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Eunice Favero Dalva Azevedo de Gois Ce eat ed Et 0 0) SOCIAL TEMAS SOCIOJURIDICOS Debates e Experiéncias Coletanea Nova de Servicgo Social MAC SE Boar Yolanda Guerra eae Peto ex9 PACU Tan Bue eal eed Servico Social ¢ od LumenJuris} A perspectiva critica que fundamenta esta coletanea de textos é tensionada pela denincia de violagéo de direitos, posi¢éo que impulsiona a construgao coletiva de Possibilidades e de efetivagao de direitos. Adotando a problematizacao historicizada, expoe a tendéncia criminalizadora, moralizadora e punitiva da sociedade brasileira, exigindo muito mais que as aparentes inovagSes legislativas e “aperfeigoamento” institucional, Propiciandoa isibilidade dos sujeitos cujas condigées expressam particularidades da violéncia, jaliza a critica propositiva nesses espagos de afirmagao e negagao de direitos. Ao enfrentar dialeticamente as violagbes provocadas pela légica do capitalismo contemporaneo, ‘© conjunto de reflexdes adota a defesa da liberdade, posi¢o que entendemos dar direc4o para a busca de superacéo dessa realidade. Aurea Satomi Fuziwara Assistente social, docente em cursos de especielizagso, miltante do movimento de dreltos humanos, pesquisadora do NEPEDH-PUCSP e membro do Coletive Ampliagbes. Esta Coletdnea representa um significativo e valioso contributo ao debate critico do Servigo Social na area sociojuridica, a partir de temdticas tao ricas, diversas e complementares que buscam pensar os desafios da profissio na contemporaneidade. Representa também resisténcia ao pensamento e praticas conversadoras de naturalizagao e culpabilizagao dos sujeitos, sobretudo pela consist&ncia tedrico-pratica, no sentido radical de. palavra, por produzir mudangas no cotidiano do trabalho do Assistente Social. 0 eixo articulador do conjunto dos textos entrelaga, compreende e explica: a produgdo da desigualdade social e 0 Servico Social na relac&o particular com as praticas punitivas e discriminatérias; a criminalizagao da pobreza e a dindmica da omisséio, ameaca e violagao dos direitos independentemente da gerago, em um contexto de barbairie protagonizado pelo Estado brasileiro; e, concomitantemente, os autores enfrentam esse assunto mostrando a inoperancia das reformas preventivas, reafirmando a defesa intransigente dos direitos humanos eabrindo possibilidades para liberdades. Maria Liduina de Oliveira e Silva Assistente sock, professora do curso de Servico Sociel da Universidade Federal de Séo Paulo; presidente da Cémara ce Ensino de Graduacso do Campus Baixada Santista da Unifesp 6 pesquisadora na érea dos direitos da crianca e do adolescente. ISBN: 9 97 88567"595757 Visite nossa loja virtual: Prelate iN ag Servico Social e Temas Sociojuridicos DEBATES E EXPERIENCIAS S Tmenfure lee Social wiv. tumenjuris.com.br Edtores Jota deAmea Joao Luz da Siva Amide Conselin Earl Vala cia Fort Inés Alegria Rocumback ‘Yolnda Apracida Danero Gusra Maia Coste Simoes Merquos Conseha Consitive (ler Marconsin nao Fico Wenderey Dorlas Eunice Teesirna Fava “esiaMiaiaD she Perera Fills Sole: Fie de Jno Mins Gerais (vipa) Cento usa semble, 36, Seryo Ricardo de Sows sas 201 2204 sergocaumaniis com br (cep: 20011-000 — Cetro—R ‘Belo Horeorte— MG Te. (61 9206-1764 Ta, 21) 2224-0305, Sania Clana (ivlgaeao) ua Goria Vasaues, 48 - ‘Gisiano fama Wablia ceP- 04098-010 cisiaro@iumenjris com Via blemoring- S20 Paulo SP Fovianinols — $C “elf 11) 5908-0240 Tel (48) 9981-9958 ‘to Palo Distribidr) Eunice FAVERO Datva AZEVEDO DE Gols Organizadoras Servico Social e Temas Sociojuridicos DebATES E EXPERIENCIAS Coletanea Nova de Servico Social ‘\VALERIA Fort! Yotanna GUERRA ‘Coordenadoras Eprrora Lien JURIS Rio DE JANEIRO 2014 Copyright © 2014 by Eunice Fivero e Dalva Azevedo de Gois Categoria: Servigo Social Produgao Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Lida. Diagramagio: Surama Cespedes ALIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. nif se responsabiliza pela originalidade desta obra E proibida a reprodugio total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto 4s caracteristicas gréficas efou editoriais, A violagio de direitos autorais constitui crime (Cédigo Penal, art. 184 §§, e Lei n° 10.695, de 1"/07/2003), sujeitando-se & busca e apreenso e indenizagdes diversas (Lei n® 9.610/98). Todos 0s direitos desta edigao reservados & Livraria ¢ Editora Lumen Juris Leda. Impresso no Brasil Printed in Brazil Dados internacionais de Catalogag: 8492 Servigo social e temas sociojuridicos : debates e experiéncias / Eunice Favero, Dalva Azevedo de Gois, organizadoras. — Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2014. 221 p.; 23cm Inclui bibliografia. ISBN 978-85-67595-75-7 1. Servigo social de casos. I, Fivero, Eunice II. Gois, Dalva Azevedo de CDD- 361 Sumario VIL XI SOBRE OS AUTORES .. APRESENTACAO ... PREFACIO .. Blisabete Borgiannt BARBARIE SOCIAL E EXERCICIO PROFISSIONAL: APONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES E PAS DESTITUIDOS DO PODER FAMILIAR. Eunice Févero FAMILIAS, DESENRAIZAMENTO SOCIAL E PRIVAGAO DE DIREITOS sssessressseeeeernseeeeeree 19 Dalva Azevedo de Gois PRATICAS PUNITIVAS E SERVICO SOCIAL! REFLEXOES SOBRE © COTIDIANO PROFISSIONAL NO CAMPO SOCIOJURIDIOO.. Charles Toniolo de Sousa 35 DesiNSTITUCIONALIZAGAO E HostrraL DE CUSTODIA E TRATAMENTO PSIQUIATRICO: NOTAS PARA O DEBATE... Valeria Forti Thais Beal 53 ORGAMENTO PUBLICO E ENFRENTAMENTO A VIOLENCIA SEXUAL CONTRA CRIANGAS E ADOLESCENTES: AVANGOS LIMITES CONSIDERANDO A REALIDADE DO R10 GRANDE DO NORE «.. Iris Maria de Oliveira Sayonara Régia de Medeiros Dias B A REINSERGAO FAMILIAR DE CRIANGAS E ADOLESCENTES: PERSPECTIVA HISTORICA, DA IMPLANTACAO DOS PLANOS INDIVIDUAIS DE ATENDIMENTO. E DAS AUDIENCIAS CONCENTRADAS . ‘Myrian Veras Bapeista Ria C. S. Oliveira 93 O ACOLHIMENTO FAMILIAR E AS ACOFS VOLTADAS A PROTEGAO E PROMOGAQ_ DDOS DIREITOS DE CRIANCAS E ADOLESCENTES eas 109 Abigail Aparecida de Paiva Franco OSeRVICO SOCIAL NAS PRISOES: ROMPENDO COM A PRATICA CONSERVADORA, NA PERSPECTIVA DE UM NOVO PROJETO PROFISSIONAL .. Andrea Almeida Torres 127 SeRvigo SOL No MinisT#RI0 PUBLICO: CONSOLIDAGAO DE UMA PROPOSTA DE TRABALHO NA DEFESA DE POLITICAS SOCIAIS .. Isabel Campos de Arruda 18 PoreNCIALIDADES DO SiRVIQo SOCIAL NA DireNsoRIA PUBLICA: RELATO DE EXPERIENCIA NO ESTADO DE SAO PAULO... Luiza Aparecida de Barros 159 Direrros, SERVIGO SOCIAL E PESSOA IDOSA: CONSTRUGAO DE INDICADORES SOCIAIS A PARTIR DA PRATICA PROFISSIONAL .. Maria Cecilia Tecdoro Sanches Silvio Ribeiro 175 DiAGNOsTicos SOCIOTERRITORIAIS: CONHECIMENTO DE DINAMICAS E SENTIDOS DOS LUGARES DE INTERVENCAO. Dirce Koga 191 Sobre os autores Abigail Aparecida de Paiva Franco — Assistente Social. Mestre e Doutora em. Servico Social (UNESP — Franca). Assistente Social no Tribunal de Justiga do Estado de Siio Paulo (em Franca). Professora do Curso de Servigo Social do Centro Universitério Baro de Maus de Ribeiro Preto/SP. Consclheira Fiscal da AASPT] — Associagiio dos Assistentes Sociais ¢ Psicélogos do Tribunal de Justiga do Estado de Sio Paulo (gestiio 2001-2005). Pesquisa- dora na érea de acolhimento familiariconvivéncia familiar ¢ comunitéria. Andrea Almeida Torres — Assistente Social. Doutora em Servigo Social pela Pontificia Universidade Catélica de Sao Paulo. Especialista em Dicitos Humanos ¢ Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide/Espa- nha. Professora Adjunta do Curso de Servigo Social da Universidade Fede ral de Sao Paulo (Unifesp ~ Baixada Santista); Coordenadora do GEPEX. dh — Grupo de Estudos ¢ Pesquisa em Seguranga Pablica, Justiga Criminal ¢ Direitos Humanos na UNIFES/BS. Experiéncia de trabalho e pesquisa nas éreas da justia, sistema punitivo — prisional e politicas puiblicas. Charles Toniolo de Sousa — Assistente Social. Mestre em Servico Social. Professor do Departamento de Fundamentos da Escola de Servigo Social da UFRJ. Foi Assistente Social do Ministério Ptiblico do Estado do Rio de Janeiro no perfodo 2002-2010. Presidente do CRESS-RJ -2011/2014. Dalva Azevedo de Gois (Org.) — Assistente Social. Especialista em fami lias, Mestre e Doutora em Servigo Social (PUCISP). Assistente Social no Tribunal de Justiga do Estado de Sao Paulo (1999-2013). Professora da Graduago em Servigo Social e do Mestrado em Politicas Sociais, e Vice- -lider do Niicleo de Estudos ¢ Pesquisas sobre Politicas e Priticas Sociais com Familias da Universidade Cruzeiro do SUL — SP. Pesquisadora em. familias, trabalho social e adogio. Dirce Koga — Assistente Social. Doutora em Servigo Social (PUCISP). Pro- fessora titular ¢ coordenadora do Programa de Mestrado em Politicas Sociais da Universidade Cruzeiro do Sul SP. Pesquisadora do Centro de Desigualdades Socioterritoriais — Cedest (INPE e PUC/SP). Assessora em pesquisa socioecondmica e na temética Territério e Politicas Sociais. vil Eunice Favero (Org) — Assistente Social. Mestre ¢ Doutora em Servigo: Social (PUCISP). Assistente Social no Tribunal de Justiga do Estado de Sao Paulo (1985/2012). 