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POEsIA E SOCIEDADE EM CrsAri0 VERDE José Luis Giovanoni Fornos* s relagdes entre sociedade e poesia em Cesdrio Verde sto, aqui, Albnerntes sob trés aspectos, estudados & luz da situagao histé- rica e da potencialidade artistica do poeta portugués: a representacao da identidade nacional, a condigéo social do autor e as caracteristi- cas do seu discurso arttstico. * Doutorando em Teoria da Literatura pelo Programa de Pés-graduacao em Letras, da PUCRS. Janeiro/Junho 2002 157 POESIA E SOCIEDADE EM CESARIO VERDE ‘Trés temas balizam a poética de Cesério Verde! : o binémio campo! cidade; a discussio da identidade nacional e a reflexfo sobre o fazer poéti- co e seus desdobramentos. Tais escolhas, mediadas pela posigdo do poeta no quadro social e pelo exercicio técnico-formal, garantem a atualidade de sua poesia, ainda que tais temas e preocupagdes fagam parte de outros autores do diltimo quartel do século XIX. As transformagGes politico-econd- micas ocorridas no final daquele século colaboram também para a atualida- de dos poemas, considerando a atmosfera criada pelas mudangas daquele periodo que, tal como hoje, causam perplexidade. Cesério Verde e sua gerago assistem a enormes mudangas no espa- go social. As transformagGes na estrutura capitalista do final do século XIX. mexem profundamente na organizagiio das cidades e do campo.? Reajusta- do pela inclusio de novas tecnologias, o modelo social faz surgir uma popu- Jago que, em busca de melhores condigdes de vida, ocupa as cidades, aban- donando raizes rurais. Tal conjuntura desencadeia efeitos diversos no ima- gindrio dos intelectuais do perfodo. Basta lembrar a produgdo pottica de Antero de Quental que opta por uma reflexdo metafisica ¢ filoséfica, como forma de resisténcia aos acontecimentos. Ja Cesdrio, permeado pelo realis- mo, observa a sociedade e seus elementos com objetividade, desmistificando- José Joaquim Cesério Verde nasceu em Lisboa a 25 de feverciro de 1855, filho de Maria da Piedade dos Santos Verde e de José Anasticio Verde, que era comerciante de ferragens relativamente abastado e possuidor de uma propriedade agricola em Linda-a-Pastora, Cesério Verde cresceu num meio de burguesia comerciante da Baixa Lisboeta, com repetidas estadias na quinta da familia. Morteu de tuberculose a 19 de julho de 1886, aos 31 anos de idade. 2 No caso especifico portugues, estava-se em pleno Fontismo, perfodo em que o Pais volta a set dirigido por Fontes Pereira de Melo (1871-1879). Em seu govero, assistese a alguns ‘empreendimentos que alteram a face de Portugal, entre os quais, langamento da via férrca nacional (Revolugdo do comboio); a expansio intensiva do sistema rodoviério: reaparelhamento dos portos de Lisboa e Leixdes. Cesério foi testemunha de melhoramentos rmodernos introduaidas no Pais, como o telégrafo, a iluminagdo a gés nas nias, os transportes coletvos e os primes eandeciros eléticos. Lisboa, com a expansio capitalista, modificava se, tomando-se progressivamente uma cidade industrial, populosa. Lisboa crescia: para além do velho burgo medieval, & volta da Sé e do Castelo, ¢ das ruas, geometricamente tragadas, dda Baixa pombalina, abriam-se avenidas largas, erguiam-se novos bairros, construfam-se prédios de terceiro andar, as chaminés das fabricas iamse elevando por entre 0s casarios e, fo entardecer, as ruas enchiam-se de uma multidio de tabalhadores andnimos, em que jé se sobressaia a presenga de operérias, costureiras ¢ floristas, misturadas as “varinas”. Tais, mudangas, no entanto, provocavam um descompasso