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marxista < fy A critica da economia politica: teoria e atualidade Doss MAURICIO C. COUTINHO*” 1. Atualidade em que sentido? Nas recorrentes discussées sobre a atualidade da critica da economia poli- tica, o termo “atualidade” é utilizado em dois sentidos, distintos e ndo-conver- gentes, que transparecem nas interrogagGes usuais: a) a formulagéo de Marx € capaz de explicar 0 capitalismo atual?; b) qual a compatibilidade entre a criti- ca da economia politica e a teoria econdmica contemporanea? A primeira interrogacao dirige-se, no essencial, & adaptabilidade e ao po- der descritivo da teoria de Marx, tendo em vista as profundas modificagdes do capitalismo e a variedade de tajetérias das economias capitalistas. A questao nao é descabida. Afinal, em O Capital, temos exposta uma teoria do capitalis- mo bastante referida a industrializagdo origindria. Por outro lado, e a despeito da profusio de ilustragdes histéricas, Marx se propés a elaborar uma teoria geral do capitalismo, de cardter eminentemente légico-conceitual. Para con- fundir ainda mais 0s leitores, O Capital é uma obra inacabada. A inconclusao do livro II, em particular, deixa em aberto diversos enigmas sobre a tessitura real daquelas se¢Ges que, por se “aproximarem a superficie”, mais favoreceriam ilagGes e aplicagGes. A atitude de impugnar a atualidade da economia marxiana porque “o capi- talismo mudou”, na verdade, faz pouco de uma obra que, por se pretender uma teoria geral do capitalismo, calcada em nog6es to gerais como mercado- tia, dinheiro, capital, possui um status supracircunstancial. Se um dos propé- sitos do sistema de Marx é 0 de explicar as mudangas econémicas, vai impli- cita a aptiddo para descrever as transformagées do capitalismo. Com isso, * Professor do Instituto de Economia da Unicamp. 122 © A CRITICA DA ECONOMIA POLITICA: TEORIA E ATUALIDADE uma eventual incompatibilidade com os fatos atuais significaria uma falha basica da teoria, e néo uma inocente inadequagao produzida pelas modifica- g6es da economia. Na auséncia de aplicagGes a situagdes econdmicas concretas, 0 contraste com a teoria politica é sugestivo. As andlises politicas de Marx podem dar margem a intermindveis polémicas, mas as dissensdes nao obscurecem a au- toridade tinica de textos como O 18 Brumdrio e Lutas de classe na Franga, os quais propiciam uma interpretago autoral de primeira mio sobre o fenémeno politico, em contextos hist6ricos bem determinados. Nada de semelhante existe em economia.! Enfim, por uma raz4o ou por outra — pela natureza l6gico-conceitual de O Capital, pela escassez de andlises econémicas aplicadas do préprio Marx, pelas intimeras mediacdes necessdrias na passagem de uma teoria geral do capitalismo aos casos concretos — os questionamentos a adequagao da critica da economia politica aos fatos atuais levam a um debate intermindvel e pouco produtivo. J4 a segunda interrogagao, que se refere a atualidade teérica da critica da economia politica, é mais frutffera e objetiva. Levando-se em consideragao que nos mais de cem anos que transcorreram desde a redagdo de O Capital muita 4gua correu sob a ponte da teoria econémica, cabe perguntar se a (geral- mente admitida) incompatibilidade entre o marxismo e a moderna teoria eco- némica nao representa uma prova concreta da impropriedade daquele. Para ficarmos no terreno popperiano da selegao de teorias, a quase absoluta incompreensiio de Marx pelos pensadores atuais nao evidenciaria, no fundo, seu fracasso no processo seletivo proprio A evolucao cientifica? Antes de prosseguirmos no caminho da comparaciio de teorias, é impor- tante reconhecerem-se algumas dificuldades preliminares. Para comecar, O Capital é uma obra rigorosamente incompardvel, no exato sentido que ne- nhum outro economista, apés Marx, aventurou-se a escrever uma “teoria ge- ral do capitalismo”. A