo, pensativo.
— Veja — continuou Frigolin —, ao menos tente ficar um pouco mais otimista,
tudo bem? Posso te dar um pouco do meu vinho se você achar que ele pode te ajudar.
Sem problemas… Mas você me deve cinco discos por cada litro.
— Isso é um roubo! — exclamou Rioran, parecendo um pouco mais alegre. —
Dois.
— Quatro, e nada menos.
— Três.
— Uff! Certo. — Frigolin cedeu, sorridente. — Enfim, estarei ajudando a
preparar a janta com o que temos. Deixe a sopa para a pequena. — O homem acenou
com a cabeça para Rioran e seguiu ao centro do acampamento.

Gabryel Valvano
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Sozinho, Rioran observou seu colega se afastando, permitindo-se mais uma vez
mergulhar em seus pensamentos. Seus olhos se voltaram para o céu, para as estrelas
cintilantes. Sentiu as minúsculas gotas do relento frio tocarem seu rosto. Respirou
profundamente, tentando acalmar seus sentimentos. Por que estou assim, tão
preocupado?
Recordou-se das palavras enigmáticas de sua mãe, suas metáforas que, a cada
dia difícil, ganhavam mais significado. Fechou os olhos e evocou a imagem do "barco"
e do "rio". Depositou suas preocupações e pressentimentos sombrios no "barco",
confiando no "rio" para levá-los embora, fluindo serenamente a cada longa respiração.
Após alguns momentos, uma sensação de tranquilidade começou a se
instaurar. Observou os casebres e os pinheiros do lado de fora por um instante antes
de se virar e retornar ao aconchego do chalé. Ao adentrar, foi recebido pelo delicioso
aroma da sopa de legumes, o que pareceu intensificar sua sensação de calma.
Rapidamente despejou as ervas de oyros na panela, alimentando uma confiança
serena em sua mente: Violla ficará bem.

Uma escuridão densa abraçava o acampamento, detendo-se ao redor da


luminosidade tremeluzente da fogueira central e das lamparinas suspensas nos topos
dos mourões que delineavam cada chalé. Dentro das habitações, pontos de luz
delicados cintilavam, embelezando as janelas e as paredes com tons translúcidos de
laranja.
O aroma hospitaleiro da lenha queimando preenchia o ar com uma carícia
calorosa, enquanto os suaves estalos do fogo compunham uma sinfonia serena. O céu
estava salpicado de estrelas bruxuleantes, emolduradas pelo breu profundo. Ao oeste,
as auroras gêmeas se desdobravam, pintando o horizonte com tonalidades de verde e
roxo, rompendo a escuridão com sua beleza infinita.

Raízes da Prisão Eterna


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Pelo ambiente, ainda esvoaçava um delicioso odor de carne assada.


Rook ainda não havia retornado, então Rhis, um dos membros da gangue,
prontamente saiu para caçar alguns coelhos na região. A empreitada, desafiadora dada
a hora tardia, foi surpreendentemente bem-sucedida. Graças a ele, o grupo desfrutou
de uma refeição mais substancial do que folhas torradas.
Rioran, com olhos atentos e inquisitivos, estava posicionado próximo ao fogo,
observando as labaredas dançarem com intensidade controlada. O sereno ficou mais
forte, alcançando seus cabelos desprotegidos e despertando um temor sutil de que
poderia acordar gripado no dia seguinte. Então, rapidamente ergueu o capuz.
Ao redor, o gramado e as folhas dos pinheiros foram rapidamente cobertos
com diminutas pérolas d’água, como se cada tom de verde estivesse adornado com
incontáveis diamantes, refletindo tanto o alaranjado das chamas quanto a palidez
suave da Lua.
Em torno da fogueira, sombras dançavam e se contorciam, criando ilusões e
formas fugazes. Os murmúrios dos companheiros de acampamento, envoltos em
mantos de lã e vestes de viagem, mesclavam-se com o crepitar das chamas, formando
uma união de sons suaves e reconfortantes. Entretanto, para Rioran, esse conforto
trazia consigo uma angustiante sensação de silêncio, mesmo com os membros da
gangue dialogando entre si. A ausência de Violla era sentida.
— Ela… — começou Kaashirin, mordiscando um pedaço de madeira rústica
com os dentes caninos. — Ela vai ficar legal! Se for… — Abriu a incisão feita na
madeira e catou algumas larvas crocantes, mastigando-as de forma ruidosa. Com a
boca cheia de petiscos, continuou: — Shi for febre ela vai ficar bem em um… —
Engoliu. — dia!
Kaashirin era uma osoren. Tinha a pele âmbar, marcada com intrincadas
linhas escuras descendo do olho direito e terminando no queixo. Ambos os olhos
tinham como pupilas um grande xís negro, contrastado por uma esclera
completamente amarela. De um modo adorável, suas orelhas enormes pendiam e
caíam sobre os ombros; uma delas tinha um pequeno pedaço faltando. Seu cabelo
preto era repartido ao meio, e do topo de sua cabeça, emergiam dois minúsculos
galhos semelhantes a chifres.
— Oyros são poderosos, Rioran! Fica tranquilo.
O homem assentiu, sorrindo de canto de boca.

