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Sayad Bordieu. A DOMINAÇÃO COLONIAL E O SABER CULTURAL
Sayad Bordieu. A DOMINAÇÃO COLONIAL E O SABER CULTURAL
2006
RESUMO
A política francesa de “reassentamento” dos camponeses argelinos, planejada para minar o apoio popular
à guerra de libertação nacional (1954-1962), levou ao deslocamento de um quarto da população nativa da
Argélia em 1960. Disciplinando o espaço e reorganizando rigidamente a vida dos fellahin, os militares
franceses esperavam domesticar um povo, mas isso apenas completou o que a primeira política colonial e a
generalização das trocas monetárias já começara: a “descamponeização” de comunidades agrárias despo-
jadas dos meios sociais e culturais para dar sentido ao seu presente e para controlar o seu futuro. Assim, a
guerra cumpriu a intenção latente da política colonial, que é desintegrar a ordem social local com o
objetivo de subordiná-la, seja sob a bandeira da segregação, seja sob a bandeira da assimilação. Mas a
dominação imperial também produz um novo tipo de sujeito que contém em si as contradições nascidas do
choque de civilizações: os padrões de comportamento e de ethos econômico importados pela colonização
coexistem dentro do camponês argelino expulso de sua terra com aqueles que foram herdados da tradição
ancestral, originando condutas, expectativas e aspirações antinômicas. Esta dupla dimensão da realidade,
objetiva e subjetiva, ameaçava minar os esforços para socializar a agricultura depois da independência,
enquanto que a lógica da descolonização induzia a pequena-burguesia letrada dos burocratas a negar
magicamente as contradições da realidade como fantasmas vergonhosos de um passado colonial morto.
PALAVRAS-CHAVE: colonialismo, guerra, campesinato, desenraizamento, imperialismo francês, cultura
cabila, Argélia.
Deus deu ao corvo, que naquele tempo era branco, dois sacos: um
cheio de ouro, o outro cheio de piolhos.
O corvo deu o saco cheio de piolhos aos argelinos e o saco cheio de
ouro aos franceses.
Foi desde então que ele ficou preto.
Tradição oral recolhida em Arba.
“esvaziar uma região não controlada e afastar a Muitos [...] devem ter preferido o risco de uma morte
população da influência rebelde”. O reassentamento violenta ao apinhamento, à sujeição, à morte lenta dos
casebres, das tendas e das favelas do reassentamento
em massa das populações em centros situados
[...]. As mulheres capturadas pelo conjunto de autori-
próximos de instalações militares tinha como ob- dades da área, conjunto pelo qual a maioria das mechtas
jetivo permitir ao Exército um controle direto so- foi destruída, eram conduzidas quatro ou cinco vezes
bre elas, de maneira a impedir que transmitissem até os reassentamentos, mas sempre retomavam o ca-
informações, fornecessem orientações, mantimen- minho para o seu douar (TALBOT-BERNIGAUD,
tos ou alojamento aos soldados do Exército de 1960, p. 711).
Libertação Nacional3 (ALN); era também uma for- Nesta primeira fase, o Exército, inspirado por
ma de facilitar a repressão, ao autorizar que fos- motivações puramente estratégicas, parecia não
sem considerados “rebeldes” todos aqueles que ter outro objetivo a não ser esvaziar as zonas difí-
permanecessem nas zonas proibidas. Na quase ceis de controlar, sem se preocupar muito com a
totalidade dos casos, a exclusão foi feita à força. população evacuada, sem assumir o objetivo ex-
No início, o Exército parece ter aplicado sistema- plícito de organizar sua realocação e, deste modo,
ticamente, pelo menos na região de Collo, uma toda a sua existência. Os camponeses arrancados
tática de terra arrasada: incêndio das florestas, das suas residências habituais foram reunidos
destruição de reservas e de gado – todos os meios como um rebanho em grandes centros, cuja loca-
foram utilizados para obrigar os camponeses a lização tinha sido escolhida por razões exclusiva-
abandonar sua terra e suas casas: mente militares. É bem conhecida a pobreza ma-
Claro que teríamos levado muito tempo para demolir terial e moral vivida pelos habitantes de
as mechtas [povoados]4 “proibidas” do setor, mas o reassentamentos tão primitivos como os de
trabalho acabou por ser muito bem realizado numa área Tamalous, Oum-Toub ou Bessombourg, na região
de quatro ou cinco quilômetros quadrados. Primeiro, de Collo6. Nada menos organizado e metódico do
os homens subiam nos telhados e atiravam as telhas no
que estas ações. Seria vã tentativa encontrar algu-
chão, enquanto outros quebravam moringas, jarros e
telhas ainda intactas [...]. No fim do dia, esta técnica, ma ordem neste turbilhão de reassentamentos anár-
um pouco lenta, já tinha sido aperfeiçoada: grandes quicos criados pelas ações repressivas7.
quantidades de madeira e gravetos eram amontoados
dentro das casas e queimados; em geral, sua estrutura
não agüentava e os telhados caíam na hora; aquilo que
sobrava era destruído a marretadas (TALBO- fração dos habitantes foi reagrupada em Kanoua, em
BERNIGAUD, 1960, p. 719). Bessombourg, em Ain-Kechera, em Boudoukha, em Oum-
Toub e em Tamalous. Mais tarde, foram registrados
Apesar de tudo, a população ofereceu enorme reassentamentos em Boudoukha, Kanoua e sobretudo em
resistência5. Tamalous pelas douars [divisões administrativas rurais]
de Taabna, Aïn Tabia e Demnia. Em 1959, 29 675 pessoas,
29% da população total, foram reassentadas. Praticamente
os HLL [“hors-la-loi”, fora da lei] exercem um controle
3 O ALN (Armée de Libération Nationale) era o braço
completo nas zonas interditas, onde as tropas não vão a
armado da FLN (Frente de Libertação Nacional da Argé- não ser esporadicamente desde 1958 por falta de efetivos.
lia), fundada no Cairo, em outubro de 1954, na véspera do A população cultiva pomares e pequenas áreas, sobretudo
lançamento de uma insurreição nacional (nota de no Oued Zhour; quando a tropa se aproxima, as zribat
Ethnography). [zriba (pl. zribat) significa ‘clã’ no maciço de Collo] fogem
4 Uma observação sobre a tradução e a transliteração de e escondem-se no deserto”.
alguns vocábulos: as palavras estreitamente associadas com 6 Vários artigos e sobretudo o relatório de Monsenhor
o Norte da África, i. e., nomes geográficos e étnicos, e, onde Rhodain (Témoignage et Documents, nº 12, maio 1959)
não resulta confusão, termos tais como douar que entra- descreveram a situação dos reassentados durante os anos
ram na língua francesa, foram mantidos na sua forma fran- de 1958 e 1959 como próxima da dos campos de concen-
cesa, visto que esta é a mais corrente e a mais padronizada tração. Referências dos principais artigos que, nesta época,
(nestes casos, o som sh é pronunciado ch, w ou u para ou revelaram o problema dos reassentamentos à opinião pú-
etc.). Termos completamente estrangeiros, por outro lado, blica francesa podem ser vistas em VIDAL-NAQUET,
são adaptados aos padrões da transliteração inglesa (i. e., 1961, p. 204-234.
shtara em vez de chtara para a forma local de schatâra)
7 Assim, o relatório do gabinete de desenvolvimento rural
(nota da trad. portuguesa).
da prefeitura de Orléans-ville, publicado em 1961, indica
5 De acordo com um documento oficial sobre a região de
que 185 000 “reassentados” do departamento [no original:
Collo, datado de novembro de 1959, “8% da população département], ou seja, 60% do total, deveriam voltar a suas
permaneceu no local, não obstante a proibição [...]. Uma casas, tão baixo é o nível de vida e as condições sanitárias.
