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Da Italia ao Brasil a trajetoria do imigrante Andaremo in Mérica Intel bel Brasil E qua i nostri siori Lavorard la tera col badilll! Canto Contadino, Veneto, Preliminares “Ttdlia bela, mostre-se gentil € 0s filhos seus nao a abandonarao, sendo, vo todos para o Brasil, eno se lembrarao de retornar. Aqui mesmo ter-se-ia no que trabalhar sem ser preciso para a América emigrar. O século presente ja nos deixa, o mil e novecentos se aproxima. A fome esta estampada em nossa cara % para cura-la remédio nao ha. A todo momento se ouve dizer: eu vou 1a, onde existe a colheita do café.” Trecho extraido da cangio Italia bella, mostrati gentile, provavelmente datada de 1899. Esta cancao foi encontrada Digitalizado com CamScanner peers if ZULEIKA M. F. ALVIM em Porciano, cidadezinha da provincia de Arezzo, na Tos- cana, de onde sairam muitos emigrantes para a América, des- deo final do século passado até o inicio do atual. * Escolhi Jtalia bella para abrir este trabalho porque é uma das raras cancdes de emigrantes que falam especificamente do Brasil, de Sao Paulo, da tao falada terra onde “‘existe a co- lheita do café”. E também porque representa um documento precioso para quem se envereda pela historia da imigracao italiana no Brasil, mas a partir da perspectiva do trabalhador rural. A miséria que assolava o campo italiano, a decisio de abandonar a patria, assim como a revolta cantada de forma quase intuitiva, so dados que esta cangao nos fornece e de- monstram que o ato de emigrar nao implicava simplesmente “fazer a América’, como em geral se interpreta. Era também uma forma de resisténcia 4s duras condigées de vida impostas pela penetracdo do capitalismo no campo italiano. De alguns anos para c4, sobretudo a partir dos trabalhos de E. J, Hobsbawm, intmeras pesquisas tém procurado dar yoz a um dos pélos da sociedade: os pobres. A multiplicidade de titulos a esse respeito demonstra a amplitude de aborda- gens possiveis e as dificuldades que as ciéncias humanas tém enfrentado diante da rigidez de esquemas de andlise que sd consideram valida a resisténcia 4 opressio do grupo domi- nante quando praticada pelo proletariado organizado. Rebeldes Primitivos, Bandidos, Proletérios sem Revolu- ¢a0, O Folclore como Cultura de Contestagao, Tradigao, Re- volta e Consciéncia de Classe? sio alguns dos titulos que co- mungam a mesma determinago: a de contar a histéria das classes subalternas, nao a do ponto de vista do opressor, mas do oprimido. (1) “Italia bella, mostrati gentile”, Editoriale Sciascia, 1971, p. 1, (2) E. J. Hobsbawm, Rebeldes Primitivos, Estudo sobre Formas Arcaicas de Movimentos Sociais nos Séculos XIX e XX. Rio de Janeiro, Zahar, 1970; Idem, Ban- didos. Rio de Janeiro, Forense Universitaria, 1975; R. Del Caria, Proletari senza Ri- voluzione. Storia delle Classi Subalterne Italiane dal 1860 al 1950. Miléo, 1966; L. M. Lombardi Satriani, 1! Folklore come Cultura di Contestazione. Messina, 1966; E. P. Thompson, Tradicién, Revueltay Consciencia de Classe. Estudio sobre la Crisis de la Sociedad Preindustrial. Barcelona, Editorial Critica, 1979. : Le Canzoni degli Emigranti. Milo, Digitalizado com CamScanner BRAVA GENTE! 19 No entanto, mesmo diante de tal multiplicidade de titu- los, ainda continua sendo dificil trabalhar com esse tema: falta material escrito, so poucos os representantes dos pobres no poder, é enérgica a vontade do grupo dominante em apa- gar os tracos do que quer que possa ameacaé-lo; e, enfim, essa ideologia dominante se impde, impedindo que o dominado te- nha consciéncia de sua real situagdo: a de explorado. Quero dar a palavra ao imigrante italiano. Quero contar a histéria dos pobres do campo. Primeiro e sucintamente na Itdlia, e em seguida em Sao Paulo. Confesso, porém, que fo- ram incontéveis as dificuldades para recuperar os tracos, eS- critos ou orais, desses homens e mulheres. Meu principal objetivo é analisar 0 comportamento e as formas de resisténcia do grupo imigrante italiano frente as relagdes sociais de trabalho vigentes nas fazendas paulistas. Para isso, procurei acompanhar a luta dos 850 mil italianos que passaram por Sao Paulo, na tentativa de manterem a au- tonomia caracteristica de sua forma de vida camponesa. E minha preocupacio basica nesse sentido foi extrair do mate- rial coletado sobretudo aquilo que trazia 4 cena o protagonista — o imigrante: nos textos que falam da prépria repressio que sofreram ou mesmo.nos que falam dos sonhos que nao reali- zaram. Na segunda metade do século XVIII, a cultura das cha- madas classes subalternas, na Italia, deixou de ser apenas oral (o que abriu novos caminhos aos historiadores). Com a multi- plicacao de escolas aumentou o indice de alfabetizagao. Con- seqiientemente, as cartas dos emigrantes acabaram por se transformar em testemunho de sua propria vivéncia. Por elas se filtrou uma parte de sua hist6ria. Além disso, os registros consulares, eclesiasticos, jorna- listicos, de viajantes e de policiais também acabaram por re- velar a situagdio em que esses homens e mulheres viviam. Tais registros, na Italia, alertam para a miséria que assolava seus campos e para a ameaca que isso significava ao poder estabe- lecido. No Brasil, denunciam a expulsio das fazendas, as fu- gas, a quebra de contratos de trabalho. Informam, enfim, sobre as tristes condicdes de vida do homem do campo, per- mitindo que se chegue muito perto do que foi, de fato, e do que efetivamente representou essa diaspora moderna. Digitalizado com CamScanner 20 ZULEIKA M. F. ALVIM Uma primeira tendéncia ao se abordar a imigracao é situ4-la cronologicamente no processo de introdugao da mio- de-obra livre no Brasil. Isso j4 foi feito de modo mais ou me- nos brilhante por varios autores, o que ja torna