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A vida dos grandes brasileiros Santos Dumont INDICE Cronologia 9 Album fotografico 13 1 - Voarl... 45 2-A familia 51 3 - Dias de infancia 56 4 - Pela primeira vez em Paris 62 5-Abusca 65 6 - "Brasil" o mais belo! 72 7 - No oceano do espaco 75 8 - Os dirigiveis 79 9-Os "Santos Dumont" 85 10 - E a Europa curvou-se ante o Brasil 96 11 - Ménaco 104 12 - A"Passadeira" 109 13 - Tropicalia 115 14 - "Que é que vocé faz agora?" 122 15-0 "14-BIS" 127 16 - Voar € com os passaros 131 17 - Aforca das asas 137 18 - O caso dos Irmaos Wright 139 19 - O caso Clémente Ader 144 20 - Uma volta aos baldes 148 21 -"La Demoiselle" 152 22 - Em desastre de aeroplano morre um Bardo que ia a um baile 160 23 - Ele vem calvo 165 24 -"Eu que tenho algo de sonhador..." 168 25 - No Chile e Argentina 172 26 - Pelo éxito da aviacao no Brasil 175 27 -"AEncantada" 179 28 - Cabangu 182 29 - Viajar, viajar... 186 30 - A criatura contra 0 criador 194 31 - Quer a paz das criangas 200 Os aparelhos construidos por Santos Dumont 205 Os pequenos inventos de Santos Dumont 209 O tempo de Santos Dumont (Bela Epoca) 213 Opinides sobre Santos Dumont 231 Santos Dumont e a imprensa 239 Bibliografia 249 A VIDA DOS GRANDES BRASILEIROS Supervisdo da obra: Afonso Arinos de Mello Franco e Américo Jacobina Lacombe A VIDA DOS GRANDES BRASILEIROS ISBN da obra 85-7368-638-3 ISBN deste volume 85-7368-624-3 Editores: DOMINGO ALZUGARAY CATIA ALZUGARAY Coordenacao Editorial: ARMANDO GONCALVES Arte: SANDRO BEZERRA DE CAMARGO Capa: WEBERSON SANTIAGO. Pesquisa Iconogrdfica: DILICO COVIZzI Fotos: Prensa Trés © Copyright Mundial 2003. GRUPO DE COMUNICAGAO TRES S. A. Rua William Speers, 1088 Lapa — CEP 05067-900 Sao Paulo - SP ~ Brasil Impressao: Editora Trés Ltda. Rodovia Anhangiera, Km 32,5 CEP 07750-000 - Cajamar — $P - Brasil Santos Dumont Texto: Francisco Pereira da Silva Supervisao deste volume: Américo Jacobina Lacombe \/ % = Brasillelecom Biografias que compéem esta colecio: Rui Barbosa José Bonifacio Castro Alves Marechal Deodoro Machado de Assis Duque de Caxias Santos Dumont Bardo do Rio Branco D. Pedro | Villa-Lobos Euclides da Cunha D. Pedro II Oswaldo Cruz Joaquim Nabuco Rodrigues Alves Gongalves Dias José do Patrocinio Candido Portinari Marechal Rondon General Osorio g q S D § g 5 QR 1873 — 1874/79 1878 — 1888 — 1890 — 1891 — 1892 — CRONOLOGIA Julho, 20. Nasce Alberto Santos Dumont, no lugar de- nominado Cabangu, cuja cabega de comarca se cha- mava Jo’o Gomes, mudando depois para Palmira, Mi- nas Gerais. Seu pai era o engenheiro Henrique Du- mont e a mae, d. Francisca Santos Dumont. — Vai morar com a famflia em Casal, fazenda de café do avé materno, que o pai administra, e que fica per- to de Valenca, Estado do Rio de Janeiro. Muda-se, com a familia, para Arindetiva, fazenda de café que o pai adquire, préxima a Ribeirao Preto, So Paulo. Vé, pela primeira vez, um baldo cativo na capital de Sfo Paulo. O baldo devia fazer parte de alguma expo- posigdo, ou possivelmente pertencia a algum aeronau- ta, profissional de parque de diversdo. © pai torna-se hemiplégico e vende a fazenda, que pos- suia cerca de 5 milhdes de cafeeiros. Aos 18 anos, viaja com a familia para a Franca, a bor- do do “Elbe”, onde o pai pretende curar-se da hemi- plegia freqiientando as termas de Lamalou-les-Bains. Visitando com o pai, em Paris, uma exposigdo de mé- quinas no Palacio da Indistria, descobre um motor a petréleo, Novembro, pelo “Portugal”, regressa com a familia ao Brasil e vai residir numa casa da rua Helvetia, em So Paulo. emanctpado pelo pai, que também lhe entrega uma fortuna em titulos. Acompanhado dos pais, volta A Eu- ropa, onde pretende estudar em Paris, Mas Henrique Dumont, chegando a Portugal, sente-se pior de satide e volta ao Brasil. Agosto, 30. O pai falece no Rio de Janeiro, Promove, no velédromo de Parc des Princes uma cor- rida de mototriciclos. 1897 — Descobre, numa livraria do Rio, 0 livro de Lachambre e Machuron; Andrée au Péle Nord en Ballon. Volta a Paris e pela primeira vez sobe em baldo esfé- rico, pertencente & firma Lachambre et Machuron. 1898 — Em Vaugirard sobe com passageiros em baldo esférico. Torna-se um voluntario piloto de balfo, para a firma Lachambre et Machuron, Encomenda & mesma firma um pequeno balao para seu préprio uso, a que dé o nome de “Brasil”. Descobre o motor do triciclo a petrdleo. Participa da corrida de automoveis Paris-Amsterd4, em carro adaptado com motores de triciclo, Constroi o seu primeiro balao dirigivel, o “Santos Du- mont n° 1”, Setembro, 18. Experiéncia mal sucedida com o “Santos Dumont n° 1”, Setembro, 20. Navega pela primeira vez no “Santos Du- mont n° 1”, tendo descida acidentada em Bagatelle, com amea¢ga do baldo dobrar-se ao meio. 1899 — Maio, 11. Ensaio fracassado com o “Santos Dumont n° 2” que se dobra ao meio no momento da elevacao. Novembro, 13. No “Santos Dumont n.° 3” faz uma, feliz ascens&o, partindo do Campo de Marte, contornando a torre Eiffel, descendo no Pare des Princes. Manda construir em Saint-Cloud um hangar para os seus baldes. 1900 — Agosto, 1.°. Termina a feitura do “Santos Dumont n.° 4”, A Comissao Cientifica do Aeroclube concede-Ihe 0 “Pré- mio de Encorajamento”, de 4 mil francos, Com o dinheiro do prémio, instituiu o “Prémio Santos Dumont”, como incentivo aos pesquisadores da aeros- tag&o de dirigiveis, 1901 —- Julho, 12. No “n.° 5” yoa sobre Longchamps e contorna a torre Eiffel. Julho, 13. Concorrendo ao Prémio Deutsch, de 100 mil francos, ao contornar a torre Eiffel um golpe de vento violento 0 atira contra as arvores do parque Rothschild, Agosto, 8. Insistindo na prova Deutsch, 0 balao perde Bas e vai cair, explodindo sobre as paredes de um edi- ficio do Trocadero. Preso as cordas e @ quilha do balao, é€ retirado, ileso, pelos bombeiros. Outubro, 19. No “Santos Dumont n.° 6” ganha o Prémio Deutsch, partindo de Saint-Cloud, contornando @ tor- re Eiffel e voltando ao ponto de partida no espaco de 29 minutos e 30 segundos (30 minutos era o tempo esti- pulado para a prova). 1902 — Janeiro, 29. Sobe no “n° 6” em Monte Carlo, onde passa uma temporada naquela cidade. a convite do principe 1903 — 1904 — 1905 — 1906 — 1907 — Dino, que mandou construir no bulevar de La Conda- mine um aerédromo e hangar para os seus baldes. Fevereiro, 14. Acidente com o “n.° 6”, que sossobra nas aguas da baia de Ménaco. Primavera-verao. Visita Londres, Nova York e Sao Luis. Falece, em Portugal, sua mae, d. Francisca Santos Du- mont, Constréi, neste ano, os dirigiveis n.°s 7, 9 e 10. Julho, 14. No dirigivel ‘n.