Gabryel Valvano
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— Evidentemente é o parasita — intrometeu-se Aldric, um humano nanico e


acima do peso, de cabelos ruivos e cabeça quente. Sua voz áspera e irritante cortou a
calmaria do grupo: — A garota bebeu do riacho e está infectada. Nós todos bebemos
do riacho e agora estamos infectados! Graças a essa merda de lugar.
— Seja menos insensível, idiota! — repreendeu-o Kaashirin.
— Não sou insensível, chifruda. Sou sincero e, acima de tudo, realista. Vocês
todos concordam comigo, e estão com o cú na mão igual o grandão ali… — Aldric
apontou para Rioran. — Só não admitem.
— Aldric, pode ser a minha vez de ser sincero agora? — Frigolin indagou,
aumentando a voz. — Acredito que falo por todos quando digo que adoraria ver
aquele parasita roubar a porcaria da sua língua!
Kaashirin riu enquanto mastigava mais uma de suas larvas. Rioran, no
entanto, permaneceu taciturno, olhando as chamas, hipnotizado com seus
movimentos.
— Vai se foder. — Aldric murmurou com voz mal-humorada. Retirou um
caderno e um lápis do interior de seu casaco remendado, passando a prestar atenção
somente nele.
Um clima tenso se instalou no ambiente, trazendo consigo um silêncio súbito
e perturbador. Apenas o som da brisa fria passeando gentilmente entre os pinheiros e
as árvores de vetra anãs permaneceu. Entre o ruído das folhas movendo-se, foi
Kaashirin quem finalmente quebrou o silêncio entre os membros da gangue:
— Quando é que vamos embora daqui? — Olhou para cima, prendendo os
olhos nas auroras mágicas ao oeste.
Rioran ergueu a cabeça e lançou um olhar aos demais, esperando por uma
resposta. Entretanto, todos mantinham o foco em suas tarefas, ignorando a pergunta
da osoren.
— Bem — começou Rioran, coçando a nuca —, não temos um líder, então...
A decisão deve ser tomada por consenso, levando em consideração todos os prós e
con-
— Estamos seguros aqui — interrompeu-o Rhis em tom peremptório,
olhando-o nos olhos.
O homem possuía uma barba rala, com covinhas levemente afundadas nas
bochechas. Seu cabelo curto e liso pendia em fios soltos em sua testa; de uma

Raízes da Prisão Eterna


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tonalidade castanha apenas um pouco mais escura que sua pele. Usava um chapéu
cor de creme e vestia roupas que lembravam um peão: uma simples camisa
azul-escura com suspensórios e uma calça larga manchada de sangue de coelho.
— Seguros da polícia — continuou, pegando um cantil de couro escorado no
tronco onde se apoiava —, seguros dos Aço Sombrio e seguros do parasita. — Bebeu
do cantil, gargarejou a bebida e cuspiu de lado. Ergueu uma das mãos solenemente e
falou: — Eu voto para ficarmos.
— E eu para que partamos — contrapôs Rioran, contraindo a testa.
— Parece que você é o único que quer ficar, Rhis — comentou Frigolin,
calmamente.
— Talvez eu seja o único são, colega.
De repente, Giussei também ergueu uma das mãos. Com a outra, gesticulou
em nutarin.
A mulher tinha a pele negra e cabelos curtos raspados, adornados com linhas
onduladas nas laterais. Seus olhos eram deslumbrantes, de um alaranjado cativante,
apertados pelo costumeiro fechamento parcial das pálpebras, quase de maneira
sedutora. Uma enorme cicatriz horizontal marcava seu pescoço.
Sua vestimenta também era simples: uma camisa larga de cor creme, com
mangas soltas. Um manto marrom extenso pendia de seus ombros, enquanto um
cinto de couro segurava a veste inferior, uma calça folgada da mesma tonalidade da
camisa. Destacavam-se dois belos brincos dourados, em formato de retângulo
vertical, ornamentados com um símbolo triangular no centro.
Por razões desconhecidas, ela não falava. Embora a maioria dos membros
restantes da gangue se conhecesse desde a pré-adolescência, permanecia um mistério
se Giussei havia nascido muda, sofrido sequelas devido a algum evento traumático,
ou se simplesmente optava por manter um silêncio perene diante do grupo.
— Ah, fezes! — resmungou Aldric, rabugento, guardando seu caderno. —
Alguém pode traduzir para mim?
— Ela gosta do lugar e quer ficar. — Rhis disse, apoiando-se nos joelhos. —
Aparentemente, não sou o único que não perdeu a cabeça.
— Façamos o seguinte: — Rioran empertigou-se no tronco, resoluto. —
Quem quiser ficar, que fique. Eu vou embora assim que Violla melhorar.