12 Secretéria da AASPT]-SP (gestdes 2001/2005 € 2009/2011). Professora do Mestrado em Politicas Sociais e Lider do Niicleo de Estudos e Pesquisas sobre Politicas e Priticas Soctais com Fa- miflias da Universidade Cruzeiro do SUL — SP. Pesquisadora na area do Servigo Social no Judicidtio, crianga e adolescente, familias. Tris Maria de Oliveira — Assistente Social. Doutora em Servigo Social (PUCISP). Professora do Departamento de Servigo Social e do Progra- ma de Pés-graduagio em Servigo Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pes- quisa em Questo Social, Politica Social e Servigo Social da UFRN e do Niicleo de Formagio Continuada de Conselheiros de Direitos e Con- selheitos Tutelares do estado do RN ~ Escola de Conselhos, Projeto da UERN em Parceria com a Sedh/Presidéncia da Reptblica. Isabel Campos de Arruda ~ Assistente Social. Mestre em Servigo Social (PUCSSP). Especialista em trabalho com familias. Coordenadora do Né- cleo de Assessoria Técnica Psicossocial - NAT, do Ministério Pablico do Estado de Sao Paulo. Luiza Aparecida de Barros — Assistente Social. Especialista em Sociopsico- logia (FESPSP). Coordenadora de trabalhos do Instituto Terra Trabalho ¢ Cidadania (2005-2006); Assistente Social no Tribunal de Justiga do Es- tado de So Paulo (2006 a 2010); Assistente Social da Defensoria Pablica do Estado de Sao Paulo na Assessoria Técnica Psicossocial. Maria Cecilia Teodoro Sanches ~ Assistente Social. Especialista em Ge- rontologia, Satide Publica, Educagao em Satide e em Economia Solicria. Supervisora Técnica do Programa Acompanhante de Idosos da Associa~ 80 Satide da Familia. Assessora Técnica do movimento social de idosos/ regio leste da cidade de Sao Paulo. Coordenadora de projetos sociais do Instituto Laboridade. Coordenou o Néicleo do Idoso da Secretaria Mu- nicipal de Cultura eo Centro de Referéncia e Cidadania de Sao Paulo. Myrian Veras Baptista ~ Assistente Social, Doutora em Servigo Social pela Pontificia Universidade Catélica de Sio Paulo, onde ¢ titular do Progea- ma de Estudos Pés-graduados em Servico Social. Fundadora e Coorde- nadora do Niicleo de Estudos e Pesquisas sobre Criangas e Adolescentes (NCA/PUC-SP). Fundadora da Associagdo dos Pesquisadores de Ni- vill cleos de Estudos e Pesquisas sobre a Crianga eo Adolescente (NECA) ¢ da Veras Editora e Centro de Estudos. Também com atuagio, estudos ¢ publicagées em Servigo Social, com énfase nas temticas infincia, juven- rade, familias, prtticas socinis, planejamento e pesquisa. Rita C. 8. Oliveira — Assistente Social. Mestre e Doutoranda em Servic Social (PUCSP). Atual Coordenadora Técnica do Niicleo de Estudos ¢ Pesquisas sobre Crianga e Adolescente ~ (PUC/SP). Professora da Pés- -graduagio em Servigo Social (lato sensu) da Universidade Cruzeiro do Sul — SP. Pesquisadora na drea de acolhimento institucional e convivén- cia familiar e comunitéria. Sayonara Régia de Medeiros Dias ~ Assistente Social. Especialista em As- pectos Sociais e Juridicos da Inffincia e Juventude (UFRN). Mestre em. Servigo Social e Integrante do Grupo de Estudos ¢ Pesquisa em Questio Social, Politica Social e Servigo Social (UFRN). Coordenadora Politico- -pedagdgica do Centro de Defesa da Crianga e do Adolescente — CE- DECA Casa Renascer. Integrante do Comité Estadual/RN de Enfrenta- mento A Violéncia Sexual contra Crianga e Adolescente, do Férum de Defesa de Direitos de Crianga e Adolescente do RN e do GT Nacional Pré-convivéncia Familiar e Comunitaria. Silvio Ribeiro — Assistente Social. Pés-graduado em Administragio Hospi- talar e Sistemas de Saiide (FGV — SP) e em Gerontologia Social (Facul- dade de Medicina ~USP). Supervisor de Equipe na Associagao Satice da Familia. Professor na UNIP ¢ Conciliador e Mediador de Conflitos no Forum Joao Mendes nas freas Civel e Familia. Thais Beiral — Alina de Graduagio da Faculdade ck Servigo Social da Univer- sidade do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista de Iniciagio Cientifica do Pro- jeto “Etica, direitos, trabalho e Servigo Social: um estudo no sistema penal”, coordenado pela Professora Valeria Forti, sob a orientagio da mesma. ‘Valeria Forti — Assistente Social. Mestre em Filosofia (UGF). Doutora em Ser- vvigo Social (UFR)). Professora Adjunta da Faculdade de Servigo Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UER]) — Grachuagio e Pos-gra- duagfio, Pesquisadom do Observatétio do Trabalho no Brasil da Faculdade de Servigo Social da UERJ. Coordenadora de Pés-graduagio da Regional Leste da Associagao Brasileira de Ensino e Pesquisa em Servigo Social — Abepss. Apresentacdo Esta coletiinea retine textos que abordam temas presentes no dia a dia de trabalho dos assistentes sociais e de outros profissionais que atuam em diferentes espagos sécio-ocupacionais do que se convencionou denominar, no Servigo So- cial, como campo sociojuridico , mais recentemente, como area sociojuridica. ‘Apresentando debates que emergiram de estudos, ¢ também pesquisas e/ ou experincias profissionais de seus autores, a presente obra pretende contribuir com subsidios para a pritica profissional cotidiana e para a formagao ea pesquisa nessa complexa ‘rea — ainda to carente de investigagSes que’ desvelem suas particularicades e a imbricagao dessas com relagées sociais que, historicamen- te, determinam a imensa desigualdade social presente na sociedade brasileira Nessa diregio, busca preencher mais um espago na lacuna de conhecimentos sobre a realidade social da populagdo atendida pelo assistente social e por outros profissionais que atuam nas Varas da Infincia e Juventude, no Sistema Prisional, na Defensoria Piblica, no Ministério Piiblico, nos Hospitais de Custédia e em tras organizagSes e programas da rede socioassistencial afins & 4rea, bem como sobre atribuigGes, competéncias e dimensGes éticas da agao do Servigo Social. ‘Atuando em meio as contradig6es postas pela realidade social, institucional ¢ profissional, aqueles que trabalham e realizam pesquisa nessa sea se defron- tam com as mais kirbaras expresses da questo social € com priticas, muitas vezes, predominantemente punitivas e moralizantes, ao mesmo tempo em que se leparam com possibilidades — em algumas situagées, a tinica possibilidade apés esgotamento da busca dos drgios de execugao das politicas sociais — de acesso e efetivagao de direitos, tanto no ambito individual quanto no coletivo. ‘Assim, 08 autores aqui reunidos trazem debates, relatam e analisam ex- perigncias, expdem desafios e instigam novos estudos na perspectiva de fazer avangar no cotidiano do exercicio profissional o projeto ético-politico do Servi- go Social na contemporaneicade. (Os debates presentes nas ensaios e relatos de experiéncias desta coleténea tém inicio com pesquisa sobre a realidade social de mies e pais desticuidos do po- dlor familiar, evidenciando que, mesmo com os avangos conquistados nas tiltimas décadas em termos da legislagio social, a imensa desigualdade social existente no pafs continua determinando o rompimento de vinculos parentais e colocando mutheres e homens que vivem em situagiio de miséria como “descartaveis” frente 0 dominio da sociedade de consumo ¢ do individualismo a ela inerente. XI Abordando 0 tema “familias” — enquanto instituigo presente no coti- diano de trabalho dos virios espagos sécio-ocupacionais da sirea sociojurfdica =, 0 ensaio apresentado na sequéncia, fruto da experiéneia profissional e da pesquisa académica, oferece importantes subsidios para pensar as implicagdes do desenraizamento social na dindmica das familias ¢ para “a reflexiio sobre seus aspectos ¢ suas implicagdes no acesso a direitos sociais ¢ na definigao de estratégias protetivas’, nos dizeres da autora. A partir de situagdes hipotéticas que envolvem 0 exercicio profissional cotidiano de assistentes sociais na area socigjuridica, outro texto aborda as “priticas punitivas e Servic Social”, discutindo dilemas vivenciados na inter vengiio profissional, com base no entendimento de que essa drea é constituida por instituigdes cuja natureza esta atrelada & dimensao impositiva do Estado para a contengao ¢ tentativa de resolugio de conflitos sociais, demandando dos assistentes sociais praticas e valores que visam corroborar praticas punitivas — 0. que cria uma incompatibilidade entre diversas requisig6es institucionais ¢ as atribuigGes, competéncias, os principios e valores éticos do Servigo Social apés a consolidagio do projeto profissional renovado. A desinstitucionalizagao nos hospitais de custédia e tratamento psiquid- trico — antigos manicémios judicidrios — é tratada nesta coletnea com suporte em pesquisas que expdem o que as autoras denominam de “campo-sintese” de reflexes sobre a dimensio ética e o trabalho do assistente social, considerando que as condigées de atuacao profissional nesses espagos sio bastante comple- xas, na medida em que se trata de rea “cuja violagio aos direitos humanos ¢ & ética é significativa”, tendo em conta o estigma comum aos usuarios segregados lo convivio e avaliaclos como ameaga a sociedade. enfrentamento & violencia sexual contra criangas ¢ adolescentes é outro importante debate trazido pela coletdnea, com suporte em elementos para discussio sobre 0 processo histérico de mobilizagio social e construgio da politica de pro- mogiio € protecio dessa populagao, abordando a perspectiva de direitos humanos que segue na contramio da politica neoliberal, bem como 0 orgamento piblico dlestinado a essa politica, com base na realidade do estado do Rio Grande do Norte. Nacontinuidade dessas reflexdes, e em sintonia coms fundamentos ético- -politicos do Servico Social, so apresentadas as principais mudangas ocorridas nos anos recentes em relagiio & medida de protecio “acolhimento institucional”, com destaque para elementos do contexto no qual emergia a demanda nacional de realizacio de audiéncias concentradas ¢ de planos individuais de atendimen- to, procedimentos privilegiados na atualidade para a garantia da convivéncia familiar € comunitiria de criangas e adolescentes acolhidos institucionalmente. Nessa mesma perspectiva de defesa do direito & convivéncia familiar ¢ co- munitéria e de ages voltadas & protegio e promogio dos direitos de criangas & XIL adolescentes, ¢ apresentado, em