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FUNDAMENTOS DA

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
AULA 1 - DEFININDO A ESPIRITUALIDADE vivemos essa espiritualidade dentro da ortodoxia cristã. Por
CRISTÃ PROTESTANTE isso, vale começarmos falando de um conceito mais amplo
de espiritualidade caminhando para aquilo que é distintivo

O
tema deste curso é Fundamentos da espiritualidade do cristianismo a partir do que é revelação de Deus nas
cristã, onde nós vamos buscar nas Escrituras Escrituras.
fundamentos da espiritualidade numa perspectiva
protestante. Nós vamos começar esse curso falando dos Uma definição básica seria que "espiritualidade é a
conceitos mais amplos de espiritualidade centrando-se característica do que é espiritual. No âmbito da vivência
no específico da espiritualidade cristã e caminhando para humana, a espiritualidade pode ser definida como o senso de
os distintivos protestantes dessa espiritualidade. Vamos transcendência inerente a toda pessoa”. Você pode conversar
falar também das práticas de espiritualidade, as chamadas sobre espiritualidade para além das coisas religiosas, porque
disciplinas espirituais, num contexto pessoal e comunitário. há uma compreensão que há um senso de transcendência
Também vamos estabelecer alguns paradigmas bíblicos e em qualquer ser humano. Isso é tomado nesse conceito de
teológicos para a prática da espiritualidade em termos da espiritualidade.
vida cristã, da comunhão com Deus e da frutificação da obra
de Deus na vida do crente.
Uma outra definição é de que “espiritualidade também
pode se referir aos aspectos transcendentais que guiam as
Talvez seja importante começarmos falando sobre os termos concepções das pessoas sobre a vida e a realidade”. Quando
da espiritualidade. Esse é um conceito muito comum nos alguém pauta sua vida por um aspecto transcendental, um
nossos dias que é bem adotado na cultura popular como um sentido para além daquilo que é puramente sensível, ele pode
contraponto ou oposição ao que seria uma “religiosidade”. estar falando de espiritualidade. Ou melhor, podemos dizer
O termo religião adotou um caráter muito exclusivista e que ele está se referindo ao que é espiritualidade.
muito distante da cultura pluralista contemporânea. O termo
espiritualidade parece ser um bom substituto na cultura
E um terceiro conceito é que “espiritualidade também se
geral. Ele tem sido usado não só no âmbito cristão, mas fora
refere às práticas, religiosas ou não, que têm por objetivo o
dele também. Isso tem influenciado nossa própria percepção
acesso à realidade transcendental da existência”. Você vai
e reflexão da espiritualidade cristã ou sobre como nós

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ver gente falando de religião num âmbito religioso ou não. Um outro escritor que vai dar uma explicação um pouco
Você verá termos que estão na moda como “mindfullness”, diferente disso é o Richard Woods quando diz que
uma espécie de meditação laica, para o entendimento de “espiritualidade é o caráter autotranscendente de todo
uma transcendentalidade e para guiar sua vida a partir dessa ser humano e tudo que seja pertinente a isso, incluindo,
prática. e de modo mais importante, como esse caráter, talvez
infinitamente maleável, se apresenta concretamente em
Recapitulando: O primeiro seria um senso de transcendência situações cotidianas”.
do ser humano. Isso seria um conceito mais geral. Também
pode ser os aspectos transcendentais que guiam as Richard Woods já vai fazer uma abordagem mais ampla e
concepções das pessoas e como elas entendem a realidade. independente de religiões específicas e organizadas. Isso é
E um terceiro sentido seriam as próprias práticas que têm por uma coisa muito interessante, porque, na realidade presente
objetivo o acesso à realidade transcendental da existência. do mundo e da cultura, o tema da espiritualidade tem sido
Então, num sentido nem amplo e não cristão, espiritualidade abordado para além das religiões institucionalizadas ou para
pode ter esses três sentidos. as tradições religiosas culturalmente mais firmadas. Há
um pensamento sobre a importância da espiritualidade em
Vou mencionar dois escritores cristãos de tradições linhas filosóficas, artísticas e até em aplicações de conceitos
diferentes para entendermos um pouco como eles de espiritualidade de uma transcendência que vai ser
entendem essa questão. Um deles é o Alister Mcgrath que proposta por alguns escritores ateus. Eles vão falar de uma
“espiritualidade refere-se à busca por uma vida religiosa espiritualidade que independe da religião.
autêntica e satisfatória, envolvendo a união de ideias
específicas de determinada religião com toda a experiência Por exemplo, um dos autores ateus mais lidos hoje em dia
de vida baseada em e dentro do âmbito dessa religião”. Ou e que tem uma das obras mais combativas, o Sam Harris,
seja, ele relaciona vida religiosa com uma vida específica e tem um livro sobre espiritualidade arreligiosa chamado
as ideias dessa religião e também as experiências que são “Despertar”, no qual ele fala de uma espiritualidade que,
vividas e interpretadas dentro dessa religião. na verdade, é uma plenitude de autoconsciência, mas ele
vai caminhar por um entendimento de atribuir um certo

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sentido à vida que é transcendental, mas que independe transcendência. O transcendente é aquilo que está no
de uma fé e realidades espirituais. É uma espiritualidade âmbito da transcendência. Esse é um termo importante para
que prescinde do que seja espiritual. É diferente do que entendermos como a espiritualidade cristã está nas sedes do
entendemos dentro do cristianismo, mas não deixa de ser ser humano.
provocativo. Acaba demonstrando que essa espiritualidade
não é pura e simplesmente uma expressão religiosa de vida Um outro conceito interessante, e talvez um pouco mais
ou apenas conceitos de uma religião, mas, em certa medida, difícil de entender, é o de metafísica, que é a disciplina
é um elemento universal da humanidade que compreende filosófica que se ocupa da investigação do que está além do
a existência para além de si mesmo. Por isso, chega a mundo sensível. Essa definição também é utilizada como
conceitos transcendentais mesmo abrindo mão de doutrinas um sinônimo de transcendência. A metafísica é uma área de
religiosas. investigação da Filosofia desde a antiguidade quando já se
tinha elaborado esse termo.
Para continuarmos a partir desse ponto, precisamos definir
alguns conceitos básicos. As palavras podem adquirir Outro termo importante é religiosidade. É a característica
muitos sentidos e em diferentes círculos possuem sentidos do que se tem religião. Refere-se às práticas do fiel que se
diferentes, então posso usar termos que cada um entende de dão no âmbito religioso público ou privado. Em determinado
um jeito. Por isso, é preciso criar a base de alguns conceitos. tempo, a palavra religiosidade sempre se ligava a uma
Vou fazer isso em diferentes momentos neste curso com o tradição religiosa que incluía mais pessoas. Conforme
objetivo de clarear as ideias e o primeiro é dentro dessa ideia as práticas religiosas foram se tornando mais subjetivas
mais geral de espiritualidade. e pessoais, esse termo foi se tornando algo bem mais
específico.
O primeiro conceito importante de definir é o conceito de
transcendência. Quando falo disso, quero me referir que Mais um termo importante é crença. Crença é o grupo
transcendência é a característica do que está além do de conceitos que orientam uma concepção religiosa. A
mundo sensível. Tudo aquilo que não pode ser absorvido religiosidade é pautada por crenças. Dessa forma, as
pelos sentidos humanos possui características de crenças podem fazer parte de uma doutrina maior ou podem

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fazer parte de crenças pessoais se você pensar nessas não é algo ruim, exceto para a concepção pós-moderna.
características subjetivas de religiosidade.
Então, ao falar de espiritualidade cristã, precisamos entender
O último conceito a ser definido é o de fé, não no âmbito que o cristianismo tem a sua maneira de falar da experiência
do cristianismo, mas no âmbito geral das religiões. Fé é de vida com a realidade transcendente ou a realidade
o envolvimento consciente e prático do homem com a espiritual. Isso deve ser bem compreendido por nós para que
divindade ou a fonte da transcendência. não caiamos nem de um lado nem do outro. Nem do lado
que atribui ao movimento da espiritualidade uma realidade
Uma vez definidos esses conceitos para um entendimento da altamente subjetiva e ignora a proposição da revelação de
espiritualidade num aspecto geral, vamos caminhar para falar Deus na Escritura, nem do outro lado que é absolutamente
especificamente da espiritualidade cristã. Primeiro, temos hermético e fechado numa compreensão racional da
um problema contemporâneo com esse termo. Em grande Escritura e ignora toda uma existência de experiência
medida, o conceito de espiritualidade hoje foi formado em verdadeira espiritual. É um erro – e confesso que já participei
oposição a experiências mais exclusivas de espiritualidade, na minha história de fé – acreditarmos no cristianismo
em especial pela abrangência que o cristianismo tem no apenas como uma história e não como uma realidade da qual
mundo, se opondo ao cristianismo. No finado Orkut, no nós participamos, fazendo uma alusão ao que o apóstolo
espaço para colocar a religião, havia a opção “tenho um Pedro escreveu na sua segunda epístola.
lado espiritual independente de religiões”. Obviamente,
no mundo majoritariamente cristão, em especial o mundo O que é distintivo da espiritualidade cristã? Precisamos
ocidental, esse conceito de espiritualidade independente de uma definição mais ampla, porque há muitas linhas de
de religião coloca o termo espiritualidade em oposição a cristianismo. Há uma espiritualidade típica do cristianismo
qualquer manifestação de espiritualidade religiosa e, no caso oriental, do catolicismo romano, do cristianismo
do cristianismo, exclusivista. Afinal, o cristianismo traz uma protestante, do protestante evangélico, do reformado e
prerrogativa de verdade absoluta. Muitas vezes, o termo até do pentecostal. Há nuances que são muito tranquilas
espiritualidade é usado como uma forma de você amaciar de identificar porque quando falamos desses termos,
uma coisa mais dogmática que o cristianismo tem. Dogma para quem tem contato com as doutrinas, rapidamente

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sabe as diferenças entre elas. Há esse caminhar mais ou verdadeiro.
menos claro. Porém, deve haver, e de fato há, uma base de
espiritualidade cristã da qual devemos partir. Essa participação da realidade divina, essa comunhão com
Deus – esse talvez seja o melhor termo – é a prática da
A espiritualidade cristã é a vivência da realidade divina espiritualidade cristã. A bíblia não ignora que há outras
na vida do crente segundo a revelação de Deus em Jesus formas – nem sempre deixando claro se são conceitos
Cristo. Se é cristã, tem a revelação de Deus em Jesus Cristo. possíveis ou não – e experiências com o sobrenatural, mas
Essa espiritualidade é a vivência dessa espiritualidade veta essas experiências. Por exemplo, ela é explícita em
divina segundo a revelação de Deus em Jesus Cristo. Dessa condenar culto aos anjos, consulta aos mortos, comunhão
definição, acho que nenhuma linha do cristianismo discorda. com os demônios. Ela não ignora que essas realidades
Se há, acredito que seja uma porcentagem bem pequena. existam, os anjos, os demônios. Ela não ignora que existam
essas realidades espirituais, mas não é uma espiritualidade
Porém, o cristianismo tem uma especificidade na sua cristão autêntica, não deixando claro se é possível ou não.
concepção de espiritualidade. Acho que é nesse ponto que Porém, não é uma realidade autêntica cristã. A comunhão
reside a distinção do cristianismo das grandes religiões cristã autêntica é a comunhão com Deus, com o Deus único e
monoteístas para outros tipos de espiritualidade um pouco verdadeiro. Isso é distintivo do cristianismo.
mais abstratas e etéreas. O espiritual com o qual o cristão se
relaciona, ou essa espiritualidade transcendental é o próprio Há uma outra característica distintiva do cristianismo ainda
Deus. Ela não é apenas um universo suprassensível. Não é nesse âmbito que é essa transcendentalidade de Deus, ela
apenas um conceito abstrato de uma realidade sobrenatural. não um encontro com outro ser como se consultássemos a
A espiritualidade cristã nada mais é do que uma comunhão, Deus. Deus não é como um oráculo ao qual consultamos ou
ou um encontro, como um ser, uma pessoa que é Deus. Isso como uma grande sabedoria que recebemos. A Bíblia fala de
é uma coisa bastante específica. Se você comparar com Deus como a própria vida. A prática da espiritualidade cristã
outros pensamentos, filosofias e religiões com a realidade está centrada no encontro com um ser real, livre, verdadeiro,
que eles têm do que é transcendental. A espiritualidade cristã todo-poderoso que é Deus mesmo do qual nos encontramos
é celebrada no encontro real com um ser: o Deus único e num estado de separação por causa do pecado. Porém, ela

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vai dizer que nesse encontro não simplesmente caminhamos temos uma comunhão espiritual com Deus, então andemos
juntos, mas vamos participando como se fosse nossa própria também no Espírito. Essa é a espiritualidade cristã. Podemos
vida. colocá-la nesses termos.