Gabryel Valvano
25

— Não — declarou a osoren. — Nos metemos nisso juntos, então ficaremos


juntos. Foi, e sempre será assim.
Rioran levou uma mão aos olhos e os apertou, impaciente.
— Vamos, Rioran, não me diga que é por causa daquela meretriz… — Aldric
disse.
Rioran o encarou com olhos flamejantes de fúria. Naquele momento, se
pudesse materializar a raiva em uma forma física, teria se tornado uma tempestade
violenta. Seus punhos cerrados e os músculos tensos indicavam uma vontade
incontrolável de atacar o homem à sua frente, não importando os meios.
Aldric, por sua vez, devolveu o olhar com uma serenidade gélida, como se
estivesse desafiando-o, testando seus limites, provocando-o a agir.
— Supera, grandão. — Aldric grunhiu entre dentes.
Respire fundo, ecoou a doce voz da mãe de Rioran, tentando acalmá-lo mais
uma vez. Pouco a pouco, ele se controlou. O ódio diminuiu. A raiva se dissipou em
indiferença. Substituiu os gritos pela quietude; pesada, carregada. A irritação por um
vazio retumbante. Enfim, voltou a se inclinar e pensar.
Eu partirei, Beltria. Irei te achar, não importa como.
— A maioria quer partir. — Frigolin catou seu cachimbo e o acendeu. — E, se
é assim, assim será.
— Eu nunca dei bolas para o que a maioria pensa. — Rhis rebateu.
De repente, ao longe, algo passou a ser percebido pelos membros mais atentos.
Assustados, Rioran, Kaashirin e Giussei ergueram-se, olhando em direção à mata e
empunhando suas armas.
Além das densas árvores cingidas pela escuridão, ressoava um som distinto,
diferente dos ruídos comuns da noite, mas reconhecível para aqueles que aguardavam
a chegada de um membro: o som de um cavalo. Seu relincho, carregado de aparente
cansaço, ganhava intensidade a cada passo, acompanhado pelo baque suave e firme de
suas ferraduras ocorrendo sobre a grama úmida.
Convencido de que se tratava de Rook se aproximando, Rioran guardou sua
adaga e avançou rapidamente na direção dos sons, chamando pelo amigo na
escuridão. Mal conseguia enxergar um palmo à frente na densa mata.
O relincho, agora mais próximo, emanava angústia e desespero, ecoando
através da densa floresta.

Raízes da Prisão Eterna


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— Narigudo! — Rioran chamou pelo cavalo conforme ele se aproximava, a


preocupação retorcendo seus pensamentos. — Está tudo bem, garoto? Rook?!
Então, o corcel emergiu da mata, exibindo uma inquietação que Rioran jamais
vira nele. Seus cascos batiam no chão, ecoando sons agudos, enquanto o animal se
contorcia freneticamente, como se estivesse lutando para se livrar de algo preso à
lateral de sua cela. O desespero nos relinchos preenchiam o ar, fazendo todos se
arrepiarem. Algo totalmente inesperado estava preso a ele... algo que tirou o fôlego de
todos.
Os outros membros do grupo se ergueram com os olhos arregalados, fixos em
Rook — ou, mais precisamente, no que restava dele: apenas a cabeça, balançando
dependurada no pescoço do cavalo. Um silêncio paralisante dominou o
acampamento, exceto pelas palavras de Rhis.
O homem correu até o Narigudo, tentando acalmá-lo. Inspeccionou de perto
a cabeça de Rook, de rosto sem expressão e olhos arrancados, o sangue ainda
escorrendo mesmo após a caminhada do cavalo até o acampamento.
Enquanto observava, Rioran viu Rhis retirar algo do interior de um dos
buracos onde antes estavam os olhos do rapaz. Era um papel, e Rhis o estudou com
um franzir de sobrancelhas, acendeu um fósforo e o queimou. Seus olhos,
assombrados, varreram o rosto perplexo da gangue. Enfim, sua voz cortou o silêncio
da noite:
— O QUE ESTÃO ESPERANDO?! PEGUEM SUAS MALDITAS
COISAS. VAMOS PARA O NORTE!