seguida, o processo de construgao de um progra- ma de acolhimento familiar em municipio de médio porte, sua transformagao em politica pablica e sua implementagio buscando envolver a rede socioassistencial. Compartilhando essa experiéncia, a autora instiga o debate e socializa significa- tivas informages sobre processos e instrumentos para a efetivagio desse tipo de programa, contribuindo com subsidios a trabalhadores e estudicsos do assunto. Na sequéncia, a colet’inea apresenta o registro histérico de experiéncias significativas, criticas e inovadoras, realizadas pelo Servigo Social em uma pe- nitenciéria feminina no final da década de 1970 e inicio da década de 1980, revelando 0 protagonismo de assistentes sociais no espago sécio-ocupacional das prisdes, questionandlo sua fungao punitiva e avangando na perspectiva de que € possivel a renovagio do trabalho profissional no sistema prisional a partir de outra ditegdo ética, politica, critica e transformadora OServigo Social no Ministétio Piblico e a consolidagio de uma proposta de trabalho na defesa de politicas sociais, especialmente no que se refere a0 proceso de insergio de assistentes sociais na instituigda, de definigio de suas attibuigdes ¢ de constituigdo da pritica profissional voltada & concretizactio de direitos sociais, sio ahordados na sequéncia, dando visibilidade & importante experiéncia efetivada na drea sociojuridica, que tem ampliado, nos anos recen- tes, 05 espacos de trabalho aos profissionais do Servigo Social. Nessa mesma perspectiva, o Servigo Social na Defensoria Piiblica é retra- tado, revelando possibilidades de contribuigao com 0 acesso a justiga. Explici- tando que esse processo € permeado por dificuldades, inclusive porque trans- cende 0 estrito acesso ao Poder Judicisrio, o texto relata e discute experiéncias que expressam os desafios cotidianos da Defensoria Pablica ¢ as possibilidades de intervengio do Servigo Social, com vista & defesa de direitos da populacio. Os dois textos finais da coletiinea tratam de debates e sistematizagdes senvolvidos por assistentes sociais acerca de temas presentes em espagos s6cio- -ocupacionais das dreas sociojuridica e afins, voltados para direitos da pessoa ido- sa e para a necessidade de conhecimento da realidade social do “territério vivido € territdrio de vida" dos suieitos ususirios do Servigo Social, de maneira a ampliar as possibilidades de acesso e garantia de direitos. © primeiro deles relata a cons- trugio de indicadores sociais a partir da pritica profissional de assistentes sociais de um programa piblico de atencao a idosos, visando, além de retratar a reali- dade social desse segmento populacional, compor informagdes que favorecam a implementagao de ages voltadas para a concretizacao de seus diteitos sociais. O segundo destaca os diagnésticos socioterritoriais como possibilidades de conhe- cimento de dindmicas e sentidas dos lugares de intervengio, em uma perspectiva que ultrapassa o mbito técnico-instrumental e alcanga a dimensio politica. XUL Enfim, privilegiando ora o debate tedrico © politico, ora a experiéncia construida com a funcamental participagao de assistentes sociais comprometi- dlos com o projeto ético-politico do Servigo Social na contemporaneidade, mas quase sempre transitando entre o debate e as experiéncias, os textos reunidos nesta colet‘inea so expressdes da busca da necessiria articulagio teGrico-priti- ca, na concretizagio do trabalho profissional do assistente social no cotidiano. Eunice Favero ¢ Dalva Azevedo de Gois XIV Prefacio Elisabere Borgianni! ‘A coletinea que o leitor tem em méos aborda intimeros € complexos te- mas que pertencem ao universo no qual o social ¢ o juridico comparecem como mediagGes principais. Social entendido como sintese das expresses complexas da luta de clas- ses — sejam essas expressées silenciosas ou explosivas, barbarizantes da vida em sociedade ou camufladoras da violagio de direitos. Juridico entendido como esfera em que os conflitos se resolvem pela impo- sitividade do Estado. Ambos, social e juridico, intimamente interligados entre si © com o politico, desde a génese da sociedade burguesa. Resumidamente: os temas aqui coligidos contém (e expressam), todos eles, as contradigGes que so congeniais & sociedade de classes, onde a produgao é social e a apropriacio dos frutos do trabalho de todos € privada e concentrada nas mios de uma parcela mfnima da populagao, gerando uma desigualdade que, antes de ser defeito, & produto do modo de organizagio capitalista da sociedade. A obra vem a piiblico em um momento em que explodem manifestagdes de rua como resposta ensurdecedora ao descaso ¢ & desfagatez de muitos dos politi- ces que tornaram também a politica algoigndbil, ao virar as costas para a flagran- te exclusio da maioria da populagio das mais basicas formas de sobrevivéncia. Conjuntura na qual o fundo piblico foi transformado em parceiro im- prescindivel e até mesmo vital ao processo de valorizagio do capital, ao mesmo tempo em que 0 superivit primario tornou-se algoz das politicas piblicas, sob 0 discurso ideolégico de uma “responsabilidade fiscal” ordindria porque expres- so de clara preocupagiio com os riscos do capital e niio dos cidados. ‘A consequéncia desse modelo é que, além de no contar com formas esta veis e protegidas de trabalho, parcela significativa dos trabalhadores brasileiros esti jogada & propria sorte no que diz respeito A chamada protegao social, seja na infincia, na velhice, nas situagdes de deficiéncia fisica e mental, no acidente do trabalho etc. E pior: a justica que os aleanga é aquela que os transforma em 1 Mestre e Doutora em Servigo Social pela PUCSP, Assistente Social do"Tribunal de Justiga do Estado de Sio Paulo, licenciada para o exercicio do mandato de Presidente da Associngio dos Acsistentes Sociais e Psiedlogos do Tribunal de Justca do Estado de Sao Paulo — AASPT]SP, Gestio Conexio Hiseérica 2013-2011. Ex-Presidente do Conselho Federal de Setvigo Social-CFESS, gesto 2005/2008 XV réus, em devedores, em pais ou mies “negligentes”, em adolescentes infratores, ou em “delinquentes” que devem cumprit penas em prisdes abarrotadas e sem condigées de qualquer trabalho socioeducativo. Nio é dificil constatar que as cruéis contradigdes que movem a socieda- de a partir das formas capitalistas de organizagao da produgio, distribuicao e acumulagao da riqueza subjazem aos temas aqui trabalhados: a destituicao do poder familiar, o desenraizamento (¢ a culpabilizagio) de muitas das familias que entregam um filho em adogio, as priticas punitivas por meio de agentes do Estado, as violagdes que ocorrem nos hospitais de custédia ¢ tratamento psiquisitrico, os dramas que cercam a internacao de adolescentes infratores, relagao entre desprotegao social ¢ aumento de violéncia sexual contra criangas, o papel do Servigo Social nas prisdes, no Ministério Piblico na Defensoria Piiblica. Assim como 0 imprescindivel trabalho dos assistentes sociais nos pro- cessos de acolhimento familiar de criangas e adolescentes sob tutela do Estado, a luta pela efetivagio de direitos da pessoa idosa e, finalmente, a responsabili- lade dos profissionais no conhecimento das realidades territoriais ¢ também na elaboracao dos planos individuais de atencimento. Os que desenvolvem seu trabalho cotidiano na drea sociojuridica sabem que a criminalizacao dos pobres e a desprotegio social so como que irmis siamesas, assim como sabem que o Direito ¢ o juridico no mundo burgués de- senvolvem-se em um mar de contradigées, uma vez que expressam um contrat social que se estabelece entre desiguais e que € objetivado na carta constitucio- nal — documento juridico-politico. ‘As demandas e responsabilidades que estiio postas aos que atuam nessa rea vém crescendo enormemente nas tiltimas décadas. Esse crescimento se dé tanto pelo avango do marco legal de proteciio de direitos ~ Lei Maria da Penha, Estatuto do Idloso, a lei que prevé a protegtio e os direitos das pessoas portacloras de transtornos mentais, as alteragdes do Estatuto da Crianga e do Adolescente que dizem respeito & convivéncia familiar e comunitéria, a normatizagio das Audiéncias Concenttadas, 9 Sistema Nacional Socioeducativo etc. — como pela forte tendéncia & criminalizagao dos pobres e dos mais vulnersiveis. Os dilemas éticos so intimeros ¢ os riscos de adoecimento e de trans- tomos mentais crescem entre os assistentes sociais, psicélogos, educadores ¢ lemais trabalhadores que vivem 0 chamado softimento ético-politico nas ins- tituigdes do sociojuridico. Softimento que em resumidos termos advém da reza que o profissional acquire sobre o que & necessério fazer para dat acesso a direitos e a constatagao de que as condigdes materiais do trabalho impedem ou obstaculizam de forma perversa esse fazer. Venho definindo como drea sociojuridica os espagos sécio-ocupacionais onde atuam assistentes sociais, psicGlogos, trabalhadores de areas afins e ope- XVI radores do Direito, nos quais as atribuigées privativas e as compettncias desses profissionais sao mediadas pelo universo juridico e pelo Direito e onde aplicam-se e executam-se as determinagOes judiciais ou tém-se a interface com elas. A partir dessa perspectiva, é pertinente afitmar que compdem a Area socio- juridica as instituigdes que formam o Sistema de Justiga, ou seja, os Tribunais de Justiga — estaduais, federais e eleitorais -, 0 Ministério Pablico, as Procuradorias de Justiga, a Defensoria Priblica, o Sistema Prisional, o Sistema de Seguranga Piiblica, © Sistema de cumprimento de medidas socioeducativas, os Niicleos de Priticas Juridicas das Universidades e Faculdades, ¢ todas as