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‘Trab. Ling, Aplic., Campinas, (38):47-58, Jul/Dez, 2001 MATERNA/ESTRANGEIRA: O QUE FREUD FEZ DA LINGUA MARIA RITA SALZANO MORAES UNICAMP: ABSTRACT ‘This work is a reflection about the possibilty of considering the elation between Mother Tongue and Foreign Language from te point of view f the constuion af the subject Language, We tke es support for ‘Mis reflection the unconscious Freudian bypoesis which presents diferent concept of memory: aconding to Freud, the inscription of language in memery isa proces of readinglwriiag of mene traces, whose Simultaneous epistations in several system do nt allow for thir intnedite recovery. The possibility of ‘ecovering mnemic traces depends necessarily on verbal expression and reading. Accordingly, memory 10 4 great exlent unconscious another way of discussing the status of Mother Tongue unfolds: Mother Tengve does not represent an assredness othe subject. since hele cannot say everthing there. The idea of Mother ‘Tongue a a place of certainty forthe subject is then querioned. Az a consequence of this hypothesis itis aulded to the discussion the strangeness within the language a¢ an organizing clement which permis, in “Mother ToogueForeign Language relationship, the displacement of the concept of otherness, The Foreign ‘Language loses its status of strangers = becate it is diferent and stars to be questioned from the pint of view of a constitutive srangeness of the Mother Tongue itself, I mst be seed that Fetd_ conceives ‘memory and language only and above all as writing systems. I is not ielevant to this work, once ts thie conception of language asa eading/vrting system which gives us elements to question the condition ofthe ‘Mosher Tongue fart and the Foreign Language foreignism. INTRODUGAO Com este trabalho, pretendemos tecer uma reflexdo sobre a relago entre Lingua Matera ¢ Lingua Estrangera, a partir da hipdtese freudiana do inconsciente. Essa hip6tese contempla, de inicio, a incluso do sujeto falante como efeito de linguagem, © toma possivel deslocar a diferenca da relagéo acima referida. A partir da anterioridade legica da insrigao da linguagem no sujeito, cada um se encontra na Lingua Estrangcira dde maneira nica, a sua, no havendo af uma simples relagéo de exterioridade, mas a imermediagao do fato anterior de que a linguagem € condigdo de possbilidade do sujito ‘A intengdo de deslocar 6 conceito de Lingua Materna de uma posiglo de lingua que se aprende com a mie, ou de lingua nacional, para a de causa de sujeito, nos possibilta, de uma certa forma, outra vis30 (nfo psicoldgica) da importancia (psiquica) que a relagio Lingua Materna - Lingua Estrangeira pode vir a assumir para um sujeito. ‘A questio central deste trabalho &a de que entre as Kinguas, tomadas como capacidades simbélicas, nio hi outra diferenga, a ndo ser a partir da posiglo do sujeito na Lingua Materna, A alteridade comumente atribu(da & Lingua Estrangeira é uma alteridade radical, ou sea, esté presente jd na Lingua Materna, 0 que nos permite supor que aquilo que pode apresentar a Lingua Estrangeira como diferente ou semelhante no se esgota em uma deseriglo, uma vez que inclui 0 sujeito que, a partir de sua posigéo na Lingua “Matera, fara diferenga entre as Hinguas. E necessério, portanto, para compreendermos 0 estatuto da diferenga ou da semelhanga entre linguas, que as abordemos a partir daguilo que na Lingua Materna se apresenta como Estranho © como Familia, isto &, daguilo que é Familiar no Estranho ou Estranho no Familiar, e que os tomemos tio somente do ponto de vista de sua relago no sujeito. io tomamos, neste trabalho, Lingua Matera e Lingua Estrangeira como entidades distantes © estranhas uma a outra, pois, se considerarmos, com Freud, 0 psiquico como lugar da linguagem, ou a linguagem como lugar psiquico que inclui 0 outro