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4ª semana de

DIREITOS HUMANOS

Construção da Paz e
Segurança Internacional
03, 04 e 05 de junho de 2013

Observatório de
Direitos Humanos
UFSC

ISBN 978-85-86265-98-3
Multideia Editora Ltda.
Alameda Princesa Izabel, 2.215
80730-080 Curitiba – PR
+55(41) 3339-1412
editorial@multideiaeditora.com.br

Conselho Editorial
Marli Marlene M. da Costa (Unisc) Luiz Otávio Pimentel (UFSC)
André Viana Custódio (Unisc/Avantis) Orides Mezzaroba (UFSC)
Salete Oro Boff (Unisc/IESA/IMED) Sandra Negro (UBA/Argentina)
Carlos Lunelli (UCS) Nuria Bellosso Martín (Burgos/Espanha)
Clovis Gorczevski (Unisc) Denise Fincato (PUC/RS)
Fabiana Marion Spengler (Unisc) Wilson Engelmann (Unisinos)
Liton Lanes Pilau (Univalli) Neuro José Zambam (IMED)
Danielle Annoni (UFSC)

Coordenação Editorial e revisão: Fátima Beghetto


Projeto gráfico, capa e diagramação: Sônia Maria Borba

Realização: Observatório de Direitos Humanos da UFSC


Editora-chefe: Danielle Annoni
Coeditora: Eduarda Ramos de Souza
Coeditor: Felipe Orsolin Muller
Fotografia e arte: Comissão Executiva do Observatório de Direitos Humanos
Fotógrafo: Felipe Muller

CPI-BRASIL. Catalogação na fonte


Semana de Direitos Humanos da UFSC (4: 2014: Florianópolis, SC)
S471 Construção da paz e segurança internacional: anais da quarta Semana de Direitos
Humanos da UFSC [recurso eletrônico] / Universidade Federal de Santa Catarina; organização
Danielle Annoni [et al.] – Curitiba: Multideia, 2014.
656p.; 23 cm.

ISBN 978-85-86265-98-3
1. Direitos humanos. I. Universidade Federal de Santa Catarina. II. Título.
CDD 342(22.ed)
CDU 342.7

Distribuição gratuita – Uso não comercial


Permitida a reprodução de partes, desde que citada a fonte.

O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES,


entidade do Governo brasileiro voltada para a formação de recursos humanos.
ANAIS DO EVENTO

4ª Semana de Direitos Humanos

Construção da Paz
e Segurança Internacional

Florianópolis – SC

Curitiba

2014
EDITORIAL

A
Semana de Direitos Humanos da UFSC nasceu em 2010
da iniciativa de um grupo de alunos do Curso de Re-
lações Internacionais com objetivo de estudar mais
profundamente as conexões deste tema da agenda internacional e
seus reflexos no Brasil.
Influenciados pela Primavera Árabe, como ficou conhecido o
movimento de democratização dos Estados Árabes, no ano de 2011,
o tema do evento centrou-se na discussão sobre a importância da
adoção do regime democrático no mundo e sua contribuição para o
reconhecimento e a efetivação dos direitos de todos.
Na terceira edição, o evento celebrou o aniversário da Decla-
ração Francesa de Direitos Humanos (1789), que no ano de 2012,
comemorou, em 26 de agosto, seus 223 anos de inspiração aos ideais
de liberdade e reconhecimento de direitos.
Em 2013, a quarta edição do evento teve por tema “a cons-
trução da paz e a segurança internacional”, tema que reúne estudos
da linha de pesquisa de igual título do mestrado em relações inter-
nacionais da UFSC, bem como da linha de pesquisa do mestrado em
direito e relações internacionais também da UFSC, que versa sobre
regionalismo, globalização e atores internacionais.
Pensado para ser um evento de integração, reuniu, nesta
edição, docentes e discentes de vários cursos e universidades, mas
também pesquisadores estrangeiros, funcionários internacionais,
fotógrafos e profissionais das mais diversas categorias, todos com
o intuito de fomentar o debate acerca da promoção e efetivação dos
direitos humanos no Brasil e também no plano internacional.
Nesta edição o evento contou não apenas com palestras e
mesas de discussão, mas com quatro minicursos, elaborados por es-
pecialistas para pequenos grupos, possibilitou uma interação ainda
maior entre docentes e discentes, que se reuniram mais de uma vez
durante o evento, em períodos mais longos, para discutir casos prá-
ticos e propor soluções concretas.
Com efeito, o evento cumpriu mais uma vez com seu objetivo
de integrar pesquisadores, estudantes e profissionais em torno da
promoção dos direitos humanos.
Esperamos que este relato do trabalho silencioso de muitos
possa servir de inspiração para outras iniciativas desta natureza, em
prol dos direitos humanos e seus instrumentos indispensáveis.
Boa leitura!
Danielle Annoni
Coordenação do Observatório
de Direitos Humanos da UFSC

Juliana Viggiano
Coordenação do Observatório
de Direitos Humanos da UFSC

6 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
SUMÁRIO

1 Programação da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC.................... 13

2 Atividades de Cidadania da 4ª Semana.................................................... 25


Doação de alimentos............................................................................. 26
Tango..................................................................................................... 28

3 Relatório das Atividades da 4ª Semana de Direitos Humanos................. 31


Cerimônia de Abertura......................................................................... 32
Por: Priscilla Batista da Silva
Palestra de abertura: A Paz como Imperativo de Proteção aos
Direitos Humanos: conflitos armados e intervenções humanitárias.. 34
Por: Mariana Serrano Silvério
Palestrantes: Dr.ª Gisele Ricobom e Dr.ª Danielle Annoni
Minicurso: “Brasil e as Missões de Paz”.............................................. 40
Por: Giana da Silva Wiggers
Coautoras: Jade Philippe dos Santos e Priscilla Batista da Silva
Painel: Justiça Internacional e o Paradigma Americano..................... 44
Por: Thyana C. Spode Conrad e Caroline Scotti Vilain
Palestrantes: Dr.ª Soledad Garcia Muñoz, Dr. Jayme Benvenuto Lima Jr.,
Dr. Cesar Oliveira de Barros Leal, Dr.ª Julia Barros Schirmer
Oficina: Migrações Internacionais no Mundo e no Brasil................... 50
Por: Mariana Serrano Silvério
Palestrantes: Dr.ª Rossana Rocha Reis, Dr. Andrés Ramirez e Dr.ª Mônica Teresa Costa
Souza.
Minicurso: “Empresas e Direitos Humanos: desafios para o
novo século”.......................................................................................... 56
Por: Letícia Ferreira Haines

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
7
OFICINA: Tráfico de Pessoas................................................................ 62
Por: Isadora Durgante Konzen
Palestrantes: Dr.ª Ela Wiecko Volkmer de Castilho e
Dr.ª Larissa Liz Odreski Ramina

Mesa de discussão: Segurança Internacional e Meio Ambiente......... 66


Por: Giana da Silva Wiggers e Mariana Serrano Silvério
Palestrantes: Dr.ª Fernanda Sola; Dr.ª Graciela de Conti Pagliari e
Dr.ª Susana Borràs Pentinat.

Minicurso: Feminismos são Direitos Humanos: Importância


e Desafios............................................................................................... 74
Por: Isadora Durgante Konzen
Palestrante: Dr.ª Lola Aronovich

Minicurso: Violação de direitos humanos e limpeza cultural


– A questão Bahai no Irã...................................................................... 80
Por: Mariana Serrano Silvério
Palestrante: Jonny Carlos da Silva
Debatedora: Msc. Valéria Zanette

Palestra de encerramento: “Direitos Humanos, Segurança


Internacional e Construção da Paz: Desafios o perspectivas”............ 84
Autora: Caroline Scotti Vilain

Exposição de fotos................................................................................. 88
Por: Ana Paula Althoff

4 Depoimentos dos Participantes................................................................ 91


Maíra Machado Rodrigues
Isabella Alonso Panho

5 Artigos Apresentados por Professores................................................... 95


O direito internacional dos conflitos armados como instrumento
de legitimidade para as intervenções humanitárias baseadas no
“R2P” em conflitos armados não-internacionais................................ 97
Priscila Fett

Refugiados econômicos e a questão do direito ao desenvolvimento...121


Mônica Teresa Costa Sousa
Leonardo Valles Bento

8 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
6 Artigos Apresentados na 4ª Semana de Direitos Humanos......................149

Programa eurosocial: estrutura e resultados........................................150


Stela Floriano Ayres

A ótica do acordo internacional da Previdência Social entre


Brasil-Itália como ferramenta de segurança internacional.................182
Maria José Jung Gonzalez

Hospitalidade ou hostilidade? O trabalho humano na sociedade


internacional 165 anos depois do Manifesto Comunista....................216
Rose Dayanne Santos de Brito

Os limites da liberdade de expressão na jurisprudência da Corte


Europeia de Direitos Humanos e o discurso de ódio contra as
minorias sexuais....................................................................................237
Thiago Dias Oliva

A proteçao aos direitos de crianças e adolescentes à luz da


doutrina da proteção integral: um estudo da normativa
internacional e interna em face da exposição dos sujeitos
à publicidade mercadológica.................................................................266
Fernanda da Silva Lima
Josiane Rose Petry Veronese

XENOFOBIA E PRECONCEITO NAS POLÍTICAS EUROPEIAS


DE IMIGRAÇÃO: a diretiva de retorno e seu impacto na proteção
dos direitos humanos da criança..........................................................294
Caroline Santos de Viera
Gustavo Oliveira de Lima Pereira

OS DIREITOS HUMANOS SOB A ÓTICA DO PARADIGMA


DA SOCIEDADE INTERNACIONAL: traços poermanentes e
duradouros de uma comunidade internacional global........................314
Juliana Graffunder Barbosa
José Renato Ferraz da Silveira

O “GLOBALISMO” DE IMMANUEL KANT E HANS KELSEN:


ideias sobre um projeto filosófico e um projeto jurídico para
alcançar a paz........................................................................................327
Brenda Luciana Maffei

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
9
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS NORMAS INTERNACIONAIS
DE DIREITOS HUMANOS: a criação do alto comissariado das
Nações unidas para os direitos humanos.............................................346
Matheus de Carvalho Hernandez

ASPECTOS INTRODUTÓRIOS SOBRE A CORTE INTERAME-


RICANA DE DIREITOS HUMANOS E SUAS DECISÕES....................378
Natasha Karenina de Sousa Rego

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO ORDENAMENTO


JURÍDICO DOS PAÍSES DO MERCOSUL............................................400
Isabella Alonso Panho
Beatriz Oliveira
Orientadora: Prof. Me. Juliana Kiyosen Nakayama

O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO E A PROTEÇÃO


DOS PRISIONEIROS DE GUERRA.......................................................420
Thalyta dos Santos

ZONA DE SEGURANÇA PARA REFUGIADOS: ALTERNATIVA


À QUESTÃO DOS REFUGIADOS....................................................446
Elisa Moretti Pavanello

A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS COMO UM OBSTÁ-


CULO AO ESTABELECIMENTO DE UM REGIME DEMOCRÁ-
TICO EM MYANMAR............................................................................460
Thamirys Mendes Lunardi

A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO HAITI: uma


recorrência histórica e seus reflexos na atual migração para
o Brasil...................................................................................................472
Marina Sanches Wünsch
Sandra Regina Martini Vial

COOPERAÇÃO PARA PROTEÇÃO DAS MULHERES EM


SITUAÇÃO DE CONFLITO ARMADO: O CASO DA REPÚBLICA
DEMOCRÁTICA DO CONGO................................................................491
Marília Lima Santos

MINUSTAH: AS DIFERENTES PERCEPÇÕES DE UMA LONGA


MISSÃO.................................................................................................510
Mayra Coan Lago

10 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A (IN)COMPATIBILIDADE ENTRE A SEGURANÇA
NACIONAL DOS ESTADOS E A PROTEÇÃO INTERNACIONAL
DOS REFUGIADOS...............................................................................533
Joanna de Angelis Galdino Silva

TERRORISMO: história e medidas em prol da segurança


internacional..........................................................................................556
Raíssa Teixeira Almeida de Souza
Daphne Martins Batista Antonio

ARMAMENTOS NUCLEARES: CONSIDERAÇÕES SOBRE


SEGURANÇA INTERNACIONAL E CONTRIBUIÇÕES LATINO-
-AMERICANAS.....................................................................................584
Rafael Augusto Masson Rocha
Cristian Ricardo Wittmann

A PROPOSTA DE CONSTRUÇÃO DA PAZ E DE SEGURANÇA


INTERNACIONAL DO ESTATUTO DE ROMA E A CONSTITUIÇÃO
BRASILEIRA..........................................................................................604
Bruno Arthur Hochheim

7 MAKING OFF –
A 4ª Semana de Direitos Humanos – Planejamento e Organização.........633

Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal de


Santa Catarina e a IV Semana de Direitos Humanos.........................634
Ana Paula Althoff

CAMISETA DO OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS.............652


EQUIPE..................................................................................................654

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
11
1

Programação
da 4ª Semana de
Direitos Humanos
da UFSC
Dia 3 de Junho

11hs: Credenciamento

14h00min: CERIMÔNIA DE ABERTURA

15h00min: Palestra de Abertura: A Paz como imperativo de Proteção aos


Direitos Humanos: conflitos armados e intervenções humani-
tárias

Local: AUDITÓRIO DO CCJ

Palestrante: Dra. Gisele Ricobom(UNILA)

Debatedor: Dra. Danielle Annoni (PPGD/UFSC)

16hs: Mini-Curso – Brasil e as Missões de Paz

Local: Sala 113 (CCJ)

Palestrante: Dra. Karine de Souza Silva (PPGD/UFSC)

Debatedor: MSc. Priscila Fett (USP)

17h30min: Painel - Justiça Internacional e o Paradigma Americano

Local: AUDITÓRIO DO CCJ

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
15
Palestrante: Dra. Soledad García Muñoz (Instituto Interamericano de Direitos
Humanos – Escritório América do Sul – Uruguay)

Palestrante: Dr. Jayme Benvenuto (UNILA)

Palestrante: Dr. Cesar Oliveira de Barros Leal (Instituto Brasileiro de Direitos


Humanos)

Debatedor: Dra. Julia Schiermer (Secretaria de Direitos Humanos da


Presidência da República)

Moderador: Dra. Juliana Viggiano (UFSC)

20h00min: Exposição Fotográfica

Local: HALL DO CENTRO SÓCIO-ECONÔMICO (CSE) E DA BIBLIOTECA


UNIVERSITÁRIA

16 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Dia 4 de Junho

09hs às 12hs: Workshop e Apresentação de Pesquisas

Tema: Construção da Paz nas Relações Internacionais


(trabalhos selecionados dentre os enviados pelos pesquisado-
res)

Local: AUDITÓRIO DO CSE E AUDITÓRIO DO CCJ

Grupo de Trabalho 1: Questões sociais e a dimensão internacional

Moderadora: MSc. Monica Duarte (Doutoranda PPGD/UFSC)

Local: Auditório do CSE


1. “Relatório EURO-Social” – Stela Floriano Ayres (UFSC/SC)

2. “A ótica do Acordo Internacional da Previdência Social entre Brasil-Itália


como ferramenta de Segurança Internacional” – Maria José Jung Gonzalez
(CEIRI/UFSC).

3. “Hospitalidade ou Hostilidade? O trabalho humano na sociedade


internacional 165 anos depois do Manifesto Comunista” – Rose Dayanne
Santos de Brito (UFPE/PE).

4. “Os limites da liberdade de expressão na jurisprudência da corte europeia de


direitos humanos e o discurso de ódio contra as minorias sexuais” – Thiago
Dias Oliva (USP/SP)

5. “A proteção aos direitos de crianças e adolescentes à luz da doutrina da


proteção integral: um estudo da normativa internacional e interna em face
da exposição dos sujeitos à publicidade mercadológica” – Fernanda da Silva
Lima (PPGD/UFSC); Josiane Rose Petry Veronese (PPGD/UFSC).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
17
6. “Xenofobia e preconceito nas políticas europeias de imigração: a diretiva
de retorno e seu impacto na proteção dos direitos humanos da criança” –
Caroline Santos de Viera (PUC/RS); Gustavo Oliveira de Lima Pereira (PUC/RS).

Grupo de Trabalho 2: Discussões teóricas e debates jurídicos

Moderadora: Klenize Favero (RI/UFSC)

Local: AUDITÓRIO DO CCJ


1. “Os Direitos Humanos sob a ótica do paradigma da sociedade internacional:
traços permanentes e duradouros de uma comunidade internacional global”
– Juliana Graffunder Barbosa (UFSM/RS); José Renato Ferraz da Silveira
(UFSM/RS).

2. “O „globalismo‟ de Immanuel Kant e Hans Kelsen: ideias sobre um projeto


jurídico para alcançar a paz” – Brenda Luciana Maffei (PPGD/UFSC).

3. “A institucionalização das normas internacionais de direitos humanos: a


criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos”
– Matheus de Carvalho Hernandez (UNICAMP/SP).

4. “Aspectos introdutórios sobre a Corte Interamericana de Direitos Humanos


e suas decisões” – Natasha Karenina de Sousa Rego (PPGD/UFSC).

5. “A dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico dos países do


Mercosul” – Beatriz Oliveira (UEL/PR); Isabella Alonso Panho(UEL/PR).

6. “O direito internacional humanitário e a proteção dos prisioneiros de guerra”


– Thalyta dos Santos (IDDH em Joinville/SC.)

14h30min: Oficina – Migrações Internacionais no Mundo e no Brasil

Local: AUDITÓRIO DO CCJ

Palestrante: Dr. Andrés Ramirez (ACNUR/BRASIL)

18 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Palestrante: Dra. Rossana Rocha Reis (USP)

Palestrante: Dra. Mônica Teresa Costa Sousa (UFMA)

Moderador: Dra. Danielle Annoni (PPGD/UFSC)

16hs: Minicurso – Empresas e Direitos Humanos: desafios para o


novo século

Local: Sala 113 (CCJ)

Palestrante: Dra. Denise Hauser(Alto Comissariado de Direitos Humanos das


Nações Unidas)

Moderador: Camila Dabrowski de Araújo Mendonça (Mestranda PPGD/


UFSC)

17h30min: Oficina – Tráfico de Pessoas

Local: AUDITÓRIO DO CCJ

Palestrante: Dra. Ella Wolkmer de Castilhos (UnB e Procuradoria da


República)

Palestrante: Dr. Paulo Abrão (Secretário Nacional de Justiça)

Palestrante: Dra. Larissa Liz Odreski Ramina (UFPR e UNIBRASIL)

Moderador: Dra. Juliana Viggiano (UFSC)

20hs: Exposição Fotográfica

Local: HALL DO CENTRO SOCIOECONÔMICO (CSE) E DA BIBLIOTECA


UNIVERSITÁRIA

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
19
20 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE
Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Dia 5 de Junho

09hs às 12hs: Workshop e Apresentação de Pesquisas

Tema: Jus Cogens Humanitário e Segurança Internacional

Local: AUDITÓRIO DO CSE E DO CCJ

Grupo de Trabalho 3: Instabilidade política e conflitos armados: propostas e


desafios

Moderadora: MSc. PRISCILLA CAMARGO (Doutoranda PPGD/UFSC)

Local: AUDITÓRIO DO CCJ


1. “Zona de segurança para refugiados: alternativa à questão dos refugiados”
– Elisa Moretti Pavanello (PPGRI).

2. “A violação dos direitos humanos como um obstáculo ao estabelecimento


de um regime democrático em Myanmar” – Thamirys Mendes Lunardi
(UFSC/SC).

3. “A violação dos direitos humanos no Haiti: uma recorrência histórica e


seus reflexos na atual migração para o Brasil” – Marina Sanches Wünsch
(Unisinos/RS); Sandra Regina Martini Vial (Unisinos/RS).

4. “Cooperação para Proteção das Mulheres em Situação de Conflito Armado: o


Caso da República Democrática do Congo” – Marília Lima Santos (UFPel/RS).

5. “MINUSTAH: as diferentes percepções de uma longa missão” – Mayra Coan


Lago (USP/SP).

6. “A (in) compatibilidade entre segurança nacional dos Estados e a proteção


internacional dos refugiados” – Joanna de Angelis Galdino Silva (PPGD/
UFSC).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
21
Grupo de Trabalho 4: Segurança Internacional

Moderador: Rafael Miranda (Doutorando PPGD/UFSC)

Local: AUDITÓRIO DO CSE


1. “O Universalismo e a Segurança Internacional: uma análise crítica sobre
a luta dos direitos humanos no discurso pós-moderno” – Isabella Lunelli
(PPGD/UFSC).

2. “Terrorismo: histórias e medidas em prol da Segurança Internacional”


– Raíssa Teixeira Almeida de Souza (UFGD/MS); Daphne Martins Batista
Antônio (UFMS/MS).

3. “Armamentos Nucleares: Considerações sobre Segurança Internacional


e Contribuições Latino-americanas” – Rafael Augusto Masson Rocha
(UNIPAMPA/RS); Cristian Ricardo Wittmann (UNIPAMPA/RS).

4. “O modelo de Consolidação da Paz das Nações Unidas: uma resposta eficaz


à conflitualidade?”– Ananda Martins (FEUC/Portugal).

5. “O Direito Internacional dos Conflitos Armados como instrumento de


legitimidade para as intervenções humanitárias baseadas no R2P em
conflitos armados nãointernacionais” – Priscilla Fett (USP/SP).

6. “A Proposta de Construção da Paz e de Segurança Internacional do Estatuto


de Roma e a Constituição Brasileira” – Bruno Arthur Hochheim (UFSC/SC).

14h30min: Mesa de Discussão – Segurança Internacional e Meio Ambiente


Local: AUDITÓRIO DO CCJ

Palestrante: Dra. Susana Borràs Pentinat (Universidad Rogiri i Virgili –


Tarragona – Espanha)

Palestrante: Dra. Fernanda Sola (UFSCar)

Palestrante: Dra. Graciela de Conti Pagliari (UFSC)


Debatedor: Dra. Vanessa Iacomini (UFF/RJ)

Moderador: Dr. Felipe Amin Filomeno (UFSC)

16hs: Minicurso – Feminismos são Direitos Humanos: Importância e


Desafios

Local: AUDITÓRIO DO CSE

Palestrante: Dra. Lola Aronovich (UFC)

Moderador: Dra. Janine Gomes da Silva (UFSC)

16hs: Minicurso – Violação de direitos humanos e limpeza cultural –


A questão bahai no Irã.

Local: SALA 008 (CCJ)

Palestrante: Dr. Jonny Carlos da Silva (UFSC)

Moderador: Msc. Valéria Zanette (FASC)

19h30min: PALESTRA DE ENCERRAMENTO:


Direitos Humanos, Segurança Internacional e Construção da
Paz: Desafios e Perspectivas

Local: AUDITÓRIO DO CCJ

Palestrante: Dr. José Augusto Fontoura Costa (USP)

Debatedor: Dr. Ricardo Soares Stersi dos Santos (PPGD/UFSC)

Moderador: Dra. Danielle Annoni (PPGD/UFSC)

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
23
2

Atividades de
Cidadania
da 4ª Semana
DOAÇÃO DE ALIMENTOS

S
eguindo a tradição do Observatório de Direitos Huma-
nos da Universidade Federal de Santa Catarina, duran-
te a IV Semana de Direitos Humanos, foi solicitado aos
ouvintes que contribuíssem com a doação de alimentos não perecí-
veis. Na ocasião, foram arrecadados 105 quilos de alimentos! Tendo
em vista a extrema importância que o Observatório atribui às ativi-
dades sociais, os alimentos arrecadados foram entregues à creche
“Céu da Tia Ana (localizada em Biguaçu) no dia 26 de junho, quarta-
feira, por estudantes de graduação da UFSC.

26 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A instituição é uma iniciativa da professora Ana, que auxilia
aproximadamente 10 famílias. Atualmente, ela atende 28 crianças e
mantém a creche apenas com doações, sem cobrar nada dos pais dos
meninos e meninas ali auxiliados. Além dos alimentos, brinquedos
e eletrodomésticos, como DVD, televisão, som, mix, um ferro de pas-
sar roupa e um liquidificador também foram doados pelo Observa-
tório de Direitos Humanos da UFSC.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
27
TANGO

A
s atividades lúdicas realizadas pelo Observatório de
Direitos Humanos têm o objetivo de integrar a comu-
nidade e possibilitar um momento de lazer, visto que
todo indivíduo tem direito ao mesmo. No dia 28 de maio de 2013,
bolsistas e voluntários do Observatório de Direitos Humanos reali-
zaram uma aula de tango em parceria com o Núcleo de Estudos da
Terceira Idade (NETI). A aula contou com a presença de 30 pessoas,
entre elas estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina e
o professor de tango Fransley que, juntamente com Laura, sua par-

28 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
ceira de dança que não pôde comparecer na ocasião, compõe desde
2006 a dupla “De Profesión Tango”.
As aulas aconteceram nas dependências da Igrejinha da
UFSC, no período da manhã e a permissão para a utilização do local
foi cedido pela DAC. As aulas representam experiência cultural e
humana. Foi criado um ambiente multicultural de respeito, amizade
e animação.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
29
3

Relatório das
Atividades
da 4ª Semana de
Direitos Humanos
CERIMÔNIA DE ABERTURA

Por: Priscilla Batista da Silva


Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
e Bolsista do Observatório de Direitos Humanos.

N
o dia 3 de junho de 2013 às 14:30 teve início a IV Se-
mana de Direitos Humanos organizada pelo Obser-
vatório de Direitos Humanos da Universidade Fede-
ral de Santa Catarina. Com o tema “Construção da Paz e Segurança
Internacional”, as atividades realizadas foram propostas com a in-
tenção de estimular o debate e trazer aos Acadêmicos desta Univer-
sidade discussões e informações sobre temas atuais e relevantes da
área dos Direitos Humanos.
A mesa de autoridades da cerimônia de abertura do evento
contou com a presença do Diretor do Departamento de Projetos da
Pró-Reitoria de Pesquisa, Prof. Elias Machado Gonçalves, como re-
presentante da Reitora, que na ocasião não pôde comparecer. Esti-
veram também presentes o Pró-Reitor de Assuntos Estudantis, Prof.

32 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Dr. Lauro Francisco Mattei, a Diretora do Centro Socioeconômico,
Profa. Dra. Elisete Dahmer Pfitscher, o então diretor do Programa
de Pós-graduação em Direito, Prof. Dr. Arno Dal Ri Jr, o então coor-
denador do Curso de Graduação em Relações Internacionais, Prof.
Dr. Helton Ricardo Ouriques e a Coordenadora do Observatório de
Direitos Humanos, Profa. Dra. Danielle Annoni.
Na ocasião, os componentes da mesa manifestaram seu apoio
ao evento e a importância que o mesmo tem para a Universidade e,
especialmente, para os graduandos e pós-graduandos das áreas de
Direito e Relações Internacionais. Reforçaram a importância de uma
Universidade aberta às discussões e que vá além dos temas aborda-
dos em sala de aula, parabenizando a Organização da IV Semana e a
equipe do Observatório de Direitos Humanos.
Após o ato oficial de abertura, a Professora Danielle Annoni
declarou oficialmente iniciados os trabalhos da IV Semana de Direi-
tos Humanos.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
33
PALESTRA DE ABERTURA:

A Paz como Imperativo de Proteção aos Direitos Humanos:


conflitos armados e intervenções humanitárias

Por: Mariana Serrano Silvério


Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de
Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

À
s 15h do dia três de junho teve início a palestra “A paz
como imperativo de proteção aos Direitos Humanos:
conflitos armados e intervenções humanitárias”, mi-
nistrado pela Prof.ª Dr.ª Gisele Ricobom, da Universidade Federal da
Integração Latino-Americana (UNILA). A Prof.ª Dr.ª Danielle Annoni,

34 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Palestrantes: Dr.ª Gisele Ricobom e Dr.ª Danielle Annoni

coordenadora do Observatório de Direitos Humanos da UFSC, foi a


moderadora da palestra.
Após agradecimentos iniciais, a palestrante fez referência
a pontos de contextualização e de abordagem geral em relação ao
tema. Primeiramente, foi apresentado um panorama atual das inter-
venções humanitárias, onde se colocou que o direito das interven-
ções já está consolidado dentro do Direito Internacional, mas que
ainda existem muitas dúvidas e controvérsias em relação à sua es-
trutura e consolidação.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
35
Para iniciar a discussão, a Prof.ª Gisele propôs questões so-
bre pontos cruciais no debate das intervenções humanitárias, tais
como “é possível construir a paz através de intervenções militares/
uso da força?”, “qual é a justificativa moral por trás das interven-
ções?”, “é possível tomar uma medida coletiva para evitar a catás-
trofe humanitária?”, “em nome do quê, como e quando a socieda-
de internacional deve agir?”, e o maior paradoxo neste contexto,
segundo a professora, “como defender que os Direitos Humanos
devem ser protegidos por bombas de fragmentação?”. Além de to-
das essas questões, a palestrante ainda instigou o público a pensar
sobre o porquê de as intervenções ocorrerem em alguns casos e em
outros não.
Foi apresentado o conceito de direito de ingerência, bem
como a classificação das intervenções humanitárias em duas for-
mas. Estas duas se resumem à ingerência material, que envolve a
intervenção no território alheio, podendo ser caritativa (reforçando
que este conceito é diferente de assistência humanitária), forçada ou
dissuasora (operações de paz das Nações Unidas, operações multidi-
mensionais, atuação por meio de forças, prevenção de conflitos, ma-
nutenção, consolidação da paz); e a ingerência imaterial, que se dá
através do soft power, da diplomacia ou por meio de outros elementos
que não envolvem o “contato físico” direto.
A Dr.ª Ricobom afirmou que a ideia de intervenção humani-
tária muda conforme o tempo e pode ser explicitada pela responsa-
bilidade de proteger, afirmando assim o uso da força como artifício
de proteção dos direitos humanos, embora essa não seja uma visão
consensual e alguns autores a considerem como imperialismo hu-
manitário. Para a professora, essa ideia de humanismo militar ou
imperialismo humanitário deve ser mais considerada quando utili-
zada como nova forma de colonização.
Dando continuidade à exposição, a palestrante comentou que,
após a Guerra Fria, a ONU buscou reestruturar o significado das in-
tervenções, considerando a contradição de sua Carta que reforçava o

36 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
princípio da não intervenção em contrapartida com a necessidade de
torná-la um instrumento legal naquele momento. Em 1992, em pro-
nunciamento da Agenda Para a Paz, foi declarada a nova função da
ONU (nova perspectiva da intervenção, maior presença da ONU nos
conflitos), assim como foi reelaborado o modus operandi da institui-
ção em relação às intervenções humanitárias. Neste contexto foram
estabelecidos novos limites e instituídos alguns princípios básicos de
atuação no campo das intervenções, sendo eles: prevenção através de
operações de estabelecimento da paz (incluindo a força armada se
necessário), a manutenção da paz (executando atividades não só mi-
litares: através da justiça e da promoção da igualdade) e consolidação
pós-conflito.
Outro aporte do debate se relacionava à questão da moralida-
de e ética como justificativas para as intervenções humanitárias. O
conflito começa com o pressuposto de cumplicidade por inação, ou
seja: se a sociedade não agir, não intervir quando tiver as condições
para isso, estará sendo cúmplice dos massacres e problemas no ou-
tro país. Em acréscimo, Ricobom chamou a atenção para os países
que se colocam como grandes protetores da paz mundial, mas que
também cometem grandes erros relacionados às intervenções. Na
opinião da professora, para que tais casos pudessem ser evitados, de-
veria ser estatizada a responsabilidade de reparação para com o país
que sofreu intervenções (dever de indenização ou estabelecimento
de medidas de recompensa como comércio justo com os países sem
condições de se reerguer).
A palestrante falou sobre os parâmetros de prevenção dos
conflitos e quais são as condições que possibilitam o uso da for-
ça nas intervenções. Ressaltou também a importância de medidas
que precedam a intervenção, como os embargos econômicos, por
exemplo.
São seis as condições que tornam possível o uso da força no
âmbito das intervenções: causa justa (proteção dos direitos huma-
nos nos quatro casos excepcionais: genocídio, crimes de guerra, lim-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
37
peza étnica, crimes contra a humanidade), intenção correta (deve
ser comprovada a intenção de minimizar o sofrimento humano atra-
vés de um relatório; não exclui outros interesses como o desenvolvi-
mento da indústria bélica), último recurso, esgotamento (diferente
do último recurso), uso de meios proporcionais (respeito ao direito
humanitário), e visando as possibilidades razoáveis (uso da força so-
mente se o resultado for certo) por autoridade competente (envolve
critério de legalidade, Conselho de Segurança das Nações Unidas,
embora existam problemas e contradições relacionadas a sua forma-
ção e os novos moldes da geopolítica).
Encerrando sua fala, a Dr.ª Ricobom criticou o discurso sobre
os Direitos Humanos, no sentido de que ele só serve para minimizar
os efeitos catastróficos das ações já cometidas. Ela defendeu a ne-
cessidade de refletir profundamente sobre maneiras alternativas de
desenvolver a sociedade internacional e construir um estado da paz
efetiva.
A Dr.ª Danielle Annoni adentrou o debate resumindo o dis-
curso anterior em três grandes dilemas ou perspectivas: a perspecti-
va jurídica das intervenções humanitárias (racionalidade, legalida-
de, legitimidade - o que legitima, o que não?); a questão política (por
que, quando e onde intervir ou não?); e a questão moral.
A debatedora questionou a palestrante sobre se, ainda que na
prática existam três ou quatro grandes Estados que não serão atingi-
dos por qualquer tipo de intervenção, os demais países deveriam ou
não ter mecanismos de impedir que a barbárie se estendesse em sua
vizinhança e como a palestrante justificaria sua opinião.
A Prof.ª Gisele respondeu que é necessário compreender as
intervenções humanitárias a partir das perspectivas da relação de
poder, e não no seu “descontexto” genuíno (o mundo não é bom).
Ela afirmou que as intervenções não são soluções viáveis em todos
os casos e que é preciso buscar e discutir meios mais complexos e
efetivos de prevenção de conflitos.

38 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Finalizando a sessão, Juliana, acadêmica da Universidade
Federal de Santa Maria, propôs a seguinte questão à palestrante:
“ao se comprometer com a responsabilidade de proteger, o Brasil se
coloca em posição de agente normatizador do sistema internacio-
nal?” A Dr.ª Ricobom respondeu que o Brasil está tentando se in-
serir no jogo global e, para isso, se contrapõe aos moldes da geopo-
lítica atuais, tentando afirmar uma postura de respeito dentro do
sistema (para conseguir espaço na ONU, por exemplo). No entanto,
seus esforços são limitados e o País ainda não fez qualquer propos-
ta significativa de reforma igualitária. Desta forma encerrou-se a
palestra, às 16h15.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
39
MINICURSO:
“Brasil e as Missões de Paz”

Por: Giana da Silva Wiggers


Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de
Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

Coautoras:
Jade Philippe dos Santos e Priscilla Batista da Silva
Graduandas em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
e bolsistas do Observatório de Direitos Humanos.

O
minicurso “Brasil e as Missões de Paz” aconteceu no
dia 3 junho de 2013 na sala 113 do Cento de Ciências
Jurídicas (CCJ) da Universidade Federal de Santa
Catarina das 16:10 às 18:00 e contou com um público de, aproxi-
madamente, 60 pessoas. O minicurso foi ministrado pela Prof. Dra.
Karine de Souza Silva, da UFSC, e pela debatedora Msc. Priscila Fett.
Priscila Fett abordou, inicialmente, o tema das operações de
paz da ONU, bem com a relevância das mesmas e a presença do Brasil

40 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
nesse cenário. Falou, nesse sentido, sobre algumas missões de paz,
como a do Líbano, e a participação do Brasil com o envio de militares.
Em seguida, a debatedora se propôs a indicar a “Agenda” re-
ferente ao histórico das Missões de Paz, a qual é citada a seguir:
1- Criação da Organização das Nações Unidas com o objeti-
vo de manutenção da paz.
2- Os instrumentos pra manter a Paz Internacional: Pea-
cemaking, que visa a prevenção de conflitos (tratados
e acordos de diplomacia); Peacekeeping, no qual estão
inseridas as operações de manutenção da paz ; Peace-
building, presta auxílio na reconstrução social e econô-
mica de um país visando paz e segurança duradouras; E
Peace Enforcement, que abarca o uso da força.
3- Tipos de Peacekeeping: antes da Segunda Guerra a rup-
tura da paz era vista apenas como conflito entre Estados,

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
41
mas após a Guerra Fria as guerras intraestatais ganha-
ram força, o que gerou o agravante de civis se tornarem
alvo frequente.
4- Fundamentação jurídica explicando a legitimidade in-
ternacional das operações, que derivam de um mandato
pelo sistema de segurança.
5- Marco Regulatório, mostrando os documentos necessá-
rios para o processo das missões.
6- Desdobramentos: o passo a passo das missões desde o
processo de avaliação do cenário até a operação realizada.
Priscilla Fett falou brevemente sobre Missões tradicionais,
como a que envolveu a criação do Estado de Israel, e também trouxe
a questão das missões desarmadas nos conflitos dessa região, in-
dicando, inclusive, a participação brasileira na pessoa do General
Carlos F. Paiva Chaves em 1964.
Em seguida, a debatedora apontou os Princípios de uma mis-
são, quais sejam: o consentimento de ambas as partes (para não
violar a soberania do estado); a imparcialidade (em não julgar os
preceitos das ações dos países); e o mínimo uso da força. Apontou,
ainda, algumas dificuldades das Missões de Paz, como a não permis-
são para que as mesmas sejam implantadas e a violação dos princí-
pios por algum país.
Após tecer uma crítica à ONU pela desorganização na Missão
de Paz em que morreram representantes missionários, bem como às
tragédias ocorridas em Missões na Somália e em Ruanda, Priscila Fett
mostrou que houve uma revisão do papel das missões, e que atual-
mente os Direitos Humanos ocupam uma posição central nas mes-
mas. Tudo é feito de modo a verificar o cumprimento desses direitos
e assegurar sua manutenção, havendo, inclusive, a possibilidade de
Peacekeeping pelo uso da força em caso de violação dos direitos hu-
manos de um civil. Indicou, ainda, que civis, voluntários e militares
atuam em conjunto para que as missões de paz se tornem realidade.

42 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A demanda para Missões de Paz é bastante diversificada (go-
vernança econômica, estabilização econômica, conflitos, entre ou-
tros), abrangendo muitas dimensões de manutenção da paz. Há,
atualmente, 15 missões em andamento, as quais concentram-se, es-
pecialmente, no Oriente Médio e na África. Foram expostos, em se-
guida, alguns dados estatísticos, como a indicação do orçamento de
7.33 bilhões de dólares destinados pela ONU no último ano às Mis-
sões de paz, a participação feminina equivalente a 4,5% dos enviados
e o protagonismo do Paquistão, que é o país que mais envia tropas.
Após a explanação de Priscilla Fett, a professora Dra. Kari-
ne apresentou um breve panorama sobre a criação da ONU e seus
componentes. Expôs, por exemplo, a realidade das intervenções na
diplomacia, que não está isenta de interesses em missões de paz.
Explicou também o papel do Brasil e sua iniciação na Organização,
indicando que o país participou desde o princípio das atividades da
ONU. Numa análise comparativa com outros países ativos na ONU,
indicou que o Brasil já participou de mais de 30 missões de paz mas
que tem uma visão diferente dos outros Estados no tocante a con-
ferências com a defesa de seus interesses no cenário internacional.
A expositora apontou ainda os critérios de escolha das Mis-
sões de Paz utilizados pelo Brasil, como os relacionados à defesa dos
Direitos Humanos, que tenham um mandato exequível, além da
preferência pelo envio de observadores em missão pacífica.
Retomando a uma abordagem mais geral, a professora Dra.
Karine enfatizou o caso do Haiti, onde a população já começa a apre-
sentar condições de seguir sem a intervenção da Missão. Para fina-
lizar, mostrou fotos do cenário do Haiti sem condições básicas na
época em que o Brasil se mobilizou e direcionou forças para a re-
construção do dito país.
Após uma rodada de perguntas o mini curso foi encerrado,
tendo seus objetivos de diálogo e ampliação dos conhecimentos so-
bre o tema satisfatoriamente alcançados.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
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PAINEL:
Justiça Internacional e o Paradigma Americano

Por: Thyana C. Spode Conrad e Caroline Scotti Vilain


Graduandas em Relações Internacionais pela Universidade Federal
de Santa Catarina e, respectivamente, Bolsista e Voluntária do Ob-
servatório de Direitos Humanos.

44 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Palestrantes: Dr.ª Soledad Garcia Muñoz, Dr. Jayme
Benvenuto Lima Jr., Dr. Cesar Oliveira de Barros Leal,
Dr.ª Julia Barros Schirmer.

N
o dia 3 de junho, às 17h30min, no auditório do
Centro de Ciências Jurídicas da UFSC, iniciou-se o
painel “Justiça Internacional e o Paradigma Ameri-
cano”. Participaram do painel como palestrantes o Dr. Jayme Ben-
venuto Lima Jr., da UNILA; a Dr.ª Soledad García Muñoz, do Ins-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
45
tituto Interamericano de Direitos Humanos; e o Dr. César Oliveira
de Barros Leal, do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. Como
debatedora, a Dr.ª Julia Barros Schirmer, da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República; e como moderadora, a Dr.ª
Juliana Viggiano, da UFSC.
As atividades do painel iniciaram-se com a exposição da Dr.ª
Soledad, que principiou sua participação demonstrando admiração
pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos e pela Declaração
Universal de Direitos Humanos da ONU, que afirma que todos os
seres humanos têm o mesmo poder.
Ela continuou sua fala dizendo que os Direitos Humanos que
temos atualmente diferem daqueles que se tinham antigamente,
nas etapas que Bobbio chamou de: positivação (1ª etapa); generali-
zação (2ª etapa), como o direito das mulheres; e internacionalização
(3ª etapa), onde se deu a criação dos grandes sistemas a nível conti-
nental de Direitos Humanos.
A palestrante passou então à observação de que a luta contra
a impunidade é um dos grandes desafios a serem enfrentados pelo
Sistema Interamericano. Deste modo, Soledad voltou seu discurso
para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, criado a partir
da Declaração Americana de Direitos Humanos, documento impor-
tantíssimo que faz a distinção necessária entre os direitos sociais e
os econômicos, e entre os direitos civis e os políticos.
Sobre os benefícios advindos da criação da Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos, Soledad Muñoz destacou a relevância da
proibição da pena de morte, da penalização da tortura e do desapa-
recimento forçado de pessoas, além da proteção à mulher. Ela encer-
rou sua fala dizendo que estes pontos são considerados inéditos na
história mundial.
Dando continuidade ao debate, o Dr. Jayme primeiramente
citou alguns casos em que a Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos se envolveu para sanar violações, como o da República de

46 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Trinidad e Tobago, que foi advertida em decorrência de violações fí-
sicas; o caso chileno que versa sobre a violação da honra da família
e do não preconceito homoafetivo – aqui fez a observação de que o
Chile é um dos países com maior número de casos na Corte; Kimel
vs. Argentina, em que o escritor Eduardo Kimel foi acusado pelo
crime de calúnia e perseguido pelo Estado argentino; e o caso dos 19
comerciantes vs. Colômbia.
Ele disse que o Sistema Interamericano é resultado do seu
tempo e, portanto, possui tanto limitações quanto potencial. Nos-
so sistema é fruto de duas guerras: a Segunda Guerra Mundial e a
Guerra Fria, de onde se infere que as lutas histórias fazem parte do
longo processo histórico dos sistemas de Direitos Humanos sendo
assim cunhado o termo “diamante ético”.
Concluindo seu discurso, o professor destacou a necessidade
de que se altere o Sistema Internacional no sentido de ampliar os
direitos onde eles ainda não conseguiram chegar, como os Estados
que ainda violam os Direitos Humanos.
Passou-se então a palavra ao professor Cesar Barros Leal,
que fez breve menção à sua visita a Tijuana, no México. O pales-
trante disse que a justiça deve perseguir a paz, que o Estado deve
perseguir os Direitos Humanos e que o Estado não deve se sobres-
sair ao direito.
Fazendo referência aos ensinamentos de Antônio Augusto
Cançado Trindade, Cesar falou em um novo paradigma, no qual o
ser humano é o eixo principal e o Estado tem a responsabilidade
de reparar seus erros através da Corte Interamericana de Direitos
Humanos. O professor se disse ainda preocupado com a interdepen-
dência dos direitos humanos.
Sua participação findou-se com uma homenagem à profes-
sora Danielle Annoni, com um prêmio de Direitos Humanos pelo
evento e pela missão que este possui.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
47
A debatedora Julia Schirmer iniciou sua fala dizendo que
o Sistema Interamericano se baseia somente nos Direitos Huma-
nos, mas que é também formado pelos cidadãos e pelos Estados
acusados. Citando alguns casos em que o Brasil está envolvido,
ela observou que o governo brasileiro ainda não possui uma res-
posta ao caso de Belo Monte, além do caso Maria da Penha, pelo
qual o País ainda se encontra na Corte e para o qual ainda deve
respostas.
Julia apontou que o Brasil tem atualmente cerca de 130 ca-
sos na Corte Interamericana de Direitos Humanos – o que repre-
senta grande avanço, visto que já cerca de uma década o país se-
quer respondia a essa Comissão. A debatedora disse que a maioria
dos casos é de responsabilidade dos entes federados, exemplifican-
do com a questão do presídio central de Porto Alegre, onde já está
sendo elaborado um plano de melhorias do sistema com foco no
combate à tortura. Deste modo, o Sistema Interamericano de Di-
reitos Humanos é de extrema importância para evidenciar os erros
que os Estados ainda cometem quando se trata da matéria.
Sobre este assunto, o professor Cesar argumentou que a
questão do presídio de Porto Alegre não é única, já que existem
presídios em situação similar ou pior que aquela espalhados por
todo o Brasil. E que, portanto, o Governo Federal deveria usar este
caso para promover uma reforma geral do sistema carcerário do
País, não somente do presídio de Porto Alegre. Ele ainda se colocou
contra a redução da menoridade penal.
Foi aberto então o momento para as perguntas, onde a mo-
deradora, professora Juliana Viggiano, levantou a questão sobre a
percepção da contingência dos direitos humanos, e se há uma nova
percepção do internacional e local. Todos os integrantes da mesa
manifestaram vontade em responder, começando pela Dr.ª Soledad
Muñoz, que demonstrou não ter certeza se a palavra “contingente”
seria a melhor a ser usada neste caso.

48 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
O professor Jayme Benvenuto disse que a dificuldade em se
entender a contingência se dá por causa do nosso apego, represen-
tado pelas teorias de Kant. O professor Cesar Leal compartilhou da
opinião do colega, apresentando a questão da governança pela polí-
tica das nossas opiniões.
Assim encerrou-se o painel sobre Justiça Internacional e o
Paradigma Americano. Em seguida, houve sorteio de livros disponi-
bilizados pelo Prof. Cesar Oliveira de Barros Leal entre os inscritos
para o painel.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
49
OFICINA:
Migrações Internacionais no Mundo
e no Brasil

Por: Mariana Serrano Silvério


Graduanda em relações Internacionais pela Universidade Federal de
Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

À
s 14h50 do dia quatro de junho de 2013, deu-se início
à oficina “Migrações Internacionais no Mundo e no
Brasil”, como parte da programação da IV Semana
de Direitos Humanos. Participaram como palestrantes a Prof.ª Dr.ª
Rossana Rocha Reis, da Universidade de São Paulo (USP), o Dr.
Andrés Ramirez, representante do Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados (ACNUR) no Brasil e a Prof.ª Dr.ª. Mônica
Teresa Costa Souza, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Como moderadora, integrou a mesa a Prof.ª Dr.ª Danielle Annoni, da

50 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Palestrantes: Dr.ª Rossana Rocha Reis, Dr. Andrés
Ramirez e Dr.ª Mônica Teresa Costa Souza.

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O objetivo central


da oficina foi contextualizar e avaliar os movimentos internacionais
de migração tanto no âmbito mundial quanto no nacional.
Dando início aos trabalhos da tarde, o Dr. Andrés Ramirez
começou sua fala constatando que o tema em questão não é muito
tratado, mas que existe uma grande necessidade de torná-lo mais
comum, considerando o fato de que as migrações são corriqueiras e
estão diretamente ligadas às tragédias humanas.
Para exemplificar, citou o confronto militar no leste do Con-
go, que motivou milhares de pessoas a fugirem para Ruanda, e tam-
bém a invasão soviética no Afeganistão, que fez com que milhares

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
51
se deslocassem para o Paquistão e o Irã. O palestrante destacou a
situação dos conflitos na Síria e no Iraque, pois estes resultaram no
deslocamento de mais de quatro milhões de pessoas que ainda pos-
suem dificuldade de atravessar fronteiras internacionais.
Afirmou que, nestes casos em específico, o ACNUR tem grande
dificuldade em realizar assistência humanitária - e que, adicionando-
se a este problema, a missão da instituição tem sofrido grande impac-
to diante da crise mundial, já que não há vagas suficientes para os mi-
grantes se reassentarem em países estáveis, fazendo com que estes se
aloquem em Estados que já não comportam seus próprios nacionais.
Dando continuidade à exposição, Ramirez concentrou as
atenções de seu discurso na América Latina, apresentando dados es-
tatísticos como, por exemplo, o de que existem mil colombianos por
ano saindo de seu Estado natal. O palestrante afirmou que, embora
a situação socioeconômica da Colômbia tenha melhorado, as condi-
ções de vida não são suficientemente boas para evitar a migração.
Esta constatação fica evidente quando se apresenta o dado de que
84% dos colombianos que moram no Equador não possuem o intuito
de se repatriar, pois ainda desconfiam da situação de crise e violência
de seu país.
Por fim, o Dr. Andrés Ramirez propôs uma reflexão sobre o
impacto dessa crise nos países da América do Sul em relação ao Bra-
sil. Disse que o Estado tem sorte, já que faz fronteira com países
relativamente tranquilos e, mesmo considerando o grande número
de fronteiras internacionais – o Brasil fica atrás apenas da Rússia –
existe aqui uma quantidade bem pequena de refugiados, sendo a
maioria deles de nacionalidade colombiana.
Passou-se a palavra à Dr.ª. Mônica Teresa Costa Souza, que
iniciou seu discurso com a afirmação de que a problemática relacio-
nada ao tópico de refugiados é muito mais antiga do que se pensa,
e que até hoje não existe uma convenção específica para o que se
chama de refugiados econômicos. Embora seu foco não seja este, a
palestrante apresentou uma categoria diversa de refugiados, os re-
fugiados ambientais.

52 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A palestrante disse ser necessário, para a categorização dos
refugiados, tratar a movimentação das pessoas a partir das razões de
suas migrações. Citou então os refugiados em sentido clássico, que
buscam a sobrevivência (de fato) por não ser possível morar em seu
país de origem; e os refugiados econômicos, que buscam condições
humanas de vida quando o país natal não oferece oportunidades de
crescimento ou desenvolvimento.
No que toca o refugiado econômico, categoria que vem cres-
cendo diante do cenário de crise, foram levantados questionamentos
relevantes para o Estado que se propõe a receber esta leva de pessoas.
Por exemplo: “qual é o tipo de ajuda ou proteção que o Estado deve
prover para estas pessoas?” e “até que ponto o Estado estrangeiro deve
abrir suas fronteiras para pessoas que estão fugindo da ineficiência de
seus Estados de origem em garantir vida digna a seus cidadãos?”.
Corroborando o ponto já discutido pelo Dr. Ramirez, Costa
Souza afirmou que uma das principais razões para que muitos Es-
tados não queiram receber migrantes é o fato de que estes estariam
colaborando com a desestabilização de um sistema já pouco estável.
Em relação às condições dos refugiados e migrantes, a pales-
trante destacou a expansão da noção do desenvolvimento humano
nos anos 1990, a partir da divulgação dos relatórios da ONU. Afirmou
que são necessárias mudanças constitucionais e institucionais, tanto
nos países de origem como nos que recebem os migrantes. Considerou
necessário também o fortalecimento do aparato internacional da pro-
teção dos Direitos Humanos, além da consideração das particularida-
des regionais, para tornar mais efetivo o direito ao desenvolvimento.
Pondo fim à sua fala, a Prof.ª. Mônica reforçou a ideia de
que o reconhecimento do direito ao desenvolvimento é fundamen-
tal, tanto no contexto de migrações e refugiados, como no âmbito da
efetividade de cooperação entre os Estados.
A terceira palestrante, Dr.ª. Rossana Rocha Reis, principiou
sua fala comentando sobre a problemática da relação de Direitos Hu-
manos e as migrações internacionais. Partindo do pressuposto de
que os homens se movem, são nômades desde sempre (a mobili-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
53
dade é fato) e ignorando a noção de Estado, a professora afirmou
que o que vem ocorrendo nos últimos anos é somente um aumento
na frequência na distância das migrações. Em adição, destacou que,
dentro do sistema capitalista, mobilidade gera renda.
A Dr.ª. Rossana propôs que, partindo do ponto de vista social,
a pergunta mais interessante relacionada ao assunto seja: “por que
as pessoas não migram tanto?”. O fundamento para esta questão,
segundo ela, é que, no contexto da lógica microeconômica, todos
deveriam estar mais em movimento do que estão. Ainda neste âm-
bito, se as pessoas são móveis, a estrutura política de organização do
território se torna obsoleta, pois foge à regra quando condiciona as
populações a serem estacionárias.
Foi colocada em foco, então, a reflexão sobre o monopólio
da legitimidade da mobilidade: legitimamente, as pessoas só podem
se mover com a permissão do Estado em que se deseja entrar – o
que também vai de encontro ao princípio de que o homem é um ser
nômade. A única exceção é o Direito Internacional dos Refugiados,
que garante o direito das pessoas de saírem, mas não o de entrarem,
ou de encontrarem condições favoráveis de vida e desenvolvimento.
Outra questão discutida pela palestrante foi o fato de que o
Estado perde o controle de suas fronteiras – logo, do seu território –
quando surge a securitização das migrações internacionais, elemen-
to que torna-o incapaz de manter fora de seus limites os migrantes
considerados indesejáveis, colocando a sua soberania em jogo.
Os migrantes indesejáveis podem ser classificados em refu-
giados, os que buscam reunificação familiar, e o grupo dos indocu-
mentados. Refugiados, disse a palestrante, são aqueles que o Estado
acolhe por caridade, como um favor ao sistema internacional; a úni-
ca obrigação é, então, não mandá-los de volta para a região confli-
tuosa. Os indocumentados adentram o território sem a permissão do
Estado, e compreendem hoje um número grande e crescente.
A Dr.ª. Rossana Reis apontou, como medida de ação em rela-
ção aos migrantes indesejados, o caso da política de migração zero,
que produz de forma única uma precariedade ainda maior para os

54 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
migrantes, condicionando-os a continuar sendo migrantes. Em adi-
ção, afirmou que a fronteira não atua como barreira da movimen-
tação, mas sim, cria uma gigante desigualdade social para com o
migrante, que se torna explorado e explorável.
Complementando a classificação dos migrantes da Dr.ª
Mônica Costa Souza, a Prof.ª Rossana destacou as diferenças entre
as migrações de trabalho: há os trabalhadores que entram na base
do sistema, onde os profissionais nacionais se recusam a atuar; os
trabalhadores elitizados, que migram por serem visados; e os traba-
lhadores indocumentados.
A Dr.ª propôs, no fim da sua fala, que a temática em questão
seja mais discutida do ponto de vista de todas as Ciências Sociais, e
que a discussão sobre o possível direito de ir e vir internacional seja
mais difundida.
Iniciou-se a sessão de perguntas. Carolina, aluna da UFSC,
dirigiu sua pergunta ao Dr. Ramirez, questionando-o sobre a situa-
ção dos haitianos no Brasil e se algo mudou após o terremoto de
2010. O palestrante respondeu que o Brasil nunca foi destino de re-
fugiados historicamente e foi apenas recentemente, após o terremo-
to, que o País começou a receber estes migrantes. Disse ainda que
o número é pequeno e que não existe a necessidade de pânico em
relação a um possível fluxo intenso de refugiados. De acordo com
a lei ultrapassada e políticas restritivas, o Brasil se limita a receber
migrações somente de ordem humanitária.
O acadêmico Issa, da UNISUL, dirigiu seu questionamento à
Dr.ª Rossana, perguntando sobre as possíveis ações do Estado Nacio-
nal para ajudar a sua população que migrou para outros Estados. A
professora sugeriu uma melhora no serviço consular brasileiro, além
da criação da possibilidade da dupla nacionalidade e uma maior or-
ganização relacionada aos acordos referentes às migrações entre os
países.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
55
MINICURSO:
“Empresas e Direitos Humanos:
desafios para o novo século”

Por: Letícia Ferreira Haines


Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de
Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

N
o dia quatro de junho de 2013, às 16 horas, aconte-
ceu o minicurso “Empresas e Direitos Humanos: de-
safios para o novo século”, no qual estavam presen-
tes, aproximadamente, 40 pessoas. O minicurso foi ministrado pela
Dr.ª Denise Hauser, representante do Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Direitos Humanos na Guatemala, e moderado pela
Mestranda em Direito Internacional na UFSC, Camila D. de Araújo
Mendonça.