suficiente aqui apenas um resumo desse processo: inicialmente, prevaleceu o sistema de parceria adotado por alguns fazendeiros, parale- lamente A grande producdo calcada no braco escravo. Isso ocorreu, por exemplo, no Vale do Paraiba, em Sao Paulo; mas esse sistema de parceria fracassou, culminando com a cha- mada “Revolta de Ibicaba”;? depois, surgiram as primeiras tentativas de trabalho assalariado, quase isoladas e heterogé- neas, com a produgio ainda firmemente apoiada no trabalho escravo; e chegou-se, enfim, ao triunfo dos plantadores do Oeste Paulista e ao estabelecimento do trabalho assalariado apoiado no imigrante. No outro pélo deste esquema estao as condicdes que im- pulsionaram a Italia ao topo da lista de fornecedores de miao- de-obra barata ao Brasil, entre meados do século XIX e inicio do século XX. Se n&o adoto o esquema cronolégico isso nao significa desprezo pelas andlises que seguiram esta trajetéria. No en- tanto, se prosseguisse nessa mesma rota, certamente nada ou quase nada acrescentaria ao que ja foi dito em textos to res- peitaveis como os de Emilia Viotti da Costa e Caio Prado Jr.* Neles, as implicacées internas e externas da fase que po- demos chamar de transicZio entre duas economias — uma apoiada no trabalho escravo e outra no trabalho assalariado — foram expostas, sem deixar de se assinalar, com a maior propriedade, seu carater capitalista. Tampouco se pode esquecer que tal esquema de analise é importante porque demonstra como diferentes contextos his- toricos se harmonizaram e puderam ser usados pelos grupos (3) T. Davatz, Memsrias de um Colono no Brasil (1850). Prefécio e notas de Sergio Buarque de Holanda. Sao Paulo, Livraria Martins, 1944. A chamada “Revolta de Ibicaba" eclodiu em 1857, na fazenda Ibicaba, em Limeira, de propriedade do senador Vergueiro. Envolveu colonos que exigiam o cumprimento das obrigagdes do contrato de trabalho. (# E.V. da Costa, Da Senzala @ Colénia, Sio Paulo, DIFEL, 1966; C. Prado It, Histéria Econémica do Brasil. Si0 Paulo, Brasiliense, 1965. Digitalizado com CamScanner BRAVA GENTE! 2 dominantes. Na Italia, a emigragao se afigurava como solugio para a crise de desemprego que assolaya o pais desde 1870; e, em Sao Paulo, a imigraco serviria como alternativa da de- sagregacao da mao-de-obra escrava nas fazendas. No entanto, esta abordagem nao se detém no que significou, para o imi- grante, o grande movimento migratério desse periodo: quem eram esses homens, quais seus habitos de vida, no que traba- lhavam, onde viviam e, principalmente, o que queriam? Eram estas as perguntas que me inquietavam. A ltalia expulsora No caso paulista, durante cingiienta anos, mais precisa- mente entre 1870 e 1920, a imigracdo italiana foi fundamental para o estado. Podemos dividir esse periodo em trés fases. O primeiro momento — 1870-1885 — caracteriza-se pela articulacao politica do grupo do Oeste, paralelamente A desa- gregacao da m4o-de-obta escrava; pelas primeiras tentativas de se apoiar a producio cafeeira na m&o-de-obra livre; e pela auséncia de uma politica imigratéria definida. Neste periodo, os italianos ainda nfo eram a maioria dos imigrantes. Num segundo momento — 1885-1902 — consolida-se nova faccio econédmica no poder — os fazendeiros do Oeste —, enquanto o mercado de trabalho se apéia de fato na mao- de-obra livre, definindo-se, entio, uma politica imigratéria, basicamente calcada no imigrante italiano. Finalmente — 1902-1920 —, periodo em que o poder po- litico do novo grupo se mantém inalterado e em que se conso- lida, em todo o pais, a politica imigratéria iniciada por Sao Paulo. Com uma diferenca, porém, definida pela queda brus- ca na entrada de italianos, basicamente porque passaram a ser atraidos pelo mercado de trabalho norte-americano, e me- nos em decorréncia das restrigdes determinadas pelo Decreto Prinetti, com que o governo italiano, em 1902, proibiu a emi- grago desenfreada de seus stiditos para o nosso pais. Estas datas sio importantes, mas nao explicam por que, até 1886, a composic’o das familias imigrantes difere, funda- mentalmente, das que depois se dirigiram a Sao Paulo; nem Por que, até 1902, predominam na corrente imigratéria os ita- Digitalizado com CamScanner 2 ZULEIKA M, F. ALVIM. lianos setentrionais, com maioria de vénetos e, apés essa data, de italianos meridionais. A resposta a essas questdes é 0 primeiro objetivo deste capitulo e, em seguida, pretendo caracterizar os grupos de imigrantes que a lavoura paulista recebeu. Até 1885, primeiro momento da imigragdo para o Brasil, as familias que sairam da Italia pertenciam, em grande parte, ao universo dos meeiros, dos pequenos proprietérios e dos ar- rendatarios, independentemente de se originarem da Italia se- tentrional ou meridional. Do lado expulsor, a Italia, isso se explica pela forma como ocorreu a penetragao capitalista no campo: concentra- go da propriedade; altas taxas de impostos sobre a terra, que impeliram o pequeno proprietério a empréstimos e ao conse- qiente endividamento; oferta, pela grande propriedade, de produtos a precos inferiores no mercado, eliminando a con- corréncia do pequeno agricultor; e, finalmente, a sua trans- formacgdo em mao-de-obra para a industria nascente. Tal processo nao se deu de maneira uniforme, mas, 4 medida que se implantava, foi liberando um excedente de mio-de-obra que o préprio pais nao tinha condigdes de ab- sorver. Para esses, a sobrevivéncia passava pela emigracio. Do lado receptor, o Brasil, houve, no primeiro momento, espaco para esse tipo de imigrante porque nao existia uma politica imigratéria definida: assim, contava-se com quem es- tava disponivel no mercado e nao com a imigragao desejada pelos fazendeiros do Oeste Paulista — farta e barata. Nesse contexto, é indispensdvel alguma referéncia 4 his- toria desse contingente humano, situando-o nas diferentes re- gides de onde sairam. Primeiro, porque nos permite detectar as etapas da penetrac&o do capitalismo no campo italiano, acabando por liberar mao-de-obra excedente. Segundo, por- que o destino dessa mo-de-obra em Sao Paulo nao se desvin- culou da experiéncia anterior de vida. O fendmeno migratoério, na Italia, antecedeu o século pas- sado. Pais de caracteristicas naturais particulares, com regides de montanhas e de colinas dificeis de cultivar, submetidas a condigées climaticas bastante 4speras, desdobradas lado a lado de planicies cultivveis, cuja rea, porém, era insuficiente ¢ ca- Tente de drenagem, o equilibrio de sua economia, que envolvia Digitalizado com CamScanner BRAVA GENTE! 