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das bases econômicas da sua própria integração; ra semeada. Como prova de que o que se passava
e esta era, precisamente, a situação em 1875, que era uma inovação forçada e não uma mudança de
marcou o fim das grandes insurreições tribais10. atitude econômica, a rotação bienal é mais respei-
tada à medida que as propriedades aumentam. O
III. CAMPONESES SEM TERRA
mesmo se passa em relação à extensão dos cam-
Sob a influência conjugada de diversos fato- pos semeados em detrimento da criação de gado,
res, a saber, e para citar apenas os mais importan- que é determinada pela busca de um máximo de
tes, a usurpação da terra, a pressão demográfica segurança. “Muitos fatores influenciam o cultivo
e a passagem da economia de troca para uma eco- das terras”, escreve o administrador do distrito
nomia de mercado, o campesinato argelino en- misto de Chellala:
contrava-se de fato em meio a um processo ca-
“as chuvas irregulares, as geadas da primavera, a natu-
tastrófico. O recenseamento agrícola de 1950- reza rochosa dos terrenos. É duro constatar que a cada
1951 mostra que as 438 483 propriedades em ano que passa a agricultura ganha importantes áreas
posse dos argelinos, ou seja 69% do total, eram que são destinadas à criação de gado, embora esta últi-
inferiores a 10 hectares e cobriam uma área total ma seja mais lucrativa. O cultivo de cereais não com-
de 1 378 464 hectares, ou seja 18,8% do total, pensa. Apesar das despesas serem poucas, mal permi-
te ao fellah arrecadar a parte de trigo e cevada para
com uma superfície média de 3,1 hectares (em
consumo próprio. Isso o mantém num estado hipnóti-
contrapartida, em 1940, esse número era de 4,7 co do qual se deve afastá-lo” (SLNA, 1950, p. 32).
hectares), um valor muito inferior ao mínimo in-
dispensável para a subsistência de uma família Entre os fellah’in que abandonaram o ano do
camponesa. O número de proprietários de menos pousio, assim como entre aqueles que lavram as
de 10 hectares de terra cresceu para cerca de 50 terras de pastagem, é a mesma relação fascinada
000 entre 1940 e 1950, ou 12%, enquanto a área de medo que inspira comportamentos impacien-
das propriedades diminuiu 471 000 hectares. Mas, tes e tensos. É certo que o cultivo dos cereais não
mais profunda foi a transformação sofrida pela compensa, mas tudo se resume a produzir para
estrutura da sociedade rural nos últimos trinta vender no mercado? O que se quer é ter, pelo
anos11: entre 1930 e 1954 o número de proprietá- preço mais baixo, no menor prazo de tempo, o
rios de terras diminuiu 20%, enquanto o número suficiente para alimentar sua família. É portanto
de trabalhadores agrícolas, permanentes ou tem- sem hesitar que se sacrifica o futuro [futur] da
porários, subiu 29%. produção, incerto e incontrolável, ao advir
[avenir] do consumo, iminente e urgente
A usurpação da terra e a proletarização tam- (BOURDIEU, 1963).
bém provocaram o abandono de muitas tradições
agrárias. É por isso que, por exemplo, a escassez Se nenhum melhoramento veio compensar o
de terras e a pressão demográfica, que impunha o empobrecimento do solo causado por uma cultu-
aumento da produção a qualquer custo, levaram ra mais intensiva e se a pressão da necessidade
muitos fellah’in a desistirem do antigo sistema forçou o cultivo de terras medíocres, é fácil per-
bienal de rotação: nos anos de 1950-1951, o pousio ceber porque os rendimentos continuam muito
representava apenas 62,7% da quantidade de ter- baixos – 4,65 quintais12 por hectare em 1955. O
cultivo da terra anteriormente dedicada ao pousio
e às florestas acelerou ainda mais a erosão: entre
1940 e 1954, a área cultivada pelos argelinos di-
10 Um dos promotores do senatus consultum, A. de Broglie
minuiu 321 000 hectares sem que a propriedade
(1860), declarou que esta medida tinha um duplo objetivo: européia crescesse do mesmo modo; dada a fome
em primeiro lugar, “provocar uma liqüidação geral da ter-
ra”, com uma parte dela permanecendo nas mãos dos seus
de terra dos fellah’in, a possibilidade destas áreas
antigos proprietários, já não como herança coletiva da tri- voltarem ao pousio é muito baixa. Assim, pode-
bo, mas como “propriedade pessoal, definida e divisa”, mos considerar que elas foram destruídas pela
sendo a outra parte destinada a “atrair e receber a emigra- erosão que lhes roubou dezenas de milhares de
ção européia”; em segundo lugar, “desorganizar a tribo”,
“obstáculo principal” à “pacificação”. Poder-se-iam multi-
plicar os exemplos de declarações no mesmo estilo. V.
LACHERAF, 1960, p. 749-756.
11 Bourdieu refere-se aqui ao intervalo entre 1930 e 1960 12 Um quintal equivale a quatro arrobas (nota da revisão
(nota da revisão técnica). técnica).
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da região de Carnot, “podem produzir para o mer- “O que fazer na cidade?”, diz um antigo fellah’, dono
cado porque têm assegurado o seu próprio con- de mais de 20 hectares, que se refugiou em Carnot: “Na
cidade, encontram serviço facilmente, como ‘lavrado-
sumo. Podem dedicar-se ao supérfluo porque têm
res’ ou como serventes, aqueles que já trabalharam no
o essencial ou porque têm a certeza que ele não douar. Eu não posso ir trabalhar nas fazendas […] A
vai lhes faltar”. Assim, no lugar de um única atividade que me resta é o comércio, mas é preci-
tradicionalismo tradicional adequado a uma soci- so ter recursos”.
edade fortemente integrada e baseada numa eco-
Por sua vez, os pequenos proprietários expro-
nomia relativamente equilibrada, surge um
priados, os antigos khammes ou os trabalhadores
tradicionalismo do desespero, inseparável de uma
agrícolas, despreparados para a vida urbana e que
economia de sobrevivência e de uma sociedade
não têm as atitudes ou as aptidões necessárias para
desintegrada e apropriada por subproletários pre-
se adaptarem a ela, só podem esperar tornarem-
sos a um passado que sabem estar morto e enter-
se diarista, vendedor ambulante ou um desempre-
rado.
gado que espera o “paraíso”: um emprego fixo17.
Sem outra esperança que não seja colher o
A guerra, e particularmente os reassenta-
suficiente para sobreviver, os mais miseráveis
mentos, não só aceleraram a pauperização das
enfrentam a escolha entre esse fatalismo dos de-
massas rurais; os não-assalariados, os proprietá-
sesperados (que nada tem a ver com o Islã) e a
rios, os khammès, os meeiros, que eram cerca de
migração forçada para a cidade ou para França.
560 000 em 1954, passaram a apenas 373 000 em
Em vez de ser o resultado de uma decisão livre,
1960, uma diminuição de 33%. Ao mesmo tem-
baseada verdadeiramente na vontade de levar uma
po, o número de assalariados, trabalhadores per-
vida urbana, este exílio imposto não é senão, mui-
manentes e temporários, caiu para 421 000, uma
tas vezes, o final inelutável de uma série de renún-
baixa de 28%18. Sem dúvida, parte dessa diferen-
cias e derrotas: uma má colheita e tem que se ven-
ça deve-se ao fato de muitos dos que chamavam
der o burro ou o gado; pede-se emprestado a ta-
a si próprios agricultores ou trabalhadores agrí-
xas exorbitantes para equilibrar o orçamento ou
colas, em 1954, declararem-se desempregados em
comprar sementes; e, por fim, tendo esgotado
1960, fosse por terem perdido parcial ou total-
todos os recursos, não se parte – se foge15. Ou
mente seu trabalho ou por terem adotado uma nova
então, cansado de tanto penar numa vida tão po-
atitude em relação à sua atividade. Mas, além dis-
bre, parte-se sem destino, deixando a terra a um
so, ao completarem a destruição de um equilíbrio
khammès16. Em todos esses casos, a ida para a
econômico precário, ao quebrarem os ritmos tem-
cidade é uma espécie de fuga para frente determi-
porais e espaciais que formavam a estrutura de
nada pela miséria. Os mais ricos, aqueles que têm
toda a existência social, ao pulverizarem as unida-
alguma poupança, esperam poder se instalar como
des sociais tradicionais, os reassentamentos ace-
comerciantes nas pequenas cidades vizinhas que
leraram o êxodo em direção às cidades de indiví-
estão acostumados a freqüentar por causa dos
duos que não têm nada a perder. Entre 1954 e
mercados. Juntamente com o artesanato tradicio-
1960, a população total das cidades e das vilas
nal, o comércio é, de fato, o único tipo de ativida-
aumentou 67% na zona de Argel, 63% na região
de adequado a proprietários de terra preocupados
de Constantine e 48% na região de Oran, sendo o
em não decair [socialmente], especialmente quan-
tamanho deste aumento resultado da existência de
do permanecem na região em que são conhecidos
cidades tradicionalmente dotadas de um grande
por todos:
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poder de atração, como Argel e, sobretudo, da porcionam salários maiores e mais regulares (es-
extensão do reassentamento na região considera- pecialmente as grandes, onde as empresas mo-
da. dernas estão concentradas); e que, finalmente,
permitem uma vida mais confortável, sendo o
Desse modo, a “descamponeização”
consumo urbano muito superior ao consumo ru-
(“dépaysannisation”), proporcionada pelo
ral (por exemplo, 96,45 francos mensais per capita
reassentamento, foi duplicada pela urbanização
para os comerciantes de municípios urbanos –
que, mesmo temporária, só pôde causar transfor-
ainda que estes estejam mais próximos dos cam-
mações irreversíveis na atitude econômica, ao
poneses –, contra os 65,97 francos para comer-
mesmo tempo em que acelerava o contágio das
ciantes das áreas rurais) (DARBEL, 1960). Desse
necessidades: “Tenho muitas necessidades novas”,
modo, seja de forma indireta, acelerando o êxodo
diz um refugiado de Carnot, “é preciso viver como
rural e favorecendo a difusão dos modelos urba-
se costuma viver na cidade”. Os camponeses re-
nos, seja de forma direta, retirando os campone-
cém-instalados são profundamente conscientes
ses das suas condições familiares de existência e
deste aumento das privações. Como disse um an-
provocando uma ruptura decisiva com as rotinas
tigo fellah reassentado em Tlemcen:
tradicionais, os reassentamentos aceleraram a
“Um fellah que vem instalar-se na cidade habitua-se ao “descamponeização” já em curso.