amplitude do empreendimento em parte se prende ao espirito da época, e nao sem razio se diz que Marx foi o ultimo dos iluministas. E uma nogao de senso comum a de que 0 conhecimento enciclopédico e a fundamentacio filoséfica deixaram de ser exigéncias do pensamento econd- mico no século XX. Adicionalmente, Marx foi também o tltimo dos hegelianos. Para o bem ou para o mal, a filosofia deste século (para nao falarmos da economia) afas- ‘Talvez a posicao de Marx sobre as controvérsias e as crises monetérias do século XIX atinja um grau aproximado de acuidade e aplicacao. No entanto, a seco V do Livro Ill de O Capital, em que se encontra a maior parte dessas discusses, é bastante inacabada, CRITICA MARXISTA © 123 tou-se da tradicio dialética, o que torna problematica a simples compreensao de O Capital pelos estudiosos contemporaneos. Finalmente — e ainda nas preliminares — é importante assinalar que a teo- ria econémica deste século afastou-se nao s6 de Marx como da economia politica classica. A ruptura com Ricardo e com a teoria do valor baseada nos custos de produgao foi um dos propésitos manifestos da revolucao marginalista. Muito do que aparece como incompatibilidade entre o pensamento econdmi- co moderno e o marxista € apenas um reflexo desta ruptura com a tradigao de Smith e Ricardo, 4 qual Marx estava inteiramente referido. Reconhecidas essas dificuldades, acredito que a comparaciio de sistemas te6ricos oferece uma boa alternativa para a recuperagao da pertinéncia, da propricdade e da atualidade das contribuigdes de Marx. A titulo de antecipa- cdo, é bom esclarecer que por detras deste ensaio estao dois pressupostos criticos: em primeiro lugar, a argumentagao assume a relevancia da teoria econémica deste século (0 que significa nao rejeitar in limine a economia neoclassica); em segundo lugar, por nao se tratar de um exercicio em exegese, as contribuigdes de Marx serao utilizadas com extrema liberdade. Nao preten- do fazer uma defesa de tais pressupostos, cuja adequacao poderd ser mais bem. aferida ao longo do texto. 2. O pensamento econdmico classico Acima foi dito que muitas das criticas a Marx se devem & rejeigao ao padriio classico de pensamento econdmico. Sem obscurecer as dessemelhancas entre Os autores, e sem a menor pretensdo de expor uma tipologia acabada do pensamento econdmico classico, acredito que podem ser encontrados alguns tragos comuns no amplo arco que vai dos fisiocratas a John Stuart Mill. Trés destes tragos sao: a) A economia politica classica pressup6e uma (ou diversas) ontologia(s) do ser social. As concepgées de natureza humana presentes no empirismo naturalista dos fisiocratas, nos moralistas escoceses (Hume e Smith), no utilitarismo de John Stuart Mill, projetam suas sombras nas respectivas teorias do valor e do capital. A teoria do valor trabalho, em particular, foi uma herdeira direta do jusnaturalismo, capaz de atravessar 0 pragmatismo da teoria ricardiana dos custos de produg&o e se projetar até Marx. Em suma, os principais sistemas econdmicos classicos pressupd6em concep- gdes filoséficas do homem e da sociedade econémica. 2 Coutinho, Mauricio. Ligdes de economia politica cléssica. S40 Paulo, Hucitec, 1995. 124 * ACRITICA DA ECONOMIA POLITICA: TEORIA E ATUALIDADE b) Os economistas classicos estéo preocupados, fundamentalmente, com as “Jeis de movimento”, descritas por meio das relages entres grandes agre- gados e categorias econémicas, como lucros, saldrios, renda da terra. Nao se trata de uma simples coincidéncia Smith, Ricardo e Marx terem se preocupado com a tendéncia declinante da taxa de lucro, assim como nao € ocasional a insergao da dinamica da renda da terra no centro da teoria ticardiana dos lucros. A preocupagao com as leis de movimento transfor- ma as principais teorias classicas em grandiosas macrodinamicas. Por sua vez, existe relagio entre as macrodindmicas classicas e a idéia de