56 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Inicialmente, a palestrante expôs sua intenção de tornar do
mini-curso uma discussão mais interativa e dinâmica do que uma
palestra, explorando principalmente os pontos de interesse dos ex-
pectadores. A Dr.ª Denise, ao tratar de casos que chegavam no escri-
tório de Direitos Humanos da ONU na Guatemala, vivenciou direta-
mente a realidade da temática apresentada.
O tema tem ganhado visibilidade na ONU nas últimas déca-
das devido ao surgimento de casos em que grandes empresas mul-
tinacionais, algumas com lucros que ultrapassam o PIB dos países
onde se instalam, têm sido acusadas de violações aos Direitos Hu-
manos e cumplicidade com governos repressivos. Tais fatos levam a

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
57
questionar qual o peso político, a influência nas relações internacio-
nais e a subjetividade jurídica desses novos entes e como proceder
nos casos de violação. Embora no Direito Internacional Público os
Estados figurem como principais atores, levanta-se a questão a res-
peito da responsabilidade internacional das empresas e a capacidade
dos indivíduos de afirmarem-se como sujeitos de Direito Internacio-
nal através dos Direitos Humanos. Falar sobre empresas e Direitos
Humanos não é uma incompatibilidade, e, nesse sentido, há a visão
de que, a longo prazo, é possível haver desenvolvimento sustentável,
bom aproveitamento dos recursos e benefícios para as comunidades
onde essas empresas instalam-se.
Dra. Denise inicia sua apresentação trazendo alguns exem-
plos de casos recentes e, em especial, o caso da Empresa Shell na
Nigéria que trouxe à tona a discussão sobre empresas e Direitos Hu-
manos na ONU. A Nigéria é um dos países com maior reserva de
petróleo do mundo e no final dos anos 50 concedeu à empresa Shell
a concessão para exploração de uma jazida e construção de uma refi-
naria em seu território, o que acabou gerando uma joint venture entre
a Shell (capital majoritário) e uma corporação nigeriana de petróleo.
Apesar da resistência da população local, a refinaria foi ins-
talada em território Ogoni, uma área tribal com mais de 500 mil
habitantes. Os Ogoni são uma etnia indígena que vive em relação
direta com a natureza, dependendo dos rios e do solo para a sua
subsistência. A instalação da refinaria contamina o solo, o ar e as
águas, provoca chuva ácida e interfere no fluxo dos rios. Isso faz com
que o conflito se intensifique, uma vez que a instalação da empresa
também traz poucos benefícios ao país e não promoveu o desenvol-
vimento sustentável das comunidades.
Na década de 70, os indígenas apresentaram reclamações a
respeito da degradação ambiental, para a qual não houve resposta.
Após anos de conflito e protestos, a Shell suspendeu as operações no
local e o governo Nigeriano suspendeu a licença. A partir de então,
o Estado iniciou uma ofensiva contra o povo Ogoni, a qual resultou
em mais de duas mil mortes e na condenação de quatro líderes à

58 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
morte. A Shell não reconheceu envolvimento direto com a repressão
militar, embora tenha manifestado um sutil apoio. Por fim, em 2009,
a empresa firmou acordo com os demandantes. A imagem ruim que
se criou da empresa em decorrência do caso apresentado levou a
uma mudança em sua política e à adoção de novos comportamentos.
A Doutora Denise Hauser indicou que para uma empresa
atuar em determinado país não é suficiente que ela obtenha a licen-
ça legal do Estado, é preciso que também haja uma licença social.
Se as comunidades envolvidas não concordam com a instalação da
empresa e não há acordo prévio entre as partes, o resultado pode
ser extremamente negativo para todos os envolvidos (comunidade,
empresa e Estado).
Em seguida, a ministrante do mini-curso mostrou aos ex-
pectadores gráficos que ilustram a distribuição dos incidentes en-
volvendo empresas e DDHH ao redor do mundo, os quais revelavam
que o maior número de casos desse tipo acontece na Ásia e África.
As empresas envolvidas são, principalmente, dos setores extrativos
(ouro, prata, megaprojetos hidrelétricos), seguido pela indústria far-
macêutica e química. Essas informações provêm do Centro de Inves-
tigações sobre Empresas e Direitos Humanos (Business and Human
Rights Resource Centre) que recebe e compila casos, ampliando a base
de dados sobre impactos positivos e negativos das empresas no to-
cante aos direitos humanos.
A moderadora Camila, então, fez um questionamento sobre
o número pequeno de casos no Oriente Médio. Ela objetivou, com
isso, indagar se o índice é menor porque ocorrem menos incidentes
ou porque esses são menos reportados. A Doutora Denise explica
que os dados se baseiam nas denúncias recebidas e em fontes inves-
tigativas, mas ressalta o fato de que os países do Oriente Médio não
são abertos e a circulação de informação não é livre, além da falta de
uma comunidade civil forte para efetuar as denúncias.
Em seguida, a palestrante recebe mais uma pergunta sobre a
política de instalação de uma empresa em determinado país, desta-
cando a questão do consenso social. Denise Hauser discorre sobre o

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
59
direito à consulta prévia e negociação com as comunidades afetadas
antes da chegada das empresas, os quais estão previstos em nor-
mas internacionais. O Estado é responsável, no contexto dos trata-
dos internacionais, em particular da OIT, a realizar a consulta com
a comunidade afetada pela instalação de uma empresa a fim de se
conseguir a Licença Social. A empresa, por sua vez, deve apresentar
seu projeto com pontos como o impacto ambiental e econômico que
causará, e o desenvolvimento que trará ao local sendo também ne-
cessário tratar das indenizações que serão pagas à comunidade em
caso de danos. Ou seja, é preciso assentar as bases de negociação em
comum acordo entre empresa e comunidade.
Os mesmos procedimentos devem ocorrer quando se trata de
um investimento nacional interno. Além do convenio 189 da OIT,
que versa sobre comunidades indígenas, é preciso que sejam respei-
tadas as normas sobre desalojamento forçado e a própria legislação
nacional, bem como o acordo prévio que deve ser estabelecido entre
Estado, Sociedade e Empresa. Nesse ponto, Denise trouxe a questão
dos desalojamentos forçados que atualmente acontecem no Rio de
Janeiro devido as obras para a Copa do Mundo.
Em seguida, a palestrante iniciou a exposição sobre o histó-
rico da discussão sobre empresas e Direitos Humanos no âmbito da
ONU. Esse processo iniciou no início dos anos 90 a partir da inicia-
tiva da Comissão de Direitos Humanos da ONU para desenvolver
estudos que vinculassem as empresas. Em 2000 foi criado o Pacto
Global das Nações Unidas sobre responsabilidade social empresarial,
o qual tem caráter voluntário. No ano de 2013 a iniciativa de criar
um tratado que vincule empresas não prosperou. Em 2005, criou-se
o cargo de representante especial sobre empresas e DDHH, assumido
por John Ruggie.
A Doutora Denise Hauser falou ainda sobre o procedimento
de fiscalização de Direitos Humanos ao redor do mundo e como ele
se dá. Procedimentos especiais acontecem contando com especialis-
tas em diversas áreas que atuam com mandato de até 6 anos e en-
viam comunicações sobre supostas violações aos Direitos Humanos

60 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
(apelos urgentes e cartas de alegação), visitando países e apresen-
tando relatórios temáticos específicos (passo para avançar em futu-
ros tratados). Esses especialistas não são enquadrados como funcio-
nários da ONU.
A palestrante, então, focou sua explanação na atuação de
John Ruggie e na criação, em 2011, do primeiro marco internacional
comum com princípios a respeito do tema aprovado pelo Conselho
de Direitos Humanos. Em seguida, frisou os deveres e responsabi-
lidades dos Estados e das empresas dentro dos marcos regulatórios
criados, como são as bases e os principais guias e os mecanismos
como devem ser aplicados.
Por fim, surgiram dúvidas sobre como atuar nos Estados onde
as população ainda não tem consciência de todos os seus direitos e
nem mecanismos para cobrá-los, bem como sobre o modo de fazer
a fiscalização em países que não se abrem a visita dos especialistas.
Denise questionou a debilidade dos marcos de Direitos Humanos
e indicou que a informação precisa ser divulgada para que chegue
a todos os cantos do mundo. É responsabilidade do Estado que os
cidadãos conheçam seus direitos e tenham meios para cobrá-los. A
palestrante coloca, ainda, que existe a possibilidade de levar os casos
às Cortes Internacionais.
No tocante aos países que se fecham à visita dos especialis-
tas é difícil intervir, somente ocorrendo intervenções no caso de vio-
lações massivas de Direitos Humanos. O problema torna-se ainda
mais grave quando os países não ratificaram os marcos internacio-
nais que tratam do tema, como é o caso da China. Foram discutidos
outros casos recentes que envolvem grandes empresas fora de seus
territórios.
O minicurso cumpriu seu caráter inicial com uma discussão
dinâmica e esclareceu de forma satisfatória todas as dúvidas levan-
tadas. Os trabalhos foram encerrados por volta das 18 horas.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
61
OFICINA:
Tráfico de Pessoas

Por: Isadora Durgante Konzen


Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de
Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

T
eve início às 17h30 do dia quatro de junho de 2013 a
oficina “Tráfico de pessoas”, da qual foram palestrantes
a Prof.ª Dr.ª Ela Wiecko Volkmer de Castilho, da UnB, e
a Prof.ª Dr.ª Larissa Liz Odreski Ramina, da UNIBRASIL. Participou
como moderadora a Prof.ª Dr.ª Juliana Viggiano, da UFSC.
A Dr.ª Ela Wiecko iniciou sua exposição comentando um re-
latório produzido pela UNODC (escritório da ONU para o controle
das drogas) em 2012 sobre o tráfico de pessoas, que considerou 27
países americanos, trazendo dados como: de 6 mil vítimas, 1,6 mil é
menor de idade e 27% são mulheres; 50% dos traficantes são mulhe-
res; 44% do tráfico é direcionado para o trabalho forçado e 51% para

62 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Palestrantes: Dr.ª Ela Wiecko Volkmer de
Castilho e Dr.ª Larissa Liz Odreski Ramina

a exploração sexual; predomina o tráfico de países mais pobres para


países menos pobres.
A palestrante comentou também o diagnóstico regional de
2011 sobre o tráfico de mulheres com fins de exploração sexual no
MERCOSUL, que revela a inequidade e a violência de gênero, bem a
discriminação de determinados grupos sociais (indígenas, afrodes-
cendentes, transexuais etc.), além das barreiras migratórias nos paí-
ses de destino, que levam à existência de população não documen-
tada. O estudo revelou que a maioria das vítimas são mulheres de
idade entre os 15 e os 35 anos.
Do auditório, a antropóloga e pesquisadora Adriana Piscitelli
questionou se argumentação jurídica que surge vem em favor ou de
encontro aos Direitos Humanos. Wiecko respondeu à pergunta ci-
tando o Protocolo de Palermo, convenção para o crime internacional,

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
63
dizendo que há movimento para a ratificação do maior número de
Estados e para a internalização do conceito pelos países signatários.
Ressaltou que não há instrumento universal que abranja todos os
aspectos do tráfico de pessoas. Por fim, indagou se estaria o uso do
Direito Penal Internacional destinado à proteção dos Direitos Huma-
nos das vítimas, ou a ser usado como artifício para a criminalização
da migração.
Comentando o Protocolo, a professora observou que este ca-
racteriza as pessoas traficadas como aquelas que são recrutadas sob
algum tipo de violência, abuso ou engano com o fim de exploração,
independentemente de consentimento. A penalidade dá pouca re-
levância para a ocorrência, ou não, de exploração – a importância
está na mobilidade, fato que comprova o interesse em criar barreiras
migratórias.
A Dr.ª Ela finalizou seu discurso falando sobre as linhas de
operação Segundo Plano Nacional, que criam uma comissão para
a coleta de dados visando à compreensão do fenômeno no Brasil.
Na opinião da professora, não há objetivo de proteção aos direitos
humanos das pessoas traficadas entre as metas estabelecidas pelo
Protocolo e pelo Plano Nacional.
Dando continuidade ao debate, a Dr.ª Larissa Odreski Rami-
na partiu comentando o conceito de “globalização predatória”, uti-
lizado por Richard Falk, professor da Universidade de Princeton, ao
remeter-se à liberalização, à privatização, à redução de impostos e
à transferência internacional de capitais sem restrições. Em segui-
da, citou as contracorrentes alternativas ao neoliberalismo, ou “de-
mocracia cosmopolita”, que abraçam as bases, os cidadãos comuns,
incentivando os movimentos sociais a voltarem-se a aplicações glo-
bais. Mencionou também a “globalização ascendente”, na qual os
Estados recuperam poderes com o fim de recuperar uma soberania
sustentável, ou seja, que o Estado funcione como garantidor do bem-
-estar dos povos.
Fazendo referência aos ensinamentos de Boaventura de Sou-
sa Santos, a palestrante concluiu que há interligação entra a globa-

64 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
lização e os crimes internacionais. Ela colocou a globalização como
o principal incentivador da indústria internacional do sexo, em que
pessoas de países mais pobres se deslocam para trabalhar, enquanto
pessoas de países mais ricos se deslocam em busca de turismo se-
xual. O neoliberalismo contribuiu para a situação de vulnerabilidade
das pessoas, e a globalização “feminizou” a pobreza no hemisfério
Sul. A rigidez no controle das fronteiras acaba por favorecer a busca
por agentes internacionais de contrabando, aumentando o preço de
seus serviços e expondo os migrantes a riscos.
A Prof.ª Larissa mencionou também o estudo da OIT que reve-
la que a pobreza é fator circunstancial que favorece o tráfico de pes-
soas: as pessoas vulneráveis veem no tráfico certa esperança de sair
da pobreza. Para o contexto da exploração, favorece também a per-
cepção da mulher como objeto sexual, não como sujeito de direitos.
Concluindo sua exposição, a palestrante ressaltou que o trá-
fico de pessoas e o trabalho escravo não remetem a um passado dis-
tante ou a um problema superado – inclusive, são temas centrais na
agenda internacional em pleno século XXI. Atualmente, o tráfico de
pessoas é uma das atividades mais lucrativas do crime internacional,
estando atrás somente do tráfico de drogas. A Dr.ª Larissa apontou o
fato de que há mais mulheres sendo escravizadas atualmente do que
em qualquer outro período da história.
O debate foi aberto às perguntas. Thiago, estudante da UFSC,
perguntou sobre a relação entre barreiras migratórias e proteção a
Direitos Humanos. A professora Larissa ressaltou que as pessoas, ao
serem barradas na fronteira, acabam por contratar contrabandistas.
Seria mais interessante, portanto, que, paralelamente à legislação
restritiva, fossem concedidos mais vistos de refúgio, por exemplo.
A Dr.ª Juliana Viggiano, moderadora da mesa, perguntou so-
bre a coleta de dados do tráfico de pessoas. A Dr.ª Ela Wiecko res-
pondeu que o conceito de tráfico deve abranger todas as finalidades,
devendo-se fazer a coleta em cima de uma categoria jurídica bem
definida, a qual ainda não possuimos.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
65
MESA DE DISCUSSÃO:
Segurança Internacional e Meio Ambiente

Por: Giana da Silva Wiggers e Mariana Serrano Silvério


Graduandas em Relações Internacionais pela Universidade Federal
de Santa Catarina e Voluntárias do Observatório de Direitos Huma-
nos.

66 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Palestrantes: Dr.ª Fernanda Sola; Dr.ª Graciela de Conti
Pagliari e Dr.ª Susana Borràs Pentinat.

N
o dia cinco de junho de 2013, às 14h30, iniciou-
-se a mesa de discussão “Segurança Internacional e
Meio Ambiente”. Participaram como palestrantes a
Dr.ª Fernanda Sola, da UFSCar; a Dr.ª Susana Borràs Pentinat, da
Universidad Rogiri i Virgili (Tarragona, Espanha); e a Dr.ª Graciela
de Conti Pagliari, da UFSC. Como debatedora, a Dr.ª Vanessa Iaco-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
67
mini, da UFF; e como moderador, o Dr. Felipe Amin Filomeno, da
UFSC. A sessão teve como objetivo fomentar a discussão sobre as
questões ambientais que se interpelam com o tópico de segurança
internacional.
O debate foi iniciado com a fala da Dr.ª Suzana, que apresen-
tou um panorama geral sobre a segurança internacional e sua multi-
dimensionalidade. A professora disse que a ausência de guerra e de
conflitos militares entre os Estados não garante, por si, a paz e a se-
gurança internacionais – as fontes não militares de instabilidade nos
campos econômico, social, humanitário e ecológico se converteram
também em ameaças. Para ela, a ONU deve dar prioridade máxima
à solução destes problemas.
A palestrante reportou a trajetória da questão, iniciando pelo
Informe sobre o Desenvolvimento Humano de 1994, quando pela
primeira vez tocou-se no assunto da segurança humana. O conceito
foi descrito como uma preocupação universal, de caráter multidi-
mensional, e composto por elementos interdependentes, sendo estes
mais efetivos quando se articulam através da prevenção. Observou
que alguns dos componentes em que se agrupam as ameaças à se-
gurança humana são: segurança econômica, alimentar, da saúde,
ambiental, pessoal, da comunidade e política. Neste contexto, têm
se destacado as mudanças climáticas e suas possíveis repercussões
para a segurança humana.
Borràs afirmou ser necessário tratar a questão da segurança
internacional e meio ambiente por três ópticas distintas: causa, ob-
jeto e resultado de uma modificação ambiental.
Citou como uma das origens da insegurança, isto é, uma cau-
sa, a degradação ambiental. Foi proposta uma relação causal entre a
degradação ambiental e a violência, sendo classificados alguns tipos
de problemas ambientais que poderiam ser considerados as causas
da insegurança humana: a mudança climática, a degradação da ca-
mada de ozônio, a destruição dos recursos do ecossistema, a chuva
ácida, resíduos nucleares e a contaminação dos recursos naturais.

68 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A professora propôs então uma reflexão sobre o aspecto de
justiça ambiental, considerando o fato que as modificações am-
bientais (como a escassez de recursos) podem gerar conflitos in-
terestatais, movimentos populacionais, subnacionais ou interesta-
tais. Levou-se em conta também que a diversidade de degradação
ambiental pode gerar crise humanitária, como catástrofes naturais
(ex. tsunamis, terremotos), catástrofes tecnológicas (ex. Chernobyl,
Bhopal) e degradação progressiva do meio ambiente (ex. desertifica-
ção, erosão). Revelou também alguns dados sobre catástrofes natu-
rais, que sugerem que, entre os anos de 2002 e 2011, cerca de quatro
mil eventos ocorreram, com mais de meio milhão de mortos e perda
econômica de US$ 1,3bi.
Finalizando o seu discurso, a Dr.ª Suzana levantou a ques-
tão sobre quem seria o responsável pela proteção das vítimas dos
desastres. Ela apresentou diferentes pontos de vista em relação à
questão, como é o caso da doutrina R2P (responsibility to protect),
que defende que o Estado tem a responsabilidade de proteger a sua
população.
Passou-se a palavra à Dr.ª Graciela Pagliari, que iniciou sua
participação propondo a seguinte questão: “em que medida a segu-
rança internacional e o meio ambiente se interligam?”. Para melhor
esclarecer a problemática, disse que, primeiramente, é preciso con-
siderar o contexto de pós Guerra Fria, em que ocorreu uma amplia-
ção importante na agenda internacional. A partir deste momento, o
conceito de ameaça aos indivíduos e aos Estados no sistema interna-
cional tomou outras proporções, já que as ameaças tradicionais não
eram mais exclusivas como representação de perigo. A tarefa de de-
finir a segurança – “o que é” e “para quem” é uma ameaça – ganhou
maior complexidade, passando a agenda de segurança internacional
a ser muito mais ampla do que no período da bipolaridade. É neste
contexto que o meio ambiente passa a ser considerado como um
setor de preocupação na segurança internacional, não mais como
mero objeto.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
69
Dando continuidade à sua fala, a professora apresentou o
fato de que muitos dos novos temas de segurança humana passaram
a sê-lo por constituírem conflitos de crise humanitária e de Direitos
Humanos, nos âmbitos infra e interestatal. Apontou também que
vários temas relacionados à segurança internacional estão ainda em
aberto nos Estado em desenvolvimento. Isso se dá em decorrência
da instabilidade e da existência de conflitos nestes países, muitas
vezes taxados perante a comunidade internacional como fracassa-
dos ou falidos por não conseguirem oferecer a segurança mínima
aos cidadãos.
A palestrante adentrou, então, a problemática do meio am-
biente e sua relação com os conflitos, fazendo questão de, primei-
ramente, conceituar segurança como a capacidade de neutralizar
forças. No seu entendimento, esta relação se dá no sentido de que
os Estados, em busca de recursos naturais, podem gerar ameaças
concretas entre si.
Para melhor ilustrar essa ideia, Pagliari citou a fumigação de
áreas no território colombiano para combater a produção de coca,
medida adotada também pelo Peru e pela Bolívia como política an-
tidrogas. Espalhando as toxinas em quantidades cada vez maiores,
houve contaminação de rios e solos e, como resultado, o número de
deslocados internos por causa do conflito armado na Colômbia au-
mentou. Para minimizar os efeitos da dispersão, passou-se a produ-
zir coca no meio de outras plantações; com isso, cresceram plantas
ainda mais fortes, necessitando de mais fumigação. Isso foi um pro-
blema sério, pois a fumigação aérea atingiu o Equador, gerando uma
crise entre os dois Estados. O tráfico de drogas foi colocado como um
grande problema social, para o qual a abordagem militarizada não é
adequada.
A Prof.ª Graciela apontou que a segurança está diretamente
ligada à ideia da existência de um inimigo; entretanto, no caso dos
problemas ambientais, muitas vezes não há uma definição da causa.
A este tópico se relacionam diretamente os problemas ambientais

70 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
com o indivíduo, da poluição e da contaminação, bem como o da
mobilidade dos civis.
Deu-se início, então, à apresentação da Dr.ª Fernanda Sola,
que primeiramente falou sobre as origens da discussão acerca da
segurança ambiental na década de 1970. Na década de 1980, fez-se
necessário editar um relatório que tratasse da paz, da segurança e do
meio ambiente, devido ao uso descontrolado dos recursos naturais.
Em 1994, foi elaborado o Relatório de Direitos Humanos da ONU e,
no final dessa década, o reconhecimento das mudanças climáticas
e da perda da biodiversidade reforçou a importância da segurança
ambiental. Por meio deste panorama histórico, a palestrante tornou
clara a inserção do meio ambiente e do meio econômico nos Direitos
Humanos, no sentido de que o impacto sobre um tópico acarreta
consequências para os demais.
Abordando a questão dos recursos híbridos, a professora ex-
plicou que a água é motivo de conflitos entre Estados por causa da
dificuldade de sua administração, especialmente nos casos de es-
cassez, já que é um recurso natural que afeta diretamente a sobre-
vivência das pessoas. O acesso à agua segura e de qualidade e ao
saneamento básico como um todo deve ser garantido pelo Estado
como forma de promoção dos Direitos Humanos.
A Prof.ª Fernanda observou que a agricultura é a atividade
que mais demanda água, sendo cerca de 70% do volume desta desti-
nado para a irrigação - no Brasil, este valor aumenta para 72%. Hoje
há uma quantidade considerável alocada para o cultivo da soja, que
alcança a região amazônica; no entanto, mesmo que a região seja
rica em recursos híbridos, muito de sua população não recebe água
encanada. Entre as populações ribeirinhas, muitas vezes se disputa
pela qualidade das águas.
Com a definição de “bacia de drenagem”, em 2004, pôde-se
definir a extensão dos aquíferos, os grandes sustentos de águas – e
vítimas dos problemas ambientais. O Tratado da Bacia do Prata, as-
sinado para complementar as políticas de povoamento da área, reve-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
71
la a tendência de aumentar os conflitos internacionais no que toca a
partilha pelos recursos híbridos.
Para a professora, o problema visto hoje é a conscientização
da população sobre os problemas e riscos da segurança ambiental.
Com essas palavras, a Dr.ª Fernanda Sola encerrou sua participação.
Tomou a palavra a debatedora convidada, Dr.ª Vanessa Iaco-
mini, que levantou a questão sobre a crise de alimentos como um
problema social para o qual ainda não foi definida uma solução. A
Dr.ª Graciela Pagliari se pronunciou no sentido de que a segurança
ambiental e os direitos humanos se interligam, sendo este um claro
exemplo da conexão. A Dr.ª Fernanda Sola trouxe a questão da segu-
rança híbrida, apontando a prioridade da solução deste problema em
decorrência da necessidade do recurso em pauta, além da estreita
relação do homem com o meio ambiente. Ressaltou ainda que hoje o
estudo das preocupações ambientais tem muito mais destaque que
outrora, e que essa preocupação deve sempre aumentar.
A debatedora prosseguiu à exposição dos laços entre meio
ambiente e sociedade, sob a égide de dois pressupostos. O primeiro
pressuposto é o da aplicação do direito internacional, analisando as
ameaças dos problemas ambientais à segurança humana. O segundo
pressuposto é o seu conceito de segurança, complexo e indivisível,
em que o entendimento da realidade aglomera os cenários militar,
econômico e político.
A Dr.ª Vanessa pediu às demais participantes uma análise so-
bre segurança humana, crise ambiental e governança, versando a
seguinte problemática: “Quais seriam as opções para a nossa gover-
nança ambiental a partir da definição que temos de crise ambien-
tal?”.
A primeira palestrante a responder foi a Dr. ª Susana Borràs,
defendendo que a governança ambiental deve ser analisada não só
como o autogoverno, mas também como o processo. Para a professo-
ra, a crise ambiental é estrutural, porque os recursos naturais são es-

72 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
cassos e, dessa forma, não é possível sobreviver a uma crise ambien-
tal. Há interesses atuais que sobrepassam as necessidades vitais das
pessoas e que dependem diretamente dos recursos. Primeiramente,
garantir o acesso aos que necessitam, mas não o tem; em segundo
lugar, é preciso exigir a observância do princípio da responsabilidade
extraterritorial por parte das empresas internacionais que mantêm
atividades em países não industrializados. Por fim, colocou a ques-
tão do Ártico, o problema latente do descongelamento das calotas
polares e o interesse dos Estados na área.
Em sua explanação, a Dr.ª Graciela Pagliari acrescentou o
enfoque em cenários regionais que não necessariamente afetam o
sistema global, causando o desinteresse dos governos. Afirmou que
há muitos problemas a serem resolvidos por meio de medidas tanto
necessárias quanto imediatas.
A Dr.ª Fernanda Sola abordou a questão expondo a notícia de
que, no Dia Internacional do Meio Ambiente, a porção já reduzida
da mata atlântica foi ainda mais reduzida. Disse que o meio am-
biente é um problema ético, técnico, político e econômico, revelando
assim a abrangência do tema. Perguntou como se pode dar um preço
à biodiversidade e a um bem universal. Sua conclusão foi a de que
este é um problema complexo e ainda sem solução, que passa pelo
tratamento da segurança ambiental e de direitos humanos.
O debate foi aberto às perguntas. Theófilo questionou as par-
ticipantes sobre a verificação de um efetivo progresso ao combate à
degradação. Perguntou se existe um ponto neste combate em que nos
podemos espelhar, no sentido de contribuirmos para a sua evolução.
A professora Fernanda respondeu, dizendo que o grande
avanço, principalmente no Brasil, foi a reestruturação em setores
produtivos e de serviços. Contribuiu também a criação do IBAMA,
devendo ser criados outros mecanismos de fiscalização. Assim en-
cerraram-se os trabalhos da mesa.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
73
MINICURSO:
Feminismos são Direitos
Humanos: Importância e Desafios

Por: Isadora Durgante Konzen


Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de
Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

N
o dia 05 de junho de 2013, às 16h, teve início o mi-
nicurso “Feminismos são Direitos Humanos: Im-
portância e Desafios”, ministrado pela Prof.ª Dr.ª
Lola Aronovich e moderado Dr.ª Janine Gomes da Silva. A pales-
trante é professora de Literatura-Inglês no Departamento de Letras

74 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Palestrante: Dr.ª Lola Aronovich

Estrangeiras na Universidade Federal do Ceará. Em 2008 começou


o blog Escreva Lola Escreva, que hoje recebe em média nove mil
visitas diárias.
A palestrante iniciou sua fala com uma crítica à aprovação,
pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados,
do Estatuto Nascituro, Projeto de Lei que estabelece a chamada “bol-
sa-estupro”, uma ajuda de custo para mulheres vítimas de estupro
que decidem não abortar. Essa bolsa, para Lola, representa na ver-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
75
dade uma forma de se comprar a consciência dessas mulheres. Na
opinião da professora, o Estatuto coloca os direitos do feto acima dos
direitos das mulheres, as quais já são seres formados. Ela ressaltou
que somente em 2012 o Supremo Tribunal Federal decidiu a favor
da descriminalização do aborto de fetos anencéfalos e que, apesar
deste recente avanço, o Brasil ainda é o país latino-americano mais
atrasado em matéria de legalização do aborto.
Como consequência da aprovação do Estatuto Nascituro, a
Dr.ª apontou o término de pesquisas com células tronco e da ferti-
lização in vitro. Ademais, a palestrante destacou que não é por via
da criminalização que as mulheres sentem-se impedidas de abortar;
elas apenas não podem fazê-lo de modo seguro. Os abortamentos são
realizados em casa ou em clínicas clandestinas, colocando grandes
riscos à vida e à saúde das mulheres. Ressaltou ainda que o aborto é
hoje é a quarta causa de morte de mulheres no Brasil, configurando
um verdadeiro problema de saúde pública. A ONU, em 2012, ques-
tionou a Presidenta Dilma Rousseff quanto às providências tomadas
em relação à questão, mas, segundo Lola, a influência das bancadas
religiosa e conservadora é tamanha que o Executivo fica impedido
de programar política que vá de encontro aos interesses conserva-
dores. A professora evidenciou a contradição das políticas públicas
sobre o assunto, dizendo que a vida só é defendida até o momento
da saída do bebê do ventre da mãe, após isso, a criança é negligen-
ciada pelo governo no momento em que não se criam novas creches,
por exemplo.
Lola Aronovich conceituou “Feminismo” como “a noção ra-
dical de que mulheres são gente”, já que a mulher, por muito tem-
po, foi considerada um apêndice da figura masculina - como Eva,
que teria sido criada da costela de Adão. Há que se falar em “Femi-
nismos”, no plural, pois, se considerarmos somente a área literária,
por exemplo, encontramos três tendências diversas: a francesa (com
abordagem psicanalista da repressão), a britânica (ideia marxista de
opressão) e a americana (ligada à expressão).

76 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Dando continuidade à sua fala, Lola propôs abortar a coop-
tação do Dia Internacional da Mulher pelo Capitalismo. Citou uma
campanha publicitária da montadora de carros Volkswagen, cujo
conteúdo era a homenagem aos “seres que embelezam os nossos
carros”, reduzindo a figura feminina de tal modo que a mulher não
pode sequer ser considerada como consumidora.
A palestrante fez então uma análise da História, dizendo que
ela é feita por homens e por isso não há muitos dados sobre as mu-
lheres. Comentou que, embora elas tenham participado ativamen-
te na Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos das Mulheres
não foi bem recebida e sua autora foi decapitada. Lembrou também
a questão do voto feminino, primeiramente mencionando que, na
mais recente eleição norte-americana (2012), novamente levantou-
-se a questão de retirar o direito da mulher ao voto. Frisou que, no
Brasil, a mulher tem este direito há apenas 80 anos.
Traçando uma perspectiva histórica, Lola caracterizou os sé-
culos XIX e XX pela conquista dos direitos ao voto e à proprieda-
de; os anos 1960-1980 ao direito sobre o próprio corpo, pela luta
pela igualdade política entre os gêneros: lembrou especialmente
os anos 70, a “década das mulheres” declarada pela ONU, em que
se teve a legalização do divórcio no Brasil (1977). A partir deste
marco, as mulheres conquistaram cada vez mais a sua indepen-
dência, tanto que hoje 70% dos pedidos de divórcios são feitos por
mulheres. A primeira delegacia da mulher foi criada em São Paulo
em 1985, grande avanço no que toca a investigação dos casos de
estupro. Antes disso, o estupro era amplamente desacreditado e as
denunciantes eram submetidas à humilhação de relatar o ocorrido
inúmeras vezes a policiais homens, que muitas vezes se excitavam
com a história.
A utilização do termo “pós-feminismo” foi criticada pela pa-
lestrante, pois ele sugere que o movimento acabou. No entanto, não
há como isso ser verdade, já que seus objetivos ainda não foram to-
talmente alcançados.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
77
Foram apresentados dados estatísticos relacionados ao tema,
segundo os quais: 30% das mulheres brasileiras se consideram fe-
ministas; 70% das pessoas pobres do mundo são mulheres; a ONU
aponta que 70% das mulheres sofrerão violência em suas vidas; o
número de estupros aumentou em 57% nos últimos quatro anos;
somente 2% dos casos de estupro chegam à condenação.
A Dr.ª abordou então a questão do feminicídio, que é a causa
de morte de mais de quatro mil mulheres por ano, sendo que 28%
dos assassinatos de mulheres brasileiras ocorrem dentro da casa da
vítima. Mencionou outros dados importantes, como o de que cinco
mulheres são agredidas a cada dois minutos no Brasil, que o número
de presidiárias no sistema carcerário brasileiro aumenta mais que
o de presos homens, e ainda que infraestrutura das penitenciárias
femininas é inferior à das masculinas.
Englobando âmbitos diversos, Lola comentou que o salário
feminino brasileiro é cerca de 30% inferior ao masculino, até quan-
do ocupam o mesmo cargo, além de informar que, das cem maiores
empresas brasileiras, apenas cinco são comandadas por mulheres.
Apontou também o fato de que a mulher é frequentemente taxada
como péssima mãe se coloca sua carreira à frente da família. Na
política, essa desigualdade é percebida quando vemos que apenas
10% dos países do mundo têm mulheres como presidentas e que
as mulheres compõem menos de 10% do Congresso brasileiro. As
mulheres ainda não são maioria em publicações acadêmicas em ne-
nhuma área, mas já constituem maioria nas universidades, escolas e
pós-graduações, o que resultará, futuramente, em uma melhora nos
salários.
Antes do encerramento da palestra, Lola Aronovich abriu o
debate para a participação geral. Beatriz comentou que denunciou
a página do Facebook “Orgulho de ser hétero” por fazer apologia ao
estupro, mas acabou por descobrir que a empresa não considera
isto razão para denúncia. Lola respondeu mencionando o caso do
boicote de feministas americanas à rede sócia devido à proibição

78 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
da nudez feminina, mas não daquele tipo de página (semelhante à
denunciada por Beatriz). A administração do Facebook emitiu nota
afirmando que vai treinar seus funcionários para detectar esse tipo
de violência.
Sobre este assunto, a palestrante destacou que a liberdade
de expressão, para muitos, significa liberdade de opressão. O que
acontece com frequência é que uma denúncia acaba por “viralizar”
a página com conteúdo inadequado, ou seja, dá-se ainda mais vi-
sibilidade aos discursos preconceituosos. Para ela, o Brasil precisa
aprender rapidamente a lidar com essa situação.
Ao receber o questionamento de Taís sobre a legalização de
prostituição, Lola respondeu que é a favor da regularização da pro-
fissão, ainda que preferisse que a prostituição como “sistema” não
existisse. Assim encerrou-se o minicurso, às 19h.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
79
MINICURSO:
Violação de direitos humanos
e limpeza cultural – A questão
Bahai no Irã

Por: Mariana Serrano Silvério


Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de
Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

À
s quatro horas da tarde do dia cinco de junho de
2013, o professor Jonny Carlos da Silva ministrou o
minicurso “Violação de direitos humanos e limpeza
cultural – A questão Bahai no Irã”, como parte da programação da
IV Semana de Direitos Humanos. Professor e coordenador do depar-
tamento de Engenharia Mecânica na Universidade Federal de Santa
Catarina, o palestrante possui grande interesse pela questão Bahai

80 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Palestrante: Jonny Carlos da Silva
Debatedora: Msc. Valéria Zanette

no Irã e afirma que todo o conhecimento apresentado em sala é ad-


vindo da vivência de mais de vinte e oito anos morando em uma
das comunidades, e não da academia. O tema central do mini-curso
foi a divulgação do que consiste ser a comunidade Bahai e toda a
trajetória de perseguições pelas quais a mesma sofreu desde a sua
criação, objetivando assim difundir um assunto pouco conhecido e
quase não apresentado pela mídia.
O minicurso foi iniciado através da apresentação dos aspec-
tos essenciais e estruturais da comunidade Bahai. Entre os pontos
citados, destacam-se os fundamentos da comunidade, sendo eles os
princípios de unidade na diversidade, liberdade e independência de

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
81
pesquisa, direitos iguais entre homens e mulheres, harmonia en-
tre ciência e religião, educação universal compulsória, eliminação de
preconceitos e revelação progressiva, assim como o fato de que seus
indivíduos residem em mais de 100 mil localidades no globo. A dis-
cussão sobre a limpeza cultural se iniciou através da reflexão sobre
a eficácia e as diretrizes do artigo XVIII da Constituição e de outros
documentos-chave, como a Declaração Bahai de Direitos.
Foi apresentado um vídeo introdutório sobre a história da
perseguição Iraniana à comunidade e seguindo esta linha, foi con-
textualizado o conflito através dos séculos e diferentes localidades.
Mesmo ocupando a posição de maior minoria religiosa no Irã, a per-
seguição e a limpeza cultural originadas pela ignorância ocorrem
desde a criação da comunidade no Irã.
Devido à pressão internacional, o Irã foi forçado a diminuir o
ímpeto inicial de prisões e matanças. Porém, o governo iraniano não
tem permitido à juventude Bahai ingressar ou freqüentar univer-
sidades no país. Seguindo o raciocínio de “mantê-los vivos, porém
burros e pobres”, dados sugerem que a república do Islã e do Irã tem
bloqueado o acesso de mais de 300000 integrantes da comunidade
Bahai ao ensino superior, assim como tem obstruído as iniciativas
da comunidade de fundação de escolas etc. Outro caso apresentado
dentro do contexto em questão foi o manifesto da comunidade co-
nhecido como “ainda estamos vivos”, que trouxe destaque a inicia-
tiva da comunidade de fundar sua própria universidade (Instituto
Bahai de Ensino Superior), mas que foi logo compelida pelo governo
do Irã. As autoridades políticas deste país organizaram uma série de
invasões, prendendo membros, confiscando muitos equipamentos e
por fim, fecharam o Instituto.
Seguindo o tema de limpeza cultural e desrespeito à comuni-
dade Bahai, o palestrante apresentou dados relacionados à violação
do direito à liberdade, relatando as prisões, as mortes e até mesmo a
prática da tortura para com os integrantes. Neste âmbito ainda, dis-
cutiu-se também as violações do direito de defesa e à habitação (pelo

82 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
menos 40 propriedades foram confiscadas desde os anos oitenta)
da comunidade, assim como o fato de que cemitérios e túmulos de
integrantes têm sido destruídos com frequência.
O palestrante levantou questões como a diferença entre prin-
cípios e leis e o porquê da Declaração Universal de Direitos Humanos
tem sido sistematicamente desrespeitada. Ao terminar sua apresen-
tação, o professor apresentou possíveis ações para mudar a situação
recorrente, como por exemplo a campanha “Can you solve this?”.
Para finalizar o minicurso, a debatedora Valéria Zanette, no
posto de pesquisadora dos direitos humanos, reforçou o discurso de
que é necessária a mudança e a conscientização de que somos parte
de um país parte da ONU e que ainda viola direitos básicos como o
da liberdade. Às seis horas, encerrando a sessão, Valéria questiona
o palestrante sobre o que pensam os Bahais da postura das Nações
Unidas em relação a essa perseguição sistemática, a qual o pales-
trante responde que existe o apoio à ONU em suas tentativas de
resolução, mas que é de conhecimento da comunidade a existência
das limitações de ação de instituição em questão.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
83
PALESTRA DE ENCERRAMENTO:
“Direitos Humanos, Segurança Internacional e
Construção da Paz: Desafios o perspectivas”

Autora: Caroline Scotti Vilain


Graduanda em Relações Internacionais na Universidade Federal de
Santa Catarina e Voluntária do Observatório de Direitos Humanos.

N
o dia seis de junho de 2013, às 19 horas e 30 mi-
nutos, aconteceu a palestra de encerramento da IV
Semana de Direitos Humanos: “Direitos Humanos,
Segurança Internacional e Construção da Paz: Desafios o perspecti-
vas”. A palestra foi ministrada pelo Doutor José Augusto Fontoura
Costa, que é professor da Universidade de São Paulo. O Professor
Doutor Ricardo Soares Stersi dos Santos e a Professora Doutora Da-

84 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
nielle Annoni, ambos da Universidade Federal de Santa Catarina,
atuaram como debatedor e moderadora, respectivamente.
O Dr. José Augusto iniciou a palestra trazendo a problemati-
zação sobre a existência de uma convergência teórica entre Seguran-
ça Internacional e Direitos Humanos. Ele mostrou quatro imagens:
a primeira da bomba de Hiroshima, a segunda de dois soldados em
uma trincheira durante a Segunda Guerra Mundial, a terceira de um
campo de extermínio do período do Holocausto e a quarta da arma
AK47, metralhadora utilizada pelo exército soviético em 1947.
O método utilizado para tratar o tema serviu para ilustrar al-
gumas formas de se fazer a guerra, mais especificamente as táticas e

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
85
armas de guerra, de pequena ou longa direção, lícita ou ilícita, justa
ou injusta. Ele indicou que fatos como aqueles não podem voltar a
acontecer e que essa é uma função dos Direitos Humanos.
Colocou em voga, então, a problemática e a teoria: com-
preender, no âmbito internacional, as relações entre Segurança e
Direitos Humanos, assumindo pressupostos realistas e construti-
vistas. A partir daí, o palestrante apresentou dois modelos possí-
veis. Um deles tem segurança e direitos humanos como variáveis
independentes; e o outro consiste na adição, entre as variáveis in-
dependentes, de aspectos econômicos, sociais ou de qualquer outra
natureza.
A segurança interfere nos Direitos Humanos de diversas for-
mas, como na formação histórica, na limitação de sua universali-
dade, na eficácia e efetividades. Os Direitos Humanos interferem,
por sua vez, nas concepções e políticas de segurança, nos limites e
sentidos das tomadas de decisão, nos agrupamentos e identidades,
na universalização dentre outras questões.
Após esta apresentação, o professor Ricardo Stersi retomou as
quatro fotografias inicialmente apresentadas. Começou, então, fa-
lando sobre as armas produzidas pelas duas maiores multinacionais
da área e como os direitos humanos interferem e influenciam essas
empresas e suas decisões. A respeito dos gases utilizados na Primeira
Guerra Mundial, indicou que os mesmos eram tóxicos e, portanto,
poderiam ser utilizados para destruição em massa, evidenciando a
grande importância dessa temática para os Direitos Humanos.
A discussão sobre a foto da bomba de Hiroshima fez emergir
uma discussão sobre guerra total, a qual desconsidera os Direitos
Humanos e a proteção à vida. Mostrou que o padrão de moralidade
se tornaria somente um apêndice. No que diz respeito ao Holocaus-
to, foi trazido à tona o número de 10 milhões de mortos, dentre
eles judeus, ativistas políticos, gays e deficientes mentais, o que evi-
denciou, novamente, a importância de reconhecer as diferenças e

86 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
respeitá-las. Além disso, o Professor mostrou como o mundo sem-
pre possuiu dificuldades em aceitar as diferenças, o que torna ainda
mais complexas as discussões para construção da paz e preservação
dos Direitos Humanos.
Posteriormente à explanação do debatedor, o Professor José
retomou pontos e trouxe a história do Antigo Testamento à tona,
no qual está presente o Deus Jeová, que é extremamente ciumento
e possessivo. Quem cultuasse um Deus universalizante como este,
deveria se dedicar somente a ele. Sua finalidade com esse exercí-
cio histórico foi mostrar as raízes do porque essas exclusões existem
no Sistema Internacional, além das intolerâncias religiosas, as quais
emanam efeitos para outras áreas, por exemplo a social, étnica e
cultural. Com essas colocações foram encerradas as atividades da IV
Semana de Direitos Humanos no fim da noite do dia cinco de junho
de 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
87
EXPOSIÇÃO DE FOTOS

Por: Ana Paula Althoff


Graduanda em Relações Internacionais pela UFSC e bolsista do Ob-
servatório de Direitos Humanos

A
exposição de fotos tem como objetivo conscientizar o
maior número possível de pessoas sobre a importân-
cia dos direitos humanos e como ele é fator comum
no dia a dia dos indivíduos. Nesta Semana de Direitos Humanos, seu
intuito principal foi informar a comunidade acadêmica a respeito da
situação da população onde ocorrem conflitos armados e interven-
ções humanitárias.

88 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Devido ao grande objetivo da exposição, a exposição perma-
neceu durante os três dias da IV Semana de Direitos Humanos para
que, além dos acadêmicos inscritos no evento, as demais pessoas
possam prestigiar a mostra fotográfica. O local escolhido foi o hall
da Biblioteca Universitária e do CSE, em que há grande circulação
de pessoas.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
89
4

Depoimentos dos
Participantes
MAÍRA MACHADO RODRIGUES

Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Fe-


deral de Santa Catarina

O
Observatório de Direitos Humanos tem um papel
fundamental na UFSC, que é consolidar o deba-
te sobre o assunto, através das semanas de direi-
tos humanos e entre outras iniciativas. A IV Semana trouxe como
tema: “Construção da Paz e Segurança Internacional”, que é uma
questão muito interessante, não só para os integrantes dos cursos
de Direito e Relações internacionais, mas para toda comunidade
acadêmica.
As palestras dessa IV edição abordaram temas como: migra-
ções, refugiados, tráfico de pessoas, segurança internacional, entre
outros, que em minha opinião são muito relevantes para conjuntura
internacional que vivemos, e por isso devem ser expostos e debati-
dos. A discussão desses assuntos leva à conscientização, além de in-
centivar a pesquisa e ação da comunidade acadêmica. Tanto quanto
as palestras, as apresentações de trabalhos também proporcionam a
reflexão sobre diversos temas relacionados aos Direitos Humanos,
contribuindo para formação dos alunos que expõem, bem como para
todos que assistem.
Outra iniciativa interessante dessa edição, foi a exposição de
fotografias que teve como resultado diversas fotos que evidenciam a
tolerância entre diferentes culturas, a solidariedade e o respeito, que
são bases fundamentais para os direitos humanos.

92 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
ISABELLA ALONSO PANHO

Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Lon-


drina (UEL)

S
ou aluna do 3º ano do curso de direito da Universidade
Estadual de Londrina (UEL) e participei, pela primeira
vez, da Semana de Direitos Humanos da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), onde eu e minha colega de gra-
duação, Beatriz Oliveira, publicamos um artigo sobre a Dignidade da
Pessoa Humana no Ordenamento Jurídico dos Países do Mercosul.
Vindo de uma universidade situada no interior do Estado
do Paraná, ressalto a importância de existir maior disseminação de
eventos que tratem acerca dos direitos humanos e de direito inter-
nacional. Embora sejam direitos que a todos assistem, os eventos e
a disseminação sobre a temática ainda são, ao meu ver, escassos e
pouco acessíveis aos alunos da graduação.
Como participante, um dos pontos que mais me agradou foi a
simplicidade do evento, sem abrir mão da qualidade. Os palestrantes
trazidos, tanto para as palestras quanto para os workshops durante a
tarde, todos trouxeram contribuições muito significativas e demons-
traram conhecimento e experiência na área das relações e dos direi-
tos internacionais. Contudo, o local do evento, a postura da organi-
zação, o formato da programação, a ausência total de custos para os
participantes (não houve custo de inscrição) foram detalhes cruciais
para fomentar a incentivar a participação dos acadêmicos dos cursos
de direito e de relações internacionais, público-alvo da Semana de
DH da UFSC. Foi uma experiência incrível, gostaria muito de trazer
para a minha universidade muitos conceitos que pude aprender na
IV Semana de Direitos Humanos da UFSC, além de, claro, voltar nas
próximas edições.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
93
5

Artigos
Apresentados por
Professores
Resumo:
O presente artigo se debruça sobre a importância de ser observar e cumprir as normas do
Direito Internacional dos Conflitos Armados durante intervenções humanitárias em confli-
tos armados não-internacionais justificadas pelo princípio da responsabilidade de proteger.
Busca-se provar que a observância do DICA funciona como um fator de legitimidade para as
ações militares pautadas em tal princípio.
Palavras-chave: DICA, CANIs, responsabilidade de proteger.

Sumário:
Introdução. 1 Definições de Conflitos Armados Não-Internacionais. 2 Intervenção Humanitária
sob a ótica da Responsabilidade de Proteger. 3 Conclusão. 4 Referências.

INTRODUÇÃO
A partir do fim da Segunda Grande Guerra, tendo com a que-
da do Muro de Berlim o seu ápice, o número de conflitos de natureza
intraestatal superou consideravelmente os deflagrados entre Esta-
dos, denominados interestatais (FLECK, 2010).
A crescente incidência desses conflitos, também chamados
de conflitos não-internacionais (CANIs), deve-se ao fato de que o

96 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
O direito internacional dos conflitos
armados como instrumento de
legitimidade para as intervenções
humanitárias baseadas no “R2P” em
conflitos armados não-internacionais

Priscila Fett
Mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo; pesquisadora do Observatório de Direitos Humanos da Universidade Fede-
ral de Santa Catarina; possui curso de extensão em Direito Internacional Huma-
nitário pelo Instituto de Direito Internacional Humanitário de Sanremo – Itália.

fim do embate ideológico entre os blocos rivais, EUA e URSS, pro-


piciou a ascensão de uma série de antagonismos étnicos, religiosos,
culturais em diversas regiões do planeta (FETT, 2011).
Para ilustrar essa tendência progressiva, o Departamento de
Pesquisa sobre Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala, na Sué-
cia, disponibilizou o gráfico abaixo para mostrar a evolução da ocor-
rência de conflitos intraestatais.

Fonte: <http://www.pcr.uu.se/research/ucdp/charts_and_graphs/#type>.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
97
Frequentemente, os CANIs encontram solo fértil para se de-
senvolverem em países pobres, onde a capacidade do Estado é fraca,
o respeito aos direitos humanos é praticamente inexistente, e a eco-
nomia e política são instáveis (FETT 2011).
Uma das características mais marcantes desse tipo de confli-
to são os altos índices de baixa entre a população civil. Neste con-
texto, a perda da nitidez na distinção entre combatentes e não-com-
batentes fica comprometida, pois a morte de civis se dá tanto pela
dificuldade em identificá-los em meio aos grupos armados, quanto
pelo fato de terem se tornado alvo deliberado de objetivos militares
ou político-militares (HOBSBAWM, 2007).
Não obstante constituírem grande parcela do número de con-
flitos em andamento no globo, os Estados soberanos não têm in-
teresse em classificá-los como sendo conflitos armados de caráter
não-internacional por não quererem reconhecer sua incapacidade
de controlar a violência dentro dos seus domínios territoriais, fato
que poderia ensejar uma intervenção externa. Desta forma, tendem
a enquadrá-los na categoria de mera tensão interna (SOLIS, 2010).
A verdade é que com a mudança na natureza de conflitos,
uma série de novas e complexas exigências no terreno da segurança
passou a ser exigida. As violações de direitos humanos na forma de
genocídio, massacres, ações de limpeza étnica exigiram da comuni-
dade internacional um novo posicionamento para o gerenciamento
desses conflitos.
Nesse contexto, a Organização das Nações Unidas (ONU) fi-
gura como a principal entidade envolvida na manutenção da segu-
rança e da paz internacionais. Ademais, o compromisso particular
da Organização com a garantia dos direitos humanos, manifesto no
preâmbulo da sua carta1, motivou a busca por soluções que pudes-

1
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA [a]. Carta das Nações Unidas. Preâmbulo: “NÓS, OS PO-
VOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS... a preservar as gerações vindouras do flagelo
da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis
à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e
no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres [...]”. Dis-

98 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
sem harmonizar-se com as novas ameaças, proporcionando uma
maior proteção para as vítimas dos conflitos armados.
Desse modo, debates sobre segurança no âmbito interna-
cional foram ganhando força, fomentando, assim, o surgimento de
relevantes conceitos, destacando-se o da “segurança humana” – o
qual pressupõe uma reorientação do foco da segurança passando do
Estado para o indivíduo2 -, e o da “responsabilidade de proteger”.
Este último conceito, ainda, suscita uma controvertida polê-
mica no meio internacional, ao questionar o paradigma vestfaliano
da soberania estatal, a partir de uma eventual intervenção humani-
tária justificada em nome da preservação dos direitos humanos.
Nessa esteira, JUBILUT (2010) salienta que a questão da
legitimidade internacional em uma intervenção humanitária é
fundamental para possibilitar o emprego da força sem maiores
questionamentos sobre as suas ações e ao mesmo tempo evitar o
enfraquecimento do sistema internacional.
Este trabalho considerará a legitimidade internacional se-
gundo a abordagem normativa proposta por JUBILUT (2010)
que avalia a coadunação das normas internacionais com a tríade
normativa proposta por CLARK (legalidade – moralidade – cons-
titucionalidade), ou seja, a adequação aos valores adotados pela
comunidade internacional, e a validação formal dessas normas
comprovada pela lisura e legalidade dos respectivos processos que
a estabeleceram.
Diante dessa realidade, o respeito aos princípios e normas do
Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA)3, que busca,

ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D19841.htm>.


Acesso em: 03 abr. 2013.
2
COMISSION ON HUMAN SECURITY. Human Security Now. Disponível em: <http://relie-
fweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/91BAEEDBA50C6907C1256D19006A9353-
chs-security-may03.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2013.
3
“Direito Internacional dos Conflitos Armados [...] se revela a mais técnica das nomen-
claturas, considerando que acomoda, sem qualquer esforço interpretativo, tanto a ver-
tente de restrição de meios e métodos de combate quanto a vertente de proteção das

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
99
através de um arcabouço legal, limitar a forma como as partes de
um conflito possam empregar seus métodos e meios de guerra, bem
como proteger as pessoas e bens neles envolvidos, tem-se mostrado
cada vez mais necessário (SWINARSKI, 1996).
O presente trabalho tem como objetivo, portanto, analisar a
relevância da aplicação do DICA para aumentar a legitimidade das
intervenções de caráter humanitário fundamentadas no princípio
da “responsabilidade de proteger”. Nesse sentido, o estudo vai ao
encontro da preocupação manifestada pelo governo brasileiro, mate-
rializada na carta endereçada ao Secretário Geral das Nações Unidas
(SGNU), em 09 de novembro de 2011, a qual sugeriu a formulação
do conceito de “Responsabilidade ao Proteger”4.
Buscar-se-á, inicialmente, caracterizar a natureza dos CANIs,
a fim de que se identifique o corpo normativo a regulá-los, ressaltan-
do a resistência dos Estados em reconhecer esta situação e a forma
como este fato tem sido analisado sob a ótica do Direito Interna-
cional (tratados internacionais/jurisprudência dos tribunais inter-
nacionais/contribuição do Comitê Internacional da Cruz Vermelha
[CICV]).
Em seguida, será apresentado o conceito da responsabilidade
de proteger, mostrando seu escopo de aplicação e narrando sua evo-
lução até atingir o status de princípio emergente do direito consuetu-
dinário internacional.
Por fim, o presente trabalho pretenderá mostrar se o respeito
às normas do DICA por parte das tropas de intervenção poderá co-
laborar para o aumento da legitimidade das suas ações, particular-

vítimas no âmbito dos conflitos armados.”, cf. PALMA, N. Curso de Direito Militar: Di-
reito Internacional Humanitário e Direito Penal Internacional. Rio de Janeiro: Fundação
Trompowsky, 2009. p. 14.
4
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (MRE, 2011). “Conselho de Segurança das
Nações Unidas - Debate Aberto sobre Proteção de Civis em Conflito Armado - Nova
York, 9 de novembro de 2011”. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de
-imprensa/notas-a-imprensa/conselho-de-seguranca-das-nacoes-unidas-debate-aber-
to-sobre-protecao-de-civis-em-conflito-armado-nova-york-9-de-novembro-de-2011/
print-nota>. Acesso em: 19 abr. 2013.