banho mouro, a cozinhar com gás butano. É impossível
para ele regressar ao seu douar, onde para cozinhar tem V. DESPREZO E EQUÍVOCOS
que ir procurar lenha e água a dois quilômetros de dis-
tância, e para tomar um banho tem que ir ao canal A guerra e a repressão vieram terminar o que a
[wadi]. Eu nasci e vivi na pobreza e sou capaz de viver política colonial e a generalização das trocas mo-
sempre assim. Mas a nova geração, a geração “atômi- netárias tinham começado. As regiões mais sig-
ca”19 já não consegue viver dessa forma. Por exemplo, nificativamente afetadas por essas ações foram
este aqui (apontando para uma criança de 14 anos) se aquelas que tinham sido relativamente poupadas
não tiver a sua costeleta e o seu queijo na hora da
até ali, por terem permanecido a salvo da coloni-
refeição, haverá confusão”.
zação. De fato, foi nas regiões montanhosas que
Desde a independência tem-se assistido ao efei- as pequenas comunidades rurais, fechadas sobre
to do contágio das necessidades que tem sido cau- si próprias numa obstinada fidelidade às suas tra-
sado pela urbanização temporária: rádio, gás butano dições, conseguiram assegurar os traços essenci-
e refrigerador movido a gás multiplicaram-se nas ais de uma cultura de que não se pode mais falar a
vilas mais remotas (por exemplo, em Aghbala na não ser no passado. Foi assim nos Maciços de
Pequena Kabylia e em Aïn-Aghbel na Kabylia do Kabylia, nas Montanhas Aurès, nas Montanhas
Collo). Nemencha, nas Montanhas Bibane, nas Monta-
O contato com a sociedade urbana desenvol- nhas Hodna, no Tell Atlas acima de Mitidja Plain,
veu a consciência das disparidades (sempre cres- nas Montanhas Titteri e no Maciço Ouarsenis, onde
centes) que separam o nível de vida das cidades e a cultura tradicional conseguiu manter-se relati-
das regiões rurais assoladas pela subnutrição, po- vamente inalterada, apesar das desapropriações
bres em recursos de saúde e em escolas. Todos que se seguiram às insurreições, apesar da cria-
os camponeses que passaram um tempo na cida- ção de novas unidades administrativas e muitas
de puderam viver concretamente o que as estatís- outras medidas, apesar, enfim, das transforma-
ticas estabelecem objetivamente, ou seja: que as ções impostas pelo simples contágio cultural20.
cidades – especialmente as maiores – oferecem Em 1960, as zonas das montanhas onde o Exérci-
maiores oportunidades de trabalho assalariado, isto to de Libertação Nacional tinha se estabelecido
é, um trabalho de verdade, ao contrário da agri- com maior rapidez e mais força, assim como as
cultura que não proporcionando (ou proporcio- zonas fronteiriças, tinham sido quase totalmente
nando muito poucos) rendimentos monetários despovoadas; seus habitantes tinham sido
aparece como mera ocupação; que as cidades pro-
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reassentados nas planícies ou tinham ido para a administrar, a intenção era desencadear uma “evo-
cidade. lução acelerada”. Em suma, originariamente con-
siderados como uma forma de “reagrupar” e “con-
Tudo se passa como se esta guerra tivesse
trolar” as populações, colocando-as próximas de
fornecido a ocasião para concretizar até o fim a
um posto militar, os reassentamentos começaram
intenção latente da política colonial, intenção pro-
gradualmente a ser considerados por alguns como
fundamente contraditória: desintegrar ou integrar,
um “fator de emancipação”, sendo a confusão
desintegrar para integrar ou integrar para desinte-
entre os dois fins justificada e encorajada pela
grar, eis os pólos opostos entre os quais a política
convicção de que, para quebrar as resistências
colonial sempre oscilou, sem que a escolha fosse
desta sociedade, não havia melhor técnica do que
feita claramente e sistematicamente aplicada, de
destruir suas estruturas21. Na verdade, qualquer
tal forma que intenções contraditórias pudessem
que fosse a intenção dos indivíduos, a ação “hu-
animar diferentes responsáveis num mesmo mo-
manitária” permanecia objetivamente como uma
mento ou o mesmo responsável em diferentes
arma de guerra, orientada para o controle das po-
momentos. A vontade de destruir as estruturas da
pulações.
sociedade argelina podia mesmo inspirar-se em
ideologias opostas: uma, dominada pela conside- Não foi por acaso que o colonialismo encon-
ração exclusiva do interesse do colonizador e por trou o seu último refúgio ideológico no discurso
questões de estratégia, tática ou proselitismo, ex- integracionista: com efeito, o conservadorismo
primiu-se muitas vezes com cinismo; outra, segregacionista e o assimilacionismo só na apa-
assimilacionista ou integracionista, que só na apa- rência se opõem. Num dos casos, invocam-se as
rência era mais generosa. diferenças de fato, de forma a negar a identidade
de direito e, no outro, negam-se as diferenças de
Para certos funcionários, movidos por uma
fato em nome da identidade de direito. Ou então
preocupação dominante, a saber, “subjugar as
se atribui dignidade humana, mas só ao Francês
populações”, o papel do Exército é definido pelo
virtual; ou trata-se de recusá-la, invocando a ori-
“tríptico: proteger, empenhar, controlar”. Como
ginalidade da civilização magrebina – mas origina-
escreve Alain Jacob:
lidade inteiramente negativa, definida por aquilo
Agora, proteger é acima de tudo reassentar. Em cada que falta.
reassentamento, uma “célula militar”, sob o comando
de um soldado que deve controlar grupos de trinta a Prisioneiros dos interesses da colonização ou
cinqüenta pessoas, dá proteção, faz o recenseamento daquilo que Ruth BENEDICT (1934) chama “a
dos habitantes, cadastra-os e conduz freqüentes inter- imponente universalidade da civilização ocidental”,
rogatórios. O alistamento depende da “organização” políticos e funcionários (burocratas ou militares)
da população, o que pressupõe dispor de funcionários
treinados em centros especiais […]. Enfim, só um con-
não conseguem conceber generosidade maior do
trole total e permanente permite que estes métodos que garantir aos argelinos o direito de serem o
dêem frutos (1961, p. 33-34). que devem ser; ser o que, à imagem do europeu,
os conduz a negar o que de fato são, na sua origi-
Certos “teóricos” da ação psicológica foram
nalidade de homens particulares, participantes de
ainda mais longe, vendo na desorganização siste-
mática e forçada a forma de acabar com as resis-
tências.
21 Num memorando do General Crépin, com data de 7 de
A esta ideologia dominada por considerações
abril de 1960, lê-se: “Assim, as preocupações militares
de ordem estratégica e tática opõe-se a ideologia
conjugam-se com considerações de ordem política e huma-
humanitária do imaginário oficial, encarnada no nitária para instituir reassentamentos viáveis” (apud
militar graduado das SAS, simultaneamente mes- JACOB, 1961, p. 35). A confusão de objetivos contraditó-
tre-de-obras, professor, prefeito e, algumas ve- rios era favorecida pela situação como um todo: a política
zes, médico; ao instalar, em aldeias providas de de reassentamento assumia-se como uma tarefa positiva, a
equipamentos comunitários e situadas perto de um tempo “humanitária” e eficaz, por oposição à ação
frustrante da pacificação; e permitia justificar uma visão
grandes eixos/centros de comunicação, popula-
maniqueísta da guerra revolucionária, face à ação bem-in-
ções que até então viviam em habitações disper- tencionada do Exército respondendo às “destruições” dos
sas ou em regiões remotas e que, portanto, era “rebeldes”. Isso permitia que muitos sentissem que havia
muito difícil e dispendioso cuidar, escolarizar e nessas ações uma conciliação entre moral e política.