° 7”, chamado de La Balla- deuse, toma parte na grande parada militar de 14 de Julho. Escreve Dans V’Atr (Os Meus Balées), Recebe do gover- no francés a comenda de Cavaleiro da Legiéo de Honra. Escreve artigo para a revista Je Sats Tout. Projeto do Santos Dumont n.° 11. Agosto. Ascensio, em Trouville, do “Santos Dumont n° 14, Numa corrida de lanchas na Céte d’Azur, toma conhecimento do motor “Antoinette”, e conhece o seu fabricante, Levavasseur. “Santos Dumont n.° 12”, helicéptero, 2 hélices. “Santos Dumont n.° 14”. Constréi um tipo de aeroplano aquético, com asas do tipo do “napagaio celular de Hargrave”. Experimenta o aparelho como planador, conseguindo, para isso, pren- dé-lo a uma corda e esta a um barco-automédvel, que o impulsiona. Constréi novo aparelho — um biplano — e para testar seu equilibrio e direg&éo, prende-o sob o dirigivel “n.° 14”, desprendendo, depois, deste. Mas o biplano fica conhe- cido por “14-Bis”. Setembro, 7. Campo de Bagatelle. Consegue elevar-se no biplano por um segundo. Setembro, 13. Campo de Bagatelle. Faz no biplano (“14- Bis”) um pequeno véo de 8 metros. Setembro, 30. Participa da Taca Gordon Bennet para balées livres, mas ferindo o brago numa transmissdo te- ve que aterrissar perto de Bernay. Outubro, 23. Campo de Bagatelle. Consegue elevar-se do solo a uma altura de cerca de um metro e a uma dis- tancia de 60 metros, ganhando a Taca Archdeacon, ofertada ao piloto que em sua maquina, e por seus pré- prios recursos, conseguisse voar através de um percurso de 25 metros. Novembro, 12. Campo de Bagatelle. Novamente pilotan- do o seu “14-Bis” consegue voar 220 metros. Margo, 21. Sobe no “n° 15”, biplano do tipo celular, Abril, 4. O “14-Bis” é inutilizado em desastre, Agosto, 10. Sobe no balio “Aigle” com pilotos do Aero- clube de Franca e os amigos brasileiros Anténio Prado Junior e senhora, d. Eglantina, Constréi o monoplano “n.° 19”, Constréi novo monoplano, “n.° 20”, conhecido por “De- moiselle”. 1908 — Exposicao da “Demoiselle” no Saldo 1909 — Passeia com sua “Demoiselle” 1910 — Abandona a aerondutica. Deix 1913 — & erguido em Saint-Cloud m nagem, 1914/15 — Passa-o entre Brasil, Europa e novamente Brasil. A convite dos Estados Unidos viaja para Washington, pa- ra participar de um congresso cientifico, 1916 — Parte para o Chile a fim de participar de Conferéncia Pan-Americana a realizar-se em Santiago. Julho. Vai & Argentina, para o centendrio da Assem- bléia de Tucuman. 1917 — Em Petrépolis constréi a casa “A Encantada”, 1918 — O sftio de Cabangu, em Minas Gerais, lhe é doado pelo governo brasileiro, Na “Encantada” escreve o livro O que eu Vi, 0 que nés Veremos. 1920 — Volta a Paris. 1922 — Manda erguer um tamulo para seus pais e para si mes- mo, no Cemitério de Sao Jo&o Batista, do Rio de Janei- ro. O tumulo é uma réplica do icaro de Saint-Cloud. 1924 — Paris. Brasil. Novamente torna a Paris, 1926 — Interna-se no sanatério de Valmont-sur-Territet, na Suiga. 1927 — Passa algum tempo na aldeia de Glion, Sui¢a. Volta 4 Frang¢a, 1928 — Volta 20 Brasil pelo “Cap Arcona”. Desastre com o aviao que lhe vem dar as boas-vindas & entrada da barra, Volta para a Franga. 1929 — Recebe do governo francés a comenda de Grande Ofi- eial da Legiéo de Honra. 1930 — Interna-se na casa de satide de Preville, em Orthez, nos baixos Pireneus. 1931 — Sanatdrio de Biarritz. Volta definitiva ao Brasil. 1932 — Julho, 23. Morre em Guaruja, So Paulo, aos 59 anos. da Aerondutica, pelos céus da Franga. a de voar, ionumento em sua home- ALBUM FOTOGRAFICO Aparelho inaugurado por Francesco de Lana. © taldo: das irmaos Robert, Engenheiro Henrique Dumont, © pai D Francisca Santos Dumont, a mée do aviador Santos Dumont, na fotu oficializada pelo Minisiério da Aeronautica & £ 5 & 3 = = a 3 8 a Santos Dumont no seu primeiro balao: o “Brasil”. Santos Dumont num laboratirio surrealista de wm fabricante de bonecos de horracha. Santos Dumont no seu automdvel elétrico, em Bagatelle. Primeira caricatura de Santos Dumont, publi- Uma das famosas cartcaturas cada no Le Rire, de jutho de 1901, por Delaw.. de SEM. O aerddromo de Saint-Cloud. Santos Dumont no seu automédvel elétrico, Desasire com o dirigtvel “n? 5” — Santos Dumont é salvo com o qual yanhou o Prémio pelos bombeiros. Deutsch de La Meurthe. Dumont no dirigivel “n? 6", No dirigivel “n? 6", contornando a torre Eiffel — na conquista do Prémio Deutsch. Seb a aclamacdo dos parisienses, conorna a torre Eiffel. MICHAUD » LE PLUS FIN DES QUINQGUINAS a No seu hangar, recebe a visita da ex- Sobre Paris — gravura da épocd imperatriz Eugenia. OS-DUMONT N*o TAERO-CLUB, 28 Juin 1903 No seu dirigivel “A Balladeuse" desce a porta de sua cusa, na av. dos Campos Elisios do JORNAL DO BRASIL 110A Dieotor teenie, Or. FEARANDO MEKOLE OL ALM DOMINGO. 6 DE SETEMBRO Santos Dumont chega ao Brasil — Desenho de Amaro. FA Conquista do Ar! Causico 40 annosago AERoMAUTA Ganiros uot AGLORIA DO BRAZIL Letra e muzica do Cantor Transcripuio de MANOEL Cou. , pot “A Europa curvou-se ante o Brasil” Satira politica de A. Rocha Cancdao de Eduardo das Neves. Tagarela (1903). Capa do Tagarela, caricatura Antncio das Aguas minerais de Byby. Lambary. r Y = o AMIDA OR Alta Novidade FILO FANTASIA KR RIQUISSINO Sonrimenro of Buuras anor Espectalidade mae Morins e Gretones PP) anvovans Pama CASAMENTO ee FAZENDAS. AR MARINHO O seu primeiro biplano é suspenso ao dirigivel “n? 14” — dai 0 nome de “14 Bis”. Estudando as estabitidades do "14-Bis" com a colaboragéo de um burrico, Santos Dumont voa no “14 Bis". © “pylin” necessirio ao levantamento do vbo dos irmaos Wright. Santos Dumont, na “Demoiselle”, sobre as estradas da Franga. a “ou De > ab, blr pede 70 omched adrades La. fhrpree de agar ne ue 1962S Cam Mey 8 vege? mer Yom - daronte tam anne, fis VIM alan “ Lin oles 2 fur mceme, ewe enta rccaanae, aniaken tan euniye tan ALA Grote. Cane era we arreflawe fepusrane e Crave ancl, drran.4n o mw de RebL Be” mn” Nemnnth!! Cte fr, 4. Teda om mur offartlrs 0 grr COW pwn amuain [ofr Candace _Laictnzbrumect— a Cncanlada” /5~=2- 1920 “A Demoiselle”. O carinho do criador pela sua criatura. “Pescadores de camo", ne alia a “Demoucile’ — Olea de Henri Rousseau, Mase do Louse Monumento «@ Santos Dumont em Saint-Cloud aigineh,, Biphome ~ cmap lane minks forbes [ota benet— : Ris, a-ragen safes ale Sundos Dw nt mprac isu co wit alli Curioso autégrafo de Santos Dumont “A Encantada’, casa de Santos Due improvisado em wm dlbwn. mont, em Petrépolis, A Encantada’, sista petos punios Escada da “Encantada”. A pisada no primeiro degrau seria sempre com o pé direito. Casa onde nasceu Santos Dumont — perto de anti iga Palmi- ra (hoje Santos Dumont), Minas Geraus Oleo de H, Medina — Museu Busto em bronze de Santos Dumont, Paulista, que se encontra na “Encantada” — sua casa de Petrépolis. Assinatura de Santos Dumom — (1903). CAPITULO | VOARI... C oelho Neto saudando Santos Dumont disse: “foste 0 primeiro a entrar o azul!” Sempre em nés, criaturas viventes, a fuga, o desejo de evasao, o desejo de abrir asas e mergulhar no azul. Pairar, planar, feito esses passaros mais do céu que da terra e que, vez por outra, se dignam de baixar ao pan- tano do alimento. Mas, se nao temos asas, idealizamos cortes de seres voadores — as poténcias: anjos, arcanjos, querubins. Pensamos no Oriente, n’As Mil e Uma Noites e aprecia- mos 0 sereno vé6o de um tapete magico. Folheamos a Biblia, e além dos anjos, vemos Elias, o profeta, arrebata- do ao céu num carro de fogo. E ha deménios com asas de morcegos e ha bruxas em longos passeios pelos ares, mon- tadas em cabos de vassouras. E ha outros mitos: Fae- ton o filho de Hélios, que, dirigindo mal a quadriga do sol, andou queimando a Terra, esturricando a pobre Abissi- nia. E ha fearo 0 filho de Dédalus. Este, construindo para o filho um belo par de asas que lhe é pregado as costas. fcaro voa, mas os raios do sol derretem-lhe a cera das asas e o jovem é precipitado nas aguas do mar Egeu. Voar! O véo do homem por meios mecanicos. Hé lendas egipcias da india, da China, onde pessoas, pelo emprego de certos artificios voavam. Na nossa literatura de cor- del ha mesmo um engenho, que é o “Pavao Misterioso”, espécie de aeroplano em forma de pavao, concebido por um mago, a pedido de um jovem apaixonado, para o rap- to de uma condessa presa na mais alta janela da torre... Hé casos de frades, na Idade Média — e os ha mesmo até hoje, entre homens do povo — que fabricam asas ou aparelhos semelhantes ¢ se atiram do alto das torres. Uns, 45 com mais sorte, conseguem planar, a maioria se estatela no duro chao. Rogério Bacon (1214-1294), 0 Doctor Admirabilis, previa — entre tantas inveng6es que mais tarde o homem havia de realizar — previa as maquinas voadoras e che- gava a descrever um aparelho que pretendia imitar o yéo das aves, mas que n&o fora construido, Imaginoso foi 0 jesuita Francesco de Lana construin- do um “barco voador” munido de velas e com quatro bolas ocas de bronze. Mas, alegava de antemAo, o jesui- ta: ‘Deus nao permitira que tenha bom éxito, a fim de que no se alterem as relacées civis e politicas entre os povos e se previnam outras lamentaveis conseqiiéncias”. Leonardo da Vinci deixou notavel memoria sobre 0 véo dos passaros. Esses estudos levaram-no a concluir que o homem poderia voar mediante um aparelho mecanico dotado dos mesmos principios que regem o véo das aves. Deixou uma série de desenhos dos mecanismos que ima- ginou. Achando porém que a asa do passaro era mais complexa, adotou, como modelo, as asas do morcego. Mas reconhecendo que faltava forga ao homem para elevar- se do solo, previa-Ihe o lancamento, com asas, do alto de uma torre, montanha etc. Além das asas do morcego, 0 genial Leonardo também previu o helicéptero e o para- quedas, dos quais deixou desenhos. Voar, voar ... No inicio do século 18 é um brasileiro de Santos, o padre Bartolomeu de Gusmao, que se apre- sentava em presenca de d. Joao V, na corte de Lisboa, com a sua “passarola”. O engenho do padre — um pas- saro com armacéo de vime sob um balaéo em forma de ovo e que seria inflado com certas matérias inflamaveis. Contam que o “Padre Voador”, como ficou conhecido, conseguiu certo éxito nessa sua experiéncia. Mas o balao, pegando fogo, pés em risco a seguranca do local de exi- bicdo, a Sala das Embaixadas. Ha referéncia a uma outra ascensao, segundo a qual o balao do padre atingiu a altu- ra da torre de Lisboa. Dai concluimos ter sido a ““Passaro- la” um aerdstato cuja ascensao se devia ao aquecimento do ar no interior do baléo. Mas esse mérito (como no caso Santos Dumont — irmaos Wright) viria a ser dado aos irmaos Montgolfier, oitenta anos mais tarde, crian- do um aerdéstato semelhante ao de Lourenco de Gusmao. Era um globo de 33 metros de circunferéncia que subia pela forga do ar aquecido. Esses irmaos, com o sucesso do 46 nn baléo a ar quente, foram premiados pela Academia de Ciéncias, condecorados pelo rei e chamados a Paris para repetirem a facanha, isto 6, subirem na sua “montgol- fire”. Ja o padre Gusmao, que dizia ter inventado um aparelho voador, capaz de fazer “200 e mais léguas por dia no qual instrumento se poderao levar avisos de mais importancia aos exércitos, e as terras muito remotas”, por pouco nao pegou as fogueiras da inquisigao, por sim- patizar com diversos crist&os-novos. Com a descoberta do hidrogénio, por Cavendish, em 1766, tornou-se possive] o véo em baléo. Mas a gloria de ter aplicado o hidrogénio ao bal&o pertence ao fisico Charles e os irmaos Robert, e ainda a da impermeabiliza- ¢&o do tecido do invélucro com um verniz de borracha. _ Depois vieram os baldes de Rozier, o de Zambeccari e o de Lunardi, j& trazendo asas na barquinha. Lunardi realizou subidas em Londres, Glasgow e Edimburgo, po- pularizando os balées da Inglaterra. Em 1785 Jeffries e Blanchard atravessaram, em ba- 1&0, 0 canal da Mancha. Como Blanchard partisse de Dover, Pilatre de Rozier quis repetir a faganha em sen- tido inverso, nesse mesmo ano. Infelizmente o balao de Rozier estourou a cerca de 900 metros de altitude. Guyot, em 1784, construiu um baléo em forma de ovo, com o comprimento bem maior que a altura. Era, pois, o primeiro passo para o dirigivel. E foi do general Meusnier a lembranga de introduzir balonetes — sacos de ar — em balées alongados, a fim de impedir que na descida o baléo se dobrasse em dois, pela contragao do hidrogénio. Foi também Meusnier o primeiro a usar a hélice como propulsor aéreo. Mas diz Hureau de Villeneu- ve que a idéia da hélice j4 estava nos manuscritos de Da Vinci. De Leonardo da Vinci surgiu também o dese- nho do para-quedas, 0 que nao impediu a reinvencdo do mesmo por Lenormand, professor de fisica em Montpel- lier, no mesmo ano em que os irmaos Montgolfier expe- rimentavam o seu modelo de aeréstato. A uso do péra- quedas ficou também associado o nome de Jacques Gar- nerin, o primeiro a usd-lo desprendendo-se de um balao numa altitude de mil metros. Parecia que a aerondutica tomava um carater espor- tivo, alheia ao espirito inventivo ou cientffico. O sabio Gay-Lussac e Biot foram raras excecdes. Em 1804 rea- lizaram ascensdes com objetivo de fazer observacdes de 47 fisica nas altas camadas da atmosfera sobre a constan- cia do campo magnético e sobre a composic&o do ar. Na segunda das ascensdes Gay-Lussac atingiu altitude su- perior a 7 mil metros. Foi Henri Giffard quem conseguiu subir em Paris num balao e dirigi-lo, sofrivelmente, no ar. O referido balao era movido por uma, maquina a vapor, o que o tor- nava pesado e portanto, morosa, a direcdo. Isso