100 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
mente sob o ponto de vista da população do Estado onde for condu-
zida a operação e da comunidade internacional.

1 DEFINIÇÕES DE CONFLITOS ARMADOS NÃO-


-INTERNACIONAIS
O arcabouço normativo do DICA foi forjado no momento his-
tórico em que os conflitos armados de natureza internacional (CAIs)
eram a constante da época. E por esse motivo, o processo que levou à
elaboração das normas do direito internacional humanitário previu
extensas e complexas regras dedicadas a eles.
Até 1977, - ocasião em que foi assinado o Protocolo Adicional
II às Convenções de Genebra relativo à Proteção das Vítimas de Con-
flitos Armados Não-Internacionais (PAII)5 - os Estados resistiram6
à inclusão de previsões sobre situações que tratassem do seu povo
e seu território por temerem abrir uma brecha para ingerências ex-
ternas em questões de cunho doméstico. (NAJLA, 2011) Este temor
tinha raízes no princípio vestfaliano da soberania, sustentado pelo
princípio da não intervenção em assuntos internos.
Entretanto, atualmente, esta não é mais a realidade dos confli-
tos armados. Dados estáticos coletados pela Universidade de Uppsala
informam que no ano de 2011 foram contabilizados 27 conflitos in-
traestatais frente a 1 interestatal7. Há uma necessidade latente, por-
tanto, de se responder às novas demandas decorrentes dos CANIs.
Todavia, vê-se, ainda, o apreço dos Estados ao princípio da
soberania. Pautados nele, os Estados têm buscado mascarar a gra-

5
COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA [a]. Protocolo Adicional II às Conven-
ções de Genebra relativo à Proteção das Vítimas de Conflitos Armados Não-Internacio-
nais. Disponível em: <http://www.icrc.org/por/war-and-law/treaties-customary-law/
geneva-conventions/index.jsp>. Acesso em: 17 abr. 2013.
6
Vale ressalvar que o Artigo 3º Comum às quatro Convenções de Genebra de 1949 já
mencionava os CANIs, mas de forma ampla e genérica.
7
UPPSALA CONFLICT DATA PROGRAM. Ongoing Armed Conflicts. Disponível em: <http://
www.pcr.uu.se/research/ucdp/>. Acesso em: 18 abr. 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
101
vidade e intensidade real das violações em andamento no seu ter-
ritório não apenas para evitar uma intervenção externa, mas para
que as violações e crimes cometidos no seu interior sejam julgados à
luz do ordenamento jurídico interno como crimes comuns, fugindo,
assim, do escrutínio da jurisdição universal sobre crimes internacio-
nais (FLECK, 2010).
Não obstante a inércia dos Estados nesse sentido, os CANIs
contam, para a sua definição, com previsões legais (tratados inter-
nacionais), jurisprudenciais (tribunais internacionais), e posições
firmadas CICV.
Respeitado o caráter cronológico, o Artigo 3º Comum às qua-
tro Convenções de Genebra, de 1949 (Artigo 3º Comum), tem por
objetivo proteger as pessoas envolvidas em um “conflito armado que
não apresente um caráter internacional e que ocorra no território de uma das
Altas Partes”, e elenca inúmeras situações em que a vida de civis não
engajados no conflito e hors de combat deve ser preservada. Trata-se
do único artigo das Convenções de Genebra (CG), de 1949, que faz
referência a CANIs.
Embora não se extraia um conceito claro e objetivo do arti-
go de CANI, PEJIC acrescenta ser amplamente reconhecido o fato
de que esses conflitos são travados tanto entre as forças armadas
de um Estado e grupos armados não estatais, como entre estes úl-
timos grupos (PEJIC, 2011). Dando força a essa tese, o Tribunal
Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII), no julgamento do
caso Tádic, afirmou tratar-se de um CANI nos moldes do Artigo 3º
Comum “wehenever there is [...] protracted armed violence between gover-
nmental authorities and organized armed groups or between such groups
within a State”8.
A importância do Artigo 3º Comum reside no fato da simpli-
cidade com que foi concebido permitir sua aplicação automática, in-

8
INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR THE FORME YUGOSLAVIA . Prosecutor v Ta-
dic - Case IT - 94 -1 – Decision on the Defense Motion for interlocutory Appeal on Juris-
diction. October, 2nd, 1995, § 84.

102 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
dependente de condições de reciprocidade (SOLIS, 2010). Além disso,
suas previsões orientadas pelo princípio da humanidade o classificam
como um “mínimo denominador comum” que deve ser aplicado a
todas as situações de conflito, sendo, portanto, irrelevante a natureza
do conflito, conforme parecer da Corte Internacional de Justiça (CIJ)9.
Mais adiante, em 1977, como já mencionado, foi assinado o
PAII com o fito de complementar e desenvolver o Artigo 3º Comum.
Frise-se, entretanto, que apesar de não modificar as condições de
aplicação do referido artigo, o escopo de aplicação do protocolo é
mais restritivo, abarcando apenas os conflitos que

[...] se desenrolem em território de uma Alta Parte Contra-


tante, entre as suas forças armadas e forças armadas dissi-
dentes ou grupos armados organizados que, sob a chefia de
um comando responsável, exerçam sobre uma parte do seu
território um controle tal que lhes permita levar a cabo
operações militares continuas e organizadas e aplicar o
presente Protocolo. (grifo nosso) (Art. 1, 1, do PAII)

Ao mesmo tempo em que busca dar mais clareza à definição


de CANI, o PAII limita as situações de conflito, não contemplando a
hipótese de um embate travado entre grupos dissidentes. Ademais,
não especifica a porção de território que deve estar sob controle de
uma das partes, tampouco a duração desse controle. Desta feita, po-
de-se concluir que o PAII aplica-se apenas a uma reduzida categoria
de conflitos, ao passo em que o Artigo 3º Comum ampara um núme-
ro maior de hipóteses de CANIs.
O Estatuto de Roma (1998), por sua vez, também apre-
sentou uma definição para CANI. Ao tratar dos crimes de guerra
no artigo 8, (2), f, conceituou conflito armado não internacional
como sendo “conflitos armados que tenham lugar no território de um Es-
tado, quando exista um conflito armado prolongado entre as autorida-
9
INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Military and Paramilitary Activities in and Against
Nicaragua – Nicarágua VS. United States. Judgment of June, 27th 1986, § 218.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
103
des governamentais e grupos armados organizados ou entre estes grupos”10.
(grifo nosso)
Importante frisar que o estatuto de Roma não se propôs a
criar um novo conceito para CANI. A esse respeito, PEJIC ressalta
que o conflito armado não internacional descrito no artigo 8, (2), f,
é o mesmo reproduzido no Artigo 3º Comum (PEJIC, 2011), todavia
não especifica o termo “prolongado”.
No âmbito da sociedade civil, o CICV, instituição promotora e
guardiã do DICA, definiu CANI como sendo

[...] protracted armed confrontations occurring between govern-


mental armed forces and the forces of one or more armed groups, or
between such groups arising on the territory of a State. The armed
confrontation must reach a minimum level of intensity and the
parties involved in the conflict must show a minimum of organi-
zation.” (grifo nosso) (INTERNATIONAL COMMITTEE OF
RED CROSS [a]. How is the Term “Armed Conflict” Defined in
International Humanitarian Law? Opinion Paper, March 2008.
Disponível em: <http://www.icrc.org/eng/assets/files/other/
opinion-paper-armed-conflict.pdf>. Acesso em 19 abr. 2013)

Do exposto, vê-se que ao mesmo tempo em que o DICA ocu-


pa-se da definição de CANI através dos seus tratados, da interpre-
tação dos tribunais internacionais e do debate na sociedade civil, a
imprecisão do conceito atrelada à ausência de um mecanismo de
monitoramento e de um representante internacional legítimo para
definir a natureza dos conflitos em andamento, contribui para que
situações fáticas se percam num limbo jurídico, onde não se sabe
que legislação aplicar.
A importância, portanto, em se definir a natureza do conflito
armado é poder fixar o arcabouço normativo a ser aplicado e, conse-

10
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA [b]. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional,
Decreto 4.388/2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/2002/D4388.htm>. Acesso em: 17 abr 2013.

104 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
quentemente, poder exigir das partes envolvidas o cumprimento das
normas pertinentes ao caso concreto.
Numa situação hipotética ideal, a confirmação por um repre-
sentante legítimo da comunidade internacional de se estar diante
de um CANI exigiria das partes – atores estatais ou não – a estrita
observância das normas do DICA (FLECK, 2010), e as alertaria para
o fato de que em caso de violação de tais normas, poderão responder
internacionalmente por crime de guerra11. (SOLIS, 2010)
Entretanto, inexiste esse representante legítimo da comuni-
dade internacional pois, de um lado os Estados não têm interesse
em classificar seus conflitos armados segundo à natureza jurídica
de CANI, e o CSNU e o CICV - possíveis representantes dada a le-
gitimidade de que gozam junto à comunidade internacional - não
têm mandato para tanto. Desta sorte, a indefinição continua em
aberto.

2 INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA SOB A ÓTICA DA


RESPONSABILIDADE DE PROTEGER
O término da Guerra Fria elevou os direitos humanos na hie-
rarquia axiológica das relações entre os Estados, os quais atingiram
um patamar semelhante ao da soberania. Com a evolução do siste-
ma internacional e o consequente equilíbrio entre os conceitos de
soberania e dos direitos humanos, a argumentação que limitava o
emprego de intervenções humanitárias, baseada na proteção legal
da soberania dos Estados, prevista na Carta das Nações Unidas12,
11
Conceito de “war crimes”: “Serious violations of international humanitarian law consti-
tute war crimes […] The Statute of the International Criminal Court defines war crimes
as, inter alia, ‘serious violations of the laws and customs applicable in international ar-
med conflict and serious violations of the laws and customs applicable in an armed con-
flict not of an international character”, cf. INTERNATIONAL COMMITTEE OF RED CROSS
[b]. Customary International Law, Rule 156, Definition of War Crimes. Disponível em:
<http://www.icrc.org/customary-ihl/eng/docs/v1_cha_chapter44_rule156>. Acesso
em: 18. abr. 2013.
12
Artigo 2º, 7: “Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a in-
tervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
105
tornou-se incoerente, acirrando as discussões nos fóruns internacio-
nais (JUBILUT, 2010).
Durante a vigência do conflito armado na antiga Iugoslá-
via em 1999, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN),
sob o pano de fundo de uma intervenção humanitária, conduziu
operações militares com o emprego da força, sem a autorização do
CSNU. O nobilitante propósito da Organização visava à proteção das
vítimas civis que eram alvos recorrentes das tropas beligerantes,
particularmente da limpeza étnica conduzida pelo partido sérvio.
A atuação da OTAN nesse episódio foi considerada muitas
vezes legítima pelo seu desígnio de caráter humanitário, todavia ile-
gal por não contar com um respaldo jurídico positivado na esfera do
direito internacional13, não obstante o Secretário de Defesa do Reino
Unido ter declarado que as ações da Organização foram fundamen-
tadas no direito consuetudinário internacional14.
O caso de Kosovo fez ressurgir, uma vez mais, o debate sobre
a legitimidade deste tipo de intervenção, empreendida por uma coa-
lizão de países, na ausência de um posicionamento oficial do CSNU
sobre esse tema. Ao mesmo tempo questionou-se a necessidade do
estabelecimento de um critério universal para legitimar e validar le-
galmente operações dessa natureza (ICISS, 2001).
Segundo Bellamy (2002) existem duas correntes principais
que abordam essa problemática: o pluralismo comunitário e o cos-
mopolitismo.
O pluralismo comunitário advoga que as sociedades abando-
nam o estado de natureza Hobbesiana para perseguir seus alvos mo-

ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da


presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coerci-
tivas constantes do Capitulo VII.”, cf. Presidência da República [a].
13
Ver quadro demonstrativo dos principais casos de intervenção por Estados e respectiva
ação da ONU (JUBILUT, 2010, p. 138).
14
UNITED KINGDOM PARLIAMENT. International Law. Disponível em: <http://www.pu-
blications.parliament.uk/pa/cm199900/cmselect/cmfaff/28/2813.htm>. Acesso em:
18 abr. 2013.

106 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
rais. Dentro de uma comunidade, os arquétipos morais são desen-
volvidos baseados em padrões de relações sociais, permitindo que
os princípios morais adotados por diferentes comunidades sejam no
máximo semelhantes (BELLAMY, 2002).
Para os pluralistas, não há consenso a respeito do que consti-
tui uma emergência humanitária suprema ou represente um opres-
sivo abuso dos direitos humanos que possa legitimar uma inter-
venção humanitária. Para este segmento, os direitos humanos são
construídos dentro de um contexto cultural específico e não univer-
sal (BELLAMY, 2002).
Por estas razões, os pluralistas acreditam que as propostas
de padrões éticos e morais universais são tendenciosas e que uma
intervenção humanitária abalaria o conceito de soberania, o qual re-
presenta a única proteção dos Estados fracos.(BELLAMY, 2002).
O pensamento cosmopolita, adotado no presente trabalho,
considera que os indivíduos têm interesses vitais que necessitam
ser resguardados, incluindo suas respectivas proteções individuais
contra possíveis danos, acesso à alimentação, vestuário e moradia
(BARRY, 1998). Igualmente, salienta que o diálogo intercultural é
viável e a humanidade pode crer em ideias substantivas comuns, as
quais podem conduzir a um critério universal que possa legitimar
uma intervenção humanitária.
Após o término da 2ª Guerra Mundial, motivada pelas inú-
meras atrocidades e violações dos direitos humanos que marcaram
aquele conflito, a carta das Nações Unidas cerceou o emprego da
força apenas para as situações que envolvessem a legítima defesa
(individual ou coletiva) ou quando autorizado pelo Conselho de Se-
gurança em função de ameaça à paz ou segurança internacionais15.
15
O artigo 2 (7) da Carta da ONU estabelece que: “ Nenhum dispositivo da presente Carta
autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente
da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos
a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a
aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII.”, cf. Presidência da Repú-
blica [a]. (grifo nosso).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
107
Para Assunção (2009), as intervenções humanitárias são em-
pregadas em situações em que um ou mais Estados decidem, por
iniciativa própria, intervir por via coercitiva no território de outro
Estado, sem o seu respectivo consentimento. As ações visam à pro-
teção de um grupo de indivíduos que são vítimas de graves violações
dos direitos fundamentais perpetradas por seu próprio Estado, ou
devido a sua inação fruto da falência de suas instituições legais e de
segurança.
Ao comparar-se a definição de intervenção humanitária pro-
posta por Assunção com o conteúdo da Carta das Nações Unidas,
constata-se que ações desta natureza, com o emprego da força, não
estão reguladas no corpo deste documento. Surge então o questio-
namento se o conceito de soberania pode ser flexibilizado em prol da
garantia dos direitos fundamentais do homem.
Em busca de uma solução para esta questão, a Assembleia
Geral da ONU reuniu-se em duas oportunidades, nos anos de 1999
e 2000. Nesta última ocasião, Kofi Annan16, SGNU apresentou um
desafio à comunidade internacional, no sentido de se buscar um en-
tendimento consensual da postura que os Estados deveriam adotar
em situações como as vivenciadas em Ruanda e Srebrenica, onde
sistemáticas violações dos direitos humanos comoveram o mundo
(ICISS, 2001).
O governo canadense de forma proativa reafirmou seu pro-
fundo comprometimento com a paz internacional ao instituir a In-
ternational Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS) com
o objetivo de realizar um holístico estudo sobre a questão, de forma
a auxiliar o SGNU e a comunidade internacional a estabelecer um
entendimento comum a respeito dessa temática (ICISS, 2001).
16
Na ocasião Kofi Annan declarou que: “if humanitarian intervention is, indeed, an unac-
ceptable assault on sovereignty,how should we respond to Rwanda, to a Srebrenica
– to gross and systematic violations of human rights that affect every precept of our
common humanity?”, cf. International Commission on Intervention and State Sovereig-
nty (ICISS). The responsibility to Protect. Ottawa: International Development Resear-
ch Centre, 2001. Disponível em: <http://responsibilitytoprotect.org/ICISS%20Report.
pdf>. Acesso em: 14 abr. 2013.

108 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A materialização deste esforço veio por intermédio do do-
cumento intitulado “Responsabilidade de Proteger” (R2P), o qual
representou um importante passo na direção de uma proposta prag-
mática de solução para esta questão.
As origens intelectuais do relatório proposto pela ICISS que
resultou no conceito da R2P, basearam-se na ideia de “soberania
como responsabilidade” formulado por Francis Deng, Representan-
te do Secretário Geral das Nações Unidas para Pessoas Deslocadas
Internamente e por Roberta Cohen, pesquisadora da Brookings Insti-
tution (BELLAMY, 2009).
A soberania de um Estado implica a sua responsabilidade
primária em zelar pela proteção de sua própria população. Todavia,
nas situações de conflitos internos, quando o Estado demonstra in-
capacidade ou falta de vontade política para impedir o sofrimento e
graves danos à sua própria população, a comunidade internacional
tem o dever de intervir (ICISS, 2001).
O objetivo da R2P transcende a busca por um critério univer-
sal para legalizar e legitimar uma intervenção humanitária, apesar
de esse aspecto ser invariavelmente o mais ressaltado. Os estudos
conduzidos pela ICISS foram realizados segundo uma visão ampla
do tema, de forma a criar mecanismos que proporcionem uma prote-
ção adequada à população de um Estado em conflito, considerando
o recurso à força como última alternativa (ICISS, 2001). Com este
escopo o documento estabelece três responsabilidades principais:
– A responsabilidade de prevenir: que direciona os esforços
para as raízes e causas diretas do conflito interno que colo-
cam a população em risco (ICISS, 2001).
– A responsabilidade de reagir: que responde às situações
que ameaçam as necessidades humanas, com medidas
apropriadas, podendo incluir medidas coercitivas como
sanções e em casos extremos intervenções militares
(ICISS, 2001).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
109
– A responsabilidade de reconstruir: que provê, após uma in-
tervenção militar, assistência completa, envolvendo ações de
recuperação, reconstrução e reconciliação (ICISS, 2001).
As causas que justificam uma intervenção militar17 com o
propósito de proteção humanitária sob a ótica da R2P, limitam-se
às situações caracterizadas pela perda de vidas humanas em larga
escala, configurando-se ou não a intenção de genocídio, e de limpeza
étnica (ICISS, 2001).
Em 2005, durante o World Summit, a Assembleia Geral da
ONU definiu o alcance material da R2P limitando-o às situações em
que se caracterizassem crimes de guerra, crimes contra a humanida-
de, limpeza étnica e genocídio18.
Para que as intervenções sejam legítimas, é necessário que o
seu propósito seja o de impedir o sofrimento humano, alicerçado em
uma operação multilateral e pela opinião pública regional e das pró-
prias vítimas do conflito. Elas devem representar o último recurso,
empregando meios proporcionais e com uma razoável projeção de
sucesso, que compense eventuais danos colaterais para a população
(ICISS, 2001).
Ao referir-se à sua dimensão operacional, o texto da R2P en-
fatiza a relevância das regras de engajamento (RE) como fator críti-
co para a proteção da população, as quais devem refletir uma estrita
observância do DICA. Nesse sentido, o estudo estabelece como do-
cumentos integrantes do arcabouço normativo a orientar as ações
respaldadas na R2P as quatro Convenções de Genebra de 1949, e os
seus Protocolos Adicionais I e II de 1977 (ICISS, 2001).
Para a confecção das RE a ICISS salienta, inclusive, que elas
devem reconhecer que determinados armamentos, banidos em acor-

17
A nomenclatura adotada ICISS em substituição à intervenção humanitária se deu em
virtude das críticas tecidas por organizações humanitários referentes à militarização do
termo “humanitário”, ICISS, 2001.
18
UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY [a]. 2005 World Summit Outcome. A/RES/60/1,
§ 138.

110 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
dos internacionais, como a Convenção de Ottawa sobre minas ter-
restres, não devem ser empregados (ICISS, 2001).
Jubilut (2010) ressalta que a ICISS sugere a adoção de um
código de conduta para regular as formas que uma intervenção deve
seguir, constituindo um aspecto positivo da nova doutrina, pois iria
criar mecanismos para responsabilizar as ações da força intervento-
ra, aumentando o respeito pelo DICA e, consequentemente, a legali-
dade e a legitimidade das ações realizadas.
Tanto a Comissão, quanto o SGNU, através do seu relatório
intitulado “Painel sobre Ameaças, Desafios e Mudanças”19, em 2004,
referiram-se à R2P como um princípio emergente do direito consue-
tudinário internacional, sinalizando um entendimento comum no
âmbito da comunidade internacional (BELLAMY, 2009). Este fato
ganhou ainda mais notoriedade e relevância no momento em que
a R2P foi reconhecida unanimemente pelos Estados membros da
ONU, durante a Cúpula Mundial em 2005.
Apesar desse reconhecimento explícito da comunidade inter-
nacional, o princípio da R2P encontrou, na prática, certas resistên-
cias e foi alvo de inúmeras críticas, suscitando calorosos debates nos
mais variados fóruns de discussão. Os menos entusiasmados e mais
reticentes quanto à aplicação do R2P foram os países do 3º mundo
que viam a R2P como um provável instrumento para violação de
suas respectivas soberanias20.
No ano de 2009, o SGNU, Ban Ki-moon, por intermédio do
relatório “Implementando a responsabilidade de proteger”21, procu-
rou minimizar este receio. O relatório salientou, uma vez mais, que
cada Estado tem a responsabilidade de proteger a sua respectiva po-

19
UNITED NATIONS. A More Secure World: Our Shared Responsibility. Disponível em:
<http://www.un.org/secureworld/report2.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2013.
20
Tal preocupação não é injustificada dado que desde o século XVII a guerra apresenta
objetivos econômicos. (HELD apud JUBILUT, 2010, p. 159).
21
UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY [b]. Implementing the Responsibility to Protect,
A/63/677.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
111
pulação de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes con-
tra a humanidade. Entretanto, quando este Estado falha em propor-
cionar esta proteção, a comunidade internacional deve estar pronta
para atuar de forma coletiva autorizada pelo Conselho de Segurança
das Nações Unidas.
Esse mesmo relatório ressaltou que a melhor forma de im-
pedir que Estados ou coalizões de Estados venham a utilizar a R2P
seguindo outros propósitos é desenvolver estratégias, padrões, pro-
cessos, ferramentas e práticas das Nações Unidas para a R2P.
Nesse diapasão, o relatório apresentou uma estratégia basea-
da em três pilares, sendo o primeiro pilar caracterizado pela respon-
sabilidade primária de cada Estado de proteger sua respectiva po-
pulação. O segundo pilar reafirmou o compromisso da comunidade
internacional de assistir o Estado no cumprimento de suas obriga-
ções. Finalmente, o terceiro pilar baseou-se na atuação dos Estados
membros, de forma coletiva, nas situações em que um determinado
Estado falhe em prover proteção à sua própria população.
Ao abordar o primeiro pilar, o relatório destacou a importân-
cia dos Estados aderirem aos tratados concernentes ao DICA num
primeiro momento. Estes tratados devem, subsequentemente, ser
incorporados ao ordenamento jurídico nacional, de forma que os
quatro tipos de crimes22 elencados no parágrafo 138 da 2005 World
Summit Outcome estejam tipificados nas leis domésticas. O documen-
to ainda ressalta a necessidade de que os responsáveis pela aplicação
das leis e pelos processos judiciais recebam um treinamento sobre o
DICA, salientando a atuação do CICV na disseminação de conheci-
mentos sobre esta temática.
No tocante ao posicionamento do Brasil frente ao princípio da
R2P, o governo tem sido cauteloso, sempre consonante com a diplo-
macia pacífica brasileira e com os princípios constitucionais de respei-
to à soberania e não-intervenção. Ao expressar o seu posicionamento
22
Crimes de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade.

112 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
sobre o tema, tem sempre enfatizado a importância do foco na pre-
venção e no emprego de ações militares como derradeiro recurso.
Alinhado com este pensamento, a presidente Dilma em seu
discurso23 na abertura do Debate Geral da 66ª Assembleia Geral das
Nações Unidas, realizada em Nova York em 2011, externou a preo-
cupação brasileira de que os Estados observem a “responsabilidade
ao proteger”, nas situações em que a força for empregada com fulcro
no princípio da R2P.
Posteriormente, este novo conceito foi melhor desenvolvido
na oportunidade em que a Embaixadora Maria Luiza Viotti apresen-
tou o discurso do Ministro das Relações Exteriores, no Debate Aber-
to do Conselho de Segurança sobre Proteção de Civis em Conflito
Armado, realizado em 9 de novembro do mesmo ano, na cidade de
Nova York24. Nesta ocasião, a delegação brasileira divulgou entre os
presentes, o documento “Responsabilidade ao Proteger: Elementos
para o Desenvolvimento e Promoção de um Conceito”.
No texto, o governo brasileiro lembra que o mundo atualmen-
te sofre com algumas consequências dolorosas de intervenções que
agravaram conflitos já existentes, permitindo que o terrorismo pene-
trasse onde anteriormente não estava presente, ocasionando novos
ciclos de violência, tornando as populações civis mais vulneráveis.
O governo brasileiro salienta, então, que a comunidade inter-
nacional deve demonstrar responsabilidade ao proteger e para tanto
é fundamental que um conjunto de princípios fundamentais, parâ-
metros e procedimentos seja observado.
Dentre eles, ressalta-se que as eventuais ações militares se-
jam realizadas em estrita conformidade com o direito internacional,
23
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA [c]. Discurso da Presidenta da República, Dilma Rousseff,
na abertura do Debate Geral da 66ª Assembleia Geral das Nações Unidas - Nova York/
EUA. <http://www2.planalto.gov.br/imprensa/discursos/discurso-da-presidenta-da
-republica-dilma-rousseff-na-abertura-do-debate-geral-da-66a-assembleia-geral-das-
nacoes-unidas-nova-iorque-eua >. Acesso em: 19 abr. 2013.
24
MRE, 2011.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
113
particularmente com o DICA. Nas ações em que o uso da força for
autorizado ele deve ser judicioso, proporcional e limitado aos objeti-
vos impostos pelo CSNU. Este deve assegurar que aqueles que foram
investidos de autoridade para empregar a força, sejam responsabili-
zados pelos seus atos.
Analisando o documento apresentado pela Embaixadora
Maria Luiza Votti à Assembleia Geral, vê-se a fundamentação em
dois princípios fundamentais do DICA, os princípios da proporcio-
nalidade e da necessidade militar.
O primeiro refere-se ao uso proporcional da força quando au-
torizada pelo CSNU. Considera-se como exemplo de violação deste
princípio a condução de um ataque que possa causar ferimentos e
mortes de civis, danos a instalações civis, ou a combinação de am-
bos, sendo considerados excessivos em relação à vantagem militar
presumida25.
Segundo Francis Lieber (2011), a necessidade militar “as un-
derstood by modern civilized nations, consists in the necessity of those mea-
sures which are indispensable for securing the ends of the war, and which
are lawful according to the modern law and usages of war.”26
(grifo nosso)
Ao se limitar, portanto, os objetivos da intervenção militar ao
estritamente necessário para que os objetivos delineados pelo CSNU
possam ser alcançados, pode-se afirmar que o princípio da necessi-
dade militar está sendo observado.
Para que o DICA seja corretamente aplicado em operações de
intervenção humanitária, é fundamental que os países contribuintes
de tropas sejam signatários dos tratados e convenções que versam
sobre o direito internacional humanitário. Este é o ponto de partida

25
Artigo 51.5 (b) do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra (1977), cf. Comitê
Internacional da Cruz Vermelha [b]. Disponível em: <http://www.icrc.org/por/war-and
-law/treaties-customary-law/geneva-conventions/index.jsp>. Acesso em: 14 abr. 2013.
26
AVALON PROJECT – YALE LAW SCHOOL. Lieber Code. Article 14. Disponível em: <http://
avalon.law.yale.edu/19th_century/lieber.asp#sec1>. Acesso em: 17 abr. 2013.

114 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
para que haja o compromisso das forças empregadas em respeitar os
seus princípios e normas.
Como ressaltado, dentro do primeiro pilar referenciado no re-
latório “Implementando a responsabilidade de proteger”, é funda-
mental que os países signatários do DICA tenham os seus princípios
e norma internalizados, ou seja, que eles integrem o ordenamen-
to jurídico doméstico. Este fato fará com que as tropas empregadas
em uma intervenção humanitária possam responder por eventuais
violações do DICA em seus países de origem e internacionalmente,
aumentando a credibilidade da operação e minimizando a possibili-
dade de impunidade.
Acrescente-se, a necessidade de as tropas empregadas em si-
tuações desta natureza receberem treinamento adequado em seus
respectivos países para que tomem conhecimento dos princípios e
normas do DICA e possam, assim, atuar em conformidade com as
regras de engajamento.
A capacitação das forças é uma medida que vai ao encontro
da proposta brasileira referente à “responsabilidade ao proteger”, na
medida em que as tropas, uma vez instruídas, terão maior zelo pela
população civil, minimizando os efeitos colaterais das ações militares.
Desta feita, a atuação da tropa em conformidade com os prin-
cípios e normas do DICA implicará menos críticas por parte da opi-
nião pública internacional e maior apoio da população e do governo
local às ações empreendidas pela força de intervenção.

3 CONCLUSÃO
Após a 2ª Guerra Mundial observa-se uma patente mudança
no perfil dos combates e guerras. Os conflitos de caráter não-inter-
nacional tem predominado no cenário global, eclodindo em países
caracterizados pela instabilidade política e econômica, envolvendo
um maior número de atores e afetando a população civil em maior
escala.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
115
Os países onde estes conflitos se desenvolvem procuram ca-
racterizá-los como tensões e distúrbios internos. A adoção desta pos-
tura tem como objetivo preservar suas respectivas soberanias, dimi-
nuindo a ingerência externa, e administrando a situação de acordo
com ordenamento jurídico doméstico. Entretanto, na prática, a po-
pulação civil é vítima de violações do DICA devido à ineficácia dos
Estados em proteger seus próprios cidadãos.
A dificuldade em se definir a situação de conflito armado não-
-internacional tem origem na ausência de um conceito claro nos tex-
tos das Convenções de Genebra. Posteriormente, com o advento do
Protocolo Adicional II o conceito de conflito-armado não-internacio-
nal foi melhor estruturado, entretanto, devido aos rígidos critérios
estabelecidos, o seu escopo de aplicação foi restringido.
Nessa esteira, nem o Estatuo de Roma, tampouco a definição
apresentada pelo CICV sanaram a dúvida ou preencheram a lacuna
jurídica referente à conceituação de CANI, fato esse agravado pela
falta de um representante legítimo internacional responsável por
classificar os conflitos em andamentos no globo. A dúvida, portanto,
persiste.
Independentemente de classificação, o fato é que a popula-
ção civil tem sofrido muito com esses conflitos. A comunidade in-
ternacional, por intermédio da ONU, tem buscado mecanismos que
possam aumentar a proteção dessas pessoas.
Em prol desse objetivo, foi formulado o princípio da R2P
fundamentado em um amplo estudo, que buscou estabelecer um
entendimento comum a respeito de intervenções humanitárias em
países, cujas populações sejam alvo de graves violações dos direitos
humanos e do DICA.
Apesar do estudo feito pela ICISS prever o emprego da for-
ça como último recurso, ainda pairam dúvidas e afloram acirrados
debates sobre a legitimidade e a legalidade de intervenções milita-
res fundamentadas neste princípio. Os críticos do princípio da R2P

116 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
alegam que ele ameaça o consolidado conceito de soberania e que as
intervenções humanitárias desta natureza, muitas vezes geram mais
danos à população do que o próprio conflito.
Sobre este último aspecto, o governo brasileiro ressaltou a
importância de se atentar para a “responsabilidade ao proteger”
quando for invocado o princípio da R2P. Essa perspectiva brasileira
salienta que as tropas empregadas como força de intervenção devem
zelar para que os princípios e normas do DICA sejam aplicados em
todas as situações.
Ao respeitar-se estritamente o DICA nas operações de inter-
venção humanitária, infere-se que serão observadas menores bai-
xas no seio da população civil, e as tropas respeitarão as normas
internacionais, coerentes com os valores adotados pela comunidade
internacional, contribuindo para legitimar as ações militares junto à
população local e à comunidade internacional.
Pode-se, portanto, concluir que a aplicação do DICA constitui
uma importante ferramenta para aumentar a legitimidade de uma
intervenção militar de caráter humanitário, sendo algo almejado
pela sociedade internacional. Nesse sentido SHAW diz

A crescente interdependência dos Estados no mundo mo-


derno faz com que seja cada vez mais difícil para os Es-
tados não envolvidos e as organizações internacionais
ignorar os conflitos civis [...], ao mesmo tempo que a evo-
lução da legislação sobre os direitos humanos contribuiu
para pôr fim à crença de que os eventos que ocorrem no
interior de um Estado não dizem respeito a outros Esta-
dos ou pessoas. Coerentemente com esse ponto de vis-
ta, a comunidade internacional está atualmente
mais predisposta a exigir a aplicação do direito hu-
manitário internacional aos conflitos internos.27
(grifo nosso)

27
SHAW, M. Direito Internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 882.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
117
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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
119
Resumo:
O artigo tem como objetivo central destacar a preocupante situação da categoria de indivídu-
os reconhecida como “refugiados econômicos” e a busca dessas pessoas pela efetivação do
direito ao desenvolvimento. O texto apresenta a descrição do que se compreende por refu-
giados econômicos. A essa categoria, normalmente, não é estendida, de maneira imediata, a
clássica proteção do Estatuto do Refugiado de 1951, mas nem por isso tais indivíduos devem
ficar à margem da proteção internacional, principalmente junto a um cenário de proteção dos
direitos humanos. Considerando tal fato, tem-se a definição do direito ao desenvolvimento, o
que de fato buscam os indivíduos enquadrados como refugiados econômicos. Porém, na bus-
ca da concretização deste direito, deparam-se com os problemas relacionados à efetivação e
titularidade do mesmo.
Palavras-chave: Refugiados econômicos – Direito ao desenvolvimento – Direitos Humanos
Keywords: Economic Refugees – Right to development – Human Rights

Sumário:
Introdução. I. Refugiados econômicos e a busca pelo direito ao desenvolvimento. II. Carac-
terização do direito ao desenvolvimento. III. A questão da titularidade e efetividade do direito
ao desenvolvimento. Considerações Finais. Referências.

INTRODUÇÃO
A movimentação internacional de pessoas não é um aconte-
cimento recente, típico da modernidade. Desde sempre as pessoas

120 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Refugiados econômicos e a questão do
direito ao desenvolvimento

Mônica Teresa Costa Sousa


Doutora em Direito (UFSC). Professora dos cursos de graduação em pós-gradua-
ção em Direito da UFMA. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Direito e De-
senvolvimento (UFMA). Avaliadora do INEP/MEC. (mtcostasousa@uol.com.br)

Leonardo Valles Bento


Doutor em Direito (UFSC). Analista de Finanças e Controle da Controladoria Geral
da União (CGU). Professor do curso de graduação em Direito da Unidade de Ensino
Superior Dom Bosco (UNDB). (vallesbento@gmail.com)

se deslocam entre as fronteiras, pelos mais variados motivos: por


necessidade econômica, para fugir de conflitos armados, porque so-
frem perseguições ideológicas ou simplesmente porque querem.
E essa diversidade de motivos implica também uma diver-
sidade de proteção e controle, vez que os Estados são soberanos e
decidem quem pode e quem não podem permanecer no interior de
suas fronteiras.
Mudar de país já foi bem mais fácil. Hoje em dia, em razão
das crises econômicas e particularmente da crise do Estado de Bem
Estar, muitos países adotam leis de imigração e entrada mais restri-
tivas, esquecendo-se mesmo dos compromissos internacionalmente
assumidos.
Hoje não buscam segurança em outros países apenas pessoas
que fogem dos efeitos da guerra ou que buscam proteção em razão
de perseguição política. Muitos indivíduos buscam a realização de
seus direitos mais básicos, buscam proteção em razão de colapsos
ambientais ou simplesmente buscam melhor qualidade de vida. Em
todas essas situações tem-se o ser humano que merece proteção in-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
121
terna e que em nível internacional deve contar com um sistema de
reconhecimento dos direitos humanos. Os refugiados, hoje, não são
apenas aqueles enquadrados na Convenção sobre o Status de Refu-
giado de 1951; são também os denominados refugiados ambientais
e os refugiados econômicos, esta última a categoria objeto de análise
neste artigo.
Os refugiados econômicos, embora não sejam formalmente
reconhecidos como refugiados, buscam a implementação e garan-
tia do direito ao desenvolvimento, que pode ser enquadrado como
a síntese dos direitos econômicos e sociais. Considerando-se desen-
volvimento como um processo que vai além da garantia de renda e
consumo, o direito ao desenvolvimento para a ser enquadrado como
direito humano, a partir da Declaração sobre o direito ao desenvol-
vimento, de 1986, celebrada junto à Assembleia Geral das Nações
Unidas. É certo que o mero reconhecimento internacional não é su-
ficiente para a efetivação deste direito, e também não significa que
a simples transposição de fronteiras garante ao indivíduo a concre-
tização do direito, mas o fato é que cada vez mais pessoas estão dei-
xando seus locais de origem simplesmente porque em tais lugares
não têm oportunidades de prover os mais básicos dos direitos.
O artigo apresenta, neste contexto, a caracterização desta ca-
tegoria crescente – os refugiados econômicos – e as dificuldades en-
contradas para sua proteção mesmo ante o sistema internacional de
garantia e reconhecimento dos direitos humanos, considerando se é
ou não cabível a determinação do termo “refugiados” e se deve ou
não ser aplicada a Convenção de 1951 a estes casos.
Num segundo momento, considerando que os refugiados
econômicos partem em busca da supressão de privações básicas, o
texto se volta à caraterização do direito ao desenvolvimento, enqua-
drando o mesmo como um direito humano e desta forma tomando
parte no sistema internacional de proteção destes direitos.
Por fim, volta-se o texto às problemáticas encontradas para a
efetivação e garantia do direito ao desenvolvimento, passando pela

122 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
dificuldade de reconhecimento formal em âmbito interno bem como
pela questão da titularidade do mesmo.

I REFUGIADOS ECONÔMICOS E A BUSCA PELO


DIREITO AO DESENVOLVIMENTO
Não é atual a problemática envolvendo a movimentação in-
ternacional de pessoas. Os grandes fluxos migratórios ocorrem há sé-
culos, com momentos de maior ou menor intensidade. Em períodos
marcados por conflitos armados internacionais, como as duas Gran-
des Guerras Mundiais, certamente há uma intensificação do fluxo
de pessoas. O mesmo se pode dizer em razão dos conflitos armados
que não alcançam proporções internacionais, como as guerras civis,
mas que infelizmente são capazes de levar um grande número de
pessoas a deixar seus países de origem em busca de segurança.
Considerando esta situação, desde a década de 1950, no sé-
culo XX, se tem um documento internacional reconhecido e apto a
atender, de maneira razoavelmente satisfatória, as pessoas que se
encontram em situações limite de perseguição, caracterizando-se
como refugiados. De acordo com o Estatuto do Refugiado, pode ser
definido como tal aquele que está fora de seu país ou que não pode
recorrer à proteção do mesmo em razão do fundado temor de perse-
guição por motivos de raça, religião, nacionalidade, por pertencer a
um determinado grupo social ou por razões políticas (art. 1º).
Entretanto, esta definição não é suficiente para enquadrar
as diversas categorias de pessoas que atualmente deixam seus paí-
ses de origem, não apenas pelo temor de perseguição política, mas
também por motivos outros que se relacionam diretamente com a
questão dos direitos humanos. Considerando que tais são indisso-
ciáveis, não se trata apenas da garantia dos direitos humanos de
primeira dimensão (direitos civis e políticos), estes perfeitamente
enquadrados na definição estabelecida pela Convenção de 1951,
mas também se apresentam hoje problemas relacionados ao fluxo
de pessoas sem perspectiva de garantia dos direitos de segunda di-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
123
mensão, tais sejam os direitos econômicos, sociais e culturais, bem
como dos direitos de terceira e quarta dimensão, dentre eles o direito
ao desenvolvimento.
Justamente neste ponto reside a grande problemática: a iden-
tificação e reconhecimento, ainda que não de maneira formal, de
novas categorias de refugiados, tais sejam os refugiados ambientais
e os refugiados econômicos, sendo que sobre esta última categoria
versa especificamente este trabalho28.
Para esta identificação, faz-se necessário num primeiro mo-
mento estabelecer a diferença entre o migrante econômico e o refu-
giado, fundamental para se determinar inclusive se a Convenção de
1951 e os demais instrumentos de proteção aos refugiados podem
incidir sobre a categoria dos refugiados econômicos.
Com o crescimento da população mundial e a relativa facili-
dade de deslocamento populacional, cada vez é maior o número de
pessoas que deixam seus países de origem em busca de melhores
condições de vida, principalmente a partir da divulgação de indica-
dores como o Índice de Desenvolvimento Humano, que faz com que
pessoas originárias de países com baixo IDH migrem para países de
IDH mais elevado, nos quais se espera uma melhor qualidade dos
serviços de saúde, educação e maiores oportunidades de obtenção
renda, considerando-se os indicadores básicos componentes do Ín-
dice de Desenvolvimento Humano.
Entretanto, fatores como a crise econômica, principalmente
nos países da Europa ocidental têm feito com que tais países endure-

28
Refugiados ambientais podem ser definidos como “[...] pessoas forçadas a deixar seu
habitat natural, temporária ou permanentemente, por causa de uma marcante per-
turbação ambiental (natural e/ou desencadeada pela ação humana), que colocou em
risco sua existência e/ou seriamente afetou sua qualidade de vida. Por “perturbação
ambiental”, nessa definição, entendemos quaisquer mudanças físicas, químicas, e/ou
biológicas no ecossistema (ou na base de recursos), que o tornem, temporária ou per-
manentemente, impróprio para sustentar a vida humana”. (EL-HINNAWI, Essam. Envi-
ronmental Refugees. Nairobi: United Nations Environment Programme (UNEP), 1985,
p. 04-05. Disponível em: <http://www.bookdepository.co.uk/Environmental-Refugees
-Essam-El-Hinnawi/9789280711035>. Acesso em: 12 abr. 2013).

124 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
çam a política migratória, tornando cada vez mais difícil a migração
e a oportunidade de regularização da situação das pessoas que cada
vez mais procuram esses países, vindos principalmente de países afri-
canos. Ainda que a África esteja assolada por conflitos civis e muitas
pessoas realmente deixam os países deste continente em razão de
tais embates, é cada vez maior o número de indivíduos que, em gru-
pos ou isoladamente, buscam nos países da Europa a realização dos
direitos humanos mais básicos. Para Erika Feller (2011, p.15), tais
pessoas travam uma “luta diária por legitimidade, para estabelecer
uma residência legal, para se mover livremente, para emprego, para
ter acesso à assistência médica e educação para os filhos”.
De acordo com o ACNUR, hoje mais de 43 milhões de pes-
soas ao redor do mundo podem ser enquadrados como “deslocados
forçados”, sem que necessariamente o sejam em razão de conflitos
armados ou perseguições políticas (ACNUR, 2013), e cada vez mais a
Convenção de 1951 se torna um instrumento inadequado para lidar
com todos os casos que envolvem o fluxo internacional de pessoas.
Considerando tal fato, tem-se, num primeiro momento, a
distinção entre o grupo diretamente beneficiado pela Convenção de
195, tal seja o grupo representado pelos refugiados de guerra e os
refugiados políticos, o grupo representado pelos migrantes econômi-
cos e o grupo representado pelos refugiados econômicos.
Em relação ao primeiro, a definição já foi apresentada e este
grupo é abrangido pela Convenção. Já os migrantes econômicos ca-
racterizam-se pela voluntariedade. Este migrante, no dizer de Paulo
Borba Casella (2001), poderia ao menos em tese, subsistir em seu
país de origem. Mas diante da insatisfação com as condições locais,
se desloca para outro país, em busca de melhores condições de vida.
Neste caso, observa-se que outros dispositivos internacionais são
cabíveis para a sua proteção, como a Convenção Internacional so-
bre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e
dos Membros das suas Famílias, adotada pela Resolução 45/158, de
18/12/1990, da Assembleia-Geral das Nações Unidas.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
125
Num outro quadro estão inseridos os “refugiados econômi-
cos”, forçados a deixar seus países de origem pela total impossibili-
dade de satisfazer suas necessidades vitais básicas. O refugiado eco-
nômico é, nas palavras de Ana Paula Cunha (2008, p. 192), movido
pelo instinto de sobrevivência. Apesar de não reconhecidos como
uma “categoria” oficial de refugiados, os refugiados econômicos não
podem como já sinalizado, ficar à margem do sistema internacional
de proteção à pessoa humana.
Erika Keller (2011) destaca as hipóteses de cabimento ou não
da Convenção de 1951 e dentre estas situa a questão das migrações
com finalidade econômica. Para a autora, há quatro hipóteses para
sustentar ou não a aplicabilidade da convenção. Num primeiro mo-
mento, estão os refugiados por motivos de perseguição e violência
direcionada, enquadrados de maneira natural no art. 1º. Neste caso,
a Convenção de 1951 é cabível e relevante. Logo após, Keller destaca
os fluxos migratórios em larga escala, envolvendo supostos refugia-
dos; neste caso, a Convenção é uma aspiração e pode ser aplicada.
Em outro quadro, a autora situa as pessoas que se deslocam
forçosamente, mas por um motivo diferenciado da perseguição po-
lítica ou violência, e destaca que a Convenção de 51 não deveria ser
aplicada, cabendo aqui um modelo distinto de proteção. Podem ser
enquadrados os refugiados ambientais. A fim de ilustrar esta situa-
ção, Keller (2011, p. 23) aponta que “[...] pessoas são deslocadas
para além de suas fronteiras em uma combinação de fatores que as
deixam muito vulneráveis ou que exacerbem vulnerabilidades a tal
ponto que fugir torna-se mais viável que permanecer”.
Por fim, têm-se os fluxos migratórios mistos que incluem
migrantes em sentido clássico. Fluxos mistos incluem não apenas
migrantes no sentido clássico, mas também pessoas com necessida-
des imediatas. Em tal questão a Convenção verdadeiramente não se
aplica. Nunca houve a intenção, por parte do ACNUR e da própria
Convenção, de abordar essa questão por meio de mecanismos de
proteção de refugiados. Sobre esta aparente lacuna da Convenção de

126 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
1951, Erika Keller (2011, p. 27) argumenta: “Essa não é uma falha
da Convenção, e esta não pode ser responsabilizada pela incapaci-
dade dos Estados de lidar de maneira efetiva com a migração em
massa”.
Sobre esta não aplicabilidade, Ana Paula Cunha (2008) des-
taca que o sistema internacional de proteção aos refugiados não
pode ser imediatamente aplicado aos migrantes em sentido lato, sob
pena de erosão do sistema. Além disso, a Convenção de 1951 foi
elaborada, como já ressaltado, num contexto de proteção imediata
aos direitos de primeira dimensão, o que não afasta, em absoluto, a
necessidade de se estender todos os mecanismos de proteção inter-
nacional dos direitos humanos às demais categorias, como os refu-
giados ambientais e refugiados econômicos, considerando principal-
mente a indivisibilidade que marca os direitos humanos.
Justamente em razão dessa indivisibilidade que os direitos
econômicos e sociais não podem passar ao largo do sistema inter-
nacional de proteção à pessoa humana. Pessoas que se deslocam em
razão da falta grave de efetividade dos direitos econômicos e sociais
precisam de proteção internacional, mas muito se questiona sobre
o alcance desta proteção, vez que envolve questões como até que
ponto um país deve abrir suas fronteiras a pessoas fugindo de uma
situação causada pela ineficiência de seus próprios Estados? Ou ain-
da, qual tipo de ajuda ou proteção o Estado estrangeiro deve prover?
Tais questões continuam sem resposta, e muitas vezes é mais
fácil e até mesmo compreensível que o país de destino se negue a
receber tais pessoas, seja em razão da sua própria incapacidade eco-
nômica, seja por pressão de seus nacionais, afinal, como sinalam
Liliana Jubilut e Silvia Apolinario (2011, p. 289), a violação de direi-
tos econômicos e sociais ocorre mais por negligência que por meio
de um ato formal ou ações específicas de um agente perseguidor.
Apesar de reconhecer as dificuldades em separar a situação de um
indivíduo das condições gerais de seu país, as autoras alertam para
um caso em que se pode caracterizar a perseguição ou o ato formal: é

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
127
quando a ausência de condições de efetivação dos direitos econômi-
cos e/ou sociais é direcionada a um determinado grupo ou categoria,
como acontece com os ciganos, como se vê:

O dilema dos direitos econômicos, sociais e culturais en-


contra-se no fato de que, se um Estado falha em prover tais
direitos para toda a população por meio de políticas e pro-
gramas, é difícil argumentar casos individuais, alegando que
tais direitos não são realizados. O que se pode argumentar
é que, em razão de suas opiniões políticas, sua etnia, ou de
pertencimento a algum grupo social, esses indivíduos são
privados por um agente – o Estado ou outra entidade com
poder suficiente – de trabalhar, de receber educação ou tra-
tamento de saúde. O ponto crucial é que o Estado, ou outro
agente atua contra o indivíduo, e isso constitui uma perse-
guição (2011, p. 289).

Portanto, ao se considerar a vulnerabilidade de determinados


grupos ou categorias em relação aos direitos econômicos e sociais,
há como enquadrar os mesmos no sistema clássico de proteção ao
refugiado, vez que há uma ação dirigida. Porém, a dificuldade se
perpetua se as condições precárias de efetivação dos direitos econô-
micos e sociais são genéricas em determinado território.
O que se tem, quando da generalização da precariedade da
efetivação dos direitos de segunda, terceira e quarta dimensões é
justamente o não reconhecimento e garantia do direito ao desen-
volvimento, considerado este como um processo de expansão das
capacidades e supressão de privações. E no dizer de Liliana Jubilut e
Silvia Apolinário (2011, p. 290), “[...] indivíduos aos quais é negado
o direito ao desenvolvimento, consoante a Declaração sobre o Direito
ao Desenvolvimento (1986) continua sem proteção internacional”.
Os refugiados econômicos se enquadram exatamente nesta
situação, quadro que pode ser agravado nos casos em que há ausên-
cia de instituições democráticas e elevado grau de pobreza, como em
muitos países da África sub saariana. Tais situações podem levar a

128 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
uma situação insustentável para os indivíduos, cumulando elevados
índices de mortalidade infantil com alta desnutrição, fomes coleti-
vas e analfabetismo, chegando-se a situação apontada pelo Relatório
de Desenvolvimento Humano de 1990 (UNDP, 2013), ao determinar
que o indivíduo estar condenado pelo lugar de nascimento.
Sobre tal situação, Liliana Jubilut e Silvia Apolinário (2011,
p. 290) destacam:

[...] pode-se buscar por meio da cooperação internacional re-


verter o quadro de desenvolvimento do Estado – todavia, isso
demanda longo prazo -; ou se pode tentar diferenciar mesmo,
entre as situações de ausência de desenvolvimento, aquelas
que resultam em pessoas as quais demandam proteção inter-
nacional, visto que o futuro certo com fome e doenças confi-
gura sim fator externo que compele o indivíduo à migração,
mesmo não havendo uma perseguição configurada.

O que se verifica, portanto, é que há categorias de pessoas


que não se enquadram na situação típica de refugiados, mas mesmo
assim precisam de proteção internacional vez que em seus países
de origem não há condições de vida digna. Nestes casos, o que tais
pessoas buscam nada mais é que a efetivação da síntese dos direitos
humanos, tal seja o direito ao desenvolvimento. Porém, o reconhe-
cimento e a efetivação deste direito passam por questões delicadas,
como se vê a seguir.

II CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO AO
DESENVOLVIMENTO
Desde a criação das Nações Unidas que a questão do desen-
volvimento e das diferenças econômicas e sociais entre os países têm
sido ponto de discussão. Ainda que a temática do desenvolvimento
tenha sido tratada por algum tempo em instâncias diferentes, as Na-
ções Unidas elaboraram uma série de Resoluções a respeito, e uma
delas, em especial, se volta para um componente fundamental do ar-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
129
cabouço normativo de proteção dos direitos humanos, a Declaração
sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986, aprovada na forma da
Resolução A/RES/41/128, de 4 de dezembro de 1986, com oito abs-
tenções (Dinamarca, Finlândia, Islândia, Israel, Japão, Reino Unido,
Suécia e República Federal da Alemanha) e o voto contrário dos Es-
tados Unidos (UN, 2007)29.
A Declaração sofre críticas por ser considerada pouco eficaz
no sentido de apresentar compromissos internacionais gerais exigí-
veis, mas sem previsão de sanção em caso de descumprimento de
tais acertos. Porém, é importante não apenas por reconhecer defini-
tivamente o direito ao desenvolvimento como um direito humano,
ressaltando o caráter universal e indivisível desta classe de direitos,
mas também por estabelecer as dimensões coletiva, individual, in-
ternacional e interna do direito ao desenvolvimento.
Embora a questão da obrigatoriedade das Resoluções das or-
ganizações internacionais seja complexa e controversa, é inegável
que a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 inspira
a observância e codificação do direito ao desenvolvimento em âmbi-
to internacional e interno. Na esfera internacional, outras normas e
convenções trataram do tema especificamente a partir das disposi-
ções trazidas pela Declaração de 86, como a Declaração e Programa
de Ação de Viena de 1993 e o Consenso de Monterrey em 200230.