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uma cultura singular. Pode-se, então, em nome e de meios, os oficiais das SAS, apaixonados pela
das mesmas racionalizações, deixá-los como são, geometria, teriam também submetido a zona rural
abandoná-los para subordiná-los, ou conceder- à centuriação.
lhes a dignidade de existirem, na condição de dei-
Graças à ignorância deliberada ou inconscien-
xarem de ser o que são.
te das realidades sociais, as autoridades locais
Raiz comum do assimilacionismo e do freqüentemente impunham aos “reassentados”
colonialismo, a recusa (consciente ou inconsci- uma ordem absolutamente estranha, uma ordem
ente) de reconhecer a Argélia como cultura origi- para a qual não foram feitos e que não fora feita
nal e como nação serviu sempre de base a uma para eles. Encorajados pelo sentimento de realiza-
política de intervencionismo indiscriminada e in- rem um grande desígnio, ou seja, “fazer as mas-
conseqüente, ignorante da sua força e da sua fra- sas evoluírem”, excitados pela paixão de ordenar
queza, capaz de destruir a ordem pré-colonial, sem e criar, por vezes empenhando todo o seu entusi-
conseguir substituí-la por uma ordem melhor. Esta asmo e todos os recursos nessas ações, os altos
política que, associando cinismo e inconsciência, funcionários aplicavam ipsis literis esquemas in-
determinou a ruína da economia rural e o colapso conscientes de organização que poderiam perten-
da sociedade tradicional encontra seu coroamento cer à essência de qualquer empreendimento de
nos reassentamentos. dominação sistemática e total. Tudo se passava
como se o colonizador adotasse, instintivamente,
Embora a iniciativa mais ampla tenha sido dei-
a lei antropológica que diz que a reorganização do
xada, na maior parte dos casos, às autoridades
habitat, uma projeção simbólica das estruturas mais
subalternas, os reassentamentos são todos pare-
fundamentais da cultura, conduz a uma transfor-
cidos no essencial, porque nasceram menos da
mação generalizada do sistema cultural. Lévi-
obediência a uma doutrina explícita ou implícita
Strauss notou que os missionários viam na trans-
do que da aplicação de modelos inconscientes –
formação imposta do habitat dos Bororo o meio
aqueles que, um século antes, dominaram a fun-
mais seguro para obter sua conversão (LEVI-
dação de aldeias coloniais. A Argélia foi o terreno
STRAUSS, 1955, p. 229; v. também BASTIDE,
experimental no qual o espírito militar, como num
1960, p. 114-115). A reorganização do espaço ha-
teste projetivo, assentou suas estruturas.
bitado é então encarada inconscientemente como
Freqüentemente dotados de uma autoridade ab-
uma maneira definitiva de fazer tábua rasa do pas-
soluta, os quadros do Exército decidiam tudo: a
sado, impondo uma forma de existência nova, ao
localização da aldeia, o seu traçado, a largura das
mesmo tempo em que imprime no solo a marca
ruas, a disposição do interior das casas. Ignoran-
da posse22. Se a política dos reassentamentos ob-
do ou querendo ignorar as normas e modelos tra-
teve entre os militares uma adesão tão ampla e tão
dicionais, pouco preocupados em consultar a po-
entusiástica, é porque realizou um sonho tão anti-
pulação que, caso desejasse participar, teria esse
go quanto a colonização, isto é, o de “modificar”
desejo tacitamente recusado, impuseram a sua
– como o general Bugeaud disse há um século
ordem, sem se aperceberem, muitas vezes, do mal-
atrás – ou “reestruturar” – como os coronéis dis-
estar e da desordem que suas iniciativas suscita-
seram nos anos 1950 – uma sociedade inteira.
vam.
Mostefa Lacheraf cita o capitão Richard que, em
À maneira do colonizador romano, os oficiais
encarregados de organizarem os novos assenta-
mentos começavam por disciplinar o espaço como
22 Era essa a intenção quase explícita da centuriação roma-
se, através dele, pudessem disciplinar as pessoas.
Tudo era padronizado e alinhado: construídas de na, “um verdadeiro sistema de coordenadas traçadas no
espaço”: “Pelo menos no início da colonização, Roma fez
acordo com normas impostas em locais impos-
tábua rasa do passado, impondo uma nova estrutura às
tos, as casas eram dispostas, em linha reta, ao áreas conquistadas. Fosse por indiferença ou desprezo,
longo de ruas largas que desenhavam o traçado ignorava-se a organização administrativa pré-existente e
de um castrum romano ou de uma vila colonial. definia direitos de domínio claros, delimitando sua con-
No centro, a praça com as três características quista: a posse é como que gravada no solo. De acordo com
das pequenas cidades francesas: a escola, a câ- o eterno princípio político de ‘dividir para reinar’, vê-se a
centuriação isolar as zonas de resistência, isto é, os maci-
mara municipal, o monumento aos mortos. E
ços cujas encostas vai dominando” (CHEVALIER, 1961,
pode-se pensar que, se não fosse a falta de tempo p. 76).
49
A DOMINAÇÃO COLONIAL E O SABIR CULTURAL
1845, preconizava o reassentamento massivo das camponeses “genuínos” [“naïfs”] que perpetuam
populações argelinas: teimosamente uma forma de vida obsoleta, e al-
A primeira coisa a fazer para retirar o controle dos
guns agricultores capazes de gerir suas proprie-
agitadores é reunir os membros dispersos do povo, dades segundo as regras da racionalidade econô-
organizando todas as tribos subjugadas por nós em mica. No entanto, a oposição entre o camponês
zemalas23 […]. Os vários douares seriam separados tradicional e o camponês moderno não tem senão
uns dos outros por uma cerca de jujubeiras selvagens um valor heurístico e apenas define os pólos ex-
ou uma cerca de quaisquer outros arbustos. Por fim, a tremos de um continuum de condutas e atitudes
zemala inteira seria cercada por um largo fosso cheio
de cactos24.
separadas por uma infinidade de diferenças
infinitesimais.
Os elementos invariáveis e recorrentes da po-
lítica colonial não têm nada de surpreendentes: uma VII. A COEXISTÊNCIA DOS CONTRÁRIOS
situação que tem permanecido idêntica e que lan- Esse problema não é um desafio à análise ci-
ça mão dos mesmos métodos há um século, ape- entífica? Não estaremos condenados a simples-
sar de algumas diferenças superficiais. A política mente justapor descrições tão contraditórias quan-
de reassentamentos, uma resposta patológica à to o objeto descrito? É, de fato, tentador (e mui-
crise mortal do sistema colonial, fez explodir, à tos fizeram apenas isso) selecionar, com base em
luz do dia, a intenção patológica que habitava o interesses e valores tácitos ou explícitos, um ou
sistema colonial. outro aspecto oposto de uma realidade contradi-
VI. O SABIR CULTURAL tória para concluir ou que o camponês argelino
esteja irrevogavelmente condenado ao arcaísmo,
Para aqueles que, querendo diferenciar-se, ou que ele possa vir a ser o suporte de expectati-
adotavam de forma ostentatória certos hábitos vas e ideais revolucionários. Numa propriedade
ocidentais, os mais velhos, enquanto guardiões da agrícola em regime de autogestão, os esforços para
tradição, reservavam esta tirada: “Ele quer andar aumentar a produtividade são comprometidos pe-
com os passos da perdiz, [mas] esqueceu-se dos las velhas tradições de solidariedade. Elas levam
passos da galinha”. Hoje em dia, é todo um povo os trabalhadores a trazerem para perto de si os
que, incerto sobre como prosseguir, tropeça e parentes desocupados, o que aumenta enorme-
hesita. A lógica mesma da situação colonial pro- mente a desproporção entre a produção e a mão-
duziu um novo tipo de homens e mulheres, que de-obra empregada25. Numa outra, a tentação é
podem ser definidos negativamente, pelo que não grande entre os camponeses recém-instalados,
são mais e pelo que ainda não são, camponeses
“descamponeisados” [paysans dépaysannés], se-
res auto-destrutivos que trazem consigo todas as
contradições. 25 Numerosos exemplos análogos de transferência de pa-
drões de comportamentos tradicionalistas para a lógica mo-
A ruptura com a condição camponesa e a trai- derna já podiam ser observados nas SCAPCOs [Séctions
ção do espírito camponês são o apogeu de um Coopératives Agricoles du Plan de Constantine] e nas fa-
processo essencialmente negativo que leva ao zendas da CAPER [acrônimo para Caisse pour l’Acession
abandono da terra e à fuga para a cidade, ou à à la Propriété et à la Exploitation Rurale, Fundo para o
permanência resignada numa condição desvalo- acesso à propriedade e à exploração rural]. Por exemplo,
um “regroupé” (um camponês reassentado) originário de
rizada e desvalorizante, mais do que à invenção de
Aïn-Sultan, sem dúvida demasiado idoso para se tornar um
um novo tipo de relação com a terra e com o tra- cooperado, julgava-se autorizado a proclamar-se fellah’ ocu-
balho da terra. Os camponeses “camponeisados” pado “em tempo integral”, porque, apesar dos regulamen-
[paysans empaysannés] desapareceram para sem- tos da CAPER impedirem a utilização de mão-de-obra fora
pre, mas os agricultores modernos são ainda pou- da própria família, ele ajudou o seu irmão mais novo a
cos e raros. Em cada aldeia ainda restam alguns explorar a pequena propriedade que adquiriu por intermé-
dio do Fundo. A solidariedade familiar, os hábitos da pro-
priedade comum (momentaneamente abolida pelas circuns-
tâncias que determinaram a dispersão da família, mas que
23 Zemala em árabe padrão significa “camaradagem”, nunca foi expressamente abandonada pelos próprios ir-
“companheirismo” (nota de Ethnography). mãos) sobrepuseram-se quer às interdições draconianas
(como as de abandonar o reassentamento), quer às medidas
24 Charles Richard, Etude sur l’inserruction du Dahra aparentemente inspiradas pelo cálculo e pela racionalidade
(1845-1846), apud LACHERAF, 1960, p. 780-781. econômica (exploração exclusivamente familiar dos lotes
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 41-60 JUN. 2006
para resolver a contradição da mesma maneira que aparece como o produto de uma combinação.