que a sociedade capitalista pode ser descrita por uma estrutura bdsica de classes sociais economicamente definidas, uma visio codificada por Adam Smith. A nogio de classes sociais (grupos sociais definidos pela posic¢io econéd- mica dos individuos) é indissocidvel da economia politica cléssica. c) Finalmente, e relacionado ao anterior, os economistas cléssicos ttm como horizonte a acumulagao do capital. Isso significa que nao é a utilidade, a demanda ou as preferéncias dos consumidores o ponto de referéncia da teoria econémica. Mais ainda, embora ter como horizonte a acumulagao no leve a uma rejeig&o 4 microrracionalidade, implica a adogdo de uma microrracionalidade prépria, compativel com as concepgGes de acumula- io e classes sociais adotadas pelas teorias. A microrracionalidade classi- ca é bastante distinta da que viria a caracterizar a economia neoclassica. Mais do que qualquer outra diferenga, a ruptura com esses trés pontos, presentes nos economistas classicos e em Marx, é 0 que determina a dificul- dade de didlogo entre a teoria econdmica moderna e 0 marxismo. 3. Marx e a historicidade das categorias econdmicas Em relacao 4 historicidade das categorias econémicas, indiscutivelmente existe uma ruptura fundamental entre a teoria econdmica moderna e o marxis- mo. Alias, este também foi um ponto de ruptura entre Marx e os economistas classicos. A critica de Marx 8 elis&o da histéria nos diversos sistemas econdmicos e filos6ficos passa por ao menos duas dimensGes. Por um lado, Marx pretendia criticar a “naturalizagio” das categorias econdémicas, efetuada pelos econo- mistas. Para ele, a concepgdo de natureza humana da economia politica, a despeito de sua atemporalidade e aspiragao a generalidade, representaria nada mais do que uma condensacao da visaio de mundo burguesa, historicamente datada. A elistio das relagdes sociais burguesas provocaria uma mistificagiio das categorias econ6micas, em particular da nogdo de capital. Marx entende que o capital é uma relaco social historicamente determinada e nao um sim- ples instrumento ou meio de produgao. A diferenga fundamental entre 0 arco- CRITICA MARXISTA # 125 e-flecha do selvagem primitivo e 0 equipamento industrial moderno reside em ser este ultimo fruto do trabalho assalariado. Por outro lado, ao fundar o real na histéria, Marx estabeleceu um contras- te com a dialética hegeliana, que via no movimento das idéias a realizagaio do absoluto. O andlogo marxiano ao absoluto de Hegel — 0 capital — é uma rela- cdo social historicamente fundada.* A histéria, portanto, cumpre um papel fundamental na transposigo da dialética, de Hegel a Marx, com amplas con- seqiiéncias na teoria do capital. O importante aqui nao é discutir o papel da histéria em Marx, e sim ressal- tar a distingaio entre a determinagio histérica das categorias econémicas e da propria vida social, algo pertinente an marxismo, e qualquer tipo de determinismo histérico. Essa é uma distingio to mais importante quando se leva em considera- ao a consolidagiio do moderno entendimento de que a teoria econdmica é, sobre- tudo, uma “Idgica da escolha”. Curiosamente, esse entendimento moderno propi- cia aretomada da critica liberal classica, conforme a qual o materialismo histérico subentende uma visdo determinista e totalitaria da vida social, por tornar todas as decorréncias histéricas previsiveis, ou justificdveis.* Ao ser incompatfvel com a indeterminagio histérica e com a subjetividade das escolhas, o marxismo nao ofereceria, de acordo com os criticos liberais, qualquer perspectiva de se conver- ter em substrato de um sistema politico livre. Para nds, a questao fundamental é menos a da liberdade politica do que a de determinar em que medida é possfvel conciliar a visio histérica de Marx com o pressuposto de subjetividade dos agentes, paradigmitico na teoria eco- némica moderna, Mais ainda, em que medida se pode compatibilizar o pres- suposto da subjetividade com uma concepgiio econémica baseada em classes sociais? Admitindo-se a estruturagio da sociedade em classes sociais, qual o significado de escolha? Acredito que o desenvolvimento dessas questées per- mite um grande avango no entendimento das diferencas e das possibilidades de didlogo entre a teoria econémica de Marx e a moderna. 