Gabryel Valvano
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Capítulo Dois

Rioran despertou na quietude da madrugada, sua consciência ainda envolta


pelas nuvens do Sonho. Ergueu-se um pouco na cama, se ajeitando e virando para o
lado a fim de abraçar sua esposa. Quando o fez, sentiu um dos braços cortar o ar,
caindo delicadamente sobre o lençol. Confuso, Rioran abriu os olhos devagar,
notando o vazio que havia ao seu lado. Beltria não estava ali.
Girou até a borda da cama e se sentou, olhando ao redor em busca da mulher.
Não a viu. Contudo, poucos metros adiante, pôde enxergar a fraca luz da lua
filtrando-se através da janela, lançando sua aura pálida sobre uma pequena figura
encolhida num berço, além das grades de carvalho. Um choro agudo se projetava do
leito.
Onde será que Beltria foi? indagou para si enquanto se levantava. Não era a vez
dela de acalmar Violla?
Buscando espantar o sono, Rioran coçou os olhos e bocejou. Caminhou até o
berço, o som dos pés descalços ecoando através da humilde cabana. Enfim, alcançou a
filha e olhou para ela.
O crescente choro o aturdiu, fazendo-o comprimir o rosto em uma expressão
de desconforto. Como alguém tão pequeno podia produzir um barulho tão intenso?
Mas não era de todo mal. Os prantos de Violla ajudavam com que ele despertasse,
mesmo que ainda não soubesse dizer se isso era bom ou ruim.
Rioran estendeu as mãos para segurar a filha nos braços, porém, ao fazê-lo, seus
olhos se fixaram no pedaço de pano azul-marinho, firmemente amarrado a uma das
grades do berço — o xale predileto de Beltria.
Um arrepio de apreensão percorreu sua espinha enquanto seus olhos
sondavam freneticamente o ambiente, em busca de qualquer indício da mulher. A
lareira em brasa ainda lançava uma luminosidade tímida, pintando sombras
fantasmagóricas que dançavam pelos cantos da sala escassamente mobiliada. Beltria
não deixara rastro algum além do tecido.

Raízes da Prisão Eterna


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— Amor…? — chamou. Sua voz entoou um apelo incerto, que se perdeu nos
recantos vazios da habitação, sem resposta alguma.
Rioran tentou manter a calma. Com cuidado, desfez o nó do xale e o estendeu,
deixando-se envolver pelo doce aroma que oscilava entre morangos e cajus. Adorava
aquela coisa. Adorava o odor que aquilo deixava sobre sua mulher mesmo após ela o
remover.
O xale... Beltria costumava usá-lo para acalmar Violla. A menina sempre se
encantara com aquele aroma envolvente, e sua mãe o mantinha por perto para
acalmar os momentos tumultuados das noites. Contudo, Beltria nunca deixava a
criança dormir com ele, temerosa de que Violla pudesse tentar engoli-lo — uma
preocupação que já se mostrara real em diversas ocasiões. Às vezes, o cheiro doce
despertava esse desejo até mesmo em Rioran.
Mas por que ele estava amarrado ali? Claro, Beltria poderia ter facilmente
encontrado outro método para manter o xale próximo a Violla, mesmo sem sua
supervisão. No entanto, diante do repentino desaparecimento, a ideia de que aquilo
poderia ser um "presente de despedida" começava a ganhar forma na mente do rapaz.
Ela pode estar só dando um passeio. Estou sendo paranóico, imaginando coisas.
Não havia razões claras para Beltria fugir. Ela amava Rioran, amava Violla. A
gangue, mesmo não estando no auge, mantinha seus recursos. Tinham comida,
abrigo, e dinheiro para sobreviver — os roubos estavam tendo um considerável
sucesso.
No entanto, tampouco havia justificativa para ela vagar pelas redondezas na
calada da noite. A região onde estavam, apesar de não ser caótica, também não era
completamente segura. As vastas planícies ao redor da estrada de Belliare eram um
tanto... perigosas. A área não era densamente habitada, com apenas ocasionais
vilarejos pontilhando a paisagem verde. Encontros com animais caçando e malfeitores
não era algo raro.
Rioran agiu de repente. Deixou Violla chorando e partiu até um armário no
canto do quarto. Com um movimento rápido, abriu-o e escolheu o único conjunto
de roupas que encontrou nos cabides. Descartando as vestes, pôde visualizar um
grande espelho preso ao fundo do móvel. Encarando seu próprio reflexo, Rioran
estudou atentamente a imagem refletida: um jovem de vinte e três anos o encarava de