os trabalhadores agrícolas permanentes das pro-
Um exemplo: a sociedade tradicional via o tra-
priedades coloniais, ou seja, subtraindo à explora-
balho como uma função social, um dever, obriga-
ção racional uns pedaços de terra que serviriam
tório para qualquer homem preocupado com sua
de suporte a ilhas de tradicionalismo e que fariam
honra, perante si próprio e perante o grupo, e isto
coincidir a exploração e a posse jurídica. Mas os
independentemente de qualquer consideração re-
mesmos trabalhadores podem também, em nome
lativa ao lucro ou à renda. Segundo a economia
da lógica oposta, protestar contra a equalização
capitalista, o trabalho tem a função primária de
de salários que abole toda a correspondência en-
proporcionar um rendimento monetário e obede-
tre a qualidade e a quantidade do trabalho presta-
ce, portanto, à lógica da produtividade e da renta-
do e o produto desse trabalho; em alguns casos,
bilidade. Entre os subproletários das cidades e entre
podem mesmo agir de acordo com a lógica estrita
os camponeses proletarizados do interior, a ativi-
do cálculo racional e reduzir o seu esforço pro-
dade se torna uma mera forma de manter-se “ocu-
porcionalmente à redução da renda26. É claro que,
pado”, um meio de fazer alguma coisa ao invés de
mais do que qualquer outra, essa realidade
coisa nenhuma, para ganhar muito pouco ou nada:
multifacetada arma suas ciladas às mentes apres-
ela não pode, portanto, ser completamente inter-
sadas ou preconceituosas.
pretada quer sob a lógica do interesse e do lucro,
Em todos os domínios da existência, em to- quer sob a lógica da honra. Tal como as formas
dos os níveis da experiência encontram-se as ambíguas da Gestalttheorie, pode ser alvo de duas
mesmas contradições sucessivas ou simultâneas, leituras muito diferentes, dependendo do quadro
as mesmas ambigüidades. Os padrões de com- de referência usado para interpretá-la27. Mas a
portamento e o ethos econômico importados pela ambigüidade não está na apreensão do objeto; ela
colonização coexistem, em cada sujeito, com reside no próprio objeto: a exemplo do que ocorre
modelos e ethos herdados da tradição ancestral. com o subproletário, quando o camponês ocupa-
Daqui decorre que comportamentos, atitudes ou do de forma indigna vive, pensa ou julga sua pró-
opiniões aparecem como fragmentos de uma lin- pria condição, ele constantemente toma por refe-
guagem desconhecida, incompreensível tanto rência duas lógicas diferentes e mesmo opostas.
àquele que não conhece a linguagem cultural da Daqui decorre que cada uma das descrições uni-
tradição, quanto àquele que se refere unicamente laterais da realidade é suficiente para dar conta de
à linguagem cultural da colonização. Às vezes, são toda a realidade, exceto para o que constitui a sua
as palavras da linguagem tradicional que são com- essência, ou seja, a contradição. Assim, para cap-
binadas segundo a sintaxe moderna; outras ve- tar adequadamente uma realidade objetivamente
zes, o oposto, e por vezes é a própria sintaxe que contraditória, é necessário recorrer, simultanea-
mente, a duas grades de leitura contraditórias: a
fidelidade a uma realidade contraditória impede que
se escolha entre os aspectos contraditórios que
da CAPER). É também por referência à lógica da sociedade encobrem o real.
tradicional que se pode compreender a atitude dos “agri-
Os trabalhadores agrícolas que viviam direta-
cultores do domínio de Saint-Yves que aceitaram a fixação
de duas famílias na mesma unidade de cultivo”, e não, como mente nas propriedades dos colonos encontravam
tende a pensar o relator da Comissão de Renovação Rural, nessa duplicidade um modo de escapar à contra-
pelo entusiasmo que suscita a reforma realizada pela CAPER dição que inelutavelmente decorria da sua partici-
(cf. JORF, 1961, p. 234). [Essas duas formas cooperativas pação em dois universos estranhos. Os mesmos
de uso da terra patrocinadas pelo Estado estão mais bem que, tal como os tratoristas, os podadores das vi-
explicadas na referência 30. Nota de Ethnography].
nhas ou os jardineiros, trabalhavam nas terras do
26 Seria fácil multiplicar exemplos semelhantes: nos moi- colono usando os métodos de trabalho mais raci-
nhos Amirouch d’Elharrach, depois de um mau começo, o onalizados e com as técnicas mais modernas,
comitê de gestão é apoiado por um conselho de técnicos revertiam às práticas agrárias mais tradicionais para
que se esforça para consertar a situação; o livro de pedidos
é preenchido para o ano todo e há capital de giro no mon-
tante de um milhão de francos. Sabendo disso, os trabalha-
dores ameaçaram interromper seu trabalho e exigir que se
divida o montante, dizendo que “regressariam ao trabalho 27 Para os detalhes destas análises, ver BOURDIEU et al.,
quando precisassem de dinheiro”. 1963, IIª parte, cap. 1.
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A DOMINAÇÃO COLONIAL E O SABIR CULTURAL
cultivar os pedaços de terra que o colono lhes cedia membros das SCAPCOs30. Instalados em terras
nos confins da sua propriedade: a aragem da terra férteis, dotados dos meios mais modernos de cul-
era feita com uma junta de bois formada, tivo, eles eram induzidos pelo contexto geral a
freqüentemente, com recurso ao contrato tradici- adotar os objetivos últimos nela inscritos e a bus-
onal de sociedade (charka); muitas tarefas uniam car, por exemplo, rentabilidade e produtividade.
todo o grupo segundo as regras costumeiras da Mas isto não era suficiente para fazê-los renunci-
ajuda mútua (twiza) e a maior parte das obriga- ar completamente aos fins e valores tradicionais.
ções ocupava a totalidade da mão-de-obra famili- Demasiado inseguros de si próprios e da sua situ-
ar, mulheres e crianças incluídos. Os produtos da ação para escolher, eles agiam como se quises-
lavoura, destinados ao consumo familiar, consis- sem acumular as vantagens dos dois sistemas, de
tiam quase exclusivamente em cereais, cultivados modo que podiam se vistos perseguindo fins tradi-
sem esterco ou fertilizante. As colheitas eram tão cionais com meios modernos ou, inversamente,
fracas como as das terras montanhosas, ou seja, perseguindo fins modernos com meios tradicio-
400 ou 500 quilos por hectare28. Enfim, ninguém nais; ou, mais paradoxalmente ainda, perseguindo
pensava em incluir em sua atividade como fellah fins mutuamente incompatíveis porque tributári-
as preocupações do trabalhador agrícola e, por os de duas lógicas opostas. Se o camponês
exemplo, inquietar-se sobre a relação entre a quan- descamponeisado não pode viver sua condição
tidade e a qualidade do esforço empregado e o senão em contradição, isso ocorre porque ele pre-
produto do trabalho. Não era diferente com aque- tendia ter o conjunto de seguranças materiais e
les que, tendo permanecido fellah’in, eram con- morais que a sociedade tradicional (voltada para a
tratados periodicamente nas propriedades coloni- satisfação das necessidades imediatas ao menor
ais. Este dualismo se expressava em todos os do- custo e ao menor risco) lhe assegurava à custa da
mínios da existência, quer se tratasse da vida reli- renúncia da busca do lucro máximo e, ao mesmo
giosa, das atividades de lazer ou das trocas matri- tempo, as vantagens que na economia moderna
moniais: uma ilha de tradicionalismo patológico – só se adquire à custa de investimentos altos e muito
quer dizer, excessivo e descontextualizado – via- freqüentemente arriscados.
se transportado para o coração da agricultura ca-
Compreende-se que o camponês argelino en-
pitalista, altamente mecanizada e racionalizada29.
contre nesta dupla referência razões para seu des-
O dualismo assumia formas ainda mais sutis gosto que, embora incompatíveis, se reforçam e
entre os concessionários da CAPER ou entre os se reiteram mutuamente. Compreende-se também
que ele se obstine desesperadamente em fazer a
escolha impossível de não escolher entre as duas
28 Condutas aparentemente idênticas, como a ajuda mútua lógicas: por exemplo, entre os membros das
e a cooperação, a estocagem e a poupança, a previdência e SCAPCOs, os antigos camponeses gostariam de
a previsão estão separadas por um abismo e pertencem a utilizar os meios que estão geralmente a serviço
dois sistemas totalmente diferentes entre si. Ver
da produção para o mercado (tratores, fertilizan-
BOURDIEU, 1963.
tes etc.) para produzir os bens destinados ao seu
29 Através desse dualismo, os trabalhadores conseguiam
consumo, como trigo e cevada, por exemplo;
evitar (de maneira quase mágica) o dilaceramento a que teria
outros aspiram utilizar meios modernos para cul-
conduzido o esforço para unificar uma experiência contra-
ditória e dupla. O empregador dos colonos, por sua vez, tivar os seus pequenos e pobres pedaços de terra
evidentemente retirava daí vantagens: enquanto permane- segundo a lógica tradicional, quer dizer, ignoran-
cesse uma “reserva” cultural, esta reserva de mão-de-obra
não colocaria os problemas que uma população de traba-
lhadores, encorajada por um espírito revolucionário, poria.