instituigGes e onganizagoes que sio abrangidas pelo Sistema de Garantias de Direitos, conforme o define a Resolugio 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Crianga e do Adolescente — Conanda, em seus trés eixos: protecio, controle e exigibilidade dos direitos. Em todos esses espagos, os profissionais estarvio sempre confrontados com problemas cuja resolugio, embora nao esteja diretamente em suas mios, no pocle prescindlir de uma atuagao ética e profundamente consciente ¢ engajada. E essa atuagao pode fazer enorme diferenga na vida das pessoas atendidas. E mais: no interior dessas institucionalidades, estar presente todo o tem- po a polaridade antitética formada pela necessidade de dar acesso a direitos € a necessidade de responsabilizagio civil ou criminal daqueles que os violam, No caso dos assistentes sociais, é preciso ter clareza de que seu trabalho ser sempre na dirego do fortalecimento do polo “acesso a direitos” ¢ no da “responsabilizagao” civil ou criminal dos indivicuos ou familias que os tenham violado. A responsabilizagio — assim como a colheita de provas ou inquitigiio dle testemunhas ~ 6 necessiria socialmente, mas 6 papel de outros agentes do Estado, como promotores de justiga, magistrados e delegados de policia. Em uma conjuntura em que crescem a olhos vistos o desrespeito & priva- cidade dos cicladios, as incursdes policiais em seus domicflios, muitas vezes sem um mandado judicial, os assistentes sociais, psicélogos, educadores e demais trabalhadores que atuam nessa érea precisam estar em cotidiana prontidio para que suas attibuig6es no sejam confundidas com as priticas policiais e de fisca- lizagao de comportamentos e de extragio de verdades juridicas. O crescimento da violencia urbana nos grandes centros ¢ 0 aumento ex- plosivo da criminalidade ligada ao narcotrifico e ao comércio de armas est fazendo com que a classe média comece a fazer ouvidos moucos ¢ a tapar os olhos para a violéncia policial, para a tortura no interior das instituigGes estatais ¢ para a participagio de agentes do Estado em milicias ou grupos de exterminio. Saber que existem profissionais e pesquisadores que lutam na contracor- rente deste estado de coisas, como os que aqui nos brindam com suas impor- tantes anzilises, s6 pode nos fazer renovar a esperanga de que um outro mundo & possivel ¢ necessirio. XVI Barbarie social e exercicio profissional: apontamentos com base na realidade de més e pais destituidos do poder familiar Eunice Favero O propésito deste texto & expor situagses de violagio de dircitos ¢ de verdadeira barbirie que permeiam a realidade social de significativa parcela de mies ¢ pais destituidos judicialmente do poder fanniliar, além de apontar alguns elementos para anilise ¢ reflexio sobre o trabalho do assistente social nessa realidade, com um breve destaque para a pritica desse profissional no espaco sécio-ocupacional da Justiga da Infincia e da Juventude. Esse espago se insere, no Ambito do Servigo Social, no campo até 0 momento designado como socio- juridico ~ que & aquele composto pelo conjunto de fireas em que a ago do Ser- vigo Social mantém articulagdes mais préximas com ages de natureza juridica. ‘Tomamos como base para a andlise um recorte de pesquisa realizada em 2011 © 2012 em autos processuais de destituigdo do poder familiar que tra- mitaram no segundo semestre de 2010 em seis das IL Varas da Infincia e da Juventude (VIJ) de Sao Paulo, capital. A pesquisa teve como principais objeti- vos conhecer e analisar a realidade social de mies e pais que perdem o poder familiar sobre filhos, ¢ identificar e analisar, no espaco da Justica da Infincia ¢ da Juventude, se a preservacio ¢ a ruptura dos vinculos parentais tém relagio com 0 acesso ou nao A protegao social. Nos 96 autos processuais localizados e pesquisados, constatou-se a exis- téncia de 121 pessoas destituidas do poder familiar em relagio a 115 criangas: em 66, apenas a mie; em cinco, apenas o pai; em 25, 0 pai e a mae. ‘As normativas sobre o poder familiar e os direitos ¢ deveres que tal poder implica, e sobre sua suspensio e destituigo, estio dispostas no Cédigo Civil (CV) 1A pesquisa *Préticas socials com familias e acessoa diteitos: a efetividade da Politica de Assisténcia Social na interface com a Justga da Infancia da Juventude’, com base na qual oi elaborado recor te abordaclo neste texto, vincula-se a0 NEP Polticase Priticas Socinis com Familias (Mestrado em. Pollticas Sociais/Universdade Cruzeiro do SUL-SP), ¢ conton com a partiipaio das seguintes pes- dquisadoras: Andrea Svicero, Carmen Brunt, Cina Campos, Fabiana Brigido, Janaina Dias, Miriam, Vz da Silva, Somira L. M, Raphael, Sivana 1. Barbosa, Silvia M. Crevatin e Vilma S. N. dos Santos Parte das informagies que compyiem este texto esti no Relatévo Preliminar da Pesquisa (2013). Eunice Féver eno Estatuto da Crianga edo Adolescente (ECA). A destituigo do poder familiar 6 uma medida judicial extrema, que implica o total rompimento dos vinculos e obrigagGes legais entre pais e fills e, portanto, sua aplicagao s6 cabe nos casos de grave violagio de diteitos da ctianga, devenclo abedecer ao devido processo legal.? A pesquisa em foco revelou que expressiva parcela das pessoas destituidas do poder familiar vive uma realidade permeada por expresses da questio so- cial, entre as quais o alto indice de dependentes de dleool e de crack vivendo em situagao de rua, com raros casos de acesso a servigas que propiciam o aten- dimento e a garantia de direitos sociais. Ainda que outras situagOes registradas nos autos como motivos do rompimento do vinculo tenham aparecido — por exemplo, maus-tratos e abandono sob cutidados ou sob risco* - este texto cha- ma a atencdo para uma situagio que caracterizou significativo indice de casos, que foi a dependéncia ao crack ou a outras drogas, geralmente acompanhada da vivéncia em situagio de rua, em tempo integral ou parcial, e 0 no acesso a direitos sociais ao longo de suas trajetérias. Considerando informagées sobre 0 acesso ou néo ao trabalho, & escola, } moradia, A satide e A assisténcia social, as situagdes vividas pelas mies e pais que perderam o poder familiar na condigio acima apontada demonstram que a barbirie ¢ a desprotegao social dio a ténica a suas vidas. Sem desconsiderar a importéincia de pensar as agGes protetivas a crianga sob risco, em geral sem autonomia para se proteger ou buscar proteciio, a opgdo deste estudo é refletit sobre a situagao social desses pais, no interior de um quadro de degradacao e de barbatizagio da vida humana, e estabelecer algumas anotagdes sobre a pritica profissional do assistente social nesse contexto, particularmente no dia a dia do trabalho na Justiga da Infancia e da Juventude. Realidade social e barbarie Os documentes que compdem os autos pesquisndos revelam que, das 121 pes- soas destituidas do poder familiar, 33 (26%) tinham alguma relacdo com a depencén- 2 artigo 19 do ECA dispie que “Toda crianga ou adolescente tam direito a ser eriado e educado no seio da sua familia e, excepcionalmente, em familia substtura, assegurada a convivéncia familiar & comunitira, em ambiente livre da presenga de pessoas dependenstes de substincias entorpecentes". O artigo 23 observa que “A falta ou a caréneia de recursos materias ndo constigui motivo suficiente para a perda ou a suspensio do poder familiar. Pariigrafo tinico. Nao existindo outro motivo que por si 56 autorize a decretagio da medida a crianga ou o adolescente seré mantido em sua familia de origem, a ‘qual devers obrigatoriamente ser ineluida em programas oficais de ausilio" 3, Entendido 0 primeiro como casos em que a crianga fi deixada em alguma unidlade de sade, ou sob 1 medida protetiva de acolhimento institucional, ov com terceitos, e o segundo como 08 casos em que a crianga correu risco de violéneia efou de morte ao ser deixada sozinha. [BARDARUE SOCIAL E EXERCIGIO IRORSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES [PAIS DESTITUIDOS DO PODIR FAMILIAR cia de drogas ~ muitas delas cumulativamsente a indicagio de abandono e de mans- -tratos i crianga. A depenckéncia de crack é citada em 11 (8%) casos, a de drogas sem especificagao da substfincia usada, em 15 (11%), e a de leool soma sete (5%). Significativa parcela dessa populagio vivia em situagio de rua (19%), além de outras formas precéirias de moradia, populago essa que, conforme pesquisa da Fipe (2010), faz uso de substncias psicoativas com frequéncia em seu dia a dia. A referida pesquisa, que identificou o perfil da populagio de “moradores de rua” na rea central da cidade de Sao Paulo, aponta que A grande maioria (74%) declara utilizar: éleool, drogas ow ambos, Entre os jovens de 18 a 30 anos a proporcio atinge 80%. O consumo entze os moradores de rua é superior a0 encontrado entre os que frequentam os centros de acolhida, O Alloool & a substincia mais utilizada (65%), sendo mais frequente entre os mais velhos. Maso consumo de drogas atinge também um geupo significative (37%), alcangando 66% dos jovens até 30 anos. A droga consumida mais fre- quentemente pelos jovens é 0 crack: mais da metade deles declara utilizé-lo (FIPE, 2010, p. 5). Registros dos autos pesquisados (compostos de relatérios da equipe téc- nica da VIJ, de editais de citagio, manifestagées do Ministério Piiblico © da Defensoria, sentengas judiciais etc.) apontam, em relagao aos pais destituidos do poder familiar, uma realidade cotidiana permeada por: possivel transtorno mental; HIV; dependéncia quimi- ca (rack), mie morava na rua; abandono criangal em via publica; dependéncia quimica/ususria de drogas; de- pendéncia de crack; vivéncia na rua/aso