Notas de literatura 1
mos de ser. Como um instantiineo do momento em que se des-
perta, o Surrealismo € parente da fotografia. Sem diivida ele sa
queia 0 mundo das imagens, mas no aquelas invariantes ¢ a-
histéricas do sujeito consciente, nas quais a concepgao conven-
cional gostaria de neutralizé-lo, mas sim as imagens histéricas,
nas quais a intimidade do sujeito toma consciéncia de que é algo
externo, imitagio de algo histérico-social. “Geb Joe, mach die
Musik von damals nach” |*Vamos li, Joe, toque como a miisica
de antigamente”]
Nesse sentido, porém, 0 Surrealismo constitui 0 comple-
mento da Neue Sachlichkeit [Nova Objetividade], que surgiu
nesse mesmo periodo. O horror que esta experimentava diante
do “crime do ornamento”, para usar uma cxpressio de Adolf
Loos, € mobilizado pelo choque surrealista. A casa tem um tu-
‘mor, sua sacada. Ele € pintado pelo Surrealismo: na easa cresce
uma verruga de carne. As imagens infantis da modernidade sio
a quintesséncia daquilo que a Newe Sachlichkeit cobria com um
‘abu, porque relembrava sua propria esséncia reificada e sua in-
capacidade de lidar com o fato de que sua racionalidade perma
necia irracional, O Surrealismo recolhe o que a Neue Sachlichkeit
recusa aos homens; as deformagées testemunham 0 efeito da
proibigzo no que um dia foi desejado. Através das deformagies,
0 Surrealismo salva o antiquado, um album de idiossinerasias,
no qual se desgasta a promessa de felicidade, pois os homens a
véem negada em seu préprio mundo dominado pela técnica. Mas
se hoje o proprio Surrealismo parece obsoleto, isso ocorte por-
que os homens jé renunciaram a essa consciéncia da rentincia,
capturada no negativo fotogrifico do Surrealismo,
Sinais de pontuagao
Quanto menos os sinais de pontuagao, tomados isolada
mente, estio carregados de sentido ou expresso, quanto mais
cles se tornam, na linguagem, o pélo oposto aos nomes, tanto
mais decisivamente cada um deles conquista seu stars fisiogno:
ménico, sua expressao prépria, que certamente ¢ inseparivel da
fungdo sintatica, mas nio se esgota nela, Quando o herdi do ro-
mance Der griinen Heinrich (O verde Henrique], de Gottfried
1, € questionado sobre o P maitisculo alemao [98), exclama:
Pumpernickel!” (pao preto). Essa experiéncia ¢ ainda mais vi-
lida em relicio s figuras de pontuagio. O ponto de exclama-
G40 ndo se assemelha a um ameagador dedo em riste? Os pon-
tos de interrogagao ndo se parecem com luzes de alerta ou com
‘uma piscadela? Os dois-pontos, segundo Karl Kraus, abrem a
boca: coitado do escritor que nao souber sacié-los, Visualmen-
te, o ponto-e-virgula lembra um bigode cafdo; ¢ ainda mais for-
te, para mim, a sensagio de seu sabor ristico. Marotas ¢
feitas, as aspas [va] lambem os labios.
Todos sio sinais de crinsito; afinal, estes os tomaram co-
mo modelo. Pontos de exclamagio correspondem 20 vermelho;
dois-pontos, verde; ¢ os travessbes ordenam stop. Mas foi um er-
ro da Escola de George confundi-los, por causa disso, com sinais
iNotas de literatura
de comunicagdo. Eles sio sobretudo sinais de elocugio. Em vee
de zelosamente servirem a0 trinsito entre alinguagem ¢ 0 leitor,
fancionam como hierdglifos no trifego que acontece no interior
da linguagem, em suas préprias vias. F supérfluo, por isso, omi
ti-los como supérfluos: assim eles apenas se escondem. Cada tex-
to, mesmo o mais densamente tramado, cita-os por si mesmo,
espiritos amistosos cuja presenga incorpérea alimenta 0 corpo da
linguagem.
Em nenhum de seus elementos a linguagem é to seme-
Ihante A miisica quanto nos sinais de pontuiagao. A virgula ¢ 0
ponto correspondem & cadéncia interrompida ¢ & cadéncia au-
téntica. Pontos de exclamagio sio como silenciosos golpes de
pratos, pontos de interrogagio séo acentuagées de frases musi