4, Teoria econémica moderna Antes de prosseguirmos na exploragao das questées acima colocadas, con- vém fazer um sumario de caracteristicas da teoria econémica deste século, com 0 objetivo de evidenciar t6picos de natureza metodolégica nos quais o contraste com o sistema de Marx fica mais evidente. Sob essa exclusiva pers- pectiva, a teoria econdmica moderna pode ser caracterizada por: ? Miller, Marcos. “Exposi¢ao e método dialético em O Capital". Boletim SEAF-MG, n. 2, 1982. “Berlin, |.. “Historical inevitability”. Four Essays on Liberty, Oxford, Oxford University Press, 1969. 126 © A CRITICA DA ECONOMIA POLITICA: TEORIA E ATUALIDADE a) Racionalidade e escolha racional. A teoria moderna pauta-se no pressu- posto de racionalidade dos agentes. O problema econémico fundamental é justamente o da escolha dos individuos, presumindo-se um comporta- mento racional. No entendimento dos criticos, o sistema de Marx seria estruturalista, no exato sentido de atribuir aos agentes um papel.> A atri- buicao de papéis, ou de modelos comportamentais pré-definidos, colide com primado da escolha, que pressup6e a indeterminagao. b) Relacionado ao anterior, a importancia do individualismo metodoldgico. A unidade de referéncia da teoria econémica é 0 individuo (0 consumi- dor, 0 produtor), j4 que tanto a nogo de escolha quanto os pressupostos de racionalidade assumidos sio incompativeis com grupos, classes, estamento etc. c) Aeconomia como ciéncia prescritiva. Os economistas véem a sua ciéncia nao como descritiva, mas, fundamentalmente, prescritiva. O fato de essa nao se constituir em uma caracteristica da ciéncia, e sim em uma decorréncia do crescimento do raio de agao dos governos e da importancia da politica econ6mica, nao altera a profunda assimetria que existe entre a perspecti- va de Marx — elaborar uma teoria geral do capitalismo, na forma de uma critica 4 ciéncia econémica estabelecida de seu tempo — e a dos econo- mistas profissionais modernos — propor, prescrever, aconselhar. E claro que o dominio da ética prescritiva tem mais a ver com a profis- sionalizacgao da pratica econdmica e com o conservadorismo a ela inerente do que com as caracteristicas intrinsecas da ciéncia. Trata-se de um fendmeno telacionado 4 sociologia da ciéncia, mas nao deve ser desconsiderado, pois uma parte do ruido entre a moderna teoria econémica e 0 marxismo decorre de uma cisao “profissional”: enquanto os tedricos modernos sao, no mais das vezes, “cientistas praticos”, os economistas marxistas aparecem como profe- tas do apocalipse, sem maiores compromissos com a manutengao ou aperfei- coamento do sistema. Elster, John. Marx Hoje. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. CRITICA MARXISTA © 127 5. Classes sociais, subjetividade, determinagao Se as caracterizagées anteriores da economia marxista e da teoria econ6- mica moderna estiverem corretas, as maiores discrepancias, ou maiores difi- culdades de se estabelecer um territério comum de didlogo, estariam localiza- das em um conjunto de disjuntivas dramaticas: individuo versus grupo (clas- ses) como agente econdmico relevante; indeterminacio versus determinagao histérica; escolha e racionalidade individuais versus desconsideragéo da racionalidade individual. Sob a 6tica da teoria econdmica moderna, as “leis de movimento” da economia classica e do marxismo seriam anacrénicas em to- dos os trés aspectos, j4 que se referem a classes e/ou a grandes agregados econémicos, ignoram a microrracionalidade e sao deterministas. O problema é que