enquanto falante, hi que se watar essa dualidade - Lingua Materna/Lingua strangeira~ perpassada pelo sujito, de forma a tomar os elementos que a consituem, como s6 existindo na e pela relagGo estabelecida a partir do suite, endo como emtidades que preexistem a ele. A_CONCEPCAO FREUDIANA DA LINGUAGEM - REPRESENTAGAO E ASSOCIAGAO No inicio de sua construcio te6rica, Freud concebe o Aparelho Psiquico como um ‘Aparetho de Linguagem ¢, em seguida, como um Aparelho de Meméria. O Aparelho de Linguagem! (Sprachapparat) nio é um Aparelho para linguagem, mas um aparelho construido com linguagem, © que inclui, de imediato, o outro enquanto falante, nessa constituigio. Assim, esse aparclho nao esté colocado como um instrumento.pré= existente 2 linguagem, mas em uma relagao dinimica com a linguagem, ov seja, a linguagem nao € 56 efeito desse seu funcionamento, mas é também aquilo que o funda, Dessa forma, 0 outro © 0 mundo vio se constituirabjetos, a partir do que a linguagem const Para entendermos quais elementos nos permitem deslocar 0 coneeito de Lingua Materna da naturalidade e da familiridade com que 0 encontramos ao iniciarmos este trabalho, € necessério que observemos rapidamente como Freud tratou, de inicio, 0s conceitos de localizagio, de representagdo e de associagdo apresentados pela Medicina, pela Psicologia e pela Filosofia, para propor sua hip6tese fundamental do inconsciemte AA tendéncia da medicina, em época anterior a Wemicke, era a de localizar faculdades psfquicas (vontade”, “inteligéncia") como um todo em determinadas regifes do encéfalo. Quando Wernicke propde, segundo Freud, que se podem localizar Somente os elementos psiguicos mais simples, as representagSes.sensoriais na terminagio do nervo perférico que recebe a impressio, este foi um grande passo nas Pesquisas sobre as afasias. Mas para Freud, este fato constituiu o mesmo “erro de principio" que o anterior a Wernicke, pois de toda maneira, considerava-se que quando * Sigmund Freed, 1891, A Tuerpetacdo das Afasios, waSo de Antinio Pinto Ribeiro, shox aigdeg 70,1977, p62. idem. p58. 48 uma excitagdo qualquer passava pelas fibras nervosas, estas permaneciam inalteradas, sendo sua fungio apenas conduzir a excitagao entre a periferia eo c6rtex cerebral Freud coloca em questio a relagdo no dinimica entre fungSes e localizagdes e destaca o trajeto da excitagdo sensorial no considerado até entao. Na visio anterior no se consideravam os efeitos do trajeto da excitagio, apenas uma ligagdo entre seu ponto inicial de excitagdo e seu ponto final. Pensava-se que a relagdo entre processos fisiolégicos e psiquicos era causal. O que era dito, em outras palavras, € que a representagao estava localizada na célula nervosa, isto &, que uma excitagao produzia uma representacio no cérebro. O que se depreende na base dessa concepsiio € a nogdo de substancialidade psiquica, efeito do fato de se tratar os fenémenos psiquicos da ‘mesma mancira que os fisicos. O caréter no dindmico dessa postura tem como consequéncia a redugao da associagdo a apenas uma lei: & de uma correspondéncia entre © pensamento ¢ o abjeto. Para Freud, essa relagio € concomitante ¢ deve ser tratada como um processo ‘no como uma causalidade’, Com isso nao se podem mais distinguir duas partes nesse processo, a da sensagio © a da associacio, pois sio dois nomes para designar duas perspectivas do mesmo processo. Representaglo, portanto, nio existe sem a associagao, ou seja, a representago jé € um processo associative. A partir dai jd podemos compreender 0 Aparetho de Linguagem proposto por Freud: um campo complexo de associagdes, no qual a regido da linguagem define-se como uma Grea associativa continua na qual entram elementos éticos, actsticos e motores". Uma vez que a representagio € um processo associativo, Freud a supe niio 6 constitufda pela intervengdo simultinea de componentes