aconte- ceu em 24 de setembro de 1852 e “La Presse” de Girardin assim anunciava: “Ontem, sexta-feira, 24 de setembro, um homem partiu imperturbavelmente sentado sobre o ténder de uma maquina a vapor, elevada por um baldo tendo a forma de uma imensa baleia, navio aéreo guar- necido de um mastro servindo de quilha e de uma vela em lugar de leme: este Fulton da navegacdo aérea se cha- ma Henri Giffard”. O segundo balao de Giffard nfo teve éxito e o in- ventor, passa, mais tarde, a sofrer de depress&o nervosa e um dia se suicida. Giffard estava certo. E Santos Dumont em seu livro “Dans l’Air” (Os Meus Baldes) registra: “Naturalmente, eu acreditava que a questéo havia avancado considera- velmente desde a data em que, em 1852, Henri Giffard, com uma coragem tao grande quanto a sua ciéncia, havia demonstrado de maneira magistral a possibilidade de di- rigir um balao”. Apos Giffard as duas tnicas experiéncias foram as de Gaston e Albert Tissandier e as dos capitées Renard e Krebs. Os Tissandier eram cientistas ja de grande noto- riedade por suas expedicdes em balées esféricos para es- tudo das condigées nas altas regides da atmosfera. Acon- teceu no entanto, com a equipe de Gaston, a tragica as- censao do balao “Zenith”, em 1875, quando foi atingida a altitude de 8 600 metros, resultando a morte, por asfi- xia, de Sivel e Crocé-Spinelli, companheiros de Gaston, tendo apenas este sobrevivido. Em _ 1884 os capitées Renard e Krebs langaram “La France”, balao fusiforme, com balonete de Meusnier. Dispunha de motor elétrico, alimentado por pesada ba- teria, tinha a poténcia de apenas 8,5 cavalos-vapor. Pou- cas ascensdes foram feitas, pois “La France” sé era pro- priamente dirigivel em tempo calmo Aas 4s Como vimos, no inicio, 6 proprio do homem o desejo de voar, voar como os passaros. E na mitologia fomos en- contrar fearo com suas asas de cisne precipitado no mar Egeu. Vimos Bacon descrevendo um aparelho que preten- dia imitar 0 véo dos pdssaros e Leonardo da Vinci com seus desenhos e estudos de asas, de asas de morcego e esbogos embriondrios do para-quedas e do helicéptero. No tratado De Motu Animalium de Borelli (fim do século 17) este estuda 0 véo dos pdssaros e projeta um aparelho pa- ra reproduzir esses voos. Também o espanhol Santiago de Cardenas, observando o véo do condor, no Peru, esta- belece em seu Nuevo Sistema de Navegar por los Aires (1762) a distinc&o entre véo planado e o de bater de asas. Blanchard, j4 mencionado como um dos pioneiros da aerostacéo (travessia do canal da Mancha), trabalhava também na construcéo de uma voiture volante: “a mos- ca, a borboleta, o morcego etc., voam sem penas, com asas em forma de leque formadas por uma substancia seme- lhante 4 matéria cérnea. Nao depende o véo nem da ma- téria nem da forma das asas, mas da proporcionalidade das dimensées destas e da velocidade do movimento”. Launoy e Bienvenu apresentam, em 1784, um apa- relho que se compunha de uma haste vertical com duas hélices nas extremidades. O motor que fazia guiar as hélices, em sentido contrario uma & outra, era a torcio de uma corda, obtida por meio de um arco flexivel. O apa- relho elevava-se verticalmente no ar enquanto a corda se destorcia. Semelhante a um brinquedo, mas a verda- de é que ali estavam os principios de um verdadeiro he- licéptero. Em 1843, também na Inglaterra, foi construido, por Henson, um aparelho em tudo semelhante aos futuros aeroplanos (planadores): armac&o de madeira revestida de pano, cauda, lemes e acionado por hélices. O aparelho, para adquirir impulso para o véo, descia de um plano in- clinado em movimento acelerado. Infelizmente, finda a descida, a maquina nao pegava o impulso e ficava mes- mo no chao. Henson teve com ela, no entanto, a intuigao do aeroplano. O projeto de Joseph Pline, de 1855, sé merece regis- tro por ter sido o criador da palavra “aeroplano”, e foi de La Landelle quem langou, em 1861, a palavra “‘avia- tion”, para designar a navegacdo aérea por aparelhos mais pesados que o ar. 49 Em 1891 Otto Lilienthal recome¢a suas experiénciag de véo planado, que j& havia tentado na juventude com um seu irmao. Constréi entéo um planador com arma- géo de vime, forrado de pano encerado. Servindo-se de um trampolim, Lilienthal, correndo no alto de uma mon- tanha, atirava-se no espaco com 0 seu aparelho contra o vento. Chegou, num periodo de cinco anos, a efetuar mais de 2 mil véos planados, conseguindo percorrer distan- cias superiores a 200 metros. Com a pratica conseguia, pelo movimento dos membros, alterar a posi¢&o do cen- tro de gravidade do sistema e a obter desvios na direcdo do véo. Um dia porém o seu biplano desequilibrou-se em pleno véo, caindo vertiginosamente ao solo e matando o famoso inventor. As experiéncias de Lilienthal haviam despertado grande interesse e eram acompanhadas por observado- Tes atentos, como Octave Chanute, aperfeicoando os apa- relhos. Nos Estados Unidos os trabalhos de Chanute fo- ram desenvolvidos por Hargrave e Langley, este ultimo estabelecendo famosas leis fundamentais da aerodina- mica. Pilcher, um inglés, criou o seu planador 4 maneira de um papagaio de papel. Preso ao. planador e este a uma longa corda puxada por uma parelha de cavalos que mandava galopar contra o vento. O aparelho eleva- va-se e Pilcher soltava a corda e prosseguia em véo livre, planado. Num véo mais violento foi precipitado a0 solo, perdendo a vida, Na Franca as experiéncias de Lilienthal sé desperta~ ram interesse, a principio, no capitéo Ferber, o primeiro @ reproduzi-las com um planador biplano. Pouco depois chegavam Archdeacon e Voisin que também aderiam ao yoo planado, e logo mais Blériot iniciava suas expe- riéncias. Os primeiros véos de Ferber e Voisin foram, como os de Lilienthal, lancados em carreira, do alto de um terreno. Depois adotaram o processo de Pilcher, s6 que ao invés de cavalos a correr, Archdeacon, Voisin e Blériot assentavam seus planadores em flutuadores sobre 0 Sena e com cordas atreladas a lanchas conseguiam o embalo e ganhar altitudes, quando, ent&o, cortavam os cabos de reboque para o véo planado. Su SEER ODP PUPP ESOT CSP CAPITULO II A FAMILIA Uz rapazinho de cabega levantada, usando boné, a mao na testa para melhor fixar a aparicdo fantasti- ca — o que estd a ver pela primeira vez na vida: um ba- lao! Ai que vontade ele tem de estar sentado na barqui- nha do bal&o para pegar nas nuvens e ver o mundo como uma bola redonda — de tio alto que esté — e 0 povo, na terra, feito formiga. Espanta-se. Leva um puxao no ombro: — Seu bobo, nao vé que vocé esté atrasando o pes- soal? Seu pai j4 anda nervoso com o seu sumigo e toca a despachar negros para procurar vocé pela cidade toda! Eu, com o meu instinto, vim direto