essas disjuntivas dramiaticas, que correspondem a uma visdo-padrao em histéria do pensamento econémico, fazem tdbula rasa de filigranas que conferem precisio e, simultaneamente, flexibilidade aos siste- mas te6ricos. E nessas filigranas que residem as melhores possibilidades de intercomunicagao entre os sistemas. Aretomada de algumas das caracterfsticas do sistema de Marx assim como oestabelecimento de uma diferenciagao fina entre os sistemas cléssico e marxiano permitem a abertura de um espago de comunicagio entre os sistemas teéricos que pode contribuir para um reconhecimento comum, sem ofuscar as distingdes cruciais. Uma exposicdo e reinterpretagao liberal de trés nogGes basicas no sistema econd- mico de Marx — classes sociais, subjetividade, determinagio — talvez possa faci- litar, se nao a derrubada, o realinhamento das paligadas. a) classes sociais Nesse ponto, hd pouco a acrescentar. A visio de Marx €é a mesma de Smith, Ricardo, e, com nuances, dos fisiocratas, Todos esses autores identificavam a estrutura nuclear da sociedade econémica capitalista com as trés categorias de agentes, detentores de “rendas origindrias”: capitalistas, trabalhadores e pro- prietarios fundidrios. Para a teoria econ6mica, a quest’o crucial é menos a acuidade histérica da descricao do que a utilizacao, particularmente por Ricardo e Marx, da oposiciio entre saldrios e lucros como o micleo dos modelos de acumu- lagfio. No caso de Marx, a oposigao entre salarios e lucros (na particular forma de uma “teoria da mais-valia”) chega a ser 0 elemento central da teoria do capital. Polémicas sobre a existéncia de uma taxa salarial nica, ou sobre a heterogeneidade da forga de trabalho, so absolutamente secundarias, no con- texto.° O pressuposto de determinac&o dos saldrios no 4mbito de subsisténcia © Baumol, W.. “The transformation of values: what Marx ‘really’ meant (an interpretation)”. In: Journal of Economic Literature, 12, march 1974. 128 © A CRITICA DA ECONOMIA POLITICA: TEORIA E ATUALIDADE e de taxa salarial uniforme é uma simplificagio aceitavel e, principalmente, compativel com os modelos de acumulagao da escala dos classicos. O princi- pal problema reside exatamente af: a economia ricardiana e a marxista fazem parte de um grupo de sistemas tedricos voltados & elaboragio de modelos grandiosos de acumulagao, que operam com simplificagées legitimas da rea- lidade, como as classes sociais, Ha diversos outros exemplos de modelos de acumulagao — novos ou antigos — articulados em torno dos pressupostos de taxa salarial uniforme e conflito distributivo. Em certa medida, todos eles compartilham o espirito das abordagens classica e marxista, e poderiam ser considerados arcaicos pelas mesmas duas raz6es, a utilizacdo de grandes agre- gados e a presumida falta de microfundamentos. A questéo dos microfundamentos ¢ as notérias objegdes as abordagens baseadas em classes (hd racionalidade de classes sociais? As classes sociais escolhem?) merecem uma abordagem mais cuidadosa, a ser feita a seguir. b) subjetividade Pode-se dizer que os cldssicos e Marx fazem pouco caso da subjetividade e da escolha? Nesse ponto, a distingdo entre os autores é importante. O siste- ma de Smith oscila entre o mais puro subjetivismo, presente nas teorias da troca e da divisao social do trabalho, e uma concepgio de desenvolvimento econémico fortemente ancorada na hist6ria, nas classes sociais e nas institui- ges. Sua visio compatibiliza 0 individualismo inerente ao contratualismo jusnaturalista (do ut des), com uma nitida adesao A doutrina fisiocratica das classes sociais e do saldrio de subsisténcia, de raizes marcadamentc histérico- institucionais. Se 0 espaco para a subjetividade e para o primado da tica da escolha é amplo na teoria do valor e da troca, é quase nulo nos capitulos que tratam da determinagiio da taxa de saldrios e de lucros. A teoria ricardiana da distribuicao € objetiva e esta relacionada a hipstese de determinagao do salario no nivel de subsisténcia, a qual comporta um ele- mento sécio-institucional. Se levarmos em consideragao a predilegiio de Ricardo por leis gerais e tendéncias de longo prazo, e sua adesfo a uma visdo de con- corréncia na qual os capitais individuais necessariamente se ajustam 4 média, ficard claro que as possibilidades abertas para a individualidade sao nulas. No sistema ricardiano, o trabalhador (o assalariado) nao decide. Nisso, temos uma adesio a tradigao dos fisiocratas e de Smith. No entanto, o interes- sante é que os capitais também nfo sao considerados por Ricardo unidades individuais de decisiio. A esse respeito, a teoria ricardiana dos lucros é exem plar: dada a cesta de subsisténcia e as condigées de produgio, a taxa geral de lucro esta determinada. O capitalista sempre se adapta as condigoes gerais de producao. Jamais é um elemento de transformagao do sistema. CRITICA MARXISTA # 129 trabalhadora).ndo.é.considerada-uma.unidade de. decisio econ6mica, a posi- e, A teoria marxiana do capital é, : ceeceieaiie: Nesse sentido, a propria formacao das normas sociais depende da indi dualidade dos capitais. O valor das mercadorias, uma norma social basica vinculada ao “trabalho socialmente necessério”, nfo prescinde daquilo que Marx denominava “valor individual”, um atributo relacionado as condigdes de cada produtor. Do mesmo modo, a taxa de lucro média nao barra a existén- cia de capitais com condig6es diversas de rentabilidade.” Dois pontos merecem destaque. Para iniciar — e ao contrério do que geral- mente se admite—, no sistema de Marx as classes sociais nao sao elementos de deciso econémica. O capitalista, por definicao, no age como classe, salvo naqueles momentos em que se vé compelido a uma decisao politica coletiva; por exemplo, pressionando o Estado. Os trabalhadores, do mesmo modo. Além disso, percebe-se que ha uma assimetria marcante entre as classes: os capita- listas (individualmente) decidem; os trabalhadores nao. Os trabalhadores nao tomam decisdes econ6micas simplesmente porque sua renda mal basta para o consumo necessdrio. Na tradic¢Zo macrodindmica classica e marxista, a esco- tha no interior de uma cesta limitada de bens de consumo é uma questo que nao faz parte da teoria econémica. c) determinacéo O fato de o agente decisério por exceléncia do sistema — 0 capitalista — visar a diferenciagao acresce a indeterminagao da teoria. Apesar das “Ieis de tendéncia” a teoria econémica de Marx nao se coaduna com resultados pre- definidos. Rigorosamente, a hist6ria esté em aberto. Tanto a luta de classes, um embate de resultados indeterminados, quanto a rigorosa subjetividade do agente inovador, bloqueiam qualquer possibilidade de existirem trajetérias hist6ricas pré-construidas. Isso quanto 4s “leis de movimento”, ou seja, as leis jnternas da economia. As grandes transformag6es, inclusive e principalmente uma eventual superacao do capitalismo, caem fora das leis econémicas e de- pendem de coordenacia, vale dizer, de acdo politica organizada. Em Marx (também em Smith), a agdo politica organizada nao € redutivel as explicagdes 7 Coutinho, Mauricio. Marx — notas sobre a teoria do capital. Sao Paulo, Hucitec, 1997. 130 ® A CRITICA DA ECONOMIA POLITICA: TEORIA E ATUALIDADE que compGem 0 corpo da teoria econémica. Mais uma razdo para sua pre- determinagdo econémica nao fazer sentido. Na verdade, a visio de Marx é uma combinaco complexa entre a moldu- ra hist6rica, a luta de classes e a subjetividade dos capitais. As condigdes de produgdo cumprem um papel decisivo nesses trés fatores, mas vale lembrar que todos eles (¢ principalmente a iniciativa individual dos capitalistas) mol- dam as condig6es de produgiio. 