Há um conceito importante no cristianismo que é o da nossa A espiritualidade cristã se diferencia de outros tipos de
morte, ressurreição, o conceito de regeneração, de uma espiritualidade pelo seu compromisso com os conceitos
nova vida. De certa forma, o que é transcendente passa doutrinários do cristianismo e os valores propagados pela
a ser pessoal e interior, não só como um órgão espiritual fé cristã. Isso é um distintivo. Há algo muito específico
implantado ou uma parte separada dentro de nós, mas como sobre quem é o Deus cristão. A Bíblia traz declarações
parte da nossa própria vida. Porque, quando falamos de muito específicas que nos pautam no nosso conceito de
espiritualidade, falamos de espírito e ele tem uma palavra espiritualidade. Ela é específica do cristianismo. Ela não
específica no grego e no hebraico que é traduzida por sopro, é conciliada, nem conciliável com outros conceitos de
fôlego ou vida. A participação dessa vida que é o espírito espiritualidade. Ainda que você possa compreender que as
traz um contexto diferente para a espiritualidade cristã. Por religiões conversem em certos termos, o cristianismo e cada
isso, durante muito tempo, não falávamos de cristianismo religião cristã têm suas especificidades doutrinárias.
num tom de espiritualidade. Usávamos outros sinônimos
perfeitamente aplicados, por exemplo: vida cristã. Com Há mais uma coisa interessante. A espiritualidade cristã é
certeza você já ouviu falar várias vezes de vida cristã na profundamente comunitária porque insere o adepto dessa
igreja, na escola dominical, no discipulado. Vida cristã é a espiritualidade em uma comunidade que partilha desses
forma da espiritualidade cristã. conceitos, valores e que reconhece a realidade a partir
da mesma fonte de verdade e amor: Deus, pai de nosso
A espiritualidade cristã é a vida de Deus em nós ou é prática Senhor Jesus Cristo. Essa mesma fonte que todos nós
de Deus no indivíduo e na comunidade. É o “andar no espírito” reconhecemos não nos transforma em correligionários, como
(Gl 6.16-25). O andar no espírito é a prática e a experiência defensores de um mesmo pensamento. Ela nos transforma
de quem vive no espírito. É isso que o apóstolo Paulo fala: em irmãos e, mais do que isso, em corpo. Portanto, ela
“se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito”. Se já é uma espiritualidade profundamente comunitária e não

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pode deixar de ser assim. A espiritualidade cristã só é nossa própria vida. A verdade, os conceitos, os valores do
experimentada na sua plenitude em comunidade. A maneira cristianismo, as experiências da Palavra de Deus encarnam
como essa comunidade se expressa vai variar um pouco. na nossa vida. Não como regras externas apenas, mas como
Podemos abordar algumas especificidades depois. É o novo ser que somos em Jesus Cristo.
essencial o aspecto comunitário para a espiritualidade cristã.
Por isso, o cristianismo também representa um modo
Segundo Alister Mcgrath, o cristianismo é composto por três de vida, que é o decorrente do que acabamos de falar.
elementos principais. Não é uma definição do cristianismo, Ser cristão não envolve somente crenças e valores, mas
mas três pontos que nos ajudam compreender melhor. O diz respeito à vida real na qual essas ideias e valores são
primeiro ponto é que o cristianismo é composto por um grupo expressos e incorporados de maneira decisiva. Essa vida
de crenças. Ainda que haja diferenças doutrinárias entre os realmente é o cristianismo. Ele está nesse modo de vida
cristãos em vários pontos de vista, há um núcleo comum também. Esse é um elemento que compõe o cristianismo
de crenças por trás das diferenças do cristianismo. Essas como uma religião.
crenças têm impacto significativo sobre como os cristãos
vivem. Vamos caminhar mais um nível nesses círculos concêntricos
que caminhamos até agora. Falamos de espiritualidade num
Outro elemento que compõe o cristianismo é um grupo sentido geral, caminhamos um pouco para um aspecto mais
de valores. O cristianismo é uma fé fortemente ética. Os religioso, caminhamos para a especificidade da religião
valores que regem a fé cristã encharcam a vida. Eles não cristã. Agora vamos falar de uma tradição específica do
são simplesmente regras externas que o cristão cumpre cristianismo que é a tradição protestante. Há elementos
como uma distinção puramente religiosa. É algo que penetra distintivos do protestantismo que vão orientar nossa prática
a vida do cristianismo como valores resultantes dessa de espiritualidade. Há muitos pontos que poderíamos
redenção que a gente experimenta em Jesus Cristo. Esses abordar nisso, mas há dois que acredito que são principais e
valores estão intensamente relacionados ao caráter de que vão basear essa experiência em toda compreensão das
Jesus de Nazaré. Uma vez que para o cristianismo a palavra diferentes tradições frutos da Reforma Protestante.
é encarnada em Jesus Cristo, isso também acontece na

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O primeiro conceito que acho que é definidor da Reforma específica. Dentro do Protestantismo, a revelação geral não
Protestante é o conceito de depravação total. Esse concede caminhos para um conhecimento verdadeiro de
entendimento da depravação total é importantíssimo para Deus. Precisa-se de uma revelação específica ou especial
o entendimento protestante de espiritualidade, porque a para que tenhamos um encontro verdadeiro com Deus. Essa
depravação total vai dizer que por causa do pecado estamos revelação específica e especial está em Jesus Cristo. Ele
totalmente depravados nas nossas intenções, nossos é a palavra de Deus encarnada, a luz que brilha nas trevas,
desejos, nossa vida. Estamos plenamente mortos nos nossos a glória que vemos como unigênito do Pai. Jesus Cristo é
pecados e por isso em estado de separação com Deus. Um esse que se manifesta. Ele é a imagem do Deus invisível e
estado invencível a partir dos nossos próprios esforços. podemos observá-lo na sua manifestação.
Então, não somos nós que nos achegamos a Deus nem o
desejamos. Ele é que se achega e se revela a nós. Na tradição protestante isso é verdadeiro através da
Palavra de Deus. Os protestantes chamam a Bíblia de
Essa perspectiva é importantíssima dentro da tradição Palavra de Deus porque a ela mesma se refere a si como
protestante, porque ela vai colocar a comunhão com Deus Palavra de Deus. O Novo Testamento fala do Antigo como
no âmbito de uma revelação que começa em Deus que é Palavra de Deus, que por sua vez fala da Lei como Palavra
propositiva e tem vontade de nos alcançar no nosso estado de Deus. Nós chamamos a Bíblia como Palavra de Deus
de separação total de Deus. Deus é que escolheu romper tanto quanto chamamos Jesus Cristo de Palavra de Deus.
essa barreira e chegar até nós através de uma revelação Isso porque, no protestantismo, o caminho para conhecer
objetiva, propositiva, clara e verdadeira chegando a cada um Deus é através de Cristo e este que chega a nós na Palavra
de nós como luz que brilha nas trevas. Esse é um aspecto de Deus e na pregação dela. Como a Palavra mesmo nos
importante. Sendo esse aspecto definidor da espiritualidade ensina em Romanos, “a fé vem pelo ouvir e ouvir a Palavra
protestante, nós vamos caminhar para o próximo ponto. Para de Deus”. Essa é a mediação para o encontro com Deus.
o protestantismo, Deus se revela de muitas maneiras: Deus É a fé na Palavra. Esse é outro aspecto importante da
se revela na natureza, num senso íntimo – com base em espiritualidade protestante: O Sola Scriptura. Não existe
Romanos 2 – fazendo com que haja no ser humano a ideia uma espiritualidade que abra mão da Escritura. Isso em
de Deus, nem que seja a própria ausência de Deus. Porém, todas as linhas decorrentes do protestantismo. Às vezes
vamos fazer uma distinção entre o que é revelação geral e temos uma compreensão, da atualidade dos dons por

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exemplo, que é bem típico da tradição pentecostal, dizendo específico de espiritualidade cristã que é o tipo protestante
que o pentecostal abre mão de uma revelação da Escritura baseado nesses dois pilares para entender a espiritualidade
assumindo uma revelação direta de Deus mesmo sem estar protestante. A ideia da depravação total na qual diz que
na Escritura, mas através das profecias e revelações. Deus é quem se revela e nos alcança e o Sola Scriptura
que é a ideia que Deus nos alcança revelando Jesus Cristo
Isso só é verdade numa má aplicação do pentecostalismo. unicamente na pregação de sua Palavra.
Uma aplicação verdadeira entende a profecia de Deus
sempre concernente, coerente e no mesmo caminhar da Os efeitos práticos que essa espiritualidade traz são
Escritura divina. Afinal de contas, ela é julgada a partir da dois. O primeiro é que não existe espiritualidade cristã à
própria Escritura. Então, em todas as tradições vindas do parte das Escrituras. Outro conceito que é bem particular
protestantismo a Bíblia é esse centro que não só vai orientar do protestantismo e que vai pautar nosso conceito de
as nossas práticas, porque ela não é uma cartilha, mas como espiritualidade a partir de agora é que a espiritualidade cristã
o próprio lugar onde Deus fala não havendo distinção do que não se baseia em práticas de ascese para elevação espiritual.
é e do que não é Palavra de Deus. Por isso, ela é um elemento O cristão não “invade” o universo divino, mas é encontrado
importantíssimo para nosso encontro com Deus que é a por ele. Esse tipo de entendimento está no Cristianismo
verdadeira prática da espiritualidade cristã. em outras tradições, mas no protestantismo não pode
fazer parte porque se estamos num estado de depravação
Resumindo, partimos de um conceito de espiritualidade onde não podemos nem desejar a Deus a verdadeira
como a vontade, ação e busca por um acesso à realidade espiritualidade só pode ser um movimento de Deus para nós,
transcendental típica de todo ser humano para um conceito não o contrário. Nesse movimento de Deus para nós onde
cristão de espiritualidade, onde essa realidade específica de somos encontrados e onde se manifesta a fé em Deus é que
transcendência não é a uma realidade apessoal, mas é uma caminhamos na fé em direção a e junto com Deus. Não há
pessoa com o qual nos encontramos. Essa é a verdadeira e nada que não seja graça. Eu levantei esses dois pontos da fé
legítima espiritualidade cristã, e também exclusiva dentro protestante, porque os outros são decorrentes disso. O Solus
do cristianismo, porque vai falar do único Deus criador Christus diz que é só através de Cristo que conhecemos a
de todas as coisas. Caminhamos ainda para um tipo Deus e Cristo é revelado nas Escrituras. O Sola Fide, somente
pela fé, é desistir de todas as obras para alcançarmos e

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crescermos com Deus ou encontrarmos uma comunhão
com Deus a partir de nós mesmos. E por isso, Sola Gratia,
somente a graça, porque toda nossa comunhão com Deus
é totalmente graça dele. Não é nenhum resultado de meros
esforços. Até nossos esforços são pelo fortalecimento do
Espírito. Ou seja, todos outros pontos podem ser deduzidos
a partir desses da espiritualidade cristã.

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AULA 2 - A FÉ COMO CONDIÇÃO E A ES- que está em alteridade conosco, mas é o ser que vive
PERANÇA COMO COMBUSTÍVEL conosco. A palavra “espírito” significa fôlego e isto, tanto no
grego quanto no hebraico, dá entender que é algo pelo qual

N
a primeira aula, falamos do conceito de espiritualidade vivemos. Por isso, falamos que a espiritualidade cristã é o
partindo de um conceito mais amplo e caminhando que Paulo fala aos gálatas: “se vivemos no Espírito, andemos
para um conceito mais estrito. Saímos de um conceito também no Espírito”. Esse traço distintivo fala de uma vida
de espiritualidade geral – falando até de uma espiritualidade cristã.
arreligiosa no que pode ser considerada uma espiritualidade
distante de uma definição doutrinária mais específica – para A partir da Palavra de Deus quero fazer uma proposta de
centralizar no que seria uma espiritualidade cristã e em seus entendimento de que a espiritualidade cristã se baseia num
traços distintivos. E caminhamos ainda mais para um sentido paradigma de vida que orbita três conceitos: fé, esperança
ainda mais estrito que é a espiritualidade cristã protestante. e o amor. Esses são conceitos clássicos que aparecem em
Esse é o máximo de definição que vamos dar. Não vamos textos como 1 Coríntios 13 e outros do Novo Testamento.
para nenhuma tradição cristã estritamente interna porque Paulo diz:
estamos trabalhando para uma base protestante em todas
as linhas decorrentes do protestantismo: Reformadas,
Porque agora vemos como num espelho, de forma obscura;
Evangélicas, Pentecostais. Todas elas estão abarcadas na
depois veremos face a face. Agora meu conhecimento é
aula.
incompleto; depois conhecerei como também sou conhecido.
Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes
Um dos princípios protestantes que abordamos de três; porém o maior deles é o amor. (1 Co 13.12-13)
espiritualidade é o Sola Scriptura. Por isso, nosso
entendimento da espiritualidade cristã parte da Escritura
O apóstolo Paulo está fazendo um paralelo entre a vida
Sagrada. Como falamos, dentro do cristianismo,
presente e a vida futura. Ele fala do “agora” e do “então”.
espiritualidade pode ser definida como vida cristã. A
Diante da realidade futura, essa na qual nós vivemos é uma
espiritualidade fala de espírito e este não é apenas uma
realidade de percepção limitada. A figura que representa
área suprassensível, uma região celestial, ou uma realidade
essa limitação da visão é o espelho. Essa figura é excelente
acessível por nós. É uma pessoa. Esse espírito não é alguém

