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A Peregrina Das Letras
A Peregrina Das Letras
Assim, a escritora aponta que aquele local, outrora usado para cometer
inúmeras atrocidades contra as pessoas negras, convertera-se “em passeio
público”, evidenciando-se não somente a não preocupação em manter preservadas
as lembranças do local, mas também o interesse em marcar esse local de memória
em uma paisagem de esquecimento, isto é, sobrescrever as lembranças,
inscrevendo outras. Além disso, Emília Freitas coloca em xeque a expressão “nação
civilizada”, pois um país em que ainda ocorre atrocidades contra a dignidade
humana não pode ser considerado civilizado.
Ainda em 1891, Emília Freitas reúne seus poemas, produzidos nas décadas
1870 e 1880, na coletânea intitulada Canções do lar. Em tal obra, grande parte dos
poemas são dedicados à memória de familiares e amigos, como o poema intitulado
Segue, em homenagem à escritora Francisca Clotilde (1864-1935). Ademais, há
poemas que tratam de questões políticas e do sofrimento das pessoas negras
escravizadas.
Cena
Com uma enchente real, realizou o promissor Club Ordem e Progresso, no
seu Teatrinho Guarany, no dia 25, o seu 13º espetáculo, o importante
drama – Nossa Senhora da Penha – de nossa Secretária de redação
[Emília Freitas]. (MARANGUAPE apud OLIVEIRA, 2007, p. 152).
Independência
Independência não é uma palavra vã, vazia de sentido ou que possa torcer
como aquelas que significam os sentimentos e ideias abstratas.
Independência é uma realidade, um fato como deveria ter sido o 7 de
setembro de 1822.
Mas teria o Brasil se tornado na realidade um país independente?
Não, porque durante 66 anos de [caprichosa(?)] monarquia o Brasil
agachou-se às ideias religiosas da Sabida Roma, sujeitou-se ao engenho e
à indústria dos países da Europa, marchando assim sobre pegadas de um
progresso alheio. Só depois de 15 de novembro de 1889, com a
Proclamação da República, o filho deste predestinado torrão da América do
Sul foi realmente brasileiro sem mescla de europeu.
Felizmente, hoje já nossa Pátria a[go]ra trabalha por si mesmo e só o
trabalho intelectual e físico pode tornar um povo livre. [...]. (FREITAS apud
OLIVEIRA, 2007, p. 154)
Ainda nessa introdução, a escritora faz uma crítica aos que cobravam uma
produção literária excepcional das mulheres, sendo que eles mesmos limitavam os
espaços de vivência e expansão do conhecimento delas. Para Emília Freitas, era
inconcebível exigir tal desempenho dessa mulher que vivia “encerrada entre
paredes de uma estreita habitação, longe da sociedade culta e de todo o movimento
literário" (FREITAS apud DUARTE, 2003, p. 8).
Canções do lar
Tem este nome um livro de versos da lavra da exma. Sra. D. Emília Freitas.
Mais de espaço nos ocuparemos d’essa obra.
Agradecemos o exemplar com que nos obsequiou a sua inteligente autora.
(DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1891, p. 3)
Nos poucos textos críticos sobre a obra, todos discorrem sobre a falta de
alinhamento com a estética literária vigente e sugerem à escritora a produção de um
texto mais voltado para observação e menos fantasioso. Em 14 de julho de 1900, na
revista A tribuna: do congresso literário, do Rio Grande do Norte, em uma carta
aberta, Antônio Marino (1900, p. 6-7) afirma que:
Nesse sentido, mais uma vez, a obra é considerada deslocada de seu tempo.
Emília Freitas, de fato, não tinha o interesse de narrar uma história de cunho
realista-naturalista, mas sim uma história fantástico-maravilhosa3. O recurso
fantástico utilizado pela escritora no romance não é gratuito, pois serve como uma
estratégia para veicular representações femininas que não eram aceitas naquela
sociedade, dado que, no século XIX, era mais aceitável, para a sociedade, uma ilha
regida por leis sobrenaturais, onde mulheres possuíam habilidades até então
atribuídas somente aos homens, do que desenvolver essa narrativa em um espaço
regido pela lei natural.
Essa questão do gênero, como aspecto que serve para valorar as obras, é
tão preponderante na recepção crítica da produção literária de autoria feminina que
até mesmo Otacílio Colares, no prefácio da segunda edição do romance, traz um
discurso de tom preconceituoso.
Não lhe cabia, por temperamento, mesmo por natural feminilidade, investir
para os avanços da linha naturalista de contemporâneos seus da ficção
cearense, como Pápi Júnior e Adolfo Caminha. Também não lhe achou
conveniente à natural sensibilidade e escapelo de um Rodolfo Teófilo, mas
digno de ser estudado como regionalista que como naturalista de grei
literária, ou de Domingos Olímpio, devendo à sua maneira de ser, como a
de Francisca Clotilde, comporta-se na preponderância costumista de Aves
de Arribação, de Antônio Sales. (COLARES, 1980, p. 14).