6. Conclusées Conforme a interpretacdo acima, a auséncia de predeterminagao dos re- sultados e a incorporagio de uma hipétese radical de subjetividade dos agen- tes, referida aos capitalistas, siio duas caracteristicas marcantes do sistema marxiano. Se a teoria econédmica neoclassica for vista, sobretudo, como uma légica da escolha individual, nao seria de esperar que as tentativas de contato com 0 sistema de Marx fossem menos espinhosas? Mais ainda, se na constru- ao de uma teoria do capital apoiada na subjetividade dos agentes Marx dife- tenciou-se dos classicos, no seria razodvel reconhecer que existem muito mais possibilidades de didlogo entre a teoria econémica moderna e Marx do que entre aquela e os classicos? As perguntas ficam sem resposta, mas nos estimulam a buscar razdes para a usual auséncia de reconhecimento entre a teoria econdmica de Marx e a moderna. Trés razSes podem ser aventadas de imediato. Em primeiro lugar, a subjetividade é uma caracteristica marcante da teoria do capital de Marx. A teoria econédmica neocldssica no é, nas origens e paradigmaticamente, uma teo- tia do capital. Ela pode comportar uma teoria do capital, porém sempre deri- vada dos paradigmas de escolha construfdos a partir da figura do consumidor, um agente econdmico estranho aos sistemas classico e marxiano. Em segundo lugar, tanto os classicos quanto Marx constroem macrodina- micas agregativas, a partir de um principio (0 valor-trabalho) que, embora teferido as condigdes de produgao, tem carater ontolégico. Nas origens e paradigmaticamente, a teoria neocldssica também nao é uma macrodinamica agregativa. Note-se que 0 ruido principal nao decorre da aceitacéio ou negacao da teoria do valor-trabalho, e sim da existéncia ou auséncia da perspectiva macrodinamica nos sistemas originais. Finalmente, nio é razodvel deixar de fazer mengao a questo ideoldgica. O fato de a teoria econ6mica ter sido utilizada como 0 principal instrumento do argumento conservador’ apenas reforga a magnitude da cisio existente. E ® Hirschman, Albert. The Rhetoric of Reaction: Perversity, Futility, Jeopardy. Boston, Harvard University Press, 1991. CRITICA MARXISTA © 131 ingenuidade ignorar o peso das diferengas ideolégicas como fatores que blo- queiam o didlogo e o reconhecimento entre sistemas tedricos. Convém observar que essas trés razées remontam as origens de cada siste- ma. Nada impede que o quadro se veja modificado pelo desenvolvimento das teorias. Sabemos que a teoria neoclassica hoje est as voltas com modelos macrodinamicos e que a utilizagao instrumental da teoria econémica nao € necessariamente conservadora. Por outro lado, nfo se pode esquecer que a teoria econémica marxista estacionou nas primeiras décadas deste século. Por diversas razées, enquanto a teoria neocldssica transformou-se em um ramo dindmico e florescente do pensamento, existem escassos praticantes das idéias econémicas de Marx. Em decorréncia, elas nav sofreram o desenvolvimento ¢ 0 processo interno de contestag4o/atualizacio inerente 4 manutengao e ao pro- gresso das teorias. Até mesmo no rol das diversas heterodoxias econémicas contempordneas, poucas se reconhecem inspiradas em Marx. Pela falta de um programa de pesquisas atualizado e em desenvolvimento, 0s poucos estudiosos que conhecem o sistema de Marx e reconhecem suas virtudes véem-se obrigados a recorrer as idéias originais para 0 estabeleci- mento de contrastes com a teoria econémica contemporanea. As dificuldades na comparacdo entre um sistema vivo, alimentado por um exército de prati- cantes, e idéias do século XIX nao podem ser minimizadas. Ainda assim, acredito que 0 esforco comparativo abre perspectivas frutiferas de conheci- mento e atualizagao, O objetivo do artigo foi exatamente este: destacando 0 que ha de especifico e original no sistema.de Marx, apontar para sua abertura 4 atualizacdo e para as possibilidades de fertilizacao do dehate econémico contemporaneo. 132 * ACRITICA DA ECONOMIA POLITICA: TEORIA E ATUALIDADE

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