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para representar isso, porque o espelho tem dois tipos de face, nossa percepção da realidade espiritual será plena.
limitação: extensão e presença. O espelho não nos revela Essa plenitude é algo que não experimentamos ainda nessa
toda a extensão daquilo que ele reflete. Qualquer um que vida apesar de experimentarmos realmente aspectos dessa
já mudou de faixa no trânsito e tomou uma buzinada de um glória futura. Não temos esse conhecimento tão plenamente,
carro que estava em seu ponto cego sabe muito bem que o nem tão extenso, mas temos um conhecimento limitado
espelho não revela tudo o que há. Fora daquela extensão não como que por espelho. O texto faz o paralelo para o agora e
é possível enxergar mais. Isso está presente no texto quando do então.
é dito que conhecemos em parte, então só conhecemos
uma parte dessa realidade futura. O espelho pelo qual No versículo 13, ele fala de um agora também. Apesar de
conhecemos essa realidade não revela todas as coisas. Na usar palavras diferentes no grego, elas são sinônimas. O que
verdade, só conhecemos aquilo que Deus quis revelar a nós. ele fala no 13 é um pouco diferente em termos de ênfase.
Ele não quis revelar além do que ele disse. De certa forma, No 12 ele mostra como nosso conhecimento é limitado. No
só conhecemos a realidade espiritual naquilo que a Escritura 13, ele diz “agora permanecem esses 3: a fé, a esperança
nos mostra. O que ela não nos mostra, não conhecemos nem e o amor”. Esses três não são elementos da limitação
podemos vislumbrar. presente. Eles são aspectos da realidade espiritual que
já experimentamos aqui, ou formas de experimentarmos
Outra limitação do espelho é a da presença. Olhar por essa realidade espiritual aqui. E o maior deles é o amor.
um espelho não é a mesma coisa que ver face a face. Na No tempo presente, em que a percepção da glória divina
verdade, o texto nos fala de uma visão obscura, o que nos é limitada na percepção e na presença, a realidade
remete aos espelhos antigos que não eram tão claros como espiritual é experimentada na fé, esperança e amor. É aí
hoje. Não somente isso. O espelho não é a presença. O que experimentamos essa realidade do Espírito. Essa tríade
espelho não nos permite uma série de percepções sensoriais é muito importante. Sempre falamos desse texto quando
para além da visão. O espelho só te mostra o que você vê. falamos de fé, esperança e amor. Esse texto é o mais clássico
Outras coisas não são conhecidas no espelho. A experiência dessa tríade, mas ela também aparece em 1 Tessalonicenses
que temos com a glória divina, o conhecimento da realidade 1.3; 5.8-9; Colossenses 1.4-5; Efésios 1.15-18; Nesses textos,
espiritual é real, a visão é real, mas é limitada nessa própria todos esses três conceitos aparecem de uma maneira ou de
realidade. Quando nos encontrarmos com o Senhor face a outra. A fé, a esperança e o amor. Todos esses são textos

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paulinos. Porém, Pedro também comenta (1 Pe 1.21-22). vida é porque não cremos nela.
O autor de Hebreus também (Hb 10.22-24). Portanto, ela é
importante numa espécie de resumo do que é a vida cristã. A Se de repente acaba a energia na sua casa durante a noite e
vida cristã é pautada por esses três elementos. você não consegue enxergar nada. Você sabe se posicionar
na sua casa e com segurança saber para onde vai. Mesmo
O primeiro conceito dessa tríade que estamos trabalhando é sem ver, a certeza que as coisas são daquela maneira
a fé. Ela pode ser chamada de a condição da espiritualidade. orientam os passos que você dá. Se você não tem essa
Toda espiritualidade cristã genuína começa com a fé, porque convicção, você não vai andar. Ou se você acorda de noite no
ela é o meio pelo qual recebemos a graça de Deus, sua escuro achando que está em outro lugar, essa sua fé pautará
revelação e a chegada de Deus a nós. Em Hebreus 11.1 uma atitude incoerente com a realidade. O conhecimento
temos a definição bíblica de fé: “Ora, a fé é a certeza daquilo daquilo que não vemos, a fé, orienta nossos passos.
que esperamos e a prova das coisas que não vemos”. Essa
certeza da qual o texto fala às vezes traz o pensamento que Exemplificando de outra forma. Imagine uma criança numa
que a fé é algo apenas intelectual como uma afirmação que cozinha e o pai está lá com ela. O forno está aceso e está
é contrária à dúvida. Porém, essa convicção que o texto quente. O pai avisa para a criança não pôr a mão para não se
fala não é apenas mental. Ela não é uma convicção que está queimar. O filho diz que entende, mas quando o pai se vira, o
alheia à vida. Pelo contrário, ela é uma convicção que está filho põe a mão no forno. Ele ouviu e entendeu o pai falando
pautando a nossa vida. É por ela que vivemos. Tanto que e sabe que o pai é verdadeiro. Porém, naquele momento a
o apóstolo Paulo fala em 2 Coríntios 5.7 que vivemos pelo verdade que o pai disse não pautou a ação da criança pela
que cremos não pelo que vemos. Se nós temos certeza da palavra recebida, porque, de alguma maneira, a curiosidade
realidade de Deus, a vida eterna nos está garantida, não falou mais alto que a palavra. A experiência falou mais
temos outra escolha senão viver de acordo com essa fé. do que recebeu. Ou seja, a fé dela foi mais forte do que a
Então, a fé verdadeira é tão intensa que vivemos por ela. confiança naquilo que ela recebeu do pai. É a mesma coisa
Temos a certeza dela além de outras coisas. Ela pauta a quando não cumprimos o que a Palavra fala.
nossa vida. Na verdade, ela pauta nossa vida de maneira
tão intensa que podemos dizer que toda desobediência é
incredulidade. Toda vez que não pautamos pela fé a nossa A fé frutifica em obras porque se a Bíblia diz para fazermos

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algumas coisas e diz que são verdadeiras e boas, só não Há outro aspecto da fé e da espiritualidade que vai bater
fazemos porque não acreditamos nelas. Se acreditássemos nessa condição da fé para a espiritualidade. Em Hebreus
de todo coração não haveria nenhum problema de 11.6 diz que: “Sem fé é impossível agradar a Deus, pois
desobediência porque teríamos uma fé plena. Na Bíblia, em quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que
vários momentos, a obediência é oposta à incredulidade, recompensa aqueles que o buscam”. Com isso, o autor
ou a fé é oposta à desobediência. Esses termos são de Hebreus está falando que a fé é condição necessária
colocados como se fossem a mesma coisa: fé e obediência; para nos aproximarmos de Deus, porque quem se aproxima
incredulidade e desobediência. dele precisa crer que ele existe e que recompensa os que
o buscam. Ela é necessária também para o agradarmos,
Em um contexto um pouco diferente, Bonhoeffer vai dizer pois sem fé é impossível agradá-lo. Apenas quem crê pode
que “só o obediente crê e só quem crê obedece”. É assim agradar a Deus, pois é a fé que nos torna aceitáveis diante
que funciona com essa fé que se demonstra em obras. Dele. Em Hebreus 11.2, a Bíblia fala que foi pela fé que os
Nesse texto de Hebreus 11, depois de falar que a fé é uma antigos receberam bom testemunho. Não é pelas obras
convicção do que não vemos, é dito que os homens e as que somos aceitáveis, como diz em Efésios 2.8-9, mas
mulheres no Antigo Testamento creram porque pela fé pela fé na obra de Jesus. Como Jesus é o nosso mediador,
fizeram alguma coisa. Não fala que eles creram ao ponto é crendo nessa mediação de Jesus Cristo que temos uma
de duvidar, fala “pela fé, Abel deu o maior sacrifício”; “pela espiritualidade genuína, um encontro verdadeiro com Deus.
fé, Noé fez a arca”. Pela fé alguém fez alguma coisa. A fé Se não cremos em Jesus, não temos um encontro com Deus,
tem que frutificar em obras. É por isso que Tiago fala que porque há um só Deus e um só mediador entre Deus e os
a fé só pode ser demonstrada pelas obras: “Você me diz: homens, Jesus Cristo, Homem. Então, só pela fé em Jesus é
você tem fé. Eu tenho obras. Mostra-me a tua fé sem obras que nos unimos a ele e a Deus. Por isso que ela é condição
e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras”. E ele vai da espiritualidade. Essa obra de Jesus Cristo na cruz que
dizer que a fé sem obras é morta, porque uma fé verdadeira completa e satisfaz a justiça de Deus e que nos apresenta
frutifica. Calvino escreveu certa vez: “Só a fé justifica, mas ao Pai Santo, inculpáveis e irrepreensíveis como o apóstolo
a fé que justifica nunca está só”. Essa é uma compreensão Paulo fala em Colossenses 1.22. É assim que alcançamos o
interessante da fé e de como ela justifica em obras. bom testemunho. É o testemunho de Cristo que recebemos
pela fé. Essa fé é a condição para a espiritualidade. Sem fé

15
não existe espiritualidade cristã genuína. Ele coloca esperança por último, por quê? Em 1 Coríntios, a
ênfase é no amor. Para essa igreja que está passando por
O segundo conceito dessa tríade que estamos trabalhando tribulação, ele reforça a esperança, porque ela fortalece. Por
é a esperança. Se a fé é a condição para a espiritualidade, isso ele relaciona com a perseverança. A esperança fortalece
a esperança é o combustível da espiritualidade. Em perseverar frente a tribulação. Ele escreve colocando a
1 Tessalonicenses 1.3, o apóstolo Paulo usa os três esperança no final. Inclusive, é bem óbvio o que ele vai
conceitos novamente para dizer o seguinte: “lembramos destacar na carta. Ao final de cada seção, ele faz uma
continuamente, diante de nosso Deus e Pai, o que vocês referência à esperança futura. No final do capítulo 1, ele fala
têm demonstrado: o trabalho que resulta da fé, o esforço que Jesus nos livra da ira vindoura. No final de cada seção
motivado pelo amor e a perseverança proveniente da ele faz referência à esperança futura do cristianismo para
esperança em nosso Senhor Jesus Cristo”. Novamente fortalecer a fé dos Tessalonicenses e a perseverança deles
vemos ele falando da fé operosa, o amor abnegado e a na fé.
esperança perseverante, ou a perseverança que vem da
esperança. Essa tríade – fé, esperança e amor – aparece Também é uma evidência disso o fato de que lá na frente ele
mais uma vez, mas aqui Paulo inverte a ordem. Ele faz isso diz sobre o amor: “quanto ao amor, não preciso acrescentar
porque a carta foi enviada para uma igreja que está passando nada a vocês. Só digo que continuem aperfeiçoando o que
por tribulações. Em Atos, vemos que o evangelismo naquela vocês já fazem”. De fato, ele não está tão preocupado em
cidade foi muito complicado. Paulo começa a pregar, os fortalecer o amor como fez aos coríntios, que era uma igreja
judeus vieram em cima, ele teve que fugir de lá. Logo depois, dividida. Aqui ele está preocupado em falar da esperança,
ele escreve uma carta para a igreja de lá. A primeira carta porque ela é que vai fortalecer contra a tribulação.
aos tessalonicenses é provavelmente a segunda carta
que Paulo escreveu em ordem cronológica. A primeira foi Esperança está vinculada com perseverança, porque, na
a carta aos Gálatas e a segunda foi a primeira carta aos esperança, nós perseveramos. Olhando a esperança cristã
Tessalonicenses. Ele escreve rápido para a igreja para lá na frente nós perseveramos. A palavra perseverança
reforçar a fé daquela igreja ainda nova que está sendo tão em grego é a mesma que é traduzida por paciência. Na
perseguida. É uma carta muito bonita. Ele elogia bastante a verdade, o sentido primário dessa palavra é estabilidade,
igreja. Ele mostra muito cuidado e muito carinho por ela.

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firmeza. A mesma palavra que aqui é perseverança é a Porém, o contrário também acontece. Paulo escreve “não
mesma que depois se torna paciência quando Tiago fala só isso, mas também nos gloriamos na tribulação, porque
da paciência de Jó. Por isso é difícil ler o livro de Jó, afinal, sabemos que tribulação produz perseverança; a perseverança
depois dos sete dias de silêncio, já no segundo capítulo, ele um caráter aprovado; e o caráter aprovado, esperança” (Rm
amaldiçoa o dia que nasceu. Então você pode se perguntar 5.3-4). Ele diz que se gloria na tribulação porque ela produz
que paciência é essa. Porém, paciência e perseverança perseverança e a perseverança um caráter aprovado. Essa
são a mesma coisa. Porque mesmo indignado e falando palavra que também pode ser traduzida por experiência.
coisas que não deveria, ele não deixou de perseverar no seu Isso é interessante porque permanecemos firmes durante
propósito de não amaldiçoar a Deus. Ele só quer entender o uma tribulação por causa da perseverança sem abrir mão da
que ele está passando. Ele não abre mão do propósito que santidade e retidão. Você não usa isso como pretexto para
ele fala de “aceitaríamos o bem que vem de Deus e não o pecar, mas continua firme, ela vai gerar uma experiência com
mau? ”. Ele aceita, mas só quer saber o motivo. Ele caminha Deus que é um caráter aprovado. A prova veio e você passou
perseverante, ainda que não paciente no sentido que temos por ela sem sucumbir. Isso é um caráter aprovado, mas
hoje. também é uma experiência. Nessa experiência, a esperança
é fortalecida. O caráter aprovado produz esperança. A
Essa esperança promove em nós o perseverar caminhante. experiência produz esperança porque há aspectos de Deus
Um exemplo disso é aquilo que Paulo fala aos filipenses que só se demonstram verdadeiros para nós quando ficamos
quando diz que viver é Cristo e morrer é lucro, mas que por com ele em tribulação. Na tribulação, encontramos a face de
causa dos que lá estão vale viver nessa carne. Essa era uma Deus de uma forma que não encontramos na bonança. Isso
carne que ele estava sofrendo, pois ele estava preso quando reforça em nós a realidade celeste. Você já passou por uma
escreve aos filipenses. Mesmo preso, ele diz que vale a pena tribulação intensa, continuando firme na santidade, e sentiu
porque dessa forma estava fazendo o nome de Cristo ser o consolo de Deus? Isso é a esperança sendo promovida pela
conhecido. Então, ele vivia Cristo e quando morresse iria tribulação e pela experiência com Deus. Aquele que diante
para o céu. Essa esperança promove perseverança. Ela é o do sofrimento foge de Deus vai perder aspectos da presença
combustível para continuarmos em santidade e retidão. divina. Assim, a sua esperança deixa de ser fortalecida.