29
O conceito de desenvolvimento tinha, até a década de 1990, um forte viés economicis-
ta. Desenvolvimento era visto tão somente como crescimento econômico. Daí algumas
instâncias na ONU terem se dedicado ao tema de maneira limitada. A partir da década
de 90, com a divulgação dos Relatórios de Desenvolvimento Humano e dos Índices de
Desenvolvimento Humano, a ONU se volta, de maneira global, ao desenvolvimento não
mais como crescimento econômico, mas sim como desenvolvimento humano, levando
em consideração fatores como renda, educação, saúde, liberdades políticas e garantias
sociais.
30
O Consenso de Monterrey foi adotado pelos Chefes de Estado como documento fi-
nal da Conferência Internacional para Financiamento do Desenvolvimento, realizada
na cidade de Monterrey, México, em março de 2002. Ressaltava a preocupação global
com a questão da desigualdade, reconhecendo que o financiamento para as ações de
promoção do desenvolvimento deveria se dar de maneira individualizada, variando de
país a país, levando-se em consideração a necessidade específica de cada Estado. As
recomendações do Consenso de Monterrey se fundamentavam em três pilares princi-

130 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Em âmbito interno, algumas Constituições se voltaram para
a previsão de questões relacionadas ao direito ao desenvolvimen-
to, como é o caso da Constituição Federal de 1988, que desde seu
preâmbulo determina que o Estado democrático instituído é desti-
nado a assegurar o desenvolvimento da sociedade31; tais exemplos
reforçam o entendimento acerca da Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento como marco mais significativo, na ordem norma-
tiva internacional, quanto ao reconhecimento deste direito.
Disposta em um longo preâmbulo e 10 artigos, a Declaração
de 1986 acomoda as preocupações dos países desenvolvidos sem dei-
xar de lado os requerimentos dos países em desenvolvimento, e jus-
tamente por este aspecto um tanto diplomático verifica-se a opção
de não enfrentar questões que permanecem complexas até os dias
atuais, como a questão da efetivação do direito ao desenvolvimento.
Mas nem por isso a Declaração perde importância; ao contrário, é
a Declaração de 1986 que cristaliza de forma mais contundente a
preocupação da sociedade internacional com a questão do desenvol-
vimento, deixando de lado polaridades econômicas levantadas pelas
discussões quando da determinação na Nova Ordem Econômica In-
ternacional. A Declaração determina o ser humano como essencial
no processo de desenvolvimento, seu principal participante e bene-
ficiário e para tanto é essencial a garantia e efetivação do seu con-
junto de direitos humanos, inclusive do direito ao desenvolvimento,
reconhecido pelo texto como um direito humano inalienável.
No extenso preâmbulo da Declaração, as Nações Unidas reco-
nhecem que desenvolvimento é um processo econômico, social, cul-
tural e político que busca o bem-estar de todos os indivíduos a partir

pais: i) fortalecimento da democracia; ii) boa governança econômica e iii) reforço de


valores morais e jurídicos (FRIED, 2004, p. 12). Jeffrey Sachs (2005, p. 217-218) também
destaca o Consenso de Monterrey como uma das mais importantes conferências reali-
zadas após o início da Rodada Doha para o Desenvolvimento da OMC.
31
Sobre o desenvolvimento na Constituição de 1988: LOCATELLI, Liliana. Desenvolvimen-
to na Constituição Federal de 1988. In: BARRAL, Welber (Org.). Direito e desenvolvi-
mento: análise da ordem jurídica brasileira sob a ótica do desenvolvimento. São Paulo:
Singular, 2005, p. 95-118; SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvi-
mento. São Paulo: Método, 2004.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
131
de sua participação ativa e livre no desenvolvimento e na distribui-
ção dos benefícios alcançados neste processo32. Outro ponto que é
destaque no preâmbulo da Declaração é o reconhecimento de obs-
táculos ao processo de desenvolvimento, dentre estes a negação dos
direitos humanos; a Declaração de 1986 reforça o caráter indivisível
e interdependente dos direitos humanos, considerando que todas as
categorias destes direitos devem ser implementadas, promovidas e
protegidas sem distinção, reforçando o entendimento de que o res-
peito e garantia de determinados direitos humanos não podem jus-
tificar a negação de outros. As questões mais controversas previstas
na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 assim o
são porque o texto estabelece responsabilidades e prerrogativas, mas
não esclarece como essas serão exercidas, ou seja, falta à Declaração
de 1986 a previsão de um mecanismo de enforcement.
A Declaração de 1986 pode parecer retórica e até mesmo re-
petitiva, mas é importante principalmente na caracterização do di-
reito ao desenvolvimento como um direito humano; além disso, a
Declaração deixa claro o que talvez seria um novo leitmotiv para as
Nações Unidas: a redução das desigualdades e da pobreza, objetivos
centrais também do processo de desenvolvimento.
A Declaração afasta a ideia economicista que vincula desen-
volvimento a crescimento econômico e não retoma temas que foram
exaustivamente tratados pelas resoluções anteriores à Declaração
como relacionados ao desenvolvimento (comércio internacional,
transferência de recursos econômicos, constituição de fundos eco-
nômicos internacionais para promoção do desenvolvimento). Não
que tais temas devam ser afastados do processo, mas não cons-
tituem mais a única hipótese de promoção do desenvolvimento.
A Declaração não apenas confirma o direito ao desenvolvimento

32
A Declaração de 1986 reforça o papel do indivíduo como sujeito central no processo
de desenvolvimento ao mesmo tempo em que permite que o ser humano deixe de ser
visto como mero fator de produção. O indivíduo é determinante no processo de desen-
volvimento não por sua utilidade ao longo do processo, mas muito principalmente por
ser o sujeito determinante do mesmo (DELGADO, 2001, p. 92).

132 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
como direito humano; estabelece que o desenvolvimento é um
processo em que todos os direitos humanos devem ser garantidos
e realizados.
A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento não afasta
o caráter indissociável e interdependente dos direitos humanos.
Considera o desenvolvimento um processo social, econômico, cul-
tural e político, portanto, não há porque tratar o direito ao desen-
volvimento como um direito humano diferenciado dos demais. A
leitura isolada da Declaração de 1986 pode parecer suficiente para
a compreensão do conteúdo e dos objetivos do direito ao desen-
volvimento, mas é em conjunto com o ordenamento internacional
garantidor dos direitos humanos que salta aos olhos a coerência e
o cabimento deste direito juntamente com outras obrigações inter-
nacionais assumidas.
Desde a Carta das Nações Unidas, passando pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto sobre Direitos Civis e
Políticos, pelo Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
pela Carta de Direitos e Deveres Econômicos dos Estados e pela De-
claração e Programa de Ação de Viena que o sistema internacional
de proteção e garantia dos direitos humanos caminha de maneira
idêntica: há necessidade de cooperação internacional a partir dos
Estados, organizações internacionais, indivíduos e organizações so-
ciais a fim de promover o desenvolvimento como processo de garan-
tia dos direitos humanos e igualdade de oportunidades.
Em verdade, o Direito Internacional vem se desenvolvendo
no sentido de criar para os Estados obrigações exigíveis com o in-
tuito de adotar políticas e programas capazes de garantir bem-estar
econômico, social e cultural ainda que em níveis mínimos (TRU-
BEK, 1984, p. 207). De uma maneira ou de outra estes instrumentos
normativos indicados voltam-se para estes objetivos.
A partir de 1993, quase todos os órgãos e programas das
Nações Unidas apresentam determinações específicas sobre a pro-
moção do direito ao desenvolvimento e dos direitos humanos; na

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
133
verdade, o reconhecimento do direito ao desenvolvimento como um
direito humano é responsável mesmo pela renovação desta temática
junto aos organismos das Nações Unidas, que promoveram a partir
desta integração ações interdisciplinares e relacionadas.
O Banco Mundial, por exemplo, reconhece especificamen-
te que ao promover programas relacionados ao desenvolvimento, o
objetivo central é o de criar condições, principalmente a partir dos
projetos financiados pela instituição, para que os indivíduos possam
efetivamente dispor dos direitos humanos (WORLD BANK, 1998).
De maneira geral projetos financiados pelo Banco Mundial
estão associados mesmo indiretamente, às questões relacionadas
aos direitos humanos, como os que tratam especificamente de re-
dução da pobreza, investimentos em projetos de saúde e educação,
crescimento econômico e aumento de renda, iniciativas voltadas
exclusivamente para os países em desenvolvimento e a redução de
suas dívidas externas, ações voltadas para implementação de meca-
nismos de boa governança e combate à corrupção, financiamentos
de programas de acesso ao crédito e à justiça, programas de capaci-
tação para as mulheres em países com problemas de desigualdade
de gênero acentuada e programas de redução de trabalho infantil
(WORLD BANK, 1998, p. 14).
Reconhecer o direito ao desenvolvimento como um direito
humano é determinante também para o trabalho do PNUD, que alia
ao seu objetivo central a promoção e a proteção dos direitos huma-
nos. Em relação à promoção dos direitos humanos, as principais
determinações do PNUD dizem respeito: i) ao apoio institucional
às políticas nacionais de desenvolvimento; ii) a efetivação de estra-
tégias de aproximação de tais políticas com a questão dos direitos
humanos (human rights based approach); iii) a assistência institucio-
nal às iniciativas locais de promoção dos direitos humanos que en-
volvam a conscientização da sociedade civil para esta questão; e iv)
apoio às iniciativas de criação de instituições locais voltadas para os
direitos humanos (UNDP, 2007).

134 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Considerando-se que o PNUD é um programa estratégico das
Nações Unidas quanto à promoção do desenvolvimento, é interes-
sante ressaltar que o vínculo entre o objetivo central do programa e
os direitos humanos apenas reforça o caráter indissociável entre os
dois tópicos (direitos humanos e desenvolvimento).
Não apenas o Banco Mundial e o PNUD, mas também outros
organismos e programas das Nações Unidas direta ou indiretamente
se voltam para o direito ao desenvolvimento uma vez que procuram
sempre afirmar o compromisso da organização com a questão dos
direitos humanos, afastando a tendência de deixar este assunto para
os órgãos especializados33; neste ponto o direito ao desenvolvimento
desempenha um papel fundamental: ao se estabelecer como meta
deste ou daquele programa ou agência a promoção dos direitos hu-
manos, as Nações Unidas buscam também a garantia do direito ao
desenvolvimento, vez que o reconhecimento dos direitos humanos é
um primeiro passo na concretização do processo de desenvolvimen-
to proposto pela organização.
Em sendo o direito ao desenvolvimento um direito humano,
ou seja, atribuindo-lhe as mesmas garantias e valorações que são
atribuídas aos direitos civis e políticos, econômicos, sociais e cultu-
rais, não há porque desconsiderar o direito ao desenvolvimento dos
programas relacionados aos diretos humanos.
É fato que a sociedade internacional institucionalmente
organizada reconhece o direito ao desenvolvimento como um
direito humano e busca não apenas a divulgação deste reconhe-

33
Há no sistema da ONU pelo menos um órgão dedicado exclusivamente aos direitos
humanos: o Conselho de Direitos Humanos, presidido pelo Alto Comissário das Na-
ções Unidas para Direitos Humanos. O Conselho foi estabelecido pela A/RES/60/251,
de 03 de abril de 2006 e substitui a antiga Comissão de Direitos Humanos. Há ainda
seis órgãos criados em virtude dos tratados de direitos humanos que supervisionam a
implementação dos tratados de direitos humanos: i) Comitê de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais; ii) Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial; iii) Comitê
para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher; iv) Comitê contra a Tortura; v)
Comitê dos Direitos da Criança; vi) Comitê para a Proteção dos Direitos de todos os
Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
135
cimento como também a efetivação deste direito, mas é necessário
que esse reconhecimento também seja estendido aos outros
atores da coletividade internacional, além das organizações inter-
governamentais e dos Estados. Esse reconhecimento junto a estes
atores se faz necessário na medida em que deve ser promovido um
sistema de divisão de responsabilidades quanto à realização do
direito ao desenvolvimento junto aos atores privados.
Em razão da universalidade e indivisibilidade dos direitos
humanos, o direito ao desenvolvimento acarreta não apenas no
plano normativo, mas também no plano operacional, obrigações
erga omnes, e desta forma é essencial a efetivação de normas inter-
nas e internacionais voltadas para o combate de abusos econômi-
cos vinculados “à concentração e às práticas comerciais restritivas,
através de instrumentos que permitam a transparência do merca-
do, assim como a correção de suas deficiências” (PERRONE-MOI-
SÉS, 1998, p. 56).
Reconhecido como inalienável e integrante de toda a siste-
mática internacional relacionada aos direitos humanos, o direito ao
desenvolvimento é um direito do indivíduo e dos Estados, de caráter
global e multidimensional, o que significa dizer que há mais de um
componente na definição do objeto do direito ao desenvolvimento,
considerando-se as dimensões civis, política, econômica e social dos
direitos humanos.
A principal consequência do reconhecimento do direito ao
desenvolvimento como um direito humano parece ser a desvincu-
lação do conceito de desenvolvimento de seu viés exclusivamente
economicista, na medida em que ações e programas internacionais
aproximam o conceito de desenvolvimento de dimensões sociais
mais próximas da temática dos direitos humanos que das relações
econômicas internacionais.
No entender de Cláudia Perrone-Moisés (1998, p. 57), deve-
se buscar uma visão humanista de desenvolvimento, afastando-se a
sociedade internacional de uma perspectiva exclusivamente econô-

136 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
mica; certamente a ideia que melhor atende a esta proposta é a que
determina o desenvolvimento como componente do conjunto dos
direitos humanos, levando-se em consideração todas as garantias (e
dificuldades) que a tais direitos estão associadas.
Confirmar o direito ao desenvolvimento como um direito hu-
mano é fazer com que este último se torne, ao lado do primeiro, um
paradigma e um referencial ético capaz de orientar a ordem interna-
cional, o que já é previsível a partir do intenso positivismo universal
relacionado aos direitos humanos, vez que há um grande número
de tratados sobre a matéria. Tais elementos normativos não deixam
portanto, de ser consequência deste referencial ético compartilhado
pelos Estados e pelas organizações internacionais.

III A QUESTÃO DA TITULARIDADE E EFETIVIDADE


DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO
O direito ao desenvolvimento tende a ser considerado como
um direito de titularidade mista, mas não pode ser implementa-
do somente a partir do consenso de vontades individuais. O que se
espera na efetivação do direito ao desenvolvimento é que haja um
acordo de vontades individuais e coletivas.
Avaliando-se que desenvolvimento implica ação coletiva,
atribuir ao direito ao desenvolvimento titularidade essencialmente
individual, na tentativa de preservar a essência teórica dos direitos
humanos, é determinar que pode haver a partir de então, apenas
melhoria da condição individual, mas não desenvolvimento como
um processo.
O direito ao desenvolvimento pode ser considerado um direi-
to individual em sua origem e em seu fim, mas um direito coletivo
em sua implementação, o que ratifica a determinação da Declaração
de 1986 ao dispor sobre a pessoa humana como sujeito central e
principal destinatário do processo de desenvolvimento e atribuir aos
Estados a responsabilidade de formulação de políticas adequadas
para o desenvolvimento.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
137
O artigo 1º da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento
de 1986 determina que o direito ao desenvolvimento é um direito de
todo ser humano e de todos os povos, refletindo assim uma faceta
individual e coletiva deste direito, ao estabelecer que o direito ao
desenvolvimento é um direito de todo ser humano, dos povos e das
nações (Preâmbulo).
É certo que não há identificação específica dos Estados como
titulares deste direito, porém no artigo 2º, § 3, a Declaração esten-
de aos Estados o papel de protagonista no processo de promoção
do desenvolvimento. Em nenhum momento a Declaração se afasta
da ideia de tomar o indivíduo como sujeito principal e destinatário
direito do processo de desenvolvimento; portanto, a discussão sobre
a titularidade acaba por ser superada quando se vinculam os inte-
resses do Estado com os dos indivíduos, e de fato é quase impossível
encontrar Estados que deliberadamente não tomem a promoção do
desenvolvimento como um de seus objetivos principais, pelo menos
do ponto de vista formal.
Quando da formulação e definição do conceito de direito
ao desenvolvimento na esfera internacional, nas décadas de 1970
e 1980, este foi visto pelos representantes dos países em desenvol-
vimento como um direito exclusivamente coletivo, de titularidade
atribuída aos povos e aos Estados. Mas este posicionamento se mos-
trou contrário à própria dinâmica dos direitos humanos, que não são
exclusivamente direitos individuais ou direitos coletivos; podem ser
os dois, ao mesmo tempo.
Até mesmo porque em muitos casos os direitos humanos
tidos como individuais apenas podem ser satisfeitos em um con-
texto coletivo. No caso do direito ao desenvolvimento, aquele que
detém o direito pode ser uma coletividade, como o Estado, mas o
beneficiário direto deve ser o indivíduo; há um relacionamento es-
treito entre a coletividade e o indivíduo, tanto é que a Comissão de
Direitos Humanos das Nações Unidas admite, na Resolução 5, de
02 de março de 1979, e na Resolução 43, de 14 de março de 1985,

138 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
que o desenvolvimento é uma prerrogativa tanto dos Estados como
dos indivíduos.
A opção que leva a considerar o direito ao desenvolvimento
como direito de titularidade mista (individual e coletiva) é a que
parece mais coerente, já que a igualdade de oportunidades deve ser
considerada prerrogativa tanto dos Estados como dos indivíduos (A/
RES/70/2626, § 12). Considerar que o direito ao desenvolvimento
pode ser um direito exclusivamente individual ou exclusivamente
coletivo pode ser um equívoco, uma vez que não há porque deter-
minar que os interesses dos indivíduos sejam contrários ou estejam
sempre em conflito com os interesses dos Estados.
Sendo assim, pode-se classificar o direito ao desenvolvimen-
to como um direito e interesse difuso, vez que não há determinação
dos titulares desse direito de maneira individualizada. Direitos e in-
teresses difusos são caracterizados como direitos que se relacionam
a um número indeterminado de pessoas; são direitos de natureza
indivisível, vez que não se pode determinar exatamente o titular da
prestação jurisdicional devida (MARQUES, 2006, p. 975).
José Rubens Morato Leite (1996) aposta na indeterminabili-
dade dos sujeitos como elemento central para atribuir a determinada
pretensão a qualificação de interesse difuso, e agrega a essa determi-
nação algumas outras características que são perceptíveis quando se
trata da exigibilidade do direito ao desenvolvimento.
Para o autor, os direitos ou interesses difusos, além de serem
indivisíveis, admitem pluralidade de sujeitos vinculados por uma
circunstância de fato tamanha que chega a se confundir com a co-
munidade. Outra característica apontada pelo autor que serve para
a caracterização do direito ao desenvolvimento como direito difuso
é a indivisibilidade ampla, ou seja, “a satisfação de um só implica a
satisfação de todos, assim como a lesão de um só constitui a lesão da
inteira coletividade” (LEITE, 1996, p. 33).
O entendimento de Paulo Emílio Vauthier Borges de Mace-
do (1996, p. 204) confirma sobremaneira a determinação do direito

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
139
ao desenvolvimento como direito de terceira dimensão e portanto,
como direito difuso:

E, por fim, surgiram os direitos difusos ou metaindividuais,


chamados de direitos de terceira geração. Podem ser facil-
mente confundidos com os anteriores por serem também
sociais, mas ocorrem algumas distinções. Nasceram em de-
corrência de determinadas situações, que acabam por pre-
judicar o ser humano, mas da referida relação não se pode
inferir uma ligação imediata entre o interesse e o bem a
ser tutelado. Este bem é indivisível. Isto significa que a sua
esfera de atuação permeia o campo de liceidade de um só
indivíduo (transindividualidade). Disto decorre que o obje-
to é indisponível, pois satisfaz uma coletividade. Mas não
é uma coletividade certa e sim, indeterminada, ligada por
uma união de fato. Daí dizer-se que o sujeito é indetermi-
nado.

Desta forma, é estendendo ao indivíduo a possibilidade de


buscar o direito ao desenvolvimento através de procedimentos de
alcance coletivo que se favorece o interesse da própria coletividade,
portanto dos Estados, que a partir de então são capazes de realizar
efetivamente este direito, uma vez que o direito individual implica
necessariamente o direito de todos, como expresso no art. 29 da De-
claração Universal dos Direitos Humanos.
Em síntese, o direito ao desenvolvimento é um direito dos
indivíduos, de toda a humanidade e dos Estados; seu caráter mul-
tidimensional em relação à titularidade é reforçado pela Declara-
ção de 1986, quando considera que os aspectos civis, econômicos,
sociais, culturais e políticos do desenvolvimento são indivisíveis e
complementares. Faz-se, portanto, necessária a revisão das dispo-
sições relativas às relações internacionais, principalmente de cará-
ter econômico, a fim de considerar o direito ao desenvolvimento
como um direito que apenas se efetiva se houver a participação dos
Estados, dos indivíduos e da comunidade internacional como um
todo.

140 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Além da titularidade, outra questão que diz respeito às pre-
tensões relacionadas com o direito ao desenvolvimento é a proble-
mática da efetivação. Não só quanto ao direito ao desenvolvimen-
to, mas aos direitos humanos como um todo. Tais direitos podem
coexistir como um padrão moral que apesar de não prever sanção
legal ou contraprestação imediata, cristaliza-se num sistema efi-
ciente para o convencimento dos responsáveis em implementá-los
(Estados, por exemplo) quanto à necessidade de concessão e previ-
são destes direitos (SENGUPTA, 1999, p. 77). Reconhecer um direito
como direito humano confere à implementação do mesmo priori-
dade ante às instituições nacionais e internacionais, obrigando os
Estados e a comunidade internacional.
Com fundamento nestas razões é que se pode admitir que o
direito ao desenvolvimento é um direito humano, vez que adotado
pela sociedade internacional através de consenso, sendo identifica-
dos neste processo os responsáveis pela implementação deste direito
(os Estados, as agências e instituições nacionais e internacionais, a
sociedade civil).
Arjun Sengupta (1999, p. 77) não prevê outra classificação
para o direito ao desenvolvimento que não como direito humano, e
indica ser necessário apenas que programas e procedimentos para
a implementação deste direito sejam seguidos pelos responsáveis;
afirma que se faz necessária uma base legislativa formal para que o
“padrão moral” associado aos direitos humanos e ao direito ao de-
senvolvimento se torne legalmente obrigatório:

A crítica confunde direitos humanos com direitos legais. Di-


reitos humanos baseiam-se em padrões morais com vistas à
dignidade humana, possuindo diversas maneiras de conse-
cução, dependendo da aceitabilidade da base ética das de-
mandas. Isso, é claro, não ofusca a importância da utilidade
desses direitos humanos traduzidos em direitos legais sob
a legislação. Na verdade, toda tentativa deveria ser feita no
sentido de formular e adotar instrumentos legislativos apro-
priados para assegurar a realização das demandas de um di-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
141
reito humano, uma vez que seja aceito através do consenso.
(SENGUPTA, 1999, p 77)

Guilherme Amorim Campos da Silva (2004, p. 50) sustenta


opinião semelhante à de Sengupta. Para o autor brasileiro, as de-
terminações relativas ao direito ao desenvolvimento em âmbito in-
ternacional devem servir como base interpretativa, uma vez que os
Estados são os destinatários das normas internacionais. Mesmo que
o viés positivo destas normas seja programático, a exigência e pro-
moção das mesmas tornam-se essenciais e indispensáveis.
Na tentativa de efetivar e garantir o exercício dos direitos hu-
manos e do direito ao desenvolvimento, há ações de âmbito interno
capazes de promover o desenvolvimento, principalmente através de
mudanças institucionais, mas esta tarefa pode se tornar impossí-
vel sem cooperação internacional. Mesmo as ações mais comuns,
atreladas ao conceito de crescimento econômico, como a questão do
acesso aos mercados através da liberalização comercial, incentivos
relacionados ao aumento de investimentos estrangeiros em países
em desenvolvimento, auxílio técnico a reformas econômicas institu-
cionais e assistência em momentos de crise cambial ou financeira,
acabam por favorecer ainda que indiretamente o processo de desen-
volvimento em seu sentido mais amplo.
O Centro para o Desenvolvimento e Direitos Humanos, ins-
tituição de pesquisa situada em Nova Déli e liderada pelo profes-
sor e pesquisador indiano Arjun Sengupta, propõe duas maneiras
de concretizar ações capazes de promover o desenvolvimento que
acabariam por favorecer a coletividade reconhecida como refugia-
dos econômicos (2004, p. 64): através de processos multilaterais de
cooperação, onde os países desenvolvidos, as organizações interna-
cionais e instituições de caráter privado podem promover em con-
junto ações que favoreçam a qualificação institucional dos países
em desenvolvimento ou por meio de ações bilaterais específicas, de
país a país, que também promovem a qualificação institucional ou

142 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
colaboram para a realização do direito ao desenvolvimento através
de ações direcionadas aos componentes desse direito.
Em caráter internacional, algumas questões apontadas por
Cláudia Perrone-Moisés (1999, p. 191) devem ser consideradas: i) o
desenvolvimento dos Estados depende sobremaneira da sociedade
internacional; ii) a interdependência leva não só à aproximação de
vantagens econômicas como à aproximação dos problemas ligados
ao desenvolvimento; iii) o desenvolvimento em escala internacional
enfrenta problemas ligados às relações econômicas desvantajosas e
exclusivistas.
De maneira geral, as questões se estendem primariamente
aos Estados, porque as organizações de iniciativa privada não foram
taxativamente incluídas como responsáveis pelas questões do de-
senvolvimento, ainda que os tratados e normas sobre o tema dispo-
nham que a promoção do desenvolvimento é dever de todos.
Uma vez que não há uma definição direta sobre o papel das
organizações da iniciativa privada na promoção do desenvolvimen-
to, Claudia Perrone-Moisés (1999, p. 181-194) entende ser neces-
sário estabelecer normas tanto no plano interno como no plano in-
ternacional a fim de se combater excessos econômicos vinculados à
concentração de riqueza e quanto à restrição do acesso ao mercado
internacional. As regras deveriam ser propostas no sentido de corri-
gir deficiências e falhas de mercado, considerando-se essencial tam-
bém a transparência nas relações econômicas internacionais.
A cooperação internacional necessária para enfrentar a ques-
tão do desenvolvimento pode ser considerada através da formulação
de um contrato internacional pactuado entre Estados e demais atores
da sociedade internacional, que toma forma a partir de um modelo
jurídico derivado do direito anglo-saxão denominado partnership. Se-
ria um contrato flexível, a partir do qual se estabelece uma parceria
não apenas entre Estados e organizações internacionais intergover-
namentais, mas também com organizações não governamentais, so-
ciedades privadas nacionais, associações de classe e outros grupos.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
143
Internamente, a primeira questão que se pode levantar é a
das políticas nacionais de desenvolvimento que via de regra são
estabelecidas pelas instituições financeiras internacionais e pelos
países desenvolvidos. Porém, tais estratégias podem incorrer em
erro ao desconsiderar particularidades locais e regionais. Ao apro-
ximar políticas de desenvolvimento da perspectiva dos direitos
humanos, há que se considerar o direito à autodeterminação dos
povos, considerando-se que não há um único modelo de sucesso a
ser seguido (PERRONE-MOISÉS, 1999, p. 190). Cada país é sobe-
rano para determinar o seu modo de produção e regime econômico,
como estabelece o art. 1º do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais.
A relação entre direito ao desenvolvimento e os refugiados
econômicos é clara: tais pessoas deixam seus países em busca da
garantia e efetivação de direitos humanos essenciais. Não se trata
apenas da busca por melhor qualidade de vida.
Os refugiados econômicos não têm escolha no país de origem.
Daí a procura por um lugar onde condições mínimas de sobrevivên-
cia lhe sejam asseguradas, vez que em suas localidades de origem
não têm sequer direito à alimentação, trabalho e moradia dignos.
Sendo assim o direito ao desenvolvimento é uma necessidade a ser
efetivada e que merece proteção internacional. Considerando tais
questões é que se associa a busca dos refugiados econômicos à busca
pela efetivação do direito ao desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
De há muito se sabe que a grande questão junto aos sistemas
nacionais e internacionais de direitos humanos não é a positivação
dos mesmos ou mesmo o seu reconhecimento, mas sim a sua garan-
tia e efetivação. E é neste cenário de busca pela concretização dos
direitos humanos que se encontram os refugiados econômicos e sua
relação com o direito ao desenvolvimento.

144 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Embora não reconhecidos como categoria formal de refugia-
dos, e desta forma protegidos pelas determinações da Convenção
de 1951, os chamados refugiados econômicos – pessoas que deixam
seus países de origem não apenas em busca de melhores condições
de vida, mas sim em busca da efetivação de suas necessidades mais
básicas como ser humano – não podem nem ser deixados à margem
do arcabouço de proteção garantido à pessoa humana, ainda que a
primeira responsabilidade seja de seus Estados de origem, tal seja
estabelecer políticas públicas e ações positivas no intuito de garantir
aos seus cidadãos condições de sobrevivência digna.
Definir o alcance da expressão refugiados econômicos é por
si só uma questão delicada, vez que não são considerados refugia-
dos em sentido clássico e nem migrantes comuns, pois lhes falta o
elemento volitivo que caracteriza as migrações em sentido amplo.
Enquanto o migrante deixa seu país de origem apenas em busca de
melhores condições de vida, o refugiado deixa seu Estado por uma
questão de sobrevivência.
Considerando tal fato, há meios de estender aos refugiados
econômicos proteção internacional diferenciada da destinada aos
refugiados em sentido clássico. Mesmo não havendo o bem funda-
do temor de perseguição ou as obrigações formalmente assumidas
pelos Estados signatários da Convenção de 1951, os Estados assu-
miram junto ao sistema internacional de proteção dos direitos hu-
manos obrigações outras que dizem respeito a todos que estejam sob
seus territórios.
O que buscam, pois, os refugiados econômicos é, em síntese,
representado pelo direito ao desenvolvimento. Considerado direi-
to humano desde a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento
de 1986, o direito ao desenvolvimento faz parte de um conjunto de
obrigações e deveres assumidos pelos Estados junto à sociedade in-
ternacional.
É fato que a garantia e efetivação do direito ao desenvolvi-
mento perpassa por uma série de questões delicadas e mesmo difí-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
145
ceis, desde o simples reconhecimento deste direito até as medidas
necessárias para a efetivação do mesmo. De início pode-se questio-
nar como se pleiteia tal direito, ou quem pode fazê-lo, vez que a titu-
laridade do direito ao desenvolvimento não é simplesmente resolvi-
da e parece estranho que o indivíduo vá até uma corte internacional
litigar em busca de “seu” direito ao desenvolvimento. Considerando
tal fato é que se estabelece a titularidade coletiva deste direito, po-
dendo ser enquadrado o mesmo como um dever e obrigação do Es-
tado, através de prestações positivas, bem como um compromisso
internacional assumido quando o ente estatal reconhece a indisso-
ciabilidade dos direitos humanos.
Sabe-se que a problemática da efetivação dos direitos huma-
nos é tema de longas discussões e que se está longe da garantia dos
mesmos de maneira satisfatória, mas nem por isso os estados podem
ignorar as pretensões neste sentido, seja de seus nacionais seja de
estrangeiros.

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
147
6

Artigos
Apresentados
na 4ª Semana de
Direitos Humanos
PROGRAMA EUROSOCIAL:
estrutura e resultados34/35

Stela Floriano Ayres


Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Cata-
rina – 4a. Fase. (stelafa@gmail.com)

Resumo:
O presente trabalho objetivo realizar uma avaliação a respeito do Programa EUROsociAL, lan-
çado no âmbito da Associação Estratégia Birregional América Latina, Caribe e União Europeia,
com intuito de corroborar para a coesão social na América Latina. Considerando-se que a
região caracteriza-se pela maior desigualdade social do mundo e, portanto, o desafio estra-
tégico do Programa, este trabalho estuda sua estrutura, as instituições envolvidas, atividades
realizadas e a efetividade de seus resultados.

Sumário:
1. Introdução. 2. O EUROsociAL. 2.1. O EUROsociAL I. 2.2. O EUROsociAL II. 3. Resultados.
3.1. Atividades. 3.2. Instituições. 3.3 Pessoas. 4. Considerações Finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO
Nos últimos 60 anos, os temas de cunho social ganharam
grande relevância nas agendas políticas nacionais e notoriamente
na agenda internacional. Se a Declaração Universal dos Direitos Hu-

34
Trabalho desenvolvido com apoio do CNPq e orientado pela Profa. Dra. Karine de Souza
Silva.
35
Esse relatório não possui caráter official, pois não foi desenvolvido por responsáveis
legais do programa.

150 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
manos, adotada pela Organização das Nações Unida, em 1948 con-
sagrou-se como um marco mundial para assegurar a dignidade de
todo ser humano, nos anos seguintes multiplicaram-se os acordos
e programas focados em combater os problemas sociais que impe-
dem a plenitude desses direitos36.
Especificamente, no âmbito da Associação Estratégica Bir-
regional América Latina, Caribe e União Europeia, durante a Cúpu-
la de Chefes de Estado e Governo de Guadalajara, em 2004, priori-
zou-se o tema da coesão social como objetivo último das políticas
de erradicação pobreza, desigualdade e exclusão social. Isso por-
que, tais mazelas corroboram diretamente para dificultar a coesão
social em uma sociedade, e por sua vez, a ausência dessa coesão
caracteriza-se como um grande desafio às políticas públicas, visto
que a disparidade de realidades demanda um complexo planeja-
mento das mesmas.
Por isso, nessa mesma cúpula lançou-se o Programa EURO-
sociAL, que caracteriza-se primordialmente pela troca de experiên-
cias entre instituições de políticas públicas dentro de cinco grandes
setores temáticos: Educação, Emprego, Fiscalidade 37 e Saúde.
Assim, o presente trabalho apresenta um estudo a respeito
desse Programa, sendo estruturado da seguinte forma: na primeira
seção, expõe-se uma breve introdução sobre assunto; na segunda
seção, trata-se das estruturas e objetivos do Programa EUROsociAL I
e II; na terceira seção, fala-se dos resultados decorrentes das ativida-
des implementadas; e na quarta seção, expressa-se uma conclusão
analítica derivada das informações apresentadas nas seções anterio-
res, abarcando as dificuldades e contribuições do Programa.

36
Dentre esses direitos inclui-se o direito de liberdade, educação, padrão de vida, entre
outros. Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
37
A tradução correta do termo “fiscalidad” para o português seria “sistema tributário”.
Entretanto utilizara-se o termo Fiscalidade visando a melhor aproximar o sentido da
palavra em sua constituição original.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
151
2 O EUROsociAL
O EUROsociAL é a mais importante iniciativa da Comissão
Européia em matéria de cooperação técnica com países da América
Latina para o fomento da coesão social em ambas as regiões. Sua
relevância temática relaciona-se ao fato de a América Latina ser a
região mais desigual do mundo, além de possibilitar colocar em pra-
tica mecanismos de cooperação condizentes com as realidades dos
países de renda média 38.
A partir Cúpula de Chefes de Estado e Governo de Guadala-
jara América Latina, Caribe e União Europeia39, em 2004, os temas
sociais receberam considerável proeminência no âmbito da coope-
ração birregional, sendo conferido ao tópico da coesão social – pre-
sente no artigo 50 da Declaração de Guadalajara – o status prioritário
dentroda parceria estratégica:

Nós priorizamos a coesão social como um dos principais


elementos de nossa associação estratégica birregional e nos
comprometemos a cooperar para erradicar a pobreza, a de-
sigualdade e a exclusão social. Fazemos um chamamento à
Comissão Européia, ao Banco Interamericano de Desenvol-
vimento, à Comissão Econômica para América Latina e o Ca-
ribe, ao Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento,
ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco Europeu de
Investimento e ao Banco Mundial para que contribuam a al-
cançar este objetivo.40

Na mesma ocasião, fora lançado o Programa EUROso-


ciAL com objetivo geral, a médio e longo prazo, de reorientar as
estratégias de políticas sociais e inovar os mecanismos de admi-
nistração dos Estados latinoamericanos no sentido de torná-las
38
Folleto EUROsociAL II. Disponível em http://www.programaeurosocial.eu/eurosocial
-II/tiki-list_file_gallery.php?galleryId=9. Acesso em: 18 set. 2011.
39
EUROPE UNION. DECLARATION OF GUADALAJARA. III Cúpula América Latina, Caribe e
União Européia, México. Maio de 2004. Acesso em: 10 set. 2011.
40
Idem.

152 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
mais eficazes ao atuarem como vetores dos processos de coesão
social41.
A principal atividade desenvolvida pelo EUROsociAL, e que
o caracteriza, são os intercâmbios de experiências entre instituições
de políticas públicas e seus administradores42, transferindo lições e
boas práticas para formulação, execução e gestão de políticas públi-
cas que repercutem sobre o tema da coesão social. A transferência
pode ocorrer a partir de países europeus ou de países latino-ameri-
canos, por meio de formação não regular (presencial ou à distância),
através de estágios ou visitas, mediante assistência técnica de espe-
cialistas, ou até mesmo por uma combinação destas modalidades.
Entende-se por experiência qualquer plano, ação, projeto ou
política, executado por uma autoridade ou instituição pública que
tenha como finalidade suprir deficiências dos serviços públicos. Es-
sas experiências podem ser, portanto, negativas ou positivas depen-
dendo do contexto sociopolítico e institucional em que foram em-
pregadas, e servem de aprendizagem ou exemplo para os demais
atores político-sociais43.
Logo, as atividades do programa são essencialmente diri-
gidas para os tomadores de decisões políticas, pessoas e coletivos
influentes na formulação de políticas sociais, intelectuais, líderes
profissionais, universidades, institutos de pesquisa, organizações de
trabalhadores e sociedade civil, além de funcionários de ministérios,
agências e demais instituições públicas responsáveis pela execução
de políticas e programas sociais44. Esses atores se organizam em re-
des setoriais constituídas por quaisquer agentes europeus ou lati-
41
Programa EUROsociAL. Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/index.
php?PHPSESSID=pfn0eiem3shsigo1ugjp0vo6j7&nIDMenu=3&nIDSeccion=3>. Acesso
em: 28 jul 2011.
42
Ibidem. Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/>. Acesso em: 09 jul.
2011.
43
Ibidem. Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/index.php?PHPSESSID=p-
fn0eiem3shsigo1ugjp0vo6j7&nIDSeccion=40&nVolver=1>. Acesso em: 28 jul. 2011.
44
Programa EUROsociAL Disponível em: <http://www.eurosocialfiscal.org/index.php/
secciones/beneficiarios?lang=pt6>. Acesso em: 28 jul. 2011.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
153
no-americanos que manifestem interesse e comprometimento pela
causa e objetivos do programa. Isso engloba não apenas entidades
da administração pública como também organismos de direito pri-
vado sem fins lucrativos e com vocação ao serviço público de ativida-
des, cuja atuação e experiências sejam condizentes com a finalidade
do programa

2.1 O eurosocial I
Em 2005, iniciou-se a primeira etapa do projeto, o EUROso-
ciAL I, encerrada em junho de 2010. As atividades, até 2009, eram
sustentadas pelo orçamento total do EUROsociAL I que ultrapas-
sa 36 milhões de euros, dos quais oitenta por cento são financia-
dos pela Oficina de Cooperação da Comissão Européia (EuropAid)
e, o restante por instituições adjuntas em parceria com fundos da
Agência Espanhola de Cooperação Internacional e do Ministério dos
Assuntos Exteriores da França, por meio da France Cooperation In-
ternationale45. No website do EUROsociAL – modificado em setembro
de 2011 para abordar, predominantemente, informações relativas ao
EUROsociAL II – consta que o Programa é divido em cinco grandes
“eixos temáticos que correspondem aos interesses e prioridades dos
governos latinoamericanos”: Justiça, Educação,
Emprego, Fiscalidade e Saúde. Cada um desses setores é
constituído por um consórcio de instituições européias e latino-a-
mericanas responsáveis pela promoção de uma série atividades co-
muns e transversais, e apoiadas pelas redes setoriais46.
A coerência interna das instituições é garantida por um Co-
mitê Intersetorial de Coordenação e Orientação (CICO) que inclui
representantes de todos os consórcios, o qual funciona de maneira

45
Programa EUROsociAL Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/index.
php?PHPSESSID=pfn0eiem3shsigo1ugjp0vo6j7&nIDMenu=1&nIDSeccion=1>. Acesso
em: 15 jul. 2011.
46
Ibdem. Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/index.php?PHPSESSID=p-
fn0eiem3shsigo1ugjp0vo6j7&nIDMenu=2&nIDSeccion=2>. Acesso em 28 jul. 2011.

154 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
permanente através de uma Secretaria Executiva ou Oficina de
Coordenação. Os delineamentos estratégicos do Programa são fi-
xados por um Comitê Conjunto, que reúne a Comissão Européia,
o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Comissão
Econômica para América Latina (CEPAL) e o Programa das Na-
ções Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)”47. O Comitê Conjun-
to também é responsável por avaliar a pertinência das ações, com o
Programa e com os Objetivos do Milênio, a respeito de outras inicia-
tivas de desenvolvimento em andamento na região.
Os relatórios e as informações das atividades em andamen-
to, ou desenvolvidas e concluídas nesse período (2005-2010), estão
disponíveis para consulta pública no Sistema de Informação de Ati-
vidades de EUROsociAL (SIA). Nesse website, os relatórios e infor-
mações, relacionadas aos países e instituições envolvidos, podem
ser pesquisadas em quatro tipos de buscadores: de atividades, de
instituições, de participantes e de documentos. Ainda que no website
do Programa conste que o EUROsociAL seja uma iniciativa voltada
para coesão social na América Latina, o SIA registra a existência de
atividades desenvolvidas em outras regiões do mundo, como Orien-
te Médio, África, e Ásia, que contaram com a presença de países
latino- americanos também.
Esse sistema “recorre à informação e ao documento das ati-
vidades do Programa EUROsociAL centrando-se no intercâmbios de
experiências, ainda que seja configurado para recorrer a qualquer ati-
vidade sugerida pelo Programa (intercambio de experiências, projetos
piloto, atividades de sensibilização, de mobilização e animação de re-
des, etc.)”48 e introduzida no portal. Dessa forma, “o nível de informa-
ção de cada atividade pode variar conforme a fonte de origem”49.

47
Programa EUROsociAL. Tradução nossa. Disponível em: <http://www.programaeuroso-
cial.eu/index.php?PHPSESSID=pfn0eiem3shsigo1ugjp0vo6j7&nIDMenu=20&nIDSec-
cion=20>. Acesso em: 29 jul. 2011
48
SIA. Disponível em: <http://sia.programaeurosocial.eu/actividades.php>. Tradução
nossa.
49
Idem.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
155
A busca por relatórios e evidências das atividades pelo Pro-
grama revela que os documentos disponíveis, na verdade divergem
muito uns dos outros, em termos de detalhamento e objetivos al-
cançados, bem como de algumas informações numéricas, principal-
mente, presentes no website oficial do EUROsociAL. As atividades do
EUROsociAL II ainda não começaram a ser atualizadas.

2.2 O eurosocial II
O EUROsociAL II foi lançado na Cúpula ALC-UE de Madrid
(de 15 a 18 de maio de 2010), como um dos cinco novos programas
regionais aprovados no marco do Plano de Ação50. É importante fri-
sar que essa segunda etapa do Programa teve início em dezembro
de 2010, quando a Comissão Europeia concedeu um subsídio de
40 milhões de euros para execução do “Programa Regional para a
Coesão Social na América Latina – EUROsociAL II (2011-2014)” à
organização responsável pela Agência de Coordenação EUROsociAL,
a Fundação Internacional e Ibero-americana de Administração e Po-
líticas Públicas (FIIAP)51, que coordena um consórcio de instituições
européias e latino-americanas na execução das atividades definidas
pelo Programa. O consórcio é composto por um núcleo de coordena-
ção de parceiros: três latino-americanos (Agencia Presidencial para
la Acción Social y para la Cooperación Internacional, Colombia;
ENAP – Escola Nacional de Administração Pública, Brasil; e SICA
– Sistema de la Integración Centroamericana, El Salvador) e três
instituições europeias (IILA- Istituto Italo Latinoamericano, Itália
FEI – France Expertise Internationale, França; GIZ – Deutsche Ge-
sellschaft für Internationale Zusammenarbeit, Alemanha; e FIIAP,
Espanha), e mais 80 sócios operativos e entidades colaboradoras,
como anuncia o portal do EUROsociAL II52.
50
EUROsociAL. Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/eurosocial-II/tiki-in-
dex.php?page=que_es>. Acesso em: 25 set. 2011.
51
Instituto de Estudios Fiscales. Disponível em: <http://www.ief.es/destacados/euroso-
cial.aspx>. Acesso em: 12 jul. 2011.
52
Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/eurosocial-II/tiki-index.php>.
Acesso em: 02 set. 2011..

156 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Os principais atores envolvidos no Programa correspondem a
Instituições e Governos Latinoamericanos comprometidos em rea-
lizar reformas políticas que exerçam impacto sobre a coesão social.
Nesse sentido, o EUROsociAL II oferece apoio e acompanhamento
às iniciativas desses agentes por meio de sua arquitetura institucio-
nal formada por: sócios operativos, os quais “executam um conjunto
de atividades que representam uma resposta às demandas formu-
lados pelos governos dos países receptores”, e por sócio colaborado-
res, que “participam da execução das ações específicas”53. Os atores
ainda se dividem por região em: “Sócio Coordenadores Europeus”,
que coordenam a programação e implementação de uma atividade
em determinada área, além de orientarem os sócios operativos; e
“Sócios Coordenadores Latinoamericanos” que prestam apoio aos
primeiros e aos sócios operativos54.
Assim, de acordo com essa divisão administrativa, percebe-se
que o poder decisório concentra-se nos agente europeus, cabendo
às instituições latino-americanas apoiá-los. Tendo em vista a defi-
nição do EUROsociAL como uma iniciativa da Comissão Europeia,
essa percepção se demonstra coerente. No entanto, se considerar-
mos o âmbito no qual o Programa está inserido, a Associação Es-
tratégica Birregional, a participação dos agentes latino-americanos
deveria ser mais ativa 55.
Nesta segunda fase do Programa as principais atividades
continuam sendo a promoção de intercâmbios de experiências, de
conhecimento e de boas práticas entre as administrações públicas da
UE e da AL, cujo foco centra-se em cinco principais aspectos:
• assistência técnica e apoio;
• conhecimento de experiências relevantes de outros países;

53
EUROsociAL. Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/eurosocial-II/tiki-
index.php?page=Actores>. Acesso em: 04 nov. 2011.
54
Idem.
55
Vide artigo escrito sobre assunto: Kloppel, Felipe; Ayres, Stela. A Associação Estratégica
Birregional.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
157
• intercâmbio de funcionários com responsabilidades na
tomada de decisão e de gestão;
• atividades de formação;
• networking entre os governos dos países.

As atividades do EUROsociAL II se dividem em seminários,


reuniões, visitas/estágios, assistências técnicas e acompanhamen-
tos56. Os objetivos, ações e programas temáticos do EUROsociAL II
foram estruturados a partir do aprendizado com as experiências
do EUROsociAL I ao incorporar estratégias bem sucedidas e evitar
outras que não surtiram os efeitos esperados. Não há uma lista de
atividades e estratégias mau sucedidas, mas como se verá adiante
neste trabalho, é possível encontrar relatório de atividades bem-su-
cedidas, à exemplo da experiência no setor de Educação ocorrida em
Buenos Aires, Argentina:

En el marco de EUROsociAL –programa de cooperación de la Unión


Europea para América Latina–, la Fundación Iberoamericana para
la Educación, la Ciencia y la Cultura (FIECC) y la Organización
de Estados Iberoamericanos (OEI) dan cuenta, una vez más, de sus
propósitos institucionales dirigidos al fortalecimiento de las políticas
públicas y las estrategias que conduzcan a la plena inclusión educa-
tiva de niños y adolescentes.57

Como já fora mencionado, o fortalecimento de políticas pú-


blicas como forma de atingir a pobreza e desigualdade sociais, como
forma de se alcançar coesão social, é um dos propósitos do EUROso-
ciAL II. A imagem abaixo, demonstra a pirâmide de objetivos que se
pretendem alcançar com o EUROsociAL II:

56
Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/eurosocial-II/tiki-index.php?pa-
ge=Acciones>. Acesso em 15 abr. 2012.
57
Biblioteca EUROsociAL Disponível em: <http://biblioteca.programaeurosocial.eu/PDF/
Educacion/Acceso13.pdf>. Acesso em: 30 maio 2012.

158 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Fonte: Programa EUROsociAL II58 .

As ações do Programa são tipificadas como:


• Ações transversais de planejamento, coordenação, acompa-
nhamento, avaliação e animação, encarregadas pelo Comitê
de Programação e Coordenação EUROsociAL.
• Ações específicas de identificação de prioridades dos
países latinoamericanos, à fim de que os programas se-
jam delineados de acordos com estes; ações de progra-
mação, sensibilização e contrstrução de consensos; ações
de apoio na concepção, estruturação e planejamento de
políticas públicas; ações de fortalecimento instituicional
e apoio em implementação de políticas.

58
EUROsociAL. Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/eurosocial-II/tiki-
index.php?page=objetivos>. Acesso em: 19 set. 2011.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
159
Quanto aos programas temáticos, estes foram ampliados
com a incorporação de mais cinco programas aprovados no Acordo
Marco do Plano de Ação da VI Cúpula ALC-UE de Madrid (15 a 18
de maio de 2010) para o início da segunda etapa do EUROsociAL. As
atividades se desenvolvem sob o escopo de cinco eixos de trabalho,
dez áreas temáticas e vinte linhas de trabalho, como demonstra o
esquema abaixo59:

Eixo de Trabalho Áreas Temáticas Linhas de Trabalho


1. Melhora ao acesso de serviçoes de saúde
Saúde
I – Acesso universal 2. Qualidade e avaliação do sistema de saúde
a serviços de 1. Reformar a escola secundária
qualidade Educação
2. Qualidade de ensino
1. Fortalecimento de instituições reponsáveis pelas
Institucionalização e políticas sociais
Desenvolvimento de
II – Protecção social Políticas Sociais 2. Estrturação e implementação de sistemas de
e promoção de proteção social (combate à pobreza)
políticas activas 1. Promoção do emprego para os jovens
de emprego
Política activa de emprego 2. Políticas e serviçoes nacionais de emprego
(informalidade) 3. Articulação entre proteção social e políticas de
emprego como combate à informalidade
III – Sistemas fiscais e 1. Fortalecimento da eficácia, eficiência e equidade
finanças públicas das finanças públicas
que facilitem a
Finanças Públicas 2. Quitação de dívidas
redistribuição e
efeiciencia dos
gastos 3. Reforma nas finanças públicas

IV – Instituições 1. Transparências, quitação de dívidas, e combate


Democráticas / Instituições Democráticas
à corrupção
articulação entre
níveis de governo Diálogo Social 2. Pacto social
/ promoção da lei
e da luta Descentralização 3. Sistema de governança multinível

1. Prevenção da violência
V – Segurança Segurança Pública 2. Fortalecimento da polícia e dos serviços de
Pública / investigação criminal
direitos e
acesso à justiça 1. Acesso à justiça
Justiça
2. Reforma do sistema penal e seu fortalecimento

Fonte: EUROsociAL
Elaboração: Autor

59
EUROsociAL. Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/eurosocial-II/tiki-in-
dex.php?page=que_es>. Acesso em: 20 set. 2011.

160 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A tabela acima revela uma minuciosa divisão administrati-
va dos seguimentos de atividades assistidas pelo EUROsociAL, o
que em tese facilita a designação de cada país de acordo com sua
carência mais evidente. Entretanto, não há informações disponíveis
nos documentos pesquisados que discriminem qual país é responsá-
vel por coordenaras atividades de cada linha de trabalho, ou quais
países são atendidos por determinada linha.
Ainda que com alguns dados ausentes a respeito de seu fun-
cionamento, pode-se considerar que o sucesso do EUROsociAL I re-
side no fato de conseguir-se transformar projetos em programas,
sendo que os desafios para o sucesso do EUROsociAL II constituem
o direcionamento e a transformação desses programas em efetivas
políticas públicas, apoiadas nos direitos de cidadania, e que se con-
cretizam ao longo do tempo.
No tópico seguinte, serão analisados alguns gráficos e resul-
tados disponíveis no SIA referentes às atividades desenvolvidas fi-
nalizadas e em andamento na região da América Latina no âmbito
do EUROsociAL I.

3 RESULTADOS
Para se compreender as metas do Programa, bem como os re-
sultados que suas ações almejam, deve-se ter em a resposta para a
seguinte pergunta: “O que é um ‘resultado’ em EUROsociAL?”. Essa
pergunta é título do primeiro tópico do boletim informativo do “IV
Encuentro Internacional de Redes EUROsociAL”, realizado nos dias
23 e 24 de junho, na cidade de Salvador, que traz uma relação de
resultados alcançados durante a cooperação das administrações da
América Latina e UE60. No referido documento consta que o Progra-
ma atua para facilitar as relações entre as administrações públicas
europeias e latinoamericanas, no sentido de contribuir para a pro-

60
EUROsociAL. Nota à Imprensa. Disponível em: <http://eurosocialsalud.eu/files/
docs/00534.pdf>. Acesso em: 07 nov. 2011.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
161
moção da coesão social. Dessa forma, o boletim apresenta como “re-
sultados” as políticas e procedimentos cuja finalidade é propiciar a
inclusão social, redução da desigualdade social e pobreza61.
Há dois websites que disponibilizam informações relacionadas
ao Programa: 1) Sistema de Informação de Atividades de EUROso-
ciAL (SIA) que permite pesquisar instituições, documentos, ativi-
dades e resultados gerais, ou específico por país, sua função (trans-
ferente ou receptor) e/ou setor62; 2) O Sistema de informação de
Experiências Práticas e Iniciativas de Coesão Social (EPIC), que con-
ta com um acervo menos extenso do que o SIA, sobre práticas que
afetam positivamente a coesão social, possui inúmeras ferramentas
que podem tornar a busca mais avançada como componentes da ati-
vidade (o que, institucionalmente, foi desenvolvido), efeitos (sobre
o bem-estar, a eficácia do Estado e suas políticas ou uma cidadania
mais ativa) e nível da experiência (incipiente, confirmada ou com-
partilhada), entre outros63.
Um exemplo de pequisa no SIA realizada pelo “buscador
de resultados”, especificando o país receptor como Paraguai e se-
lecionando o “setor educação”, prover-nos-á de uma lista de fichas
de atividades exibidas por data (crescente ou descrescente), título
ou autor. Escolhida uma atividade ao caso sob o título “Apoyo a la
constitución de una red nacional de articulación institucional entre
educación y trabajo”, a ficha do documento nos informa o autor
(EUROsociAL Educación), a data (05/2011), o tipo de documento
(Resultado), a possibilidade de descarregar o documento em forma-
to Word e um quadro com uma breve observação feita pelo criador do
documento. Neste documento, o criador observa que

La actividad ha contribuido notablemente a los objetivos pro-


puestos: “Generar un espacio de comunicación e intercambio entre

61
EUROsociAL. IV Ecunentro Internacional de Redes EUROsociAL.
62
SIA. Disponível em: <http://sia.programaeurosocial.eu/index.php>. Acesso em: 18
maio 2012.
63
Programa EUROsociAL. Disponível em: <http://epic.programaeurosocial.eu/buscador/
buscar.php>. Acesso em: 16 abr. 2012.

162 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
representantes institucionales de sectores educativos y laborales del
país con la sociedad civil. Reconocer las necesidades y oportunida-
des de ambos sectores. Elaborar propuestas formativas y orientadoras
para ambos sectores. Establecer criterios comunes. Entre otros”. No
solo se ha creado consciencia colectiva de la necesidad de involucrar
a todos los actores de la sociedad que tienen un impacto y a su vez
son impactados por la educación técnica y profesional; sino que se ha
pasado a la acción. Es decir, se ha constituido, por primera vez en
Paraguay, una red de articulación de todos los actores involucrados
y han construido una agenda de actividades.64

Infelizmente, o relatório desta, bem como das demais ativi-


dades encontradas no website da SIA, não revela concretamente as
medidas que foram tomadas para se alcançar o dito “Apoyo a la cons-
tituición de uma red nacional de articulación institucional entre educación
y trabajo”. Não há informações específicas sobre como se constitui
essa atividade, se por meio de uma cúpula ou congresso, ou quais os
atores envolvidos nesta atividade.
De acordo com a FIIAP – em uma apresentação datada de
janeiro de 2011 – , o EUROsociAL I, ao longo de seu período vigente
(5 anos), desenvolveu 459 atividades, com 160 processos de políticas
públicas, envolvendo 2.212 instituições e 11.188 pessoas65. Ao cruzar
essas informações com as provenientes SIA identificamos algumas
divergências de dados, já que esse Sistema, atualizado pela última
vez em 12 de fevereiro de 201066, acusa a existência de 475 ativida-
des totais, com participação de 2.354 instituições e envolvimento
de 12.895 pessoas. Esses dados são encontrados no documento
“EUROsociAL EN CIFRAS” – disponível no próprio site da SIA –,
que em sua primeira página dispõe uma nota de normalização in-
formando que a soma das atividades, instituições e participantes
64
SIA. Disponível em: <http://sia.programaeurosocial.eu/documento.php?doc=317>.
Acesso em: 06 nov. 2011.
65
FIIAP, STRATEGIES FOR INTEGRATING SOCIAL COHESION IN PUBLIC POLICIES. Jan de
2011. Disponível em: <http://www.fiiapp.org/uploads/publicaciones/FIIAPP_PARIS_
OCDE.pdf>. Acesso em 18 jul. 2011.
66
Disponível em: <http://sia.programaeurosocial.eu/novedades.php>. Acesso em: 18 jul.
2011.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
163
são maiores que o total real, pois as atividades multisetoriais são
contabilizadas em todos os setores que participam67. Para fins de
análise, este relatório basear-se-á nos dados presentes no documen-
to “EUROsociAL EN CIFRAS”.
Nos três sub-tópicos a seguir serão mostrados e analisados
dados referentes as atividades, instituições e pessoas envolvidas na
primeira parte do Programa a partir de tabelas originalmente encon-
tradas na “Tabela-1: Dados estatísticos básicos do programa” daque-
le documento.

3.1 Atividades
Como já dito, as atividades implementadas pelo EUROsociAL
dividem-se em cinco eixos temáticos ou setores, de acordo com a ta-
bela abaixo. Quanto às tipologias de atividades, observa-se que são
divididas em quatro áreas: 1. O intercâmbio de experiências, pelo qual
se transferem lições e boas práticas entre as administrações públicas;
2. A sensibilização política; 3. As atividades desenvolvidas pelas redes
setoriais de administrações públicas; 4. O desenvolvimento de planos-
piloto, que permitem a experiência de novas ideias e linhas de ação.

Tabela-1: Total de atividades

TOTAL DE ATIVIDADES 475


Tipo de atividades
Projeto
Intercâmbio Sensibilização Redes Outros
Piloto
366 15 58 9 27
Atividades por setor
Educação Emprego Fiscalidade Justiça Saúde
94 48 142 102 118

67
EUROsociAL. EUROsociAL EM CIFRAS. Disponível em: <http://sia.programaeurosocial.
eu/informes.cifras.php?tipo=html>. Acesso em: 03 ago. 2011.