actsticos, visuais e motores, como também operando em fungGes relativas a mais de um ponto no territério da linguagem. Portanto, a representacio deve ser entendida como a diferenga entre duas séries de associagdes: de representagdo-palavra e de associagdes-objeto. A. palavra ccorresponde a uma associagao de imagens mnémicas e seu significado sobrevém da articulagdo da imagem acistica com as associages-objeto. E importante destacar que as associagdes-objeto nio constituem 0 objeto ou a coisa externa enquanto unidade, tendo fem vista que, na concepeao de Freud, seu significado no provém do objeto, mas das diferengas nas associagdes entre as varias representagoes. Com essa diferenga fundamental na concepgdo da representagio-associagio, Freud esté recusando a superposigio da ordem das coisas a ordem das palavras, ou seja, recusando a reptesentagdo a fungdo do conhecimento, e, portanto, problematizando a questo do sentido. ‘Como conseqiiéncia dessa concepgio de campo de linguagem enquanto processo, Freud prope o destino da aquisiglo de conhecimentos posteriores & lingua materna’ "A fmgdo da tinguagem apresenta excelentes exenplos de novas agurgtes. E 0 caso de ‘aprender a ler ea eSereser relacionados com a atvidae primdria da lnguagem. Todas a ‘uiras nova aguisges de go da linguagem = xe aprendo a falar ea compreender divers Tinguas esrangires. se, além do alfabeto aprendido em priniro gar, aprendo também © {1eg0 € 0 hebraic, se. a0 lado de minha graf. uso também a esenografiae utr excrtas Todas esses aridades (lids, as imagens mnémicas que ¢ preciso empresar pra iso px “idem p57 idem pp 623. 49 irapassar em muito o mimero dos da nua de orgem) esto evidewtementelocalisdas nas Imesmas dreas que conhecemot com at da primeira lingua dprendda’s Nessa aniculagio de Freud, € possvel entendermos que algo da ondem de um caminho se abre na estutrasao das fangs prima da linguagem, algo que € jt uma insrigo, uma meméria, por onde necesaramente passardo posteriormente tel os outros elementos. Freud esté aqui nos dizendo que toda produgdo simblica tem © mesmo funcionamento, ¢ que, portant, a Lingua Matera prepara, sia mancra, 0 Teto para a oatra ings. E sobre a excita da Lingua Materna no sujito que as outas aguas a aranjam. Este ponto, por si s6, comesa ainterrogar& aturalidade com que atnbuines tanto uma alteridade a Lingua Estrangeis, quanto ma famiiaridade, 9 Lingua Maerna ( onto fundamental para questionarmos a familiardade da Lingua Materna nos trouxe Freud, quando, neste mesmo estudo sobre as afasias nos aponia a questo da funcionalidade A funglo do aparelho de linguagem ¢assocarefazctransposigoes. Ao cricar as concepgées das afasias da cpoca, Freud percebe que. esse aparctho de Finguagem nto precisa adoecer para nfo funcionar bem, ou melhor, seu funcionamento peculiar nfo. necessita da referéncia a uma lesio. Para expicar casos como @ Substivigdo de ldpis por pena, Buster (mantciga) por Mutter (mie), etcs nao € necesssio recorrer& hipStese de uma lesto cerebral. Sto acontecimentos furcionss. para os quais Freud reserva ura explicagdo dindmica, na qual estio em jogo restos de Tinguagem ou residuos menémicos atsociados intensamente que se impoem a0 aparclho, sob a agdo de afeto, evando ao fortalecimento ou ao enfraguecimento da funglo de associa ecujos efeitos de funcionamento consistem no ultrapasamento dos mites do aparebo de linguagem. Para compreender esses acontecimentos, no’ € preciso pressupor, como o faviam anteriormente, a desintegragto do aparciho, eles evelam todos deaividade desseaparctho que foram liberados da restigto de una fangao. Tal como Freud o coneee, exaamente por ser esse aparlho estutrado por linguagem. € gue no podemon prever set” funconamento. Ano articulagao entre a fungio de Ssvociar¢ a mancira dindmica de associar dese aparelho abre-a.posibilidade de © funcionamento desse apareiho