Por isso, um lema completamente anticristão é aquele

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que diz “pare de sofrer”. O cristão vai sofrer e sofrendo “Rogo-vos, pois, eu prisioneiro de Cristo, que andeis de modo
ele vai encontrar com Deus no sofrimento. Então, não é digno da vocação à qual fostes chamados” (Ef 4.1). Esse
“pare de sofrer”, mas tenha Deus no sofrimento. É isso que texto é compreendido de maneira errada como se vocação
entendemos da Palavra de Deus porque ninguém parou de fosse um dom ou uma habilidade, ou uma inclinação. Essa
sofrer no Novo Testamento e ninguém vai parar de sofrer na vocação não é isso. Em Efésios, vocação não é isso. A
vida. Na vida, teremos tribulações, mas nossa esperança é palavra vocação aparece três vezes e nas três está vinculada
que Jesus Cristo venceu o mundo no qual temos aflições. com esperança, porque mais na frente ele vai falar que fomos
“Fica tranquilo” é isso que Jesus Cristo nos ensina. chamados na esperança de uma só vocação. Esse chamado
de Efésios 4.1 é o chamado da salvação. Ele diz para andar
A tribulação enfrentada com perseverança só confirma e de modo digno de quem vai para o céu. Um modo digno de
intensifica a esperança. Essa realidade é a motivação dos quem tem esperança de uma salvação. A esperança impõe a
mártires. Motivou Pedro, Estevão, Paulo e até mártires nós um comportamento que não é típico do desespero, mas
recentes como Martin Luther King. Em seu último discurso da fé que vamos encontrar com Deus lá na frente. Por isso
antes de morrer, ele cita Moisés para dizer que todos querem que a esperança molda nossa vida.
ter uma vida longa, a longevidade tem seu valor, mas não me
importo mais com isso, porque eu vi a terra prometida. Então, N.T. Wright, em seu livro “Surpreendido pela esperança”, fala
ele diz: “é por isso que não temo nenhum homem e não temo que a maneira como pensamos na vida futura pauta e define
nada. Os meus olhos verão a glória da vinda do Senhor”. Por como vivemos nessa vida. É isso que devemos compreender
causa da esperança que ele já viu da vinda do Senhor, ele não da esperança compondo a espiritualidade cristã. Ela é o
tem nada e persevera. É isso que a esperança faz conosco combustível da nossa espiritualidade.
também. Por isso que ela é o combustível da espiritualidade.
Por causa dela nós nos mantemos perseverantes numa
espiritualidade genuína e verdadeira.

Dessa forma, a esperança vem do futuro e inunda nossa


vida presente. Quando Paulo escreve aos Efésios ele pede:

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AULA 3 - O AMOR COMO FRUTO DA ESPI- de todo o seu entendimento” (Mt 22.37). Em seguida, ele
RITUALIDADE acrescentou qual seria o segundo mandamento semelhante
a esse: “Ame ao seu próximo como a si mesmo”. (Mt 22.39).

​​E
ssa é a terceira aula sobre os fundamentos da Essa dicotomia era o pensamento do que resumia toda a lei
espiritualidade cristã. Abordaremos o terceiro elemento porque desses dois mandamentos dependem a lei e todos
do que chamamos de paradigma da espiritualidade os profetas. Amar o Senhor acima de todas as coisas e ao
cristã. Já vimos a fé como condição para espiritualidade próximo como a si mesmo, seriam esses dois mandamentos
– sem fé não há genuína espiritualidade cristã. Falamos que encaminhariam o fiel a cumprir toda a vontade de Deus.
da esperança como combustível dessa espiritualidade
reforçando a perseverança e também sendo alimentada Essa dicotomia foi mal compreendida pelo judaísmo do
por ela na experiência e no caráter aprovado na medida que tempo de Jesus pelo menos por aquilo que é retratado dos
vamos passamos pelas provas. E agora vamos falar do amor, fariseus nos evangelhos. Ela foi mal compreendida porque,
que é a obra da genuína espiritualidade cristã, ou o seu fruto. quando se pensa em dois mandamentos, pode-se pensar que
eles não necessariamente acontecem juntos ou em algum
O apóstolo Paulo diz: “Toda a lei se resume num só momento eles podem rivalizar entre si. Esse entendimento
mandamento: ‘ame o seu próximo como a si mesmo’” (Gl aparece nas Escrituras. Quando Jesus combate a prática
5.14). É uma afirmação bastante categórica e bem absoluta. do corbã, que era a prática dos jovens judeus tinham de
Toda a lei se cumpre em um mandamento: “Ame o seu deixar de sustentar os pais para consagrar o dinheiro ao
próximo como a si mesmo”. Ele está se referindo à lei do templo, Jesus diz que eles estavam indo contra a Lei, porque
Antigo Testamento. Isso nos remete a um desenvolvimento ela ensina honrar pai e mãe. É justamente esse tipo de
dessa ideia dentro do cristianismo para podermos entender o interpretação que amar a Deus e amar ao próximo não são
que aconteceu. a mesma coisa que trazia esse tipo de interpretação. Eles
preferiam amar a Deus dando dinheiro para o templo do que
amar ao próximo cumprindo o que a lei de Deus falava.
Quando Jesus Cristo foi perguntado por um escriba qual
era o maior mandamento, ele responde: “Ame o Senhor,
o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e Então, Jesus Cristo fala que são dois mandamentos para

19
aquele escriba dentro de um contexto que está muito firme é impossível amar a Deus sem amar ao próximo. Aquele que
no judaísmo. Porém, Jesus trouxe uma explicação com o real diz que ama a Deus, mas não ama seu irmão é mentiroso.
sentido do mandamento e o chamou dentro do Evangelho Porque se não ama o irmão a quem vê, como pode amar a
de João de um novo mandamento. É o que ele diz: “Um novo Deus a quem não vê. Jesus Cristo une essas duas coisas
mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; como fazendo uma teoria de tudo do amor. Unindo essas duas
eu amei a vós, que também vós uma aos outros vos amei”. coisas que eram pensadas separadamente. O amor a Deus e
Jesus, dando esse discurso no cenáculo, que vai do capítulo o amor ao próximo.
13 ao 16 onde ele fala sobre vários aspectos importantes
num discurso final antes da sua crucificação, diz que tem um Os apóstolos entenderam perfeitamente essa mensagem.
novo mandamento: que eles amem uns aos outros. Isso é Você pode reparar que daí para frente, no Novo Testamento,
interessante porque esse mandamento não parece ser novo. pouco se fala sobre amar a Deus explicitamente e muito
Ele já existia desde a antiguidade. Em segundo lugar, Jesus se fala sobre amar ao próximo como um cumprimento da
só fala de amar uns aos outros. A parte de amar Deus estaria vontade de Deus plena.
em falta.

Não fiquem devendo nada a ninguém, exceto o amor de uns


Você entende como isso se vincula com os dois para com os outros. Pois quem ama o próximo cumpre a lei
mandamentos que Jesus falou antes observando o que (Rm 13.8).
ele diz no capítulo seguinte quando diz “Aquele que tem os
meus mandamentos e os guarda. Esse é o que me ama; e
aquele que me ama será amado por meu pai, e eu também Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber:
o amarei e me manifestarei a ele”. Os dois mandamentos “Ame o seu próximo como a você mesmo. ” (Gl 5.14).
do judaísmo são: amar a Deus sobre todas as coisas e amar
ao próximo como a si mesmo. Jesus Cristo fala que vai dar E agora, senhora, peço-lhe, não como se escrevesse
um novo mandamento “que amem uns aos outros”, mas mandamento novo, mas o mesmo que temos tido desde o
aquele que cumpre os mandamentos é o que o ama. O que princípio: que nos amemos uns aos outros. (2 Jo 1.5).
Jesus está falando é que se você quer amar a Deus cumpra o
mandamento de amar ao próximo. Deus quer ser amado pelo Amados, não lhes escrevo um mandamento novo, mas um
amor que temos ao próximo. Por isso que João vai falar que

20
mandamento antigo, que vocês tiveram desde o princípio. Tem mais um aspecto da fala de Jesus no cenáculo que vai
Esse mandamento antigo é a palavra que vocês ouviram. Por nos ajudar a compreender o papel do amor na espiritualidade
outro lado, o que lhes escrevo é um mandamento novo, aquilo cristã. A fala de Jesus sobre os mandamentos (Jo 14.21)
que é verdadeiro nele e em vocês, porque as trevas vão se têm uma ênfase final muito interessante. Já vimos nas aulas
dissipando, e a verdadeira luz já brilha. Quem diz estar na anteriores que a espiritualidade cristã não se baseia numa
luz, mas odeia o seu irmão, está nas trevas até agora. Quem ascese pessoal, mas parte de uma vontade de Deus de se
ama o seu irmão permanece na luz, e nele não há nenhum revelar a nós. A comunhão com Deus parte dele próprio
tropeço. (1 Jo 2.7-10). para nos encontrar no nosso estado de separação. Isso
está presente também na fala de Jesus, pois ele fala que se
Mais uma vez o apóstolo coloca o mandamento como amar o manifestará àquele que tem os mandamentos e os guarda.
irmão ao invés de odiá-lo. Este é o que o ama e é amado por ele e pelo Pai.

Se vocês, de fato, observam a lei do Reino, conforme está na


Escritura: “Ame o seu próximo como a si mesmo”, fazem bem
(Tg 2.8).

Para Tiago, a lei real é amar ao próximo. Cumprindo essa lei,


você estará agindo corretamente. A ênfase de amar a Deus,
chamado de o maior mandamento da lei por Jesus, é quase
ausente nesse restante do Novo Testamento. Aprendemos
que amamos a Deus amando ao próximo. Essa é a obra
do verdadeiro encontro com Deus e a obra da verdadeira
espiritualidade. Por isso compreendemos que agradamos a
Deus através do amor que oferecemos uns aos outros. Essa é
a ênfase prática do Novo Testamento: amar ao próximo.

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AULA 4 – OS FUNDAMENTOS BÍBLICOS Até agora, nós definimos que a espiritualidade cristã é a
PARA A ESPIRITUALIDADE prática da vida de Deus no crente. Ela se manifesta também
na comunidade, uma vez que você é inserido na fé, se

N
esta aula, nós vamos falar sobre os Fundamentos tornando um adepto do cristianismo pela fé, você é inserido
Bíblicos para as Disciplinas Espirituais. É um tema numa comunidade de fé.
importante e bastante discutido, tem uma história
grande na tradição da Igreja e nas diferentes tradições e A espiritualidade cristã é bastante comunitária, não é
denominações cristãs. Nossa intenção aqui é buscar os simplesmente um acesso a um ambiente espiritual, nem
fundamentos bíblicos mais essenciais para que sustentem uma transcendência de um universo físico sensorial para
as nossas práticas. Não pretendemos fazer um juízo de valor um universo extra ou supra sensorial, mas um encontro
muito explícito sobre quais práticas são aceitáveis ou não, com esse ser, Deus mesmo. Nos encontramos com Ele. Não
até porque, acredito que essas práticas de espiritualidade é um mero autoconhecimento, mas um conhecimento e
cristã têm se provado úteis de várias maneiras e contextos comunhão com Deus. Essa espiritualidade não se manifesta
para diferentes comunidades. Diferentes momentos apenas no encontro externo, mas o Espírito é a nossa
históricos, regiões diferentes, com culturas diferentes. própria vida. Ele passa a viver em nós e ser o nosso fôlego.
Por exemplo, na nossa experiência evangélica brasileira, Então, espiritualidade cristã é a prática da vida de Deus.
a música é um aspecto muito importante de uma prática Espiritualidade cristã é a mesma coisa que vida cristã.
de espiritualidade, ela está inserida em um contexto de
disciplina espiritual. Não é assim em todo lugar e para
Essa prática se inicia com a fé, que é a condição da
todas as pessoas. C.S Lewis, por exemplo, tinha um certo
espiritualidade, sustentada pela esperança, – da qual já
desprezo pela música cristã da sua época. Isso vai variar
falamos- ela é praticada em amor. Logicamente, essas três
um pouco e não estamos muito preocupados em pontuar
verdades se tocam e se intercambiam. A função de cada
quais são as práticas essenciais, nós vamos falar sobre elas
um desses conceitos na espiritualidade cristã, acontece,
e os fundamentos bíblicos delas. Vamos começar com uma
às vezes, ao mesmo tempo. Um enriquecendo o outro,
introdução bíblica geral da necessidade e importância da
resultando na execução da vontade de Deus em nós. É na
prática das disciplinas espirituais cristãs, dentro de tudo que
obediência que temos esse encontro verdadeiro com Deus
já falamos até agora.

22
e que se inicia na fé. Na obediência nós crescemos nessa travar a batalha crucial contra o pecado. É nesse sentido
comunhão com Deus. que as disciplinas espirituais são tão importantes. Elas
não são uma honra, medalha ou um mérito. As disciplinas
Podemos encontrar na Bíblia um inimigo desta prática e espirituais são um atestado da nossa incompetência. Ela é
desse encontro com Deus. Há um inimigo para que tudo uma declaração de fraqueza. Nós precisamos da disciplina
isso não aconteça. Esse inimigo, é o que chamamos de espiritual porque nós precisamos nos fortalecer para a
carnalidade. batalha.