164 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A tabela acima revela que o tipo de atividades mais realizadas
constituem, exatamente, o intercâmbio de experiências e o setor de
maior atividade do Programa é o de Fiscalidade, cujo objetivo geral
do projeto é introduzir métodos e técnicas que fortaleçam e moder-
nizem as instituições fiscais nos países da América Latina, tornando
seus procedimentos mais transparentes à fim de que se aumente a
confiança neles68.
Um exemplo dessas duas constatações é caso do modelo
de educação fiscal adotado pelo Governo do Estado de Alagoas, des-
de 2007, que recebera o convite da Escola de Administração Fazen-
dária (Esaf) para publicar, no site do Programa EUROsociAL, o livro
“Curso de Disseminadores de Educação Fiscal”. O EUROsociAL ha-
via solicitado à Esaf o envio de um projeto brasileiro de destaque
para ser publicado e servir de experiência para outros países69.
Seguindo a análise dos dados, um gráfico ilustrativo foi ela-
borado para facilitar a comparação de ocorrências de atividade por
setor. Segundo a nota que acompanha a “Tabela-1”, a somatória das
atividades expressa um valor maior de atividades (504) do que o
fornecido (475) devido às atividades multisetoriais que são contadas
em cada setor.

68
EUROsociAL. Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/index.php?PHPSESSI-
D=idurmf3u88as6lgcqcciuvklj3&nIDMenu=32&nIDSeccion=32>. Acesso em: 20 jul. 2011.
69
Governo de Alagoas. Disponível em: <http://www.sefaz.al.gov.br/pef/noticias/LivroLe-
vaExperiencias.pdf>. Acesso em: 07 nov. 2011

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
165
Não há informações referentes ao financiamento destina-
do a cada setor, ainda que em nota da “Tabela-1” esteja expresso
que “o volume do Projeto EUROsociAL Emprego é muito inferior
ao resto dos setores tanto em seu montante financeiro como, em
conseqüência, em seu nível de atividade”70.
No site do SIA, é possível acessar um relatório que lista todas
as “Atividades de Intercâmbio do EUROsociAL” totalizando 370
ações com detalhes sobre o ano de realização, país sede e setor
abordado (http://sia.programaeurosocial.eu/informes.actividades.
php?sector=0&pais=0&tipo=htm l&area=0&pat=&anyo=0&acti-
vidad=intercambio). No mesmo site, como já exposto acima, é pos-
sível pesquisar de maneira mais objetiva sobre a atividade que se
procura a partir da ferramenta de busca que dispõe de data de reali-
zação, país, setor, situação da atividade.
Por exemplo, ao utilizar o “buscador de atividades” é possível
encontrar a ficha “Creadas las Oficinas de Atención al Ciudadano en
el Poder Judicial de Córdoba, Argentina”, do setor “Justiça”, cujos
países transferentes compreendem França e Espanha e revela al-
guns dados referentes ao objetivo da atividade. É interessante
ressaltar a justificativa da operação, que identifica a contribuição do
EUROsocial: “La implementación de políticas públicas orientadas a
la construcción de ciudadanía y la mejora del acceso a justicia de
los sectores más vulnerables, contribuirá a mejorar la cohesión
social en la República Argentina”71.
O gráfico seguinte mostra a predominância de atividades de
intercâmbio frente às outras promovidas pelo EUROsociAL, con-
vergindo com o conteúdo boletim do “IV Ecuentro Internacional
de Redes EUROsociAL”, que identifica a formação de Redes La-
tinoamericanas que servem como plataforma para intercambiar
experiências e conhecimentos concernentes a cada setor do Pro-
grama. Por exemplo, dentro do setor EUROsociAL Educação os mi-

70
EUROsociAL. EUROsociAL EM CIFRAS.
71
SIA.

166 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
nistérios de Educação e instituições penitenciarias da Argentina,
Brasil, Colômbia, Costa rica, Equador, El Salvador, Honduras, Mé-
xico, Paraguai, Peru e Uruguai, criaram e participam ativamente da
Rede Latinoamericana de Educação em Contextos de Isolamento
- RedECE (www.redlece.org).

Além disso, é possível observar através dos gráficos seguintes


I e II, que os países mais implicados pelo Programa são a Argentina
e o Chile o primeiro com 242 atividades desenvolvidas, e o segundo
com 209 –, e que os países que mais contribuem para o orçamen-
to do Programa (Espanha e França) também são responsáveis pela
maior parte das atividades. Nota-se, ainda, no gráfico II, uma par-
ticipação mais ativa dos países da Europa Central como Espanha,
França, Itália, Alemanha e Portugal, enquanto a maior parte dos
países que aderiram à União Européia mais recentemente apresenta
um tímido envolvimento. Ao todo participam 19 países latinoameri-
canos e 23 países europeus 72.
72
Também participam 9 países de outras zonas. EUROsociAL. EUROsociAL EM CIFRAS.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
167
Gráfico I: Países da América Latina

Fonte: Programa EUROsociAL


Elaboração: Programa EUROsociAL.

Os critérios para a distribuição das atividades entre países


não foram encontrados em nenhum dos documentos analisados, o
que pode depender, possivelmente, das iniciativas de cada país.
Gráfico II: Países da Europa

Fonte: Programa EUROsociAL


Elaboração: Programa EUROsociAL.

168 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
3.2 INSTITUIÇÕES
No âmbito do Programa EUROsociAL I, as instituições de
cada setor temático de diferentes países se organizavam em con-
sórcios para elaboração e implementação de projetos, financiados
em sua maioria pela Comissão Européia. Um exemplo brasileiro de
como funciona, parcialmente, essa dinâmica cooperativa é a Escola
Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), que em uma pu-
blicação de 2008 anunciava sua responsabilidade “técnica por três
linhas de intercâmbio, envolvendo a atenção primária em saúde e
tecnologias de informação e comunicação, além de uma pasta de
ações intersetoriais que terá a participação do Centro Latino-Ame-
ricano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), o qual
atuará sobre o tema da violência infantil na América Latina”73. A
coordenadora da instituição declarou que o plano de trabalho fora
enviado para aprovação da Comissão Européia e, na ocasião comu-
nicado, estava sob análise da Oficina de Cooperação EuropeAid74.

A tabela acima revela a majoritária participação de institui-


ções latinoamericanas equivalente a quase o triplo das instituições

73
ENSP. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/portalensp/informe/materia/index.
php?matid=9593&origem=4. Acesso em: 08 nov. 2011
74
Idem. Acesso em: 08 nov. 2011

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
169
europeias. Já a mobilização por setor demonstra que a maioria das
instituições não se encontra, necessariamente, no setor inde há
maior atividade (Fiscalidade), e sim no setor Justiça.
Ainda que na descrição da página online do Programa EU-
ROsociAL especifique que o programa trata de uma iniciativa da
Comissão Europeia em cooperação com a América Latina para pro-
moção da coesão social, o SIA permite a identificação de inúmeras
instituições originarias de diferentes países localizados na Ásia,
África e Oceania. No entanto, o website do Programa EUROsociAL I
restringe-se a identificar apenas instituições europeias e latino-
-americanas como executoras das atividades de desenvolvidas sob
seu escopo:

Organizações executoras de projetos


do EUROsociAL, por setores:
Centre International d’Études Pédagogiques
Fundación Iberoamericana para la Educación, la Ciencia y la Cultura
(OEI
Comitato Internazionale per lo Sviluppo dei Popoli (CISP), Italia
Ministério da Educação,
EMPREGO

Ministerio de Educación, El Salvador


Secretaría de Educación Pública,
Ministerio de Educación,
Centro Internacional de formación de la Organización Internacional
del Trabajo (CIF OIT), Italia
Oficina Regional para América Latina y El Caribe, Organización
Internacional del Trabajo, Perú

170 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Organizações executoras de projetos
do EUROsociAL, por setores:
Instituto de Estudios Fiscales (IEF), España
Fundación Centro de Educación a Distancia para el Desarrollo
Económico y Tecnológico (CEDDET), España
Assistance au Développement des Échanges en Technologies
Économiques et Financières (ADETEF), Francia
Institute for Fiscal Studies (IFS), Reino Unido
FISCALIDADE

Centro Interamericano de Administraciones Tributarias (CIAT)


Administración Federal de Ingresos Públicos (AFIP), Argentina
Secretaria da Receita Federal, Brasil
Dirección de Impuestos y Aduanas Nacionales (DIAN), Colombia
Servicio de Administración Tributaria (SAT), México
Membros associados:
Organización Iberoamericana de Seguridad Social (OISS)
Agencia Estatal de Administración Tributaria (AEAT), Spain
Instituto Centroamericano de Administración Pública (ICAP
Fundación Internacional y para Iberoamérica de Administración y
Políticas Públicas (FIIAPP), España
Consejo General del Poder Judicial (CGPJ), España
École Nationale de la Magistrature, Francia
Fundación Alemana para la Cooperación Jurídica Internacional. (IRZ)
JUSTIÇA

Oficina del Consejo Nacional de la Justicia, Hungría


Centro de Estudios Jurídicos de las Américas (CEJA)
Secretaría da Reforma do Judiciario, Brasil
Consejo Superior de la Judicatura, Colombia
Corte Suprema de Justicia, Costa Rica
Instituto Tecnológico de Estudios Superiores Monterrey, México
Ministère de la Justice, Francia
Institut de Recherche pour le Développement (IRD), Francia
Fundación para la Cooperación y Salud Internacional Carlos III, España
SAÚDE

Fondazione Angelo Celli per una Cultura della Salute, Italia


Organización Iberoamericana de la Seguridad Social (OISS)
Fundación ISALUD, Argentina
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Brasil
Fondo Nacional de Salud. (FONASA), Chile
Instituto Nacional de Salud Pública, México

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
171
Organizações executoras de projetos
do EUROsociAL, por setores:
Centre International d´Études Pédagogiques (CIEP) (Líder)
Fundación Iberoamericana para la Educación, la Ciencia y la Cultura
OEI
EDUCAÇÃO

Comitato Internazionale per lo Sviluppo dei Popoli (CISP), Italia


Ministerio da Educação, Brasil
Ministerio de Educación, El Salvador
Secretaría de Educación Pública, México
Ministerio de Educación, Perú

Fonte: Programa EUROsociAL.


Elaboração: autor.

Quando se pesquisou a respeito dos membros de cada setor


por países, observou- se a participação de outras instituições não
citadas na tabela de “Organizações executoras de projetos do EU-
ROsociAL por setores”. Isso porque, a composição de membros por
setores é distinta uma da outra. No caso do setor Justiça, revelou-se
que a rede de membros varia conforme a atividade específica. Ou
seja, os membros diferem a cada congresso, cúpula ou conferência.
Já no setor Fiscalidade75, os membros são listados independente-
mente da atividade desenvolvida.
Existe um documento denominado “Instituições Red EU-
ROsociAL Fiscalidade”76 que disponibiliza o nome das instituições
desse setor por país, . No caso do Brasil, por exemplo, estão rela-
cionados para essa tarefa a Receita Federal do Brasil (RFB), a Co-
missão de Gestão Fazendária (COGEF), a Diretoria de Cooperação
e Pesquisa (Dirco), o Ministério Público (MP), Secretaria de Gestão
(SEGES), a Secretaria de Orçamento Federal e Ministério da Previ-
dência Social.
75
EUROsociAL Fiscalidade. Disponível em <http://www.eurosocialfiscal.org/>. Acesso em
04 abr. 2012.
76
Disponível em: <http://www.eurosocialfiscal.org/uploads/media/Otra/Instituciones_
parte_de_la_Red.pdf>. Acesso em 12 ago. 2012.

172 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Nos demais setores (Emprego, Saúde e Educação) o website
do EUROsociAL I já se encontrava desatualizado o que impossibi-
litou a pesquisa sobre essa informação. Entretanto, na página onli-
ne do Programa EUROsociAL II, está disponível uma nova relação
de instituições intitulada “sócios operativos e entidades colabora-
doras”77 que classifica os membros pelo “tipo de sócio” – operativo
ou colaborador -, pelo país de representação e pela área temática
na qual atua. Comparando-se a quantidade de instituições partici-
pantes no EUROsociAL I, que alcança o número de 2.354 institui-
ções, e o número de sócios operativos e entidades colaboradoras no
EUROsociAL II descrita como “mais de 80”, observa-se uma brusca
redução na quantidade de envolvidos. Uma possível explicação é a
de que no primeiro caso, contabilizam-se as instituições receptoras,
e no segundo caso apenas os transferentes. Ainda assim, essa é uma
explicação que não se confirma, visto que não há dados a respeito
disso.
Em relação a tabela acima, a lista de organizações e institui-
ções listadas acima demonstra o elevado grau de integração entre
diversos níveis da administração pública dos países latinoamerica-
nos e europeus ao abranger ministérios, fundações, institutos e cen-
tros de estudo e pesquisa. Entretanto, os dados não revelam se há a
participação do terceiro setor como receptor direto desses intercâm-
bios de experiência e outras atividades do Programa, informação
essa não disponível nos sites dessas organizações e não respondidas
quando questionadas via ouvidoria78.
As evidências encontradas que mais se aproximam da parti-
cipação da sociedade civil no âmbito do Programa EUROsociAL são
relatórios de atividades desenvolvidas pelo setor Saúde na América
Latina. Um desses relatórios foi elaborado pela Fundação Angelo
Celli e o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Ge-

77
EUROsociAL. Disponível em: <http://www.programaeurosocial.eu/eurosocial-II/tiki-in-
dex.php?page=SO_EC>. Acesso em 04 abr. 2012.
78
Tentativas feitas com Receita Federal do Brasil e Ministério da Previdência Social.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
173
rais após assinarem um contrato de consultoria para elaborarem um
“Documento Técnico sobre TIC y Atención Primaria de Salud: un
análisis sistematizado de modelos y experiencias clave em América
Latina y Europa”79. O outro relatório fora elabora do pelo “Grupo
de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde de Porto Alegre, GP.APS”,
caracterizado como documento marco sob a titulação de “ La for-
mación de profesionales de salud para la APS y Salud Familiar y
Comunitaria en América Latina” 80.
Em ambos documentos confere-se o apoio do Progrmaa EU-
ROsociAL Saúde, da instituição de status sócio coordenador bra-
sileira ENSP e do Ministério da Saúde. Dessa forma, confirma-se
o envolvimento das instituições brasileiras anteriormente citadas,
mas revela-se a participação meramente formal das universidades,
as na descrição do Programa são colocadas como alvo de suas ati-
vidades.
Depreende-se desse panorama que não se há logrado alcan-
çar as recomendações presentes no Comunicado da Comissão Eu-
ropeia ao Parlamento Europeu (2009) em relação à necessidade
de construir uma Fundação ALC-UE com o objetivo de incluir “a
sociedade civil, intervenientes não estatais, instituições culturais e
financeiras” 81 no diálogo birregional. É sabido que na VI Cúpula AL-
C-UE, realizada em Madrid em maio de 2010, foi aprovada a criação
da Fundação ALC-UE de acordo com o artículo 34 da Declaração de
Madrid:

Además de la iniciativa adoptada en la Cumbre de Lima, hemos


decido crear una Fundación UE-ALC cuyo “Término de Referencia”
hemos recibido. Esta fundación está concebida como instrumento

79
Biblioteca EUROsociAL. Disponível em: <http://biblioteca.programaeurosocial.eu/PDF/
Salud/Salud15.pdf>. Acesso em: 10 maio de 2012.
80
Idem. Disponível em: <http://biblioteca.programaeurosocial.eu/PDF/Salud/Salud9.
pdf>. Acesso em: 10 maio 2012.
81
COM (2009) 495/3. La Unión Europea y América Latina: Una asociación de actores glo-
bales, p. 7.

174 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
útil para reforzar nuestra asociación birregional y como medio para
suscitar el debate sobre las estrategias y acciones comunes. Así como
para mejorar su visibilidad. Los altos funcionarios adoptarán la de-
cisión sobre la sede de la Fundación. 82

Em 25 de janeiro de 2011, aprovou-se o local da sede da Fun-


dação ALC-UE na cidade de Hamburgo, Alemanha, e já em 07 de
setembro do mesmo “inauguraram-se simultaneamente a sede e as
atividades da Fundação ALC-UE”.83 Como se pode observar a fina-
lidade da Fundação descrita no Comunicado e na Declaração não é
mesma, ou seja, a segunda não envolve a sociedade civil no diálogo
birregional. Ao que tudo indica, as atividades veem seguindo as di-
retrizes da Declaração e não do Comunicado.

3.3 PESSOAS
Após analisarmos os dados sobre as atividades (onde elas se
desenvolvem) e as instituições (quais organismos as apóiam), resta-
nos avaliar o último elemento do tripé que sustenta e implementa
as ações dos EUROsociAL, as pessoas. Como a tabela abaixo de-
monstra, os detalhes sobre os participantes consistem em uma
divisão por gênero, região e setores.

Homens Mulheres Total


TOTAL DE PESSOAS 6.927 5.968 12.895
PARTICIPANTES
... de América Latina 5.429 4.991 10.420
... de Europa 1.211 791 2.002

82
CONSELHO DA UNIÃO EUROPÉIA. Declaración de Madrid. VI Cumbre UE-ALC, Madrid,
18 de mayo de 2010, p. 9.
83
CORREDOR BIOCEANICO. Disponível em: <http://corredorbioceanico.wordpress.
com/2011/11/08/fundacion-ue-alc-inaugura-sede-yactividades-en-Hamburgo/>.
Acesso em: 10 maio 2012.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
175
Fonte: Programa EUROsociAL
Elaboração: Programa EUROsociAL.

A proporção de pessoas envolvidas, baseada em gênero, se


mostra bastante equilibrada, sendo que na América Latina a razão
de mulheres para homens é igual a 0,91, e a mesma razão para
o total de participantes é 0,86, ou seja, a participação de ambos os
gêneros é bastante proporcional. A maior diferença, em termos de
proporcionalidade entre a participação de gênero, concentra-se na
Europa onde o numero de homens envolvidos nas atividades é 65%
maior que o de mulheres.
A relativa proporção mantida entre os gêneros participantes
transparece os valores e princípios que norteiam a Declaração de
Guadalajara que reafirmam o compromisso dos Estados participan-
tes, na esfera social, igualdade de gênero, entre outros especificados
no artigo 61:

Comprometemo-nos a fortalecer os mecanismos de coope-


ração dirigidos a grupos vulneráveis e excluídos dentro de
nossas osciedades, atribuindo especial atenção ao combate à
discriminação e à promoção da participação ativa de mino-
rias e de povo indígenas nas polítcas e programas públicos
que os afetam. Atribuiremos também prioridade `promo-
ção da igualdade de genêros. Com este fim, reconehcemos a
necessidade de se eliminar os obstáculos estruturais e de se
promover o papel da mulher na sociedade.84

Observa-se também, que ainda que os países europeus se-


jam mais numerosos (23) dentro do Programa, têm a mobilização
84
EUROPE UNION. Declaration of Guadalajara, 2004, p. 9.

176 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
de pessoas (2.002) equivalente a, aproximadamente, um quinto da
dos países latinoamericanos (19), que contam com 10.420 parti-
cipantes. Como essas cifras advém do documento “EUROsociAL em
Cifras”, e este considera apenas as atividades classificadas como de
“gestão” 85 , é provável que o número de ações, somadas às de ou-
tras natureza, seja muito superior, bem como o número de pessoas
envolvidas.
Em relação à identidade das pessoas envolvidas, não foram
encontradas muitas informações acerca de sua origem. O único
documento que se obteve traz informações sobre o primeiro ano de
funcionamento do Programa, e relata que “Realizaram-se também
actividades de difusão na América Latina, seguidas por intercâm-
bios de experiências que mobilizaram já mais de 280 instituições e
700 funcionários de ambas as regiões”86.
Assim como nas instituições não se verificou a participação
documentada de entidades da sociedade civil, dentre as milhares
de pessoas envolvidas não é possível afirmar que haja representan-
tes de setor, tão pouco do setor privado, como empresários. Embora
a descrição inicial do Programa afirme que as atividades sejam vol-
tadas, dentre outros, para “coletivos influentes na formulação de
políticas sociais, intelectuais, líderes profissionais, universidades,
institutos de pesquisa, organizações de trabalhadores e sociedade
civil”.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com o exposto nesse trabalho, os objetivos das
ações desenvolvidos por setores, bem como os resultados exemplifi-
cados nos casos do Paraguai e de Córdoba, na Argentina, condizem
inteiramente com a proposta do Programa prevista no artigo 49 da
Declaração de Guadalajara:

85
EUROsociAL. EUROsociAL em Cifras, p. 1.
86
Idem.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
177
[...] nó adotamos o programa EUROsociAL com o objetivo
de promover intercâmbios de experiências, know-how e boas
praticas entre ambas as regiões na esfera social, em particu-
lar nos setores de educação e de saúde que são chave para o
aumento da coesão social.87

Ainda que muito já tenha sido feito no sentido de cumprir


as metas de combate e erradicação da pobreza a longo prazo, bem
como da desigualdade e exclusão social, é difícil a identificação pre-
cisa sobre os efeitos e resultados das atividades desenvolvidas no
âmbito do Programa. Como revela o boletim do “IV Ecuentro Inter-
nacional de Redes EUROsociAL”:

No existe una correlación unívoca o lineal entre la participación de


un país en EurosociAL – reflejada en el número de instituciones y
personas que se han implicado en el Programa – y la cantidad o
calidad de los resultados obtenidos en cada uno de ellos. Esto se debe,
en parte, a la multiplicidad de factores que influyen sobre cualquier
modificación de políticas o instituciones: en algunos países de la re-
gión, EurosociAL ha apoyado procesos en marcha o incluso muy
avanzados, mientras que en otros ha servido como catalizador de
nuevas ideas que deben todavía madurar. Pero también tiene que ver
con la fluidez de las relaciones de cooperación entre el país y la unión
Europea y el momento político particular durante el que se ha de-
sarrollado el programa (coincidente con la celebración de elecciones
en casi toda la región).

Soma-se a essa condição, que o levantamento de informa-


ções a respeito do Programa EUROsociAL revela que há falhas
na precisão dos dados quantitativos e qualitativos relativos às
atividades e instituições envolvidas. No entanto, cabe ao Comitê
Intersetorial de Coordenação e Orientação (CICO) nivelar as in-
formações dos consórcios de cada setor. Além disso, os números
fornecidos pela instituição coordenadora do Programa, a FIIAP,

87
EUROPE UNION. Declaration of Guadalajara, 2004, p. 7. Tradução nossa.

178 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
divergem dos dados publicados em formato de relatórios e ferra-
mentas de busca no site do Sistema de Informação de Atividades
de EUROsociAL (SIA). Essa dificuldade na operacionalização e
coordenação dos dados, que são de fato volumosos – devido ao
volume de projetos executados simultaneamente e delegados a
equipes de distintos setores – deve ser um dos principais aspec-
tos a serem corrigidos no EUROsociAL II. Trata-se de conformar
a publicação dessas informações ao Princípio da Transparência,
que constitui um dos princípios do serviço público, e consiste
em “trazer ao conhecimento público e geral dos administrados a
forma como o serviço foi prestados, os gastos e a disponibilidade
de atendimento”88.
É fato que o EUROsociAL promove atividades de extrema
relevância – como as trocas de experiências e boas práticas, assis-
tência técnica, formação de redes de colaboração entre os países
na América Latina nos diferentes setores do Programa (Educação,
Saúde, Emprego, Fiscalidade e Justiça) – para o aprimoramento em
eficiência e eficácia de políticas sociais implementadas pelas admi-
nistrações públicas de variados níveis de responsabilidade, como de-
talham os relatórios individuais de atividades concluídas disponíveis
para busca no site do SIA.
Nesse sentido, observa-se que o orçamento do Programa
destina-se em grande medida para capacitação das autoridades,
tomadores e planejadores de políticas públicas, realizada por ins-
tituições de direito privado e organismos governamentais como
o Ministério da Educação e a Secretaria da Receita Federal, no
Brasil.
Entretanto, as informações sobre como esses repasses são
feitos e quais os requisitos para admissão de projetos não es-
tão claros. Como demonstrado no exemplo da Escola Nacional de

88
Disponível em: <http://pt.shvoong.com/law-and-politics/administrative-law/17990
24-princ%C3%ADpios-servi%C3%A7o-p%C3%BAblico/#ixzz1dOh4pY2X>. Acesso em:
12 nov 2011.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
179
Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) que se anunciara responsável
por algumas atividades do setor EUROsociAL Saúde: a instituição
envio um projeto que estava sob análise da Comissão Européia, mas
já fazia parte do consórcio do Programa há 4 anos. Não foi possível
encontrar informações a respeito de quando o projeto foi aprova-
do, e como ocorreu seu financiamento ou apoio. Outro vácuo de
informação refere-se à ausência de documentos que revelem a par-
ticipação e atuação de organizações não-governamentais atuassem
nessas atividades.
Por sua vez, o EUROsociAL age certeiramente na causa dos
problemas e mazelas sociais: a ineficácia e ineficiência da gestão
de políticas públicas. Com um bom planejamento e discernimen-
to por meio de experiências bem-sucedidas, é possível amenizar e
até erradicar as conseqüências provenientes de uma administração
pública deficitária, como desigualdade, fome e pobreza. A lista de
“Atividades de Intercâmbio realizadas no EUROsociAL”, dada sua
extensão, evidencia a aceitação positiva do modelo de intercâmbio
de experiências para alcançar este fim.
Essa característica diferencia o EUROsociAL de meros pro-
gramas assistencialistas, pois envolve o trabalho simultâneo de va-
rias organizações de diferentes países que operam de maneira con-
junta, que cooperam. A cooperação e atuação de gestões públicas de
países latinoamericanos e com a de países europeus é contrapartida
fundamental para que se obtenham resultados práticos, traduzidos
em efetivas políticas públicas direcionadas para o aumento da coe-
são social – cerne dos objetivos do EUROsociAL II.
A estratégia do Programa ao destinar atenção específica para
as esferas da Educação, Justiça, Fiscalidade, Emprego e Saúde, per-
mite abranger todas as dimensões do problema da coesão social,
pois combate problemas crônicos da América Latina, como o anal-
fabetismo, falta de acesso às redes de saúde, a corrupção, a impuni-
dade, o despreparo profissional, a burocracia. Todos esses aspectos
constituem, de uma forma ou de outra, barreiras e empecilho para

180 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
o desenvolvimento e bem-estar dos países de ambas as regiões, mas
precisamente nos países latinoamericanos, onde essas condições são
mais díspares.
Como expressa o artigo 39 da Declaração de Guadalajara,
problemas sociais como a pobreza, a exclusão e a desigualdade são
uma afronta à dignidade humana, enfraquecem a democracia e tor-
nam vulneráveis a paz e a estabilidade.

5 REFERÊNCIAS
COM (2009) 495/3. La Unión Europea y América Latina: Una asociación de actores
globales, p. 7.
CONSELHO DA UNIÃO EUROPÉIA. Declaración de Madrid. VI Cumbre UE-ALC,
Madrid, 18 de mayo de 2010, p. 9.
CORREDOR BIOCEANICO. Disponível em <http://corredorbioceanico.wor-
dpress.com/2011/11/08/fundacion-ue-alc-inaugura-sede-y-actividades-en-ham-
burgo/>. Acesso em: 15 abr. 2011.
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). ENSP. Disponível em:
<http://www.ensp.fiocruz.br/portalensp/informe/materia/index.php?matid=95
93& origem=4>. Acesso em: 14 set. 2011.
EUROPE UNION. DECLARATION OF GUADALAJARA. III Cúpula América
Latina, Caribe e União Européia, México. Maio de 2004. EUROsociAL. IV Ecu-
nentro Internacional de Redes EUROsociAL. Folleto EUROsociAL II. Disponível em
< http://www.programaeurosocial.eu/eurosocial-II/tiki-list_file_gallery.php?gal-
leryId=9>. Acesso em: 18 set. 2011.
SHVOONG. Disponível em: <http://pt.shvoong.com/law-and-politics/adminis-
trative-law/1799024-princ%C3%ADpios-servi%C3%A7o-p%C3%BAblico/#ixzz-
1dOh4pY2X>. Acesso em: 12 nov. 2011.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
181
A ÓTICA DO ACORDO INTERNACIONAL
DA PREVIDÊNCIA SOCIAL ENTRE BRASIL-
ITÁLIA COMO FERRAMENTA DE SEGURANÇA
INTERNACIONAL
Maria José Jung Gonzalez
Especialista em Relações Internacionais, Jornalista, especialista em Direitos à saú-
de pela Unisinos. Membro de Direitoria da ONG Advogados Sem Fronteiras, arti-
culista em Ceiri/SP, colunista em Relações Internacionais. (zecajung@gmail.com)

Resumo:
A tendência dos Acordos Internacionais é pela globalização em porte mundial, incrementan-
do e ratificando a necessidade de se romper barreiras jurídicas e políticas envolvendo um
grande esforço no tratamento migratório. O principal objetivo deste Acordo Internacional é
garantir a Seguridade Social prevista na legislação dos dois países, inclusive com o intuito de
criar uma base legal comum quanto às obrigações e aos direitos previdenciários. O sistema
de benefícios previdenciários é hoje percebido como ferramenta de segurança e bem-estar
indispensável para atender às necessidades de estabilidade dos trabalhadores migrantes, e
neste trilho, torna-se obrigatória sua divulgação.
Palavras-chave: Previdência Social – Acordo Internacional – Brasil – Itália.

Sumário:
1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 2.1 Direito à Saúde no Cenário Internacional. 2.2 Percurso
Migratório: Brasil-Itália. 2.3 Acordo da previdência Social entre Brasil-Itália. 2.4 Análise da
Efetivação do Acordo. 3. Considerações Finais. 4. Referências

INTRODUÇÃO
A Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz
das Nações Unidas, conforme resoluções aprovadas, cita em seu teor,
as medidas para promover a paz e a segurança internacionais. Con-

182 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
forme o documento, alínea g: destaca-se o desestimular e abster-se
de adotar qualquer medida unilateral que não esteja em consonância
com o direito internacional e a Carta das Nações Unidas. Tudo que
dificulte a obtenção plena de desenvolvimento econômico e social da
população dos países afetados, em particular mulheres e crianças,
que impeçam seu bem-estar, criem obstáculos para o gozo pleno de
seus Direitos Humanos. Inclusive o direito de todos a um nível de
vida adequado para sua saúde e bem-estar e o direito a alimentos, a
assistência médica e serviços sociais necessários, ao mesmo tempo
em que se reafirma que os alimentos e medicamentos não devem ser
utilizados como instrumento de pressão política
As políticas de imigração vigentes nos países de acolhimento
que não promovam a integração social e contribuam para a manu-
tenção das condições associadas à vulnerabilidade das populações
imigrantes podem influenciar de forma negativa a sua saúde. Apesar
da existência de cobertura e acesso universal aos cuidados de saúde
na maior parte dos países receptores de imigrantes, o que se constata
é que muitas vezes as comunidades não se beneficiam de todos os
serviços disponíveis e não são efetivamente abrangidas pelos siste-
mas existentes de promoção da saúde, prevenção ou tratamento da
doença. Os Acordos Internacionais são as mais importantes fontes
de Direito Internacional e sua relevância está, principalmente, na
garantia oferecida pelo Direito escrito, ou seja, normatizado.
Portanto, os Acordos Internacionais que tratam sobre Previ-
dência Social são uma forma de proteger os direitos dos trabalhado-
res envolvidos em movimentos migratórios, tendo-se em vista a glo-
balização e o trânsito de pessoas gerado por essa. Assim um Estado
soberano deve garantir os direitos de seus cidadãos, mesmo quando
esses estiverem fora de sua área territorial. O Brasil possui Acordos
Internacionais Bilaterais de Previdência Social com alguns países:
Cabo Verde, Itália, Grécia, Espanha, Chile, Portugal, Luxemburgo,

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
183
ultimando formalização com o Canadá, Estados Unidos, Japão, Ale-
manha e Bélgica; e Acordo Internacional Multilateral com os países
do MERCOSUL (Argentina, Uruguai e Paraguai).
Nesta pesquisa, optou-se pela relação Brasil-Itália, pois se es-
tima que haja cerca de 30 milhões de ítalo-brasileiros, descenden-
tes de imigrantes italianos chegados ao Brasil entre 1870 e 1960. A
comunidade de descendentes de italianos no Brasil é considerada a
maior do mundo, com 16% ítalo-descendentes. A maioria dos ítalo
-brasileiros que hoje vivem no Brasil mantêm a maior parte dos cos-
tumes tradicionais italianos. A contribuição dos italianos é notável
em todos os setores da sociedade brasileira, principalmente nas mu-
danças sociais e econômicas realizadas no campo e nas cidades onde
se estabeleceram. Pode-se citar desde o modo de vida, que mudou
profundamente influenciado pelo catolicismo, bem como as artes,
a música, a arquitetura, a alimentação e o espírito empreendedor
italiano na abertura e desenvolvimento de empresas e trabalhos es-
pecializados. No campo, é notável a introdução de novas técnicas
agrícolas e, principalmente, a promoção da mudança estrutural dos
latifúndios para pequenas propriedades agrícolas, bem como a intro-
dução da policultura de produtos.
Frente a esta miscigenação arraigada dos dois povos, vê-se a
necessidade de avaliar a efetivação dos direitos garantidos aos bra-
sileiros e italianos pelo Acordo do INSS e INPS entre os dois países:
Quais os principais problemas encontrados no cumprimento deste
Acordo? Existem informações deste Acordo disponíveis aos brasilei-
ros e italianos?
Às Repartições Consulares Brasileiras não estão delegadas
as funções de agirem como intermediárias entre as Instituições
Previdenciárias Italianas (INPS) e Brasileiras (INSS), e tampouco
entre essas Instituições e os cidadãos interessados, sejam eles italianos
ou brasileiros. Consequentemente, as Repartições Consulares não
estão habilitadas a prestar informações sobre aposentadoria ou recebi-
mento de pagamentos previdenciários, assim como não encaminham

184 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
processos sobre essas matérias, nem referentes ao direito estabelecido
à saúde. Então, como validar e consolidar a necessidade e eficiência de
um Acordo Internacional dessa natureza?
Através da publicação do Ministério da Previdência e Assis-
tência Social (2001) sobre Acordos Internacionais de Previdência
Social, cita-se Xavier (2001) que introduz o tema da globalização
como um assunto constante na mídia e presente sempre que deci-
sões devam ser tomadas, sejam elas no âmbito governamental ou da
iniciativa privada. Xavier justifica, ademais, que os Acordos tenham
por objetivo principal garantir os direitos da seguridade social pre-
vistos nas legislações dos dois países aos respectivos trabalhadores e
dependentes legais, residentes ou em trânsito, em algum dos Países
Contratantes. Esses acordos estabelecem um rol de prestação de be-
nefícios previdenciários, não implicando na modificação da legisla-
ção vigente no país, cumprindo a cada Estado Contratante analisar
os pedidos de benefícios apresentados e decidir quanto ao direito e
condições, conforme sua própria legislação aplicável. Os primeiros
esforços com o objetivo de coordenar os regimes de seguridade social
por via de acordos internacionais são anteriores à Segunda Guerra
Mundial. Contudo, os acordos recíprocos, da forma como hoje se
conhece, só emergiram depois do conflito. Os primeiros envolveram
os países da Europa Ocidental, que perceberam que, sem uma coor-
denação deste tipo, os indivíduos que contribuíram para regimes de
mais de um país poderiam não reunir as condições de aquisição das
prestações a que teriam direito (XAVIER, 2001).
Considerando, justamente, a intensidade dos movimentos
migratórios internacionais, a oportunidade de disseminação das
doenças, a setuagenária origem dos Acordos Internacionais previ-
denciários, o interesse genérico dos países no mútuo atendimento
previdenciário de seus cidadãos quando fora de seus territórios, o
interesse particularizado de dois países com grande parcela étnica
afim, é que se define o objetivo desse trabalho na análise da efetiva-
ção do direito aos brasileiros e italianos quanto ao Acordo do INSS e

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
185
o INPS entre Brasil-Itália. Os objetivos específicos são os de informar
a necessidade do tema saúde nos movimentos migratórios, informar
e promover o fortalecimento do Acordo e questionar a sua validação.

2 DESENVOLVIMENTO
2.1 Direito à saúde no cenário internacional
A proteção ao Direito à Saúde e sua consequente legitimação
consagram-se como pressupostos para o pleno desenvolvimento de
cada pessoa, enquanto membro ativo de uma sociedade democrática
e igualitária. Entretanto, para a concretude de tais pressupostos, exi-
ge-se não somente a garantia do acesso universal ao Direito à Saúde,
mas também o seu efetivo cumprimento e satisfação, transcenden-
do desta maneira à esfera nacional e abarcando, assim, questões de
âmbito internacional que circundam a Saúde e seu reconhecimento
como um direito fundamental ao homem.
O Direito à Saúde no Brasil, como aponta a Constituição Fe-
deral de 1988, é um direito de todos e um dever do Estado, calcado
no art. 196 da Carta Magna e garantido mediante políticas sociais
e econômicas que visam à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação. Através deste dispositivo le-
gal o termo saúde se constitui como um direito reconhecido igual-
mente a todo a população, além de ser um meio de preservação e de
qualidade de vida, sendo este o bem máximo da humanidade.
Já na Itália, o Direito à Saúde, através da Constituição da
República Italiana de 1948, se constitui como direito fundamental
do homem, sendo elevado ao status de um dos direitos de soli-
dariedade inviolável, consagrado no art. 32 da Constituição. Por
conseguinte, trata-se de um direito absoluto, ao qual corresponde
o dever de promover e garantir o bem estar de cada indivíduo, en-
quanto membro do Estado Social. Hoje, na sociedade contemporâ-
nea, a saúde é indiscutivelmente um fundamental direito humano,

186 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
além de ser também um importante investimento social. Na me-
dida em que os governos têm o objetivo de melhorar as condições
de saúde de todos os cidadãos, é necessário que invistam recursos
em políticas públicas de saúde, capazes de garantirem programas
efetivos para a sua promoção. Todavia, garantir o acesso igualitá-
rio a condições de vida saudável e satisfatória a cada ser humano
constitui um princípio fundamental de justiça social e, portanto,
exige também uma grande produtividade complexa por parte da
sociedade e do Estado, sendo necessária a intensificação dos esfor-
ços para coordenar as intervenções econômicas, sociais e sanitárias
através de uma ação integrada.
Já no século XVII as sociedades européias presenciaram re-
beliões e perseguições religiosas, testemunhando também o avanço
do racionalismo, que resultou em novas descobertas científicas, bem
como no desenvolvimento de alguns dos conhecimentos científicos
que atingiram momentos grandiosos com pesquisadores como Des-
cartes, que percebeu ser a saúde a ausência de doença (DALLARI,
1988).
O século XIX é o período da Revolução Industrial, com isso,
houve uma preocupação maior com o trabalhador, que não podia
adoecer, e prejudicar a produção. A saúde, então, além de ser a
ausência de doença, tinha como função manter ou repor o indiví-
duo no trabalho e neste sentido, segundo Schwartz (2001), “[...] a
saúde dentro dos padrões do individualismo liberal que floresceu
no século XIX é uma saúde “curativa”, ligada ao que a moderna
doutrina atual chama de aspecto negativo da saúde: a ausência de
enfermidades.”
Assim, a industrialização do século XIX traz consigo a ur-
banização, acarretando ao Estado a obrigação de assumir a respon-
sabilidade pela saúde da população. Neste mesmo período, a preo-
cupação com as questões sanitárias ganhou força e em 1851 doze
países assinaram a Primeira Conferência Internacional Sanitária,
elaborada com o intuito de combater as epidemias de cólera, peste e

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
187
febre amarela que acometiam os trabalhadores. Já o ano de 1864 foi
marcado pela criação da Cruz Vermelha Internacional, significando
uma grande conquista para a saúde. (ROCHA, 1999)
A chegada do século XX impulsionou marcantes transfor-
mações sociais, juntamente com as grandes guerras ocorridas no
mesmo período. Até então a saúde era vista como algo individual,
e no século XXI, auge da expansão dos meios de comunicação, o
constante crescimento da produção proporciona a maior obtenção
de condições de bem-estar e de acesso a serviços, refletindo-se nos
setores da saúde. Com isso, após vários períodos da história, surgem
os aparatos legais internacionais, nos quais o direito à saúde é um
direito adquirido a todo o povo, ao acesso universal e igualitário.
O Direito à Saúde é reconhecido nas Constituições Brasileira
e Italiana, e também nos tratados e nas declarações de direito inter-
nacional. A Convenção de Viena é o tratado internacional que disci-
plina a questão da integração entre o ordenamento jurídico interna-
cional e o nacional. No cenário internacional, acresce-se o Tratado de
Roma, assinado em 25 de março de 1957, vigorando a partir do dia
01 de janeiro de 1958. Esse Tratado foi assinado na cidade de Roma
e institui a Comunidade Européia, mencionando em vários de seus
artigos o aspecto saúde: como proteção e preservação da vida das
pessoas e saúde do trabalhador. Em 12 de setembro de 1978 foi rati-
ficada a Declaração de Alma Ata – URSS, quando então foi realizada
a Conferência Internacional sobre os Cuidados Primários de Saúde,
e que dispõe sobre a necessidade de ação de todos os governos, de
todos os que trabalham no campo da saúde, e do desenvolvimento
de uma ação de todas as comunidades para promover a saúde de
todos os povos do mundo.
As ações previstas, de modo generalista, nos abrangentes
Tratados Internacionais como acima citados, se traduzem, de forma
particularizada e com características mais específicas, nos Acordos
legais internacionais para a efetivação do direito à saúde, estes até
então majoritariamente bilaterais quando envolvem o Brasil, mas

188 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
tendendo à aglutinação aos moldes dos Acordos Internacionais Mul-
tilaterais, se envolverem diferentes partícipes com mesmas inten-
ções. Desenvolve-se o relacionamento acordado Brasil-Itália.

2.2 Percurso migratório: Brasil-Itália


No Brasil, o estudo das migrações internacionais têm se ex-
pandido nos últimos tempos, em virtude da constatação de que o
movimento migratório tem se intensificado. A partir dos anos 1980,
com a internacionalização da economia, devido às facilidades de
transportes e ao enfraquecimento das fronteiras nacionais, entre ou-
tros, o Brasil ingressou no processo mundial pelo qual os emigrantes
de nações menos industrializadas, ou em processo de industrializa-
ção, desembarcam nos países industrializados a procura de emprego.
Uma parcela destes brasileiros escolheu como área de destino
a Itália, que, nos anos 1990, viu-se obrigada a uma primeira tenta-
tiva de regularização do fenômeno migratório, no entanto, nos anos
2000, a situação italiana triplicou suas taxas imigratórias no geral,
com participação significativa de brasileiros.
A evolução do conjunto da sociedade italiana e as transfor-
mações demográficas recentes estão na base do processo imigratório
da Itália, que começou a se manifestar de forma mais intensa a par-
tir dos anos 70 do século XX. Os fatores que conduziam à expulsão
de italianos de seu território foram reduzidos e ampliou-se a atra-
ção que a Itália exerce sobre os países do Terceiro Mundo. Na Itália
Meridional, onde se concentrava até há pouco tempo o movimento
emigratório, a economia encontrou seu próprio equilíbrio. Em con-
sequência, diminuiu a emigração em direção ao exterior e às áreas
industrializadas do norte. De outro lado, o sistema produtivo nacio-
nal italiano tornou-se capaz de atrair trabalhadores. Este crescimen-
to econômico foi acompanhado pela segunda transição demográfica
italiana, ou seja, além do crescimento do movimento imigratório,
a população nativa passou a gozar de uma substancial estabilidade
quanto ao seu tamanho, a fecundidade alcançou um dos mais baixos

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
189
níveis da Europa e, em consequência, aumentou o número absoluto
e relativo de idosos. Desenvolveram-se, também, novos padrões de
vida familiar, marcados, sobretudo, pela participação mais intensa
da mulher no mercado de trabalho (BONIFAZI, 1995, p. 174).
Ainda de acordo com o autor, refere-se que mesmo passadas
cerca de duas décadas de experiência imigratória, a Itália defron-
ta-se com uma imigração muito mais orientada pela oferta do que
pela demanda, o que significa que os fluxos imigratórios não mais
atendem a uma demanda do mercado de trabalho, mas visam asse-
gurar o funcionamento do mercado onde há falta de mão-de-obra
para tarefas e qualificações específicas. Assim, o imigrante que tem
chegado à Itália depara-se com uma realidade marcada pela falta de
empregos e moradias e por sérios problemas gerados pela discrimi-
nação étnica e social. Apesar disso, continua o fenômeno, pelo mo-
tivo, entre outros, de que as cadeias migratórias tendem a trabalhar
mesmo em caso de reduzidos ou não existentes elementos de atra-
ção, fazendo com que a intensidade das entradas ultrapasse muitas
vezes a capacidade de absorção do mercado da sociedade de destino.
Quanto ao perfil dos imigrantes brasileiros residentes em
território italiano, pode-se dizer que se trata de um grupo bastante
heterogêneo. São homens e mulheres com diferentes experiências
profissionais e graus de instrução, agrupados em diferentes faixas
etárias, provenientes de diversas regiões brasileiras, com maior ou
menor “tempo de Itália”. Vários têm passaporte italiano, uma vez
que obtiveram também a cidadania italiana, outros – a maioria –
apenas com visto de permanência. Um grupo ainda menor não dis-
põe de qualquer documentação local – são os ilegais ou clandestinos,
este bastante discriminado e explorado na inserção ao mercado de
trabalho.
Estes brasileiros, de modo geral, começaram a chegar à Itália
após 1989. Escolheram aquele país por causa das facilidades de in-
gresso e porque lá mantinham vínculos com parentes, amigos ou co-
nhecidos. Alguns possuíam dupla cidadania e, consequentemente, o

190 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
passaporte italiano. Muitas mulheres porque o namorado ou marido
era italiano; outras porque na Itália a “prostituição rende mais”.
Deixaram o Brasil, de acordo com seus próprios depoimentos,
descontentes e desiludidos com a situação econômica do país, pela
necessidade de buscar melhores condições de vida e trabalho e/ou
para se unir a familiares brasileiros já residentes na Itália, a um côn-
juge italiano ou a uma família italiana, como é o caso das adoções.
Distribuíram-se na Itália por quase todo o território, ainda
que a maior parte esteja concentrada no Norte (50%) e no Centro
(38%) da península, sobretudo nas duas maiores áreas metropolita-
nas: Milão e Roma. O segmento brasileiro na Itália é composto - de
acordo com dados oficiais -, na sua maioria por mulheres (70%),
com idades na faixa de 20 e 44 anos.
A partir de meados dos anos 80, tornou-se evidente para os
italianos que a imigração havia se tornado uma característica estru-
tural do país. A partir de então começou a ampliar-se o debate acerca
da necessidade de regulamentar a entrada de estrangeiros, o que foi
acompanhado por investigações acerca do comportamento dos imi-
grantes – algumas exploradas de forma sensacionalista pela mídia
– e das opiniões dos italianos a respeito dos mesmos. A preocupação
política subjacente é a de que “regularizar” e controlar aqueles já re-
sidentes em território nacional e ao mesmo tempo introduzir rígidas
medidas de controle quanto a novas entradas. A partir de então foi
permitido o ingresso somente àqueles possuidores de contrato regu-
lar de trabalho e com garantia de moradia, enquanto a chegada dos
familiares era permitida depois que o requerente provasse possuir os
requisitos necessários (trabalho e residência).
A 6 de março de 1998 foi promulgada a nova Lei italiana de
migração que, de acordo com Bonetti (1998), vem de encontro à
necessidade de disciplinar a condição jurídica do migrante extra-
comunitário presente na Itália em todos os aspectos de sua vida. Os
principais objetivos da nova Lei – já recomendados em 1994 pela
União Europeia – referem-se à integração do migrante extracomu-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
191
nitário à sociedade de destino através de medidas inovadoras, tais
como: programação do fluxo de entradas baseado em cotas, fixa-
das anualmente, por país de origem ou por qualificação profissio-
nal; aumento de medidas preventivas à imigração ilegal e daquelas
voltadas à sua repressão; incremento de medidas voltadas à efetiva
integração dos estrangeiros regularmente residentes.
A primeira inovação importante da nova Lei – a programação
anual do fluxo de entradas de acordo com as possibilidades de ab-
sorção pelo mercado de trabalho – necessita ainda de maior precisão
acerca dos critérios a serem adotados pelo governo italiano, uma vez
que ainda são privilegiados os acordos bilaterais, que garantem aos
países signatários, cotas preferenciais de ingresso para trabalho. As
cotas, regulamentadas por decretos anuais, são preenchidas através
de diferentes tipos de entrada, a saber: para contrato de trabalho as-
salariado – dispondo-se o empregador italiano a oferecer alojamento
e as mesmas contribuições previdenciárias previstas para o traba-
lhador italiano; para contrato de trabalho sazonal – garantindo-se
prioridade de trabalho no ano sucessivo àqueles trabalhadores sa-
zonais que retornarem a sua pátria depois de seis meses de trabalho
na Itália; para trabalho autônomo – de acordo com os percentuais
máximos de emprego previstos para as profissões liberais.
A grande novidade está no fato do ingresso por motivo de tra-
balho assalariado não ficar restrito apenas à requisição do empregador
italiano, podendo ocorrer, também, através da emissão de vistos de
entrada dirigidos à procura direta de trabalho na Itália. Através destas
medidas, prevê-se a diminuição dos fluxos de imigrantes ilegais, que
ademais serão punidos mais severamente (expulsão imediata e acom-
panhamento à fronteira) de acordo com a nova Lei.
A carta de permanência pode ser requerida por estrangeiros
que sejam pais, filhos menores ou cônjuges conviventes com cida-
dãos italianos ou comunitários, assim como por extra-comunitários
residentes na Itália por pelo menos cinco anos, titulares de uma per-
missão que possibilite um número ilimitado de renovações e que

192 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
demonstrem dispor de uma renda suficiente para si e os familiares
conviventes. De fato, a carta de permanência não é somente expedi-
da para o requerente, mas também para o seu cônjuge e seus filhos
menores conviventes.
No entanto, também neste caso, enfrentam-se algumas am-
biguidades. A Lei não prevê a emissão de permissão que possibilite
um número indeterminado de renovações e, portanto, esta possibili-
dade fica subordinada aos critérios administrativos locais.
Quanto à legislação brasileira pertinente, em 1945, o Gover-
no Vargas promulgou o Decreto-Lei 7.967 em 18 de setembro que
dispunha sobre imigração e colonização. Possuía 100 artigos regula-
mentando a política imigratória do Brasil, protegendo os interesses
do trabalhador nacional e desenvolvendo a imigração. O artigo 3º
estabelecia uma quota de 2% de ingresso por nacionalidade sobre
os números respectivos dos nacionais que haviam entrado no Brasil
desde 1 de janeiro de 1884 até 31 de dezembro de 1933. Esta quo-
ta foi revogada em 1950, sendo ovacionada pela Santa Sé em um
artigo no jornal “Osservatore Romano” de 4 de janeiro de 1951. A
resolução do Conselho de Imigração e Colonização nº 1076, de 18 de
outubro de 1950, suprimiu as quotas de entrada para os imigrantes
portugueses, espanhóis, franceses e italianos. O decreto regulamen-
tava e estabelecia que a entrada de estrangeiros - quer fosse perma-
nentemente, em trânsito ou para obter o visto temporário - deveria
ser documentada pela apresentação às autoridades brasileiras do
passaporte e da prova de saúde. O decreto esteve em vigência por
muito tempo, porém, foram firmados pelas autoridades brasileiras
diversos acordos particularizados com países emigrantes.
O “Acordo entre os Estados Unidos do Brasil e a República
Italiana sobre Investimentos”, de 5 de julho de 1950, foi um marco
para estabelecimento de ações que visassem os interesses recíprocos
entre os dois países, este especificamente voltado ao investimento
de capitais italianos e co-participação de cidadãos italianos em em-
presas brasileiras.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
193
O “Acordo de Migração entre os Estados Unidos do Brasil
e a Itália”, de 9 de dezembro de 1960, tem por objetivo regular as
imigrações entre os dois países, estabelecendo as condições para a
entrada e permanência dos imigrantes, quer sob a forma de imigra-
ção espontânea, quer sob a forma de transferência de sociedades,
de cooperativas ou de grupos de trabalho, ou ainda, sob a forma de
migração dirigida.
Tais Acordos são os precursores das demais cominações le-
gais que envolveram ambos os países, baseando o estabelecimento
de diretrizes contemporâneas de interesses migratórios conjuntos
e garantias dos mútuos direitos estabelecidos, inclusive no que diz
respeito à previdência social compartilhada e acesso aos sistemas de
saúde de cada país.

2.3 Acordo da previdência social entre Brasil-Itália


Os Acordos Internacionais inserem-se no contexto da política
externa brasileira, conduzida pelo Ministério das Relações Exterio-
res, e resultam de esforços do Ministério da Previdência Social e de
entendimentos diplomáticos entre governos. Os motivos pelos quais
o Governo brasileiro firmou Acordos Internacionais com outros paí-
ses enquadram-se em pelo menos uma das seguintes situações: ele-
vado volume de comércio exterior; recebimento no País de investi-
mentos externos significativos; acolhimento, no passado, de fluxo
migratório intenso; relações especiais de amizade.
Justamente, nesta esteira, é que se incluem os Acordos In-
ternacionais Bilaterais, com objetivo particularizado de garantir os
direitos de seguridade social aos imigrantes de ambos os países en-
volvidos, ainda que não decorrentes de modificação da legislação
vigente em cada país.
Portanto, neste capítulo, abordam-se os principais tópicos do
Acordo no que se refere à Previdência Social entre os países Brasil e
Itália.

194 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Fundamento Legal do Acordo
Assinatura: 30 de janeiro de 1974
Decreto n° 80.138, 11 de agosto de 1977
Entrada em Vigor: 5 de agosto de 1977
Benefícios previstos no Acordo

No Brasil
• Pensão por Morte
• Aposentadoria por Idade
• Aposentadoria por Invalidez
• Aposentadoria por Invalidez por Acidente do Trabalho
• Auxílio-Doença
• Auxílio-Doença por Acidente do Trabalho
• Auxílio-Acidente
• Assistência Médica

Na Itália
• Benefício por Morte
• Benefício por Idade
• Benefício por Invalidez
• Seguro Contra Tuberculose
• Benefício por Maternidade
• Benefício por Doença Profissional
• Benefício por Incapacidade Temporária do Trabalho
• Benefício por Acidente do Trabalho
• Assistência Médica

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
195
Abaixo, descreve-se a trajetória cronológica do Acordo Inter-
nacional, com os Decretos, Protocolos e Ratificações.
Acordo de Migração assinado a 09 de dezembro de
1960, em Roma.
Decreto Legislativo nº 101, de 18 de novembro de 1964.
Aprova o texto do Acordo.
Decreto nº 57.759, de 08 de fevereiro de 1966, publica-
do no DOU nº 30 de 11/02/66. Promulga o Acordo.
Acordo Administrativo, assinado em Brasília a 19 de
março de 1973, publicado no DOU nº 111 de 12/06/73.
Protocolo Adicional ao Acordo de Migração, assinado
em Brasília a 30/01/74.
Entrada em vigor: 05 de agosto 1977
Registrado no Secretariado da ONU em 8 de maio de
1974 sob nº 13284
Ratificado pela Itália a 23 de dezembro de 1974
Acordo assinado a 25 de junho de 1995, em Brasília.
Com o DECRETO LEGISLATIVO Nº 101 DE 1964 é apro-
vado o Acordo de Migração entre a República dos Estados Unidos do
Brasil e a República Italiana, assinado em Roma, em 9 de dezembro
de 1960.
Assim, o DECRETO Nº 57.759 DE 8 DE FEVEREIRO DE
1966 promulga o Acordo de Migração com a Itália: O Presidente
da República, havendo o Congresso Nacional aprovado pelo Decreto
Legislativo nº 101, de 1964, o Acordo de Migração assinado entre os
Estados Unidos do Brasil e a República Italiana, em Roma, em 9 de
dezembro de 1960; e havendo o referido Acordo entrado em vigor,
de conformidade com seu artigo 51, em 26 de fevereiro de 1965,
data em que se efetuou no Rio de Janeiro, a troca dos instrumentos
de ratificação, decreta que o mesmo apenso por cópia ao presente

196 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Decreto, seja executado e cumprido tão inteiramente como nele se
contem.
O ACORDO ADMINISTRATIVO referente à aplicação dos
artigos 37 e 43 do Acordo de Migração entre a República Federativa
do Brasil e a República Italiana, de 9 de dezembro de 1960.
No caso de aplicação da disposição de que trata o artigo 41
do Acordo de Migração, se o trabalhador migrante voltar ao País de
origem no prazo de três anos da data de migração e ali exercer no-
vamente uma atividade sujeita à legislação de previdência social, o
período decorrido no País de acolhimento será considerado neutro
aos fins da concessão das prestações previstas pela legislação do País
de origem.
Por fim, o PROTOCOLO ADICIONAL AO ACORDO DE
MIGRAÇÃO, assinado em Brasília, em 30 de janeiro de 1974, em
quatro exemplares originais, dois em língua portuguesa e dois em
idioma italiano, e cujos textos fazem igualmente fé.
Nos termos do Artigo 48, letra d., do Acordo de Migração en-
tre Brasil e Itália de 9 de dezembro de 1960, as autoridades brasilei-
ras e italianas, após haverem trocado seus Plenos Poderes, achados
em boa e devida forma, estabeleceram Protocolo Adicional ao referi-
do acordo de migração com normas e regimes a doenças, Previdên-
cia Social e seguros.
Estabelecidos os ditames acordados, na cronologia e priorida-
de enfocadas, aborda-se os questionamentos quanto ao seu conheci-
mento e sua utilização por parte dos potenciais beneficiários.