Além disso, o empregador podia usar os “benefícios em 30 A Caisse pour l’Accession à la Propriété et à la
espécie” que concedia aos seus empregados como pretexto Exploitation Rurale (CAPER) foi criada por um decreto
para pagar salários muito baixos (cerca de 30% abaixo do das autoridades francesas de 26 de março de 1955. Desde
salário mínimo argelino) e para ignorar as limitações da 1958 seu principal objetivo era financiar a reforma agrária
jornada de trabalho. Enfim, esses pedaços de terra forneci- prevista pelo Plano Constantine “para a modernização e
am um excelente meio para explorar os trabalhadores, quer integração da Argélia”, incluindo a compra, melhoria, divi-
prendendo-os graças à aparência de generosidade, quer são e alocação de 250 000 hectares de terra para 15 000
mantendo-os pela ameaça de privá-los de uma terra que fellah’in. As Séctions Coopératives Agricoles du Plan de
lhes permitia ter a ilusão de serem ainda camponeses inde- Constantine (SCAPCOs) eram cooperativas agrícolas cria-
pendentes. das pelo Plano Constantine [nota de Ethnography].
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do qualquer consideração de rentabilidade e de lia. Não será nestes simples lapsos em relação à
produtividade. Em geral, os antigos camponeses lógica econômica que os camponeses também
desejam preservar os prazeres da vida na farqa extraem o incentivo para prosseguir adiante, por
(festas, relações sociais etc.) que evocam com menos rentável que seja sua atividade? É, por
nostalgia, beneficiando-se ao mesmo tempo das exemplo, o mesmo ponto de honra que proíbe o
vantagens fornecidas pelo rigor racionalizado da abandono da propriedade ancestral e que leva a
lógica capitalista. E as inconsistências são talvez condutas baseadas no prestígio capazes de arruiná-
o que lhes permite suportar (senão ultrapassar) a la, crescendo, por vezes, a tentação para a osten-
contradição de que são produto. Pode o campo- tação à medida que a crise da agricultura se agra-
nês descamponeisado de fato se perpetuar enquan- va.
to tal a não ser na e por meio da contradição? “Se
O camponês descamponeisado não pode res-
o camponês calculasse”, diz um provérbio cabila,
suscitar a agricultura tradicional; ele só pode,
“ele não semearia”. Aquele que, tendo feito a con-
mentindo para si próprio, perpetuar a sua aparên-
ta, continua a plantar, comete um disparate, en-
cia. E isso é tão verdadeiro para os camponeses
quanto que os seus ancestrais, que semeavam sem
de Aghbala ou de Djemaâ-Saharidj, como para os
contar, escapavam pura e simplesmente das in-
cooperados da CAPER ou das SCACPOs, ou para
fluências da lógica econômica. Mais ainda, se ele
os trabalhadores das propriedade tocadas em re-
se esforçasse por modernizar as técnicas empre-
gime de auto-gestão. Sem dúvida, porque perma-
gadas e por racionalizar os modos de produção,
necem mais próximos do camponês tradicional
não faria mais do que duplicar o absurdo funda-
do que do agricultor racional, uns e outros ten-
mental da sua situação, já que é o próprio fato de
dem a regressar à condição camponesa ou às suas
continuar a cultivar uma terra pouco rentável que
aparências, mais do que a reinventar o novo siste-
quebra a lógica da economia racional31. O cam-
ma de modelos exigido pela adaptação a uma agri-
ponês “camponeisado” estava adaptado a uma ter-
cultura moderna. E os camponeses das regiões
ra da qual esperava, como uma graça, somente os
poupadas ao choque direto da colonização não
meios para viver ou para sobreviver; o camponês
podem continuar ignorarando o caráter ilusório
descamponeisado, ao contrário, está condenado
da cultura dos solos leves das terras altas; não
à contradição, já que persegue o impossível e que,
podem, além disso, continuar a cultivar os solos
sabendo disso, não tem outra escolha a não ser a
mais pesados com os meios tradicionais apropri-
perpetuação dissimulada e fictícia das rotinas tra-
ados a uma buqâa (pequena parcela) ou a um
dicionais ou então a inovação que aumenta (sem
ah’riq (campo)33. A contradição está na própria
ultrapassar) a contradição que o espírito calculis-
situação, quer porque a terra não pode produzir o
ta faz surgir32.
suficiente para justificar o uso de técnicas racio-
É isto que os economistas esquecem quando nais, quer porque não se dispõe dos meios de tirar
denunciam a falta de racionalidade econômica pra- da terra aquilo que ela poderia produzir.
ticada pelos camponeses, e não somente na Argé-
Mas, mais profundamente, a contradição está
nos próprios camponeses. Se o camponês argeli-
31 Se, entre os agricultores da CAPER de Aïn-Sultan e de no não consegue escolher entre os dois sistemas,
Lavarande e da SCPACO do Marabout-Blanc, os antigos
e se quer manter ao mesmo tempo as vantagens
fellah’in estão menos descontentes do que os antigos tra- de um e de outro, é porque não pode apreendê-los
balhadores desses mesmos domínios, é porque os primei- enquanto tais: ele tem do sistema econômico mo-
ros podem encontrar no crescimento relativo dos seus ren- derno, sempre percebido a partir do exterior nas
dimentos uma compensação para o abandono das rotinas suas manifestações mais exteriores, uma visão
tranqüilizadoras, enquanto que os segundos perderam a necessariamente mutilada, de modo que dele só
segurança que o salário regular e a perpetuação do modo de
vida tradicional lhes dava, sem para tanto terem consegui-
do os meios para realizar por conta própria a moderniza-
ção e a racionalização completa da agricultura que conheci- 33 Nos termos empregados pela física de solo, os solos
am.
são compostos, principalmente, pelas partículas de areia
32 Interrogado sobre a utilização de adubo, um fellah’ de (fração mais leve), silte (fração intermediária) e argila (fra-
Matmata respondeu, com um sorriso meio irônico, meio ção mais pesada). Logo, “solo leve” é o solo com maior teor
resignado: “Com um arado, usar fertilizante ? É ser muito de areia (solo de praia ou de deserto) e “solo pesado” é o
fresco!” solo com maior teor de argila (nota da revisão técnica).
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A DOMINAÇÃO COLONIAL E O SABIR CULTURAL
relação com o burocrata instituído pela autorida- A decisão que padroniza os salários em 7 fran-
de central, percebido como um “estrangeiro”, um cos ao dia, quaisquer que sejam a quantidade e a
homem da cidade ou um intruso, é, para os anti- qualidade do trabalho prestado, só pode agir na
gos trabalhadores agrários, a ocasião para atuali- mesma direção. De fato, os camponeses são sufi-
zar a relação que mantinham com o colono ou, cientemente versados na prática do cálculo eco-
melhor, com os engenheiros agrônomos da nômico para medir espontaneamente a quantida-
CAPER ou das SCAPCOs. de do trabalho fornecido (segundo a sua qualida-
de) em relação à remuneração recebida: sabe-se
É que, aos olhos do camponês, a posse da
que em muitos lugares os operários, outrora pa-
terra permanece abstrata e fictícia se não se con-
gos por tarefa, reduziram a sua produção propor-
cretiza como “domínio da terra”, quer dizer, como
cionalmente à redução do seu salário; sabe-se tam-
liberdade para organizar soberanamente todos os
bém que o nivelamento dos salários, apesar das
momentos da atividade agrícola, da produção à
diferenças de qualificação, suscita resistências. E
comercialização40. As limitações de poder e as in-
será suficiente apresentar o salário diário como
terferências alteram o sentimento de posse e o
um adiantamento do lucro para que os membros
levam, incerto da sua relação com a terra que cul-
do comitê de gestão se interessem pelo projeto
tiva, a comportar-se como no passado, como um
coletivo? Com efeito, é pedir ao camponês que
simples assalariado; ou então, mesmo se todas as
adote em relação à atividade agrícola uma atitude
garantias lhe são dadas, ele tem a sensação de es-
que lhe é também tão pouco familiar quanto pos-
tar sendo roubado, menos nos seus rendimentos
sível; o seu ceticismo, longe de exprimir somente
e lucros e mais nos seus direitos de proprietá-
sua desconfiança diante do Estado, encarnado pelo
rio41. Em suma, o socialismo libertário arrisca-se
diretor, é constitutivo da sua atitude em relação ao
a atingir fins opostos àqueles que persegue expli-
futuro. Mais ainda, como se pode exigir dele, sem
citamente e a restituir os camponeses à condição
uma longa educação prévia, que compreenda e
de trabalhadores tão pouco empenhados quanto
manipule noções tão complexas e tão profunda-
possível em um trabalho cuja organização aban-
mente estranhas à sua tradição cultural como as
donam a outros e de que apenas esperam um sa-
de cooperação e de lucro coletivo42, que saiba
lário regular.