a este parque, pois sei que vocé é doido por essas geringoncas de maquinas, para querer saber como elas se movimentam. Os cavali- nhos do carrocel n&o sao bonitos? — Ora, mae, cavalinhos de brinquedo no me inte- ressam. Coisas para criangas. Interessa-me, sabe? Inte- ressa-me a roldana que faz girar o carrocel. — Pois saber como ele gira — retruca a mae — acho uma pura perda de tempo. Depois, gostoso mesmo é 0 menino montar um cavalinho. — Mae, estou com quinze anos. Estou na idade de fazer uma maquina e nao de brincar em cavalinho de carrocel. — Esta bem. E é mesmo! Xi, como o tempo passa. Para mim vocé 6 ainda uma crianca e nem noto que jé tem a fala mudada. Mas vamos. — Mae, e aquele baldo? — ¥ bonito. — S6 bonito? A senhora nao gostava de dar uma voltinha nele? Sl — Eu? Deus me livre! Nem amarrada! E cade co- ragem? Credo! — Pois eu tinha coragem. Gostaria de dar um belo passeio nele. Ia ver vocé deste tamaninho... — Deixa de bobagem, Beto. Tira estas coisas da cabeca. Balao é geringonga de gente de circo. Deus nos livre! Beto tentava ficar mais um bocadinho. Era bom olhar para aquela esfera 14 no alto. O medo da mae o fez sorrir, Se ela soubesse que ele se atrevia a saltar até de para- quedas... Se ela soubesse que ele n&o era sé leitor de Julio Verne mas que estava perfeitamente a par da his- téria do Montgolfier, das montgolfiéres, dos baldes de S. Joao que nao passavam de montgolfiéres de papel de seda. Ah, se ela soubesse do culto que ele devotava a Montgolfier, a Charles, o fisico, a Pilatre de Rozier e Hen- ri Giffard, nomes ligados ao progresso da navegaciio aérea. Ah, se sua mae soubesse que um aeréstato pode subir acima das nuvens! . .. Mas quem é este rapaz que sabe tanto sobre balées? Afinal quem é este rapazinho de rosto semelhante a um lémure, de olhar tao penetrante e que gosta tanto de baldes? Este rapazinho é filho de um engenheiro e grande fazendeiro de café, e chama-se Alberto Santos Dumont. Mas que tem Alberto Santos Dumont de importante? E por acaso inventor de balées? Ja subiu no alto de um coqueiro, e como os crioulinhos de praia, j4 cortou da copa de um coqueiro uma palma para nela, montado, descer planando? Entao nao sabe como é boa a sensacao! Nao, Alberto sé tem leituras e devaneios e no momento veste uma bela marinheira e usa um boné, Sim, mas Beto, além de estudioso, adora mexer em maquinas. Tem mui- ta inclinagdo para a mecanica, capaz de terminar estu- dando engenharia. O pai também nao é engenheiro? Bom, o melhor é deixar a me na tentativa de ar- rancar o Beto do parque onde esta o baldo paulista e, enquanto isto, vamos comecar a contar a vida do rapaz, pelo comego, peia historia dos pais, a historia dos primei- ros Dumonts que deram com os costados no Brasil, justa- mente na Provincia de Minas Gerais Frangois Dumont, o avé do nosso Alberto, era pari- siense e casara-se com uma moca de Bordéus, filha de um joalheiro. Certamente foi o sogro que fez ver ao genro que Brésil era a terra das pedras preciosas, dos brilhan- tes e esmeraldas. Eles podiam vencer no Brasil, enrique- cer mesmo, no negécio de comprador de pedras raras. Assim foi. O casal Dumont veio para os tijucos de Minas e ganhava a vida no negocio da mineragao. Mas um mal repentino matou Frangois em pleno vigor fisico, deixando a vitiva, d. Euphrasie Frangois Honoré Dumont com trés filhinhos. D. Euphrasie lutava com dificuldades para educar as criangas, pois naquele tempo, no Brasil, nao era facil @ educacaéo de um filho, dai ter ela prontamente aceito 0 oferecimento do padrinho de seu Henrique, o segundo filho, nascido em 20 de julho de 1832, em Diamantina. O padrinho ia levar a Paris, para a venda, o famosissimo diamante “Estrela do Sul”, em cuja compra empregara todos os seus recursos. Mas ia levar também 0 afilhado, custear a passagem e os estudos do garoto, em Paris. eee Morando com parentes, muito vivo e inteligente, Hen- rique fez sem dificuldades materiais os seus estudos. Em 1853 diplomava-se como engenheiro civil, com brilhan- tismo, pela Ecole Centrale des Arts et Métriers, de Paris. Formado, sentiu vontade de voltar a terra, ao seu Brasil mineiro. E logo obtém emprego de engenheiro de cbras ptiblicas, em Ouro Preto. Na antiga capital mineira vivia, por essa época, 0 comendador Francisco de Paula Santos, filho de pai por- tugués. Casado, logo ficou vitvo, pois sua esposa, d. Ro- salina, falecera prematuramente no Rio de Janeiro, viti- ma de uma epidemia de febre amarela que em 1854 as- solava a capital do pais. D. Francisca, uma das filhas do vivo, era criada, com os outros irmfos, pela av6, mae do comendador. A mocinha era linda e o jovem engenhei- ro, quando a viu, lhe apertou a mao e por ela se apaixo- nou. A mocinha, vendo sua mao apertada, linda e¢ in- génua passou a sentir-se comprometida. M&o apertada por rapaz sorridente nao significava compromisso? Ca- saram-se em 1856, Em 1857 nasceu-lhe, em Ouro Preto, 0 primeiro filho, que tomou o nome do pai: Henrique. O segundo filho era 53 uma menina que nascia na Fazenda Gongo Soco, em 1860, perto de Santa Barbara, e que recebeu o nome de Maria Rosalina, em homenagem ao nome da falecida mulher do comendador Santos. Gongo Soco era propriedade do sogro, afamada em minerac&o aurifera, mas j4 em decadéncia, principalmen- te pela concorréncia dos ingleses de Morro Velho. Pouco tempo depois, Henrique Dumont, desejoso de expan- dir seus negécios, comprou da coroa, de sociedade com o sogro, a fazenda da Jaguara, no rio das Velhas, perto de Sabara. Como a minerag&o se tornava dificil, o jovem engenheiro dedicou-se 4 exploragio das matas, contra- tando fornecimento de madeira para as obras das minas de Morro Velho. E 0 arrojado Dumont chegou mesmo a inaugurar uma navegacdo a vapor no rio das Velhas, pa- ra o transporte da madeira. Foi nesta fazenda da Jagua- ra que lhe nasceram os filhos Virginia, em 1866, Luis, em 69 e Gabriela em 71. A familia aumentava e a vida ia bem para os Dumont, mas aconteceu em 1871 um grande incéndio que destruiu parte das galerias das mi- nas de Morro Velho. Com isso, foi paralisado o forneci- mento de madeira. O engenheiro volta-se novamente pa- ra a sua profisséo e ainda neste 1871 lanca a ponte de Sabara sobre o rio das Velhas. Consegue também a em- preitada da construcdo de um trecho da Estrada de Fer- ro Central do Brasil, que vai ligar a comarca de Jodo Gomes a Barbacena. Passou entao a morar no sitio de Cabangu, parada de Joao Aires, na dita comarca de Joao Gomes, que depois passaria a chamar-se Palmira. A re- sidéncia de engenheiro de linha era ent&o a casinha co- lonial — azul e branca — de Cabangu, engastada numa garganta de Mantiqueira. A casa tinha trés janelas de fachada, grande porta e era toda forrada de esteira de bambu, caiada de branco. E foi ali, em 20 de julho de 1873 (dia do aniversdrio do pai), que nascia Alberto Santos Dumont. Mas, concluida a empreitada do trecho de estrada, 0 engenheiro recebe convite do sogro para administrador de uma fazenda de café que este possuia em Casal, mu- nicipio de Valenca, Estado do Rio de Janeiro. Para 14 tocou-se com a mulher e os seis filhos, Ge- riu a fazenda de 1874 a 79. La lhe nasceram mais duas filhas: Sofia, em 75 e Francisca em 77. Henrique Dumont tomava gosto pela agricultura. 