A nossa própria carnalidade é o inimigo da nossa Um dos melhores jogadores de futebol que vi na minha
espiritualidade. Os dois termos: carne e espírito, se vida foi o Romário, ele fez mais de mil gols, um gênio não
encontram na Bíblia como entrando em conflito explícito. Em somente da pequena área, mas também fora da área no início
Gálatas 5:17, apóstolo Paulo escreve: da carreira. Romário era famoso por não gostar de treinar
e por mesmo sem treinar, “arrebentava” nos jogos. Fazia
dois, três gols em um jogo depois de uma noite que ele não
Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, treinou. Ele mesmo conta essas histórias.
o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o
outro, de modo que vocês não fazem o que desejam.
Romário não se sentia fraco o suficiente para precisar treinar
muito, ele achava que já sabia tudo, e comprovou que sim.
Então, o verdadeiro inimigo da espiritualidade cristã No entanto, nenhum de nós no campo espiritual somos um
genuína e do verdadeiro encontro e comunhão com Deus Romário. Precisamos nos esforçar muito para treinar e toda
é a carnalidade. Ela é que nos afasta de Deus. A carne e o vez que você achar que você é um Romário, na verdade, você
espírito militam um com o outro. A espiritualidade se dá num está achando que é Jesus, pois ele não precisa treinar. Você
contexto de guerra, a batalha entre carne e espírito. se colocando nesse lugar de tanta soberba, obviamente, sua
carne já venceu. Você já venceu a batalha. Então, nos dedicar
Assim como um soldado treina muito antes de ir para o às disciplinas espirituais, nas práticas de espiritualidade que
campo de batalha, o cristão se fortalece espiritualmente para são religiosamente marcadas e definidas no cristianismo,

23
é algo que parte de um reconhecimento de incapacidade e acrescentando algum mérito ou fazendo um depósito no
fraqueza. Eu sou fraco para vencer a carne, então eu preciso banco das bênçãos de Deus. Não achamos que estamos
me dedicar mais a Deus, preciso buscar mais de Deus, me entregando a Deus um sacrifício, acrescentando algo à cruz
fortalecer. de Cristo. As disciplinas espirituais são apenas uma busca de
fortalecimento para que a vontade de Deus seja de fato feita
As disciplinas espirituais também não são sacrifícios que na nossa vida.
oferecemos a Deus.
Para entendermos, podemos ler Romanos 12:1-2.
Se por um lado, essas disciplinas espirituais não são mérito Nesse texto, vai falar se sacrifício e de adoração a Deus.
ou honra, elas também não são sacrifícios dados a Deus. Compreenderemos isso de uma melhor maneira. O texto fala
Quando eu coloco na minha vida um tempo de vigília, que é de um sacrifício pessoal.
uma forma de se ter uma disciplina espiritual, não significa
que naquele momento eu oferecia aquilo a Deus como um Portanto, irmãos, rogo-lhes pelas misericórdias de Deus que
sacrifício. O sacrifício que Deus recebe é o sacrifício da cruz se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus;
de Cristo. este é o culto racional de vocês. Não se amoldem ao padrão
deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua
Todas as bênçãos que nós recebemos, recebemos nessa mente, para que sejam capazes de experimentar e comprovar
cruz de Cristo. Todo sacrifício que Deus recebe, Ele recebe a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. (Romanos 12:1-
pela cruz de Cristo. Jesus é o filho amado em quem Deus 2).
se compraz. O prazer de Deus está no filho. E quando nós
obedecemos a Deus, nós obedecemos pela cruz de Cristo. Esse termo do sacrifício que Romanos traz e se encontra
Apóstolo Paulo fala: longe de mim, me gloriar em qualquer no capítulo 12, onde uma nova seção da carta começa.
coisa, senão na cruz de Cristo. Romanos é bem dividida em algumas partes, mas tem uma
divisão bem clara fazendo dois grupos, de 1 a 11 e de 12
Então, não nos gloriamos de nenhuma disciplina, de para frente. . Esses grupos estão bem divididos porque
nenhuma prática de religiosidade, não achamos que estamos enxergamos ali, a partir do capítulo 11, uma doxologia.

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“​ Porque dEle, por Ele e para Ele são todas as coisas. Esse capítulo se relaciona com o que Paulo falou no capítulo
Glória, pois, a Ele, eternamente.” Doxologias, geralmente, 6 onde ele fala para não entregarmos os nossos membros
terminam seções de carta. O início do capítulo 12, na como instrumentos de injustiça, mas como instrumentos de
palavra “portanto”, é uma cláusula conclusiva entre o que justiça. Ali, a questão é sobre a luta da carne com o espírito.
ele acabou de falar e o que ele vai falar, como conclusão e Nesse texto, ele não está colocando isso como um sacrifício
consequência do que acabou de dizer. O que ele vai dizer é do corpo como uma entrega religiosa a Deus. Na verdade, ele
um pedido: “Portanto, rogo-vos, pela misericórdia de Deus”. está fazendo o oposto. Ele está dizendo que entregar o nosso
Ele faz pedidos práticos a partir do capítulo 12. A mesma corpo como instrumento de justiça - assim como ele falou no
coisa acontece no final do capítulo 3 de Efésios, tem uma capítulo 6- é o verdadeiro culto racional. O que seria então
doxologia. Ali, é a doxologia, uma glorificação a Deus e no oferecer o corpo como sacrifício vivo? É que a vontade de
início do capítulo 4, começa do mesmo jeito que Romanos Deus seja feita em nós. Quando a vontade de Deus é feita em
12. nós e abrimos mão de pela nossa carnalidade controlarmos
nossa vida, e nos submetemos a obediência de Deus, esse é
Nesse contexto, vemos que o que Paulo está pedindo a o verdadeiro culto. Paulo fala do culto racional, essa palavra
partir do capítulo 12 de Romanos não é uma questão de um que Romanos 12 traduz por “racional”, é a mesma palavra
sacrifício do corpo em termo de flagelo ou fazer sofrer o que em I Pedro 2:2 é traduzida por “espiritual”.
corpo físico como um sacrifício a Deus. Ele diz:
Como crianças recém-nascidas, desejem de coração o
Portanto, irmãos, rogo-lhes pelas misericórdias de Deus que leite espiritual puro, para que por meio dele cresçam para a
se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus; salvação. (I Pedro 2:2).
este é o culto racional de vocês. (Romanos 12:1).
Essa palavra não tem o contexto de uma racionalidade como
Esse “corpos” fala da plenitude da pessoa, não apenas se o culto fosse algo cerebral. Paulo não está tratando da
sobre uma questão física. Mas também, não é apenas sobre adoração pública ou do culto, ele está falando que o nosso
uma questão espiritual, por isso, ele fala “corpos” e não culto espiritual, o culto verdadeiro e legítimo é a vontade de
simplesmente oferecer vossas almas e o vosso coração. Deus feita em nós.

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O sentido é de oferecer-se inteiro para fazer a vontade de que é a vida de Deus em nós, que é a obediência à vontade de
Deus e esse é o culto espiritual. Deus. Boa, perfeita e agradável vontade de Deus.

Culto espiritual está em oposição ao culto formal. Há alguma Paulo vai nos desafiar a não nos conformamos com o
adoração religiosa ou algum sacrifício formal. Não é um mundo. Se nos conformamos com o mundo, não fazemos
sacrifício religioso a Deus, é a verdadeira adoração espiritual, a vontade de Deus. Se temos uma transformação da nossa
é a vontade de Deus feita em nós. Ele vai discorrer uma mente, passamos a obedecer a Deus nas nossas práticas
série de práticas a partir do capítulo 12 que são práticas de e na transformação da nossa mente, para que possamos
adoração em nós mesmos para glorificar a Deus. Não é um experimentar a boa, perfeita e agradável vontade de Deus.
texto sobre disciplina espiritual, é um texto sobre santidade,
um texto sobre obediência, sobre fazer a vontade de Deus Neste lugar, se insere as nossas práticas de religiosidade e
e isso já é a adoração a Deus. É muito bem falado naquela as nossas disciplinas espirituais, como um fortalecimento
canção do Casting Crowns:“Let my lifesong sing to you”/ dessa mente renovada, como resistência desde a mente
“que a minha vida cante a ti”. É a vida que canta a Deus. É às seduções do pecado. A tentativa de carnalidade de
adoração, culto em que a própria vida é entregue a Deus. impor sua própria vontade sobre nós como uma maneira
Não tem a ver com disciplina espiritual com severidade com de fortalecermos internamente para nos entregarmos a
o próprio corpo e culto racional também não tem a ver com obediência de Deus e entregarmos como sacrifício vivo,
cerebral, mas tem a ver com o culto verdadeiro. santo e agradável a Deus.

Jesus Cristo fez algo muito parecido em uma conversa com É por isso que as disciplinas espirituais existem, para que a
a mulher samaritana. Ela traz uma pergunta sobre o culto verdadeira espiritualidade se manifeste em vida verdadeira e
formal, onde deveria adorar, se no monte ou no templo. não apenas como se essas disciplinas fossem um fim em si
Jesus fala que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em mesmas. Uma harmonização ou harmonia do universo. Ela
espírito e em verdade. A palavra não é a mesma que Paulo é uma maneira de nos fortalecermos para que a carnalidade
usa em Romanos 12, mas o conceito é o mesmo. A oposição não vença.
de uma adoração formal para a realidade de uma adoração

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Antes de prosseguirmos, há dois conceitos bíblicos coisa que consideramos impura ou que vai criar algum tipo
importantes que fazem parte da cultura religiosa cristã e de dificuldade em termos de elevação espiritual. A santidade
judaica cristã que eu gostaria de definir. não é ascetismo. A santidade é propositiva. Ela tem uma
intervenção no mundo, então, nós somos santos de Deus
O primeiro é o conceito de “santidade”. Um conceito para que o mundo entenda quem Deus é, para que vejam a
importante de definirmos pois no uso comum, ele perdeu Deus e suas obras sejam feitas através de nós. Não apenas
um pouco do sentido original dele. A palavra “qadosh” para que fiquemos com medo da corrupção e do mal e nos
no hebraico carrega o sentido de “separado”. Ela é escondendo das coisas que acontecem no mundo.
frequentemente associada a Deus, mas também é atribuída a
pessoas e elementos da adoração separados para cumprir o Um outro conceito importante é o conceito de edificação.
propósito de Javé. (Lv. 19:24; 21:6-7; 23:20). Uma palavra que falamos muito e que tem como significado
a ideia de uma construção que está sendo concluída aos
Nesse contexto, a palavra “qadosh”, não era apenas poucos. No Novo Testamento, a edificação refere-se à
“separado” como algo inacessível, mas para cumprir um construção do caráter de Cristo no crente. Edificar significa
propósito. Os utensílios do templo eram separados, mas eles buscar o aperfeiçoamento do crente segundo a imagem de
tinham seu propósito e deveriam cumprir esse propósito Jesus Cristo. Isso envolve uma postura pessoal (I Co 10:23) e
da qual foram chamados e santificados. Nós entendemos também um compromisso mútuo no seio da Igreja (I Ts 5:11).
a santidade da vida cristã também com dois aspectos.
Primeiro, um aspecto negativo no sentido de nos separarmos Vamos falar agora, de uma organização da base teológica
do pecado e nos guardarmos da corrupção do mundo. Ele é que temos até agora.
negativo, então, a santidade é negar o que é mal. Ela também
tem um aspecto positivo, que é a dedicação a glória do Na escritura, o crente é ensinado a congregar com seus
propósito de Deus feito na nossa vida. Isso é o que difere a irmãos (Hb 10:25), mas ela também fala sobre orar e meditar
santidade do ascetismo. secretamente no seu quarto. Jesus Cristo, falando no sermão
da montanha para que quando orássemos, não fizéssemos
O ascetismo é o conceito de nos afastarmos de alguma como os hipócritas.

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Essas duas dimensões e expressões da espiritualidade protestante é ainda mais explícita. Como falei, sou um
estão presentes na vida cristã. Tanto na dimensão pessoal pastor Batista que é bastante ligado a racionalidade e
quanto na dimensão comunitária. As duas fazem parte e são individualidade, tanto que, no livro dos Batistas do Brasil
essenciais para uma espiritualidade genuína e sadia no que a chama-se “A celebração do indivíduo: a formação do
Escritura nos ensina para uma prática cristã. pensamento batista brasileiro” de tão individualista que
é, é uma tendência forte no pensamento protestante e
Daniel é um exemplo maravilhoso de espiritualidade estou destacando a minha linha. Nós abrimos mão de
porque ele está distante de toda a questão da religiosidade uma mediação institucional, do sacerdote ou da igreja,
instituída. Longe do templo, já não tem um sacerdote. Ele da autoridade de um Papa que é uma autoridade sobre
está no exílio, fora do âmbito da religiosidade judaica. Ainda todas as pessoas. Então, esses elementos criavam laços
assim, ele continua exercendo práticas de espiritualidade. de dependência cerimonial para o povo que traziam para
Daniel orava sozinho em seu quarto (Dn 6) mas ele também uma espécie de coletividade dentro do catolicismo que é
orava com seus irmãos (Dn 2:17-18) quando ele estava enfraquecido no protestantismo e ainda mais enfraquecido
prestes a interpretar o sonho do Rei. em tradições como a minha.

Aspectos individuais e comunitários da religiosidade estão Contudo, não quero fazer uma apologia ao catolicismo,
presentes na vida de Daniel, mesmo distante de toda a quero apenas demonstrar que isso não acaba com a visão
questão da religiosidade institucionalizada. Daniel é um da comunidade e do que é comunitário. Continuamos
caso para vermos espiritualidade independente de outras dependendo muito da comunidade. Mas isso, só purifica
estruturas – não que as estruturas sejam sempre ruins. esse conceito. Não voltamos para a comunidade porque
Daniel pode ser esse tipo de experimento que a gente pode dependemos de uma mediação. Voltamos para a comunidade
olhar no universo controlado. porque dependemos uns dos outros para a vida de Cristo se
manifestar em nós. Nós juntos somos o templo de Deus.