ulvapassar sun funglo. Aqui Freud nos convida a repensar a questo do Ero, do Lapso, do Ato Falho em Lingua Matera ¢estender essa ‘ehento para a Lingon Estangeire, MEMORIA E INCONSCIENTE, ‘A maneira como as associagdes se encadeiam na fala permite supor, de acordo ‘com Freud, uma organizagao dindmica da meméria. A novidade fundamental que Freud nos traz € que grande parte da formagio da imagem mnémica nas associagdes de representagdes € separada da consciéncia, pois a meméria é gravada de manciras diversas, em virios registros, sendo que os primeiros sio inacessiveis & consciéncia. Essa organizagio supe que a representagio/trago mnémico de um mesmo contecimento pode ser encontrada/o em diversos conjuntos de sistemas mnémicos, ou * idem, p. 6 igrifo de Frew) 50 seja, que a impressio desse acontecimento abriu caminhos associativos os mais vatiados (© actstico, 0 motor, o visual, entre outros), fato que proporciona & meméria a qualidade ‘de uma no recuperagdo imediata e de uma certa autonomia com relagao aos fendmenos dda consciéncia’ ‘No texto acima citado, Freud propde que o Aparelho Psiquico & um Aparelho de Memsria complexo, constitufdo pelas permanentes e sucessivas reescrigées das inserigdes, de tal modo que 0 trago mnémico, longe de constituir a meméria por Permanecer idéntico a si mesmo, sofre reordenagdes e, a meméria no nos € apresentada ‘como uma propriedade do aparelho, mas como uma construgio eserita associagSes de linguagem. A meméria, segundo Freud, possui ts sistemas de eserita: 0 primeiro seria © dos sinais de percepgio © sua organizagdo se funda a partir de associagdes. por simultaneidade, Esse primeito sistema de escrita no mantém com a consciéncia ‘nenhuma relagio. O segundo sistema é 0 da inconsciéneia, cujos tragos s8o organizados, por associagdes causais. O terveiro sistema é 0 da. pré-consciéncia, ligado as representagies verbais, E importante, entio, retomarmos a proposigao de que, dos trés sistemas de escrita «do material psfquico, 0 tnico que se liga & consciéncia ¢ terceiro, no qual se articulam as representagOes-palavra e as associagbes-objeto na emisso’ dos vocdbulos, As inscrigoes anteriores & consciéncia asseguram, para Freud, a estratificagio da meméria, deixando-a permanecer imanente a0 mecanismo de reter, e ainda assim, permanecer capaz de receber, além de fazerem intervir, de inicio, a impossibilidade de qualquer apreensio consciente imediata do sujeito por si mesmo. Acontecimentos, portanto, que, na passagem de um sistema para outro, ndo so reescritos, vo permanecer em outro lugar, ¢ como que vale para um sistema ndo vale para outro, emitirdo sinais distorcidos de sua existéncia, por exemplo, no esquecimento, ‘no lapso, etc.,revelando um modo de funcionamento desse aparelho. ‘A importincia da concepeao diferenciada da meméria para este trabalho esté no modo como os efeitos de sua constituigdo se impdem na fala e nos atos manifestos do sujeito. O aparetho psiquico funciona segundo um principio que define a alienagio, ou a isfo fundamental do sujcito: meméria e consciéncia se excluem, pois a meméria 6 fundamentalmente inconsciente. Se Freud observa manifestagdes de perturbagSes na ‘meméria e na fala de seus pacientes, no deduz dat falhas na constituigdo do aparelho, mas evidéncias da existéncia de leis primérias de funcionamento, ‘Ainda uma considerago para o desenvolvimento deste trabalho est no fato de Freud caracterizar a meméria tomando a impressdo (Eindruck) do mundo exterior cfetivamente como uma inscrigdo (Niederschrift) e reescrigio (Umschrift) do signo (Zeichen), que se modifica em trago (Spur), fatos estes da ordem da escrita (Schrift). Esse material literal, primariamente inconsciente, ¢, por si mesmo, desprovido de significagao, pode se apresentar como alteridade radical em relago a quem fala, pois std submetido a leis descontinuas de associagio, * Jelley