jé que a incorporagio das inovagdes ‘io acompanhava tais melhorias. Assim, o sistema de abastecimento, de saneamento, na construgio das moradias, era deficitrio, provocando problemas graves de sate 8 populagio citadina, Martinho de Nobre de Melo descreve 0 contexto lisboeta: “Ha que reconhecer, perante a unanimidade dos testemunhos coesos, a geral insalubridade da capital portuguesa, resultante de miltiplos fatores como a insuficiéncia da égua fornecida a domicilio por aguadeiros ¢ em regra eseasseando no vero: a insuficiéncia dos esgotos cuja rede estava Tonge de cobvir toda a drea da cidade; o sistema das sarjetas na gencralidade sem siffes: 0 acondicionamento defeituoso das canalizagSes que permitia aos gases refluirem para 0 interior das habitagOes desprovidas de respiradoiros adequados: acumulagio de despejos langados nas nuas, acrescidos dos estrumes de currais ainda sobreviventes em alguns bairros aque se convertiam em focos de infecgao”. 158 VIDYA 37 JOSE LU[S GIOVANONI FORNOS a. Apoiado em Baudelaire? , o autor portugués descreve as “‘multidées” da cidade com “terror dignificado”. O crédito de Baudelaire junto 4 produgdo poética de Cesério nao se restringe a inventividade do escritor portugués. O capitalismo industrial da- quele final de século nao é a salvaguarda exclusiva para a permanéncia de sua poesia. Ultrapassando os condicionamentos estéticos e politicos, Cesério produz uma poesia peculiarissima que advém, entre outros aspectos, do su- jeito social contraditoriamente constrangido entre o artista e o cidadao per- tencente a uma determinada classe, respondendo a demanda imediata de uma profissio e herdeiro de uma familia proprietéria e abastada‘. Otratamento irénico’ e cético, tanto aos que militam em grupos lite- rarios quanto aos que esto presos a relagdes exclusivamente mercantis, desencadeia aspectos importantes na composigao poética do autor. Ao vi- ver os “dois lados”, como intelectual e também como comerciante, “expor- tador de frutas e legumes”, Cesdrio, através da ironia, percebe a realidade em sua totalidade, explorando, com minticia, as contradigdes socialmente vividas, inclusive as suas. Para a solugdo do conflito, busca, num primeiro momento, valorizar 0 territério nacional, identificado na cultura esponténea do campo. A poesia social de Cesério, enfatizada na preocupagao do artista com 0s problemas sécio-politicos, aparece em dois textos exemplares que so referéncias obrigatérias como expresso da melhor poesia em lingua portu- guesa. Trata-se de “O Sentimento dum ocidental” e “Nés”®. O primeiro, publicado a 10 de junho de 1880, na cidade do Porto, no caderno especial da edigao do Jornal de Viagens, em comemoragio ao aniversério da morte de * Alem de Baudelaire, os eriticos apontam influéneias de Frangois Coppé e Leconte de Lisle no plano literério. ‘Segundo Maria Ema Tarracha Ferreira, Cesério debate-se entre dois mundos, 0 do homem que exerce a fungio de comerciante, assumindo gradativamente a diregao do comércio do Pai (exportagdo de frutas ¢ comércio de materiais de ferragens e construcdo) e uma vocagio ppoética, com a qual nio se sente valorizado, jf que seus poemas sao criticados pelos préprios correligionarios quando aparecem na impresisa. (Ramalho Ortigio, em As Farpas, e Te6filo Braga acothem com “severidade e sarcasmo” as poesias de Cesério, causando a0 poeta profundo desalento). A doenga de Cesério, tuberculose, também possui um papel importante nha sua produglo artistica. Mario Sacramento, chama a atengdo para 0 que caracteriza como “tensto dialética” da ironia de Cesdrio Verde: “mantém os seus poemas mais caracteristicos num permanente estado de tensdo dialética, que 0 poeta sabiamente modula, fazendo intervir a ironia no onto exato em que essa tensio compeliria a0 desvario sentimental ou ideolégico”. SACRAMENTO, Mério. “Lirica e dialética em Cesirio Verde”. In: Ensaios de Domingo. Lisboa: Vega, 1990, p.98. * Os dois poemas citados fazem parte do tinico livro de Cesério Verde: © livro de Cesério Verde, publicado em 1887 por um amigo - Silva Pinto - aps a morte do poeta. O livro teve varias edigdes seguintes que serviram para cobrir as falhas da I* edigao, jf que seu companheiro Silva Pinto evitara a publicagao de alguns poemas do autor tais como “A forca” e “Secretério dos amantes”. A edigao utilizada para 0 estudo dos dois poemas foi organizada por: FERREIRA, Maria Ema Tarracha. 0 livro de Cesério Verde. Lisboa: Ulisséia, 1981 Janeiro/Junho 2002 159 POESIA E SOCIEDADE EM CESARIO VERDE Camées, foi recebido com indiferenga pela critica. Na verdade, a tinica manifestago parte de um critico espanhol que aponta que os versos “desto- am do nobre espirito portugués”. Nds, poema mais longo de Cesério, publi- cado em Ilustragdo, Paris, 5 de setembro de 1884, considerado por muitos criticos um dos melhores do autor, tematiza o universo rural portugués, exa- minado em toda sua complexidade. Entre um poema e outro, nota-se uma alteragio de ponto de vista sobre a realidade portuguesa. Em “O Sentimento dum ocidental”, predomi- na a reflexdo sobre as ruas de Lisboa que revela uma “massa” humana “irregular”. A contradico da cidade, espelhada no progresso e na miséria, simultaneamente “inspira” e “incomoda” o poeta. Num primeiro momento, © fascinio pelo fenémeno urbano em mutagdo parece deliciar 0 sujeito em seu passeio “reflexivo”, porém, sio a miséria, a sujeira e a luta pela sobre- vivéncia que, por fim, predominam, provocando um mal-estar cujo sintoma imediato € o da melancolia, evocada nas quadras iniciais do poem: Nas nossas ruas, ao anoitecer, Hé tal soturnidade, ha tal melancolia, Que as sombras, 0 bulicio, 0 Tejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de sofrer O céu parece baixo e de neblina O gas extravasado enjoa-me, perturba; E os edificios, com as chaminés, ¢ a turba Toldam-se duma cor monétona ¢ londrina Em “O Sentimento dum ocidental”, a rua e suas personagens exercem um fascinio negativo, provocando a dor do sujeito. Em vista disso, no poema ‘Nés, apés a sua passagem no campo onde parece encontrar a “verdadeira natureza de ser portugués”, 0 sujeito lamenta a volta a “cidade maldita”. De acordo com Anténio José Saraiva e Oscar Lopes, em “O Senti- mento dum ocidental”, “nao se depara os vagos operdrios e prostitutas do progressismo verboso de certos contemporaneos, nem o oco pessoalismo ultra-romantico”. Para os dois criticos, Cesdrio é 0 poeta “cuja neurastenia se retrata ¢ ironiza num quadro real, a vista de dramas flagrantes dos vizi- nhos...’? Os dois autores tém razo. Na leitura do poema, ha a descrigdo equilibrada, sem o moralismo ingénuo que paternaliza por inteiro o ser social em desvantagem, reagindo contra a sua idealizago, atacando pieguismo. Nesse caso, 0 populismo que, muitas vezes, invade a ficgdo, é retido pelo vocabulério preciso, irénico e por uma autoconsciéncia que reflete sobre SARAIVA, J. A. € LOPES, O. Histéria da literatura portuguesa. Porto: Porto, 1986, p. 967, 160 VIDYA 37 JOSE LUIS GIOVANONI FORNOS sua prépria capacidade criativa: “Longas descidas! Nao poder pintar/ com versos magistrais, salubres e sinceros”. A cidade em “O sentimento dum ocidental” perde