Gabryel Valvano
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volta. Cicatriz na bochecha, olhos castanhos claros carregando profundas olheiras e


cabelos curtos em desalinho.
Só queria dormir um pouco mais…

Logo abaixo havia uma gaveta, e Rioran a vasculhou meticulosamente, até que
seus dedos encontraram o contorno familiar de sua balestra. Com cuidado, pegou-a e
deslizou os dedos sobre o entalhe que exibia o nome da gangue que tinha sido sua
vida: Cesura.
Ele a ergueu, avaliando o equilíbrio e o peso da arma. Com um movimento
sutil, conferiu a tensão na corda. Próximo a ela, o estojo onde os projéteis repousavam
estava intacto, as flechas precisamente alinhadas.
Sem hesitar, ele se dirigiu até a porta e a abriu com violência.
Dezenas de cabanas se perfilavam na escuridão, suas paredes tingidas pelo
brilho suave e acanhado das luzes laranjas das lamparinas, cuidadosamente
penduradas nos tetos ou dispostas sobre mesas de madeira nas varandas; um
ambiente familiar, confortável. Ao longe, colinas de estatura moderada se elevavam,
adornadas por vastos campos de gramíneas e arbustos. Tudo estava iluminado pela
notívaga luz da Lua Pálida. Tudo estava silencioso. Tudo estava tranquilo.
Adiante, um alto mastro se destacava. Localizado ao centro do acampamento,
sustentava um grande sino. Caminhos sinuosos se estendiam ao redor, serpenteando
em direção às diversas moradias dos integrantes da gangue. Rioran correu até alcançar
a estrutura. Abaixo do sino, uma corda curta pendia, amarrada à sua bola de badalo,
meneando à suavidade do vento.
Sem hesitar, o rapaz agarrou a corda e tocou o sino. Seu som agudo rompeu a
paz da noite, atravessando o alojamento temporário da Cesura. Em resposta ao
chamado repentino, luzes se acenderam rapidamente e os membros emergiram de
suas cabanas, alguns agarrando armas, outros brandindo lamparinas. Até mesmo
mulheres, crianças e os mais idosos se mostraram ao relento, ansiosos para entender o
alvoroço.
— Beltria desapareceu! — Rioran berrou, interrompendo o toque do sino. Sua
voz rompeu entre eles, carregada de urgência.
Dentro de pouco tempo, uma dúzia de homens se reuniu em volta do mastro,
armados e trazendo consigo os seus cavalos.

Raízes da Prisão Eterna


30

— Como é?! — Um rapaz corpulento de cabelos ruivos perguntou, parecendo


incrédulo. — Ah, pelos Seis…
— Nos dividiremos em três grupos. — começou Rioran, ignorando a aflição
do outro. — Assumindo que Beltria estava a pé, ela não deve estar muito longe. Vocês
quatro, quero que sigam ao oeste e procurem pelo vale de Belliare — ordenou,
apontando na direção das colinas distantes.
— Está brincando? — Um dos escolhidos protestou. — Aquele lugar me dá
arrepios.
— Ah, vamos, cara. — Outro rebateu. — Já faz um tempo que não rola nada
empolgante…
Rioran apontou para mais um grupo, depois para a imensa planície que se
estendia ao leste.
— Vocês ficam com a planície. Eu, Rhis, Aldric e Inygan seguiremos em
direção a Kravlor.
— Por que Kravlor? — perguntou Aldric após uma pausa. — Quais as
chances dela não ter sido raptada, e sim ter fugido?
Rioran vacilou.
— Ela pode ser uma espiã — ponderou Aldric —, talvez se dirigindo à Mürta
Rossa para revelar nosso paradeiro aos Aço Sombrio.
O rapaz loiro balançou a cabeça. A imagem do xale azul-marinho próximo à
filha invadiu sua mente. Era improvável que Beltria tivesse sido capturada. Ela faria
barulho o suficiente para despertá-lo. Além disso, o xale que tanto adorava não estaria
com Violla. Mas… por quê?
— Ela… — Rioran começou, tentando encontrar palavras. — Não faz
nenhum sentido. — Riu, caminhando até um dos equinos. — Vocês estão sendo
paranóicos. Pedirei que Frigolin lhes forneça alguma planta relaxante assim que ele
melhorar.
— Ele pode ter razão, Rioran — disse Rhis, seu olhar sério fixado no rapaz.
Ainda rindo baixo, Rioran montou no cavalo. Ajeitou cuidadosamente a sela,
ajustando as rédeas com destreza. Enquanto realizava os preparativos para a busca,
seu riso foi diminuindo aos poucos, substituído por uma expressão pensativa.
Rioran suspirou.