Moasaiff Mason, A Correspondncs Completa de Sigmund Freud para Wibhelm Fiss 1887-1904, tadugo de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Iago, 1986. p 208. si MATERNA, LINGUA ESTRANGEIRA Na experigncia de Freud com as histéricas, a fala mantém um papel peculiar de produtora e, a0 mesmo tempo, de liberadora de sintomas. Pesquisando durante anos as diferentes formas de histeria, Freud observa que nio era poss(vel interrogar 0 paciente para descobrir 0 ponto de origem do fendmeno, uma vez que o paciente no era capaz de recordé-lo ¢, muitas vezes, nao suspeitava da conexio entre 0 evento desencadeador © 0 fenémeno patolégico. Acontecimentos traumatizantes, contra os quais no houve rnenhum tipo de reagdo afetiva, preservavam sua tonalidade afetiva do infcio. Quando essa reago ocorria em grau suficiemte pelas palavras, grande parte do afeto do inicio desaparecia’. Freud percebe entio, com surpresa, que cada sintoma desaparecia quando © paciente havia descrito o acontecido com detalhes, e quando o elemento afetivo era traduzido em palavras, ou seja, quando o paciente trocava o sintoma pela sua expresso verbal. Freud percebe nessa palavra que excede © campo da realidade da exatidio 0 efeito de uma divisio no sujeito que fala, dado que um mesmo fato de pensamento vai Permanecer idéntico a si mesmo, quer 0 sujeito o reconhesa ou no como consciente. O sujeito no sabe que sabe (0 nio-saber do paciente histérico seria, de fato, um nfo ‘querer saber) © a observagdo do aparentemente sem sentido na fala dos pacientes (Pensamentos que o paciente jamais reconhece como seus) possibilita a Freud encontrar ‘um sentido na linguagem do sintoma. Se a fala nio estivesse entre sistemas de linguagem, como podria ela gerar e desatar sintomas, revelando assim, a divisio e o conseqllente desconhecimento de algo intimamente familiar a0 proprio sujeito? Freud percebe que 0 inconsciente s6 se dé a ver através de suas formagSes (sintomas, sonhos, atos falhos, esquecimentos e chistes) que ossuem a mesma estrutura de linguagem. Essas formagdes nio revelam nada além do fato, iredutivel, de que 0 sujeito € falado pela lingua. Freud percebeu 0 eixo comum, entre essas formagdes: como sio feitas de linguagem e ultrapassam o sujeito na fala, so, portanto, decifrveis. Nao no sentido de haver para elas um decodificador universal, mas devido a0 fato de que, se, para cada falante © desejo se inscreve de ‘maneira Gnica, somente sua propria fala poderd gerar os elementos para a decifracio. Freud aborda a lingua de maneira desconcertante, pois coloca em causa qualquer ogo de lingua enquanto saber, sindnimo de familiaridade, pois nessa Iingua, dizer mais do que se sabe, ndo saber o que se diz, dizer outra coisa do que o que se diz, falar para nada dizer, ndo sio mais as falhas da lingua, sdo propriedades inelimingveis e Positivas do ato de falar, Nessa lingua, a fala do sujeito testemunha a presenga de um saber que age a despeito de seu querer consciente, a determinago de um dizer no qual se desconhece, divisio que, longe de ser uma ignoriincia, é sua propria atividade. ‘Melman’ afirma que a lingua materna é aquela na qual, para aquele que fala, a mle fj interditada ¢, dessa forma, apresenta-a com um trago negativo, pois tomé-la positiva ¢ apressadamente como veiculada pela lembranga daquela que nos introduziu na fala, seria uma resposta ja a0 alcance da mio, por estar incluida no proprio significame 7 Sigmund Freud, 1893-5, Estudos sobre Miter, ESB, v. 2, Ro e lane: nag, 1996, np, 39-44 * Charles Melman, Jnigrawes: iciénciar mbjetivor das madangas de lingua e pate, Conardo ‘Calligaris (og), radugdo de Rosane Peers, So Palo: EatoraExeua, 1992, pp. 15-32. 