seu encanto. O poeta é atingido pelo desgosto provocado pelo cheiro fétido do “peixe po- dre” que “gera os focos de infec¢do”; pelo ar pueril das “burguesinhas do Catolicismo”; tomado pela ndusea ao aproximar-se dos “ventres das taber- nas”. Diante dessa atmosfera, em que colaboram ainda a epidemia da “Fe- bre” e do “Célera” que assalta impiedosamente Lisboa, cuja populagio, “com um terror de lebre,/ Fugiu da capital como da tempestade”, a mudan- ¢a para o campo torna-se necessdria e oportuna. Est4-se a falar do poema Nés, em que as primeiras sete estrofes registram a fuga em panico de por- tugueses da capital. O fascinio do poema “Nés” estd, entre outros aspectos, na multiplicidade ideolégica dos fatos, alcangados pela ironia que impede de serem celebrados numa tinica tonalidade. Contrariando a representacio romantica do espago rural, Cesério apresenta o campo ajustado ao modo de produgio econémica vigente em que a categoria trabalho - do camponés - aparece como expresso legitima, desmistificando a aura campestre en- quanto lugar harmonioso, aprazivel e de lazer: Contudo, nés nao temos na fazenda Nem uma planta 6 de mero ornato! Cada pé mostra-se itil, é sensato, Por mais finos aromas que rescenda! Finalmente, na fértil depressao, Nada se vé que a nossa mio néio regre: A florescéncia dum matiz alegre Mostra um sinal - a frutificagao! Hoje eu sei quanto custam a criar As cepas, desde que eu as podo e empo Ah! O campo néo é um passatempo Com bucolismos, rouxindis, luar. Distante dos pardmetros da estética romantica, acentua-se 0 cardter mercantil do campo. Helder Macedo destaca que ‘© campo deixa de ser a idilica metafora oposta ao tem- po € ao espago presente da cidade, tornando-se numa realidade concreta observada tdo rigorosamente e des- crita tao minuciosamente como a propria cidade havia sido: um campo em que 0 trabalho e os trabalhadores Janeiro/Junho 2002 161 POESIA E SOCIEDADE EM CESARIO VERDE sfo parte integrante, um campo ttil onde 0 poeta se identifica com o povo e de cujas atividades participa’. Para Saraiva e Lopes, Cesério examina o campo com o olhar objeti- vo do administrador rural. Todavia, esse olhar é mediado pela mo do artista que problematiza a visdo economicista do comerciante interessado em ven- der seu produto. Desse reajuste, imposto por um duplo sentimento, sobres- sai uma relagao conflituosa do sujeito com o seu meio em que o poeta busca solucionar, identificando-se “com 0 povo comum, uma identificagio inevita- velmente em conflito com a realidade da sua situago econémica e soci- al”. Para Helder Macedo, “a consciéncia deste conflito é pungentemente reforgada pela percepgaio de que sua classe, a sua propria ‘geracio exan- gue de ricos’, € menos capaz de sobreviver do que 0 povo, organicamente mais forte porque melhor adequado ao meio: 0 seu meio”. ‘A necessidade de conciliar as contradigdes inerentes & sua posigao pessoal de proprietério-comerciante ¢ de intelectual “revoluciondrio”, possi- bilita a Cesdrio, por um lado, investigar com objetividade a nova realidade social em que se integrara, encontrando no meio rural varios aspectos nega- tivos que havia percebido na cidade. Por outro, essa revisdo da imagem do campo levou-o, em parte, a um diferente parecer acerca da na¢do portu- guesa. No poema “Nés”, a valorizagao da natureza espontanea, simples natural do meio e do povo portugueses aparece como fenémeno positivo da identidade nacional. Tais caracterfsticas so um contraponto a artificialidade produzida pelos paises do norte europeu, em dltima instdncia, vitimas da industrializagao e da racionalidade instrumental. Escreve 0 poeta: Anglos-Saxénios, tendes que invejar! Ricos suicidas, comparai convosco! Aqui tudo espontaneo, alegre, tosco, Facilimo, evidente, salutar! Bem sei que preparais correctamente O ago e a seda, as laminas ¢ 0 estofo; Tudo 0 que ha de mais diictil, de mais fofo, Tudo 0 que ha de mais rijo e resistente! Mas isso tudo é falso, é maquinal, * MACEDO, Helder. Nés - uma leitura de Cesério Verde. Lisboa: Publicagoes Dom Quixote, 1986, p. 45-49. % Idem, ibidem, p. 46. © Idem, ibidem, p. 46. 