You are on page 1of 24
Terapia Cognitivo- Comportamental no Luto Débora Cerentini Eva Regina Costa Lima Duarte Giovanni Kuckartz Pergher INTRODUGAO Tipicamente, os textos de TCC versam sobre o tratamento dos transtornos mentais descritos nos manuais diagnésticos, com desta- que para o Manual diagnostico e estatistico do transtornos mentais (APA, 2002). O sofrimento humano, contudo, nAo se restringe as ca- tegorias nosograficas propostas por tais manuais. A dor emocional pode assumir formas nio enquadradas na psicopatologia descritiva. Assim, uma “visao em tunel” por parte do clinico, que leve em conta apenas a taxonomia atual dos transtornos mentais, pode negligenciar alvos importantes de atengao terapéutica. Dentre as formas de sofrimento humano que atualmente nao recebem uma classificacdo especifica por parte dos manuais diagnés- ticos, encontra-se 0 luto. O DSM-IV-TR (APA, 2002) propée que se- jam avaliados os estressores psicossociais que se relacionam, de algu- ma forma, as queixas apresentadas pelo paciente (Eixo IV). Assim, a perda de um ente querido é codificada somente no Eixo IV como um estressor psicossocial, nao havendo, nas categorias do Eixo I (trans- tornos clinicos), um espaco especifico para o luto. Essa desconsidera- cdo da possibilidade do luto como um transtorno & parte, entretanto, nao deve ser motivo para ignorar sua importancia na pratica clinica. Em TCC, o uso da psicopatologia descritiva como ponto de partida para proposigao de modelos teéricos explicativos dos trans- | 256 | Terapia Cognitivo-Comportamental no Luto tornos mentais tem como objetivo melhorar a comunicagao entre os pesquisadores da drea (Beck, 1976). Como consequéncia, aqueles transtornos descritos nos manuais diagnésticos tendem a receber uma maior ateng4o por parte dos pesquisadores, levando a uma maior produgao cientifica. A reciproca também é verdadeira, ou seja, as for- mas de sofrimento humano nao classificadas nos manuais diagnés- ticos acabam por receber menor ateng4o da comunidade cientffica, acarretando a produgao de um volume de conhecimento correspon- dente. Um exemplo disso ocorre com o luto: embora se trate de uma demanda frequentemente presente na pratica clinica, ha uma reduzi- da quantidade de publicagées sobre o assunto dentro da abordagem de TCC. Nesse sentido, o presente capitulo se propéde a preencher par- te dessa lacuna, apresentando 0 enfoque cognitivo-comportamental para o tratamento de individuos enlutados. Para tanto, ser4 exposto, inicialmente, o entendimento do ponto de vista cognitivo do proces- so de luto, bem como uma definic’o de luto normal e patoldgico. Em seguida, apresentaremos uma proposta de avaliagdo e¢ tratamen- to cognitivo comportamental da pessoa enlutada. Ressaltamos que o foco do presente capitulo reside na intervengéo com os individuos sobreviventes, ¢ ndo com aqueles que estao se deparando com o pro- cesso da propria morte. (Para o leitor interessado na TCC para pa- cientes terminais, sugerimos a leitura de Martin, Albornoz, Gutiérrez € Sopena, 2007). LUTO NORMAL E LUTO PATOLOGICO No curso de nossas vidas, todos somos levados a enfrentar uma série de perdas significativas ¢ inevitaveis. Perdem-se amigos queri- dos, familiares e pessoas préximas, que despertam, com suas mortes, um sentimento de perda chamado luto. O luto, porém, é um fato natural, um processo que acontece em todos os estdgios do ciclo vital. De acordo com a American Psychological Association, o luto [nor- mal] é definido como NOVAS TEMATICAS EM TERAPIA COGNITIVA | 257 | © processo de sentir on expressar tristeza apés a morte de um ente querido, ou perfodo durante o qual isso ocorre. Envolve ti- picamente sentimentos de apatia e abatimento, perda de interesse no mundo exterior ¢ diminuigao na atividade e iniciativa. Essas reages so semelhantes & depressao, mas s4o menos persistentes ¢ nao sdo consideradas patolégicas (APA, 2010, p. 586). Apesar de 0 fendmeno do luto ser universal, o seu significado é multifacetado na experiéncia de vida humana, uma vez que existem grandes diferengas em relacéo a como os individuos reagem diante das perdas. Segundo Oliveira e Lopes (2008), 0 luto pode ser defi- nido como um processo que gera um conjunto de reagées diante de io dos sentimentos decor- uma perda. O luto é uma fase da express rentes dessa perda, a qual pode ser demonstrada tanto por reagdes de choque e desorganizacao ou mesmo ser elaborada de forma organiza- da e sem maiores problemas. Para Oliveira e Lopes (2008), 0 processo de luto torna-se orga- nizado quando a morte € tomada como algo real e quando o sujeito enlutado apresenta certa disponibilidade para novos investimentos em sua vida. Esses novos investimentos sugerem a reorganizagao da nova rotina do dia a dia, tanto funcional como emocional. Esse inves- timento sadio caracterizaria entéo o processo de luto bem elaborado. J