2 0 pasto, o bosque e 0 cultivo de cereais, impunha assim a migracdo interna, principalmente nas regides montanhosas. E 0 caso, por exemplo, da economia de transumancia praticada entre a regiao Alpina e o Agro Romano. E também o da emigrac&o véneta para regides da Europa central, muito intensa desde 0 periodo napoleénico, e ainda o da emigracao sazonal do Abruzzi e Campania em direcio a Maremma e ao proprio Agro Romano, para as obras de drenagem da regido, no século XVIII. § O fendmeno emigratério nao era, portanto, desconhecido no pais. As dificeis condigdes naturais j4 obrigavam ha muito, em particular nas 4reas de montanha, sempre as mais atingi- das, que se buscasse o sustento familiar em outras regides da propria Italia ou nos paises vizinhos, sobretudo Franga e Ale- manha, No entanto, a emigragao de massa, como se conven- cionou chamar o fenémeno que caracterizou o século XIX, tem contornos bastante diferentes. Durante muito tempo, a historiografia italiana, princi- palmente a contemporanea a emigracaio de massa, procurou sua causa ora no fator “expulsivo”, ora no “‘atrativo”. Além disso, ha polémica quanto a hipétese de ter sido o crescimento demografico da ItAlia, no século passado, o responsdvel pela situago de miséria, levando a emigrag&o aqueles que nao con- seguiam trabalho no préprio pais. Mais recentemente, porém, os autores italianos chega- ram aum acordo, estabelecendo que a emigracdo de massa sé pode ser analisada dentro de um quadro mais amplo — o do crescimento mundial do capitalismo.* As condigées particulares em que a Italia se insere nesse mecanismo a transformaram em uma das maiores fornecedo- ras de mAo-de-obra barata no século XIX. Chega-se, assim, 4 plena compreens&o do que foi o fendmeno emigratério ita- liano: decorreu da expansio do capitalismo, que induziu a (8) E. Sori, L'Emigrazione Italiana dall'Unita alla Seconda Guerra Mondiale. Bolonha, Il Mulino, 1979, pp. 12-20. (6) E. Franzina, La Grande Emigrazione. Veneza, Marsilio, 1976, p. 188; E Sori, op. cit., p. 24; G. Candeloro, Storia dell'Italia Moderna. Lo Sviluppo del Capi- talismo e del Movimento Operaio 1871-1896, vol. V1. Milao, Feltrinelli, 1977, p. 188; E. Sereni, 1 Capitalismo nelle Campagne — 1860-1900. Turim, Einaudi, 1980, pp. 351-69. Digitalizado com CamScanner A ZULEIKA M. F. ALVIM Italia a se desfazer, entre emigrantes temporarios e perma- nentes, de nada menos que “‘vinte milhdes de individuos, entre 1861. 1940, dos quais dezessete milhdes, ou seja, 85%, sai- ram entre 1861 e 1920”.7 Ainda que esses nimeros nao correspondam aos de uma saida definitiva *— neles est&o incluidos os que sairam tempo- rariamente —, vamos porém nos ater ao fato em si: nessas cifras impressiona o peso que a emigragdo representou para.a Italia. Segundo Giérgio Candeloro, nos paises que sofreram um processo de industrializacao rapido e intenso no final do sé- culo XVIII, o incremento demografico e a emigracio repre- sentaram um momento particular dessa transformacio da es- trutura, de basicamente agricola para basicamente industrial. Ea emigraco, por sua vez, cessou quando o nivel de indus- trializago permitiu a absorcaio do excesso de mio-de-obra. Mas nos paises em que o desenvolvimento industrial foi lento ou insuficiente, o incremento demografico e a emigracao se prolongaram. A Italia, sem divida, pertence a esse segundo grupo. Mais do que isso, nas palavras de Candeloro, ‘a emigragio torna-se um fenémeno essencial de equilibrio sécio-econdmico (...) no periodo em que se verificou a decolagem industrial da Italia norte-ocidental, e continuou depois disso como condi- ao necessdria para o desenvolvimento econdmico, devido ao desequilibrio que se estabeleceu entre o Norte e 0 Sul do pais, até hoje nao superado”’.? A expulsio maciga era um fato, permitindo que um autor da época afirmasse: “A emigragao, para a Italia, é uma necessidade. Precisamos que partam de 200 a 300 mil individuos por ano, para que Possam encontrar trabalho os que ficam”. 19 (7) E. Sori, op. cit., pp. 19-20. (8) A perda real da populagao para o periodo considerado (1861-1940) foi de 7,7 milhdes de individuos. E. Sori, op. cit., p. 19. (9) G. Candeloro, op. cit., p. 191. (10) P. Longhitano, Relazioni Commerciali tra Italia e Brasile. Proposta di Tutela del Colono Italiano al Brasile. Genova, Tip. Marzana, 1903, p. 11. Digitalizado com CamScanner BRAVA GENTE! 2 Pafs de territério limitado, a Italia teve, até o inicio do século XIX, sua economia calcada na agricultura. O quadro, porém, era bastante delicado: “Dos 288.538 km? de sua superficie total, quase 2/3 sao cober- tos pelas cadeias dos Alpes e dos Apeninos. Destes, 56.000 km?, no minimo, sao rochosos ou saibrosos, e por isso refrata- rios a qualquer produgo vegetal e nem mesmo os 2/3 restan- tes sio muito produtivos”. 