54 aneensins Sentia o cheiro da terra e a beleza dos cafezais. Sabia-se — todo mundo comentava — que o café alastrava-se pe- Jas terras roxas de Sdo Paulo, infinitamente mais férteis que as do Estado do Rio, onde se iniciara a cultura da famosa rubidcea. O engenheiro traz entdo a familia para o Rio, onde a acomoda numa casa da rua Malvina e vai conhecer as famosas terras paulistas. Encanta-se com as matas do municipio de Ribeirdo Preto e compra a fazenda Arindet- va. Volta ao Rio para buscar o seu pessoal e seus bens, estes 300 contos em dinheiro e oitenta escravos. Henrique Dumont, com sua enorme energia e capa- cidade de administrador, transformou Arindeiva em uma das mais modernas fazendas de café de Sao Paulo. Ven- dendo Jaguara 4 companhia das minas de Morro Velho, aumentou mais ainda a grande fazenda com a compra de novas terras. Num s6 ano chegou a plantar cerca de 500 mil pés de café. E a fazenda tornou-se tao importante que tinha até uma estrada de ferro particular, para o transporte dos graos de café para os terreiros da fazenda € o carregamento destes em sacas para Ribeirao Preto. Foi nesta fazenda que Santos Dumont passou a sua infancia. Ali ele lia Julio Verne, ali ele contemplava o véo dos passaros, via a paina prateada se desprender das favas secas das paineiras, miriades delas a passearem pelo azul do céu. Ali, nas noites frias de junho, ele via os ba- l6es navegar, tangidos pelo vento. Foi ali, na verdejante fazenda, numa tarde de devaneios que ele sentiu o pri- meiro chamado: o chamado daquele oceano de nuvens. Entao sentiu a mao da mfe a arrancaé-lo daquele lugar onde se plantara, fascinado pelo encanto do ma- gico balao. — Ei, Beto, vocé vai continuar parado? Vamos. Ele ajeitou o boné, deu mais uma olhadela para a encantatéria esfera e acompanhou a mae. CAPITULO Iil DIAS DE INFANCIA S antos Dumont passa sua infancia e juventude na fa- zenda de Ribeiréo Preto. Aprendeu as primeiras le- tras com a irm& Virginia e freqtientou, sempre com aproveitamento, diversos colégios, como o Culto 4 Cién- cia, de Campinas, e depois, em S&o Paulo, 0 Morethzson, o Képke e 0 Morton. Mas, estava sempre na fazenda, a brincar de “passarinho voa”, a empinar papagaios, a conversar com os mec&nicos da casa de maquinas. Na fazenda, sim, era feliz! Havia maquinas de que ele gostava de mexer, de vé-las funcionar. Depois, havia 0 véo dos passaros e o céu que o levava a sonhar com um passeio — um dia — por aquele imenso oceano de nuvens... No Brasil, afora os indios com sua cultura, ainda ha regides onde o homem nao conhece nem o transistor, ou se ja o conhece, se o radiozinho de pilha j4 aparece por 1a, é coisa de encantos, de magia. Ou até praga ou pre- nuncios do anticristo. Ainda ha lugarejos no perdido ser- t&éo a usar o carro de boi. Nao saber o que 6 luz elétrica e se apareceu 0 flashlight, no houve entusiasmo. O mi- lho, 0 arroz, o café sdo beneficiados em pilao, moidos a brago de homem. O café, depois de torrado em panela, misturado com rapadura, para que a bebida saia mais forte e renda mais, é depois socado ao piléo, As mulhe- res fazem rede em teares manuais e ainda usam o fuso de fiar o algodao. As cabagas rachadas ao meio, retira- das as popas, passam por um processo de raspagem e, depois de secas, servem de pratos e tigelas para colocagéo de alimentos. Ha ainda muitas regides atrasadas neste nosso Brasil de hoje, mas, em 1880, as fazendas, princi- palmente as fazendas de café, eram outra civilizacao. Nao havia ainda, naturalmente, a luz elétrica ou o tele- 56 eee fone, mas eram dotadas de iuz de gasémetro, 4gua ca- nalizada ou outras sofisticagdes. Havia fausto na casa- grande, seus donos eram em geral bardes — os famosos bardes do Império — e baronesas habituadas ao luxo europeu. | Fazenda assim, moderna e poderosa, era a do pai de Santos Dumont. O menino que sonhava dirigir um navio no céu, j4 aos sete anos Ihe davam permissao para dirigir as locoméveis de grandes rodas que puxavam madeira pelas estradas. FE aos doze o deixavam tomar o lugar do maquinista das locomotivas Baldwin que transportavam os vagées carregados de café nas 60 milhas de caminho de ferro assentado entre as plantagdes. Achava lindo o tempo da floracdo dos cafezais quando, de repente, seus ramos amanheciam brancos de flores. Mas, mais lindo era no tempo da colheita que era feita por escravos ou colonos — aquelas colonas muito brancas, com chapéus com véus amarrados ao pescoco, o café sendo colhido nas saias que elas seguravam para deter as frutinhas, ou em imensas peneiras. E havia ainda as escadinhas que co- locavam junto aos arbustos para atingirem as ramas al- tas. E o café, colhido como uma jabuticaba vermelha, era belo! Mas enquanto o pai e os irmaos saiam montados a cavalo para a inspecdo aos cafeeiros — se a colheita ia bem ou se a geada causara prejuizos — o menino prefe- ria se refugiar na usina para brincar com as maquinas de beneficiamento. Eis como Santos Dumont, no seu livro Os Meus Ba- Ides, descreve os métodos usados numa fazenda de café: “Como é sabido, os graos de café, quando maduros, s&o vermelhos. Ainda que com o risco de complicar a explicag&o, direi que parecem cerejas. Descarregados no edificio central da usina, vio, primeiramente, a grandes tanques cheios de 4gua continuamente agitada e renova- da. A terra aderente deposita-se no fundo e os grdos flu- tuam, conjuntamente com os detritos vegetais, e sio car- reados ao longo de uma calha inclinada, cujo fundo é cri- vado de pequenos orificios. Através destes passa o café com um pouco de Agua, ao passo que os pedacos de ma- deira e folhas continuam flutuando. Eis assim os gréos limpos. Guardam sempre a cor vermelha e 0 aspecto e tamanho das cerejas. 