Gabryel Valvano
31

— Dotte certa vez me disse que a confiança é um luxo que não podemos nos
dar; não na vida que levamos, nem nos lugares de onde viemos. — Ele lançou um
olhar para os demais. — Talvez seja uma falha minha, mas… eu confio em cada um de
vocês. Prefiro morrer acreditando na lealdade que compartilhamos à Cesura do que
imaginar um traidor entre nós um dia. A confiança que deposito em Beltria é a
mesma. Então, por que seria diferente com ela?
A imagem do xale surgiu mais uma vez.
Por quê?
A cada ajuste no arreamento, um silêncio novo se estabelecia ao redor dele,
rompido somente pelo eventual relinchar do animal e pelos ruídos do couro e metal.
— Vocês quatro, dividam-se — continuou dando as ordens, findando a
quietude. — Dois permanecerão buscando nas planícies, enquanto os outros
seguirão em direção à Mürta Rossa.
Aldric soltou uma risada breve.
— E se não encontrarmos ela? — indagou um dos membros.
— Então, vamos decidir se ficamos aqui ou se partimos.

Uma cacofonia de cascos permeava a mata densa conforme os membros da


gangue fugiam do acampamento. Liderando o caminho, estava Rhis, que levava
Giussei consigo, na garupa do garanhão. O avanço era constante, porém cansativo e
lento devido ao caminho conturbado. O solo era levemente inclinado, indicando o
declive da montanha, e extremamente irregular, acentuado por diversas pedras e
raízes entrelaçadas. A névoa que antes acometia o acampamento aparentava estar
perseguindo os membros da gangue, delineando os caules e escondendo-os
parcialmente, dificultando a visão de todos.

Raízes da Prisão Eterna


32

De uma perspectiva mais otimista, acreditavam já estarem a pelo menos dois


quilômetros do corpo de Rook. Embora o grupo estivesse acostumado a medir
distâncias devido às usuais peregrinações, não se tinha a certeza de praticamente nada;
apenas daquilo que a adrenalina e o desespero assobiavam em seus ouvidos: que
tinham que correr.
Rioran atentava-se ao caminho, desviando com habilidade das pedras e troncos
que emergiam do chão úmido. Sentia o calor de Violla, que estava escorada em suas
costas com os braços envoltos em sua barriga. Incerto de que a filha conseguiria
manter pressão por muito tempo, Rioran ainda a segurava com uma das mãos,
certificando-se de que ela não caísse do cavalo. Com a outra mão, erguia uma
lamparina, que ardia aos montes a fim de iluminar os poucos palmos permitidos pela
cerração.
Sentiu algo frio incidir sobre seus cabelos. Algo mais pesado que o relento.
Não se deu ao luxo de olhar para cima, mas deduziu o óbvio:
Era só o que faltava… Está começando a chover.
— Acho que um morcego cagou na minha cabeça. — Aldric resmungou ao
também sentir uma gota. Aprumou-se no assento de seu cavalo e, em seguida, deu
sequenciais tapas no cabelo.
— É melhor nos apressarmos — salientou Rioran.
— Não tem porquê… — começou Rhis, dando um puxão rápido nas rédeas,
fazendo com que seu cavalo parasse. Todos fizeram o mesmo. — E nem como.
Adiante, uma névoa pairava silenciosa, como um véu etéreo delimitando uma
área. Diferente da névoa de antes, esta era… sinistra, incomum.
O restante do grupo não pareceu se importar e continuou o caminho, agora
lentamente. Rioran ficou alguns segundos parado, observando-os adentrar a bruma
com um medo latente. Antes de continuar, olhou de onde vieram. Estranhamente, a
névoa não estava tão intensa ali atrás. Era como se até mesmo ela estivesse com receio
de seguí-los para dentro daquilo.
Ao cruzar o limiar, o ar se transformou em um éter opalescente, engolindo
Rioran e sua pequena por inteiro. Tudo ao seu redor era névoa, levemente úmida e
fria contra sua pele.
— Fiquem próximos. — Escutou Rhis alertar ao notar que nem mesmo um
palmo para frente era visível. — Não podemos nos perder.

Gabryel Valvano
33

— Isso é inacreditável… — suspirou Kaashirin, parecendo estressada.