11 Nessas condigoes naturais, a economia agricola demorou a apresentar os sinais do desenvolvimento capitalista. Ainda no periodo da unificagao (1870), varias regides italianas ti- nham caracteristicas feudais e semifeudais bastante acentua- das — era o caso de todo o Sul do pais e parte da Italia se- tentrional. Numa tentativa simplificada de se visualizar a historia da unificacao italiana, pode-se dizer que, na segunda metade do século passado, tendia-se a considerar o Norte do pais como uma mancha industrializada. Ali se praticava uma agricultura de moldes capitalistas, portadora da bandeira progressista e realizadora da unificagdo — enquanto o Sul era retrégrado, com uma economia agricola que ainda guardava aspectos de servidao. Na realidade, “no é sé 0 pequeno proprietario ou o pequeno arrendatério da Basilicata ou da Calabria, que tem, na época da unificacdo, uma ligacdo ainda muito fragil com a economia de mercado, ainda que s6 local. Também o meeiro de regides desenvolvi- das, como a Toscana e a Lombardia, enfrentava o mesmo pro- blema: consumia a maior parte dos produtos do trabalho que nao era obrigado a entregar ao proprietdrio da terra. Isso ex- plica a extrema variedade e interposi¢fio de culturas numa mesma propriedade, o que constitui a caracteristica agron6- mica de grande parte da Italia, mas também representa sério obstéculo ao aperfeigoamento da exploragao, porque cada (11) P, Ubaldi, L'Espansione Coloniale e Commerciale dell'Italia e Brasile. Roma, Tip. Loescher, 1911, p. 135. Digitalizado com CamScanner 2% ‘ZULBIKA M. F. ALVIM camponés deve produzir o seu trigo, as suas verduras, 0 seu cfinhamo, a sua fruta”, Ainda G. Candeloro, analisando as particularidades do caso italiano, observa que: ‘Em todos os paises que se torna- ram capitalistas, houve, ainda que de formas diferentes e mui- tas vezes até de modo incompleto, uma acumulacio origin4- tia, no sentido marxista da expressio (...) que nada mais é do que 0 processo histérico da separagao do produtor dos meios de producio (...)”. Na Italia, porém, esta acumulacdo nao seguiu pari passu o roteiro classico, em que o capitalismo, “tanto na Inglaterra quanto nos principais paises europeus que se industrializaram no século XIX, firmou-se primeiro na agricultura e depois na indistria (...). Na Italia (quando da passagem para a industrializacio), a transformagao capitalista da agricultura tinha sido total numa drea relativamente redu- zida, a planicie padana (...) enquanto em outras regides ela se realizara ou estava se realizando de modo bastante incompleto, dando origem a formas hibridas de relagdes de produgio € nao tinha sequer ocorrido'em vastas regides da Italia meridional nem nas IIhas”."? A unificagao pouco contribuiu para corrigir essas dife- rengas. E, em alguns casos, até as acentuou. O processo de industrializacio apresentou caracteristicas bastante particu- lares, nao podendo absorver a populacio expulsa da agricul- tura, © Esse panorama, no entanto, sé pode ser compreendido dentro do quadro dos acordos politicos que impulsionaram a unificagao do pais e o seu desenvolvimento. E pela composi- Gao de classes, que serviu de fundo a esses episddios, que se pode entender a particularidade do caso italiano e a razio pela qual a expulsao dita “permanente” ocorreu de maneira diferente conforme as regides. E bom lembrar que a burguesia que “executou 0 processo de unificagio nacional levou-o avante através ndo de uma revolucao agrdria — que sozinha teria des- (12) E, Sereni, op. cit., p. 14. (13) G.Candeloro, op. cit., pp. 235, 237. Digitalizado com CamScanner BRAVA GENTE! a trufdo as relagdes semifeudais no campo, liberando-o para o desenvolvimento capitalista —, mas sim através da conquista régia ¢ de compromissos com a velha classe dominante dos gtandes proprietirios fundidrios, semifeudais, cujo poder eco- némico permaneceu praticamente intacto no campo(...). Apés a unificagio, a burguesia industrial e comercial constitui ainda uma parte bastante limitada da classe politica italiana. Sua grande maioria compée-se de grandes ¢ médios proprietarios de terra”, Foram necessdrios muitos anos para que o grupo burgués alcancasse 0 controle politico e econdmico do pais, para que conseguisse dar 0 salto da fase de acumulacao para uma fase predominantemente industrial, obrigando os estratos ape- gados a uma economia de cardter essencialmente agricola a ceder As leis de um mercado cada vez mais internacional. Nesse periodo as classes subalternas foram envolvidas numa cadeia irreversivel de eventos. Nas regides em que a in- dustria se desenvolveu ocorreu a proletarizagéo da mao-d obra expulsa do campo. Onde 0 embrio industrial nao vin gou, deu-se a emigracao tempordria, obrigando pequenos e médios proprietdrios, para se manterem, a enviar um ou mais membros da familia para trabalhar como operario ou mesmo camponés em outros paises, em geral europeus; e, finalmente, a emigracao definitiva, ou dé“‘grande duracao”, manifestou- se nas regides onde os residuos feudais acentuados impediam qualquer mudanga estrutural. Neste caso, a unica saida para oexcedente populacional foi a diaspora. Diante dessas opcdes, era praticamente invidvel uma rea- ¢ao organizada e homogénea. Por isso a resposta politica das classes subalternas italianas tém um cardter aparentemente desconexo. Ela nada mais é do que a resisténcia imediata a situacfo particulares que tinham de ser enfrentadas: no Sul, no primeiro momento, 0 brigantaggio foi uma resposta indi- yidual, rapidamente sufocada; houve greves de massa em (14) E. Sereni, op. cit., pp. 48, 133. (15) Convencionou-se denominar brigantaggio a varias insurreigées de bandos armados, no Sul da Itélia, entre 1861 a 1865 ¢ logo apés a unificagio. Nao tinham ‘uma ideologia clara de oposigdo quanto aos grupos dominantes. Muitas vezes, parti- cipavam das insurreigdes camponesas contra os senhores feudais, mas também insur- Digitalizado com CamScanner 3 ‘ZULEIKA M. F. ALVIM regides onde as relagées capitalistas tinham j4 