162 VIDYA 37 JOSE LUIS GIOVANONI FORNOS: Sem vida, como um cérculo ou um quadrado, Com essa perfeigao do fabricado, Sem o ritmo do vivo e doreal! E cé o santo sol, sobre isso tudo, Faz conceber as verdes ribanceiras; Langa as rosdceas belas e fruteiras Nas searas de trigo palhagudo! Tal posigao ideolégica é resumida por Hélder Macedo da seguinte ma- neira: “A transposicao do contraste campo-cidade, leva a uma nova, mas equi- valente, polaridade: o contraste entre a sociedade agraria e a sociedade indus- trial. A cidade artificial torna-se equivalente as nacdes industriais do Norte e 0 ‘campo - 0 natural oposto ao artificial - torna-se equivalente a Portugal, uma nagdo agréria do Sul identificada com seu povo comum” (p. 46). O campo como espaco representativo da nacionalidade portuguesa passa, portanto, a ser, para Cesério, fator importante, assegurando ao Pais uma identidade. Todavia, a valorizagio dessa cultura pré-moderna é contraditada pelo dominio da relago econémico-politica que impée dificul- dades, levando o poeta a ironizar a dependéncia de Portugal junto a outros paises. Com a finalidade de valorizar a produgdo agricola local e daqueles que exercem a atividade no campo, questiona os pafses industrializados so- bre a sorte econémica de Portugal: O cidades fabris, industriais De nevoeiros, poeiradas de hutha, que pensais do pais que vos atulha Com a fruta que sai de seus quintais? Em relaco A produgao agricola, o poeta enumera as dificuldades do trabalho no campo, denunciando, além das pragas naturais, a dependéncia do clima para o plantio e uma boa safra, o roubo, a concorréncia econdmica © os impostos: A nés tudo nos rouba e nos dizima: O rapazio, 0 imposto, as pardaladas, As osgas peconhentas, achatadas, E as abelhas que engordam na vindima. E 0 pulgdo, a lagarta, os caracéis, E hé ainda, além do mais com que se ateima, As intempéries, 0 granizo, a queima, E a concorréncia com os Espanhdis. Janeiro/Junho 2002 163 POESIA E SOCIEDADE EM CESARIO VERDE. No poema “Nés”, além da visio macro-estrutural da realidade, 0 sujeito aparece dividido. Ora aparece como parte integrante da realidade, ora observa- a.com distanciamento critico. Nao escapa igualmente de reflexes que dizem respeito a si mesmo, criticando op¢Ges feitas cujas conseqUéncias trazem enor- me infortinio. Observe-se a critica a que o sujeito litico se aplica ao comentar que, na busca de dinheiro, deixa de acompanhar a situaco enferma da irma. Nesse caso, as relacGes sentimentais familiares so sobrepostas pela atividade econémica e pela acumulagio do capital" A procura da libra e do shilling, Eu andava abstrato e sem que visse Que 0 teu alvor roméntico de miss Te obrigava a morrer antes de mim! O processo de alienagdo provocado pela estrutura social capitalista é um dos elementos centrais da critica poética efetuada por Cesério Verde. Como comerciante ativo, bem como intelectual “participante” das discus- ses promovidas em torno do socialismo, Cesério observa concretamente 0 significado do cardter desumanizado e desumanizante da relagao