o luto se torna patolégico quando ocorre a intensificagao dos processos presentes no luto normal (tanto em relagdo ao tempo de duragao quanto em relacdo ao comprometimento provocado pelos sintomas), os quais assumem caréter irreversivel, integrando-se a vida do enlutado. Nesse processo, o individuo nao consegue reorganizar sua vida e construir novos projetos para o futuro (Kovacs, 1992). Dentro do processo de luto considerado normal, o esperado é que tanto 0 paciente terminal quanto familiares ou pessoas préximas passem por uma série de ctapas. Kiibler-Ross (1981), apds extensivos estudos com individuos que receberam diagndstico de doengas termi- nais, identificou cinco estdgios no processo de enlutamento: negagéo e isolamento, raiva, barganha, depressao e€ aceitacdo. Esses estdgios sao considerados inerentes ao processo de luto saudavel, porém cada pessoa experimenta cada uma dessas fases de maneira diferente e nio | 258 | Terapia Cognitivo-Comportamental no Luto necessariamente devem passar por todas elas. Quando o individuo nao consegue lidar com a situagao de perda, ou seja, quando nao consegue ultrapassar uma dessas etapas, instala-se entao o luto patolégico. O luto patoldgico deve ser compreendido como um estado em que o individuo nega, reprime ou evita aspectos da perda, apresen- tando resisténcia em se desligar da pessoa que se foi. Esse processo ainda pode desencadear sintomas, entre eles, psicolégicos, compor- tamentais, sociais ¢ fisicos; como também perturbagées mentais (Do- mingos & Maluf, 2003). Worden (1982, apud Beckwith, 1996), identificou quatro rea- des que devem fazer parte do processo de avaliagao do luto e classi- ficou como caracteristicas do luto patolégico: luto crénico, em que o pesar continua durante varios anos; reacio marcada por uma expressio emocional insuficiente quando ocorreu a perda que posteriormente reaparece in- tensamente; reagdo exagerada que leva o individuo oprimido a um com- portamento desadaptado; reagées mascaradas podem ser caracterizadas por sintomas fisicos, sintomas psiquidtricos, ou comportamentos acting out, no entanto o individuo nao os associa & perda. Apés apresentarmos as caracteristicas do luto normal e patolé- gico, passaremos agora para uma compreensio desses processos A luz do modelo cognitivo. MODELO COGNITIVO DO LUTO Conforme colocado anteriormente, o luto € um complexo pro- cesso psicolégico que compreende diversas emogées. A experiéncia de cada emogao em particular depende de varios fatores, tais como as condigdes em que houve a perda, o vinculo com a pessoa falecida e a rede de apoio social com a qual o indivfduo pode contar entre outros. De especial interesse para o presente capitulo so as crengas prévias a NOVAS TEMATICAS EM TERAPIACOGNITIVA | 259 | vivéncia da perda, uma vez que estas, frequentemente, serao alvo das intervengées em TCC. O modo como a morte é encarada traz informagées sobre a tipica forma de enfrentamento que a pessoa assume diante das situa- c6es-problema em sua vida (Kovacs, 2003). Cada reacio, cada sinto- ma apresentado fornece informagées relevantes acerca das estratégias de enfrentamento que a pessoa langa mao no dia a dia para lidar com seus problemas ¢ suas frustragées. Dessa forma, vemos que as crencas prévias do individuo, as quais ditam a maneira pela qual ele interpreta os fatos A sua volta, sio decisivas nas reagGes diante da perda. Nossos esquemas mentais, ge- renciados por nossas cren¢as € nossos pensamentos, ditam, em gran- de parte, a forma como iremos encarar a morte e como iremos reagir diante de um processo de luto, resultando em nossos comportamen- tos ¢ sentimentos em relagao a perda (Wright, Tarkington, Kingdon & Basco, 2010). Segundo Caminha, Wainer, Oliveira e Piccoloto (2003, p. 20), “somos frutos do que pensamos, do modo como percebemos 0 mun- do”. Por meio de nossas representagdes mentais, sAo categorizadas nossas cognigées (crengas centrais € esquemas) e gerenciados nossos comportamentos. Esquemas mentais sao toda a representag4o cognitiva que pos- sibilita ao individuo reproduzir a realidade social e contextual na qual esta inserido; intitulamos crengas todo e qualquer contetido dessas representacées. A distingdo entre esquemas e crengas, contudo, nao € inequivoca na literatura de TCC. Dada essa falta de ubiquidade na definicdo precisa dos conceitos de esquemas e crengas, bem como a reduzida importancia da sua diferenciagao para os propésitos do pre- sente capitulo, utilizaremos esses termos de maneira intercambiavel ao longo do texto. Os esquemas mentais s&o sistemas automiaticos mento ¢ processamento de informagées. S40 padrées cognitivos de certa forma estaveis que servem como parametro para a interpretagio de um grupo similar de situagdes. Assim, esse sistema, ao ser ativado, funciona categorizando e codificando os estimulos ambientais ¢ apli-

You might also like