dos filhos para mendicdncia; mie ameagada de morte pelo pai da crian- 5, deixou [a crianga} com terceiros que a utilizava para mendicdncia; uso de medicamentos psiquistricos/situagio dde rua; maconha e crack; éleool e crack. CO abandono social, a dependéncia ao alcool e a outras drogas ~ com des- taque para 0 crack —, a violéncia doméstica e a vitimizagio da crianga compoem, indices expressivos, revelando que a violéncia, em suas diversas faces (social ¢ intrafamiliar), permeia a vida cotidiana de pais ¢ mies que entregam ou abando- nam os filhos ou os tém retirados de seu “poder familiar”, restando para a maioria, no limite das condigées de sobrevivéncia, a possibilidade de que A crianga, que nfo tem autonomia para se cuidag, seja garantida alguma medida de protesio. Eunice Féver Os registros evidenciam que & maioria das mies ¢ dos pais destituitlos do poder familiar nao foi garantido acesso a direitos sociais nem antes nem apés 0 rompimento do vinculo parental — como alguma medida imediata de atengao 2 satide quando necessério, e/ou medidas que possibilitem, em médio prazo, algu- ma autonomia na condugio da vida pessoal e social. Salienta-se que nem sem- pre os registros que compGem os autos incluem agdes relacionadas &s familias, como encaminhamentos a programas da rede socioassistencial, por exemplo, ainda que porventura tenham sido realizados. Nesse sentido, importa observar que no Ambito do Judiciério so mais, muns a constata¢io dos acontecimentos e a efetivagio de agdes que garantam, alguma protegio A crianga, enquanto “prioridade absoluta”, em detrimento da atengio 4 familia. Isso porque muitas vezes essa instituigio 6 “a diltima etapa” de um caminho petcorrido pela familia no interior de um processo de desprotegio social, e/ou porque os setvigos de atengio, quando existem, nem sempre so acionades para seu atendimento, ou nfo realizam um trabalho social de forma articulada, que possibilite a efetivagio de direitos. As mies e os pais que perdem o poder familiar sio, expressivamente, analfabetos (3%) ou com ensino fundamental incompleto (30, ou 25%), sendo identificado registro de seis (5%) que sabem “ler e escrever", sem identificacio, contudo, de grau de escolaridade. Uma minoria cursou 0 ensino fundamental completo (10, ou 8%), é inexpressivo 0 nimero dos que cursaram ensino mé- dig — dois com ensino médio incompleto e trés com esse nivel completo -, e ha apenas uma pessoa com nivel superior completo. Portanto, 0 acesso a0 direito educacdo nao faz parte da vida desses sujeitos, ou o faz de maneira preciria. Em relagdo A aproximadamente metade das pessoas (58, ou 48%), nao foi encontra- da informagio sobre escolaridade. Ainda que a respeito de praticamente metade dos sujeitos nfo tenha sido registrado esse dado, o conjunto das informagées aponta para a precariedade das condig6es de vida de praticamente todos os que perderam o poder fami- liar, em todos os seus aspectos e, particularmente, em relagio ao nio acesso a educagio formal. Nesse sentido, o acesso ao direito A educagao, e educagio com qualidade, poderia vir a se colocar como um dos contrapontos ao rompi mento de vinculos parentais, na medida em que existe interdependéncia entre escolaridade € melhoria das condigées de vida, com consequente ampliagao da possibilidade de protegao familiar e social aos filhos. A insergo no mercado de trabalho inexiste ou existe precariamente para a maioria das pessoas que perdem o poder familiar. As informagdes coletadas revelam que 24 (20%) delas nfo exercem nenhuma atividade de trabalho. Qu- tras 32 (26%) realizam trabalho informal, sendo que, dessas, 22 (18%) trabalham [BARDARUE SOCIAL E EXERCIGIO IRORSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES [PAIS DESTITUIDOS DO PODIR FAMILIAR eventualmente ¢ apenas dez (8%) 0 fazem com alguma regularidade; 11 (9%) estavam em reclusio, cumprindo pena no sistema prisional, portanto numa con- digo que interfere diretamente na possibilidade de trabalho regular. A respeito de quatro pessoas (3%), verificou-se que cuidam da casa e/ou de outros filhos, sem inserciio em atividade de trabalho remunerada, Apenas 12 (10%) estavam inseridas no trabalho formal, todavia em ocupagdes com baixos rendimentos. Em relagio a 38 (32%), nao foram localizadas informagoes sobre a questo. (Os registros sobre o vinculo com o trabalho realizado — formal, informal, eventual — e o tipo de trabalho revelam atividades que, em sua maioria, no exigem formacdo/qualificagao profissional e, consequentemente, situam-se nas escalas de vencimentos mais baixas, além de, via de regra, no contarem com contrato formal, Essas mies e pais tabalham como: empregada doméstica, faxineiro/a, ajudante, recepcionis- ta, vendedora ambulante, vendedora de doces, eletricista e vendedor auténomo, servigos gerais, vendedor eventual, catador de material reciclivel/reciclagem em cooperativa/ carroceiro(a falguns indicados como ‘bicos'], euidadores de carros/flanelinha, e ‘bico’ como cobrador de lotagio, prostituigao/garota de programa, Em relagiio a essa tiltima atividade, localizou-se registro de fala de uma das mies informando que no decorrer do processo procurou outro trabalho, chegou a trabalhar em restaurante, servigo que deixou porque “o patio nao a ‘deixaria faltar’ para ir ao Férum’. ‘A auséncia de “trabalho decente”, que poderia ser fonte de rend para acesso a bens materiais e sociais, garantindo melhores condigées de vida, aliada a falta de acesso a outros dircitos sociais, coloca-se para a totalidade das pessoas que perclem 0 poder familiar. O trabalho decente, conforme conceito adotado pelo Brasil com base em diretrizes da Organizagao Internacional do Trabalho (OIT), significa [. um trabalho adequadamente remunerado, exercido em condigdes de liberdade, equidade e seguranga, capaz de garantir uma vida digna, Para a Organizago Interna- cional do Trabalho (OFT), a nogao de trabalho decente se apoia em quatro pilares estratégicos: a) respeito 4s normas {nternacionais do trabalho, em especial aos prineipios e di- zeitos fundamentais do trabalho (liberdade sindical e reco- mhecimento efetivo do dieeito de negocingio coletiva; cli- inagao de todas as formas de trabalho forgado; aboligio cfetiva do trabalho infantil; liminagio de todas as formas Eunice Féver de discriminagio em matéria de emprego e ocupacio); b) promogiio do emprego de qualidade; ¢) extensio da prote- 0 social; d) dislogo social (AGENDA, 2006, p. 5). Trata-se, portanto, de direitos inexistentes para esses sujeitos, os quais, em sua maioria, podem ser vistos como “sobrantes” em uma sociedade em que a desigualdade social é extrema. Conforme Yazbek, a expansio do capitalismo brasileiro contempordneo cria uma “populagio sobrante, cria o necessitado, o desamparado e a tensio permanente da instabilidade na luta pela vida de cada dia” (1996, p. 63) — situago que é agravada na medida em que 0 acesso a0 emprego formal, quando existente, vem acompanhado de maiores exigéncias quanto & qualificaco profissional. Se somadas as pessoas “sem trabalho", com “trabalho informal” e em “reclusio no sistema prisional”, verifica-se que 55% delas podem ser incluidas nessa definigo, ou seja, so pessoas que (obre)vivem em condigdes destumanas, sem qualquer possibilidade de acesso a protegi cial via politicas sociais e, menos ainda, via mercado, na medida em que a esse interessa tio somente o sujeito consumidor de bens e servigos. No que se refere & moradia, nfo foram localizadas informagdes sobre 49 40%) das pessoas destituidas do poder familiar. Em telagao a 49 delas (40%), verificaram-se diferentes condigées, mas todas, de alguma maneira, revelam situa- Ges precirias, fora de padrdes que definem a motadia adequada: dez (8%) usavam como morada (ou pernoite) abrigos puiblices; cinco (4%) moravam em barraco de madeira; expressivo percentual estava recolhido em unidades do sistema prisional (11, ou 9%); outras 23 pessoas (19%) viviam em situago de rua, portanto sem espago de acolhida que garantisse alguma digniclade. 15 pessoas (12%) moravam em imével construido em alvenaria, todavia sem informag6es nos registros sobre qualidade, dimensdes da construgdo e condigées de infraestrutura do tertitério, Se considerado o conceit de moradia adequada como aquela que vai além, do espaco fisico delimitado por “um teto € quatro paredes’, implicando 0 “di- reito de toda pessoa ter acesso a um lar e a uma comunidade seguros para viver em paz, dignidade e satide fisica ¢ mental”, tudo isso incluindo seguranga da posse, disponibilidade de servigos, infraestrutura e equipamentos piblicos, cus- toacessivel, habitabilidade, no discriminagio e priotizagao de grupos vulneri- veis, localizagio adequada e adequagdo cultural (RELATORIA, s.d.), os dacos coletados revelam que a maioria das pessoas que teve esse tipo de informagio registrado nao conseguiu acesso a esse direito humano fundamental. Em comparagio a um estudo anterior sobre a mesma tematica (FAVERO, 2000), aumentou o niimero de pessoas que vivem em situagio de rua (cinco naquele ¢ 23 neste), além de se constatar significativo percentual daquelas re- colhidas no sistema prisional (9%), situag%o que também nao se destacou na so- [BARDARUE SOCIAL E EXERCIGIO IRORSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES [PAIS DESTITUIDOS DO PODIR FAMILIAR pesquisa anterior. Levando em conta que “rua ¢ albergue sio faces da mesma moeda', pois “sio os lugares habitualmente utilizados pela populagao em situa- gio de rua desde que perdeu a tiltima moradia” (FIPE, 2010, p. 3), verificou-se mais dez pessoas que pernoitavam em abrigos, elevando a soma dos que esta- vam sem