32 “materna”. Ela 6 € matema a partir do objeto que ela interdita, isto é, por nela faltar justamente 0 que é “materno” e, por isso mesmo, o sujeito poder ser “falado por ela”. Nessa lingua, 0 sujeito no fala como mestre, portanto nio pode dizer tudo. A objetividade impossivel dessa Iingua coloca’ 0 sujeito em uma posiglo de desconhecimento de si préprio. ‘Lingua Materna, a partir da hipétese freudiana do inconsciente, revela-se um ponto ‘nodal em que lingua ¢ desejo se articulam, 0 que nos permite avangar para além de seu significado de Lingua que se aprende com a mile, para a de condigio de estruturagao psfquica, configuracio de subjetividade. ‘As consideragdes que fizemos sobre a assim chamada Lingua Materna, tendo como base a hipétese do inconsciente, nos autorizam a pensar que a exterioridade radical do desejo em relacdo a consciéncia pode fazer supor que essa lingua, na qual 0 sujeito é, afinal, estrangeiro, possa se exprimir melhor em uma Lingua Estrangeira, em ‘que uma suposta auséncia de interdigdo da mie possibilita imaging-la como um saber alcangével. Sc o sujeito, no mal-estar em que a Lingua Materna o coloca, vai para a Lingua Estrangeira com a (ilusio da) certeza de Id poder dizer tudo, e como diz Prasse”, com ‘um “desejo de ter escolha, de poder escolher a lei...desejo de ser livre para escolher uma fordem na qual "se exprimir’, de impor-se uma ordem por um ato voluntério”, & necessirio que se tome primeiramente essa “ilusfio” no sentido que Freud dé a ela, ccontrapondo-a ao erro, na medida em que faz intervir, para a crenga constitutiva da ilusdo, a participagio do desejo: “o que caracterin a ilusdo ¢ odervarse dos dejo humanot.¢ iusto quando wna realizagao «de desjo consi ftorproeminente em sua motsagdoe. ast procedendo,despresames ss relagdes com a relidae, tal come a prpria iusto nao da valor dveriicardo™ Na impossibilidade de habitarmos a Lingua Matera, Lingua Estrangeira pode vir ‘a representar o Ideal-de-lingua, causa de desejo, posto que se trata de desarticular desejo € lei. O que leva o sujeito para a Lingua Estrangeira € o impossivel de dizer na propria lingua. Nas palavras de Melman: “Constituir seu impossivel ao designé-lo como Estrangeiro, dé a cle a0 mesmo tempo um semblante de razio""', Essa realidade cconstitui a 16gica do lugar da Lingua Estrangeira para o sujeito, légica que pode passar despercebida nos casos nfo reconhecidamente patolégicos. Para avangarmos ainda no desdobramento da hipstese dessa relaglo Lingua ‘Materna ~ Lingua Estrangeira, a partir da reflexdo que fizemos a respeito da estruturagao, do sujeito por linguagem, devemos procurar, de acordo com as premissas das quais partimos, muito mais a existéncia de um elemento organizador, do que diferenciador na elagio do Estranho-Familiar, elemento de linguagem que comparece na lingua ¢ surpreende o sujeito. * Jun Prase, "O desejo das Lingus estangeies".in A Clinica Lacanana, Revises Internacional. 1 Rio de Janeiro: Eitora Cia. de Free, 1997, pp. 6-73 ‘Sigmund Freud, 1927. 0 Futuro det Hludo, ESB, v.21, Rio de Janeiro: Imago, 196, Carles Meinan,inigranes. 0p. ct. p19. 53 Tentaremos exemplificar, pelo relato de dois casos peculiares, os modos como os efeitos do Estranho na Lingua Matera e do Familiar na Lingua Estrangeira falam no sujeito. (O FAMILIAR NA LINGUA ESTRANGEIRA - 0 CASO DE ANNA 0. Escolhemos 0 caso dessa paciente de Freud, por sua pertinéncia neste trabalho, ‘uma vez que Freud elenca, entre os sintomas de Anna O., 0 esquecimento da lingua ‘materna (0 Alemio),trocada, durante longos periodos, pela lingua inglesa, ‘A paciente Anna O. encontrava-se sentada & cabeceira do leito de seu pai enfermo, quando colocou 0 braco direito sobre 0 espaldar da cadeira e adormeceu por cansago, entrando, em seguida, em um estado alucinatério. Viu, como se saisse da parede, uma cobra negra que se aproximava do doente para mordé-lo, Tentou afugentar a cobra, mas ino péde fazé-lo, pois seu brago encontrava-se dormente e insensivel. Acrescenta-se a isso 0 fato de que, durante a