Esses dois aspectos estão presentes na vida cristã. Nós, na


nossa tradição protestante, acabamos tendo uma tendência Essas duas esferas, individual e comunitária, são importantes
muito forte para a individualidade. Inclusive, minha tradição porque delas dependem dois conceitos essenciais para o

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cristianismo. O conceito de autenticidade e o conceito de fazer interpretações malucas sobre a Escritura e achar
fidelidade. Os dois conceitos dependem de que essas duas que está certo, pois não haverá ninguém para contrariá-
esferas estejam equilibradas. Quem possui apenas a esfera lo. Em Hebreus 10:25, fala para não abandonarmos a
coletiva da espiritualidade, que tem somente suas práticas congregação, mas para nos exortarmos uns aos outros.
religiosas, de devoção e de adoração na coletividade e não Muitas pessoas abandonam a comunidade porque não
tem uma prática pessoal, individual e secreta, falha com a suportam a exortação e a admoestação, mas a exortação e
autenticidade. Facilmente, este abrirá mão do relacionamento admoestação comunitária é a riqueza da comunidade. É o
real com Deus para transformar o olhar de Deus para que garante a sua fidelidade. Jesus nos ensinou, inclusive,
ele no olhar dos outros. É a gênese do farisaísmo. Se há a cuidar dos pecados uns dos outros. Falar quando o irmão
apenas a coletividade e na individualidade não há cultivo peca, mostrando a ele o erro, por amor a ele. Nós estamos
do relacionamento com Deus, independente dos outros, aqui para nos parecermos com Cristo. Então, por amor,
rapidamente, transformará a comunhão com Deus tentando você deve ajudá-lo a caminhar com Cristo. Assim também,
agradar pelo olhar do outro. submetendo-se à disciplina para tornar-se cada vez mais
parecido com Cristo.
A autenticidade depende de um vínculo direto com Deus que
se manifesta na solitude e na individualidade do secreto. Resumindo isso tudo, as disciplinas espirituais não são uma
Deve-se buscar essa sede e busca por Deus no secreto se medalha de mérito e honra, mas ela também não é sacrifício
ainda não há. para Deus como se estivéssemos entregando parte da
oração nos privando de alguma coisa ou fazendo alguma
Em contrapartida, quem tem apenas a busca individual, ação religiosa.
rompe com outro ponto, o da fidelidade. Pode-se ter uma
autêntica busca por Deus no coração, mas se apenas A disciplina espiritual é uma maneira de nos fortalecer para
individualmente, perderá a edificação mútua. A edificação que o verdadeiro culto de Deus aconteça na nossa vida. Esse
mútua é importante para que não se crie um ídolo de deus. verdadeiro culto é a obediência, fazendo o que Deus manda.
Por diversas vezes, Deus mostra o erro do indivíduo através
de pessoas. Você e sua Bíblia sozinho em seu quarto, pode Essa obediência é plenificada na expressão do amor de Deus

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na vida cristã. Vivendo amor, vamos mostrar o verdadeiro
Espírito de Deus. Ele frutificará esse amor em nós.

O inimigo dessa frutificação é a carnalidade, então, a


disciplina espiritual nos fortalece contra a carnalidade que
nos puxa para o pecado.

Também falamos sobre duas dimensões das disciplinas:


pessoais e comunitárias.

Ao redor desses eixos, vamos tratar nas próximas aulas as


disciplinas espirituais.

O livro “Celebração da Disciplina” de Richard Foster é


organizado em três partes. A comunitária ele chama de
“associados”, que é uma excelente maneira de ver também,
mas vamos trabalhar apenas em dois eixos para deixar mais
simples já que não temos a mesma pretensão que o autor.

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AULA 5 – AS DISCIPLINAS ESPIRITUAIS lei e nela, ele medita de dia e de noite. Quando falamos a
PESSOAIS palavra “meditação” nós entendemos um tipo de experiência
espiritual que nos remete a religiões mais do extremo Oriente

B
em-vindos a mais uma aula desse módulo de ou da Índia nos períodos em que se evita pensamento em
Fundamento da Espiritualidade Cristã. Falamos na que se limpa a mente. A ideia da meditação é uma espécie de
última aula sobre as disciplinas espirituais num limpeza da mente, alma e coração. Quando eu praticava arte
contexto mais bíblico teológico, pensamos a respeito marciais, tinha um professor que falava: agora, vamos fechar
de uma introdução às disciplinas espirituais falando das os olhos e evite os pensamentos.
necessidades delas, do que elas são ou não são dividindo-as
em duas categorias: pessoais e comunitárias. Agora, vamos Esse exercício de meditação como é no extremo Oriente é
falar das disciplinas pessoais que são aquelas que estão diferente do exercício de meditação que vemos no Salmo 1.
num contexto pessoal. No extremo Oriente está ensinando a limpar os pensamentos
e a abrir a mente de certos conceitos e numa visão bíblica, a
Primeiro, vamos falar da disciplina da meditação. A Bíblia meditação é o consolidar dos conceitos da palavra de Deus.
fala sobre meditação e uns dos textos mais famosos sobre a É o receber e instaurar na nossa consciência os conceitos da
meditação da Escritura é o Salmo 1:1-2. Lei do Senhor.

Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos Além disso, a palavra que nós traduzimos por “medita” em
ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se hebraico, significa “murmurar” ou “balbuciar”. Ela não é uma
assenta na roda dos escarnecedores. ausência de sentido, ela é uma afirmação de sentido bíblico
na vida do crente.
Antes, o seu prazer está na Lei do Senhor, e na sua Lei medita
de dia e de noite A meditação afeta na espiritualidade e conduta da seguinte
forma:
O homem bem-aventurado que não vai pelo caminho do
pecador, mas fica no caminho do justo ele tem prazer na No Salmo 119, é dividido em uma seção de oito versos

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onde cada uma delas começa com uma letra do alfabeto meditação é importante para manutenção deste ambiente
hebraico. A segunda dessas seções que começa no versículo de comunhão com Deus em obediência. Uma outra coisa
9 vai até o versículo 16. muito interessante é que no Salmo 1 que lemos agora a
pouco, ele fala que o homem bem-aventurado medita na Lei
Há uma certa unidade de sentido em cada uma das seções, do Senhor de dia e de noite, se tratando de uma frequência
ainda que todo o Salmo tenha uma unidade de sentido pleno. de meditação. Então, a leitura devocional pessoal da Palavra
No entanto, a segunda seção começa com uma pergunta de Deus é reforçada e ensinada e até exigida das Escrituras.
(Salmo 119:9). Precisamos meditar na Lei do Senhor de dia e de noite. Você
precisa ter uma vida devocional pessoal e particular e não
só a pública e comunitária. Você deve buscar a Palavra de
De que maneira poderá o jovem guardar puro o seu caminho? Deus sozinho porque elas garantem autenticidade. Você será
Observando-o segundo a tua palavra. autêntico se você busca a Lei em sua casa e não apenas
diante dos outros.
No final do versículo, ele vai falar sobre um compromisso
pessoal do salmista nos versículos 15 e 16. Em Deuteronômio 17:18-20, há uma recomendação de
Moisés sobre quais são as características de um rei justo
Meditarei nos teus preceitos e às tuas veredas terei respeito. quando o povo futuramente fosse escolher um rei. Uma das
Terei prazer nos teus decretos; Não me esquecerei da tua coisas que esse rei deve ter é uma cópia da Lei e lê-la todos
palavra. os dias para que ele não se orgulhe e não caia em erros de
acumular muitos cavalos, mulheres e riquezas. A meditação
Ou seja, para purificar o seu caminho, é necessário diária quebra o nosso orgulho que é um grande combustível
meditar na palavra de Deus. É necessário ler e confrontar da nossa carnalidade. Uma vez que o orgulho está sendo
a sua própria vida e descaminhos com o caminho de quebrado, nossa carnalidade estará sendo enfraquecida
Deus. Olhando nos preceitos e respeitando as veredas e o espírito será fortalecido dentro de nós. Dessa forma,
e como consequência, tendo prazer na Lei do Senhor a meditação nos encaminha no caminho da justiça da
tendo comunhão com o Pastor do caminho. Por isso, a espiritualidade cristã genuína.

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Outra disciplina espiritual muito importante é a oração. desanimar.
Talvez, seja a prática devocional pessoal mais enfatizada
no Novo Testamento. É muito interessante que a oração é No versículo 8, no entanto, ao final da parábola, Jesus
bastante instruída no ministério de Jesus. Ele falava muito termina fazendo uma pergunta (Lucas 18:8b).
sobre oração vivendo também uma vida de oração, trazendo
também muitos ensinamentos acerca da oração.
Contudo, quando o Filho do Homem vier, encontrará fé na
terra?
Há uma parábola de Jesus muito importante acerca da
oração, principalmente para o nosso tempo, da qual a oração
tem sido deixada um pouco de lado. Em Lucas 18, Jesus Essa pergunta, juntamente com a abertura dessa parábola,
Cristo conta a parábola do juiz iníquo, também conhecida mostra algo um tanto inconveniente para nós que oramos tão
como parábola da viúva importuna. Esse juiz, sendo iníquo, pouco nos nossos dias. Se a parábola é sobre orar sempre e
não julga a causa de uma viúva e essa viúva o pressiona não desanimar e a parábola de Jesus é sobre fé e não sobre
para que julgue esta causa. Até que, em um momento, o juiz oração, do que afinal, ele está falando?
decide julgar a causa para que a viúva pare de o importunar
mesmo que não se importe com Deus ou com os homens. Essa falta de oração nada mais é que uma demonstração e
Com essa parábola, Jesus diz que se esse juiz iníquo falta de fé. Se as pessoas oram tão pouco, será que haverá
atendeu a essa viúva por insistência, quanto mais Deus não fé na terra? De fato, a falta de oração é um sintoma da falta
fará justiça aos seus escolhidos que clamam a Ele dia e de fé. Se cremos que Deus nos ouve e ama, e que nele está
noite. O que há de interessante nessa parábola é que Lucas o sentido de nossas vidas, quanto mais nós não buscarmos
traz a interpretação dessa parábola no início dela. Quando, a Deus tendo essa fé real em Deus? Nós buscamos pouco e,
na grande maioria das parábolas, a interpretação delas – por buscarmos pouco, queremos pouco. A falta de oração é
quando vem – se dá no final. (Lucas 18:1). sintoma da falta de fé. Quem crê, ora.

Então Jesus contou aos seus discípulos uma parábola, Sobre oração, poderíamos falar muitas coisas. Há livros e
para mostrar-lhes que eles deviam orar sempre e nunca livros, teólogos que dedicaram praticamente toda sua obra

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só sobre oração. Além de todos os aspectos práticos, dos o poder e a glória para sempre. Amém’. Pois se perdoarem
exemplos históricos e dos exemplos bíblicos que nós temos. as ofensas uns dos outros, o Pai celestial também lhes
perdoará.
Não faremos aqui uma teologia da oração, a questão será da
oração na nossa prática pessoal na espiritualidade pessoal. Essa oração é formada por algumas sentenças, mas o centro
dessa oração é no pedido pelo Reino. Essa oração está
Já falamos aqui, que a falta de oração é sintoma da falta de dentro do sermão do monte que é um sermão sobre o reino.
fé. Então, a busca da oração é uma busca também pela fé. A Todas as palavras dessa oração são sobre a vinda do reino.
Bíblia nos ensina a pedir sabedoria a Deus com uma oração Inicialmente, ele começa saudando o Pai como um Pai que é
de pedido. Tiago, em sua epístola, fala isso para mostrar nosso e está nos céus. Há duas interpretações acerca disso,
que a oração também é um pedido para enriquecimento da primeiro, que ele está falando com o Pai, alguém próximo
vida cristã, para que Deus nos fortaleça e nos dê sabedoria. que o aceitou como seu filho. Mas, “o que está no céu” nos
Mesmo na oração do Pai Nosso, uma oração modelo descrita remete a um outro trecho das Escrituras. Em Eclesiastes
em Mateus 6, Jesus Cristo ensina a pedir para que não 5, o pregador diz que: Deus está no céu, você está na terra.
caiamos em tentação. E essa oração do Pai Nosso é muito Portanto, sejam poucas as tuas palavras. A concepção de
interessante, pois, a partir dela, podemos tirar as lições de que há essa distância entre nós e Deus nos leva a medir
oração para nossa vida. nossas palavras. A oração nos leva a um pensamento sobre o
que estamos orando. Partimos da compreensão que estamos
falando com alguém de uma natureza diferente, mas este
Em Mateus 6:9-14 diz: alguém, também é nosso Pai e nos faz participantes dessa
família e dessa natureza. Continuamos com respeito e com
Vocês, orem assim: ‘Pai nosso, que estás nos céus! a compreensão de que Deus está acima de todas as coisas
Santificado seja o teu nome. Venha o teu Reino; seja feita e Ele é o Rei, mas que nós somos filhos e podemos nos
a tua vontade, assim na terra como no céu. Dá-nos hoje o achegar a Ele. Essa tensão da liberdade e da soberania e
nosso pão de cada dia. Perdoa as nossas dívidas, assim supremacia divina estão presentes aqui.
como perdoamos aos nossos devedores. E não nos deixes
cair em tentação, mas livra-nos do mal, porque teu é o Reino,

34
Posteriormente, começam os pedidos, entre eles, “santificado aqui na terra, haja um reinado de Deus com a vontade de
seja o Teu nome”. Isso, nada mais é do que pedir que Deus Deus amplamente sendo obedecida da mesma maneira que
faça Seu nome santo na nossa vida. Esse é um pedido para é no céu. No céu, é obedecida de uma maneira de muito
a santificação de Deus em nós. No Salmo 23, o salmista prazer e alegria pois a vontade de Deus é boa, perfeita e
fala que Deus nos guia no caminho da justiça por amor do agradável. No céu, na comunhão com Deus, onde estão todos
Seu próprio nome. Deus é zeloso da sua própria reputação. submetidos à vontade de Deus, há harmonia e paz. Não há
O nome de Deus é santificado na nossa caminhada. Um morte, desigualdade, destruição. O pedido é para que Ele seja
mandamento, por exemplo, de não tomarmos o nome de santificado em nós, mas também, pelo mundo. Para que na
Deus em vão, é um mandamento que traz um verbo que não terra haja a paz, a paz do Reino de Deus que é estabelecida
é apenas sobre falar, mas de carregar o nome de Deus em com todos submetidos a esse reinado de paz e harmonia.
vão. O povo que em II Crônicas 7:14 é “chamado pelo Teu
nome” é o povo que carrega o nome de Deus no mundo. O versículo seguinte, é um pedido que parece um tanto
Então, “santificado seja o Teu nome” é um pedido para que quanto pessoal. Parece que não tem a ver com o Reino.
nos santifiquemos e sejamos santificados em Deus e o nome “O pão nosso de cada dia nos dá hoje” tem algumas
dEle seja santo em nós. Assim se completa o “Venha o Teu interpretações do que significa “de cada dia”, pois esse termo
Reino, faça-se a Tua vontade assim na terra, como no céu”. é exclusivo na Escritura. É um termo muito raro inclusive
É a vontade de Deus sendo feita na nossa vida da mesma na literatura grega antiga. Não sabemos exatamente se o
maneira como é feita no céu que o Reino de Deus está termo significa “cada dia” ou “até amanhã” pois há algumas
sendo estabelecido sobre nós e o nome de Deus está sendo possibilidades neste termo. De qualquer forma, lendo de
santificado. “Venha o Teu Reino” é “Reina sobre nós”. forma traduzida esses versículos, “O pão nosso de cada dia
nos dá hoje”, independente de como se interprete “de cada
O Reino de Deus é a manifestação da vontade de Deus e dia”, também é um pedido pelo Reino, pois nesse mesmo
onde há submissão a Deus, ali é o Reino de Deus. O Reino capítulo, Jesus vai nos ensinar sobre o pão. Um pouco a
de Deus acontece onde a criação, os anjos e as pessoas frente, a partir do versículo 25, Jesus fala sobre andarmos
se submetem à vontade de Deus. Ali o reinado de Deus se ansiosos pela nossa vida e pelo que haveríamos de comer ou
estabelece. Estes princípios compõem esse pedido de que beber, dando também, dois exemplos: os pardais e os lírios
o Reino de Deus se estabeleça de uma vez por todas. Que, do campo.