se firmado no campo — 60 caso, por exemplo, dos movimentos grevistas do Vale Padana, alguns movimentos da Lombardia e Emilia Ro- magna;* e, finalmente, como tiltima resposta, a emigracao, que mesmo sendo uma fuga da miséria cruel que devastava algumas regides da Itdlia, nao deixou de ter um carater poli- tico. Esse aspecto € nitido nas cangdes e poesias populares que acompanhavam os viajantes sem volta — ali se vé claramente que a emigrag4o no era s6 a busca do Eldorado, mas uma recusa em continuar sob a exploracao. O pequeno proprietario véneto E importante agora observarmos atentamente as caracte- tisticas de uma das regides que produziram o maior contin- gente de emigrantes: o Veneto.” Na pratica, esta regio se divide em 4reas de colinas e montanhas, como Vicenza, Treviso, Belluno e Udine, e areas de planicies, como Verona, Rovigo, Padova e Venezia. Ai a divisio da propriedade obedecia o seguinte critério: pequenas e médias propriedades nas regides de montanha e colinas; grandes propriedades, ja com carater capitalista, nas regides de planicie. Os eixos da produgdo eram os cereais e os vinhedos. ‘ A producao se apoiava no trabalho de toda a familia, codificado em vasta gama de contratos que ofereciam, salvo raras excecdes, uma separac&o mais aparente do que efetiva entre as diversas categorias de trabalhadores; ou, como diz siam-se para servir a fins politicos dos grupos detentores do poder, como os Bourbon na época do dominio napoleénico, na Itélia meridional. Varios pesquisadores con- temporneos tém-se esforcado para dar o merecido cariter histdrico a esses movi ‘mentos, pois foram importantes no momento em que ocorreram. Ver para 0 assunto: F. Molfese, Storia del Brigantaggio dopo I'Unitd. Milio, Feltrinelli, 1974 (16) S. Giacobbi. “Agricoltura e contadini nel Cremonese dall’Unita alla fine en in: Braccianti e Contadini nella Valle Padana. Roma, Editori Rivniti, (17) Escolhi o Veneto pela importancia numérica do contingente emigratério fornecido por esta regido a imigragao paulista. Mas considerando a dre setentrions! como um todo, devemos sempre levar em conta a semelhanga das caracteristicas sbcio-econdmicas entre as regides que a constituem. Digitalizado com CamScanner BRAVA GENTE! 29 Secondo Gidcobi, ‘‘constituia uma arma eficiente de poder dos patrées, permitindo a esses toda a espécie de abusos”’. Basicamente, encontramos dois tipos de m&o-de-obra: os que trabalhavam por conta propria, isto 6, pequenos propric trios, arrendatarios ou meeiros, e aqueles que trabalhavam como assalariados, junto aos primeiros ou em grandes pro- priedades. Essa segunda categoria engloba colonos (que nada tém a ver com o que se passou a chamar de colono no Bra- sil),!® encarregados das plantagdes da uva e do trigo ou de ou- tros produtos, carroceiros, administradores ¢ feitores, e, final- mente, os braccianti, que podiam ser fixos ou tempordrios. Na realidade sio os pequenos proprietarios, pequenos arrendatérios ou meeiros que, num primeiro momento, cons- tituem o contingente emigratério. Suas condicdes de vida nos permitem entender por que foram eles os primeiros a abando- nar a Italia. Se observarmos mais atentamente a paisagem yéneta, conseguiremos nos aproximar melhor do tipo de imi- grante que primeiro desembarcou em Sao Paulo. Assim, ape- sar da existéncia da grande propriedade e de um acentuado processo de concentracao da terra, a regido véneta, que nos interessa no periodo inicial da fase expulsora, pode ser carac- terizada do seguinte modo: “O campo é dividido em pequenos lotes onde as fileiras de arvores se agarram as videiras, enquanto os espacos inter- medidrios — de 25 a 40 metros de largura — sao arados e quase sempre cultivados com cereais. O campo assim reflete fielmente, no seu aspecto externo, o regime de produgao im- posto pelas condigdes sociais da regiao. Ela fornece trigo e vinho aos proprietarios, milho aos trabalhadores, lenha aos (18) Colono, ou sistema de Coldnia, na Itilia Setentrional, era uma forma de contrato que habitualmente abrangia familias inteiras. Empregavam-se com peque- nos proprietérios, pagavam aluguel da casa em que moravam e tinham uma parti- cipagdo na produgio da uva ou do trigo — produtos que em geral constavam do contrato. Nao tinham direito a plantar nada que nao fosse estipulad (19) Preferi deixar o termo original braccianti do que traduzi-lo por “traba- Ihadores bracais", uma vez que mesmo essa categoria, a mais explorada de todos os trabalhadores rurais, apresentava uma diferenca sutil entre os braccianti obrigados ou fixos, que estavam ligados A propriedade mediante um contrato anual, e os brac- cianti tempordrios, que sé trabalhavam nos momentos de grande necessidade de mio- de-obra, recebendo por dia ou por cota. Digitalizado com CamScanner » ZULEIKA M. F. ALVIM dois e pouquissima forragem aos animais que, no entanto, devem arar e adubar o terreno ja tio depauperado”.” Sio essas as caracteristicas que fazem do camponés vé- neto quase um produtor auto-suficiente. E bom lembrar que o trabalho agricola vinha quase sempre associado ao da indis- tria doméstica de tecidos ou de palha. E, nos seus habitos milenares, era a pequena propriedade que lhes dava uma ilu- s&o de independéncia, nao mais possivel depois da unificacao. As familias vénetas contavam com doze ou até quinze ele- mentos ao todo. Normalmente com dois ou trés homens e suas respectivas mulheres e filhos aptos ao trabalho. Todos viviam do pequeno nucleo de terra que lhes pertencia. O pai era a autoridade m4xima e o grupo se mantinha unido enquanto a propriedade fornecia os recursos necess4rios 4 manutengio. Quando o pai nao podia mais manter o controle, era substi- tuido pelo filho mais yelho. Os homens normalmente casa- yam-se depois do servico militar, isto é, entre 24 e 