Ao afirmar que Emília Freitas não se encaixou à estética naturalista por sua
“natural feminilidade”, confirma-se que o preconceito – visivelmente de gênero –
quanto à produção literária feminina perpassou por gerações. Ainda que Otacílio
Colares, situado no século XX, seja investido de um determinado conhecimento da
historiografia literária que os críticos anteriores não possuíam, isso não o eximiu de
perpetuar o pensamento sexista sobre a obra de Emília Freitas.
Assim, mesmo depois de ser criticada, em seu tempo, por não usar o modelo
estético em voga, a escritora cearense ainda explorou o recurso sobrenatural na
produção da peça Nossa Senhora da Penha em 1901. Essa produção de Emília
Freitas não foi encontrada, contudo, há registros no jornal Maranguape sobre a
peça:
Para Duarte (2003, p. 9), o prólogo do romance “pode ser lido quase como
uma ‘profissão de fé’ e de modernidade para a época, tal a sua lucidez”. Tabak
(2011, p. 107) explica que ele “funciona como paratexto que desmascara a
submissão autoral aos caprichos da crítica, tão habituada aos escritores brasileiros,
tecendo uma defesa apaixonada da protagonista, expondo-a como possível
máscara ficcional”. Sobre a protagonista, Emília Freitas declara:
Tenho a certeza de que alguns ou quase todos os que lerem este livro hão
de achar sua protagonista demasiadamente extravagante. Mas, se
considerarem nos gênios, que são verdadeiras aberrações da natureza,
seja o desvio para sumo bem ou sumo mal, verão que a Rainha do Ignoto
não é na realidade um gênio impossível, é simplesmente um gênio
impossibilitado que, passando para o campo da ficção encontrou os meios
de realizar os caprichos de sua imaginação raríssima e da propensão
bondosa de seu extraordinário coração.
O feito de Joana D'Arc é um fato que passou para o domínio da história.
Mas não nos parece ele uma lenda? (FREITAS, 2003, p. 17).
A escritora pontua ainda a história de Joana d’Arc para sustentar que sua
protagonista não era uma mulher tão impossível de existir. Também nos faz refletir
sobre o fato de que ações praticadas por mulheres que escapavam aos padrões
sociais eram tidas como do domínio do lendário, logo, consideradas inverossímeis;
e a busca e representação dessas mulheres desestabilizavam a ordem masculina,
na qual os homens deveriam ser os únicos detentores da força e as mulheres
sempre frágeis e sensíveis. Nos parágrafos finais, Emília Freitas obstinadamente
conclui:
Hoje, com mais razão podemos nos apoderar do inverossímil; pois estamos
na época do Espiritismo e das sugestões hipnóticas, nas quais fundamentei
o meu romance.
Não me assusta a crítica sincera dos que, sem prevenções malévolas,
pautadas pela justiça, me fizerem enxergar defeitos reais que minha
ignorância, ou meu descuido, não pôde ver: mas, embora receie a
rivalidade imprópria das almas grandes, do verdadeiro talento, não
recuarei. De ouvidos cerrados, seguirei desassombrada no dificultoso
caminho da Literatura Pátria. (FREITAS, 2003, p. 17, grifo nosso).
A ideia fixa em encontrar essa mulher misteriosa o faz conhecer outra figura,
o caçador de onças, que mais tarde se revelaria como o Sr. Probo, a quem a Rainha
impediu de tirar a própria vida e pagou uma dívida alta. Então, em troca dessa
benevolência, ele teria que prestar uns serviços à Rainha, como apresentar-se, ao
sair da ilha para outros lugares do país, como suposto comandante de suas várias
embarcações ou como seu pai.
[...] Este tesouro acumulado na mão deste diabo deve ser considerado um
crime! Ela não podia explorar as minas da ilha e explora; não contente com
isso, funda com nomes imaginários casas comerciais, fábricas, engenhos,
centros de lavoura e grande criação de gado; de forma que tem em todas ou
em quase todas as províncias do Brasil, um rendimento fabuloso! E para
quê? Para desperdiçar em fantasias loucas! em benefícios extravagantes!
Em fazer mal à propriedade alheia; pois rouba ao senhor para dar ao
escravo. Que absurdo! É abolicionista! Já eu a ouvi dizer que não há lei
alguma de direito humano que possa escravizar um cidadão, que a condição
de escravo resultou de um abuso da força contra a fraqueza, e urge reagir...
(FREITAS, 2003, p. 150)
Então, para que Edmundo entre na ilha, Probo planeja colocá-lo no lugar de
uma das paladinas preferidas da Rainha, que havia morrido, mas ninguém tomou
conhecimento do seu falecimento. Chamava-se Odete, era muda e tida como louca
pelas outras mulheres da ilha. Trajando uma bata branca e usando uma máscara,
Edmundo finge ser Odete e adentra na ilha. Assim, o rapaz passa três anos ao lado
das paladinas viajando pelo país todo, sendo testemunha dos seus grandes feitos,
dentre eles, o resgate de mulheres, escravos e crianças que viviam em situações
degradantes.