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Buco, Soctedacle & Caltras, n® 10, 1908, 95-109 PAULO FREIRE O educador na histéria O objectivo deste texto é oferecer referéncias para se compreender a vida e a obra de Paulo Freire como acontecimento bist6rico integral Para isso 0 texto discorre entre o género académico e 0 género jornalistico, entre a andlise e o testemunho da convivéncia Freire é apresentado como um edu- cador incomum, que se move entie a sua condtcdo de bomem comum ea de mito. Muito se escreveu sobre Paulo Freire E muito se escreverd. As vezes me pergunto de onde saem tantos assuntos sobre um autor que insistia em enfati- zat que a simplicidade era uma caracteristica fundamental de sua proposta pedagégica A multiplicidade ¢ diversidade de andlises sobre sua obra decor- rem, em grande parte, de consideragées sobre as relagées analégicas entre 0 seu pensamento € as especificidades culturais de cada contexto em que sew texto € pensado. Até porque isso é efetivamente um contetido inerente ao pen- samento pedagégico de Freire: que nao faz sentido uma teotia pedagégica ageral,, que nao seja historica e culturalmente situada ¢ datada Que nao faz sentido tentar construit uma teoria universal, se se pensa a universalidade uni- vocamente Freire, na verdade, nem pensou primeiro na universalidade Pensou primeiro na miséria local, regional ¢ nacional, ¢ construiu, com os pid- * Professor do Progmma de Pés-Grduagio em Educagio (Curriculo} da Pontificia Universidade Catélica de Séo Paulo o eD¥ChCay socrepape & curruras prios miseraveis, referenciais concretos para uma pritica concreta de superacio da miséria, para 0 que 2 educacio seria elemento indispensavel, embora nio suficiente Dai, o paradoxo: 20 realizar bem o particular, Paulo Freire universa- lizou-se A universalidade analégica de sua teoria tomou-a significativa para ‘ultras situacdes hist6ricas ¢ culturais, as mais diferenciadas, que tém esse desa- fio comm: o de contribuir, por meio da educaczo, pata 0 que ele chamava de ssuperacio das dominagiese E por ai afora poderia prosseguir este artigo, jentando-se aos milhares de outros textos produzidos sobre Freire, desdobrando consideracdes intermind- veis sobre a riqueza pedagégica e politica de sua obra e sobre as formas mais adequadas de se realizar uma boa pratica pedagdgica aqui ou acolé Mas eis- me diante de um piblico especifico, de um ambiente cultural especifico (pri- mariamente Portugal ¢ secundariamente os demais paises ¢ leitores de lingua portuguesa), sendo um entre tantos pesquisadores com alguma coisa a dizer sobre a obia de Freire. O receio da repeticio e do lugar-comum, ou de dizer 0 mo-significativo, levou-me a escolher um eixo diferente para minhas reflexdes, nesta oportunidade: Paulo Freire como um educador incomum, entre o homem comum € 0 mito, e a consciéncia histérica como seu lastro Para desenvolver essas reflexdes, este texto deslizard, entre o analitico e 0 coloquial, entre 2 lin- guagem académica e a jornalistica, utilizando-se dos prdprios referencizis de Freire para tentar capturar, nesse espaco meso, a densidade e a forca histérica desse grande educador. 1. Um educador incomum, entre 0 homem € 0 mito Paulo Freire foi um educador incomum Nao é um exagero, tal afirmacio: estima-se em cerca de 1600 0 total de livros ¢ teses produzidos sobre sua obra Seu nome aparece citado na Internet nada menos que 60 000 vezes Convenhamos, isto nfo é nada comum Ha em curso, hd anos, um inevitivel processo de produco de um certo mito ao redor de sua figura Nao uma pro dugao antificial, feita em algum laboratério de marketing, mas algo como um processo espontineo, desenvolvido cotidianamente por educadores e pesquisa- dores, nos mais diversos paises Educadores, como ele, inconformados com 0 : goVCAlag sociepape & cuitunas crescimento acelerado da miséria econémica € cultural no mundo e fortemente identificados com a sua histéria de vida e sua obra. A intensidade dessa admi- tacio, portanto, antes de tudo, reflete o reconhecimento do valor universal de sua obra. Nada mais merecido Mas seria bom que a meméria de Paulo Freire nao descambasse para 0 mito Porque a condicio de mito, no limite, € incompativel com a de educador Foi com Freire mesmo que aprendemes isso, € por isso seria duplamente absurdo se cultivassemos a sua meméria como a de um mito cristalizado. Toda a obra de Freire (e sua vida € parte de sua obra, ou, antes, sua vida foi sua principal obra) exige isso Todos sabemos como a humildade intelectual e afec- tiva ea simplicidade foram tragos marcantes de seu carate: Com efeito, nao se faz educacao com fetiches Ao contrario, Freire nos ensi- nou, a educacio é uma acto desfetichizadora por exceléncia Uma agio desve- ladora do mundo do sujeito Desvelamento, ou descobertura, que se realiza, porém, nao como o passe suipreendente do magico (esse, sim, 0 fetichizador por exceléncia, 0 fabricador de ilusdes), mas por lenta ¢ ardua construgio coti- diana Nesse sentido, a etimologia de educar como -ex-ducere: (conduzir um movimento de dentro para fora) € ainda pobre, insuficiente. Valeu um dia, quando a consciéncia humana acreditava que 0 homem tivesse dentro de si todas as solugdes e que bastaria \partejé-lass, trazédas luz Mas Freire insistia: © mundo, somos nds que o consiruimos e lhe atribuimos significados Sendo que cabe a cada individuo € 2 cada geracio perceber-se dentro de seu mundo jd constmido e reconstruélo ¢ ressignificé-lo A educagto 6 parte da construgio colectiva do mundo. Enquanto descobridora e construtora, a educacio € desencantadora do mundo tal qual ele se nos apresenta primordialmente Embora, paradoxal- mente, também chamemos de -encaniadoras A experiéncia de desencantar 0 mundo Isto s6 pode ocorrer porque 0 encantamento do mundo € substituido pelo auto-encantamento do sujeito desencantador Quando caem véus dos olhos (da consciéncia), exultamos e -nos encantamos+ com 0 que vemos: 0 bri- Iho do mundo tal como é, distinto do que parecia ser: a verdade (nunca defini tiva, mas sempre pensada como definitiva pelo sujeito, na descoberta) O que a educagio desencanta € a ilusio anterior da verdade construda pelo outro, que nos antecedeu O que encanta é muito mais a descoberta de si mesmo como evVerCag socizpape & curtunas sujeito, como possibilidade de descobtir e construir 0 mundo E nisso consiste, 3t0 continuo, o risco da cristalizagio de uma nova itusio: a inflacio do sujeito, que agora se cré onipotente Autofetichizacio Auto-idolatria do sujeito Conhecemos bem essa doenca na histéria da humanidade Chamou-se, nia por acaso, jluminismos: a raz3o crente de tet alcangado a iluminago suprema Viveriamos, assim, entio, itremediavelmente amartados a0 fetiche, a0 sdolo? Somos, inevitavelmente, tecidos de mitos, tecidos por mitos? A educacao s6 faz substituir os encantamentos? Nem tanto. E verdade que nunca escapamos defi nitivamente dos mitos (e por isso melhor seria que nao lutéssemos obsessiva- mente para aniquilé-los; é uma tentativa inthil) Melhor seria que os percebés- semos como produto natural do imaginario humano. Imagindrio, porém, que no se produz ao acaso e que nem é uma falha humana &, simplesmente, parte da condicio humana, é proprio da condigo humana Porque o imagind- rio mitico s6 se projetz onde o mistério se manifesta, e 6 exatamente por isso que hé 0 encantamento e o mito se produz O inoémodo que o mistério instala na consciéncia humana converte-se em possibilidade de desencadear nela uma funcao educativa: a de tentar desvelar inteiramente seu significado (tarefa esta, no limite, ingléria) A obra de Paulo Freire, assim como a obra de todo bom heréi, é um desses fendmenos de forte apelo mitico De tho bem que ele desencantou o mundo, encantou-se, € nos fez encantarmo-nos com ele Sua obra e sua figura pessoal encontram-se, pois, intensamente cercadas de uma aura Isso nao € surpreen- dente Isso veio sendo construido 20 longo de sua vida profissional, ¢ se acen- tuou & medida que ele envelhecia Q fundamento politico dessa construcio foi sua condic2o de patriota vitimado, que arriscou sua vida para realizar um pro- jeto salvador: a libertagdo cultural e politica de seus irmaos miseraveis, analfa- betos, oprimidos O que custou-lhe um exitio Ao mesmo tempo, valeu-lhe acesso a0 mundo, ¢ ao mundo, o acesso a ele Sus figura pessoal reforgava essa aura Seu corpo levemente arqueado, seus cabelos brancos e longos (incomum em seu ambiente culturaD, sua vor mansa, seus gestos calmos, seu andar cuidadoso, tudo combinava com a representaco do sibio anc#io, ou profeta que anuncia a redeng2o dos oprimidos Paulo Construiu essa imagem profética Vaidade? Estratégia educativa para operar tant- bém pelo simbélico? As duas coisas ou qualquer outra? Casualidade, mero epdcdca, sociepape & curruras capricho pessoal? Nao interessa muito Nem se trata de julgi-lo moraimente Nem de julgar os que de sua figura se aproximaram ou se aproximam apés sua morte, avidamente, como quem busca tocat a reliquia do santo, para hautir algo de sua aura, de sua sagrada enexgia Nao se trata de julgar. Sao (somos) todos educadores, Presume-se que o que queiramos seja darmo-nos conta de seu legado e difundi-lo, convictos de que estamos empenhados numa tarefa educativa Ainda que no estejamos isentos de nenhuma forma de idolatria Mas incomoda, em alguns manejos que se fazem da obra de Paulo Freire, a insisténcia num certo deslizamento para esse campo das solucdes miticas Incomoda 0 exagero nesse deslizamento (posto que, até um certo ponto, esse deslizamento seja aceitével, por refletir a intensa admiracdo que ele merece) Toda figura humana que se destaca ¢ alcanca a condi¢io de exemplar histérico em alguma coisa entra nesse circuito da producto mitica, inevitavelmente. E para essa producio se acelerar, nunca faltam as seducdes do mercado, sempre 2 espreita, & caca de idolos, ou pronto a produzi-los A meméria de Freire nao tem como ser protegida desse risco Mas a presenca do idolo é uma presenca também pedagégica Porque ele gera sentimentos contraditérios: tanto de pazalisia quanto de mobilizacio De um lado, 0 idolo desperta o sentimento ¢ a telagao de inferioridade, de admira- io paralisante, expressa na idéia de que -eu munca poderia ser assim- Nesse tipo de relagao, o admirador transfere 20 idolo a responsabitidade de fazer aquilo que todos gostariam que fosse feito Quando o idolo esta morto, esse sentimento se desloca para a conviccao de que sua energia se espalhou e tor- nou-se presente por toda parte e que, em cada mindsculo ponto, ele segue cumprindo invisivelmente ¢ magicamente sua funcao historica Esse sentimento diante da figura do idolo é o que Paulo Freire chamaria de

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