distinguir entre custos operacionais, investimen-
tos na agricultura coletiva e os investimentos de
interesse comum, ou mesmo, mais simplesmen-
Prévoyance encarna o passado colonial: entre outras coi- te, entre a renda obtida pela venda das colheitas e
sas, uma política de crédito rural mal adaptada tinha feito o lucro líquido?
com que ela aparecesse freqüentemente como uma reencar-
nação da usura tradicional. Estava portanto predisposta a
desempenhar o papel de bode expiatório. Sua função atual
não pode senão reforçar essa imagem: encarregada de arma- 42 No vale de Soummami, uma cooperativa substituiu os
zenar as colheitas, de vendê-las, de repartir os lucros, de empresários que costumavam manipular a compra de figos
organizar o uso dos equipamentos agrícolas e dos créditos, dos produtores. Como o preço de compra só devia ser
ela usurpa constantemente aquilo que os camponeses con- fixado após determinado o lucro líquido, os camponeses só
sideram ser suas prerrogativas. recebiam um adiantamento por conta do valor da sua pro-
40 Se a comercialização dos produtos suscita tantas resis- dução. Contudo, na ausência de uma campanha de informa-
ção, a kubiratif era tida como um comerciante entre outros
tências, é talvez porque sua venda no mercado é um dos
ou, melhor, como um comerciante oficial dotado do apoio
direitos mais exclusivos do “dono da terra”, geralmente o
da “repartição pública” (local), o que suscitava certa des-
mais velho. É também porque ela é objeto de atitudes con-
confiança. Mas a confusão será melhor avaliada se se sou-
traditórias, o camponês hesitando entre a nostalgia da pro-
ber que a cooperativa era constituída por antigos comerci-
dução para o consumo familiar e a busca do lucro; e, tam-
antes de figo: nestas condições, como os camponeses acei-
bém, é claro, porque esta operação facilmente propicia pre-
tariam vender sua produção sem antes passarem pelo rega-
textos para toda sorte de desconfiança.
teio tradicional, sem terem promovido a concorrência entre
41 Entre os camponeses da CAPER, a questão era sempre compradores, sem, sobretudo, terem fixado de uma vez
a mesma: “Quem é o dono desta terra?” Os constrangimen- por todas o preço do quintal de figos e sem estarem seguros
tos que pesavam sobre eles, quer se tratasse da escolha das de receber imediatamente o dinheiro da venda do produto?
culturas, das formas de cultivo ou da comercialização dos Compreende-se que tenham sido poucos os camponeses
produtos, apareciam-lhes como uma negação incontestável que negociaram a sua produção com a cooperativa, e que
das declarações segundo as quais eram eles os “proprietá- todos os outros tenham preferido vendê-la a compradores
rios da terra”. clandestinos que pagavam 80 francos o quintal.
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Confrontado com o teste da realidade, esse sua luta velada contra o Estado-patrão, usem as
sistema, inspirado em uma ideologia populista, está armas tradicionais do subproletariado, a esperte-
se convertendo em seu oposto, uma organização za ou mesmo a fraude43? Seria um exagero dizer
autoritária. A autogestão está gradualmente – e de que a pequena-burguesia letrada usa cinicamente
forma muito lógica – sendo substituída por aquilo a linguagem revolucionária como um instrumento
que os juristas romanos chamavam de negotiorum de exploração. Contudo, não há dúvida de que o
gestio: o tutor, isto é, o Estado, na pessoa do dire- socialismo autoritário, isto é, centralizado e buro-
tor, do administrador ou da SAP, age no lugar do crático, para o qual tendem, por uma escolha ex-
pupilo, que não saiu ainda da menoridade. Seu plícita, ou pela força das coisas, as diferentes ex-
poder está limititado à obrigação de prestar con- periências argelinas, não pode senão servir aos
tas. E pode-se perguntar se a “desconfiança cam- interesses dessa pequena-burguesia que tem inte-
ponesa”, que tanto evocam os críticos, não será resse na burocratização, dando uma justificação
afinal a resposta a uma desconfiança inconfessada técnica e ideológica à sua autoridade e aos seus
em relação ao camponês real, desconfiança que privilégios e colocando-a ao abrigo das exigênci-
se dissimula sob a aparência da generosidade e do as impacientes e freqüentemente incoerentes dos
respeito em relação ao camponês fictício e, pode- subproletários dos campos e das cidades.
se dizer, ideal.
Mas, além disso, se é sabido que o rendimento
Os partidários do socialismo autoritário podem individual médio dos agricultores era, em 1960,
encontrar os seus melhores argumentos na de 160 francos por mês, e o dos assalariados agrí-
constatação das contradições que a autogestão colas, de 132 francos (para o conjunto da Argé-
engendra: tratar explícita e deliberadamente os tra- lia) e, mais precisamente, que 87,1% dos agricul-
balhadores como simples assalariados, totalmen- tores e 89,4% dos trabalhadores agrícolas tinham
te excluídos da gestão e da partilha dos lucros, é, um rendimento mensal inferior a 200 francos, vê-
pelo menos, poupar-se das ambigüidades ou da se claramente que, com os seus 7 francos por dia
má fé das eleições “orientadas” ou dos conflitos e (210 francos por mês) aos quais se acrescentam
tensões entre os representantes eleitos dos traba- os abonos e, eventualmente, uma parte dos lu-
lhadores e os burocratas; é, neste mesmo senti- cros, os fellah’in das propriedades em regime de
do, ganhar em rendimento e rentabilidade, como autogestão não podem deixar de parecer privilegi-
a experiência tem mostrado em muitos casos. Além ados aos olhos dos trabalhadores eventuais, dos
disso, da mesma maneira que se pode argumen- khamnés, dos pequenos camponeses
tar, em defesa da autogestão, que ela visa satisfa- subempregados e da massa dos indivíduos parci-
zer a aspiração muito viva dos camponeses para al ou supostamente ocupados. Para todos aqueles
cultivar as terras retomadas dos colonos como que não obtiveram da independência aquilo que
suas terras, também os partidários do socialismo dela esperavam, a saber, a terra, a decepção já é
autoritário podem justificar-se com o fato de que grande; do mesmo modo, a tensão não pode dei-
os camponeses descamponeisados aspiram à se- xar de aumentar entre os “privilegiados” dos do-
gurança que lhes é dada por um salário regular e mínios autogeridos e os trabalhadores sazonais,
pela condição de “operários-camponeses”. excluídos de certo número de vantagens econô-
micas e políticas (por exemplo, a eleição de depu-
Sem dúvida que esse tipo de organização tem
tados). Assim, ainda que a aposta econômica e
o mérito de apresentar-se por aquilo que é; mas
política nas experiências de autogestão seja imen-
ela não tenderá a substituir pura e simplesmente o
sa, visto que dela depende o futuro da agricultura
colono por uma burocracia estatal? Que benefí-
moderna e a possibilidade de inventar uma orga-
cio duradouro terão tido os antigos trabalhadores
nização simultaneamente justa e eficaz das rela-
agrícolas com a independência, senão o de poder
ções de produção, o setor autogerido não deve e
persuadir-se de que aceitam os seus baixos salári-
não pode ser considerado como um mundo à par-
os por um sacrifício gratuito e em nome da revo-
te. Deixar instaurar-se uma disparidade demasia-
lução? Deverá surpreender que eles permaneçam
do marcada entre uma agricultura rica, assegu-
surdos em relação à exaltação da “consciência
socialista”? Que, comportando-se como simples
assalariados movidos unicamente pela 43 O que vale, evidentemente, para todos os comitês de
maximização do lucro, meçam o seu esforço pelo gestão, onde, devido à ingerência da burocracia, a participa-
rendimento monetário que dele retiram e que, na ção dos trabalhadores é fraca.
57
A DOMINAÇÃO COLONIAL E O SABIR CULTURAL
rando rendimentos regulares e relativamente ele- A intromissão, entretanto, não pode limitar-se à
vados a uma minoria de trabalhadores permanen- esfera econômica, visto que as escolhas econômi-
tes, e a grande massa da população rural, é perpe- cas são também, e antes de tudo, escolhas cultu-
tuar, sob uma outra forma, a contradição que pai- rais. Encerrado na contradição, o camponês não
ra sobre a sociedade colonial e acelerar a pode, fundamentalmente, ter uma representação
descamponeização, fazendo aparecer como ins- adequada da sua condição e, menos ainda, das con-
crita na natureza das coisas a dualidade de dois tradições dessa representação. Assim, cabe a uma
tipos de agricultura e acabando por convencer os elite revolucionária definir com ele (e não para ele)
fellah’in situados nas margens das terras ricas o que ele deve ser em uma e para uma ação orien-
que estão irremediavelmente condenados à eco- tada segundo uma teoria sistemática e realista, quer
nomia de subsistência e ao tradicionalismo do de- dizer, levando em conta todos os aspectos, mesmo
sespero. se contraditórios, do que ele realmente é.