alucinagao, a0 olhar para deus dedos, estes haviam se transformado em pequenas cobras, cujas cabegas (as unhas) eram caveiras. Quando a cobra desapareceu, “ela tentou recar, mas ndo conseguiu encontrar as palavras em nenhum idioma, até que, lembrando-se de um poema infantil (ou oracao) em Inglés, éde pensar e rezar nessa lingua” ‘Segundo Freud, o estado (afeto) emocional de angiistia, determinado pelo impacto dda conjungao entre a alucinag’o e © adormecimento do brago (paralisia), teve como cconseqiiéncia uma inibicao da fala, que encontrou uma descarga fortuita nos. versos do poemaloragio infantil em Ifngua inglesa!”. As imagens sonoras acham-se intimamente ligadas as imagens verbais motoras, pois investimento que constitui as representagdes passa da imagem sonora para a verbal e, daf, para a descarga. Sdo os signos da descarga, na fala, que equiparam os pprocessos de pensamento aos perceptivos, © emprestam-lhes uma realidade ¢ uma meméria, © proceso motor da fala esti, desse modo, intrinsecamente ligado a0 movimento ‘em geral. Daf entendermos a ligae2o (motora) que se estabelece entre a inibigdo da fala da paciente de Freud, e a paralisago de seu brago. No momento traumético da alucinagdo com a cobra, Anna no conseguiu mover-se € nio encontrou as palavras na lingua alema, Passemos agora A questio da representagio ¢ do afeto. Freud havia dito que 0 afeto de angtistia, determinado pelo impacto da alucinagao, e somado ao adormecimento do Drago, ndo péde ligar-se a uma representagio adequada (inibigio da fala na lingua lem) para sua descarga, encontrando possivelmente uma outra representagio (da fala fem Ifngua inglesa) com certa carga emocional (orago ou poema). Mas, apesar de encontrar a descarga ‘fortuita’ na Ungua inglesa, seu brago, apés 0 incidente, ppermaneceu paralisado. Sigmund Freud, Euudos sobre Histeria, op. et. p. 4D € 73 34 Segundo 0 que compreendemos da letura de Estudos sobre Histera, a paralisia & interpretada por Freud como uma lesSo que nio depende da anatomia do sistema nervoso, mas se const6i imagindra e simbolicamente. Uma representa particular € intolervel, porque allamente investida de afeto, deixa de integrar o conjunto das representagdes © ao ligar-se a outra represeniagio, converte-se em sinfoma. A transformacao posterior da representagdo intolerével (o temor de ver set pai doente 'mordido pela cobra e sua paraisa) em sintoma (falar inglés e a paralisia do brago), est referida & prépria ligago motora entre as duas representagBes (a fala na lingua materna €.a paralisia). O aeréseimo dessa outra representagdo (falar inglés) € decisivo, porque ela escapa ao saber. E por isso que Freud diz que o trauma se transforma em sintoma, na medida em que existe uma ‘elagio simblica’ligando aqoilo que ele evoca com uma utrarepresentagdo, sem que o Eu dca tenha noticias ou possaintervi para impel Essa outra representagio comporta um excesso de afeto do qual 0 Eu nio pode se libertar, portanto,subtai do registro do Imagindrio um de seus suportes simbotico, 0 qual assume esse excesso de afeto que pertence & outrarepresentagdo, dando ao sintoma seu peso de real. Segue-se que, apés esse acontecimento, a paciente apresentow constantes contraturas © anestesias no mesmo brago e, relata Freud, paralelamente a0 desenvolvimento das contraturas, surgiu uma profunda desorganizagao funcional da fala. A principio, seniadifculdade em encontrat as palavtas. Depois, perdeu o dominio da gramticae da sintaxe: nfo mais conjugava verbos © acabou por empregar apenas os infinitivos,formados incoretamente a partir dos particpios passados, alm de omit os artigos definidos e indefinidos. Com 0 passar do tempo, ficou quase desprovida de palavras. Juntava-as penosamente a partir de quatro ou cinco idiomas tornou-se quase ininteligivel™. Esse distrbio denuncia os diferentes nives funcionais da estrturagao das funges 4a linguagem. f dos casos patolégicos de les4o orginica na érea da lingvagem, conseqllentes distirbios na lingua materna, que Freud extra sua hipStese sobre a estruturagio das fungdes da linguagem. No caso de lesfo, diz Freud, aquilo que foi inscrto mais recentemente, e permanece mais efiiente, € 0 que se perde primeiro esses casos a lingua materna éa tims a softer os danos de uma lesto. 