2.4 Análise da efetivação do acordo


O estudo tem a proposta de levar o conhecimento do Acordo
Internacional de Brasil-Itália, e entre os países de uma forma geral,
com sucesso no alcance dos objetivos a que se proponham. Questões
de limites territoriais, meramente burocráticas, estão sendo absorvi-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
197
das pelo tempo e hoje, através da globalização, têm-se, em sua pleni-
tude, direitos e garantias expressos de forma bilateral e multilateral
em tratados formais, dando equiparação de tratamento ao sujeito do
trabalho realizado entre dois ou mais países. Esses Acordos vieram
a equiparar os trabalhadores estrangeiros aos trabalhadores nacio-
nais, dando solução a problemas social-trabalhistas, proporcionando
mais dignidade aos trabalhadores migrantes.
O principal objetivo do Acordo Internacional é garantir o di-
reito à Seguridade Social previsto na legislação dos dois países, com
o intuito de criar uma base legal comum quanto às obrigações e aos
direitos previdenciários. A tendência dos Acordos Internacionais é
pela globalização em porte mundial, incrementando e ratificando
a necessidade de se romperem barreiras jurídicas e políticas, envol-
vendo um grande esforço no tratamento migratório.
Com isso, nesta pesquisa preocupou-se em aplicar questio-
namentos sobre as informações dos usuários brasileiros e italianos
quanto ao conhecimento do Acordo Internacional e a sua utilização.
A partir de um referencial teórico sobre o cenário da saúde interna-
cional, e do sistema de saúde brasileiro e italiano, com a metodolo-
gia exploratória das questões temáticas, optou-se por um método de
pesquisa por conveniência. O número de questionamentos foi de dez
brasileiros e dez italianos, a respeito do Acordo da Previdência entre
Brasil e Itália, todos com uma permanência mínima de 6 meses nos
seus países de destino. A coleta de dados ocorreu por e-mail com per-
guntas objetivas, obtendo-se uma análise do conteúdo com a organi-
zação do material, e com análise qualitativa dos pontos em comum e
pontos de discordância, que complementam o tema escolhido.
Os questionamentos basearam-se nos seguintes enfoques:
– Você conhece o Acordo Internacional da Previdência Social
entre Brasil-Itália?
– No caso de você ter conhecimento da existência deste Acor-
do, através de que meio obteve esta informação?

198 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
– No caso de você não ter conhecimento da existência deste
Acordo, quem você acredita que deveria ter a competência
de divulgá-lo?
– Você gostaria de ter maior conhecimento do Acordo citado
e de sua área de abrangência?
– Caso você tenha interesse na obtenção de maior conheci-
mento do Acordo, através de que meio você irá buscar estas
informações?
– Qual a sua opinião a respeito de um Acordo Internacional
que beneficie reciprocamente imigrantes de um país quan-
do residentes em outro país?

Além dos dados de identificação, que por questões éticas não


são divulgados, formulou-se questões relativas à profissão, idade,
escolaridade, tempo de residência, e sobre o direito à saúde no país
de destino, caso precisasse. Dos dez brasileiros que residem(iram)
na Itália e responderam aos questionamentos, 60% tem idade entre
20 e 35 anos, 20% de 51 a 65 anos, 10% acima de 66 anos e 10% entre
36 e 50 anos. O que foi constatado quanto ao nível de escolaridade
dos questionados é que 70% possuem formação de pós graduação
em mestrado e doutorado, os com nível superior somam 20% e os
10% restantes têm formação de nível médio. Quanto às profissões
70% são de iniciativa privada, 20% constituídos por aposentados e
10% de atividades religiosas. O tempo de residência na Itália consis-
te em 40% entre seis meses e um ano, de três anos a dez anos totaliza
outros 40% e mais de dez anos alcança 20%; salienta-se que o ques-
tionado de atividades religiosas viveu por mais de 23 anos na Itália
e apenas um dos questionados respondeu que não mais pretende
morar naquele país.
Quanto ao Acordo entre os países, questionou-se o conhe-
cimento de sua existência, ao que 60% referiram que o conhecem,
restando aos demais 40% a afirmativa que desconheciam a existên-
cia de tal Acordo. Os meios pelos quais obtiveram informações do

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
199
Acordo foram as seguintes fontes: Patronato Italiano, site do INSS,
Consulado Italiano no Brasil, Ministério da Saúde e indo pessoal-
mente ao INSS. Dos 40% que não conhecem o Acordo as fontes ci-
tadas como potenciais responsáveis pela sua divulgação foram: os
Consulados Italianos no Brasil, os Consulados Brasileiros na Itália e
os profissionais da área de turismo, também seria de competência do
Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Saúde. Quan-
do se pergunta: Caso você necessitasse de atendimento na Itália a
quem recorreria? 70% responderam que procurariam o serviço públi-
co italiano e 30% recorreriam a profissionais particulares.
Dos questionados, 70% gostariam de ter maior conhecimen-
to do Acordo, mesmo não precisando utilizá-lo, 20% não demons-
tram interesse em conhecê-lo e 10% necessitam de maior conheci-
mento, pois pretendem utilizá-lo. Em outra seara, 90% afirmaram
a necessidade e importância da existência deste Acordo. Quanto à
divulgação: 80% consideram a mesma ruim e os demais 20% como
razoável.
A opinião quanto à utilização, mesmo daqueles que não pre-
cisaram mas que acompanharam outros brasileiros, é da dificuldade
na hora de validar e usufruir deste Acordo.
Um dos brasileiros que residiu na Itália relatou o seguinte
depoimento: “O acordo é, em teoria, eficaz. Na Itália há dificuldade
em reconhecer o termo “trabalhador autônomo” como efetivamente
um “trabalhador”. Várias vezes o acordo não foi reconhecido porque
se a classificação era “autônomo”, não poderia recorrer a benefícios
como “trabalhador”. Há uma evidente carência na interpretação do
acordo bilateral pelas autoridades sanitárias italianas”. E, para fina-
lizar, outro depoimento: “Na Itália, e também como na maior parte
do mundo, há uma diferença entre regiões, e no norte do país, o
serviço público de saúde é excelente, e sempre que precisei tive um
ótimo atendimento nas unidades de saúde”.
Quanto aos italianos que residiram ou residem no Brasil, 60%
têm idade de 36 a 50 anos e 40% acima de 65 anos. A escolaridade

200 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
consiste de 40% com nível superior, 50% em nível de pós- graduação
e 10% com nível médio. Quanto às profissões: 40% são aposentados
e 60% labutam na iniciativa privada. O tempo de residência no Bra-
sil perfaz 90% de 5 anos a 10 anos, e 10% com mais de 10 anos de
permanência.
Quanto ao Acordo entre os países e a questão do conheci-
mento de sua existência: 30% conhecem o Acordo, 40% não têm co-
nhecimento e 30% conhecem parcialmente. Os meios em que ob-
tiveram informações do Acordo foram pelos sites do INSS e junto
ao Consulado Italiano. Do percentual que desconhece o Acordo, os
questionados responderam que sua divulgação seria de competência
dos Consulados Italianos no Brasil, do Ministério da Saúde e dos
profissionais de comunicação – a imprensa. Quando da pergunta:
Caso você necessitasse de atendimento no Brasil a quem recorreria?
60% responderam que procurariam clínicas e hospitais privados, e os
demais 40% se socorreriam da rede pública.
Dos questionados, 80% gostariam de ter maior conhecimen-
to do Acordo, 20% não veem necessidade de sua existência. Quan-
to à divulgação: 70% consideram como ruim e 30% estimam como
razoável. O posicionamento quanto à utilização dos que desconhe-
ciam o Acordo foi de que teriam utilizado os serviços, caso soubes-
sem de seus direitos. No depoimento de italianos, destacaram-se
as seguintes respostas: “ficarei no Brasil até me aposentar, pois o
Governo Brasileiro com certeza o processo seria muito mais rápi-
do o processo da aposentadoria”. Outro relato também relevante:
“me senti prejudicada, pois não é divulgado em nenhum site, na
imprensa, e quando tentamos nos informar, as modalidades de as-
sistência oferecidas não estão bem claras, e muito menos como con-
seguir esta assistência”.
A partir destes questionamentos, em princípio, considera-se
que um tratado consiste numa negociação, e que, a partir do mo-
mento do comprometimento do tratado ou acordo, esse tem con-
dições de vigência imediata. Conforme publicação do Ministério da

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
201
Previdência e Assistência Social, de 2001, um tratado é aprovado
pelo Senado Federal e a ratificação é realizada pelo Presidente da
República passando a vigorar no Brasil. No Brasil, compete à Asses-
soria de Assuntos Internacionais do Ministério da Previdência e As-
sistência Social, a coordenação dos documentos técnicos dos Acor-
dos Internacionais, bem como o acompanhamento e a avaliação de
sua operacionalidade. O Instituto Nacional de Seguro Social, INSS
é o órgão Gestor, ou seja, é a instituição competente para conceder
e operacionalizar as prestações previstas nos acordos, através de ór-
gãos regionais, que atuam como Organismos de Ligação. São benefi-
ciários dos Acordos Internacionais, os segurados e seus dependentes
sujeitos ao Regime de Previdência Social dos Países Acordantes. Os
Acordos de Previdência Social aplicam-se aos benefícios do Regime
de Previdência Social Brasileiro.
Para a obtenção de um benefício no âmbito do Acordo Inter-
nacional, o segurado fará um requerimento de benefício, que deverá
ser protocolizado na entidade gestora do país de residência do inte-
ressado. No Brasil, os requerimentos são formalizados nas unidades/
agências do INSS em cada Unidade da Federação e encaminhados
ao Organismo de Ligação correspondente, conforme a residência do
beneficiário. Os Organismos de Ligação são setores competentes do
INSS para fazerem a ligação com o setor competente do órgão pre-
videnciário estrangeiro. No Brasil, estes órgãos situam-se no Dis-
trito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Paraná. Os Acordos Internacionais preveem o instituto
do deslocamento temporário que permite ao trabalhador continuar
vinculado à Previdência Social do país de origem quando deslocado
para outro país, por período pré-estabelecido no referido Acordo. Ao
empregado será fornecido um Certificado de Deslocamento Tempo-
rário visando à isenção de contribuição deste segurado no país acor-
dante. Os Acordos Internacionais de Previdência preveem a Presta-
ção de Assistência Médica no Exterior aos brasileiros e estrangeiros
que se deslocam, e é administrada pelas Coordenadorias Regionais
de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde.

202 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Para aquisição de direito ao benefício, somam-se os períodos
de seguro prestados nos dois países acordantes. O benefício brasi-
leiro é solicitado pelo requerente numa agência do INSS próxima
de sua residência. O trâmite do processo é bastante burocrático e
tem-se conhecimento da demora na agilização deste processo. Após
a protocolização do requerimento na Unidade da Previdência Social,
este é encaminhado à Gerência Executiva a que pertence. As Gerên-
cias, após a conferência da documentação encaminham ao Organis-
mo de Ligação naquele Estado. Para quem não reside nos estados
que possuem o Órgão de Ligação, encaminham seus processos ao de
Brasília. A partir daí, este envia ofício ao Organismo de Ligação do
País Acordante (2 vias). A documentação é examinada e retorna a
Brasília, que encaminhará novamente a Agência/Unidade para cha-
mamento do interessado.
Quanto ao cálculo do benefício (período de seguro no Brasil
mais o período de seguro no País Acordante) é proporcional ao tem-
po de seguro no Brasil em função do tempo total. Logo, o benefício
é calculado como se todo o período fosse contribuído no Brasil, e
a parcela a cargo do Brasil é o resultado da multiplicação do valor
teórico pelo tempo de contribuição no Brasil, dividido pelo tempo
total. Já a solicitação de benefício brasileiro por parte de requerentes
residentes no País Acordante deverá encaminhar ao Brasil por via
do Organismo de Ligação daquele país, protocolando o requerimen-
to no local, conforme orientação do Órgão de Previdência Social do
País Acordante. De posse deste requerimento, o Organismo daquele
país encaminha ao Brasil o formulário contendo informações sobre
a situação do requerente, e analisado o pedido no Brasil, é informa-
do ao País Acordante através do encaminhamento de ofício sobre a
finalização do processo.
Ao trabalhador da empresa pública ou privada é fornecido,
mediante solicitação da empresa, um Certificado de Deslocamento
Temporário, visando à isenção de contribuição deste segurado no
País Acordante, a fim de que o mesmo permaneça sujeito à Legis-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
203
lação Previdenciária Brasileira. O pessoal de vôo de empresas de
transporte aéreo e terrestre continua sujeitos à legislação vigente
no Estado em cujo território a empresa tenha sede. Os membros de
tripulação de navios sob bandeira de um dos Estados Contratantes
estão sujeitos às disposições vigentes no mesmo Estado. As pessoas
que trabalham em tarefa de carga e descarga, consertos ou vigilância
estão sujeitas à legislação do Estado sob âmbito jurisdicional que
se encontre o navio. Os membros das representações diplomáticas
e consulares, organismos internacionais e pessoal trabalhando em
prol dessas representações são regidos pelas Convenções e Tratados
que lhes sejam aplicáveis. O trâmite do deslocamento inicial deve ser
endereçado a Unidade/Agência da Previdência Social mais próxima
e deve ser feita até 45 dias antes do início do período previsto para
o deslocamento. Este deslocamento deve ser feito pela empresa em
cinco vias preenchidas e assinadas e passam por um processo proto-
colizado e enviado à Gerência Executiva a que pertence. O processo
passa a ser analisado, e são entregues através de correspondência
à empresa comunicados de prazos e da emissão do certificado. Se
houver necessidade de prorrogação de deslocamento, deve-se proto-
colizar até 90 dias antes do término do prazo inicial autorizado.
As entidades de “Patronato” são as que operam no Brasil com
a função de prestar assistência administrativa e jurídica no setor da
Previdência Social às comunidades de descendentes de italianos e
italianos residentes no Brasil, em razão dos Acordos Internacionais
entre Itália e Brasil. As entidades de “Patronato” nasceram na Itá-
lia, por iniciativa de trabalhadores, e são reconhecidas pelo Governo
Italiano com as entidades sem fins lucrativos, de assistência e defe-
sa dos direitos dos trabalhadores, segundo as normas da legislação
italiana.
Ao realizar a pesquisa, os sites de Consulados Brasileiros e
Italianos foram consultados a procura de informações a respeito des-
te Acordo. O que se obteve, inclusive com posicionamento pessoal de
representante diplomático no Canadá que está ultimando Acordo de

204 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
iguais características com o Brasil, que as Repartições Consulares
Brasileiras não funcionam como intermediárias entre as Instituições
Previdenciárias Brasileiras (INSS) e Italianas (INPS) – ou, por ex-
tensão, de outros países. Consequentemente, estas Repartições não
estão habilitadas a prestar informações sobre aposentadoria ou rece-
bimento de pagamento previdenciário, e não encaminham processos
sobre essas matérias. Assim sendo, qualquer esclarecimento, bem
como o requerimento de serviços referentes às questões previdenciá-
rias deverão ser solicitadas diretamente pelo interessado aos respec-
tivos escritórios das Instituições Previdenciárias. Os únicos serviços
prestados por estas Repartições Consulares Brasileiras são quanto à
regularização do CPF, emissão de procuração para poderes junto ao
INSS do Brasil e Atestado de Vida, para aqueles que recebem apo-
sentadoria. Qualquer documento emitido por autoridade estrangei-
ra, como é o caso do INPS italiano, para ter valor legal no Brasil, de-
verá antes de seu envio, ser devidamente legalizado pela Repartição
Consular Brasileira com jurisdição sobre o local onde se encontra a
autoridade estrangeira que emitiu tal documento e, posteriormente,
ser traduzido por tradutor juramentado no Brasil. O envio ao Brasil
desses documentos é de responsabilidade do interessado.
Por outro lado, a publicação de Rosângela Elias, 2009, jun-
tamente com o Ministério da Previdência Social (MPS), afirma que
existe uma parceria entre este Órgão e o Itamaraty, com vistas a es-
tender proteção previdenciária aos brasileiros que vivem no exterior.
Essa parceria, opera mediante negociações técnicas do MPS e ação
coordenadora do Ministério das Relações Exteriores na proposição
formal de acordos, no agendamento e acompanhamento de tratati-
vas, e em ações ao bom desenvolvimento das solicitações. Cabe res-
saltar que estas parcerias são fundamentais para os aspectos migra-
tórios, para que os trabalhadores sejam socialmente protegidos. Em
outras palavras, do ponto de vista da Previdência Social, o fenômeno
da migração traz, como consequência, o fato de muitos imigrantes,
ao contribuírem para sistemas previdenciários de países diferentes,

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
205
eventualmente não completarem os requisitos para obtenção da apo-
sentadoria, ou não se qualificarem a outros benefícios contando ape-
nas com o tempo de contribuição vertido a um dos países nos quais
residiram. Assim como existe este tipo de descontinuidade, devem
existir políticas previdenciárias específicas, constantes nos Acordos
Internacionais. Nesta publicação, o embaixador Oto Maia diz que os
Acordos de Previdência Social são, neste momento, a maneira mais
concreta, mais direta que o Governo Brasileiro dispõe para ajudar seus
nacionais que são assalariados no exterior, e que a parceria do Itama-
raty e do Ministério da Previdência Social surge num terreno onde os
aspectos técnicos e políticos têm de andar de mãos dadas. Também
se refere aos atendimentos nos balcões dos consulados, no intuito de
maiores informações e pela informatização desses serviços.
Através desta análise, e dos questionamentos feitos a brasi-
leiros e italianos quanto ao Acordo existente entre os países, obser-
vou-se que há necessidade de mais informações dos Ministérios da
Previdência Social, nos âmbitos internos de cada país, e dos Minis-
térios das Relações Exteriores e dos próprios Consulados, uma vez
que se constituem nos grandes agentes das políticas externas entre
países. Com a interdependência de um mundo globalizado e a saúde
como um elemento essencial, precisa-se de uma dinâmica entre a
diplomacia para reorientar as políticas externas relativas à saúde, de
maneira a contribuir para a proteção da saúde global e dos aspectos
previdenciários.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estudo, em seu conjunto, sublinha o crescente papel inter-
nacional que a Previdência Social desempenha, bem como a crescen-
te dimensão de seus atributos e competências em nível da propaga-
ção das relações exteriores, na formulação e consolidação da garantia
da qualidade de vida. A Previdência é um sistema de solidariedade
nacional, administrada por um Estado, e no momento em que ocor-
rem migrações populacionais, encontram-se limites à capacidade de

206 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
estender a proteção social para além das fronteiras nacionais. Em
decorrência desses movimentos migratórios e da intensidade de seu
fluxo impõem-se os Acordos Internacionais de Previdência Social
que permitam coordenar as diferentes legislações dos países envol-
vidos, de maneira a estabelecer regras de reconhecimento recíproco.
Ora, não há qualquer país com legislação previdenciária exa-
tamente igual ao de outro país, logo, tais arestas devem se objeto de
aplainamentos que possibilitem minorar suas consequências dano-
sas, em prol de um fornecimento mais justo e equânime. Em fun-
ção destas diferenças, os Acordos Internacionais Bilaterais buscam,
mesmo sem alterar a legislação dos dois países que permanece em
vigor, equacionar devidamente os direitos obtidos a par de estendê-
-los, com as devidas reservas, aos beneficiários da outra Pátria. Não
se encontra plenamente a reciprocidade, pois nem todos os aspectos
da legislação relevante podem estar contemplados em um Acordo
Internacional, com díspares legislações regulamentadoras, mas, à
medida do bem maior que é a vida humana, promoções de benefí-
cios além fronteiras assumem papel de reconhecimento social.
O salutar conhecimento dos direitos que envolvem qualquer
cidadão, no caso restrito de acesso aos direitos previdenciários, é
condição majoritária para obtenção de resultados conquistados após
décadas de busca incessante. Seu desconhecimento leva à ignorân-
cia quanto às possibilidades e à perda de direitos adquiridos e não
usufruídos. Por exemplo, quem contribui para a Previdência Social
Brasileira deve estar atento para a constância de sua contribuição:
não pode permanecer, em muitos casos, por mais de 12 meses sem
contribuir sob pena de perder o direito ao benefício - este prazo é es-
tendido para 24 meses para aqueles que possuem mais de 120 meses
de contribuição - ocorre que muitos italianos que retornaram a sua
origem deixaram de contribuir no Brasil, assim, quando alcançam a
idade pensionável, requerem o benefício através do INPS Italiano,
que consequentemente envia o requerimento ao Órgão Brasileiro,
que por sua vez indefere o pedido sob a condição de suspensão do

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
207
recolhimento contributivo, resultando na negativa de concessão do
benefício ao usuário requerente.
Ainda que os dois países adotem estratégias muito semelhan-
tes em suas políticas de proteção social no que tange à concretização
da fase assistencial do direito à saúde, tal fato somente se consoli-
dou nos meados do último século, tendo em conta que até então, na
maior parte do processo histórico, essas estratégias encontravam-se
temporalmente distanciadas. Mas, ainda que demorada, dita apro-
ximação foi contundente para o estabelecimento de metas mútuas
de interesse previdenciário entre o Brasil e a Itália, influenciando de
maneira positiva os propósitos conjuntos de interesse individual e
recíproco, e alcançando patamares diferenciados de relacionamento
fraternal.
Através de Acordos Internacionais, a Previdência Social Bra-
sileira concedeu, em 2004, 218 benefícios no valor de R$ 142,7 mil, o
que representa uma diminuição de, respectivamente, 50,9% e 42,5%
em relação ao ano anterior. As pensões por morte e as aposentado-
rias por tempo de contribuição foram as espécies cujas participações
foram mais relevantes, atingindo, respectivamente 57,2% e 24,8% do
valor total concedido. Os países com maior participação no valor total
foram Portugal com 66,8% e Espanha com 12,6%, cabendo à Itália o
inexpressivo percentual de 0,9%, conforme o site da Previdência So-
cial em seu Anuário Estatístico com fonte na DATRAPEV. Tais dados
são relevantes uma vez que demonstram a inversa proporcionalida-
de entre um fluxo migratório crescente e a decrescente concessão de
benefícios naquele período. Seu significado pode estar contido em
uma migração de características mais ativas - com emigrantes ainda
em plena atividade laboral não beneficiários de direitos adquiridos,
ou concessão de benefícios previdenciários mais exigente e restritiva
por parte dos organismos brasileiros, ou, ainda, motivadamente de
acordo com o resultado da pesquisa deste trabalho, desconhecimen-
to por parte dos emigrantes brasileiros de seus direitos recorrentes.
Importa salientar, de qualquer forma, que os valores despendidos

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Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
naquele momento representam uma parcela reduzida frente aos dis-
pêndios gerais da Previdência Brasileira, traduzindo a relação custo
X benefício como bastante saudável ao parâmetro social.
Há um crescente reconhecimento, entre os países, da impor-
tância de que os direitos humanos dos migrantes e suas famílias
sejam preservados, especialmente em um período marcado pela
formação de grandes blocos de países e o aumento significativo de
fluxos migratórios. Mas as tratativas e os embates decorrentes das
negociações envolvendo outros regimes de Seguridade Social tem le-
vado a uma considerável demora até a ratificação plena dos Acordos.
A importância destes Acordos de Previdência Social é que somente
com eles se torna possível o reconhecimento do tempo de contri-
buição feito no exterior para outro regime. O mesmo vale para o es-
trangeiro de um desses países quando em relação com o Brasil. Nos
países que não possuem Acordo, nada disto se viabiliza.
Pela Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos
de todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares, da ONU,
o artigo 27 estabelece:

1. Os trabalhadores migrantes e seus familiares desfrutarão,


no Estado empregador, com respeito à Seguridade Social, do
mesmo tratamento que os nativos, desde que cumpram os
requisitos previstos na legislação aplicável desse país ou nos
Tratados Bilaterais e Multilaterais aplicáveis. As autoridades
competentes do país de origem e do país empregador pode-
rão tomar, a qualquer momento, as atitudes necessárias para
determinar as modalidades de aplicação dessa norma.
2. Quando a legislação aplicável não permitir que os traba-
lhadores migrantes ou seus familiares tenham direito a algu-
ma prestação, o Estado em questão, com base no tratamento
outorgado aos nativos que estiverem em situação similar,
considerará a possibilidade de reembolsá-los o montante das
contribuições que tiverem aportado com relação a essas pres-
tações.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
209
Nesse sentido, o artigo 61, cláusula 3, estabelece:

3. Com relação aos acordos Bilaterais ou Multilaterais que


sejam aplicados, os Estados-Membros procurarão assegu-
rar que os trabalhadores vinculados a um projeto estejam
devidamente protegidos pelos sistemas de seguridade social
de seus países de origem, ou de residência habitual duran-
te o tempo de vinculação ao projeto. Os Estados-Membros
interessados tomarão medidas apropriadas a fim de evitar
contestação de direito ou duplicação de pagamentos a esse
respeito.

Portanto, ambos os países Acordantes tem responsabilida-


des sobre os trabalhadores migrantes, no que tange à Seguridade
Social, não havendo com isso, omissão em relação às responsabi-
lidades.
Diante do inexorável reconhecimento internacional da im-
portância de legislações que garantam, em nível interno a cada país,
a assistência previdenciária de sua população, a par da bilateralida-
de e multilateralidade quando pretendida por dois ou mais Estados
simultaneamente, imprime-se que os potenciais beneficiários sejam
cientes de suas prerrogativas de alcance dos benefícios a que fazem
jus. Inexplicável que haja tamanho desconhecimento de direitos re-
conhecidos, primordialmente, como demonstrou a pesquisa realiza-
da, sobre público-alvo que tenha formação e experiência profissional
em nível bem superior à média dos indivíduos em geral. Se, entre
uma amostragem de entrevistados que se mostrou predominante-
mente diferenciada para uma cultura privilegiada, houve a ocor-
rência expressiva de desconhecimento da existência ou termos do
Acordo mantido entre o Brasil e a Itália, o que dizer de toda aquela
maciça parcela da população cujo acesso às informações é precária?
Ainda que grande parte da população de ambos os países esteja en-
raizada, não tendo pretensão nem condições de buscar perspectivas
de qualquer ordem no outro Estado, como justificar a falta de conhe-
cimento de Acordos desta natureza?

210 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
O círculo vicioso que explicaria tal carência pode ser traçado a
partir da relação falta de informação que gera falta de conhecimento
que gera falta de informação – infindável se não truncado o processo
pela inserção de dispositivos e providências que alterem esta preju-
dicial cadeia de omissões.
Um dos procedimentos passíveis de resolução reside no apa-
relhamento das Representações Diplomáticas de ambos os países,
com treinamento específico de pessoal de contato ao público. Mis-
ter se faz que, a despeito das referidas Representações Diplomáti-
cas afirmarem sua disfunção relativamente a tais competências, tais
Consulados e Embaixadas são os mais concentrados organismos de
um país presentes em outro país, com representatividade política
reconhecida, facilmente adaptáveis a uma representatividade social
também reconhecível.
Outra forma de esclarecer a garantia de tais direitos é através
de Conferências Internacionais, para permitir a troca de informa-
ções sobre a seguridade social, possibilitando, assim, o intercâmbio
de conhecimento e práticas bem sucedidas entre os segurados e a
Previdência Social. Interessante seria a criação de um modelo de
controle dos documentos enviados e recebidos por um Órgão Cen-
tralizador, sem burocracias, sem elevação de custos, e com agilidade
para a obtenção dos benefícios perante aos Acordos Internacionais.
Os dados repassados por via “on-line”, sem prejuízo da segurança de
identificação, com implementação de formulários únicos e específi-
cos para a permissão de consultas. Assim, seria adotado um único
modelo sistematizado para brasileiros e estrangeiros, para todos os
países em que o Brasil tenha ajustado Acordos de Previdência So-
cial, evitando a burocratização e promovendo a agilidade a todos os
segurados.
Por fim, mas sem esgotar as possibilidades, haveria a necessi-
dade de formação/capacitação de recursos humanos para um conhe-
cimento de legislação de todos os países parceiros, com estruturas
de diálogo e gestão que sirvam de pontos de contato, pois se corre o

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
211
risco de descumprimento e perda de confiança externa por parte da
comunidade internacional, sem falar no desrespeito aos direitos dos
potenciais beneficiários.
É necessário repensar as Relações Internacionais nos Acordos
da Previdência Social, com Cooperações entre Instituições públicas
capazes de dialogar e cumprir os Acordos, na obtenção das garantias
pactuadas, da divulgação para um bem-estar dos imigrantes das
nações envolvidas. Além do mais, urge o desenvolvimento de uma
Assessoria na área de Cooperação para brasileiros no exterior, e
estrangeiros de vários países no Brasil, ampliando as informações
em sites, com levantamentos de dados tempestivos de Instituições
de Saúde e ONGs, bem como qualificando a assistência e o direito à
saúde. O desafio está na troca de informações entre as previdências
dos países, premente a criação de um elo entre os organismos dos
países que devam repassar estas informações; e destes países com
sua população, esteja esta população em qualquer território, quando
o segurado tenha o conhecimento de seus direitos e a necessária
assistência.
Não se tem informação do alcance do interesse dos órgãos go-
vernamentais dos países parceiros na extensa divulgação dos dados
acordados. Ainda que política, diplomática e socialmente defendidos
os direitos dos migrantes na contextualização dos países de destino,
poucas informações são disponibilizadas em caráter geral. Dados de
concessão de benefícios a brasileiros no exterior, por exemplo, são
disponibilizados com o interstício de anos entre a ocorrência gera-
dora e sua divulgação. Quando ocorrem dificuldades na divulgação
de dados retrógrados, que faz muito deveriam estar consolidados,
obrigatórias se impõem medidas corretivas que, com muita dificul-
dade, seriam tratáveis simultaneamente com as medidas preventi-
vas acima relatadas. É passível que à medida do acréscimo de novos
Acordos, novos interesses sejam despertados para a efetiva e eficaz
validação dos já existentes.

212 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
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214 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
215
HOSPITALIDADE OU HOSTILIDADE? O
TRABALHO HUMANO NA SOCIEDADE
INTERNACIONAL 165 ANOS DEPOIS DO
MANIFESTO COMUNISTA
Rose Dayanne Santos de Brito
Graduanda do 9° semestre do curso de Direito na Universidade Federal de Per-
nambuco (UFPE). Realizou pesquisa na UnB como bolsista do CNPQ (2010-2012).
(dayanne158@gmail.com)

Resumo:
O presente artigo propõe pensar a noção de hospitalidade na atual conjuntura de crise po-
lítico-econômica internacional. Primeiramente, são demarcados os contextos históricos do
final do século XVIII e do Pós 2ª Guerra Mundial para demonstrar que os ideais de hospita-
lidade e direitos humanos são conseqüências das lutas pela emancipação humana ao longo
da história. Nesse sentido, procura-se evidenciar as condições atuais dos trabalhadores em
decorrência da crescente desigualdade propiciada pelo capitalismo hegemônico e pela crise
financeira. Para investigar, ao final, como garantir segurança e hospitalidade aos trabalha-
dores, se o modelo capitalista valora a guerra lucrativa dos mercados em detrimento da paz
internacional.
Palavras-chave: Democracia – Capitalismo - Direitos Humanos.

Sumário:
1. Introdução. 2. O sonho da paz perpétua 3. Proletários de todos os países, uni-vos! 4. A
Hospitalidade incondicional 5. Do Bem-estar social ao império neoliberal 6. Democracia da
Multidão e Amor político 7. Ação, Reação, Indignação! 8. Considerações Finais 9. Referências.

1 INTRODUÇÃO
Desde a antiguidade grega, os filósofos dedicam-se a estudar
as desigualdades entre os seres humanos e a possibilidade da justi-
ça social. A modernidade, entretanto, desenvolveu esses temas de

216 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
uma maneira bastante peculiar, uma vez que o modo capitalista de
produção ao suplantar o feudalismo trouxe novas configurações no
mundo do trabalho e nas organizações sócio-política.
No século XVIII, o pensamento de Immanuel Kant propiciou
contribuições significativas não apenas na filosofia, mas também no
direito. Ao refletir sobre as relações internacionais, Kant pergunta
sob quais condições, independentes da experiência, os sujeitos po-
dem conservar sua liberdade externa e viver, ao mesmo tempo em
sociedade. O direito, nessa direção, pode ser entendido como o con-
junto de condições sob as quais o arbítrio de um pode conviver com
o arbítrio do outro segundo uma lei universal de liberdade. Para a
garantia da paz, os direitos cosmopolitas deveriam ser regidos pelas
condições de hospitalidade universal. É relevante ressaltar, contudo,
que Kant rejeita qualquer moralização do direito, por isso a comuni-
dade jurídica não seria uma comunidade de solidariedade entre as
pessoas, mas uma comunidade de liberdade entre sujeitos responsá-
veis. Por fim, Kant elege o Estado republicano como modelo político
ideal. Posteriormente, Marx faz uma leitura diferente do papel do
Estado, cujo surgimento é simultâneo e vinculado à propriedade pri-
vada e à divisão social do trabalho. Logo, para Marx, o Estado é um
órgão de dominação de classe.
No Manifesto Comunista, que completa 165 anos este ano,
Marx faz referência as inovações trazidas pela classe burguesa, a qual
revolucionou as relações sociais e demonstrou o que a atividade hu-
mana é capaz de realizar na sociedade mundial. Não se pode, portan-
to, negar os impactos promovidos pela burguesia e os vínculos globais
decorrentes da internacionalização dos mercados e das pessoas. Nesse
sentido, a classe burguesa “criou maravilhas maiores que as pirâmi-
des do Egito.”89 Por outro lado, desencadeou desigualdades profundas

89
Marx, Karl; Engels, Friedrich. O Manifesto Comunista. Edição eletrônica: Ridendo Casti-
gat Mores. Versão para eBook. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobee-
book/manifestocomunista.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2013, p. 11.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
217
no mundo e uma exploração cínica e brutal dos seres humanos. A in-
ternacionalização do trabalho e as condições desumanas decorrentes
do modo capitalista de produção provocaram diversas insurgências e
lutas operárias para a garantia de melhores condições no trabalho. É
interessante notar que, hoje em dia, as crises cíclicas do capitalismo re
-afirmam as ideias defendidas por Marx, o qual depositou apenas nos
trabalhadores a força revolucionária para as transformações sociais.
De todo modo, compreende-se o valor histórico do texto o Manifesto
Comunista e as conquistas jurídicas no mundo do trabalho.
Como pensar a concepção kantiana de hospitalidade após a
crítica de Marx à economia política? É possível a constituição da
hospitalidade no capitalismo? Após as catástrofes do século XX, o
filósofo Emmanuel Levinas, de origem judaica, retoma a noção de
hospitalidade à luz da ética da alteridade, a qual se distancia do pen-
samento kantiano. A perplexidade dos crimes cometidos na 2ª Guer-
ra Mundial fez surgir, nas mais diversas esferas do conhecimento, a
urgência de um novo sentido para o humano, em outras palavras, a
necessidade de pensar outro modo de ser. Um “eclipse ético” surgia
nas perguntas dos “jovens alemães, que se voltavam aos seus pais
grisalhos e indagavam: a que ordens criminosas estavam obedecen-
do? Como dizer que não sabiam?”90 Sob o mesmo eclipse, os juristas
buscavam promover mais segurança e proteção extra-nacional aos
indivíduos, uma vez que a ordem jurídica não apenas legitimou o
estado nazista, mas emudeceu os gritos da verdadeira testemunha,
o Muselmann, o morto vivo dos campos de concentração. Era preci-
so, pois, a criação de instituições e declarações internacionais para
concretizar a cooperação entre os países e garantir efetivação aos
direitos humanos reconhecidos universalmente.
A apresentação histórica das lutas sociais e das conquistas de
direitos é necessária para entender o mundo contemporâneo. O ca-
pitalismo hoje, hegemônico e excludente, destruiu o Estado de Bem-

90
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Trad. Carlos Irineu da Costa. 2. ed. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 2009. p. 14.

218 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
-Estar social, diante disso, como pensar a situação dos trabalhadores
em face do desemprego estrutural? Como garantir o pleno empre-
go, se atualmente a maioria encontra-se desempregada? O direito
do trabalho surgiu das lutas operárias para atenuar as disparidades
ontológicas entre o capital e o trabalho, mas a exploração subsis-
te de forma ainda mais monstruosa. Aqui a piada de Rabinovitch
é bastante ilustrativa: “Por que você acha que é explorado”? “Por
dois motivos. Primeiro, quando trabalho, o capitalista se apropria da
minha mais-valia.” “Mais você está desempregado! Ninguém está
explorando sua mais-valia porque você não está produzindo nenhu-
ma!” “Esse é o segundo motivo.”91 As contradições agravadas en-
tre a força produtiva e relação de produção demonstra a falência
do capitalismo como modelo ideal de sociedade. Se no século XIX
Marx afirmou que o espectro do comunismo rondava a Europa, na
atualidade este espectro são os novos movimentos sociais. É nessa
direção que o presente artigo tenta refletir sobre um novo mundo do
trabalho vinculado à hospitalidade e à justiça social. Certo de que
a noção de utopia enunciada por Galeano perfaz todo o trabalho.
“Ela está no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois
passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais
que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve
para isso: para caminhar”92.

2 O SONHO DA PAZ PERPÉTUA

“No debe haber guerra.”


(KANT, 1999)

A filosofia moral de Kant entende que a base para toda razão


moral é a capacidade do homem de agir racionalmente, afastando a

91
ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. Trad. Rogério Bettoni. São Pau-
lo: Boitempo, 2012. p. 16.
92
GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Trad. Eric Nepomuceno. 4ª ed. Porto Ale-
gre: L&PM, 1994. p. 310.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
219
crença de que o homem é naturalmente bom. Nesse sentido, ele não
se baseava nas leis naturais para ditar o comportamento humano
contrapondo-se, por exemplo, a idéia de Rousseau do “bom selva-
gem”. O estado de natureza, para ele, destoa da noção de convivên-
cia pacífica entre os seres humanos. Diante disso,

La paz entre hombres que viven juntos no es un estado de naturale-


za –status naturalis-; el estado de naturaleza es más bien la guerra,
es decir, un estado en donde, aunque las hostilidades no hayan sido
rotas, existe la constante amenaza de romperlas. Por tanto, la paz es
algo que debe ser <<instaurado>>; pues abstenerse de romper las
hostilidades no basta para asegurar la paz, y si los que viven jun-
tos no se han dado mutuas seguridades- cosa que solo en el estado
<<civil>> puede acontecer, cabrá que cada uno de ellos, habiendo
previamente requerido al outro, lo considere y trate, si se niega, como
a um enemigo.93

A partir dessa reflexão o direito não é uma instituição alea-


tória e, menos ainda, arbitrária entre os homens. É algo necessário.
Nesse ínterim, Kant fundamenta o direito e o Estado a partir da
razão prática pura e, por conseguinte, diferencia legalidade de mo-
ralidade à luz dos imperativos hipotéticos e da vontade heterônoma
contribuindo para o formalismo jurídico. A hospitalidade, portanto,
não é apenas uma questão moral, mas deve ser tratada também no
âmbito jurídico, ou seja, ele retira da noção de hospitalidade qual-
quer ideia relativa à filantropia e determina sua vinculação na dou-
trina moral à autonomia da vontade e ao imperativo categórico já,
na esfera jurídica, ressalta que:

O princípio racional do direito público não vale somente para


a constituição interna de um Estado. Se não existem relações
jurídicas entre os Estados, também estes vivem, entre si, no
estado natural da guerra em potencial, em que reina o “di-
reito do mais forte”. O estado de natureza internacional só

93
KANT, Immanuel. La paz perpetua. Biblioteca Virtual Universal. Disponível em: <http://
www.biblioteca.org.ar/libros/89929.pdf>. Acesso em 13 de Abril de 2013, p. 6.

220 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
é superado em favor de uma ordem jurídica e pacífica pela
instauração de uma comunidade dos Estados em uma “so-
ciedade das nações, segundo a idéia de um contrato social
originário”.94

Nota-se, portanto, a crença kantiana no papel exercido pelo


Estado, o qual possibilitaria aos cidadãos efetivar suas liberdades.
Por outro lado, entende que a criação de um “Estado mundial” im-
possibilitaria as pretensões cosmopolitas e pacíficas na sociedade
internacional, na medida em que poderia desencadear num totali-
tarismo. Por isso, defende que nenhum Estado interfira na consti-
tuição e no governo de outro Estado. Além do mais, aconselha que
a constituição civil de todos os países seja a republicana- entendida
como a separação entre o poder legislativo e o executivo. É impor-
tante ressalvar, todavia, que a idéia de hospitalidade em Kant está
vinculada apenas a cidadania, explica Derrida:

Quando [Kant] fala do tratado da paz universal, pensa numa


hospitalidade de cidadão para cidadão. Mas hoje devemos
nos preocupar com pessoas que são lançadas fora de seus
países, sem cidadania, e que não são respeitadas como cida-
dãos. É preciso pensar numa hospitalidade não mais voltada
somente para cidadãos, porém que se dirija a qualquer um
(...) Todos os que, desde pelo menos a primeira guerra mun-
dial, foram lançados na estrada do mundo: milhões de de-
portados, pessoas deslocadas, imigradas à força.95

Nesse ínterim, fica evidenciado que as noções de hospitalida-


de e paz perpétua em Kant são baseadas essencialmente em princí-
pios racionais, retirando de tais conceitos os aspectos da solidarie-
dade e alteridade. O acolhimento do estrangeiro proposto por Kant
94
HÖFFE, Otrifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm, Valerio Rohden. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 261.
95
DERRIDA, JAQUES. A solidariedade dos seres vivos. Entrevista publicada no suplemento
Mais! da Folha de S. Paulo. Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/entrevis/solivi-
vo.htm>. Acesso em: 14 abr. 2013, negrito meu.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
221
se assemelha a ideia de tolerância, ou seja, eu hospedo o estrangeiro
sob determinadas condições: primeiro, se ele for reconhecido juridi-
camente como cidadão; segundo, se ele se adéqua às minhas regras;
e terceiro, se ele renuncia àquilo que o torna diferente de mim.

3 PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES,


UNI-VOS!

“A desvalorização do mundo humano


cresce na razão direta da valorização
do mundo das coisas.”
(MARX, 1985)

A Revolução Francesa e a independência dos Estados Unidos


foram eventos importantes para o século XVIII, no entanto desen-
cadearam interpretações diferentes. Kant ficou seduzido pelo pro-
gresso racional e histórico conquistado pelos seres humanos. Hegel,
por conseguinte, enfatizou a figura do Estado como símbolo de li-
bertação dos indivíduos. Marx, porém, faz uma leitura diferenciada
entendendo a ascensão da burguesia como a radicalização do anta-
gonismo de classe e o Estado como um instrumento de dominação.
Para Marx, seria uma contradição pensar a realização da li-
berdade humana no capitalismo. Com esse entendimento, publica
o livro “Crítica da filosofia do direito de Hegel” onde apresenta de
forma ainda rudimentar suas idéias sobre o papel revolucionário da
classe proletária. A emancipação humana seria construída através:

Da formação de uma classe com grilhões radicais, de uma clas-


se da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade
civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os es-
tamentos, de uma esfera que possua um caráter universal
mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique
nenhum direito particular porque contra ela não se comete
uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência, que já

222 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
não possa exigir um título histórico, mas apenas o titulo hu-
mano (...). Uma esfera, por fim, não pode se emancipar sem
emancipar todas as outras.96

O Estado e o direito burguês podem ser entendidos como sis-


temas de relações sociais tutelado no interesse da classe dominante;
deveria haver, então, a união revolucionária dos proletários, ou seja,
de todas as pessoas que vendiam sua força de trabalho para sobrevi-
ver. No ano de 1848, Marx publica em Londres o Manifesto do Partido
Comunista, o qual tinha sido encomendado pela Liga dos Justos- or-
ganização conspirativa, ativamente comprometida com a construção
de uma alternativa ao mundo de desigualdades e opressão existente.
O texto ratificava a idéia de que a grande revolução vinha nas asas do
tempo, por isso era importante a publicação de uma carta programáti-
ca com os ideais políticos e sociais dos comunistas, já que o mundo vi-
via em constantes insurgências, porém sem um ideal político comum.
O que movia as pessoas era o desejo de adquirir mais direitos. Nesse
sentido, destacaram-se os eventos da insurreição dos operários têxteis
de Lyon em 1834; as lutas pela redução da Jornada de Trabalho em
1836-1838; a grande greve de Paris em 1840; as greves de Loire 1846-
1847; a crise econômica inglesa em 1847.
O mundo era hostil aos trabalhadores e a exploração era de-
senfreada e brutal. Não obstante, os comunistas defendiam que o
verdadeiro resultado de suas lutas não era o sucesso imediato, mas a
união crescente. Diante disso, os trabalhadores começaram a formar
associações contra a burguesia; fundaram organizações permanen-
tes com grande participação dos sindicatos tendo como finalidade a
ação prática. As ideias de Marx e Engels tiveram grande relevância
na conscientização política dos indivíduos, uma vez que ficou evi-
denciado que o trabalho subordinado e alienado não criava apenas
os objetos; ele transformava o próprio trabalhador em mercadoria,

96
MARX, Karl. Critica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de
Deus. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 156.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
223
isto é, o operário ficava mais pobre à medida que produzia mais ri-
queza. A desigualdade promovida pelo capitalismo era incompatível
com uma sociedade pacífica. Por isso, o final do Manifesto Comu-
nista pode ser entendido como um convite à participação dos traba-
lhadores de todos os países para sepultar definitivamente o modo de
produção capitalista.
A luta revolucionária proposta por Marx e Engels busca a
transformação de toda sociedade e não apenas a garantia de privilé-
gios à classe trabalhadora. Em conformidade as condições históricas
do século XIX, os proletários deveriam assumir o papel de transfor-
mação social. Atualmente o filósofo marxista Holloway enfatiza que:

[...] não lutamos como classe trabalhadora, lutamos contra


ser classe trabalhadora, contra ser classificados. A unidade
do processo de classificação (a unidade da acumulação de
capital) é que dá unidade a nossa luta, não nossa unidade
como membros de uma classe comum. [...] Nada de bom
existe em sermos membros de classe trabalhadora, em ser-
mos ordenados, comandados, separados de nosso produto
e de nosso processo de produção. A luta não surge do fato
de que somos a classe trabalhadora, mas do fato de que so-
mos-e-não-somos classe trabalhadora, de que existimos con-
tra-e-mais-além de sermos classe trabalhadora; de que eles
tratam de ordenar-nos e comandar-nos, mas nós não quere-
mos ser ordenados nem comandados; de que eles tratam de
separar-nos do nosso produto e do nosso produzir e da nossa
humanidade e de nós mesmos e nós não queremos ser sepa-
rados de tudo isso.97

Não se pode negar a importância das obras de Marx e Engels


para entender o mundo contemporâneo. Por outro lado, a configu-
ração atual da sociedade mudou. As relações globais foram intensi-
ficadas e a maioria da população é de clandestinos e desempregados,
logo o discurso obreirista precisa ser revitalizado.
97
HOLLOWAY, J. Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo: Ed Viramundo, 2003, p.
212.

224 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
4 A HOSPITALIDADE INCONDICIONAL

“Justiça é a relação com os outros”


(LEVINAS, 1988)

A noção Kantiana de hospitalidade não transformou na prá-


tica o brutal e desumano tratamento aos estrangeiros, refugiados e
aos trabalhadores. Além disso, a mais-valia despertou a humanida-
de do sonho perpétuo da paz, porque o sistema capitalista não ape-
nas fomenta, mas se nutre das desigualdades e exploração. Nota-se
que a filosofia ocidental se caracteriza pela totalidade do ser centra-
lizada no culto do Mesmo e na exclusão do outro – o refugiado, o
pobre, etc. Derrida reconhece esse autismo europeu quando afirma
que: “houve, aliás, um tempo, nem longíquo nem terminado, em
que “nós os homens”, queria dizer, nós os europeus adultos machos
brancos carnívoros e capazes de sacrifício”98.
É como crítico da totalidade que o filósofo lituano Emmanuel
Levinas se destaca no século XX. Segundo este autor, “o itinerário da
filosofia permanece igual aquele de Ulisses cuja aventura no mundo
não é senão um retorno a sua ilha natal- uma complacência no Mes-
mo, uma indiferença ao Outro”99. Diante disso, Levinas se contrapõe
a noção racional individualista e antropocêntrica para demonstrar a
importância da alteridade e do acolhimento incondicional do outro.
O filosofo lituano de origem judaica foi prisioneiro no campo de con-
centração, ou seja, uma vítima direta dos horrores do Holocausto.
Em um dos seus livros conta a história do cão Bobby, que vagava
pelo campo e era companhia diária dos prisioneiros nos trabalhos
forçados. “O cão errante, vindo de qualquer parte, era a única ates-
tação da humanidade daqueles homens que tinham diariamente

98
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla
Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2. ed, 2010, p. 34.
99
LEVINAS, EMMANUEL. Humanismo do outro homem. 3. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009,
p. 49.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
225
sua condição humana esmagada”100. Os prisioneiros desenvolveram
uma amizade sobrenatural pelo animal; como um kantiano pautado
apenas na racionalidade poderia interpretar tais sentimentos? Nota-
-se que as tragédias da 2ª Guerra Mundial possibilitaram repensar o
sentido humano e a ética, com o intuito de que esses atos bárbaros
praticados contra a humanidade jamais se repetissem.
Em uma entrevista concedida ao periódico Autrement, em
1988, Levinas declara que

[...] é a hora da justiça, da comparação dos incomparáveis


“juntando-se” em espécies e gênero humanos. É hora das
instituições habilitadas a julgar e a hora dos Estados em que
as instituições se consolidam e a hora da Lei universal que é
sempre dura lex e a hora dos cidadãos iguais diante da lei.101

Para ele, tanto o direito quanto a política não poderiam se dis-


sociar completamente dos valores éticos. E, nesse sentido, desenvolve
a idéia do direito infinito que aparece transpassada na obra “Do sa-
grado ao santo”, cujo destaque está visível na “metáfora do operário”.
Levinas possibilita, portanto, uma ruptura na tradição, uma
vez que não restringiu os questionamentos filosóficos à herança gre-
ga, mas também os associou a sabedoria hebraica da tradição her-
menêutica bíblico-talmúdica. Nesse contexto, a idéia do direito in-
finito floresce sob a égide do “humanismo judaico”. Com isso, ele
possibilita um novo entendimento sobre o direito equiparado a idéia
de justiça e não apenas a meros procedimentos formais. Derrida re-
conhece tal grandeza e utiliza algumas das categorias de Levinas
para re-pensar a justiça e propor a desconstrução do direito102.

100
HADDOCK-LOLO, Rafael. Da existência ao infinito: ensaios sobre Emmanuel Levinas. Rio
de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2006.
101
LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino Stefano
Pivatto (coord.). Petrópolis: Vozes, 2004. p. 293.
102
Em Força de Lei, Derrida afirma: “eu seria tentado, até certo ponto, a aproximar o con-
ceito de justiça – que tendo a distinguir, aqui, do direito- daquele de Lévinas. Eu o
faria em razão daquela infinidade, justamente, ou da relação heterônoma, cuja infini-

226 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
O pensamento de Emmanuel Levinas evidencia, em suma, que
nossas interações sociais não foram sustentadas pelas relações éticas,
por isso o pior pôde acontecer, ou seja, o não reconhecimento do outro
como ser humano. Esclarece que a “compreensão do Ser” em detri-
mento do “esquecimento do Outro” foi uma violência cometida na
história da filosofia desde Parmênides. O horror do Holocausto, para
Levinas, foi uma conseqüência dessa filosofia que valorou a existência
em detrimento dos existentes, por isso propõe a revisão da diferen-
ça ontológica heideggeriana. Nos dias de hoje, partindo dessa leitura,
Costa Douzinas entende que “a lei da modernidade baseada no direito
do Eu e no império do sujeito é estranhamente imoral enquanto tenta
assimilar e excluir o Outro”103. Diante disso,

[...] o paradoxo dos direitos humanos emerge em uma nova


formulação: direitos humanos são, ao mesmo tempo, a criação
desse primeiro dever ético fundamental e a distorção do impe-
rativo moral, um reconhecimento da singularidade do Outro
que, entretanto, revela a necessidade de acomodar muitos.104

Chega-se ao entendimento que a justiça como experiência da


alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance do aconteci-
mento e a condição da história105. A hospitalidade se nutre, pois,
desta impossibilidade, caracterizada aqui por sua infinitude, que se
produz como desejo. Ela se alimenta da sua própria fome, assim
como a carícia. A hospitalidade consiste em não se apoderar de nada,
em solicitar o que se afasta incessantemente da sua Forma para um
futuro – nunca suficientemente futuro – em solicitar o que se escapa

dade não posso tematizar e do qual sou refém. (2010, p. 41, grifo meu). Já em Adeus a
Emmanuel Lévinas, ele desabafa “cada vez que leio ou releio Emmanuel Levinas sinto-
me inundado de gratidão e de admiração, inundado por esta necessidade (...) à justiça,
diz ele em algum lugar, numa poderosa e formidável elipse: a relação ao outro quer
dizer a justiça. (2008, p. 26, grifo meu).
103
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009. p. 353.
104
Ibidem, p. 358.
105
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla
Perrone-Moisés. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 55.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
227
como se ainda não fosse. Assim como a carícia, a hospitalidade incon-
dicional procura e rebusca. Não é uma intencionalidade de desvela-
mento, mas de procura: caminho para o invisível. Num certo sen-
tido, exprime o amor, mas sofre da incapacidade de dizer. Tem fome
dessa expressão, num incessante aumento de fome106.