mercantil. E 0 cdlculo econémico que reifica as relagdes entre os homens, operando um desajuste moral e afetivo. Esse quadro se manifesta no depoimento do sujeito em relagdo a irma, mas também no tratamento aos trabalhadores do campo e da cidade. De outro modo, a dimensio social da poesia de Cesério, identificada ‘com programa realista-naturalista, a0 menos como ponto de partida, é am- pliada pela escolha de estratégias formais e pelo caréter metaficcional do seu agir poético. A organizagio de seus poemas caracteriza-se pela narra- tiva de passeios, aparentemente casuais, em que um observador vai regis- trando o ambiente mutavel e miscelaneo que se lhe depara. Essa técnica tem o seu equivalente o seu reforgo, ao nivel da sintaxe, na figura domi. nante do estilo de Cesirio, o assindeto, cujo efeito, resultante da justaposi- ao ou contigitidade textual de vocabulos, geralmente de valor adjetivo ou nominal, é 0 de acentuar os valores semanticos individuais de cada palavra. Tal método poético — a estrutura ambulatéria que reflete 0 movimento do observador solitério, justaposto a percepgdes aparentemente aleatrias € dissociadas — deriva do desejo de registrar as gradagSes sutis de uma reali- dade em transformagio. Em meio a descrigdo de objetos ¢ sensagées, 0 poeta produz eus miiltiplos que indicam a gradativa mudanca de posigo frente & sociedade ou a crescente consciéncia dos problemas que a afetam. K. Marx e F. Engels escrevem no Manifesto Comunista: “A burguesia rasgou 0 véu do sentimentalismo que envolvia as relagGes de familia ¢ reduziu-as a meras relages monetirias”. (MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto comunista, Sio Paulo: Boitempo, 1998, p. 42.) 164 VIDYA 37 JOSE LU{S GIOVANONI FORNOS Na visio de David Mourdo-Ferreira, a estética de Cesdrio parte de uma concepgio pictérica para reescrever a realidade. Segundo o romancis- ta portugués, Cesario “é um daqueles artistas para quem o mundo externo conta de modo primacial; e as suas emoges posticas s6 atingem plena expresso quando preliminarmente aquecidas pela visio pict6rica”. A 6ti- ca pictural, em especial a de técnica impressionista, tem sido a énfase dada pela critica ao processo de invengao de Cesario Verde. O critico portugués Jacinto Prado Coelho chama a atengio ainda para as categorias espago e meméria como figuras chaves para entendi- mento do processo de criagdo poética de Cesario Verde. Tanto em “O sen- timento dum ocidental” quanto no poema “Nés” verifica-se a exploragdo do espaco e da meméria. No primeiro, nota-se a preocupagiio do poeta em descrever grandes areas de Lisboa, aliada 4 recordagio de episédios cole- tivos que identificam a Hist6ria de Portugal: “E evoco, entio, as crénicas navais:/ Mouros, baixéis, herdis, tudo ressuscitado!”, contudo, tais referén- cias passadas vém retemperadas pela ironia: “Luta Camées no Sul, salvan- do um livro a nado/ singram soberbas naus que eu nao verei jamais!”. No poema “Nés”, aponta sua intengio artistica: Fecho os olhos cansados, e descrevo Das telas da meméria retocadas, Biscates, hortas, batatais, latadas No pats montanhoso, com relevo! Na estrofe acima, os adjetivos “cansados” e “retocadas”, colocados com precisio, informam, de forma simultdnea, 0 fastio da criagio e a ne- cessidade de continuar a escrever. Se por um lado o olhar do poeta expres- sa certo cansago, devido as desigualdades e injustigas sociais; por outro a meméria, anunciada pelo artista através do documento literdrio, reabilita a leitura do passado numa diregdo diferente, ampliando o sentido da Historia. Retocar o passado, sob 