37 Cada fruto contém duas sementes, cada uma das quais esta envolvida pela sua pelicula. . Na sua passagem, a 4gua arrasta os gros ao despol- pador, que, esmagando a polpa externa, produz o isolg- mento das sementes. Longos tubos, ditos ‘secadores’, recebem estas ainda molhadas e revestidas da pelicula, e as agitam sem ces- sar, AO mesmo tempo que as submetem & ac&o do ar quente. Uma vez secas, sio as sementes apanhadas Pelos alcatruzes de uma elevadora sem fim, que as conduzem até um outro edificio, onde ficam as demais maquinas, A primeira destas 6 um ventilador munido de pe- neiras de vaivém, que apenas deixam passar entre as suas malhas os gréos. Nenhum destes se perde ai; ne- nhuma impureza fica. O mais insignificante calhau ou fragmento de madeira que passasse seria, alias, bastan- te para avariar a maquina seguinte, o ‘descascador’, que € um conjunto de pecas de extrema delicadeza. Apanhadas por um outro elevador, de cadeia sem fim, as sementes, agora descascadas mas sempre mistu- radas com as cascas, sio levadas a um novo ventilador, onde as Ultimas, pela leveza, sao arrastadas pelo vento. A operagao seguinte tem lugar no ‘separador’, que é um grande tubo de cobre, de 7 metros de comprimen- to por 2 de didmetro, em posic&o ligeiramente inclinada. Este tubo, no seu primeiro percurso, tem uns pequeni- nos crivos, pelos quais passam os gréos menores: depois, orificios maiores, que dio passagem aos graos de tama- nho médio; e, mais adiante, orificios ainda mais largos, para a saida dos graéos volumosos, que constituem o “moca’. A fung&o do ‘separador’ consiste, portanto, em sepa- rar o café segundo graus convencionais de tamanho. Ca- da tipo cai sobre uma tremonha particular. Embaixo estao as balancas e os homens com os sacos. A medida que cada saco recebe o seu peso normal de café, 6 substi- tuido por outro, vazio. Assim se formam rapidamente lo- tes enormes, que, depois de costurados e marcados, sao expedidos para o exterior”. Todas estas maquinas, descritas por Santos Dumont, foram os brinquedos de sua meninice, O habito de vé- las em func&o diaria, ensinou-lhe muito cedo a Separer qualquer defeito de suas partes. E continua a descrigao: 58 : eR I PS SES SNP “S40, como j4 disse, maquinas muito delicadas. As penei- yas méveis, com especialidade, arriscam-se a avariar a cada momento. Sua velocidade bastante grande, seu ba- jango horizontal muito rapido, consumiam uma quanti- dade enorme de energia motriz. Constantemente fazia- se necessério trocar as polias. E bem me recordo dos vaéos esforcos que todos empregévamos para remediar os de- feitos mecdnicos do sistema. . Causava-me espécie que, entre todas as maquinas da usina, s6 essas desastradas peneiras moveis nao fossem rotativas. Nao eram rotativas e eram defeituosas! Creio que foi este pequeno fato que, desde cedo, me pés de prevencSo contra todos os processos mecanicos de agita- ¢&o, e me predispés a favor do movimento rotatério, de mais facil governo e mais pratico”. Ent&o, quando o menino Alberto deixava a casa das méaquinas de beneficiamento do café, retirava-se para debaixo de uma arvore com 0 seu Julio Verne. Transmu- dava-se nos herdis do famoso escritor: era R6bur, 0 con- quistador, Nemo, o filho do capitéo Grant; era Heitor Servadac, Miguel Strogoff, Phileas Fogg! Qual, aquilo era um mundo de fantasias? Pois p 86 ser por en- quanto. Depois tudo ia ser verdade. Nao se importava quando lhe diziam que Julio Verne era s6 um grande imaginoso. E dai? Nao é da imaginac&io que as coisas sao criadas? Também nao chamavam ele de nanico? Pois que chamassem. Mas ele guardava um segredo. Ele sa- bia que dentro de pouco tempo o homem conquistaria o ar usando maquinas que eram verdadeiros navios voado- res. De uma coisa também ele jé tinha certeza: no dia “em que for produzida a invencéo maravilhosa, ela no ser4 constituida nem por asas que batam, nem por qual- quer coisa de andlogo que se agite”. Entdo, se ventava, 14 se ia 0 nanico Alberto de “‘ca- misa aberta ao pelto, pés descalcos e bracos nus”, ia soltar seus coloridos e esvoejantes papagaios de papel. Era um nanico que no se intimidava. Agiientava as trogas de seus camaradas mas, as vezes, partia também para o ataque. Por que ele nao havia de se defender? De- fendia-se, Defendia-se e depois yoltava ao seu reino do impossivel-possfvel: nadava no “Nautilus”, no fundo dos mares, fazia a volta ao mundo em oitenta dias e virava passageiro da casa a vapor. Com os irm4os e camaradas ele ia reunir-se, tam- 59 bém, a noitinha, ao redor da mesa da sala da fazenda, para as brincadeiras de prendas, adivinhagdes e outras do género. Uma das mais divertidas era a do “passari- nho voa”. Era assim: um dos meninos é sorteado para perguntar aos outros companheiros, em voz alta, se uru- bu voa, se galinha voa, se pombo voa. O menino ao qual fosse feita a pergunta devia levantar o dedo e responder pela afirmativa e naturalmente pela hegativa se a per- gunta fosse absurda. Se 0 companheiro dizia que tatu voa estaria a dizer um absurdo, e pagaria uma prenda. Entéo ficavam todos a postos. A brincadeira ia comecar: — Aguia, voa? — Voa! — Tico-tico voa? — Voa! — Coelho voa? — Nao!!! — Borboleta voa? — Voa! — Homem voa? — Voa! Assobios, gritaria. Algazarra geral. Entéo o pergun- tador mandava, ao que tinha respondido o impossivel, que pagasse a prenda. Ora, como quem sempre respon- dia que o homem voava era o nanico Alberto, que o na- nico pagasse a prenda. Alberto largava a brincadeira, pois se recusava obstinadamente a pagar a tal prenda. Os companheiros n&o sabiam, mas ele tinha certeza de que o homem “podia” voar. ae Antes dos doze anos deixava a fazenda para inter- nar-se no Colégio Meneses Vieira, no Rio. Foi um estu- dante discreto, aplicado ao estudo das ciéncias, Mais tar- de tentou o curso superior — a Escola de Minas de Ouro Preto — mas nfo se deu bem, pois o regime de disciplina era violento, e ademais ele nao suportava as saudades da fazenda. Mas o “tempo” daquela fazenda de café ia passar. Um dia houve um acidente de charrete com o pai. Este levou uma pancada violenta na cabeca, resultando num pequeno derrame cerebral que o deixou hemiplégico 60. O ativo engenheiro foi doravante obrigado a subme- ter-se a um tratamento mais rigoroso e em que era exi- gido muito repouso. Tolhido na sua liberdade resolveu vender a fazenda onde trabalhou durante dez anos. e que j& contava com cerca de 5 milhdes de cafeeiros. Vendeu-a 4 Companhia Melhoramentos do Brasil. E em principios de 1891 segue com a familia para a Europa, a bordo do “Elbe”. Dos filhos ficara apenas o mais velho, Henrique, que ja tinha a sua prépria fazenda em Sao Simao. Santos Dumont, mais tarde, ia recordar-se daquela fazénda como dos dias mais felizes de sua vida, quando, “% espera de melhores oportunidades, eu me exercitava construindo aeronaves de bambu, cujos propulsores eram acionados por tiras de borracha enroladas, ou fazendo efémeros baldes de papel de seda”. Na verdade uma das belas tradigdes do Brasil eram as festas de S. Joio e S. Pedro. As vésperas dos dias 24 e 29 de junho as ruas se enchiam de fogueiras, bombas, foguetes e os céus