'No caso da paciente de Freud, nfo houve lesfo, No entanto, nfo passou para 0 Inglés antes de apresentar uma espécie de ‘afasia’na lingua matera, Essa desfungao da fala na lingua matera aconteceu ao mesmo tempo em que comeyou a apresentar contraturas, anestesias ¢ paresias no brago, A parafasia se deu gradativamente: foi perdendo aguilo que Freud chamsa de “ungdes da lingvagem’,repetindo uma situagio due se apresenta normalmente durante a insrigdo dessas fungoes, até, finalmente emudecer por completo ‘A representagdo intolerdvel foi esquecida (assim como foram se perdendo as fungdes da fala na lingua materna), desaparecendo também a representaglo das uss imagens motoras, a da fala na propria lingua ea do movimento. Actescenta-se a representagdo da lingua strangers, que veio em seu socorro, no momento de aig. "Sigmund Feud, Exudos sobre Histeria op. ip. 60. 55 No relato de Freud, o fendmeno das contraturas associou-se de tal maneira a ‘questio da fala que, posteriormente, quando a paralisia regrediu, a paciente passou 20 sintoma: “passou a falar apenas inglés - s6 que, aparentemente, sem saber 0 que estava fazendo (pois discutia com a enfermeira, que nio conseguia entende-la)". Meses depois, Freud consegue convencé-la de que ela estava falando Inglés", Podemos nos perguntar, agora, a respeito da ‘familiaridade’ com que é tratada a lingua estrangeira neste caso. Parece-nos que esta, pela maneira como 0 caso é apresentado, vem no lugar do estranhamento na lingua materna; devido & condligio de alteridade da propria lingua materna, representago absolutamente estranha, a lingua estrangeira se apresenta como o mais familiar. Gostariamos de destacar que privilegiamos esse caso, porque, se estamos considerando, com Freud, 0 sujeito, constituldo por linguagem, esse caso vem, justamente, interrogar os estatutos de ‘familiar’ - atribufdo a Lingua Materna - e de “estranho" - atribuido & Lingua Estrangeira. A concepcio de sujeito que adotamos, nos permite tomar, na representagio do Estranho, o elemento organizador, © no diferenciador, nessa relagao ‘entre’ linguas. E através dessa representago que se dé a ‘passagem’ entre linguas. A inclusio do sujeito, nessa perspectiva, permite que 0 Estranho ndo as diferencie, mas que as cologue, como diz Freud, ‘nas mesmas éreas', {que as tome primeiramente enquanto elementos de linguagem, de maneira que se possa entender a Lingua Estrangeira como uma leitura, que faz. 0 sujeito, a partir da Lingua Materna. 0 ESTRANHO NA LINGUA MATERNA - 0 CASO DE WOLFSON'® Da leitura que Fontaine faz. da obra de Wolfson, interessa para © nosso trabalho destacar e extrair conseqiigncias das agées que Wolfson empreende a partir de sua relagio com a lingua matema, 0 Inglés. Autor de ‘Le schizo et les langues’ (1970), Wolfson escreve em francés em sua luta com a perseguigio da lingua matema, contra a qual ele se empenha em um trabalho de desarticulacao, Esse livro é a maneira pela qual o autor recebe € reage 3s sonoridades de sua lingua materna (¢ particularmente a voz de sua mile), pois os sons da lingua materna fazem surgir em sua cabeca um eco intolerivel, vizinho da dor, que ele trata de suspender. Para isso, no pode fazer nada menos do que destruit, sistematicamente, todas as palavras da lingua inglesa, isto, desarticular todos os voedbulos dessa Kngua, fonema por fonema, ‘Mas nio € somente a voz materna, enquanto tal, que faz com que ele falhe em se

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