— Giussei. — Frigolin chamou. Trotou até ficar ao lado do corcel de Rhis. Ele
segurava as rédeas do cavalo de Rook, que andava manso ao seu lado. — Você… não
tem nenhum “truque” que pode nos ajudar nessa situação?
— Estou cansada… — Giussei gesticulou lentamente.
Frigolin concentrou-se nas mãos da mulher, tentando compreender a
linguagem de sinais que estava aprendendo há não muito tempo. Após alguns
segundos, abaixou a cabeça, desanimado.
— Entendo.
Ela tocou seu ombro. Frigolin lançou um olhar confuso para Giussei.
— Mas eu posso tentar.
Giussei inflou os pulmões, concentrando-se. Delicados fios irradiaram ao redor
de seus olhos, tecendo-se gradualmente nos globos oculares e penetrando-os com
uma serenidade sinuosa. A esclera da humana se iluminou em uma tonalidade
verde-amarelada, emoldurando uma pupila completamente branca com um símbolo
central. Com as mãos posicionadas uma contra a outra em um formato complicado,
ela exalou com cautela.
Um grito suave irrompeu, e cinco fios iridescentes foram lançados em cada
membro da gangue, com exceção de Violla.
Rioran, surpreendido, notou que a névoa, outrora impenetrável, cedia diante
de seus olhos. Seus sentidos, em especial a visão, se ampliaram, revelando uma
imagem além do véu do nevoeiro. As árvores, antes encobertas pela densa massa de
umidade, se mostravam em silhuetas retorcidas e evidentes. Por outro lado, as chamas
agora irradiavam com uma intensidade consideravelmente maior, cegando um pouco
aqueles que mantinham a lamparina erguida no campo de visão.
Rioran meneou a cabeça e apertou os olhos. Se recuperou em pouco tempo e
enroscou a alça de seu lampião em uma espécie de pitão que emergia da lateral da sela
do cavalo.
— Vamos. — Rhis chamou. — Rápido.
Continuaram a cruzar a mata.
Como de costume, Rioran se via imerso em pensamentos, lembranças, e até
mesmo em desejos. Lançou um olhar monótono para os outros, que montavam suas
montarias, tentando adotar uma expressão de falsa calmaria. Certamente, estavam

Raízes da Prisão Eterna


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temerosos mais uma vez; afinal, estavam em fuga. Não deveria ser assim. Não para a
Cesura. Há tempos, deixaram de ser uma gangue — aquela temida gangue
dominante de Mürta Rossa —, tornando-se apenas um grupo. Um grupo que fugia
da morte iminente. Um grupo que adiava o inevitável.
Como permitimos que as coisas chegassem a esse ponto? Seria orgulho?
Otimismo…? Rioran refletiu, apertando os braços da filha. Deveria ter largado a
Cesura assim que Violla nasceu... Deveria ter fugido junto de Beltria e vivido uma vida
normal.
No entanto, as angústias de Rioran tiveram um fim abrupto. À frente,
Kaashirin, que antes observava a floresta com serenidade, virou seu rosto em um
instante, revelando uma expressão apavorada.
— Giussei — começou a falar, evitando encarar os arredores; sua voz temerosa
misturando-se ao ritmo dos cascos —, desfaça a magia. Agora.
Rapidamente, Rioran voltou a não enxergar sequer um palmo adiante.
— O que deu em você, chifruda? — Aldric questionou, trocando sua voz
sarcástica por uma que, ao menos aparentava, possuía genuína preocupação.
— Eu deveria ter suspeitado. — Ela sussurrou para si mesma, fitando absorta
as raízes entrelaçadas pelo solo vertente. — Essa névoa. A chuva… Merda!
— Bem, pela sua reação, aparentemente morremos. Que ótimo… — Aldric se
endireitou, girou o corpo e tateou sua bolsa de viagem, retirando dois dedais
peculiares e os encaixando nos dedos médio e indicador.
Ambos tingidos de negro, se estendiam até a base dos dedos em formas
saltitantes que lembravam grandes escamas. Entre as brechas dessas escamas, finas
linhas vermelho-vivas contornavam, formando padrões ondulados que se estendiam
em espirais nas extremidades. Da ponta, uma afiada "unha" de metal emergia,
enquadrando um símbolo complexo no centro; cada uma diferente da outra.
O homem ergueu a mão e virou para Kaashirin.
— Cadê a coisa?
— Não precisa disso. — Ela fez um gesto para que Aldric abaixasse a mão. — É
só… a fauna local.
— Certo. E essa… fauna pode nos matar?
Kaashirin assentiu.

Gabryel Valvano
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— É um Thol… — Viu Aldric levantar a mão novamente. Logo, apressou-se


em dizer: — M-mas, contanto que não o encaremos, vamos ficar bem. Olhem para
frente! — Kaashirin falou alto, suspirando em seguida. O restante assentiu. Voltou-se
para Aldric. — Estão em extinção... Não queremos matá-lo, certo?
Aldric manteve os olhos nela por um momento, mostrando sua expressão
característica de desagrado. Então, virou-se e concentrou-se no caminho à frente.
— Entendo que osorens levam a preservação da natureza muito a sério,
chifruda... Talvez até demais, para ser sincero. Mas se esse tal Thom vier para cima de
mim, vou ter que me defender.
— Para cima de nós, Aldric. — Frigolin o corrigiu, quebrando seu silêncio.
O grupo trotava cautelosamente entre as árvores altas, a névoa espessa
serpeando pelo chão como um tecido fino e fantasmagórico, movendo-se em espirais
em torno deles.
Os passos dos cavalos ecoavam suavemente, criando uma trilha sonora
irregular que se fundia aos pequenos estalos ouvidos nas proximidades; como se algo
ágil se movesse entre os arbustos e raízes a poucos metros dali. Mantinham os olhos
fixos à frente — apenas para frente —, conscientes de que estavam sendo observados,
mas proibidos de encarar aquilo que os espreitava.
Rioran sentiu o peso debruçado em suas costas se extinguir. Violla havia
acordado.