se enchiam de baldes. Todos — meni- nos e adultos — contemplavam aqueles globos lumino- sos navegando pela fria noite de S. Joao, uns trémulos, indecisos, outros ganhando altura, serenos, vermelhos como uma roma, todos seguindo em rumo certo, o rumo que o vento os tangia e levando eles no seu bojo a missiva dos sonhos e da poesia. E entéo o menino Alberto sentia- se subitamente na pele de Heitor Servadac, navegando pelo espago. Ph CAPITULO IV PELA PRIMEIRA VEZ EM PARIS antos Dumont, com pouco mais de dezessete anos, ja pela primeira vez conhecer Paris. Viajava com a familia. O pai ia 4 procura de recursos para a sua hemi- plegia nas termas de Lamalou-les-Bains, no sul da Fran- ca. A passagem por Paris, portanto, seria rapida. Mas 0 jovem Alberto, apesar da doenga do pai, esta- va contente com a viagem que o levara a conhecer Paris. Pois era Paris — e ele bem o sabia de suas leituras — a terra dos bal6es. Fora 14 que Montgolfier fizera suas ex- periéncias inflando os baldes com ar quente, e o fisico Charles, em 1783, usando neles 0 hidrogénio. Mais, Hen- ri Giffard, em 1852, com uma caldeira a vapor, propulsor de hélice, leme e, enfim, direcdo, fazia a primeira tenta- tiva de governar um balao cujo invélucro tinha a forma de um charuto. Assim ele — Santos Dumont — contava agora com os grandes progressos na arte da aerostac&o, pois a experiéncia de Giffard ja datava de quase meio século. Saia o nosso jovem pelas ruas de Paris 4 espera de encontrar um grande dirigivel navegando pelo espago, ou pelo menos para tirar o lengo, como cortesia, aos auto- moveis passantes. Mas foi uma verdadeira decepcio nado encontrar um dirigivel a navegar. Um balao esférico, ao menos, ele de- via ter visto. Consola-se. Vai a uma fabrica de automd- veis de Valentignei e compra uma Peugeot de estrada, de trés e meio cavalos de forca e faz-se chauffeur. __ Sim, foi realmente uma amarga decepgao quando veio a saber que ainda nao existiam dirigiveis em Paris ou em outro qualquer lugar. Apenas baldes esféricos, cheios de hidrogénio, como o de Charles no fim do sé- culo 18 e que ninguém, depois de Giffard e dos Tissan- 62 dier haviam tentado experiéncias com baldes alongados. Que fazer ent&o? Se fixar na sua Peugeot ou tentar uma subida num balao esférico? Queria, de qualquer modo, experimentar um baldo, dar umas voltinhas num deles. Consultou entdo o anuario da cidade onde encontrou o enderego de um aeronauta profissional. O jovem Beto n&o teve diividas, foi ao tal aeronauta lhe comunicar seus lanos. e — Entdo o senhor quer subir em baldo? — falou o homem. E, depois de um resmungo prosseguiu: acha que tem coragem? Olhe, rapaz, isso nao é nenhuma brincadei- ra, € o senhor me parece muito menino. Santos Dumont n4o gostou do “menino”. Mas, como estava firmemente resolvido, declarou que coragem ele tinha de sobra. Que ele nao se preocupasse, que apesar da mediana estatura, ja tinha dezoito anos e seu maior desejo era, subir num balao. O homem, diante de tanta conviccao, acabou con- cordando, mas que a ascensdo seria curta, de duas horas no maximo e, mesmo assim, se a tarde estivesse calma. E Avido de dinheiro foi logo acrescentando: — O custo seré de 1 200 francos, Além disso 0 rapaz assinaré um contrato onde vai declarar o seguinte: que se responsabiliza por qualquer acidente na sua pessoa e na minha, em beneficio de terceiros, bem como por qualquer dano que possa suceder ao baldo e seus aces- sorios. Ficaré ainda encarregado de pagar as passagens de volta e o transporte do baldo e sua barquinha na es- trada de ferro, do lugar em que o referido balfo descer até a minha oficina de Paris. Os olhos do homem se contraiam e se dilatavam en- quanto estipulava as condicgGes. O homem pareceu a San- tos Dumont muito estranho, talvez um louco. Nao sé pela importancia que pedia, além das indenizacées, o que ja era uma exorbitancia, mas pela sua agitag&o e reagdes faciais. Desistiu. E foi melhor assim. Mais tarde viera a saber que o tal daquele aeronauta j& derrubara certa vez a chaminé de uma usina e, de outra, o baldo caira sobre @ casa de um camponés, incendiando-se e levando a po- bre casa também a arder. Volta & sua Peugeot. Consola-se. Pée guarda-pé, éculos escuros amarrados contra a velocidade de 20 qui- lémetros a hora, usa boné justo, esté no figurino de um elegante chauffeur e, com furor, sai pelas ruas de Paris. 63 Um sucesso! Os automéveis naquele tempo eram raros ¢ despertavam a curiosidade de todos. N&o havia exame de motorista nem licenga para se dirigir automével. Quando alguém saia nesses novos carros pelas ruas da cidade era por sua prépria conta e risco. E tal era a curiosidade po- pular que Santos Dumont néo podia parar a sua maqui- na em determinados lugares, como, por exemplo, junto 4 Opera, onde logo uma multid&o de curiosos invadiria o transito. Dai em diante Santos Dumont tornou-se um técni- co em matéria de automével. Répido aprendeu a tratar e a consertar a maquina, Consolava-se. Purtha o guarda- p6, os éculos escuros, saia a toda velocidade — 20, 30 quilémetros? — pelas ruas de Paris. Sua Peugeot conse- guia fazé-lo esquecer o desejo de subir em balao, Mas ja os pais voltavam das termas de Lamalou-les- Bains, e dispostos a retornar ao Brasil. O dr. Henrique Dumont tinha melhorado bastante de sua hemiplegia. Estava satisfeito. Na véspera de partir para o Brasil, Santos Dumont foi com o pai visitar uma exposigio de maquinas no Palacio da Indistria. Viu entéo, com espanto, um motor a petréleo, da forga de um cavalo, muito compacto e leve, em comparagao com toda espécie de motor que ele conhecia. E, o que Ihe parecera sensacional — funcio- nando! & Santos Dumont que conta: “Parei diante dele como pregado pelo destino. Estava completamente fas- cinado. Meu pai, distraido, continuou a andar até que, depois de alguns passos, dando pela minha falta, voltou, perguntando-me o que havia. Contei-Ihe a minha admira- cao de ver funcionar aquele motor, e ele me respondeu: “por hoje basta”. Ent&o o rapaz, empolgado pelo motor- zinho a petréleo, pede licenca ao pai para fazer seus estudos em Paris. O pai, fingindo-se distraido, nada res- pondeu. Mas nessa mesma noite, no jantar de despedida, estavam dois primo do pai, franceses e seus companhei- ros de escola. O engenheiro pediu ent&o aos primos que eles protegessem o seu Alberto, pois ele pretendia fazer © menino voltar para Paris, para terminar seus estudos. Nessa mesma noite Santos Dumont corre varios livreiros € compra tudo que é livro sobre baldes e viagens aéreas. E que, diante daquele motorzinho a petrdéleo, ele tinha sentido @ possibilidade de tornar reais as fantasias de Julio Verne. o4

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