X. O EDUCADOR E O BUROCRATA Contudo, o meio requerido para o cumprimento
dos fins econômicos e culturais, a saber, a inter-
Mas, no fim das contas, em que medida os
venção externa, não é passível de entrar em con-
objetivos de uma política racional são compatí-
tradição com os próprios fins que este meio su-
veis com os fins contraditórios que o camponês
postamente deve servir? Se é verdade, como vi-
argelino traz consigo em estado virtual? Por ra-
mos, que o camponês identifica a “posse da ter-
zões ao mesmo tempo políticas e econômicas, uma
ra”, a condição da sua adesão, com a liberdade de
ação racional deve conciliar meios e fins que po-
fazer o seu trabalho como lhe convém, é evidente
dem estar em contradição sem serem intrinseca-
que uma interferência destinada a organizar e a
mente incompatíveis: em primeiro lugar, a inter-
estimular a atividade conforme os imperativos eco-
venção da autoridade central parece indispensável
nômicos e culturais definidos anteriormente cor-
e, de qualquer maneira, inevitável, seja ela cum-
re o risco de não contar com a participação dos
prida por meio de uma burocracia, seja por meio
camponeses. Isso quer dizer que se deve e se pode
de um sindicato, de um partido ou de um corpo
escolher? De fato, como realizar uma revolução
de técnicos.
econômica e uma revolução cultural sem a parti-
Isso acontece porque, deixados por conta pró- cipação entusiasta das massas? Não se trata, nos
pria, os camponeses assentados nas grandes pro- dois casos, de criar uma nova ética exaltando a
priedades abandonadas pelos colonos e, a fortiori, produtividade e o espírito de sacrifício?
pelos demais, estão propensos a manterem-se fi-
Só uma ação educativa, inclusiva e total, pode
éis ao modo de produção mais tradicional, por falta
ultrapassar as contradições sem as negar magica-
de meios técnicos e financeiros que, e eles sabem
mente pela conciliação fictícia dos contrários. Essa
disso, constituem a condição necessária da mo-
ação supõe, em primeiro lugar, uma definição cla-
dernização e da racionalização e também porque
ra e realista dos fins perseguidos – em suma, uma
toda a sua atitude em relação ao mundo (ligada às
teoria sistemática da realidade econômica e soci-
suas condições de existência pela mediação da
al, fundamento de um programa metódico e pro-
consciência que têm delas) e toda a sua tradição
gressivo. Mas a tarefa de cada educador particu-
cultural tendem a fazer com que escolham
lar não pode deixar-se definir pela letra de um re-
maximizar a segurança, ainda que em detrimento
gulamento que prevê todos os casos particulares:
do lucro, ao invés de maximizar o lucro em detri-
em uma situação revolucionária, o educador deve
mento da segurança. Não se viu, por exemplo, no
vale de Soummam, camponeses organizados es-
pontaneamente em comitês de gestão dividir a
propriedade de um colono em lotes capazes de
instaurar uma organização racional da produção e das rela-
alimentar uma família e cultivar aí, segundo as ções de produção. Daí resulta que a consideração da
técnicas mais tradicionais, trigo, cevada e feijão, racionalidade econômica tanto quanto a exaltação revoluci-
até a intervenção da autoridade central44? onária do espírito de sacrifício levam necessariamente a
combater a volta às tradições culturais mais enraizadas,
como o espírito de clã ou o nepotismo, que constituem um
44 O tradicionalismo do camponês, na sua forma tradicio- obstáculo à gestão racional do empreendimento, provocan-
nal ou na sua forma regressiva, e o ethos que lhe é solidário, do conflitos ou favorecendo o fechamento cada unidade
não podem deixar de entrar em conflito com o esforço para econômica em si mesma.
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 41-60 JUN. 2006
criar, dia-a-dia, o conteúdo e a forma da sua ação gida seria substituída por uma ação particulariza-
prática (quer dizer, de incitação e de organização) da, porque diretamente adaptada a situações par-
e a sua formação prévia deve fornecer-lhe pri- ticulares e a sujeitos particulares. É no confronto
mordialmente os meios de operar essa criação permanente entre as expectativas dos campone-
contínua. A especificidade da ação educativa, na ses e as exigências das elites, responsáveis pela
sua forma ideal, é precisamente a de se adaptar às determinação e pela realização progressiva de fins
aptidões e expectativas daqueles que procura ele- racionais, que pode elaborar-se uma cultura au-
var e transformar, portanto de conhecê-los e têntica, sistema de modelos de comportamento
respeitá-los; de definir, em cada caso, um sistema econômico e social simultaneamente coerente e
de exigências ajustadas a essas aptidões e expec- compatível com as condições objetivas. Se as eli-
tativas, assim como à sua transformação sob a tes revolucionárias quiserem cumprir essa tarefa
influência da ação educativa; em suma, de impe- é, seguramente, delas próprias que deverão exigir
direm-se de propor arbitrariamente exigências tais virtudes excepcionais que, hoje, elas esperam
definidas abstratamente para assuntos abstratos. dos camponeses e, muito freqüentemente, ape-
Assim, a ação centralizada de uma burocracia rí- nas deles.
Pierre Bourdieu ocupou a cadeira de Sociologia no Collège de France, onde dirigiu também o Centro de
Sociologia Européia e editou a revista Actes de la recherche en sciences sociales até sua morte, em 2002.
Ele é autor de vários livros clássicos em Sociologia e Antropologia, incluindo La Reproduction: éléments
d’une théorie du système d’enseignement (com Jean-Claude Passeron; 1970), Esquisse d’une theorie
de la pratique (1972), La Distinction: critique sociale du jugement (1979), Ce que parler veut dire:
économie des échanges linguistiques (1982) Homo Academicus (1984), La Noblesse d’État. Grandes
écoles et esprit de corps (1989) e Les règles de l’art: genèse et structure du champ littéraire (1992).
Dentre seus estudos etnográficos estão: Le déracinement: la crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie
(com Adbelmalek Sayad, 1964), Algérie 60: structures économiques et structures temporelles (1977),
La misère du monde (1993) e Le Bal des célibataires: crise de la societé em Béarn (2002).
Abdelmalek Sayad, sociólogo de origem cabila, foi Diretor de Estudos do Centre National de la Recherche
Scientifique e pesquisador no Centro de Sociologia Européia até sua morte, em 1998. Ele foi um dos
primeiros estudantes e colaboradores de Pierre Bourdieu na Argélia no final dos anos 1950 e devotou sua
vida ao estudo histórico e antropológico das migrações franco-argelinas e aos seus impactos em ambas
as sociedades. Seus trabalhos mais importantes incluem: com Pierre Bourdieu: Le déracinement: la
crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie (Paris: Minuit, 1964); L’immigration, ou les paradoxes
de l’altérité (De Boeck Université, 1992); com Eliane Dupuy: Un Nanterre algérien, terre de bidonvilles
(Paris: Autrement, 1998); Histoire et recherche identitaire suivi de Entretien avec Hassan Arfaoui (St.-
Denis: Bouchène, 2002); A imigração ou os paradoxos da alteridade (São Paulo: USP, 1999) e La
double absence. Des illusions de l’émigré aux souffrances de l’immigré (Paris: Seuil, 1999).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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A DOMINAÇÃO COLONIAL E O SABIR CULTURAL
OUTRAS FONTES
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 133-135 JUN. 2006
ABSTRACTS
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 139-141 JUN. 2006
RÉSUMÉS
LA DOMINATION COLONIAL ET LE SABIR CULTUREL
Pierre Bourdieu (Collège de France) et Abdelmalek Sayad (Centre national de la recherche
scientifique, Paris, France)
La politique française de« regrupement » des paysans algériens, mise en oeuvre pour miner l’appui
populaire à la guerre de libération nationale (1954-1962), a provoqué le déplacement d’un quart de la
population native de l’Algérie en 1960. En disciplinant l’espace et en aménageant rigoureusement la
vie des fellahin, les militaires français espéraient dominer un peuple, mais cela n’a fait qu’achever
ce que la première politique coloniale et la généralisation des échanges monétaires avaient déjà
entrepris : la « dépaysannisation » de communautés agraires dépouillées de tous les moyens sociaux
et culturels qui donnaient du sens à leur présent et qui réglaient leur futur. Ainsi, la guerre a accompli
l’intention secrète de la politique coloniale : la désintégration de l’ordre social local dont l’objectif
était de le soumettre, soit sous le drapeau de la ségrégation, soit sous le drapeau de l’assimilation.
Mais la domination impériale produit aussi un nouvel sujet qui porte les contraditions issues du choc
des civilisations : les modèles de comportement et d’ethos économique importés par la colonisation
et ceux hérités de la tradition ancestrale cohabitant chez le paysan algérien exhilé, ce qui fait naître
des attitudes, des attentes et des aspirations antinomiques. Cette double dimension de la réalité,
objective et subjective, menaçait miner les efforts de socialisation de l’agriculture après l’indépendance,
tandis que la logique de la décolonisation amenait la petite bourgeoisie lettrée des bureaucrates à nier
par magie les contradictions de la réalité comme des fantasmes honteux d’un passé colonial mort.
MOTS-CLÉS : colonialisme; guerre; paysannat; déracinement; impérialisme français; culture kabyle;
Algérie.
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