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Por causa disso, sabendo-se que Deus é quem providencia o A fé no perdão de Deus nos libera para perdoar os outros.
pão e o sustenta, busque em primeiro lugar o Reino de Deus É o que aprendemos na parábola do Credor incompassivo.
e a sua justiça. E as demais coisas serão acrescentadas no Quem muito foi perdoado, não pode negar o perdão para o
caminhar de nós buscarmos o Reino de Deus. Então, quando outro pois ele sabe que Deus o perdoou de uma dívida muito
pedimos pelo pão, na oração do Pai Nosso, a resposta ao grande como também perdoa a dívida do outro. Então, se
pedido do pão já está na busca do Reino. Deus perdoa a dívida de ambos, porque você não vai perdoar
o outro? No versículo 14, Jesus vai finalizar dizendo que,
Buscar o Reino e a justiça é buscar de fato que Deus reine em se perdoarmos, seremos perdoados. Se não perdoarmos,
nossas vidas e não nós sobre nós mesmos. É buscar fazer a também não seremos perdoados pois é característica de
justiça de Deus vivendo na retidão de Deus nesse caminhar quem não faz parte desse Reino.
garantido de que Ele irá nos sustentar. Mesmo no pedido do
pão, é um pedido pelo Reino. Se o Reino está sendo buscado Ao pedir que não caiamos em tentação, Jesus completa o
por nós, o pão também virá. Esse Reino é o Reino do perdão pedido de fazer a vontade de Deus. Já num aspecto mais
que foi compreendido por Paulo em Colossenses, onde pessoal e não só terreno. Que seu Reino seja estabelecido
Deus nos tirou do império das trevas e nos transportou para em cada um de nós de tal maneira que não caiamos em
o Reino do Filho do seu amor, no qual temos o perdão dos tentação. Assim, seremos livres do mal, ainda que vivamos
pecados. Se participamos do Reino do perdão, o que nos neste mundo assim como Jesus pediu ao Pai na oração
caracteriza é o perdoar. É por isso, que essa oração envolve sacerdotal.
o compromisso do perdão. “Perdoa as nossas dívidas como
nós perdoamos” não é uma condicional de Deus de que se A nossa oração é sempre uma oração de pedido do Reino,
eu não perdoo, Deus consequentemente não me perdoa. No pois essa é uma oração modelo. Isso nos ensina que na
entanto, é uma característica do Reino perdoar. Faz parte de prática da oração, queremos a vontade de Deus sendo feita
quem crer em Jesus Cristo viver uma vida de perdão e por em nós e no mundo. Toda oração é assim, pois toda oração
isso sabemos que Deus nos perdoa também porque vivemos é uma oração de submissão à vontade de Deus. Até a oração
o perdão para com o outro. do Senhor Jesus Cristo foi uma oração de submissão à
vontade de Deus. Ele orou dizendo: Pai, se possível, passe

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de mim esse cálice, contudo, seja feita a Tua vontade e não a que o pai tinha de garantir um alimento saudável ao filho.
minha. Neste momento, Jesus Cristo os ensina uma oração Nesse mesmo sentido, está a nossa relação de oração com
em submissão à Deus. Toda oração é submetida à vontade de Deus. Deus pode abençoar em resposta a uma oração. Se
Deus e não de querer mover Deus. Não tomamos o controle o filho não ora, ele não recebe imediatamente o que pede,
de Deus para que Ele faça o que queremos, antes, nos embora receba posteriormente, pois os planos de Deus não
submetemos para que Ele faça o que deseja em nós. podem ser frustrados. O verdadeiro intuito da oração não é a
bênção imediata, mas a relação. O filho ao pedir algo ao pai
Citando uma frase de Alexandre Milhoranza: Deus não é um e receber, recebe também um carinho. Da mesma maneira,
resolvedor de problemas, Deus é um resolvedor de pessoas. quando o pai se recusa a dar o que o filho pede, é porque
O complemento máximo da oração não é a bênção material, não é o melhor para ele. Tudo isso se torna carinho pois ele
justiça ou cura, mas em Deus resolver sua vida na comunhão recebe esse carinho no sim e no não.
com Ele. A bênção final é a comunhão com Deus.
A oração nos leva a esse conhecimento. Sem oração você
Imagine a cena de um pai e de um filho. O pai faz um não tem esse tipo de experiência com Deus. Por isso,
churrasco e o filho lhe pede um pedaço de carne. O pai tira devemos orar para conhecer mais de Deus. Nessa relação
um pedaço e dá ao filho. Se o filho não pedisse a carne, o você vai conhecendo mais de Deus e crescendo nessa
Pai lhe daria carne? Não. No entanto, o filho também não intimidade com Deus. A oração é uma característica típica
passaria fome porque o pai já estava fazendo o almoço e e essencial da nossa relação com Deus. Sem oração, a sua
iria provê a refeição ao filho. Foi uma resposta imediata relação estará sendo limitada.
da oração, mas que não mudou o plano que o pai tinha de
prover o almoço ao filho. Agora, esse mesmo pai e filho Quando falamos sobre disciplinas espirituais, uma temática
estão andando na rua às 11:30 da manhã no dia seguinte vem à tona. Falaremos então sobre o jejum.
e o filho pede um sorvete ao pai. O pai, o contraria, pois o
almoço o aguardava e o sorvete certamente atrapalharia O jejum tem sido tratado recentemente em muitas literaturas
que ele comesse o almoço. Nesse momento, o pai recusou clássicas como uma disciplina espiritual. Uma maneira
o pedido do filho porque esse pedido ia contra o plano de conter o corpo as vontades e índole pecaminosa. Mas,

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na concepção de disciplinas espirituais que estamos desejando alcançar algo ou até para ser santificado. O jejum
trabalhando nas aulas, o jejum não aparece dessa maneira é uma expressão da oração. Costumo fazer uma relação com
no Novo Testamento. Se as disciplinas espirituais servem o ajoelhar-se. Ajoelhar-se para orar não faz a oração mais
para nos fortalecer no nosso caminhar na santidade, o jejum poderosa ou torna o indivíduo mais santo, por que então
não aparece dessa maneira. Quando Paulo fala sobre cuidar deveria ajoelhar-se? Às vezes, você desejará expressar-se
das práticas nos finais de suas cartas, ele nunca cita o jejum ajoelhando-se diante de Deus. Como uma expressão não
como maneira de se santificar. Há Jejum no Antigo e no verbal de adoração e contrição a Deus. O jejum, é uma dessas
Novo Testamento, mas há uma ruptura demonstrada por expressões não verbais. Um fruto de uma postura interna. Ele
Jesus Cristo quando Ele fala sobre o vinho novo e o vinho não é um meio de santificação ou mortificar o corpo. Quando
velho. É no contexto de jejum no evangelho de Marcos que Paulo cita o mortificar a carne, refere-se a deixar obras
esse tema surge. Os discípulos de João jejuavam e nós ímpias. No novo testamento, o jejum aparece como uma
também jejuamos, por que então, os discípulos de Jesus não expressão de um coração arrependido e quebrantado.
jejuavam? – O fariseu pergunta a Jesus. Jesus fala que eles
não vão jejuar enquanto o noivo está entre eles, mas que Essa prática nos mostra que jejuar pouco não tem a ver com
haverá o tempo em que este será tirado e então eles jejuarão. ser menos ou mais espiritual. Quem jejua não é mais santo e,
se pensa assim, estará caindo no pecado do orgulho. Jesus
Jesus fala do jejum como uma prática típica do vinho velho, ensinou acerca do jejum dizendo que quando jejuarmos, não
ele não está abolindo o jejum, mas está dando uma nova façamos como os hipócritas que desejam ser vistos, mas
forma para o jejum. Além de todas as práticas religiosas. fazendo no secreto. O jejum não é proibido e nem é mal, no
Práticas que são moldadas por um vinho novo. A nossa entanto, também não é disciplina espiritual, mas parte da
vida cristã e a realidade de Cristo em nós, molda as nossas oração.
práticas religiosas. O jejum é moldado por uma nova
prática. Se na antiguidade o jejum era uma demonstração de
arrependimento e, às vezes, até numa iniciativa de convencer
a Deus de alguma maneira, na nova aliança, o jejum era uma
mera expressão à Deus. Ele é externar do vinho novo que
temos. Quando ficamos tristes, podemos jejuar, mas não

38
AULA 6 – AS DISCIPLINAS ESPIRITUAIS característica momentânea na vida de um crente, não
COMUNITÁRIAS necessariamente uma realidade perene. A plenitude do
Espírito é experimentada, mas não é uma característica

E
ssa aula, será sobre as Disciplinas Espirituais permanente. Quem tem o Espírito, não necessariamente é
Comunitárias e de como a espiritualidade cristã cheio do Espírito. Recebe-se o Espírito quando crê, mas a
se manifesta na comunidade. Falamos na primeira plenitude do Espírito é um desafio que tem sido feito, por
aula, que a espiritualidade cristã não é pessoal, puro e exemplo, por Paulo escrevendo aos Efésios, que já eram
simplesmente, mas também insere o adepto em uma crentes, para que eles se encham do Espírito. Ou também,
comunidade, uma família, um corpo. Como essa vida cristã quando Paulo fala aos Gálatas que eles deveriam dar os
se manifesta na comunidade? frutos do Espírito. Se eles vivem no Espírito, devem andar
no Espírito. São realidades diferentes da comunhão com o
Espírito Santo. Isso parte de uma edificação, da construção
Para abordarmos essa questão no paradigma e ser bíblico
do caráter de Cristo. Vamos sendo edificados em nossas
em tudo que fazemos, temos um texto muito importante.
disciplinas individuais, mas também, e principalmente, na
comunidade.
Não se embriaguem com vinho, que leva à libertinagem, mas
deixem-se encher pelo Espírito, falando entre si com salmos,
Para se encher do Espírito, Paulo fala de aspectos que são
hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando de coração
comunitários. Ele diz “enchei-vos do Espírito” no plural e diz
ao Senhor, dando graças constantemente a Deus Pai por
formas de se encher do Espírito que são marcadas pelos
todas as coisas, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo.
gerúndios.
Sujeitem-se uns aos outros, por temor a Cristo. (Efésios 5:18-
21).
Inicialmente, o que precisamos entender do texto é
que "enchei-vos do Espírito” está num tempo um pouco
Esse trecho fala sobre a plenitude no Espírito, sobre nos
diferente no grego que dá uma ideia mais passiva. Não é
enchermos do Espírito. Esse termo fala sobre uma comunhão
que nós tomamos do Espírito e nos enchemos como se nós
intensa com Deus, na qual o Espírito tem o domínio. Onde
fossemos responsáveis por isso, mas está um pouco mais
o indivíduo é totalmente submetido à Deus. Isso é uma

39
no sentido de deixar ser enchido pelo Espírito. Isso tudo em Quando cantamos salmos e hinos em comunidade, louvamos
comunidade. a Deus, mas o fruto disso é edificação mútua. Deus não
é inseguro e precisa ser elogiado. Deus é absolutamente
O primeiro gerúndio utilizado é “falando entre vós com satisfeito em si. Quando nós louvamos a Deus, fazemos isso
salmos, hinos e cânticos espirituais”. Esse texto é um porque somos adoradores. Há um aspecto importante nessa
paralelo ao que está escrito em Colossenses 3:16. adoração que não é meramente do nosso viver. O nosso viver
adora a Deus, mas a adoração separada e pública tem seu
lugar. Pensemos isso a partir de Gênesis.
Habite ricamente em vocês a palavra de Cristo; ensinem
e aconselhem-se uns aos outros com toda a sabedoria, e
cantem salmos, hinos e cânticos espirituais com gratidão a Existe no dia do descanso da criação um modelo para os
Deus em seus corações. judeus separarem um dia. O dia do descanso de Deus nos
comunica que Deus é diferente da criação e de todas as
mitologias antigas em que os deuses estavam associados à
O autor coloca, nesse verso, a importância da adoração criação. Se eles resolvessem descansar, o sol não nascia, o
comunitária. De falarmos entre nós e cantarmos juntos vento não soprava. Deus, no entanto, descansou no sétimo
salmos, hinos e cânticos espirituais. Isso é muito importante dia e o dia aconteceu como os outros seis. Deus descansou
por vários motivos, primeiro, porque é um testemunho e o mundo funcionou. Isso significa que Deus é Deus e as
comunitário e fé, por isso, os que cantam em Colossenses coisas são as coisas. Os judeus, quando santificavam o
são os que tem a Palavra habitando ricamente neles. Então, sétimo dia, ainda que entendesse que Deus era glorificado
se a Palavra de Cristo habita ricamente neles, eles só irão em tudo o que fazia, o judeu separava um dia para lembrar
cantar o que tem a ver com a Palavra de Cristo. que essa existência não é sobre ser correto nas ações. Essa
existência tem seu sentido no Deus que está para além
Há alguns intérpretes que vão fazer uma diferenciação de dessa existência. O mundo funciona em si e aqueles que
salmos, hinos e cânticos espirituais, como se cada um deles negam a Deus também vivem nesse mundo onde o sol nasce
fossem coisas diferentes. Não abordaremos isso, mas você sobre justos e injustos, mas o que tem sua consciência
pode buscar opiniões divergentes sobre o assunto. transformada busca esse Deus que está fora dessa
existência.