qualquer espago de acolhida com privacidade. Bessa auséncia € uma das faces mais reveladoras do violento processo de agravamento da questio social, explicitado pela naturalizagao da desigualdade, do abandono social e da criminalizagio das classes subalternas: “Recicla-se a nogao de ‘classes perigosas’ ~ no mais laboriosas -, sujeitas A repressio e extin- go” ([AMAMOTO, 2012, p. 48). Nessa diregdo, a mesma autora lembra que, em um contexto em que o capital financeiro subordina toda a sociedade & sua légica, “a questo social’ é mais do que pobreza e desigualdade”, expressando a “banalizacdo do humano”! que resulta da indiferenga frente as necessidadles aos dircitos da grande maioria IAMAMOTO, 2009, p. 31): Indiferenga ante os destinos de enormes contingentes de homens e mulheres trabalhadores submetidos a uma pobreza produzida historicamente (e, no, naturalmente produzida), universalmente subjugados, abandonados € desprezados, porquanto sobrantes para as necessidades médias do capital (bid.) Em 49% (61 pessoas) dos casos, nfo foram registradas informagoes sobre as condigies de satide de mies e pais que perderam o poder familiar. Em relagio a 6% (sete pessons), havia registros indicatives de que nao apresentavam problemas de satide. Os demais (53, ou 45%) apresentavam algum tipo de problema de sat de, identificado por meio de relatos ou de diagndsticos que constavam nos autos pesquisados. Desses 45%, 13% referem-se a problemas de sate fisicos (oito pes- soas por meio de relatos e sete por diagnésticos). O maior percentual (32%) refere- ea problemas de satide mental: 31 pessoas com relatos e sete com diagnésticos. ‘A resposta considerada sobre condigdes de satide levou em conta vérios fatores, incluindo a dependéncia de alcool ¢ de outras drogas? Assim, as res- 4 Emitilico no texto original. 5 A inclusto da dependéncia de dlecole outeasdrogns como indicadoe no campo d em conta que sus abordagem em geral se insere no campo da sade pala. Toda, nio desconside rou a complexidade e as implicagies dessa aborlagem, que por vezes leva a preconceitos, a posigbes rmogalistas em relacio 20 uso de cogs ilfitas. Como obser vam Adoeno et al. (2013, p. 2, existe uma ‘polarizgio em termos eben e mal’, que divide as 'drogas em proserita eprescrtas num processo cuja cansequéncta tem sido a repressta a0s usuios de drogas, em simulkneo ao estimulo do uso das . Acesso ems: 10 abe. 2013, 10 [BARDARUE SOCIAL E EXERCIGIO IRORSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES [PAIS DESTITUIDOS DO PODIR FAMILIAR do filho 0 entregou aos cuidados de duas conhecidas [. a familia se afeigoou & crianga e pediu a adogao. ferianga su] 6 portador de microcefalia ¢ problemas neurolégicos. «= [pail uson crack dese os 13 anos; interrompeu por seis meses com internagio em clinica; més meses apés sair voltou a utilizar drogas. Alegou que sempre foi “renegado pela mie, que nunca desejou seu nascimento”.[..] infor ‘ma que ele assaltava & mio armada para comprar drogas. [Ja genitora deu entrada no Hospital [..] com quadzo de sangramento, sendo noticiado ser usuiria de crack e mo- radora de rua, dando a luz a erianga [.J. A tia da reque- rida compareceu ao Hospital e declinou que a requerida & moradora de rua, sendo que jé teve treze fllos e alguns jé foram colocados em adogio. .- [rianga} encaminhado pela PM a acolhimento, mie e irmao (11 meses) hospitalizados em razio de agressio do pai (feriu a faca a mie); ... outra criangal ferido com esti- Thagos de garrafa utilizada na briga: pai preso. Mae, quando. da alta, informou ao servigo social que residia em um pré- io invadido, trabalhava em um ferro velho, eriangas em creche, recebia duas cestas basicas e igreja fornecia roupas. [-1. Pai apés prisio informou que mie fora presa por furto © anteriormente esteve presa por quatro anos por homicidio. Av6 paterna das criangas era traficante. Faleceu quando ele [pai] tinha 13 anos, [um] irmao foi assassinado, outro faleceu (por ser soropositivo) e outra por atropelamento, Nao tem contato com outros familiares. Refere que quan do sar dla prisio contars com o apoio de amigos. Também usava maconha. Viveu na rua desde a adolescéncia. O exercicio do trabalho cotidiano nas Varas da Infincia e da Juventude € atravessado por graves expressées da questo social, muitas delas reveladoras da arbirie social — que tem sido expressa na degradagio humana, conforme essa pesquisa revela, Degrachagio no sentido de descarte desses indivicuos considerados nfo produtivos e, portanto, néio merecedores da atengao “inclusiva” pelo capital. Como afirma Alves, vivemos uma “nova era de barbitie social”, que, en- quanto “dimensao da barbérie histérica que se constitui como metabolismo so- cial do capitalismo global e sua etapa de hipertrofia financeira’, se compée das crises decorrentes “da precarizagao-do-homem-que-trabalha: crise da vida pes- soal; crise de sociabilidade; crise de autorreferéncia humana ¢ pessoal” (Idem). ‘Trata-se, como nos diz esse autor, da “nova condigao histérica no interior da u Eunice Féver qual os homens ¢ mulheres fazem a histéria”, Mas — é importante atentarmos — nao com um significado de “colapso da hist6ria”; ao contritio, coloca-se a “necessidade radical de fazer histéria” (ALVES, 2013, s.p). Essa realidade impoe ainda mais aos assistentes sociais a necessidade de um, compromisso efetivo de ir além da constatagao e da indignagao com a barbirie, a comecar pelo exercicio profissional cotidiano, ké na ponta do atendimento. O que implica a necessidade de entender e explicar a realidade social na qual os sujeitos atendidos se inserem — nesse caso em estudo, para que os registros em relatérios e laudos que ito compor os autos e subsidiar decisdes judiciais nao se- jam tio somente o “retrato” congelado da situagiio apresentada, mas revelem sua construgio historica e sua dimensio politica, dando margem a agées individuais e coletivas no campo da luta politica pelo acesso e efetivagio de direitos. Elementos do exercicio profissional do assistente social no contexto exposto As informagées trazidas pela pesquisa demonstram que o trabalho dos profissionais da Justiga da Inffincia e da Juventude? priorizou a crianga, com medidas geralmente voltadas para sua protegio em outros espagos = seja em acolhimento institucional ou em familia substituta. Em relagio & mie e/ou pai em proceso de destituigio do poder familiar, registros das ages consideradas possfveis (ressalte-se que em muitos casos os pais no foram localizados) via de regra voltam-se para a constatagio do “abandono’, da precariedade das condi- es materiais, fisicas ¢ emocionais ¢, algumas vezes, para a desqualificagio dos pais, incluindo argumentos permeados por jufzos morais."” Consta finalmente que, decorridos mais de dois anos, os Requeridos nao se reestruturaram a fim de possibilitar desabrigamento dos filhos; sendo certo que, apesar de es- tar gravida do quarto filho, a Requerida abandonou o lar conjugal, referindo nfo suportar 0 odor das drogas consu- 9 Nesse momento, sGo considerados todos os profissionais que atuamn na Vara da Infancia e da Juven- tude ocins, psie6logos,juzes, promotores, defensores —além , rots sionais que atuam em unidades de acolhimento institucional 10 No perfodo pesquisaco, o Plano Indivikual de Atendimento (PIA) a cada crianca institucionalicah, enfatizado na Lei n® 12.010/2009 (que alterou eacrescentou artigos ao ECA) eque prevé agbes articu- lndas com vistas 8 garantia de direitos de criangasfidolescentes acolhidos e de suas furnlias, ainda em fase embrionsa de implantagio, Mas iso nao significa que sua implementacaa posterior mente, par sis6, vena efetivando direitos tados os envolvidos 2 [BARDARUE SOCIAL E EXERCIGIO IRORSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES [PAIS DESTITUIDOS DO PODIR FAMILIAR midas pelo companheizo, chegando ele a vender o botifio de gis e fraldas do pequeno [.-] para comprar “crack” [re- corte de registro de sentenga judicial]. A fim de avaliar, mais uma ve2, a atual situagio dos Re- queridos, determinou-se a realizacao de avaliacao social e psicolégica, com a realizagio de visita domiciliar. No en- tanto, conforme se verifica ..J, o Requerido nao permitiu a entracla da assistente social em sua residéncia, portan- do-se de maneiza agressiva. Contudo, a Senhora assisten- te social, apds conversa com a mie do Requerido, atestou que a casa esti em precérias condigdes, inviabilizando a presenga de pessoas no local, apesar da insisténcia do Re- querido em Is permanecer. Ademais, os Requeridos nao compareceram para a avaliagio na segio de psicologia, apesar de devidamente intimados. Denota-se que nio houve qualquer alteracio positiva no modo de vida deles [recorte de registro de sentenga judicial]. O uso de drogas durante a gestagao e a recusa da Re- querida em continuar 0 tratamento contra drogadiglo demonstram abandono e desinteresse pelo futuzo filho, vez que nio buscou estruturar-se para ter 0 menino em sua companhia {recorte de registro de sentenga judicial]. [..] a 1é é ususria de drogas (crack) desde seus 14 anos vive pelas ruas, sem atividace honesta e sem aceitar orien- taco para 9 tratamento da dependéncia quimica. Jé teve seis filhos [..J e nfo assumiu os deveres do poder familiar em relagio a nenhum... [recorte de registro de manifesta io do Ministério Pablicol. Constam nos documentos que a ré € dependente quimi- a, vive nas ruas € em conflitos com seus familiares, sem organizagio e regras, de modo a colocar em risco a vida de [.. erianga] que permaneceu nas ruas com a mie e foi internada com hipotermia e baixo peso, no dia [..