25 anos e as mulheres entre 19 e 23 anos. Normalmente, os homens as- sumiam o compromisso de casamento antes de partirem para o exército e cumpriam-no assim que voltavam. Na escolha da mulher, movia-os, antes de tudo, a qualificagao fisica, pois nao podiam esperar grande coisa como dote. Alias, 0 que es- peravam era um braco a mais para o trabalho e esse objetivo, em geral, foi alcangado.”" Toda a populaciio, desde os mais abastados aos mais po- bres, alimentava-se basicamente de polenta. Nas mesas mais (20) M. Berengo, “L'Agricoltura veneta dalla caduta dalla Repubblica all’ Unita”, ct, in: G. Candeloro, op. cit., p. 196. (21) Atti della Giunta per la Inchiesta Agraria e sulle Condizioni della Classe Agricola (AGIA), vol. V, t. II, pp. 286, 635-639; vol. VI, p. 311, Roma, 1882. A Inchiesta Agraria foi um amplo levantamento feito em toda a Italia, entre 1877 ¢ 1880, e teve por objetivo mostrar ao Parlamento a situago do campo italiano, exa- tamente no momento de sua maior crise econdmica. Na preparago ¢ em seu desen- volvimento, duas tendéncias se opuseram: uma de A. Bertani, que propunha um Jevantamento sobre as condigdes naturais e morais dos camponeses; a outra, susten- tada por S, Jacini, que pretendia um estudo sobre a situagdo estrutural da agricultura que acabou prevalecendo. Devido a esse embate, surgiram desequilibrios ¢ desigual- dades, acentuadas por opinies ¢ valores diversos, adotados pelos varios autores das Telagdes monograficas. No entanto, os quinze volumes dos Atti della Giunta per la Inchiesta Agraria e sulle Condizioni della Classe Agricola, mesmo com esses de! limitagSes, oferecem um quadro, ainda hoje iti, da agricultura italiana, no pri pio do século passado. Ver G. Candeloro, op. cit., vol. VI, pp. 213-4. Digitalizado com CamScanner BRAVA GENTE! 31 fartas havia também peixe, ovo, salame, verduras, mas mes- mo aqui raramente se comia carne — quando comiam era de porco, carneiro ou cabrito: a carne de vaca ficava reservada para os dias de festa ou quando se adoecia. Também raramente se consumia pio de farinha de trigo, e fresco s6 na época da colheita do trigo. O macarrao, para nés, brasileiros, tao ligado 4 imagem do italiano, era um luxo poucas vezes permitido. O vinho aparecia durante a colheita da uva, quando se consumia alguma bebida; depois desse pe- riodo usavam o “‘vinhete’’, espécie de vinho de qualidade infe- rior resultante da segunda prensagem das uvas com Agua. Esta dieta era possivel aos pequenos proprietarios que ti- yessem, em média, seis pessoas sob sua responsabilidade. Estes podiam gastar normalmente duas ou trés liras didrias com alimentos. No entanto, as familias eram bem maiores, com dez ou doze pessoas, que deveriam dividir essas mesmas duas ou trés liras didrias. A partir disso, é facil visualizar as condigdes precarias em que viviam. As casas tampouco ofereciam espetaculo melhor. Eram “casebres baixos, cheios de frestas, caindo aos pedagos, que deixavam transparecer, pelos buracos usados como janelas e pelas fissuras dos muros, a mais triste miséria; no interior, poucos comodos imundos, onde se chega por escadas precérias e que quase desmontam sob o peso do corpo (...), as paredes revestidas de p6 secular, enegrecidas e timidas pelas chuvas que descem livremente do teto, infiltrando-se entre as pedras; © chiio do térreo é de terra ou de pedras mal ajustadas, aqui e ali arrebentadas ou incompletas; o plano superior é formado por tabuleiros bamboleantes, as pequenas janelas onde nor- malmente faltam os batentes sio tapadas por vidros ou folhas de papel, os tinicos méveis so um leito ou dois sobre cavaletes, um bat e os utensilios indispensdveis para a cozinha e a agri- cultura. Alguns santos vermelhos ou azuis, algumas vezes um calendario (...) 0 mamero de cémodos de uma casa é varidvel, mas sempre muito inferior as necessidades da familia (.) cada quarto serve a trés ou quatro pessoas, (.) dat a coabitacio forcada (...). Eis, a propésito, como se distribuem as familias camponesas nos seus quartos (...) 0s filhos, até que nao atin- jam a idade de casamento, ou se casem realmente, dormem no ‘mesmo quarto que os pais e muitas vezes no préprio leito, por Digitalizado com CamScanner 322 ‘ZULEIKA M. F, ALVIM isso os mistérios da geragio deixam muito cedo de ser misté- trios. As mogas dormem com os pais ou com alguma velha da casa, ou mesmo com um irmao menor, donde nfo so raros os incestos! (,..) O leito mais comum é uma enxerga ou um catre cheio de casca de milho, mais raramente, de palha. Quem pode, coloca sobre a palha um colchdo de 14 ou pluma. O cha- mado ‘banheiro’ nao existe, o hAbito é fazer as necessidades corporais no modo que Mantegazza chama ‘poético’, mas que por mais que contenha a luz do sol — ou do astro prata — e as caricias da livre aragem, nao deixa de ser, por isso mesmo, anti-higiénico para a medicina, indecente para a limpeza e ainda librico para a moral (...). Assim como descrevemos so quase todas as casas dos trabalhadores da terra”. Evidentemente, as duras condigdes de vida e a escassa alimentacdo, somadas a falta de higiene, traziam conseqiién- cias graves para a satide. A pelagra, por exemplo, era uma tortura permanente. Doencas como a escr6fola, 0 raquitismo ea bronquite também alcancaram indices elevados. As roupas, tanto dos homens como das mulheres, eram grosseiras, feitas em geral de algodao ou de 14 mista. No in- yerno, os homens usavam capotes pesados de 1a, e as mulheres usavam xales, também de 14. A grande maioria caminhava e trabalhava descalga; sé no inverno cobriam os pés com toscos tamancos, feitos com sola de madeira e, nas regides mais frias, forrados com uma 1a qualquer. Toda a roupa era praticamente tecida em casa, desde suas grosseiras meias de 14 ou de algodao cru, até os véus usados pelas mulheres na igreja aos domingos. Seus sapatos € tamancos também eram de confeccio caseira. Na verdade, as condigdes de vida dos pequenos proprie- tarios, arrendatérios e meeiros em nada ou quase nada diferia das condicées dos braccianti. (2) Cit. in: E. Franzina, op. cit., p. 190; L. Carpi, Delle Colonie e dell’ Emigrazione d'Italiani all'Estero sotto l'Aspetto dell'Industria, Comercio, Agricol- ‘ura e Contrattazione d'Importanti Questioni Sociali. Miléo, Tip. Editrice Lombat- da, 1874, p. 50. Os dados sobre alimentos foram extraidos da AGIA, op. cit., vol. IV, Pp. 150-60; vol. V, pp. 278-9, 283-5, 651-5; vol. V1, pp. 308-9. L. Bodio, “Dell ‘emigrazione italiana ¢ della legge 31 gennaio 1901 per la tutela degli emigrati”, in: ‘Nuova Antologia. Roma, 37 (731): 399-640, junho de 1902. Digitalizado com CamScanner BRAVA GENTE! 