5 DO BEM-ESTAR SOCIAL AO IMPÉRIO


NEOLIBERAL

“Não existe essa coisa de sociedade


o que há são indivíduos.”
(THATCHER, 1993)

A queda dos regimes totalitários na Europa Ocidental, nazi-


fascismo, aliada aos resquícios patológicos da Grande depressão de
1929 suscitou a urgência de uma nova organização político-social,
podemos dizer, de maneira bastante resumida, que este momento na
história ficou conhecido como: “Welfare State”. O Estado de bem
-estar social buscou estender a proteção Estatal às diversas classes
sociais, por isso foram criados diversos programas assistenciais para
suprir as necessidades da população. Esta política social pleiteava
ampliar a noção de cidadão e atenuar as disparidades inerentes ao
regime capitalista, dentre elas, a propriedade privada e a superiori-
dade lucrativa dos mercados.
Franklin Delano Roosevelt consolidou o Estado de Providên-
cia nos Estados Unidos com a criação de empregos e com o discurso
protecionista do Estado. A integração entre a política e o social, mar-
cante no governo de Roosevelt, ainda hoje é lembrada e fez dele um
dos melhores presidentes norte-americanos. Nessa direção, houve
um crescimento marcante da social-democracia, na medida em que
parecia vital a conversão dos lucros econômicos para garantir me-

106
Alusão à p. 256 do livro Totalidade e Infinito.

228 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
lhores condições de vida à população. Essas idéias foram propagadas
e idealizadas pelo economista Keynes, segundo o qual:

O Estado deverá exercer uma influência orientadora sobre a


propensão a consumir, seja através de seu sistema de tributa-
ção, seja, em parte, por meio da fixação da taxa de juros e, em
parte, talvez, recorrendo a outras medidas [...] Eu entendo,
portanto, que uma socialização algo ampla dos investimen-
tos será o único meio de assegurar uma situação aproximada
de pleno emprego, embora isso não implique na necessidade
de excluir ajustes e fórmulas de todas as espécies.107

As ideias Keynesianas proporcionaram o desejo de um equi-


líbrio econômico internacional com a finalidade de evitar novas ca-
tástrofes na economia. Foi baseado neste modelo protecionista que
surgiu, em 1944, o Fundo Monetário Internacional (FMI). O Esta-
do Providência buscou atenuar as desigualdades sociais, garantir
pleno emprego aos trabalhadores e exercer um papel ativo na Eco-
nomia, porém ele foi desconstruído pelo chamado: Neoliberalismo.
Na década de 1970, Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Reagan,
nos EUA, passaram a privatizar empresas nacionais e revogar as
garantias jurídicas concedidas aos sindicatos e aos trabalhadores.
Era o retorno, pois, ao “laissez-faire” e a prevalência mercadoló-
gica do liberalismo clássico, porém de maneira mais bárbara. Este
pensamento foi disseminado pelo mundo através da globalização,
aumentando desenfreadamente o índice de pobreza e as desigual-
dades no mundo.
Com o slogan neoliberal “a ganância é uma coisa boa”, a so-
cialização ficou subordinada ao individualismo egoísta e o senso de
coletividade foi substituído pelo “culto ao eu”, que passou a ser a
regra em consonância aos desejos econômicos de lucratividade nos
mercados. O humano deu lugar ao capital. As relações humanas

107
KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. New York: HBJ
Book, 1964. p. 378.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
229
mercantilizadas foram presas na lógica insana do capitalismo: no
desejo de consumo nunca saciável. Hoje em dia,

[...] estamos diante de um sujeito que não é mais necessa-


riamente marcado pela disciplina, mas pelos signos, ima-
gens e imperativos publicitários, por meio dos quais ele se
inscreve no universo das mercadorias, acreditando ser pos-
sível “comprar” afeto, bem-estar, auto-estima, respeitabi-
lidade, enfim, atributos que em outros tempos históricos
eram acessíveis por meios distintos, como os laços sociais,
por exemplo.108

Marx já não havia debatido isso no século XIX? Com a crise


econômica mundial de 2008, os livros de Marx saíram das prate-
leiras para serem relidos e a instabilidade dos mercados mundiais
passou a conviver diariamente com os coveiros do capitalismo: os
movimentos sociais.

6 DEMOCRACIA DA MULTIDÃO E AMOR POLÍTICO

“Ler O capital não será suficiente


se não soubermos ler também
os sinais da rua.”
(BERMAN, 1987)

A sociedade do século XIX não é igual a do século XXI. As for-


mas de trabalho não são as mesmas. O proletariado não parece ser a
única classe capaz de revolucionar o capitalismo. Por que reler Marx,
então? É nesse caminho que destacamos o pensamento do filósofo
italiano, Antônio Negri, que analisa a teoria de Marx sob a égide da
nova conjuntura social. Para ele,

108
MANSANO, Sônia Regina Vargas. Sorria, Você Está Sendo Controlado: Resistência e Po-
der na Sociedade de Controle. São Paulo: Summus Editorial, 2009. p. 76.

230 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
[...] à medida que a história avança e a realidade social se
transforma, as velhas teorias deixam de ser aplicáveis. Preci-
samos de novas teorias para a realidade. Para seguir o método
de Marx, assim, devemos nos afastar das teorias de Marx, na
medida em que o objeto de sua crítica, a produção capitalista
e a sociedade capitalista como um todo mudou. Em termos
simplificados, para seguir os passos de Marx temos realmente
de ultrapassá-lo, desenvolvendo, com base em seu método,
um novo aparato teórico adequado à nossa atual situação.109

Com base nisso, Negri constrói sua teoria tendo como inspi-
ração os componentes primordiais do método de Marx: a tendência
histórica, a abstração real, o antagonismo e a constituição da subje-
tividade. Em virtude da ampla dimensão teórica, o presente trabalho
apenas introduz breves noções da filosofia de Negri, a saber: o tra-
balho imaterial, a multidão e a consciência do amor político. Com o
propósito de demonstrar que:

[...] as grandes lutas antifascistas das décadas de 1930 e


1940, e das numerosas lutas de libertação da década de 1960
até as de 1989, as condições da cidadania da multidão nas-
ceram, se espalharam e se consolidaram. Longe de derrotas,
as revoluções do século XX fizeram avançar e transformou os
termos do conflito de classe, propondo as condições de uma
nova subjetividade política, uma multidão insurgente contra
o poder imperial. O ritmo estabelecido por esses novos mo-
vimentos revolucionários é a batida de uma nova era, uma
nova maturidade e metamorfose dos tempos.110

A sociedade industrial foi revolucionada pelo capitalismo in-


formacional. As fábricas tornaram-se nômades. Em certo sentido,
elas contrariam a lógica, pois estão e não estão em uma localidade
fixa. Nada impede que o trabalhador, em um dia comum de serviço,

109
HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005. p.
189.
110
HARDT, M.; NEGRI, A. Império. São Paulo: Record, 2005. p. 433-434.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
231
vá à fábrica e ela esteja fechada, tendo se transferido para outro país.
O capitalismo hegemônico possibilitou a brutal exploração global do
mundo do trabalho, uma vez que as fábricas migram para os paraí-
sos fiscais e onde encontram mão de obra mais barata. Se os traba-
lhadores fazem greve no país A, elas migram para B onde poderão
lucrar mais e evitar ações trabalhistas, assim segue a devastação do
ser humano. Por outro lado, na sociedade pós-industrial, a produção
fabril não se configura isoladamente como a única forma de tra-
balho, convivendo, por exemplo, com o trabalho imaterial caracte-
rístico dos novos tempos. Para Negri e Hardt o trabalho imaterial é
entendido como aquele que produz um bem imaterial, um produto
cultural, conhecimento ou comunicação. Este tem uma relevância
no mundo contemporâneo por diversas razões, em especial, por pos-
sibilitar o surgimento de uma nova classe revolucionária, a multi-
dão. Nessa perspectiva, o filósofo italiano conclui que:

La única base posible reside em los movimentos globales de poblaciones


y em su rechazo de las normas y reglas globales de la explotación. Lle-
var la rebelión al terreno del espacio social global en um plano cosmo-
político significa pasar por la profundización de las resistências locales
em las redes sociales productivas, em las banlieues, las metrópolis y en
todas las redes que conectan el proletariado en su proceso de formación
de la multitud. Construir el espacio público global exige que la mul-
titud, em su êxodo, cree las instituciones que pueden consolidar y for-
talecer las condiciones antropológicas de la resistência de los pobres.111

Enquanto no século XIX, Marx depositou na classe proletária


a expectativa de destruição do capitalismo, para Negri a nova socie-
dade desencadeou a formação de novos atores participativos e insur-
gentes; a constituição da multidão, portanto, seria capaz de destruir
definitivamente o império do capital. Nota-se, por conseguinte, que
o conceito de multidão designa um sujeito social que não se baseia
na unidade, mas sim no respeito às diferenças agindo em conjun-
111
HARDT, M.; NEGRI, A. Commonwealth. El proyecto de uma revolución del común. Edi-
ciones Akal, S. A., 2011. p. 253.

232 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
to com base em interesses comuns. Com esse fundamento, Negri
critica o modelo político representativo e a idéia de unicidade so-
berana e governamental. Conseqüentemente, anuncia a democracia
da multidão como paradigma contra a guerra, na medida em que a
multidão ao se autogovernar cria efetivamente um estado de feli-
cidade duradouro. A força da multitude é a única capaz de banir as
desigualdades sociais e criar um novo mundo cujo produto não seria
o ódio da esfera privada, mas o amor comum. Segundo Negri:

El amor compone singularidades, como temas de uma partitura


musical, no como unidad, sino como uma red de relaciones sociales.
Reunir esas dos caras del amor - la constituición del común y la com-
posición de singularidades - es un desafio central para comprender el
amor como um acto material y político. 112

As críticas de Negri e Hardt ao neoliberalismo são importan-


tes para pensar novas possibilidades de constituição política e social.
O objetivo destes filósofos, porém, não é criar receitas fabricadas e
comercializáveis, mas contribuir para um pensamento crítico em re-
lação a sociedade capitalista. Inclusive, Negri participou do Fórum
Social Mundial apresentando seu ponto de vista sobre as novas al-
ternativas à crise atual.

7 AÇÃO, REAÇÃO, INDIGNAÇÃO!

“Eu desejo a todos, a cada um de vocês


que tenham seu motivo de indignação.”
(HESSEL, 2011)

Em 1989, o filósofo e economista Fukuyama, idealizador do


governo Reagan, ficou conhecido ao publicar o artigo intitulado “O

112
HARDT, M.; NEGRI, A. Commonwealth. El proyecto de uma revolución del común. Edi-
ciones Akal, S. A., 2011. p. 193-194.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
233
fim da história”, por sua vez, Margaret Thatcher, em 1994, afirmou
que “ela e Reagan ajudaram a demolir o comunismo.” Na atualida-
de, porém, estes pensamentos foram invalidados. Em primeiro lu-
gar, ficou comprovada com a crise de 2008 que o Capitalismo não é a
última, muito menos, a melhor das formas de organização econômi-
co-social. Se a dama de ferro estivesse viva, talvez reconhecesse que
o neoliberalismo, na verdade, não destruiu o comunismo, mas sim
acelerou a falência autofágica do capitalismo.
As resistências sociais estão cada vez mais organizadas e so-
fisticadas como ficou visível, por exemplo, nas Revoluções árabes e
no movimento dos indignados. Se o conceito clássico de comunis-
mo se define pela auto-gestão social e pela inexistência de classes
sociais, de propriedade privada e de Estado, é inquestionável a con-
clusão de que o comunismo nunca existiu na URSS. É interessan-
te, nesse sentido, o posicionamento atual do filósofo francês Badiou
que entende o comunismo como a idéia de emancipação de toda a
humanidade.
Fica visível que a ação neoliberal não apenas gerou fortes rea-
ções, mas também indignações. No funeral de Thatcher, os 4 mil
policiais para patrulhar as ruas de Londres durante o cortejo fúnebre
não impediram diversos protesto. As pessoas demonstraram mensa-
gens de repúdio ao legado de Thatcher com os cartazes: “o resto de
nós na pobreza” e “não quero pagar o funeral do meu bolso”. É com
base nessa potência de resistência do ser humano que Negri propõe
a organização revolucionária da multidão.
Um evento recente também marcou os noticiários interna-
cionais. No Bahrein, uma pequena monarquia do Golfo Pérsico, cuja
violação aos direitos humanos é diária, os ativistas pró-democracia
foram às ruas protestar contra a realização da Fórmula 1 no país. A
indignação dos ativistas buscava ressaltar a manipulação política do
governo ditatorial de Bahrein que pretende propagar uma normali-
dade que não existe. Afinal, o país está guerra. Enquanto as pessoas
estão lutando por mais liberdade e garantia de direitos humanos,

234 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
o chefe da F1, Bernie Ecclestone, os acusava de terrorismo. É claro
que os patrocinadores da Fórmula 1 não estão preocupados com a
situação ética e política de Bahrein, nem das violações aos direitos
humanos. Infelizmente, o que move os empresários são os lucros
arrecadados. Portanto, revolucionar a lógica do capital é preciso.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente texto buscou demonstrar que há “uma guerra em
estado permanente contra o outro. O diferente que é exterminado
para assegurar o êxito da Torre de Babel do capitalismo e da S.A. do
dinheiro.”113 Logo, fica difícil pensar a hospitalidade incondicional
defendida por Levinas na configuração político -econômica atual.
Os trabalhadores, os imigrantes e refugiados são vítimas da brutali-
dade do mercado diariamente. As declarações de direitos humanos,
conquistadas através da luta social, têm uma importante contribui-
ção para assegurar melhores condições aos cidadãos, porém o desejo
revolucionário pela justiça social e fim das desigualdades continua.
A pergunta leninista “que fazer” retorna em tempos de crise
global. Se no Manifesto Comunista, os proletários deveriam se orga-
nizar para transformar a sociedade, hoje os movimentos sociais se
reconstroem no âmbito local, nacional e mundial e fazem resistên-
cia ao poder hegemônico. Ao longo da história, muitos pensadores
manifestaram suas opiniões quanto à transformação da sociedade e
a busca pela paz, o presente trabalho apenas ressaltou algumas teo-
rias sem a pretensão de elencar uma única resposta aos problemas
atuais. O que é incontestável é o desejo de revolução permanente,
pois se ainda hoje é possível ler em manchetes de jornal “Imigrantes
cobram salários atrasados e são baleados na Grécia”, fica evidente
que a evolução e o progresso social não se realizaram completamen-
te como muitos defendem.

113
WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio! direitos humanos de alteridade, surrealismo
e cartografia. Trad. Vívian Alves de Assis. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010. p. 23.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
235
9 REFERÊNCIAS
BERMAN, Marshall. Os sinais da rua: uma resposta a Perry Anderson. Presença, Rio
de Janeiro, n. 9, fev. 1987, p. 122-138.
GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Trad. Eric Nepomuceno. 4. ed. Porto
Alegre: L&PM, 1994.
HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record,
2005.
_______. Commonwealth. El proyecto de uma revolución del común. Ediciones
Akal, S. A., 2011.
HESSEL, Stéphane. Indignai-vos. Trad. Marli Peres. São Paulo: Leya, 2011.
HOLLOWAY, J. Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo: Ed Viramundo, 2003.
KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. New York: HBJ
Book, 1964.
LENIN, V. I. Que Fazer? Obras Escolhidas.v. 1. Lisboa: Edição Avante, 1981.
LEVINAS, Emmanuel. Entre Nós. Ensaios sobre a alteridade. Trad. de Pergentino
Stefano Privatto (coord.). Petrópolis: Vozes, 2004.
MANSANO, Sônia Regina Vargas. Sorria, Você Está Sendo Controlado: Resistência e
Poder na Sociedade de Controle. São Paulo: Summus Editorial, 2009.
MARX, Karl. Manuscritos Economia y Filosofia. 11. ed. Madri: Editorial Alianza, 1985.
MARX, Karl. Critica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo
de Deus. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, K; ENGELS, F./ Carlos Nelson Coutinho, [et.al]. O Manifesto Comunista 150
anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
1998.

236 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
OS LIMITES DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
NA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE EUROPEIA
DE DIREITOS HUMANOS E O DISCURSO DE
ÓDIO CONTRA AS MINORIAS SEXUAIS
Thiago Dias Oliva
Thiago Dias Oliva é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e mes-
trando na área de concentração em Direitos Humanos, também junto à Faculdade
de Direito da USP. Sua linha atual de pesquisa tem o apoio da FAPESP – Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. (thiago.oliva@usp.br)

Resumo:
A liberdade de expressão e o direito antidiscriminatório constituem objeto de preocupação
crescente no continente europeu. Para fazer frente ao desafio de convivência respeitosa en-
tre grupos culturais, étnicos, religiosos e sociais díspares, o Sistema Europeu de Proteção dos
Direitos Humanos tem imposto limites à liberdade de expressão, de modo a coibir o discurso
de ódio. Ao debruçar-se sobre a matéria, a Corte Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) de-
senvolveu parâmetros para definir os limites à liberdade de expressão em casos envolvendo
manifestações racistas, antissemitas e xenófobas. Paralelamente às dificuldades enfrentadas
por minorias culturais, étnicas e religiosas, as minorias sexuais têm seu reconhecimento no
espaço público colocado constantemente à prova por discursos discriminatórios. Tendo em
vista essa situação, o objetivo do presente estudo é identificar os parâmetros adotados pela
CEDH para definir os limites da liberdade de expressão face ao discurso de ódio, bem como
avaliar a sua aplicação para coibir manifestações homofóbicas.
Palavras-chave: liberdade de expressão – discurso de ódio – Corte Europeia de Direitos
Humanos – minorias sexuais.

Sumário:
1. Introdução. 2. A Convenção Europeia de Direitos Humanos e a jurisprudência da CEDH. 2.1
A aplicação do art. 17 da Convenção Europeia. 2.2 A aplicação do §2º do art. 10 da Convenção
Europeia. 2.3 A jurisprudência da CEDH em matéria de minorias sexuais e o caso Vejdeland e
outros v. Suécia. 3. Considerações Finais. 4. Referências.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
237
1 INTRODUÇÃO

O Comitê de Ministros do Conselho da Europa definiu, na


Recomendação Nº R(97)20, o conceito de discurso de ódio como

[...] todas as formas de expressão que difundem, incitam,


promovem ou justificam ódio racial, xenofobia, antissemi-
tismo ou quaisquer outras formas de ódio pautadas na in-
tolerância, o que inclui: intransigência expressa por ma-
nifestações agressivas de nacionalismo e etnocentrismo,
discriminação e hostilidade contra minorias, migrantes e
pessoas de origem estrangeira114.

A recomendação assinala, ademais, princípios que devem


nortear o tratamento legal do discurso de ódio. É importante des-
tacar que os parâmetros apontados pela recomendação condensam
a abordagem que a CEDH conferiu, até aquele momento, à matéria,
além de servir de orientação para as decisões que se seguiram à sua
publicação.
O próprio Comitê de Ministros já se pronunciou sobre outras
vertentes específicas do assunto, como a promoção da tolerância na
mídia115 e a liberdade de expressão em meio a debates políticos116.
Mais recentemente, editou recomendação sobre o combate à discri-

114
COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Recommendation No. R (97)
20 of the Committee of Ministers to member states on “hate speech”, 1997, p. 107. É
interessante mencionar, ainda, que o Conselho da Europa redigiu um protocolo adicional
à Convenção sobre Crimes Cibernéticos prevendo a criminalização de atos racistas e
xenófobos praticados via internet. Muito embora nem todos os países tenham ratificado
o protocolo em questão, ele não deixa de servir como parâmetro para a análise de casos
concretos envolvendo manifestações odiosas por meio da internet.
115
COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Recommendation no. R (97) 21
of the Committee of Ministers to member states on the media and the promotion of a
culture of tolerance, 1997, p. 109-111.
116
A declaração assevera que, muito embora as discussões políticas demandem, natu-
ralmente, um campo mais amplo para a liberdade de expressão – de modo a garantir
um ambiente democrático – o debate político não acoberta opiniões racistas ou que
incitem ao ódio. Cf. COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Declaration on
freedom of political debate in the media, 2004.

238 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
minação por orientação sexual e identidade de gênero que chama os
Estados-membros a adotarem uma série de medidas protetivas117.
Na sequência das orientações gerais acerca da postura que os Esta-
dos-membros são convidados a adotar, o documento traz anexo um
rol de direitos a serem assegurados as minorias sexuais, tendo em
vista as vulnerabilidades do grupo em questão. Dentre esses direi-
tos, encontra-se o “direito à vida, à segurança e à proteção contra a
violência”, no âmbito do qual, o documento faz recomendações aos
Estados-membros quanto ao discurso de ódio118.
Mais importante do que listar os documentos acima é, contu-
do, analisar como a CEDH – o órgão judicial do Conselho da Europa
e o intérprete da Convenção Europeia por excelência – tem decidido,
na prática, o conflito entre a liberdade de expressão e o direito à não-
discriminação no continente europeu.

2 A CONVENÇÃO EUROPEIA DE DIREITOS


HUMANOS E A JURISPRUDÊNCIA DA CEDH
A Convenção Europeia assegura a liberdade de expressão em
seu art. 10, § 1º:

117
COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Recomendação CM/Rec(2010)5 do
Comitê de Ministros aos Estados-Membros sobre medidas para o combate à discrimi-
nação em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero, 2010.
118
“B. “Discursos de ódio”: 6. Os Estados-Membros devem adotar as medidas apropria-
das ao combate de todas as formas de expressão, nomeadamente na comunicação
social e na Internet, que possam ser razoavelmente entendidas como suscetíveis de in-
citar, difundir ou promover o ódio ou outras formas de discriminação contra as pessoas
lésbicas, gays, bissexuais e transgénero. Tais “discursos de ódio” devem ser proibidos
e publicamente condenados sempre que ocorram. Todas as medidas devem respeitar
o direito fundamental à liberdade de expressão, nos termos do Artigo 10.º da Con-
venção e da jurisprudência do Tribunal. 7. Os Estados-Membros devem sensibilizar as
autoridades e instituições públicas a todos os níveis para a sua responsabilidade de
se absterem de prestar declarações, em particular à comunicação social, que possam
ser razoavelmente interpretadas como legitimando esse ódio ou discriminação. 8. Os/
As funcionários/as públicos/as e outros/as representantes estatais devem ser enco-
rajados/as a promover a tolerância e o respeito pelos direitos humanos das pessoas
lésbicas, gays, bissexuais e transgénero sempre que dialoguem com representantes
chave da sociedade civil, incluindo a comunicação social, organizações desportivas, or-
ganizações políticas e comunidades religiosas”. Ibidem.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
239
Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este
direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de
receber ou de transmitir informações ou ideias sem que pos-
sa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem
considerações de fronteiras. O presente artigo não impede
que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de
cinematografia ou de televisão a um regime de autorização
prévia.

No entanto, o mesmo artigo reconhece que a liberdade de ex-


pressão – a manifestação externa de uma opinião, o forum externum –
não é um direito absoluto, porquanto o seu exercício está condicio-
nado a determinados deveres e responsabilidades, sobretudo com a
finalidade de proteger direitos de terceiros (art. 10, § 2º):

O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e


responsabilidades, pode ser submetido a certas formalida-
des, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que
constituam providências necessárias, numa sociedade de-
mocrática, para a segurança nacional, a integridade territo-
rial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção
do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da
honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação
de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade
e a imparcialidade do poder judicial.

Dentre esses “direitos de terceiros”, aqueles que mais fre-


quentemente colidem com a liberdade de expressão são a liberdade
de consciência religiosa, o direito à privacidade e o direito à não-
discriminação119. Assim, no caso da expressão de uma determinada
opinião difundir, incitar, promover ou justificar o ódio pautado na
intolerância, ela deverá ser objeto de uma sanção, respeitadas certas
119
O art. 14 da Convenção Europeia afirma a proibição de discriminação: “O gozo dos
direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem
quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões
políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a
riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação”.

240 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
formalidades e condições pré-estabelecidas que sejam proporcionais
ao fim por elas almejado120.
Além das restrições impostas pelo próprio art. 10 ao exercício
da liberdade de expressão, é importante considerar a regra geral do
art. 17, relativa à proibição do abuso de direito:

Nenhuma das disposições da presente Convenção se pode in-


terpretar no sentido de implicar para um Estado, grupo ou
indivíduo qualquer direito de se dedicar a atividade ou pra-
ticar atos em ordem à destruição dos direitos ou liberdades
reconhecidos na presente Convenção ou a maiores limitações
de tais direitos e liberdades do que as previstas na Convenção.

Deste modo, além dos casos em que a liberdade de expressão


deve ser limitada com base no §2º do art. 10, existem atos que sequer
encontram-se acobertados pela proteção do referido dispositivo, já
que constituem manifesto abuso de direito, nos termos do art. 17.
Em síntese, o discurso de ódio constitui a linha divisória entre
manifestações de opinião que devem ser toleradas em um ambiente
democrático e aquelas que não devem sê-lo, tanto por conformarem
evidente abuso de direito, quanto por não se mostrarem compatíveis
com direitos de terceiros – inclusive o direito à não-discriminação
pelo pertencimento a determinado grupo religioso, étnico, nacional,
político ou social121. A violação do direito à não-discriminação, da
mesma forma que a total supressão da liberdade de expressão, é
prejudicial ao regular funcionamento de uma sociedade plural e de-
mocrática. Conceitualmente, a Corte considera o discurso de ódio
como uma ação, e não uma mera opinião. Assim, o órgão judicial
não avalia a legalidade de uma opinião – já que, em uma democra-
120
Esse é o caso do discurso de ódio. Impende mencionar que, ao contrário do que se
pode imaginar a partir da expressão “discurso de ódio”, esse tipo de manifestação
prescinde de clara demonstração de ódio ou emoções violentas, abarcando também
“afirmações que, à primeira vista, podem parecer racionais”. (WEBER, Anne. Manual
on hate speech, Estrasburgo: Council of Europe, 2009. p. 5)
121
Ibidem, p. 2-3.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
241
cia, não é possível incriminar uma pessoa por possuir uma deter-
minada opinião –, mas a compatibilidade do discurso enquanto ato
com a democracia122.
A CEDH parte dessa lógica nos seus julgamentos, primeiro
buscando determinar se a manifestação sob análise está excluída
fora do âmbito de proteção da liberdade de proteção por constituir
abuso de direito (art. 17). Não sendo essa a situação, a CEDH consi-
dera se uma eventual restrição à liberdade de expressão é justificável
no caso concreto (art. 10, §2º).

2.1 A aplicação do art. 17 da Convenção Europeia


Por tratar-se de uma cláusula geral, o art. 17 aplica-se a todos
os direitos arrolados na Convenção Europeia, assegurando os valo-
res democráticos que deram origem ao documento123. O dispositivo
funciona como uma espécie de garantia de que a Convenção não
protegerá quaisquer condutas que, abusando de um dos direitos ali
consagrados, visem à ruína de outros direitos e liberdades assegura-
dos pelo mesmo instrumento124.
No que respeita ao abuso da liberdade de expressão, o art.
17 tem sido aplicado para classificar como “abuso de direito” – e,
125

assim, discurso de ódio – as seguintes condutas:


122
TULKENS, Françoise. When to say is to do: Freedom of expression and hate speech in
the case-law of the European Court of Human Rights. In: CEDH – EUROPEAN JUDICIAL
TRAINING NETWORK, Seminar on Human Rights for European Judicial Trainers, Estras-
burgo, 2012, p. 3. Disponível em: <http://www.ejtn.net/Documents/About%20EJTN/
Independent%20Seminars/TULKENS_Francoise_Presentation_When_to_Say_is_To_
Do_Freedom_of_Expression_and_Hate_Speech_in_the_Case_Law_of_the_ECtHR_
October_2012.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2013.
123
“Enfin, la Cour rappelle qu’il ne fait aucun doute que tout propos dirigé contre les va-
leurs qui sous-tendent la Convention se verrait soustrait par l’article 17 à la protection
de l’article 10”. Cf. CEDH. Case of Seurot v. France (57383/00), Estrasburgo, 2004. Dispo-
nível: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-45005>. Acesso
em: 8 fev 2013.
124
TULKENS, Françoise. op. cit., p. 4.
125
O art. 17 da Convenção Europeia permite aos Estados-membros que ajam contra ações
liberticidas. Já existem discussões, no entanto, afirmando que os Estados não possuem

242 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
a) Manifestação de doutrinas totalitárias: por razões
históricas, tanto a Comissão quanto a Corte Europeia de
Direitos Humanos126 consideraram que a defesa do tota-
litarismo – tanto em sua versão socialista, quanto capi-
talista – ia de encontro aos valores democráticos da Con-
venção Europeia, porquanto resultam na supressão ou ao
menos em considerável restrição das liberdades civis127.
b) Manifestações negacionistas: posicionamentos revi-
sionistas ou negacionistas em relação ao Holocausto ou
outros acontecimentos históricos envolvendo crimes de
guerra, genocídio e crimes contra a humanidade também
não estão protegidos pelo art. 10. Segundo a Comissão
Europeia de Direitos Humanos, esse tipo de posiciona-

a faculdade de barrar essas ações, mas o dever de fazê-lo, inclusive de forma preven-
tiva. Por outro lado, há quem considere o art. 17 um dispositivo problemático, pois
sumariamente priva condutas – à primeira vista protegidas pela Convenção Europeia
– de proteção, ao contrário do §2º do art. 10 que conta com um mecanismo refinado
para auferir a convencionalidade das intervenções estatais em prejuízo da liberdade de
expressão. Ibidem, p. 4-5.
126
À época dos julgamentos sobre liberdade de expressão e defesa do totalitarismo, a
Comissão Europeia ainda existia, intermediando o acesso de indivíduos à CEDH. Com a
entrada em vigor do Protocolo 11 à Convenção, em 1º de novembro de 1998, a Comis-
são foi extinta, tendo o indivíduo, acesso direto à Corte. Cf. Protocol No. 11 to the Con-
vention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms, Estrasburgo,
1994. Disponível em: <http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/155.htm>.
Acesso em: 8 fev 2013.
127
“The Commission also refers to Article 17 of the Convention which provides that noth-
ing in the Convention shall be interpreted as implying for any group or person any right
to engage in any activity aimed at the destruction or limitation of the Convention rights
[…]. The Commission notes that National Socialism is a totalitarian doctrine incompati-
ble with democracy and human rights and that its adherents undoubtedly pursue aims
of the kind referred to in Article 17”. Cf. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS.
Case of B.H., M.W., H.P. and G.K. v. Austria (12774/87), Estrasburgo, 1989. Disponível
em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-1039>. Acesso em:
8 fev 2013. Cf. CEDH. Case of Schimanek. v. Austria (32307/96), Estrasburgo, 2000. Di-
sponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-24075>.
acesso em: 8 fev 2013; “the pursuit of such ultimate objectives on the apolicants’ own
admission, implies transition through the stages advocated by fundamental Communist
doctrine, the essential stage being dictatorship of the proletariat; whereas recourse to
a dictatorship for the establishment of a régime is incompatible with the Convention”.
Cf. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Communist Party (KPD) v.
the Federal Republic of Germany (250/57), Estrasburgo, 1957.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
243
mento contraria valores da Convenção, como a justiça e
a paz, além de estimular a discriminação religiosa e ra-
cial128.
c) Declarações evidentemente racistas e odiosas: pes-
soas que se utilizam de expressões e ideologias claramen-
te racistas – ou mesmo particularmente insultantes para
o grupo social visado – não podem invocar a proteção do
art. 10, também caracterizando o abuso de direito do art.
17129, porquanto violam outros direitos arrolados na Con-
venção Europeia.

128
Cf. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case Marais v. France (31159/96),
Estrasburgo, 1996. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.
aspx?i=001-2362>. Acesso em: 9 fev 2013; Cf. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HU-
MANOS. Case of Honsik v. Austria (25062/94), Estrasburgo, 1995. Em decisões mais
recentes, a Corte chegou a afirmar que “há determinada categoria de fatos históricos
– como o Holocausto – cuja negação ou revisão seria removida do campo de prote-
ção do art. 10 pelo art. 17” e que “negar a prática de crimes contra a humanidade é
uma das formas mais sérias de difamação racial dos judeus e um incitamento ao ódio
contra eles” (traduções não oficiais). Cf. CEDH. Case of Garaudy v. France (65831/01),
Estrasburgo, 2003. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.
aspx?i=001-23829>. Acesso em: 9 fev 2013.
129
A título de exemplo, pode-se mencionar a análise de admissibilidade no caso Glimmer-
veen and Hagenbeek v. the Netherlands, o qual envolveu a distribuição de panfletos
destinados “aos holandeses brancos”, enfatizando a necessidade de expulsar da Holan-
da, estrangeiros “indesejados”, como os nacionais do Suriname e turcos, tidos por “não
-brancos”. Cf. COMISSÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Case of Glimmerveen and
Hagenbeek v. the Netherlands (8348/78), Estrasburgo, 1979. Em outro caso, Jersild v.
Denmark, julgado em 1994, a Corte destaca o caráter ofensivo de algumas expressões
racistas – “eles [os negros] não são seres humanos, são animais”, “olhe a foto de um
gorila e olhe para a foto de um negro, é a mesma estrutura corporal e tudo mais”,
“eles estão aqui [os imigrantes] em razão das drogas”, “nós não gostamos quando eles
andam com suas roupas “africanas” e falam a sua língua hula-hula na rua” (tradução
não-oficial) – afirmando que elas sequer encontram-se no âmbito de proteção do art.
10. Cf. CEDH. Case of Jersild v. Denmark (15890/89), Estrasburgo, 1994, disponível em:
<http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57891>, acesso em 10
fev 2013. No contexto do aumento da intolerância contra populações muçulmanas, a
CEDH considerou a colocação de um pôster – em uma residência privada, do autor da
iniciativa – com as Torres Gêmeas em chamas, o símbolo do Islamismo com um sinal de
“proibido” e os dizeres “Islã fora do Reino Unido – Proteja a população britânica”, como
constituindo discurso de ódio, um ataque aos muçulmanos que vivem no Reino Unido,
porquanto os vinculou a um ato de terrorismo. Assim, considerou que o referido ato
era caso de aplicação do art. 17. Cf. CEDH. Norwood v. The United Kingdom (23131/03),
Estrasburgo, 2004. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.
aspx?i=001-67632>. Acesso em: 10 fev. 2013.

244 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
2.2 A aplicação do § 2º do art. 10 da Convenção
Europeia
O § 2º do art. 10 prevê as hipóteses em que a expressão de
uma opinião, ainda que se encontre no âmbito de proteção do art.
10, § 1º, pode legitimamente ser objeto de intervenção estatal com
a finalidade de restringi-la. Considerando os requisitos menciona-
dos no dispositivo em análise, a Comissão e a CEDH respondem às
seguintes perguntas130, para identificar – ou não – a legitimidade de
uma determinada restrição ao art. 10:
(a) A interferência está prevista em lei no momento da ma-
nifestação da opinião? Em síntese, a interferência na li-
berdade de expressão deverá ser prevista em lei de forma
clara e objetiva, sendo possível a qualquer pessoa prever
a consequência – ainda que não exata – da externalização
da sua opinião.
(b) A interferência é justificada com base em um objetivo le-
gítimo? Com base no art. 10, §2º, constituem objetivos
legítimos para a restrição da liberdade de expressão: (i)
interesse público (segurança nacional ou pública, in-
tegridade territorial, proteção da ordem, saúde e morali-
dade públicas); (ii) proteção de direitos de terceiros
(proteção da reputação ou de direitos de terceiros131, im-
pedir a revelação de informações confidenciais); e (iii)
manutenção da autoridade e imparcialidade do ju-
diciário.

130
WEBER, Anne. op. cit., p. 30-32. Cf. também TULKENS, Françoise. op. cit., p. 7.
131
Dentre os “direitos de terceiros” as quais alude o art. 10, §2º, deve-se mencionar as
crenças religiosas, pois a CEDH já afirmou que os Estados podem adotar medidas para
limitar a liberdade de expressão nos casos em que manifestações contrárias a uma
determinada crença religiosa forem efetivamente ofensivas. Como o potencial lesivo
de uma manifestação dessa ordem varia amplamente a depender do contexto cultural
em que acontece, a CEDH opta por conceder maior margem de apreciação aos Estados
nesses casos, julgando que as autoridades locais têm maior conhecimento da realidade
interna. Ibidem, p. 49.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
245
(c) A interferência é necessária em uma sociedade democrá-
tica? Essa é a questão mais aberta e subjetiva, ensejando
detida análise casuística. Em linhas gerais, a CEDH veri-
fica se os motivos alegados pelas autoridades nacionais
para a interferência são relevantes, suficientes e propor-
cionais, havendo uma necessidade social a favor da inter-
venção do Estado. Levando em conta as diferenças locais
– as quais se refletem em uma necessidade social maior
ou menor a favor da interferência estatal – a Corte conce-
de margem de apreciação132 mais ampla na avaliação da
“necessidade social” que justifica a intervenção.

Tendo em vista o caráter subjetivo da análise mencionada no


item “c”, a CEDH desenvolveu parâmetros para avaliar determina-
das manifestações de opinião como “discurso de ódio”, assinalan-
do a necessidade de intervenção estatal133. Todos os parâmetros são
considerados em conjunto, sendo a intenção do autor, o que tem
maior peso nas considerações da Corte134.

132
A margem de apreciação é um conceito desenvolvido pela CEDH, implicando a “sub-
sidiariedade da jurisdição internacional”. Em síntese, a Corte analisa a conformidade
do arbitramento realizado no plano interno do Estado envolvido com o plano euro-
peu. Não havendo consenso no plano europeu, a Corte geralmente não se pronuncia e
concede margem de apreciação ao Estado parte no processo, deixando de reconhecer
uma eventual violação de direitos de grupos minoritários. O fundamento seria a maior
legitimidade e conhecimento das sociedades locais para decidir questões polêmicas
ainda não solucionadas no plano europeu. Cf. CARVALHO RAMOS, André. Teoria Geral
dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 110-
111. Nos casos envolvendo liberdade de expressão e discurso de ódio, a CEDH concede
margem de apreciação menor quando há incitação ao ódio ou à violência, e margem
de apreciação menor quando se trata de ofensa a convicções pessoais relativas à moral
ou à religião. Cf. WEBER, Anne. op. cit., p. 32.
133
Tulkens assinala, no desenvolvimento recente da jurisprudência da CEDH em matéria
de liberdade de expressão e discurso de ódio, três fases distintas: (i) a partir dos anos
2000, o surgimento de casos contra a Turquia tratando da “glorificação da violência”
atribuída ao PKK – Partido dos Trabalhadores do Curdistão, considerado como uma
organização terrorista por alguns Estados; (ii) a partir de 2008, julgamentos abordando
o discurso racista e a propaganda odiosa; e (iii) em 2012, a emergência de uma nova di-
mensão da proteção contra o discurso de ódio: a interferência estatal contra discursos
homofóbicos. Cf. TULKENS, Françoise. op. cit., p. 8.
134
Ibidem.

246 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
(I) Intenção do autor: aqui a CEDH identifica se o objetivo
do autor da opinião manifestada era a disseminação de
ideias discriminatórias, sobretudo racistas, ou se ele esta-
va apenas tentando trazer para a esfera pública, informa-
ções de interesse público. No caso Jersild v. Dinamarca135,
por exemplo, a Corte considerou que o jornalista respon-
sável pela difusão de manifestações racistas e xenófobas
na mídia não compartilhava dessas opiniões, desejando
apenas trazer para a esfera pública, a notícia de que exis-
tem grupos de jovens promovendo atos de intolerância.
Por outro lado, no caso Halis Doğan v. Turquia, a CEDH
considerou que os artigos publicados em jornal confor-
mam incitação à violência136.
(II) Conteúdo da manifestação: a depender do conteúdo
da manifestação, a CEDH considera maior ou menor o
grau de justificação da intervenção estatal. Nos casos que
envolvam discursos políticos ou de interesse públi-
135
Cf. CEDH. Case of Jersild v. Denmark (15890/89). Op. cit. No caso Gündüz v. Turquia, a
Corte considerou que o líder da comunidade islâmica Tarikat Aczmendi, Müslüm Gün-
düz, não incorreu em discurso de ódio quando manifestou suas opiniões polêmicas
em um programa de televisão. Considerando o contexto, o programa contrabalance-
ava dois pontos de vista, com a intenção de trazer a público, informações de interes-
se geral da sociedade turca. Ademais, algumas das colocações do Sr. Gündüz foram
excessivamente provocativas porque proferidas oralmente, sem chance de reformula-
ção. Assim, a Corte entendeu que, muito embora tenha se colocado veementemente
contra a democracia e o secularismo – além das pessoas que se mostrem favoráveis
a ambos – e de promover a Sharia, o Sr. Gündüz não incitou à violência para fazê-lo.
Tendo opositores à sua opinião se pronunciando no mesmo contexto, os danos cau-
sados pelo discurso seriam mínimos. Cf. CEDH. Case of Gündüz v. Turkey (35071/97),
Estrasburgo, 2003. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.
aspx?i=001-61522>. Acesso em: 12 fev. 2013.
136
O responsável pela publicação dos artigos defendeu que era seu dever informar o pú-
blico e o Estado acerca do movimento nacionalista curdo. No entanto, a Corte consi-
derou que expressões como “a nossa verdadeira garantia é a vontade de nosso povo,
que está pronto para qualquer tipo de sacrifício, quebrar os grilhões da escravidão do
século 21 para a absoluta liberdade”, “é hora de mobilização nacional” e “hoje é um dia
além do dia da honra”, eram susceptíveis de incentivar a violência no Sudeste da Tur-
quia, já que os artigos afirmam ideias do PKK e aludem ao uso de força armada contra o
Estado turco. Cf. CEDH. Case of Halis Doğan v. Turkey (4119/02), Estrasburgo, 2006. Dis-
ponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-77351>.
Acesso em: 12 fev. 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
247
co, a CEDH está menos inclinada a reconhecer a necessi-
dade da intervenção estatal, porquanto a liberdade de ex-
pressão é essencial em uma sociedade democrática, para
viabilizar o livre debate político. No entanto, há situações
em que a intervenção se mostra necessária, mesmo em
face de discursos políticos137. Já nos casos de discursos
de natureza religiosa, a CEDH costuma conceder uma
margem de apreciação mais ampla aos Estados-membros
para que avaliem, com base no maior conhecimento que
detêm acerca da realidade local, a necessidade de uma
intervenção do Estado. A regra geral é, contudo, a “obri-
gação daqueles que manifestam opinião religiosa de evi-
tar o uso de expressões que seja gratuitamente ofensiva
para outros e, com isso, uma violação dos direitos dessas
pessoas, não contribuindo para qualquer forma de deba-

137
No caso Erbakan v. Turquia, a CEDH afirmou que o discurso político tem maior prote-
ção da liberdade de expressão. Contudo, a Corte também ressaltou que a tolerância
e o respeito pela igualdade de todos os seres humanos constituem a base de uma
sociedade democrática e pluralista e que, no caso, os comentários atribuídos ao Sr.
Erbakan revelam uma visão da sociedade organizada exclusivamente em torno de va-
lores religiosos. Essa visão parece difícil de conciliar com o pluralismo que caracteriza
as sociedades contemporâneas e democráticas. Usando terminologia religiosa, o Sr. Er-
bakan teria diminuído bastante a diversidade inerente a qualquer sociedade, com uma
simples divisão entre “crentes” e “descrentes”. Seu discurso, proferido na cidade turca
de Bingöl – cujos habitantes haviam sido vítimas de atos terroristas perpetrados por
uma organização fundamentalista – teria potencial para incitar ao ódio contra minorias
religiosas (cristãos, ateus e até aqueles que, apesar de muçulmanos, eram favoráveis
ao secularismo). A CEDH considerou, portanto, que os políticos devem evitar manifes-
tações que promovam a intolerância. Cf. CEDH. Case of Erbakan v. Turkey (59405/00),
Estrasburgo, 2006, parágrafos 55-71. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/
eng/pages/search.aspx?i=001-76232>. Acesso em: 20 fev. 2013. Mais recentemente,
no caso Balsytė-Lideikienė v. Lituânia, a CEDH ressaltou o caráter político do calendário
publicado pela requerente. Contudo, considerou que certas expressões empregadas
no material (“a nação lituana só irá sobreviver sendo uma nação nacionalista”, “a ocu-
pação soviética, com a ajuda de muitos [...] judeus [...] empreenderam o genocídio e a
colonização da nação lituana”, “os poloneses, em época de guerra, realizaram limpeza
étnica”, dentre outras) eram dotadas de nacionalismo agressivo e etnocentrismo, além
de incitarem potencialmente ao ódio contra judeus e poloneses. No fim, acabou se po-
sicionando pela convencionalidade da intervenção do governo lituano que resultou no
confisco dos calendários publicados. Cf. CEDH. Case of Balsytė-Lideikienė v. Lithuania
(72596/01), Estrasburgo, 2008, parágrafos 78-80. disponível em: <http://hudoc.echr.
coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-89307>. Acesso em: 08 mar. 2013.

248 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
te público”138. Manifestações que contrariem crenças re-
ligiosas, por outro lado, podem até chocar, pois “eles [os
seguidores da crença atacada] precisam tolerar e aceitar
a negação, por outros, de suas crenças religiosas e mesmo
a propagação de doutrinas hostis à sua fé”139. No entan-
to, da mesma forma que as outras expressões de opinião,
não devem: ser gratuitamente ofensivas, direcionar-se a
fiéis específicos, constituir insulto aos fiéis ou a símbolos
sagrados, atacar o direito de expressar e praticar a reli-
gião, denegrir a sua imagem ou incitar ao desrespeito,
violência e ódio140. Outra questão relativa ao conteúdo da
manifestação levantada pela Corte é a distinção entre
afirmações verdadeiras e juízo pautado em valores.
Segundo ela, manifestações verídicas (tanto as axiologi-
camente neutras, quanto aquelas que não o sejam) em
geral não devem resultar em intervenção estatal141. Caso

138
“[O]bligation to avoid as far as possible expressions that are gratuitously offensive to
others and thus an infringement of their rights, and which therefore do not contribute
to any form of public debate”. Essa obrigação decorre dos “deveres” e “responsabili-
dades” aos quais o art. 10, §2º da Convenção Europeia faz alusão. Cf. CEDH. Case of
Gündüz v. Turkey (35071/97). Op. cit., parágrafo 37; Cf. CEDH. Case of Erbakan v. Turkey
(59405/00). Op. cit., parágrafo 55.
139
Cf. CEDH. Case of Otto-Preminger-Institut v. Austria (13470/87), Estrasburgo, 1994,
parágrafo 47. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.as-
px?i=001-57897>. Acesso em: 28 fev. 2013. No caso, a CEDH destacou que a medida
tomada pelo Estado austríaco de apreender e retirar de circulação o filme Das Lie-
beskonzil de Werner Schroeter tinha um objetivo legítimo, qual seja, a proteção de
direito de terceiros – no caso, do sentimento religioso. Ainda que tenha destacado a
necessidade de tolerância face às críticas direcionadas a crenças religiosas em geral, a
Corte considerou que a forma provocativa como Deus, a Virgem Maria e Jesus foram
retratados no filme poderia ser interpretada como uma ofensa pela maioria da popula-
ção do Tirol. Assim, concluiu que as autoridades austríacas, tendo maior conhecimento
sobre a realidade local e o potencial ofensivo do filme, não excederam a sua margem
de apreciação, quando intervieram determinando a apreensão e a retirada de circula-
ção do material.
140
WEBER, Anne. Op. cit., p. 52.
141
No caso Incal v. Turquia, a CEDH decidiu favoravelmente ao Sr. Incal, considerando que
a sua condenação pela distribuição de panfletos criticando duramente o governo não
era justificável, pois o material distribuído se reportava a eventos – medidas contra
comerciantes irregulares de rua e de moluscos – que de fato haviam ocorrido e que
eram do interesse dos habitantes de Izmir. Tratando da intenção do Sr. Incal (parâmetro

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
249
contrário, a intervenção será considerada necessária. No
precedente Lehideux e Isorni v. França, a CEDH faz, inclu-
sive, a diferenciação entre “fatos históricos tidos como
certos” e “questões ainda discutidas por historiadores”,
sendo que qualquer manifestação tendente a questionar
ocorrências, as quais possam ser enquadradas na primei-
ra categoria, sequer encontra-se no âmbito de proteção
do art. 10 da Convenção142.
(III) Contexto da manifestação: a CEDH identifica como
fatores que influenciam no contexto da manifestação,
(i) o papel do autor da manifestação na sociedade;
(ii) o status social das pessoas visadas pelo discur-
so; (iii) a disseminação e o impacto da manifesta-
ção; e (iv) a natureza e a seriedade da intervenção
estatal.
Em relação a (i), a CEDH já se manifestou quanto a (aa) po-
líticos – como já mencionado na análise sobre discursos de conteúdo
político, a Corte garante maior proteção a manifestações de políticos,
tendo em vista a importância do debate político em sociedades de-
mocráticas. Contudo, reconhece que os políticos devem evitar dis-
cursos que alimentem a intolerância e o preconceito143, porquanto

discutido no item “I” acima), a Corte considerou não haver evidências para afirmar
que o seu intento ia além de relatar as ocorrências e clamar por uma mobilização po-
lítica dos interessados (o Sr. Incal menciona a organização de “comitês de bairro”), in-
citando ao ódio e à violência. Cf. Case of Incal v. Turkey (22678/93), Estrasburgo, 1998,
parágrafos 50-51. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.
aspx?i=001-58197>. Acesso em 20 fev. 2013.
142
CEDH. Case of Lehideux and Isorni v. France (24662/94), Estrasburgo, 1998, pará-
grafo 47. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.as-
px?i=001-58245>. Acesso em: 20 fev. 2013. Um exemplo de fato histórico tido como
certo é o Holocausto. Cf. CEDH. Case of Garaudy v. France (65831/01). Op. cit.
143
Cf. CEDH. Case of Incal v. Turkey (22678/93). Op. cit., parágrafo 46; CEDH. Case of Er-
bakan v. Turkey (59405/00). Op. cit., parágrafo 64. Em Féret v. Bélgica, o requerente,
membro do parlamento e presidente de um partido de extrema direita, foi condenado
a cumprir 250 horas de serviço comunitário e proibido de lançar candidatura por dez
anos, em virtude de incitação à discriminação e ao ódio racial por meio da publicação
de folhetos em período eleitoral. A Corte considerou que a interferência do Estado
belga não representou violação ao art. 10 da Convenção Europeia, assinalando, pela

250 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
também têm responsabilidade na luta pela tolerância144; (bb) jorna-
listas – a Corte distingue entre aquele que se manifestou e o respon-
sável pela disseminação da manifestação. Os jornalistas encontram-
se, na maioria das vezes, no segundo grupo, vez que suas atividades
profissionais consistem justamente na difusão de informações de
interesse público por meio da mídia. Assim, a CEDH considera que
os jornalistas não podem ser considerados responsáveis pelo discur-
so de ódio de terceiros que porventura venham a tornar público, se
ficar claro que não compartilham da opinião constatada no discurso
e não tiverem meios para controlar minimamente o seu conteúdo145.
Não obstante, o jornalista deve ser responsabilizado pela incitação
ao ódio, violência e intolerância que não tiver o seu potencial nocivo
minimizado na revisão editorial, quando possível146; e (cc) funcioná-
rios públicos – os Estados-membros, por disciplinarem o regime do
funcionalismo público no seu território, detêm maior margem de
apreciação para regular a liberdade de expressão de seus funcioná-
rios147. No caso Seurot v. França, a Corte reconheceu as responsabilida-
des especiais de professores, como figuras de autoridade para os seus

primeira vez, a convencionalidade da limitação da liberdade de expressão de um parla-


mentar fora do parlamento. No caso, a CEDH deu importância ao fato de o material ter
sido distribuído em período eleitoral, o que aumentou o potencial lesivo da manifesta-
ção odiosa, tendo em vista o número de destinatários do discurso e o embate de inte-
resses entre grupos étnicos e sociais no contexto eleitoral. Havia, assim, a necessidade
de se empreender medidas para salvaguardar os direitos da comunidade imigrantes no
país. Cf. CEDH. Case of Féret v. Belgium (15615/07), Estrasburgo, 2009. Disponível em:
<http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-93626>. Acesso em: 08
mar. 2013.
144
WEBER, Anne. Op. cit., p. 37.
145
CEDH. Case of Jersild v. Denmark (15890/89). Op. cit., parágrafos 31-35.
146
A CEDH considerou o sr. Sürek responsável pela publicação de duas cartas de leitores
em um periódico semanal que pertencia à empresa de que era sócio majoritário. As
cartas em questão incitavam a população curda à violência e ao ódio contra a popula-
ção turca em geral, alimentando movimentos separatistas. Na condição de dono, o sr.
Sürek deveria, no entender da Corte, moldar a direção editorial do periódico. Cf. Case
of Sürek v. Turkey (26682/95), Estrasburgo, 1999, parágrafos 10-11, 63, 65. Disponível
em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-58279>. Acesso
em 20 fev. 2013. Situação similar: CEDH. Case of Halis Doğan v. Turkey (4119/02). Op.
cit., parágrafos 36-37.
147
WEBER, Anne. op. cit., p. 38. Cf. CEDH. Case of Seurot v. France (57383/00). Op. cit.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
251
alunos, no combate à intolerância e promoção de valores democráti-
cos por meio da educação.
Quanto a (ii), a CEDH já se pronunciou no sentido de que
políticos devem suportar críticas mais intensas do que indivíduos
comuns148, devido à função pública que desempenham. Segundo a
Corte, essa regra vale especialmente para políticos que compõem o
governo, tendo em vista que regimes democráticos envolvem o cri-
vo constante das ações tomadas pelo Estado. Funcionários públicos,
também em virtude das atividades que desempenham, devem ser
mais tolerantes a discursos críticos, porém não tanto quanto os polí-
ticos149. Outro aspecto relevante é o comportamento prévio da pessoa
148
No caso Lingens v. Áustria, a Corte entendeu a condenação do Sr. Lingens pela publica-
ção de dois artigos com críticas duras ao Sr. Kreisky – presidente do Partido Socialista da
Áustria – como uma violação ao art. 10 da Convenção Europeia. Os artigos, publicados
em um periódico em Viena, atacavam a conduta do Sr. Kreisky de apoiar publicamente
o Sr. Peter, presidente do Partido Liberal da Áustria e ex-combatente das forças nazis-
tas, utilizando-se de adjetivos como “imoral”, “indigno” e “vil oportunismo”. No entan-
to, a Corte afirmou que “o limite de crítica aceitável é consideravelmente maior para
casos envolvendo políticos em comparação com casos envolvendo pessoas comuns”,
já que os políticos estão conscientemente abertos “ao escrutínio minucioso de cada
uma de suas palavras e ações por jornalistas e pelo público em geral” (tradução livre).
Cf. CEDH. Case of Lingens v. Austria (9815/82), Estrasburgo, 1986, parágrafo 42. Dis-
ponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57523>,
acesso em 25.02.2013. Cf. também: CEDH. Case of Vereinigung Bildender Künstler
v. Austria (68354/01), Estrasburgo, 2007, parágrafo 34. Disponível em: <http://hudoc.
echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-79213>. Acesso em: 26 fev. 2013 So-
bre a necessidade de maior tolerância à crítica dirigida ao governo, Cf. CEDH. Case
of Castells v. Spain (11798/85), Estrasburgo, 1992, parágrafos 45-46. Disponível em:
<http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57772>. Acesso em:
25 fev. 2013. Cf. também: CEDH. Case of Karataş v. Turkey (23168/94), Estrasburgo,
1999, parágrafo 50, disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.
aspx?i=001-58274>. Acesso em: 26 fev. 2013.
149
“[É] verdade que funcionários públicos, realizando suas atividades profissionais, estão,
como políticos, sujeitos a limites mais amplos para aceitar críticas [...] No entanto, não
se pode dizer que funcionários públicos conscientemente colocam-se à disposição de
um escrutínio minucioso de cada uma de suas palavras e ações na mesma medida
que os políticos o fazem” [...] “assim, muito embora o chefe superintendente estivesse
submetido a limites mais amplos de aceitação de críticas que um individuo comum,
sendo um funcionário público, um policial experiente e líder da equipe da polícia que
conduziu uma investigação criminal reconhecidamente controversa, não poderia ser
tratado da mesma forma que políticos, no que respeita ao debate público acerca de
suas ações” (tradução livre). CEDH. Case of Pedersen and Baadsgaard v. Denmark
(49017/99), Estrasburgo, 2004, parágrafo 80. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.
int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-67818>. Acesso em 25 fev. 2013.