}, sendo entio encaminhada para o abrigo [..] aps sua alta médica. A 16 foi autorizada a realizar visitas e teve com- portamento alterado e agressivo [... O comportamento sem regras, sem trabalho licito e, principalmente, de de- pendéncia quimica, sem aderéncia ao traramento, invia biliza a permanéncia da crianga com sua mie, sob pena de risco para sua vida. Avé materna relata a0 C.T. que no ¢ alcodlatra; que sua filha saiu de casa aos 15 anos e nunca mais voltou a viver com ela; que a filha “ji se envolveu B Eunice Féver com drogas e que é garota de programa”; que no quer ficar com a neta devido a sua filha ser muito agressiva © treme que “aga algo contra sua familia’, pois jf sofren ameaga por parte dela [recorte de registro de manifesta- io do Ministério Pablico] A pritica profissional do assistente social, nesse contexto, revela-se com alguns limites, denotando por vezes viés predominante da constatagio ¢ da in- formactio em relatérios breves - os quais geralmente integram os Subsidios &s aagGes judiciais -, parte deles sem 0 aprofundamento da fundamentagtio do ponto de vista social, que contribuiria para a anélise das condigées locais e macrosso- ciais que condicionam a situagao vivida pelos pais. Andlises que, sistematizadas, podem ofertar importantes subsidios para a avaliag%o e proposigio de politicas € programas sociais voltados a essa populagio, bem como para o acesso € a ga- rantia de direitos humanos a quem est no limite da desumanizagio, conforme os relatos transcritos mostram, Ainda que alguns dos auitos revelem registros de investimentos em trabalho social com maes ou pais e seus familiares no interior da rede socioassistencial, particularmente por meio da insercio em programas de assisténcia social e de satide, observou-se que sua viabilizagio dependia mais do esforgo individual de profissionais comprometidos com a protegio de direitos do que de planejamento e da execugio de politicas locais e institucionais inclusivas. ‘A complexidade das experiéncias de vida desses sujeitos revela que um trabalho social consequente e competente do ponto de vista téenico," ético ¢ politico, particularmente do Servigo Social, poderia contribuir para a via- bilizagao de direitos, mas por si s6, ou isoladamente, niio daria conta de sua ampla dimensio. Lidar com essa realidade exige a articulagio com a rede de atendimento e a efetivacio de agées mais amplas, tanto em termos de subsidios A avaliagdo e proposigio de politicas sociais como — ou ao mesmo tempo — para a participacio em agdes politicas organizadas de dentincia e de enfrentamento da barbie social, seja por vias “institucionais’, como em Conselho de Dircitos, seja mediante movimentos sociais e politicos arganizados, de maneira a no re- produzir praticas individualizantes, frdgeis e desvinculadas de um projeto social emancipador. Ou seja, priticas que se atém ao imediatismo, isoladas de fanda- mentos tedricos e éticos, desvinculadas da preocupagao com 0 conhecimento ¢ a explicitagao do “processo pelo qual se constitui e se expressa 0 ser social, e da dinamica da construgao histérica do mundo humano-social”, caracterfsticas da praxis social (BAPTISTA, 2009, p. 13). TL "Técnico", aqui sintetiza.o que compete ao profissional da Servigo Social com base nos fundamentos tesricos, metodoldgicos e técnico-operativos inerentes 8 proissio. uw [BARDARUE SOCIAL E EXERCIGIO IRORSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES [PAIS DESTITUIDOS DO PODIR FAMILIAR O conhecimento ea explicitagio desse processo se colocam como inerentes a0 projeto ético-politico do Servigo Social na atualidade, ¢ sua materializagao no cotidiano da intervengio profissional é uma exigencia e um desafio, particularmen- te em instituigdes que tém como finalidade precipua o controle social do Estado sobre a sociedade, valendo-se para isso do aparato legal institucionalizado, do co- nhecimento “pericial” definido por especialistas, e do poder de coerg’o, como € 0 caso do Poder Judicifrio, no qual se inserem as Varas da Infincia e da Juventude. Nesse cenirio institucional, “desfilam” cotidianamente individuos sociais com historias de vidas marcadas por exclusdes, espoliagdes e desvinculagdes; historias construfdas no interior do macrocendrio de barbitie social definido pela superestrututa politica e pela infraestrutura econémica, dominadas na rea- lidade brasileira, ao longo da histéria e atualmente, pela altissima concentragio de renda e imensa desigualdade social. Profissio, instituigio ¢ macroestrutura definidora da realidade social se colocam nos processos de trabalho do assistente social como elementos fun- camentais da diregao de sua ago. Isto é colocam fundamentos, exigéncias © aportes que influenciam essa diregao. Mas cabe 20 profissional, em iltima instincia, dar a diregao social ao seu trabalho, & materializagao de suas compe- téncias e atribuigGes no Ambito do labor cotidiano. Uma direcao que pressupde 6 compromisso com a qualidade dos servigos realizados, qualidade s6 atingida com uma sélida base de sustentagao teérica, técnica e politica que possibilite o desenvolvimento da permanente capacidade argumentativa, consistente ¢ coe- rente com 0 projeto ético-politico profissional. Consideragées finais As informagGes trazidas pela pesquisa revelam situagoes de total desprote- io social e de barbsirie vividas por mies, pais ¢ criangas envolvidos na destitui- Gio do poder familiar. O acesso & protegio social por meio de educagi, satide, moradia, trabalho, mesmo por programas focalizados como os de transferén- cia de renda, inexiste para a grande maioria. As pessoas que tém os vinculos rompidos com seus filhos quase sempre mio posstem qualquer perspectiva de vida, esto sem vinculos de protecao (social familiar), so totalmente invisf- veis (muitos ndo foram sequer localizados para entrevistas, defesas e audiéncias) ¢, possivelmente, descartiveis para a sociedade.”” Sobreviver no interior de uma 12 Oseminario “A cracolfndia muito lém do crc, realizado em mai ce 2012 pela Faculdade de S Pablica da Universkiade de S30 Paulo (USP), em reflexoes sobre “pessoas que vivem nos crcaitos de que sho depenclentes de crack, apanton, entre outros aspectas, que essas pessoas que geralmente 15 Eunice Féver sociedade que descarta ¢ expulsa essa populagio “Sobrante”, que niio interessa a0 mercado de consumo, € conviver no dlia a dia com a violéncia em suas diver- sas expresses — interpessoal, intrafamiliar, policial, judicial, institucional. Nes- sa realidade, o sofrimento vivido pelos adultos é ignorado, restando tio somente alguma dose de atengio A crianga, por meio da desvinculagio com seus pais € insergao em outros espagos que, em tese, possibilitem sua prot Esse quadro nos coloca muitas questdes enquanto profissionais do Servigo Social: como materializar competéncias e atribuicdes profissionais direcionadas por um projeto profissional que tem como norte — nos limites do sistema politico econdmico em que vivemos — a ago na dire¢io do acesso, da garantia e da consolidagio de direitos, lidando com individuos sociais que vivenciam a barbsirie social, conforme descrita neste texto? Individuos em sittiagio de pobreza extrema, dependentes de crack ¢ outras drogas, que vivem nas ruas, com vinculos sociais ¢ interpessoais rompidos ou inexistentes. Como atuar tendo como norte a efetiva- Gao de direitos sociais no interior de um aparato institucional de viés autoritario como 6 0 Judiciério, moldado, no caso, para 0 controle disciplinar dos indivichuos, particularmente daqueles que fogem ao pad legal e social dominante? ‘Analisar essa realidade no interior de processos destrutivos da vida huma- na, (im)postos pelos interesses do capital, e tendo em conta o crescente investi- mento na penalizagio e na judicializagao das mais graves expressGes da questio social, se coloca como tarefa fundamental para os profissionais da érea social, sob o risco de sucumbirem as urgéncias emergéncias postas por essa realidade social no trabalho cotidiano. ‘Aanilise dessa realidade exige também que nés profissionais nos desfaga- mos das “receitas” e “normativas” institucionais de intervencio, postas e impos- tas historicamente no dia a dia do trabalho, particularmente nas organizagées de controle social que enquadram, classificam e subsidiam registros sobre a vida dlos sujeitos com vistas a “medidas protetivas, coercitivas e/ou punitivas”, nem sempre considerando 0 que esta além do prescrito. A capacidade de entender que “as condigées objetivas de vida levam as pessoas a olharem para o mundo de um Angulo ou de outro” (FONSECA, 2005, p. 57) essencial nesses proces- sos de trabalho para se fazer a critica racional s relagdes de poder e ao exercicio lo controle social do Estado sobre a populagao. Nessa perspectiva, a realizagao de estuclos fundamentados, teérica e me- todologicamente, sobre a realidade social vivica pelos sujeitos, pode fornecer subsfdios a juizes, Defensoria ¢ particularmente Ministério Piiblico no que se ‘vivem dos “descar Encia a Michael Taussigno listo Xamanismo, colanialismo eo homem sek Weis urbanes” so também “descartaveis"e Semelhantes a coisas” — numa tefer- (0993) 16 [BARDARUE SOCIAL E EXERCIGIO IRORSSIONAL: AFONTAMENTOS COM BASE NA REALIDADE DE MAES [PAIS DESTITUIDOS DO PODIR FAMILIAR refere & responsabilizagio do Estado quanto & proposigio ¢ execugtio de politi- cas sociais ou mesmo de agdes localizadas de atengao As demandas observadas, visando a efetivagio de direitos sociais. Nio temos, evidentemente, a pretensio de encontrar todas as respostas 8 complexidade revelada pela pesquisa, mas sim apontar para alguns elementos que inspire novas possibilidades de pesquisa/sistematizagao de conhecimentos sobre a tealidade vivida pelos sujeitos sociais com os quais trabalhamos, de exercicio profissional cotidiano com qualidade, e de resisténcia politica organizada, frente & “necessidade radical de fazer historia’, conforme ja sinalizado neste texto. Referéncias ADORNO, R. C. F. etal. “Etnografia da cracolandia: notas sobre uma pesquisa em territério urbano”, Savide & Transformacao Social, Florian6polis, UESC, vol. 4, n® 2, p. 4-13, 2013. Dispontvel em: . Acesso em: 25 jul. 2013, AGENDA Nacional de Trabalho Decente. Ministério do Trabalho. Brast- lia, 2006. Disponivel em: . Acesso em: 10 mar. 2013. ALVES, G. “Barbirie social e devir humano dos homens”. Blog da Boitempo. Disponivel em: . Acesso em: 15 abr. 2013. BAPTISTA, M. 