33 Embora possuissem um pequeno pedaco de terra ou certo capital para arrendar uma 4rea de cultivo, nao estavam auto- maticamente excluidos da condig&o de braccianti ou de qual- quer outra categoria durante parte do ano. Muitos eram obri- gados a trabalhar nessas condicdes em outras propriedades, erara era a familia de pequenos proprietarios ou meeiros que nao tinha filhos trabalhando como braccianti nas grandes fa- zendas, ou filhas operarias nas mintsculas industrias artesa- nais da vizinhanga. Entre os pequenos proprietarios agricultores, tanto nas montanhas como em outros lugares, o habito de dividir a terra quando os filhos se casavam comegara ha muito tempo. E, dentre os varios problemas que a pequena propriedade de- frontou nesse periodo, este 6 um dos principais motivos da sua divisdo ou enfraquecimento. “Belluno, Treviso, Udine e Vicenza, as grandes dreas ex- pulsoras do Veneto, até 1885, constituidas predominante- mente de montanhas e colinas, apresentam ‘um proprietario para cada dois habitantes em Udine; um para cada trés em Belluno; um para cada quatro em Vicenza’”’,” portanto, pro- priedades insuficientes para manterem uma familia, ainda menor do que as aqui descritas. Nem os imigrantes meridionais que se dirigiram para Sio Paulo até 1885 apresentavam caracteristicas diferentes: “Nos primeiros anos (1876-1882) a massa emigratéria cala- bresa, constituida quase totalmente de gente de Cosenza, di- rige-se em grande parte para o Brasil (...) e observando-se os {indices oficiais (..) alta a vista a predomindncia de pequenos proprietdrios e pequenos arrendatarios E quero acrescentar, no panorama aqui descrito, a au- séncia de melhorias técnicas na agricultura, os impostos pesa- dos, a alteragao das condi¢des naturais — como devastagao de florestas que modificaram o regime pluvial, provocando inun- (23) B. Franzina, op. cit., p. 135. (24) D. Taruffi, L. de Nobili e C. Lori, La Questione Agraria ¢ l'Emigrazione in Calabria Note Statistiche ed Economiche. Florenga, Tip. Barbera, 1908, pp. Digitalizado com CamScanner 4 ‘ZULEIKA M. F. ALVIM dagdes nas regides de planicie e escassez de chuvas nas regides de colinas e montanhas —, a explosio demografica, impossi- vel de ser absorvida pela economia italiana, 0 lento desenvol- vimento da indistria — fatores que R. Foester, autor bastante utilizado por aqueles que se dedicaram a andlise da imigracaio italiana na historiografia brasileira, coloca como causa da Ita- lia ter se tornado uma das maiores fornecedoras de mio-de- obra.* Composto esse quadro, pode-se compreender por que algumas regides italianas, e o Veneto em particular, se desta- caram e por que a pequena propriedade se tornou sindnimo de pobreza. Completando o cendrio, no plano internacional, cabe ci- tar a chamada crise agraria ou a “grande depressio”, como preferem chama-la alguns, que durou de “1873 a 1895 e re- presentou a passagem do capitalismo individualista da idade da livre concorréncia ao capitalismo monopolista da idade do imperialismo”.* Foi um periodo de lutas acirradas pela dis- puta dos mercados consumidores que, atingindo a Italia num momento dramiatico e caético da sua unificacao politica, nao poderia causar outro tipo de impacto. Foi a agricultura em particular que sofreu os golpes mais duros, sob a concorréncia de produtos similares. A oferta do trigo americano e russo a Precos muito inferiores ao custo da producio italiana, fez com que 0 cultivo desse cereal entrasse em decadéncia, arrastando consigo outros produtos basicos da agricultura local como mi- lho, arroz e éleo, cujos precos também nao se mantiveram. Em conseqiiéncia, o pequeno produtor agricola perdeu a sua fatia no mercado interno e comegou a deixar o campo, batido pelos competidores mais poderosos. Nas regides economica- mente mais firmes, naquelas onde as relagées capitalistas ti- nham penetrado no campo e onde a industria ja se implantara — parte da Lombardia, Liguria e Piemonte —, esse processo de proletarizacao deu lugar a uma expulsdo temporaria. No Veneto e na Italia meridional, a proletarizacao tornou-se sind- nimo de expulsao. (25) R. F. Foerster, The Italian Emigration of our Times. Nova lorque, Rus- sel & Russell, 1968, * (26) G. Candeloro, op. cit., p.9. Digitalizado com CamScanner BRAVA GENTE! 