Uma dor de cabeça lancinante atormentava Violla. Apesar da febre ceder um


pouco graças à sopa de oyros, ainda sentia um frio penetrante. A chuva caía
incessantemente sobre seus cabelos dourados, as gotas parecendo pequenas pedras em
queda livre. Ela se surpreendeu por ter permanecido dormindo por tanto tempo. No
acampamento, quando seu pai a despertou, jurou que não conseguiria adormecer
novamente. Agradeceu por estar enganada.

Raízes da Prisão Eterna


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O acampamento… Por que estamos indo embora?


Ao recobrar a consciência, Violla começou a rememorar os eventos recentes.
Lembrou-se do aroma reconfortante que emanava da sopa e aflorava sua fome. Das
ternuras receosas de Rioran, que incessantemente verificava sua temperatura e
assegurava que ela ficaria bem.
Contudo, também rememorou gritos e discussões ao longe. Embora fossem
eventos comuns, pareciam mais intensos naquela noite específica. Recordou-se de
um Rioran desesperado, erguendo-a nos braços e conduzindo-a até o cavalo. Neste
último, havia um odor peculiar que se destacava, não sendo a primeira vez que o
percebia. Era inconfundível — deixara uma marca em sua mente —, e acelerava seu
coração sempre que o detectava.
Sangue.
O peito de Violla apertou-se. O que teria ocorrido no acampamento para
alarmá-los tanto a ponto de fugirem novamente? O que trouxe aquele desespero ao
rosto de seu pai? Por que havia cheiro de sangue no ar?
Ao abrir os olhos, tudo o que viu foi um véu cinzento obscurecendo seu
entorno. Inquieto, parecia formar redemoinhos em seu campo de visão, tornando-a
levemente tonta.
— Filha, feche os olhos — alertou o pai.
— O quê? — Violla indagou com voz sonolenta. — Por que?
— Obedeça.
Aturdida, a garota tentou fechar os olhos. No entanto, algo naquele
redemoinho antinatural atraiu sua atenção; algo fascinante, luminoso! Eram como
joias esfumaçadas, emitindo um brilho suave que tingia a névoa ao redor com uma
tonalidade verde-escura. Pareciam grandes vagalumes alinhados, movendo-se
delicadamente enquanto acompanhavam a pequena que, curiosa, perdeu-se no
brilho por alguns segundos enquanto exploravam a mata. Eles eram como... olhos.
— Isso não deveria estar acontecendo. — A voz de Kaashirin soou através da
névoa.
— Vocês… estão vendo isso? — Frigolin indagou após poucos segundos.
— A névoa. — Rioran observou. — Parece estar convergindo para um único
ponto.

Gabryel Valvano
37

De fato, mais adiante e à direita, gradualmente, mais se tornava visível,


enquanto a névoa, em seu movimento espiral, parecia dirigir-se como um todo para
algum ponto à esquerda. Ninguém parecia querer descobrir qual ponto era esse,
exceto Violla, que ainda encarava os olhos flutuantes com profunda concentração.
— Alguém o-olhou… — A voz de Kaashirin tremeu. — A-Alguém…
De repente, à medida que a névoa se condensava, uma forma distinta começou
a surgir. Inicialmente, um longo focinho se materializou, estendendo-se até uma
cabeça coroada por uma notável juba. Paralelamente, como se perfurassem a juba,
dois longos chifres se elevavam para trás em formas onduladas. Das laterais da cabeça,
pelos densos davam lugar a grandes orelhas, erguidas e pontiagudas.
Depois, a bruma delineou o corpo. O formato era humanoide, com pelagem
rala cobrindo toda a superfície, revelando músculos rígidos e bem torneados. Em
uma postura curvada, a criatura repousava sobre os calcanhares — mesmo assim,
possuía cerca de um metro de altura.
Ao redor, a névoa mitigou. Na realidade, agora a névoa era aquilo.
Aquilo que capturou os olhares desesperados dos últimos membros da
Cesura. Aquilo que os paralisou, impedindo eles de reagir imediatamente,
deixando-os petrificados.
Transbordando imponência, o Thol ergueu-se, observando o grupo de cima.
— C-Corram! — Kaashirin gritou.

Raízes da Prisão Eterna


38

Capítulo Três

Gabryel Valvano

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