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V. “O Servigo Social na cena contemporinea’. In: Servico Social: direitos sociais e competéncias profissionais. Brasilia: CFESS/ABEPSS, 2009, p. 15-50, ______ Projeto profissional, espagos ocupacionais e trabalho do assistente social na atualidade. In: CFESS (Org). Arribuicoes do assistente social em ques- tao, 18 ed. ampl. Brasilia: CFESS, 2012, p. 33-74. RELATORIA Especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o direito & moradia adequada. Disponivel em: . Acesso em: 18 abr. 2013. YAZBEK, M. C. Classes subaltemas e assisténcia social. 2 ed. So Paulo: Cortez, 1996. 18 Familias, desenraizamento social e privagdo de direitos Dalva Azevedo de Gois O ser humano tem uma raiz por sua participagao real, ativa e natural na existéncia de uma coletividade, que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participagio natural, isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profissio, co ambiente (WEIL, 196, p. 411). ‘A impossiilidade de inclviduios e familias conviverem em ambiente no qual suas raizes estio preservadas — sejam aquelas relativas ao espaco sociocultural que Ihes confere identidade social, sejam aquelas que tém um significado especial para sua localizagio na sociedade e organizagao da vida cotidiana, como o pertencimen- toa um territério e a participagao no mercado de trabalho — constitui ponto crucial na privagio de direitos e, em consequéncia, na restrigo da protegio social. CO desenraizamento social, cruel para o sujeito, tem assolado parcela con- siderivel da populagio brasileira e, nos casos mais graves, alijado pessoas do direito ao convivio em seu meio social. A reflexdo sobre essa questo remete a experiéncias na satide mental e na Justiga da Infancia e Juventude em que se pédle constatar que a desprotegio social resultou no rompimento de vinculos sociofamiliares e comunitérios de adultos, adolescentes e criangas, ¢ em conse- quente institucionalizagao. ‘Assim, partindo do entendimento de que 0 desenraizamento social é fator preponderante na desagregagtio sociofamilias! a proposta deste texto é apre- sentar subsidios para a reflexdo sobre seus aspectos ¢ suas implicagées no acesso a direitos sociais e na definigao de estratégias protetivas. 1 Estamos entendendo, grswo moda, como desagregigio sociofomiliar © processo pelo qual um grupo se fragmenta, tendo seus vinculos rompicos seja com os membros da familia, seja com o meio social 1 qual estava inserido, Esse processo pode ser desencadeado por separagSes, mortes, desemprego, _migragbes ou ovtros eventos do percurso saciofamiliar que rtiram os individvos de uma condicaoaté ent3o integradora e soctalmenteinclusiva, rT Dalva Azevedo de Gois A perspectiva de desinstitucionalizagao como base do direito 4 convivéncia familiar e comunitaria Nossas investigacdes tedricas e nossa prética na satide mental e na Justiga da Infancia ¢ Juventude indicam que nesses espagos, sobretudo até as tiltimas décadas do século XX, a institucionalizago emergia como principal resposta as necessidades de cuidado e protecao de adultos com transtornos mentais e de criangas ¢ adolescentes em situagio de vulnerabilidade social Na satide mental, campo no qual o sistema de tratamento estava cen- trado na hospitalizagao, pode-se dizer que a década de 1980 foi de fértil mo- vimentagio em prol de redefinigoes direcionadas a defesa de direitos dos que necessitavam de atengio psiquititrica. Naquele momento, com impulso em um movimento que inicialmente se denominou “Rede de Alternativas & Psi- quiatria’, buscou-se implementar uma perspectiva de arengao que visava tom- per com esse sistema “hospitalocéntrico” e assistir a pessoas com transtornos mentais mantendo-as em suas familias ¢ comunidades. Esse processo de implementacio de uma nova diretriz em satide mental prolongou-se por muitos anos e, nesse sentido, paralelamente & luta pela pro- mulgacio de uma legislagio que tornasse legal essa mudanga paradigmitica,? foram estruturados servigos de suporte a outras modalichades assistenciais, entre (08 quiais estavam os Centtos de Atengiio Psicossocial (CAPS), os hospitais-dia e os centros de convivéncia. Impunha-se, para tanto, o desenho de uma politica de saiide mental que fizesse frente as demandas para compor estratégias de aten- io que privilegiassem 0 atendimento extra-hospitalar. Embora no seja objeti- vo deste artigo discutir essa politica,’ estamos situando-a porque, assim como acontece hoje no imbito da politica de assisténcia social, na satide mental ocor- reu certa pressio sobre as familias em prol da reintegragao social de seus parentes acometidos de transtorno mental. Em que pesem os esforgos para estruturagio de servigos apropriados fis novas modalidades assistenciais, havin a tendéncia de 2 Aluta de setores da sociedade pela extingio proggessiva do modelo psiquistrieo dlssico e em prol de outras modalidades assstencias resultou em projeto de let que foi denominado Pauly Delmado do federal palo estado de Minas Gerais), cujatramitagio ng Congresso Nacional perdurou por 12 anos. Somente em 6 de abril de 2001 ale foi promulgad, sob o ntimero 10.216, dispondo sobre a protegio ¢ os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais ¢ redirecionando 0 modelo le mental. Nela estio expressos direitos rlatvos A reinsergio social ea excepcio nalidade da internasio hospitalar,akém de responsabilisa o Estado pelo desenvolvimento de politcas publicas para esse segmento populacional 3, Para conhecimento daslretrizes jo propostasna Pol cia em Psiquiatria, ver bttp:/portal saude.govbe/portal/arquivos/pa/apres_ saucement sont: O8, set, 2013, rut Itica de Snide Mental para a asin | 151008pdt, 20 FAMLIAS, DESENRAIZAMENTO SOCIAL E PRIVAGAO DE DIREITOS deixar a cargo das familias 0 provimento de meios para o restabelecimento do convivio em casa, com amigos ¢ com vizinhos, enfim com seu meio social, de pessoas que até ent estavam institucionalizadas.* E importante observar que somente apés os anos 2000 foram promulgadas leis que davam suporte A diretriz de reintegragdo social de pessoas portadoras de transtornos mentais, Essa nova visio de assistencia em satide mental privilegia a interdisciplinari- dade, que, na medida do possivel, favorece 0 planejamento e a execugio conjunta das agdes, cabendo, contudo, aos assistentes sociais, pelo menos nos servigos em que tinhamos contato, a responsabilidade de acompanhar 0 processo de reinte- gracio familiar de egressos de longas internagdes. Nés, assistentes sociais compro- missados com a defesa dos direitos desse segmento populacional e participes da proposta de reestruturagio da assisténcia psiquistrica, logo chegamos ao entendi- mento de que familia é tematica complexa, tanto na anélise como na intervengio. A defesa de direitos da populagio destinatéria das agées dos servigos nos quais atuamos est4 embasada no Cédigo de Etica dos assistentes sociais, que tem entre seus prinefpios findamentais a “defesa intransigente dos direitos hu- manos ¢ recusa do arbitrio e do autoritarismo” (CFESS, 2011, p. 23). Em face esse compromisso e do entendimento de que, para a familia se constituir em espaco protetor, necessirio se faz que o Estado estabeleca meios para tanto, 0 profissional também fica ditetamente implicado com outro principio ético fun- damental, que é a “ampliagio ¢ consolidagio da cidadania, considerada tarefa primordial de toda sociedade, com vistas A garantia dos direitos civis sociais © politicos das classes trabalhadoras” (iid. Esse compromisso com a defesa de direitos ¢ com a consolidagéo da cida- dania da populagio usuaria dos servigos de satide exigia dos assistentes sociais, em seu exercicio profissional cotidiano, uma anlise da multiplicidade das ques- tdes de familia que partisse de sua intrinseca relagio com as relagdes sociais mais gerais. Posteriormente, j no campo da Justiga da Infancia ¢ Juventude, com base também na pritica profissional e em pesquisas que dela emergiram, foi possivel compreender com maior clareza a incidéncia de processos que levam, a0 desenraizamento social das familias e seu significado para a protecao, para 0 cuidado e para 0 desenvolvimento de seus membros, especialmente daqueles que necessitam de atengtio especial, neste caso criangas ¢ adolescentes. Claro estava que tanto no espaco da satide mental como no da Justiga da Infincia ¢ da Juventude 0 cerceamento do acesso a direitos sociais fundamen- tais estava instalado, em decorréncia da grave desigualdade social brasileira ¢ 4 Como parte das esratégias por. desinsitucionalizago de pesons com transtornos mentaiscuj inte 20 hospital se profongnse por dois anos cu mais, fi implementado o programa “De Volta para Cas «qe conta com o"Auxilio-reabilitagia psicosocil" institut pela Lei ni? 10.708 de 31 dejulbo de 2003. 21

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