35 Em 1882 — 0 jornal L’Amico del Popolo destacou que mais de 20 mil pequenos proprietarios desapareceram dos ca- dastros da Italia e que certamente a maioria, sen4o todos, teria emigrado para a América.” Os vénetos “‘ndo saem com a esperanca de voltar, como os do Sul. Saem se desfazendo de tudo, de seus animais e dos parcos utensilios domésticos; partem depois da colheita do trigo, no outono, entre setembroe novembro”.” Adicionam assim ao escasso pectilio obtido com a venda de seus bens, 0 produto da venda dos géneros agricolas. Sao esses imigrantes que compéem o primeiro contin- gente de trabalhadores em Sao Paulo. No entanto, sob a insis- téncia de que o regime de colonato no Brasil reduziu todos os imigrantes a um mesmo padrao — as caracteristicas peculia- res desses primeiros imigrantes foram esquecidas. Esse nivela- mento, porém, aconteceu apenas nos limites dos contratos de trabalho, que desconsideravam quaisquer aspectos indivi- duais. Assim, se, enquanto contrato de trabalho, o regime de colonato realmente diluiu as diferencas exteriores entre arren- datarios, meeiros e outros, nao destruiu, de imediato, a orga- nizagio interna da familia, seus habitos culturais, enfim, seus valores de gente da terra e que, para alguns, garantiu a dife- renciagio face aqueles que entraram apés 1886. A partir desta data, as caracteristicas dos imigrantes mu- dam significativamente. Os imigrantes setentrionais ainda predominaram até 1902, mas eram bem diferentes do que des- crevemos até aqui sobre as familias que aportaram no Brasil nesta segunda fase. Os braccianti setentrionais A crise européia dos precos agricolas chegou ao auge, na Itlia, entre 1880 € 1887, determinando uma proletarizacio (27) “S.P. L’Emigrazione”, in: L’Amico del Popolo, 21-5-1882. Cit. in: E. 136, Franzina, op. cit., p. 136. (28) F. S. Nitti, L’Emigrazione Italiana e i Suoi 1888; E. Belli, Note sull'Emigrazione in ‘America dei Cont viso. Oderzo, Tip. Bianchi, 1888, pp. 45. Awersari. Trim, Tip. Roux, itadini della Provincia di Tre- Digitalizado com CamScanner ae >| 6 ZULEIKA M. F. ALVIM acelerada das camadas camponesas. As regides que mais con. tribufram com a emigracio para o Brasil nao contavam com indistrias suficientes para absorver trabalhadores e a conse. qiéncia natural foi sua transformagao em proletérios rurais, os braccianti. Aqui, também faltam nimeros absolutos, pois segundo Emilio Sereni a classificagdo social adotada nos censos italia- nos apresenta incongruéncias absurdas. Basta dizer, por exem- plo, que em regides como a Emilia Romagna e a Lombardia, entre 1881 e 1900, o proletariado agricola de massa avolumou- se, Apesar disso, os censos mostram uma forte diminuigéo do mesmo. O problema é que os censos reuniam indistintamente categorias como braccianti, pequenos proprietarios, pequenos arrendatérios e outros trabalhadores agricolas. No entanto, diz A. Lazzarini que no censo de 1881 os braccianti comecaram a ser contados separadamente. Anali- sando Polesine (Rovigo), uma das provincias vénetas que mais forneceu emigrantes ao Brasil, vé-se que em 1881, do total de 217.700 habitantes, 35,44% da populacao estava classificada como diarista e que no censo de 1901, dos 221.904 habitantes, 53% tinham passado a essa categoria.” Na Lombardia, nas regides de Mantova e Cremona, que tiveram maior peso na emigracao, a situacdo nao era dife- rente. Em Mantova, por exemplo, dos 193.084 habitantes re- censeados em 1881, 61 mil estavam na categoria de contrata- dos por um ano, os pequenos proprietrios e os arrendatarios, isto é, individuos que trabalhavam a terra por conta propria e pe mil, ou seja, quase 0 dobro eram considerados “diaris- | Apesar dessas distorgdes apresentadas pelos censos ita- lianos na classificag4o dos grupos ligados a terra, os exemplos Particulares nao deixam divida quanto ao crescimento acele- rado do proletariado agricola, que s6 desejava “pio e traba- (29) A. Lazzarini, Campagne Ve igrazic i Vk is agne Venete ed Emigrazione di Massa (1866-1900) woot Istituto per le ricerche di Storia Sociale ¢ di Storia religiosa, 1981, pp. 292 (30) C. Forti, “Le leghe i , 1 1904, GO) C; Forti, “Le leghe contadine mantovane dal 1898 allo siopeo, p.393, 7 Pracciatie Contadini nella Valle Padana. Roma, Editore Rivniti, 197 Digitalizado com CamScanner BRAVA GENTE! 37 tho”, j4 que a propriedade da terra, embora almejada, sobre- tudo no Veneto, deixara hA tempo de ser uma possibilidade. O processo de concentragiio da propriedade nessas Areas obedeceu a critérios muito proximos. As regides de planicie, sujeitas a inundagoes e endemias, careciam de saneamento e de canalizacées. “Mas, ironicamente, esse mesmo processo de saneamento aca- bou sendo causa indireta do aumento da miséria, pois, ao se delimitarem as fazendas apés o saneamento, as populagées vi- zinhas perderam os direitos coletivos sobre aquelas terras: no podiam mais pescar nem recolher as fibras com que teciam seus cestos. E como também compunham a mio-de-obra do proprio saneamento, terminados os trabalhos perderam sua funcgaio”. Estes também acabaram por engrossar as fileiras dos diaristas ou auténomos. Comparando as duas categorias de braccianti, a dos con- tratados anualmente e a dos diaristas, verifica-se que as con- digdes eram melhores para os primeiros: seus contratos, na mesma fazenda, eram anuais, e eles dedicavam-se ao trabalho no campo ou no trato dos animais. Segundo Camilla Forti, tinham trabalho assegurado durante o ano, alojamento na fa- zenda, uma mindscula horta gratuita e a possibilidade de criar galinhas e porcos; suas mulheres ainda podiam trabalhar como diaristas na mesma fazenda e recebiam uma retribuigao A parte, o mesmo acontecendo com os jovens (...). Estes ‘privi- légios’ implicavam, por outro lado, uma relagao de tipo feudal com a fazenda: ligados com sua familia a terra, nao tinham sequer um dia de repouso, nao podiam deixar a propriedade sem permissao do patrio e deviam obedecer todas as ordens”, Com os diaristas era pior: sem contratos, “nao tinham nenhuma seguranca e ficavam inteiramente submetidos as condigdes do mercado, vendendo por dia sua forga de traba- tho”. Como tinham servigo apenas nos periodos de grande de- manda de mio-de-obra, na maior parte do ano ficavam sem rendimentos. E. Sori fornece a média anual de dias de traba- tho dos diaristas em algumas localidades da Italia setentrio- Digitalizado com CamScanner

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