0 impulso da visio do artista, multiplica os sentidos da Historia, assim como da realidade, criando novas possibilidades de repre- sentagdo do real. O escritor José Saramago, ao discutir a relagdo entre Hist6ria e ficgo, aponta 0 seu método de trabalho: a incapacidade final de reconstituir 0 passado, nao podendo reconstitui-lo, somos tentados - sou-o eu, pelo menos - acorrigi-lo (...) quando digo corri rigir a Historia, nao é no sentido de corrigir os factos da Hist6ria, pois essa nunca poderia ser tarefa do ro- ir, cor = MOURAO-FERREIRA, David. Notas sobre Cesétio Verde. In: Hospital das Letras. Lisboa INCM, 1981, p. 70 Janeiro/Junho 2002 165 POESIA E SOCIEDADE EM CESARIO VERDE. mancista, mas introduzir nela pequenos cartuchos que facam explodir o que até entao parecia indiscutivel: por outras palavras, substituir 0 que foi pelo que poderia ter sido". Entretanto, Cesdrio nfio acata com trangililidade esse retocar dos fatos efetuados pela meméria. Com consciéncia, observa que a correcio da Historia e da realidade pretendida pelo artista pode conter equivocos. Cesério, através de uma auto-consciéncia, marcada pela ironia e ceticismo, relativiza a representaco pottica e ri dos exageros com que se pode retratar o real: Entao recordo a paz familiar, Todo um painel pacifico de enganos! E a distancia fatal duns poucos anos E wma lente convexa, de aumentar. Todos os tipos mortos eu ressuscito! Perpetuam-se assim alguns minutos! E eu exagero os casos diminutos Dentro de um véu de lagrimas bendito. Mediante as possibilidades de enganos da criaco artistica, fruto de sua temporalidade historica, o poeta desconcertado e desiludido da fungao social que a literatura pode exercer, declara seu desdém a ela. De tal maneira que hoje, eu desgostoso ¢ azedo Com tanta crueldade e tantas injustigas, Se inda trabalho é como os presos no degredo, Com planos de vinganca e idéias insubmissas. E agora, de tal modo a minha vida é dura, Tenho momentos maus, tao tristes, tao perversos, Que sinto sé desdém pela literatura, E até desprezo e esqueco os meus amados versos! Incapaz de amenizar o drama social a que assiste, seja na esfera privada, com a morte prematura dos seus familiares, seja na esfera social em que prospera uma sociedade baseada na experiéncia exclusiva da pro- ducio de mercadorias com vistas ao lucro, o poeta langa um olhar de des- prezo a literatura. Todavia, Cesdrio, em suas contrariedades ironicas, reco- nhece a importancia da arte na representagdo do espaco social, elevando-a a.um instrumento critico significativo na sondagem da realidade através de um discurso lirico auto-reflexivo e transformador. © REIS, Carlos. O conkecimento da literatura, Coimbra: Almedina, 1997, p. 502. 166 VIDYA 37 JOSE LU[S GIOVANONI FORNOS Referéncias Bibliograficas MACEDO, Helder. Nés — uma leitura de Cesario Verde. Lisboa: Publica- g6es Dom Quixote, 1986. MELO, Martinho Nobre. Cesdrio Verde: poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1958. MOURAO-FERREIRA, David. Notas sobre Cesdrio Verde. In: Hospital das Letras. Lisboa: INCM, 1981. PEREIRA, José Carlos Seabra. Histdria critica da literatura portugue- sa: do fim-de-século ao modernismo. Lisboa: Verbo, 1995. QUADROS, Anténio. O primeiro modernismo portugués. Lisboa: Publi- cagdes Europa-América, 1989. SACRAMENTO, Mario. Ensaios de Domingo. Lisboa: Vega, 1990. SARAIVA, Ant6nio e LOPES, Oscar. Histéria da literatura portuguesa. Porto: Porto, 1986. VERDE, Cesirio. O livro de Cesdrio Verde. Lisboa: Ulisséia, 1981. Janeiro/Junho 2002 167

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