40
O nosso entendimento do Novo Testamento é que Jesus é tão importante a adoração comunitária. Não devemos nos
Cristo era maior que o sábado e que em Jesus nós afastar do culto público. As músicas cantadas devem ser
encontramos nosso descanso. Nessa comunhão com levadas a sério. As letras cantadas devem ser de alguém que
Jesus, encontramos Deus. Contudo, existe um aspecto da tem a Palavra habitando ricamente no coração
comunhão com Deus que está na adoração separada das
coisas. Achar que por simplesmente viver uma vida correta, Um outro gerúndio que o autor vai colocar no texto é em
confundirá facilmente as coisas boas que faz como sendo Efésios é “dando sempre graças por tudo a nosso Deus e
fim em si mesma. O trabalhador não trabalha apenas para Pai”. Esse “dar graças” é também uma questão comunitária,
adorar a Deus, mas também para receber seu salário. Se pois está dentro do mesmo ponto de pluralidade. Nós
tiramos Deus da equação, as coisas continuarão existindo. fazemos súplicas uns pelos outros. Somos ensinados na
Rapidamente, poderá perder o fundamento do seu trabalho. Palavra de Deus a ir ao Senhor levando as nossas súplicas
e a orarmos uns pelos outros, mas também, precisamos
A adoração pública direta a Deus, separada das outras lembrar de agradecer uns pelos outros.
coisas, nas quais fazemos afirmações verdadeiras a respeito
de Deus, fundamentará todas as outras práticas. Se adoro Geralmente, algumas igrejas fazem cultos de oração que
a Deus verdadeiramente e de coração, o beneficiado sou tem sido substituída pelas células, e desde que, as práticas
eu mesmo. Retomando a consciência de que em tudo, sou e adoração comunitária não sejam comprometidas, pouco
adorador. importa o método. Nessas ocasiões, há um aspecto muito
bonito que é orar pelo próximo. Pedindo, suplicando e
Na minha compreensão pessoal, o domingo não é um intercedendo pelo próximo assim como a Igreja se reuniu
substituto do sábado, mas ainda assim, tirar um dia para isso para orar por Pedro, quando estava preso. Onde seu pedido
é benéfico. Estar em adoração comunitária é benéfico, porque pessoal não está em primeiro lugar, mas o do próximo.
isso o lembrará de que é um adorador. Lembrará também que
todos somos uma comunidade. Vai colocar o caráter do Deus Não apenas isso, mas com gratidão pela vitória do outro ou
que é exaltado no corpo, colocando o cabeça como cabeça. pela graça que Deus deu ao outro. Assumir isso é conseguir
Na adoração, entronizamos Deus no nosso coração. Por isso, completar o que fomos ensinados a fazer de sorrir com os

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que sorriem e chorar com os que choram. Quando temos na mas me submeto a ele enquanto ele representa a vontade de
Igreja um irmão adoentado e ficamos agitados em nosso Deus.
sono por causa daquela vida. Acordamos na madrugada e
oramos. O sentimento de sentir a dor do outro se completa Em vários momentos, Jesus se encontrou com pessoas
também na gratidão. Quando nos alegramos e agradecemos pedindo coisas a elas. Lugar para comer a Zaqueu, água à
a Deus pelo irmão que foi abençoado como se fosse uma mulher samaritana. Ele se manifesta às pessoas pedindo
benção para nós mesmos. Esse tipo de fortalecimento coisas a elas. Ele pede, mas ele mesmo dá. Quando
comunitário está na oração e por isso nós damos graças por pede a um garoto pães e peixes, ele mesmo multiplica a
tudo a nosso Deus e Pai. Nisso, nós também somos em tudo, multidão. Nesse sentido, Jesus continua se apresentando
agradecidos. Aprender a agradecer em todos os momentos é a nós pedindo. Por isso, cada vez que ajudamos uns dos
parte também de uma disciplina espiritual. pequeninos é a Ele que estamos ajudando. Precisamos nos
sujeitar ao outro para encontrarmos Jesus Cristo nessa
Das disciplinas colocadas aqui, a mais comunitária é a de obediência.
nos sujeitarmos uns aos outros. Isso contribui para que
sejamos cheios do Espírito. Considerar o outro superior a nós Esse texto não reúne todas as disciplinas espirituais, pois
mesmos é imitar a atitude de Jesus Cristo como é relatado há muitas outras disciplinas comunitárias. Por exemplo, a
em Filipenses 2. Isso é parte de ser cristão. Você é parte da admoestação mútua e até a disciplina eclesiástica é uma
Igreja para se sujeitar aos outros. Se você deseja ter uma disciplina espiritual. A Bíblia fala que estas coisas têm
espiritualidade verdadeira que é vida cristã, você precisa como fim o arrependimento que nos leva a um caminhar
imitar Jesus Cristo sujeitando-se ao próximo. Pois nem o santificado. Quando no sermão eclesiástico de Mateus 18,
Filho do Homem veio para ser servido, mas para servir e dar a Jesus orienta a como se deve tratar e disciplinar as pessoas,
sua vida em resgate de muitos. Ele está apontando para que a comunhão perdida pelo
pecado seja restabelecida. Mesmo que chegue ao limite de
Sujeitar ao outro no temor do Senhor, significa que se eu tratar alguém como gentio e publicano.
me sujeitar ao outro, estarei me sujeitando ao Senhor. Não
obedeço a todas as vontades mesquinhas e cruéis do outro,

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A maneira como a disciplina eclesiástica vai sendo Todo o povo juntou-se como se fosse um só homem na
desenvolvida naquele texto, é sempre com finalidade de praça, em frente da porta das Águas. Pediram ao escriba
arrependimento. Se há arrependimento, não é necessária Esdras que trouxesse o Livro da Lei de Moisés, que o Senhor
disciplina. Claro que pode haver necessidade de reparação dera a Israel. Assim, no dia primeiro do sétimo mês, o
em casos de roubo, por exemplo. Nos congregamos juntos sacerdote Esdras trouxe a Lei diante da assembleia, que era
para a admoestação mútua, para nos fortalecer e perseguir constituída de homens e mulheres e de todos os que podiam
a verdade em amor para não sermos levados por ventos de entender. Ele a leu em voz alta desde o raiar da manhã até
doutrinas. o meio-dia, de frente para a praça, em frente da porta das
Águas, na presença dos homens, mulheres e de outros que
Uma outra disciplina é a instrução. A instrução da Palavra podiam entender. E todo o povo ouvia com atenção a leitura
de Deus se dá num ambiente comunitário. Nós juntos, do Livro da Lei. O escriba Esdras estava numa plataforma
conversamos sobre a Bíblia. Ouvimos o pregador que elevada, de madeira, construída para a ocasião. Ao seu lado,
proclama a Palavra e dá uma identidade doutrinária para à direita, estavam Matitias, Sema, Anaías, Urias, Hilquias e
nossa caminhada. Nessa identidade, somos formados Maaséias; e à esquerda estavam Pedaías, Misael, Malquias,
comunitariamente. Hasum, Hasbadana, Zacarias e Mesulão. Esdras abriu o
livro diante de todo o povo, e este podia vê-lo, pois ele
estava num lugar mais alto. E, quando abriu o livro, o povo
Neemias é um livro escrito no retorno do exílio. Ele conta todo se levantou. Esdras louvou o Senhor, o grande Deus, e
a história do retorno do exílio escrevendo a um povo que todo o povo ergueu as mãos e respondeu: "Amém! Amém!
também retornou do exílio. Há uma preocupação em " Então eles adoraram o Senhor, prostrados, rosto em terra.
Neemias - assim como em Crônicas e Esdras por exemplo Os levitas Jesua, Bani, Serebias, Jamim, Acube, Sabetai,
- em que há uma necessidade de demonstrar que há uma Hodias, Maaséias, Quelita, Azarias, Jozabade, Hanã e Pelaías,
continuidade entre o povo que saiu e foi para o exílio e o povo instruíram o povo na Lei, e todos permaneciam ali. Leram o
que retornou. Essa continuidade está no sacrifício no templo, Livro da Lei de Deus, interpretando-o e explicando-o, a fim de
na adoração, no sacerdote. Mas também, na Lei. Em Neemias que o povo entendesse o que estava sendo lido. (Neemias
8, Esdras pega a Lei, chega diante do povo e lê. 8:1-8).

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O texto diz que todo o povo, que já estava em suas cidades renovação da nossa mente. Renovamos nossa mente pela
em Israel, se juntou como um só homem. Essa expressão Palavra e somos então, transformados nas nossas obras.
em Neemias e Esdras é sempre usada quando alguma
característica do templo, sacerdócio ou da Lei é evidenciada. Efésios 4 Paulo escreve que eles precisam se renovar no
Sempre que é evidenciada publicamente os autores falam espírito do seu entendimento. Eles têm o entendimento já
que o povo estava como um só homem. O sentido da renovado pela Palavra, mas precisam renovar as práticas
unidade está nessas coisas. Aqui, está especificamente na desse mesmo espírito. Em I Coríntios 2, Paulo fala que temos
Lei. O povo, como um só homem diante de todos os outros a mente de Cristo. Somos levados até a nossa consciência
personagens que lá estão. O povo ouve, vê, fica de pé, transformada pela Palavra para pensarmos como Jesus.
ajoelha-se, adora, festeja a graça de Deus, se entristece no Se todos nós pensarmos como Jesus pela Palavra de Deus,
momento de quebrantamento, todos juntos. Pois a Lei Senhor teremos um modo de pensar. As nossas distinções de
é unidade para nós. Por isso, a instrução é uma instrução pensamento, ainda que residam pela limitação do espírito,
única para a comunidade toda. A comunidade participa, e temos ainda pontos obscuros que nos fazem ter certos
orienta, julga profecia, mas a visão é que haja unidade na debates, ela nos leva a uma unidade. De forma unânime,
Palavra. Somos ensinados na Palavra de Deus a sermos tendo um mesmo modo de pensar.
unânimes, tendo o mesmo modo de pensar pois sempre
que caminhamos na edificação da nossa mente das nossas
práticas, estamos nos tornando, cada vez mais, um. Isso, transformamos em práticas verdadeiras que nos levarão
à unidade. Levando ao fim último da espiritualidade cristã.
Não é um fim em nós, mas é o que o Apóstolo Paulo fala:
A nossa unidade em Jesus Cristo é o fruto último da Cristo é tudo em todos.
espiritualidade cristã. Nossa unidade como um nos unindo
a Jesus Cristo, sendo Deus em nós um, assim como somos
um uns com os outros. Jesus Cristo pede isso em sua oração Em Colossenses 3, diz que precisamos pensar nas coisas
sacerdotal em João 17. Para além disso, a espiritualidade do alto, na vida que está escondida com Cristo, então,
verdadeira, individual e comunitária vai nos identificando precisamos viver aqui daquela vida que será manifestada no
com Cristo a partir da nossa mente. Somos ensinados em futuro. E quando ela for manifestar, Jesus Cristo manifestará
Romanos 12 que nós precisamos nos transformar pela conosco. Isso nos levará a uma mudança de práticas.

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Abandonando as práticas ruins, se revestindo das boas. E no batismo, uma nova vida. Uma morte e uma ressurreição
nessas boas práticas, acima de tudo, que esteja o amor, que da vida de Cristo em nós. Somos um neste corpo, e é por
é o vínculo da perfeição. E isso nos levará a uma plenitude de isso que as ordenanças são sempre feitas com o fim de
unidade. edificação e comunhão, pois sempre caminharemos para
termos uma unidade. Nas disciplinas, no entendimento da
Nessa nova vida já não há diferença entre grego e judeu, Palavra e nas ordenanças. Que tudo que seja visto e ouvido
circunciso e incircunciso, bárbaro e cita, escravo e livre, mas de nós seja Jesus Cristo, assim como falou São Patrício, em
Cristo é tudo e está em todos. (Colossenses 3:11). sua oração. Que em tudo em nós, Jesus Cristo seja visto,
conhecido. Nessa comunhão de cristãos, daqueles que
imitam a Jesus Cristo.
Isso significa que Cristo é tudo em cada um de nós. Cada
pensamento é pensamento de Cristo e cada prática, prática
de Cristo. Se eu já não sou mais eu e é Cristo que habita em
mim, nele, e em todos, significa que já não há divisão. Cristo
é tudo em mim, e todos nós juntos somos um só, Cristo.

Cristo é essa unidade da espiritualidade. Nós nos unimos a


Ele Nessa nova vida já não há diferença entre grego e judeu,
circunciso e incircunciso, bárbaro e cita, escravo e livre, mas
Cristo é tudo e está em todos. Nós nos unimos a Ele e nos
unimos uns aos outros nELe, e assim, a unidade é formada.

Karl Barth diz em seu artigo sobre o cristão na sociedade que


o cristão é aquilo em nós, que não somos nós, mas Cristo em
nós. Nesse sentido, minha oração é que todos nós sejamos
cada vez mais cristãos e fato. Que assim, Jesus Cristo seja
tudo em cada um de nós. Celebramos isso no sacramento e

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