252 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
visada pelo discurso, já que algumas condutas podem justificar uma
reação mais intensa do que o usualmente aceitável150.
No que toca a (iii), a Corte decidiu que a disseminação do
discurso e o seu impacto (aa) na mídia impressa merecem especial
proteção, pois a o papel da mídia é justamente o de informar o pú-
blico em geral acerca de matérias do seu interesse, sendo, portanto,
essencial às sociedades democráticas. Não só a mídia tem esse dever
de informar, como as pessoas têm o direito de serem informadas, à
exceção de dados que coloquem em risco a segurança nacional, a in-
tegridade territorial, a ordem pública ou a prevenção de crimes151. Da
mesma forma que a mídia impressa, a (bb) mídia audiovisual tem vi-
tal importância para as sociedades democráticas, contribuindo para
a divulgação de informações de interesse público. Contudo, o poten-
cial lesivo das transmissões audiovisuais é consideravelmente maior,
tendo em vista a propagação de imagens. Assim, fazendo a análise
do potencial de impacto do discurso via mídia audiovisual, a CEDH
considera o tipo de programa em que a transmissão ocorreu, seus
prováveis telespectadores e a forma por meio da qual o programa
foi conduzido152. Por outro lado, leva em conta a impossibilidade de

150
No caso Nilsen e Johnsen v. Noruega, a Corte deparou-se com a resposta de represen-
tantes da polícia a trabalhos publicados sobre violência policial na cidade de Bergen por
um professor universitário. Os requerentes afirmaram que os trabalhos em questão
constituíam uma farsa, estavam repletos de mentiras, inclusive fabricando alegações
de brutalidade de polícia. Além disso, diziam que a motivação do seu autor era indigna,
maliciosa e desonesta. Em sua análise, a Corte deu ênfase na conduta do autor dos tra-
balhos em questão, entendo que ele fez duras críticas aos métodos e ética da polícia de
Bergen e que, portanto, a reação dos requerentes – que atuavam como representante
da instituição policial – foi, em geral, aceitável. Cf. CEDH. Case of Nilsen and Johnsen v.
Norway (23118/93), Estrasburgo, 1999, parágrafos 45-53. Disponível em: <http://hu-
doc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-58364>. Acesso em: 25 fev. 2013.
151
Muito embora tenha decidido que a intervenção do poder judiciário turco não violou
o art. 10 da Convenção Europeia, a CEDH afirmou que “à imprensa incumbe transmitir
informações e ideias sobre questões políticas, inclusive as que constituírem polêmica”.
Cf. CEDH. Case of Halis Doğan v. Turkey (4119/02). Op. cit., parágrafo 32.
152
No caso Jersild v. Dinamarca, a CEDH considerou relevante o fato de as manifestações
terem sido transmitidas em um programa de notícias para um público bem informado
e de o apresentador não comungar das opiniões expressadas, o que era possível con-
cluir a partir da forma como conduziu o programa. Cf. CEDH. Case of Jersild v. Denmark
(15890/89). Op. cit. Consideração semelhante sobre a estrutura do programa fez a

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
253
o autor do discurso reformular suas colocações no caso de o progra-
ma ser transmitido ao vivo153. Já nos casos envolvendo (cc) expressões
artísticas, a Corte considera que o potencial lesivo de manifestações
é usualmente menor, porque o acesso a elas não é do interesse de
todos, como no caso de poemas, por exemplo154. As sátiras, por sua
própria natureza provocativa, só podem implicar interferência estatal
após análise criteriosa, para que o direito à liberdade de expressão do
autor não seja ilegalmente restringida155. Também importante para
avaliar o potencial de impacto da manifestação é (dd) o lugar de sua
disseminação: “uma situação particular de uma determinada região
e o lugar onde os comentários foram feitos ou disseminados”156. A
título de exemplo, pode-se mencionar as diversas menções da Corte
à conjuntura na Turquia de combate ao terrorismo157 – concedendo
maior margem de apreciação ao país para realizar interferências na
liberdade de expressão – e a avaliação do alto potencial dessa disse-
minação quando realizada no âmbito da escola158.

Corte no caso Gündüz v. Turquia, quando entendeu que as afirmações do requerente


foram contrabalanceadas pelo posicionamento de outras pessoas que integravam um
debate televisionado. Cf. CEDH. Case of Gündüz v. Turkey (35071/97). Op. cit.
153
Ibidem, parágrafo 49.
154
No caso Karataş v. Turquia, o requerente – de origem étnica curda – publicou uma anto-
logia poética criticando o governo turco, inclusive com “passagens agressivas” e pode-
riam ser interpretadas como “incitando os leitores ao ódio e uso da violência. Contudo,
“o meio utilizado pelo requerente foi a poesia, uma forma de expressão artística que
atinge apenas uma minoria de leitores” (tradução não-oficial). CEDH. Case of Karataş v.
Turkey (23168/94). Op. cit., parágrafo 49.
155
No caso da Associação dos Artistas Austríacos v. Áustria, a Corte entendeu que a pin-
tura do Sr. Mühl retratando, dentre outras figuras públicas da Áustria, o Sr. Meischber-
ger – na época, membro da Assembleia Nacional –, em meio a atos sexuais, consistia
claramente em uma sátira. Como tal, não visava à reprodução da realidade, mas ape-
nas a uma representação exagerada com a finalidade de provocar e agitar. CEDH. Case
of Vereinigung Bildender Künstler v. Austria (68354/01). Op. cit., parágrafo 33.
156
WEBER, Anne. op. cit., p. 43.
157
CEDH. Case of Halis Doğan v. Turkey (4119/02). Op. cit.,
158
“En tout état de cause, à supposer que ce dernier ait réellement eu la volonté de rédi-
ger un texte « humoristique » non destiné à la publication, tant son statut d’enseignant,
au demeurant en histoire, que le risque avéré de diffusion du texte au sein de l’établis-
sement scolaire auraient dû l’inciter à faire preuve de prudence et de discernement”.
Cf. CEDH. Case of Seurot v. France (57383/00). Op. cit.; No caso Vejdeland e outros
v. Suécia – o qual será analisado com maior detalhamento na seção seguinte – um

254 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Já o critério (iv) – a natureza e seriedade da intervenção es-
tatal – é visto, em geral, como secundário159, ainda que em alguns
casos tenha sido determinante. A cumulação de medidas interventi-
vas pode representar um excesso, sendo a postura do Estado consi-
derada desproporcional face ao objetivo visado pelas intervenções160.
O mesmo vale para penas tidas como gravosas, sobretudo a privativa
de liberdade161, e para medidas preventivas que inviabilizam o pró-
prio exercício da liberdade de expressão (anteriores a qualquer ma-
nifestação)162. Até mesmo a pena de multa pode ser desproporcio-
nal ao objetivo visado pela intervenção, quando, na prática, impedir
o exercício da liberdade de expressão163. Nos casos em que houver
meios alternativos menos gravosos de interferência na liberdade de
expressão, a CEDH também já concluiu pela desproporcionalidade

dos aspectos mais relevantes para a decisão da Corte no sentido de que a interferên-
cia estatal era justificável foi o lugar da disseminação das manifestações homofóbicas:
uma escola. A opinião concorrente do Juiz Boštjan M. Zupančič assinala que as escolas
encontram-se mais protegidas, não sendo um espaço público, de modo que a dissemi-
nação de informações de qualquer natureza, promovida por um intruso, requer a apro-
vação das autoridades da instituição de ensino. O juiz afirma, ainda, que se as mesmas
palavras fossem publicadas em um jornal, por exemplo, elas provavelmente não resul-
tariam em uma persecução penal. Cf. CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden
(1813/07), Estrasburgo, 2012, parágrafos 9 e 12. Disponível em: <http://hudoc.echr.
coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-109046>. Acesso em: 26 fev. 2013.
159
No caso Gündüz v. Turquia, a Corte afirmou que a proporcionalidade da condenação
a pena privativa de liberdade de dois anos não precisava ser analisada, pois já restava
evidente que a interferência na liberdade de expressão do requerente não tinha justifi-
cativa com base no art. 10 da Convenção. CEDH. Case of Gündüz v. Turkey (35071/97).
Op. cit., parágrafo 52. Em outro caso, a CEDH ressaltou que o fato de a interferência ter
sido mais branda – a imposição de uma pena de multa – não elidia a responsabilidade
do Estado pelo ato lesivo à liberdade de expressão do requerente. Cf. CEDH. Case of
Jersild v. Denmark (15890/89). Op. cit., parágrafo 35.
160
A Corte considerou que a condenação do Sr. Incal a pena de prisão, somada a multa
e suspensão da habilitação de motorista, em conjunto com o impedimento para exer-
cer função pública ou participar de atividades em organizações políticas, associações
e sindicatos, constituiu intervenção radical e desproporcional ao fim visado. Cf. CEDH.
Case of Incal v. Turkey (22678/93). Op. cit., parágrafos 56-59; a Corte também entendeu
como “muito severas” as penas de prisão, multa e suspensão de direitos civis e políti-
cos prescritas cumulativamente para o requerente. Cf. CEDH. Case of Erbakan v. Turkey
(59405/00). Op. cit., parágrafo 69.
161
CEDH. Case of Karataş v. Turkey (23168/94). Op. cit., parágrafo 53.
162
CEDH. Case of Incal v. Turkey (22678/93). Op. cit., parágrafo 56.
163
WEBER, Anne. op. cit., p. 44.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
255
das medidas adotadas164. Além disso, o Estado deve tomar medidas
interventivas dentro de um prazo razoável165 e instituí-las de forma
coerente166.
2.3 A jurisprudência da CEDH em matéria de
minorias sexuais e o caso Vejdeland e outros
v. Suécia167
O sistema europeu de proteção dos direitos humanos – no-
tadamente, a CEDH – teve e ainda tem um papel de destaque na
afirmação de direitos das minorias sexuais no cenário da Europa.
A Corte já se pronunciou sobre uma série de questões caras à po-
pulação LGBT, impondo aos Estados-membros, a observância dos
direitos dessas pessoas. Foi a partir de condenações pela violação
dos direitos dessa parcela da população que muitos Estados-mem-
bros implementaram mudanças significativas no âmbito interno, de
modo a adequar a sua legislação e a aplicação da lei às exigências do
sistema europeu de proteção dos direitos humanos.

164
No caso Incal v. Turquia, a Corte afirmou que o comitê executivo do Halkın Emek Partisi
pediu autorização à prefeitura de Izmir para distribuir os informativos que foram con-
siderados como “propaganda separatista”. Ao invés de tomar medidas duras mencio-
nadas na nota 51, a Corte assinalou que as autoridades poderiam solicitar mudanças
aos textos, para que eles pudessem ser distribuídos normalmente, sem representar um
perigo à unidade do país. CEDH. Case of Incal v. Turkey (22678/93). Op. cit., parágrafo
55. Em Lehideux e Isorni v. França, a Corte também considerou excessiva condenação
criminal pela publicação de anúncio justificando ações de Philippe Pétain – chefe de Es-
tado da França de Vichy – e omitindo fatos históricos conhecidos. Apesar de tendencio-
so, o anúncio visava a revisão da condenação de Pétain, e não do Holocausto – inclusive
repudiando atrocidades nazistas –, de modo que o emprego de remédios cíveis pelas
autoridades judiciárias francesas seria mais adequado. Cf. CEDH. Case of Lehideux and
Isorni v. France (24662/94). Op. cit., parágrafo 57.
165
A Corte avaliou a demora em quatro anos e cinco meses para a instauração de um
processo criminal após os fatos, no caso Erbakan v. Turquia, como “não razoavelmente
proporcional aos objetivos visados”. Cf. CEDH. Case of Erbakan v. Turkey (59405/00).
Op. cit., parágrafo 70.
166
Também no caso Lehideux e Isorni v. França, a CEDH advertiu que o anúncio, o qual
resultou no processo criminal contra os requerentes, integrava o objeto de duas as-
sociações legalmente constituídas, as quais não sofreram qualquer intervenção em
suas atividades. Cf. CEDH. Case of Lehideux and Isorni v. France (24662/94). Op. cit.,
parágrafo 56.
167
CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07). Op. cit.

256 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Em síntese, a CEDH determinou a ilegalidade da criminaliza-
ção de atos sexuais consentidos entre adultos do mesmo sexo, além
de estabelecer como contrária à Convenção Europeia, a diferença na
idade legal para o consentimento ao ato sexual entre homossexuais
e heterossexuais. Ademais, afirmou que militares homossexuais não
devem ser banidos das forças armadas e que a população LGBT tam-
bém é titular do direito de reunião. Em 2003, assegurou aos casais
homossexuais, os mesmos direitos de sucessão à locação ou ao ar-
rendamento existentes a casais heterossexuais. Mais recentemente,
em 2008 – e de novo, em 2013 –, a CEDH afirmou que a exclusão de
indivíduos do processo de adoção de crianças em virtude da orienta-
ção sexual é discriminatória, sendo incompatível com a Convenção
Europeia, portanto, qualquer tratamento diferenciado a casais hete-
ro e homossexuais para fins de adoção168. Além das decisões men-
cionadas, a Corte já se posicionou quanto a direitos dos transexuais
como, por exemplo, a alteração de documentos de identidade após a
cirurgia de redesignação sexual169.
Já o caso Vejdeland e outros v. Suécia, julgado em 9 de fevereiro
de 2012, foi o primeiro no qual a CEDH se deparou com manifesta-
ções de ódio de ordem homofóbica. Em dezembro de 2004, os re-
querentes, juntamente com mais três pessoas, dirigiram-se a uma
escola secundária e distribuíram cerca de cem folhetos a alunos da
instituição, colocando o material em seus armários. Os folhetos fo-
ram produzidos por uma organização chamada “National Youth” e
continham as seguintes afirmações:

168
Como o objetivo do presente estudo é tratar especificamente do discurso de ódio, mos-
tra-se desnecessário o aprofundamento no estudo da jurisprudência da CEDH acerca
de outros direitos das minorias sexuais. Para verificar os julgamentos mencionados
acima sucintamente, cf. SWIEBEL, Joke; VEUR, Dennis van der. Hate crimes against les-
bian, gay, bisexual and transgender persons and the policy response of international
governmental organizations. In: Netherlands Quarterly of Human Rights, v. 27, n. 4,
Antuérpia: Intersentia, p. 19-20. Cf. também: INTERNATIONAL COMISSION OF JURISTS.
Sexual orientation and gender identity in human rights law – Jurisprudential, Legislative
and Doctrinal References from the Council of Europe and the European Union. Genebra:
International Comission of Jurists, 2007, 234 p.
169
CEDH. Case of Christine Goodwin v. UK, Estrasburgo, 2002. Disponível: <http://hudoc.
echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-60596>. Acesso em 22 mar. 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
257
Propaganda Homossexual – no decurso das últimas décadas,
a sociedade passou da rejeição da homossexualidade e de
outras formas de desvios sexuais para a aceitação dessa in-
clinação sexual desviante. Os seus professores ‘anti-suecos’
sabem muito bem que a homossexualidade tem um efeito
moral destrutivo sobre a base da sociedade, mas tentarão
apresentá-la como algo natural e bom.
– Digam a eles que o HIV e a AIDS apareceram inicialmente
com os homossexuais e que o seu estilo de vida promiscuo é
uma das principais razões pelas quais essa praga da atualida-
de ainda encontra ponto de apoio.
– Digam a eles que as organizações homossexuais que fazem
lobby estão tentando subestimar a pedofilia e perguntem se
esse desvio sexual deve ser legalizado.170

Na Suécia, a “agitação contra homossexuais enquanto gru-


po” consiste em ofensa penal desde janeiro de 2003. Logo, os reque-
rentes foram indiciados pela prática do referido tipo penal com base
na distribuição dos panfletos mencionados acima. O caso chegou até
a Corte Suprema da Suécia, a qual acabou por confirmar a decisão de
primeira instância – que havia sido revertida em sede de apelação –,
condenando os requerentes em julho de 2006 (três deles tiveram a
sentença suspensa por meio do pagamento de multas, enquanto que
o quarto obteve liberdade condicional). Na análise do caso, a Corte
Sueca ponderou o fato de os panfletos terem sido distribuídos em
uma escola, à qual os acusados não tinham livre acesso. Na prática,
a colocação dos papéis nos armários dos alunos tirava deles a possi-
bilidade de recusar o recebimento do material.
Apesar dos requerentes afirmarem que a sua intenção, ao
distribuir os panfletos, era de iniciar um debate entre os alunos e
os professores acerca de questões de interesse público – a educa-
ção na Suécia –, a Corte do país entendeu que o material continha

170
CEDH. Case of Christine Goodwin v. UK, Estrasburgo, 2002. Disponível: <http://hudoc.
echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-60596>. Acesso em: 22 mar. 2013, pa-
rágrafo 8, tradução não oficial.

258 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
expressões desnecessariamente ofensivas e depreciativas para os
homossexuais enquanto grupo social. As palavras utilizadas nos
panfletos violavam direitos do referido grupo, além de não contri-
buir para um debate público que culminasse com um entendimen-
to mútuo.
A CEDH, acionada pelos requerentes, fez uma nova pondera-
ção entre a liberdade de expressão dos responsáveis pela distribuição
dos panfletos, garantida pelo art. 10 da Convenção Europeia, e o di-
reito à não-discriminação dos homossexuais – no caso, “a proteção
da reputação ou de direitos de terceiros”, a que aduz o § 2º do art. 10
da mesma Convenção171.
Inicialmente, a Corte determinou que a interferência do poder
judiciário sueco era prescrita em lei, porquanto os requerentes foram
condenados pela prática de “agitação contra um grupo nacional ou
étnico”, nos termos do Capítulo 16, Artigo 8º do Código Penal Sueco
e porque, na época dos acontecimentos, a ofensa penal poderia ser
praticada em detrimento de pessoas caracterizadas como grupo em
virtude da sua orientação sexual172. Quanto à legitimidade do fim

171
Interessante mencionar que a opinião concorrente da Juíza Yudkivska, compartilhada
pelo juiz Villiger, afirma não ser possível sequer garantir a proteção do art. 10 da Con-
venção a uma manifestação que vincula o grupo social dos homossexuais à “praga do
século vinte”. Segundo a juíza, o caso em questão não trata unicamente da ponderação
entre o exercício da liberdade de expressão e do direito de um determinado grupo
de pessoas à reputação: o discurso de ódio empregado é destrutivo para a socieda-
de democrática como um todo, pois ‘mensagens prejudiciais ganharão crédito, com
concomitante resultado de discriminação e talvez até violência contra grupos mino-
ritários. Assim, não deveria receber qualquer proteção’. A juíza vai além, afirmando
que “as estatísticas de crimes odiosos mostram que a propaganda do ódio gera da-
nos, sejam imediatos ou potenciais”. Cf. CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden
(1813/07) - Concurring Opinion of Judge Yudkivska Joined by Judge Villiger, parágrafos
9-11 (tradução não oficial).
172
A opinião concorrente do juiz Spielmann, compartilhada pela juíza Nußberger, destaca,
inclusive, a Recomendação CM/Rec(2010)5 do Comitê de Ministros dos Estados-mem-
bros do Conselho da Europa, segundo a qual “o tratamento não-discriminatório por
atores estatais, bem como, quando apropriadas, as medidas estatais positivas para a
proteção pelo tratamento discriminatório, inclusive por agentes não-estatais, são com-
ponentes fundamentais do sistema internacional de proteção dos direitos humanos e
das liberdades fundamentais”. CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07)

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
259
visado pela intervenção, a CEDH considerou apropriada a colocação
do governo Sueco, no sentido de que a condenação dos requerentes
objetivou a “proteção da reputação ou de direitos de terceiros”, nos
termos do § 2º do art. 10 da Convenção Europeia173.
Como de praxe, a análise da necessidade da medida interven-
tiva em uma sociedade democrática é a que envolve a maior pon-
deração das especificidades do caso, a partir dos parâmetros desen-
volvidos pela jurisprudência da CEDH ao longo dos anos. Impende
ressaltar, ademais, que é na análise da necessidade social da medida
que a Corte concede maior margem de apreciação aos Estados, ainda
que exerça uma espécie de supervisão da conformidade da medida
com a Convenção Europeia.
No caso em tela, a CEDH começa pelo exame da intenção dos
requerentes por trás da distribuição dos panfletos. Eles alegam que a
finalidade da sua conduta era suscitar um debate entre alunos e pro-
fessores sobre a falta de objetividade na educação em escolas suecas.
A Corte interpreta a referida intenção como legítima, na linha do
que já havia mencionado a Suprema Corte Sueca. No entanto, quan-
do trata do conteúdo da manifestação, a CEDH, apesar de reconhecer
que a questão poderia constituir matéria de interesse público,
não acata o argumento dos requerentes de que as expressões em-
pregadas nos panfletos não incitavam ao ódio ou à violência. Nesse
sentido, destaca que

[...] incitar ao ódio não necessariamente demanda um ato


de violência ou outra conduta criminosa. Ataques contra
pessoas praticados por meio de insulto, expondo ao ridícu-
lo ou difamando um grupo específico da população, podem
ser suficientes para as autoridades favorecerem o combate

- Concurring Opinion of Judge Spielmann Joined by Judge Nussberger, parágrafo 6. Cf.


também COMITÊ DE MINISTROS DO CONSELHO DA EUROPA. Recommendation CM/
Rec(2010)5 of the Committee of Ministers on measures to combat discrimination on
grounds of sexual orientation or gender identity, 2010.
173
CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07), parágrafo 49.

260 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
ao discurso racista em detrimento da liberdade de expressão
exercida de maneira irresponsável.174

A Corte acabou por concluir que a manifestação era desne-


cessariamente ofensiva aos homossexuais, envolvendo alegações sé-
rias e prejudiciais ao grupo social em questão. É importante frisar,
além disso, o pronunciamento da Corte no sentido de que a discrimi-
nação baseada na orientação sexual “é tão séria quanto a discrimi-
nação baseada em ‘raça, origem ou cor’”175. A partir dessa colocação,
a CEDH deixa claro o seu posicionamento de que o discurso de ódio
não é repreensível, com base na Convenção Europeia, apenas quan-
do dirigido a uma minoria racial, étnica, nacional ou religiosa, mas
também a uma minoria sexual.
Ao final, a CEDH destaca dois aspectos relevantes do contexto
da manifestação: o local onde ela ocorreu e a natureza e serieda-
de da intervenção das autoridades suecas. Apesar de geralmente
constituir um elemento secundário dentre os parâmetros da Corte
para determinar a conformidade de uma intervenção estatal face à
Convenção Europeia, o local da manifestação homofóbica teve, no
presente caso, grande importância. Os juízes da CEDH entende-
ram por relevante o fato de os panfletos terem sido distribuídos em
uma escola na qual os requerentes não estudaram ou sequer tinham

174
“[I]nciting to hatred does not necessarily entail a call for an act of violence, or other
criminal acts. Attacks on persons committed by insulting, holding up to ridicule or slan-
dering specific groups of the population can be sufficient for the authorities to favour
combating racist speech in the face of freedom of expression exercised in an irrespon-
sible manner” (tradução não oficial). Ibidem, parágrafo 55.
175
Ibidem. A CEDH já havia se posicionado a esse respeito no caso Smith e Grady v. Reino
Unido. O caso abordou o banimento de homossexuais das forças armadas, em virtu-
de de alegados sentimentos negativos de colegas heterossexuais, o que prejudicaria a
coesão e moral das unidades militares. O caso culminou com a declaração da Corte de
que esse sentimento negativo não pode justificar uma interferência do Estado – como
o banimento dos homossexuais das forças armadas – da mesma forma como está jus-
tificada a intervenção para apaziguar sentimentos negativos contra pessoas de outra
raça, origem e cor. Cf. CEDH. Case of Smith and Grady v. The United Kingdom, Estras-
burgo, 1999, parágrafo 97. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/
search.aspx?i=001-58408>. Acesso em: 07 mar. 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
261
acesso livre, para jovens que, em função da sua idade, eram impres-
sionáveis e vulneráveis às expressões empregadas176. Ademais, não
tiveram a possibilidade de recusar os panfletos, já que eles foram
colocados em seus armários sem permissão prévia. O juiz Boštjan
M. Zupančič destaca, em sua opinião concorrente, o caráter fechado
do ambiente escolar, advertindo que a distribuição de qualquer ma-
terial por um estranho à instituição de ensino deveria ser precedida
da autorização das autoridades da escola177.
Contra o pedido dos requerentes pesa, também, o grau de
seriedade da intervenção das autoridades suecas: para a CEDH, a
imposição das penas de multa e da liberdade condicional, ao invés
da pena de prisão, se mostra como uma intervenção mais leve e, por-
tanto, proporcional à conduta dos requerentes178.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No dispositivo da sentença do caso Vejdeland e outros v. Sué-
cia, os juízes decidiram, unanimemente, que a medida adotada pela
Suécia para proteger os direitos dos homossexuais enquanto grupo
social não violou o art. 10 da Convenção Europeia, porquanto jus-
tificável a limitação da liberdade de expressão no caso, nos termos
do § 2º do mesmo dispositivo legal. Desta forma, o caso coloca fim a
qualquer argumento contrário à proteção das minorias sexuais face
ao discurso de ódio.
Evidenciou-se, a partir da menção a outros precedentes da
Corte e do raciocínio jurídico empregado por ela, que a proteção das
minorias sexuais contra discursos homofóbicos segue os mesmos
176
Aqui é interessante frisar a informação trazida pelos juízes Spielmann e Nußberger com
base em estudos financiados por alguns dos Estados-membros, de que os estudantes
LGBT sofrem bullying tanto de seus colegas, quanto de seus professores. Cf. CEDH. Case
of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07) - Concurring Opinion of Judge Spielmann
Joined by Judge Nussberger, parágrafo 7.
177
Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07) - Concurring Opinion of Judge Bošt-
jan M. Zupančič, parágrafo 9.
178
CEDH. Case of Vejdeland and others v. Sweden (1813/07). Op. cit., parágrafo 58.

262 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
padrões aplicados aos casos que envolveram ataque a minorias étni-
cas, nacionais e religiosas. Ainda que existam indagações a respeito
da expansão dos grupos minoritários protegidos pelo art. 10, §2º da
Convenção Europeia179, o caso Vejdeland e outros v. Suécia assinala a
consolidação das minorias sexuais enquanto vítimas em potencial
do discurso de ódio, ao menos no cenário europeu. Esse passo sig-
nificativo rumo à proteção contra a homofobia deve servir de refe-
rência para outros sistemas internacionais de proteção dos direitos
humanos – como o interamericano – e mesmo para o direito interno
de países não-europeus.

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<http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-77351>. Acesso
em: 12 fev. 2013.

179
TULKENS, Françoise. Op. cit., p. 15.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
263
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264 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
265
A PROTEÇAO AOS DIREITOS DE CRIANÇAS
E ADOLESCENTES À LUZ DA DOUTRINA DA
PROTEÇÃO INTEGRAL: um estudo da normativa
internacional e interna em face da exposição dos
sujeitos à publicidade mercadológica

Fernanda da Silva Lima


Doutoranda em Direito (PPGD/UFSC); Mestra em Direito (PPGD/UFSC); Bacha-
rel em Direito (CSA/UNESC). Professora do Centro Universitário Barriga Verde
(UNIBAVE, campus Orleans/SC) e na Escola Superior de Criciúma/SC (ESUCRI).
Coordenadora do Grupo de Estudos em Direitos Humanos e Criminologia Críti-
ca (GEDIF/ESUCRI) e pesquisadora no Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da
Criança e do Adolescente (NEJUSCA/UFSC). (felima.sc@gmail.com)

Josiane Rose Petry Veronese


Orientadora. Doutora e Mestre em Direito (PPGD/UFSC); Pós-doutora pela
PUC/POA (2012); professora dos Programas de Mestrado e Doutorado em Di-
reito (PPGD/UFSC); Coordenadora do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da
Criança e do Adolescente (NEJUSCA/UFSC); Professora titular da disciplina de
Direito da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Santa Catari-
na; Coordenadora do Curso de Direito/UFSC, autora de vários livros e artigos.
(jpetryve@uol.com.br)

Resumo:
O estudo do Direito Internacional dos Direitos Humanos situa o ser humano como verdadeiro
sujeito do direito internacional, cuja proteção intrínseca é a de resguardar a sua dignidade
humana, o que envolve também a revisão da própria noção tradicional de soberania estatal.
Neste breve estudo, procurou-se demonstrar em linhas gerais a trajetória história do Direito
Internacional dos Direitos Humanos e relacioná-lo com o Direito da Criança e do Adolescente
no Brasil. O principal objeto desta pesquisa envolve situar a criança e o adolescente como su-
jeito de direitos, bem como, sujeitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e como
tal, tentar verificar qual resposta normativa o sistema internacional e o sistema internam dão
para os riscos a que estão expostos estes sujeitos à publicidade mercadológica. E isso por-
que devido ao processo de desenvolvimento em que se encontram, crianças e adolescentes

266 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
são indivíduos incapazes de absorverem os anúncios publicitários de forma crítica e reflexiva
como fazem os adultos e são diretamente impulsionados e incutidos à valores que os levam
ao consumismo precoce. . É imprescindível para que haja efetiva mudança, pensar em ações
conjuntas envolvendo a sociedade, a família e o Estado.
Palavras-chave: Criança e adolescente – Direitos Humanos – Doutrina da Proteção Integral –
Publicidade mercadológica.

Sumário:
1. Introdução. 2. O Direito Internacional dos Direitos Humanos: apontamentos iniciais e a
força normativa das convenções no sistema jurídico brasileiro. 3. Conhecendo os direitos de
crianças e adolescentes: um olhar para o sistema normativo brasileiro. 4. Publicidade merca-
dológica versus a proteção integral: conhecendo o âmbito internacional e interno na perspec-
tiva de garantia de direitos humanos. 5. Considerações finais. 6. Referências bibliográficas.

1 INTRODUÇÃO
A proteção integral aos direitos de crianças e adolescentes
está consagrada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança
de 1989 e outros documentos internacionais. No Brasil esta proteção
foi garantia a partir da promulgação da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, no qual conferiu às crianças e adoles-
centes o reconhecimento de sujeitos de direitos, sendo-lhes reconhe-
cido a condição de pessoas em estágio peculiar de desenvolvimento.
Por essa razão gozam de absoluta prioridade na efetivação dos seus
direitos fundamentais, assegurados de forma compartilhada pelo
Estado, família e sociedade.
Passados mais de 20 anos da aprovação do Estatuto da Crian-
ça e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, os desafios
impostos à efetivação dos direitos fundamentais da infância e ado-
lescência ainda são imensos. E, diante disso é imprescindível es-
tudar a efetividade da proteção integral de crianças e adolescentes
expostas à informação publicitária mercadológica no plano interna-
cional e verificar se o modelo de proteção brasileiro é adequado para
a proteção e a garantia de direitos à infância e adolescência, uma vez

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
267
que ao dirigir seus anúncios, as agências de publicidade apostam no
mercado infantil procurando a vulnerabilidade de cada faixa-etária
para criar consumidores precoces.
Toda propaganda mercadológica dirigida ao público infanto
-adolescente o expõe a variados riscos, justamente porque devido
a fase de desenvolvimento em que se encontram, tem dificuldades
para absorver os anúncios publicitários de forma crítica e reflexiva
como fazem os adultos. Assim, as agências apropriam-se dessas vul-
nerabilidades inerentes a fase da infância e adolescência para criar
anúncios e incutir no imaginário de crianças e adolescentes o consu-
mismo excessivo, o que pode provocar: obesidade infantil, erotização
precoce, estresse e conflitos familiares, banalização da agressividade
e violência, entre outros riscos.
Atualmente no Brasil não há regulamentação normativa
voltada para combater a publicidade mercadológica para crianças
e adolescentes, há apenas a autoregulamentação imposta para as
agências de publicidade pelo Conselho Nacional de Autoregulamen-
tação (CONAR). O CONAR é um órgão não-governamental formado
por membros da sociedade civil, sendo que muitos destes são vincu-
lados às próprias agências de publicidade, o que resta apenas confiar
que dêem uma atenção devida ao tema.
É importante enfatizar que a publicidade mercadológica tratada
nesta pesquisa abrange todos os veículos de comunicação: televisão,
jornais e revistas, internet, outdoor, e outros. Dentre esses veículos de
comunicação a televisão é considerada como a principal ferramenta
do mercado para a persuasão do público infanto-adolescente. E isso
porque no ano de 2005 ficou constatado que as crianças brasileiras de
4 a 11 anos passam em média 4 horas e 51 minutos e 19 segundos na
frente da televisão. E esse tempo é, muitas vezes, maior do que aquele
em que passam na escola ou em convivência com sua família.
A publicidade mercadológica tem como objetivo principal a
persuasão para o consumo do item anunciado. O desenvolvimento
desta pesquisa é de fundamental importância porque o consumis-

268 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
mo infantil é uma questão urgente e de interesse geral que envolve
questões éticas (valores) decorrentes deste processo.
É de fundamental importância verificar se a autoregulamenta-
ção imposta às agências de publicidade é mecanismo suficiente para
resguardar os direitos de crianças e adolescentes. Para a compreensão
dos temas que envolvem a garantia dos direitos da infância e
adolescência e questões referentes aos estudos sobre publicidade ver-
sus consumismo precoce, é imprescindível um estudo aprofundado
sobre Direito da Criança e do Adolescente e sobre as questões éticas,
sociais e jurídicas que envolvem o consumismo decorrente das infor-
mações publicitárias mercadológicas.
Indivíduos conscientes e responsáveis são à base de uma socie-
dade mais justa e fraterna, que tenha a qualidade de vida não apenas
como um conceito a ser perseguido, mas com uma prática a ser vivida.
É necessário que o processo de mudança e conscientização
sobre a temática envolva toda sociedade, capaz de acionar um
processo de mobilização da opinião pública que abarque a proteção
de crianças e adolescentes expostas à publicidade mercadológica.
Destaca-se, a urgência que o Estado, a família e a sociedade
têm em cumprir o seu papel, enquanto garantidores dos direitos de
crianças e adolescentes. Trata-se de proposta de pesquisa em relação
a um tema preocupante o qual poderá trazer contribuição histórica
significativa.

2 O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS


HUMANOS: APONTAMENTOS INICIAIS E A
FORÇA NORMATIVA DAS CONVENÇÕES NO
SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO
As convenções internacionais são fontes do Direito Interna-
cional dos Direitos Humanos, ramo jurídico que surgiu no cenário
mundial no início do século passado e que tem precedentes histó-
ricos no Direito Humanitário, na Liga das Nações e na Organização

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
269
Internacional do Trabalho – OIT. Piovesan (1997, p. 132-133) afirma
que embora a concepção dos direitos humanos estivesse intrinseca-
mente interligada com a noção de “igualdade” e “liberdade” ineren-
tes a qualquer pessoa humana, foi somente no período pós Segunda
Guerra Mundial que o Direito Internacional dos Direitos Humanos
teve realizado seu processo de universalização, principalmente como
alternativa para repudiar o holocausto e combater possíveis atroci-
dades como aquelas cometidas pelo regime nazista.
Lafer (1995, p. 174) complementa Piovesan, informando
que foram os desmandos do totalitarismo que aterrorizaram vários
países europeus no período da Segunda Guerra, o que propiciou, a
partir de então, consolidar a percepção Kantiana de que os regimes
democráticos apoiados nos direitos humanos eram os mais propícios
à manutenção da paz e da segurança internacional. “Se a 2ª Guerra
significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria
significar a sua reconstrução” (PIOVESAN, 2000, p. 94)
E, a partir desse processo de universalização, é que os Direitos
Humanos aponta como ramo jurídico do Direito Internacional, cuja
peculiaridade passou a redefinir o próprio conceito de soberania dos
Estados e assim como o “[...] status do indivíduo no cenário interna-
cional, para que se tornasse verdadeiro sujeito de direito internacio-
nal.” (PIOVESAN, 1997, p. 133)
Ferrajoli (2002, p. 41) faz uma crítica a soberania no mundo
moderno e para isso discorre sobre como a “soberania” dos Estados
foi remoldada ao longo de vários períodos históricos e destaca que:

A soberania, que já se havia esvaziado até o ponto de dis-


solver-se na sua dimensão interna com o desenvolvimento
do estado constitucional de direito, se esvanece também em
sua dimensão externa na presença de um sistema de normas
internacionais caracterizáveis como ius cogens, ou seja, como
direito imediatamente vinculador para os Estados-membros.
No novo ordenamento, são de fato sujeitos de direito inter-
nacional não somente os Estados, mas também os indiví-

270 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
duos e os povos: os primeiros como titulares, nos confrontos
de seus próprios Estados, dos direitos humanos a eles confe-
ridos pela Declaração de 1948 e pelos Pactos de 1966; os se-
gundos enquanto titulares do direito de autodeterminação,
reconhecidos pelo artigo 1 dos mesmos Pactos.

Logo, o entendimento do que seja os Direitos Humanos na


esfera global, perpassa exclusivamente pelo entendimento de duas
premissas básicas no Direito Internacional dos Direitos Humanos.
A primeira apontando a necessidade urgente, como já mencionado
por Ferrajoli (2002), da revisão da noção tradicional acerca da sobe-
rania dos Estados, e que de fato eles deverão ser curvar ao sistema
global para a garantia de proteção aos direitos humanos; e a segunda
parte da ideia de que o indivíduo tem direitos protegidos na esfera
internacional, e que logo, os indivíduos são, assim como os Estados,
verdadeiros sujeitos (atores) do Direito Internacional dos Direitos
Humanos.
O Direito Internacional fez emergir a “[...] necessidade de
reconstrução do valor dos direitos humanos, como paradigma e
referencial ético para orientar a nova ordem internacional” (PIO-
VESAN, 2008, p. 20), ancorada principalmente pelo respeito à dig-
nidade humana.
E diante disso, a proteção aos direitos humanos tornou-se
preocupação frequente em âmbito internacional, sendo necessária a
criação de um amplo sistema de proteção capaz de limitar a atuação
dos Estados em face de qualquer violação aos direitos humanos.
A Organização das Nações Unidas – ONU, foi oficialmente
criada em 24 de outubro de 1945, e é formada atualmente por 193
países membros que se reúnem de forma voluntária para trabalhar
pela paz e desenvolvimento mundial. Na Carta das Nações Unidades
estão definidos os principais objetivos da ONU, quais sejam: Defesa
dos direitos fundamentais do ser humano; Garantir a paz mundial,
colocando-se contra qualquer tipo de conflito armado; Busca de me-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
271
canismos que promovam o progresso social das nações; Criação de
condições que mantenham a justiça e o direito internacional. “Os
membros são unidos em torno da Carta da ONU, um tratado inter-
nacional que enuncia os direitos e deveres dos membros da comuni-
dade internacional.” (ONU-Brasil, 2013)
No Brasil, pode-se dizer, que os tratados internacionais em
matéria de direitos humanos foram incorporados ao ordenamen-
to jurídico brasileiro acompanhados da redemocratização do país a
partir da promulgação da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988.180 Portanto, nas relações internacionais a atual Cons-
tituição consagra como um dos princípios basilares a prevalência dos
direitos humanos (inciso II, art. 4º CF/88).
Como bem observa Piovesan (1997, p. 141), além dos avan-
ços trazidos no texto constitucional em matéria de direitos humanos
em âmbito internacional, foi essencial a mudança de postura do Es-
tado brasileiro diante do sistema global. De acordo com a autora foi
necessário que o país reorganizasse

[...] a sua agenda internacional, de modo mais condizen-


te com as transformações internas decorrentes do processo
de democratização. Esse esforço se conjuga com o objetivo
de compor uma imagem mais positiva do Estado brasileiro
no contexto internacional, como país respeitador e garan-
tidor dos direitos humanos. Adicione-se que a subscrição
do Brasil aos tratados internacionais de direitos humanos
simboliza ainda o aceite do Brasil para com a idéia con-
temporânea de globalização dos direitos humanos, bem

180
Entre os tratados internacionais em matéria de direitos humanos ratificados pelo Brasil
após a Constituição Federal de 1988 estão: Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; Convenção Contra a Tortura e outros Trata-
mentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989; Convenção
sobre os Direitos da Criança, em 24 de setembro de 1990; Pacto Internacional dos Di-
reitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e culturais, em 24 de janeiro de 1992;
Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27 de
novembro de 1995; Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança
sobre a Venda, Prostituição e Pornografias infantis, em 27 de janeiro de 2004. E outros
instrumentos. (PIOVESAN, 2008, p. 24)

272 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
como para com a idéia da legitimidade das preocupações da
comunidade internacional, no tocante a matéria. (PIOVE-
SAN, 2008, p. 25)

A partir da Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro


de 2004, os tratados e convenções internacionais em matéria de di-
reitos humanos ganharam status de norma constitucional, desde que
sejam aprovados nas duas Casas do Congresso Nacional – Câmara e
Senado, em dois turnos e por três quintos dos votos dos respectivos
membros (ver § 3º, artigo 5º Constituição Federal de 1988).
Observa-se que a Constituição Federal brasileira assegura
uma proteção especial apenas aos tratados e convenções internacio-
nais em matéria de Direitos Humanos, pois estes têm um caráter es-
pecial de proteção, distinguindo-se dos tratados de matéria comum,
pois estes buscam o equilíbrio e a reciprocidade das relações entre
Estados-partes, já os tratados de direitos humanos “[...] transcen-
dem os meros compromissos recíprocos entre os Estados pactuantes,
tendo em vista que objetiva a salvaguarda dos direitos do ser huma-
no [...]”(PIOVESAN, 2008, p. 26)
E nessa perspectiva, sob o âmbito de incidência das normas
em matéria de direitos humanos internacionais, Annoni (2008, p.
32) entende que é importante repensar o direito

[...] percebendo-o como algo dinâmico cujo objeto primeiro


é o respeito à dignidade da pessoa humana, suas necessi-
dades e práticas sociais. É preciso compreender o fenômeno
jurídico não apenas como uma relação de poder hierárquico
que divide competências e garantias em serviço do Estado,
mas sim, como um verdadeiro instrumento de promoção de
satisfações e desejos coletivos, a serviço de toda a sociedade.

Por isso os tratados e convenções internacionais de direitos


humanos devem atuar com força normativa no ordenamento jurídi-
co interno para prevenir ou atuar em defesa da ameaça ou lesão aos
direitos inerentes ao indivíduo ou a coletividade.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
273
Assim, como esta pesquisa tem como premissa compreender a
violação ou não de direitos a crianças e adolescentes expostos a publi-
cidade mercadológica, o que pode ferir os seus direitos humanos en-
quanto pessoa em estado peculiar de desenvolvimento, é compreensí-
vel que, em matéria de direitos humanos internacionais, percorra-se
os instrumentos normativos importantes e relevantes nesta discus-
são, incluindo o estudo da Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, aprovada pela Assembleia Geral da ONU no ano de 1989.
Trindade (1997, p. 21) reforça a ideia da necessidade de ha-
ver interação entre os diversos tratados e convenções internacionais
cuja, materialidade normativa procura ser o mais eficaz possível no
combate a violações de direitos humanos, contribuindo por derra-
deiro para dar maior “[...] precisão ao alcance das obrigações con-
vencionais e a assegurar uma interpretação uniforme do direito in-
ternacional dos direitos humanos”.
E essa interação entre as normativas internacionais deve ser
a guia mestra a conduzir os argumentos jurídico-políticos que se
pretende desenvolver neste artigo, na medida em que a eficácia das
convenções internacionais em matéria de direitos humanos possam
garantir a proteção integral à criança e ao adolescente no Brasil, a
partir dos modelos normativos expostos nos documentos internacio-
nais e à luz do sistema de proteção internacional.

3 CONHECENDO OS DIREITOS DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES: UM OLHAR PARA O SISTEMA
NORMATIVO BRASILEIRO
Em âmbito internacional, pode-se dizer que o período da in-
fância passou a ser considerado como uma fase em formação e em
pleno desenvolvimento, necessitando, portanto, uma proteção es-
pecial. Diversos instrumentos normativos internacionais são repre-
sentativos da luta por melhores condições de vida e proteção aos
direitos da população infantil.

274 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A Declaração de Genebra de 1924 foi a primeira normativa
internacional a garantir direitos e uma proteção especial à crianças
e adolescentes. Algumas décadas mais tarde a Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos em 1948, que é representativa do avan-
ço nos direitos e liberdades individuais do ser humano e no reconhe-
cimento do princípio da dignidade da pessoa humana.
Em 1959 a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração
dos Direitos da Criança, sendo o Brasil signatário. É possível ainda
citar outros instrumentos normativos que impulsionaram a luta em
favor de direitos à infância. Dentre os quais destacam-se: as Regras de
Beijing para a administração da Infância e da Juventude, Resolução
nº 40.33 de 29 de novembro de 1985 da Assembleia Geral da ONU; A
Convenção Americana de Direitos Humanos que foi ratificada pelo
Brasil em 1992; e a Convenção Internacional sobre os Direitos da
Criança aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novem-
bro de 1989 e ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 99.710 em
21 de novembro de 1990.
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança é o
instrumento legal em âmbito internacional mais representativo das
conquistas e direitos implementados em favor da infância e adoles-
cência. E seguindo esse movimento internacional é que começa a
surgir, na década de 1980, o Direito da Criança e do Adolescente no
cenário jurídico brasileiro, também representativo das mobilizações
dos novos movimentos sociais no país, indignados com a realidade
social vivenciada por crianças e adolescentes brasileiros “afrontados
na quase totalidade de sua cidadania” (VERONESE, 2006, p. 7).
Como se viu, a análise sócio-jurídica da infância no Brasil
remete a constatar-se que durante o período menorista, o país cami-
nhava na contramão da história. E isso porque em âmbito interna-
cional, a ONU já consagrava desde 1959 a Declaração Universal dos
Direitos da Criança, que o país, embora tendo ratificado, deixou de
aplicá-la legalmente.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
275
De acordo com Marcílio, com a edição da Declaração dos Di-
reitos da Criança em 1959:

[...] a ONU reafirmava a importância de se garantir a univer-


salidade, objetividade e igualdade na consideração de ques-
tões relativas aos direitos da criança. A criança passa a ser
considerada, pela primeira vez na história, prioridade absoluta
e sujeito de Direito, o que por si só é uma profunda revolução.
A Declaração enfatiza a importância de se intensificar esfor-
ços nacionais para a promoção do respeito dos direitos da
criança à sobrevivência, proteção, desenvolvimento e partici-
pação. (MARCÍLIO, 2008)

De fato, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 não


passou de letra morta, pois o Estado brasileiro foi signatário apenas
no papel, e suas ações políticas e a normativa interna estavam na
realidade às avessas do projeto de proteção à infância que se discutia
em âmbito internacional.
Logo, a consagração do Direito da Criança e do Adolescente
como ramo jurídico autônomo e amparado pela Doutrina da Prote-
ção Integral, somente se efetivou no sistema jurídico brasileiro após
a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988181 e consequentemente com a aprovação da Lei nº 8.069 de 13
de julho de 1990, então denominada Estatuto da Criança e do Ado-
lescente. A Doutrina da Proteção Integral garantiu que meninos e

181
O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 recentemente sofreu alterações decor-
rentes da Emenda Constitucional nº 65, de 13 de julho de 2010 e passou a vigorar com
a seguinte redação: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,
ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à ali-
mentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Em-
bora a categoria “jovem” tenha sido incluída na redação do artigo que regulamenta o
Direito da Criança e do Adolescente neste país, esta pesquisa não abarcará os direitos
de juventude, pois entende em que em muitos casos há incompatibilidade entre as
duas doutrinas. Assim, esta pesquisa será destinada a pesquisar sobre os direitos da in-
fância e adolescência sob os preceitos jurídicos, sociais e políticos contidos no Estatuto
da Criança e do Adolescente.

276 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
meninas com menos de 18 anos de idade passassem a categoria de
sujeitos de direitos182, necessitando de uma proteção especial e prio-
ritária para concretização de seus direitos fundamentais tendo em
vista que estão em fase peculiar de desenvolvimento.
Para Veronese (2006, p. 9-10),

Quando a legislação pátria recepcionou a Doutrina da Pro-


teção Integral fez uma opção que implicaria num projeto
político-social para o país, pois ao contemplar a criança e
o adolescente como sujeitos que possuem características
próprias ante o processo de desenvolvimento em que se en-
contram, obrigou as políticas públicas voltadas para esta
área a uma ação conjunta com a família, com a sociedade
e o Estado.

A Doutrina da Proteção Integral, portanto, recepcionada para


a garantia dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes re-
conhece o status de prioridade absoluta na efetivação de direitos,
principalmente no campo das políticas públicas. Além disso, permite
que seja implementado em âmbito local um sistema de garantia de
direitos capaz de se mobilizar e atuar na promoção e efetivação dos
direitos das quais à população infanto-adolescente é titular.
O Estatuto da Criança e do Adolescente considera criança
aquela pessoa entre 0 e 12 anos incompletos e adolescente a pessoa
entre 12 e 18 anos. Essa diferenciação deve-se ao fato de crianças e
adolescentes estarem em estágios de desenvolvimento diversos. Esta
Lei tornou-se o principal instrumento jurídico de luta pela efetivação
dos direitos das crianças e dos adolescentes no país e, além disso,
é representativa do rompimento definitivo com a doutrina jurídica
da situação irregular, que coisificava a infância, para redimensionar
toda uma visão social. (VERONESE; COSTA, p. 52)

182
De acordo com PEREIRA (1999, p. 15), “ser sujeitos de direitos significa, para a popula-
ção infanto-juvenil, deixar de ser tratada como objeto passivo, passando a ser, como os
adultos, titular de direitos juridicamente protegidos.”

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
277
O Estatuto da Criança e do Adolescente reveste-se de cará-
ter inovador ao dispor os direitos fundamentais das quais crianças
e adolescentes são titulares e ainda cria um sistema de garantia de
direitos que prevê a aplicação de medidas de prevenção e proteção
para a concretização desses novos direitos atribuindo responsabili-
dades compartilhadas à família, ao Estado e a sociedade.

4 PUBLICIDADE MERCADOLÓGICA VERSUS


A PROTEÇÃO INTEGRAL: CONHECENDO O
ÂMBITO INTERNACIONAL E INTERNO NA
PERSPECTIVA DE GARANTIA DOS DIREITOS
HUMANOS
Esta pesquisa, cujo caráter é interdisciplinar também tem
como objetivo o estudo da sociedade de consumo e da qual, ine-
xoravelmente abrange em seu contexto crianças e adolescentes. O
enfoque deste estudo é permeado pela constatação de que a publici-
dade mercadológica, que alimenta a sociedade de consumo, quando
dirigida às crianças e adolescentes prejudica a efetivação dos seus
direitos fundamentais.
Nesse sentido, questiona-se: Sendo as crianças e adolescentes
sujeitos de direitos e ainda, sujeitos do Direito Internacional, como
é garantida a sua proteção em face dos riscos que estão expostos à
publicidade mercadológica?
Obviamente, que para responder o questionamento comple-
xo, é imprescindível que se faça uma primeira análise do sistema
normativo internacional e de que forma os documentos internacio-
nais dão conta de resolver a questão; e no segundo momento, como
se dá esta proteção no âmbito interno, ou seja, no sistema normativo
brasileiro.
Considerando que crianças e adolescentes são sujeitos que
estão em fase peculiar de desenvolvimento, são eles indivíduos in-
capazes de absorverem os anúncios publicitários de forma crítica e

278 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
reflexiva como fazem os adultos, e são diretamente impulsionados
e incutidos à valores que os levam ao consumismo precoce (HENRI-
QUES, 2007, p. 15). Pesquisas apontam que as crianças e adolescentes
acreditam fielmente no que o anúncio publicitário transmite de infor-
mações acerca dos seus produtos (BJURSTRÖM, 2000, p. 22-23)
Primeiramente é importante distinguir conceitualmente os
termos “propaganda” e “publicidade”, pois em muitos textos são
encontrados como se sinônimos fossem. De acordo com Henriques
(2007, p. 35), a palavra propaganda em seu aspecto terminológico
significa “[...] propagação de ideologia de caráter ético, moral, polí-
tico, religioso, social ou econômico, sem qualquer intuito comercial
[...]”. Já publicidade é definida por Denari (1992, p. 135) como a
“oferta de bens ou serviços no mercado de consumo, patrocinada
por anunciante mediante estipulação de preço, prazo ou condições
de pagamento.”
No plano internacional a Convenção Internacional dos Direi-
tos da Criança de 1989 reconhece a importância em proteger a crian-
ça contra toda informação e material prejudicial ao seu bem-estar,
conforme disposto no art. 17.

Art.17
1 – Os Estados Partes reconhecem a função importante de-
sempenhada pelos meios de comunicação e zelarão para
que a criança tenha acesso a informações e materiais proce-
dentes de diversas fontes nacionais e internacionais, espe-
cialmente informações e materiais que visem promover seu
bem-estar social, espiritual e moral e sua saúde física
e mental.

Para tanto, os Estados-Parte:

a) incentivarão os meios de comunicação a difundir infor-


mações e materiais de interesse social e cultural para a crian-
ça, de acordo com o espírito do Artigo 19;

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
279
b) promoverão a cooperação internacional na produção, no
intercâmbio e na divulgação dessas informações procedentes
de diversas fontes culturais, nacionais e internacionais;
c) incentivarão a produção e a difusão de livros para crian-
ças;
d) incentivarão os meios de comunicação no sentido de,
particularmente, considerar as necessidades lingüísticas da
criança que pertença a um grupo minoritário ou que seja in-
dígena;
e) promoverão a elaboração de diretrizes apropriadas
a fim de proteger a criança contra toda informação e
material prejudiciais ao seu bem estar, tendo em con-
ta as disposições dos Artigos 13 e 18.

Acerca da comunicação social a Constituição Federal de 1988


reservou um espaço para tratar deste assunto no capítulo V e em li-
nhas gerais a Constituição torna livre a manifestação de pensamen-
to, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, pro-
cesso ou veículo, sem restrição, ou seja, sem censura. (art. 220) Mas
enfatiza-se, que a publicidade mercadológica dirigida para crianças
e adolescentes não pode ser entendida neste caso como mera “liber-
dade de expressão e comunicação”. Por isso, não se entende como
censura a restrição de propaganda para crianças e adolescentes que
ferem os próprios preceitos sobre a comunicação social contidos na
Constituição no seguinte dispositivo:

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rá-


dio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais
e informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à
produção independente que objetive sua divulgação;
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalís-
tica, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da
família. (grifou-se)

280 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Neste sentido, deve-se entender que as informações publi-
citárias mercadológicas dirigidas para crianças e adolescentes estão
inseridas na programação das emissoras de rádio e de televisão e
que, sob estes aspectos devem apresentar conteúdo apropriado em
consonância com o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e
da família. O que significa afirmar-se que incutir valores consumis-
tas nas crianças e adolescentes pela via da publicidade mercadoló-
gica fere os princípios constitucionais de proteção aos direitos de
crianças e adolescentes.
No mesmo sentido o Código de Defesa do Consumidor, apro-
vado pela Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 tem uma seção
especial que aborda a questão da publicidade. Assim como o Direito
da Criança e do Adolescente, o Direito do Consumidor tem uma le-
gislação especial regido por regras e princípios. A redação do artigo
36 informa que: “A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o
consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal.” Este dis-
positivo é elucidativo da influência negativa que a publicidade mer-
cadológica dirigida para crianças e adolescentes exerce sobre elas, e
de tal forma fere o princípio da identificação publicitária183, uma vez
que devido a sua fase peculiar de desenvolvimento, estes sujeitos
não conseguem diferenciar programas de propagandas publicitárias
(BJURSTRÖM, 2000, p. 25-26), e/ ou muitas vezes são induzidos a
erro (art. 37, § 1º).
A redação do § 2º do artigo 37 do Código de Defesa do Con-
sumidor é ainda mais precisa sobre esta questão ao disciplinar que:

§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória


de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o
medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de jul-

183
Outros princípios regidos pelo Direito do Consumidor deverão ser estudados ao longo
do desenvolvimento desta pesquisa, entre os quais destacam-se: 1) princípio da boa-
fé e da equidade; 2) princípio da veracidade da mensagem publicitária; 3) princípio
da não-abusividade da publicidade; 4) princípio da reparabilidade objetiva dos danos
publicitários.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
281
gamento e experiência da criança, desrespeita valores
ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se
comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou
segurança. (grifou-se)

Embora a legislação se refira apenas a falta de maturidade da


criança, a Doutrina da Proteção Integral consubstanciada pelo Direi-
to da Criança e do Adolescente entende que os adolescentes (pessoas
de 12 à 18 anos de idade) também encontram-se em fase peculiar de
desenvolvimento e que por isso, os anúncios publicitários dirigidos
à eles também merecem atenção e proteção do Estado, da família e
da sociedade, porque também são facilmente influenciáveis ao con-
sumismo, assim como, as crianças.
Considerando que o objetivo principal da publicidade mer-
cadológica é a comunicação e a persuasão para o consumo do item
anunciado, para a proteção dos direitos de crianças e adolescentes
se faz necessário uma análise sistemática dos tratados e convenções
internacionais, da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código de Defesa
do Consumidor.
A busca pela efetividade normativa, neste caso, também pre-
cede da compreensão sobre a sociedade contemporânea e sua re-
lação intrínseca com o consumismo. É preciso também estudar a
sociedade de consumo que transforma pessoas em mercadorias, que
o “ter” antecede ao “ser” nas relações que se estabelecem entre as
pessoas (BAUMAN, 2008).
É preciso também estabelecer as diferenças conceituais em
torno dos termos “consumo” e “consumismo” para, a partir disso,
verificar a importância que o consumo desempenha na formação de
identidades na sociedade e, da qual, abrange também a formação e/
ou construção de identidades/ e valores a partir do que se consome,
do que se compra. Crianças e adolescentes estão indiscutivelmente
presentes como consumidoras na sociedade contemporânea e, por

282 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
isso a publicidade mercadológica é agente preponderante e talvez
determinante para isso.
Para Barbosa e Campbell (2006, p. 26),

[...] na sociedade contemporânea, consumo é ao mesmo tem-


po um processo social que diz respeito a múltiplas formas de
provisão de bens e serviços e a diferentes formas de acesso
a esses mesmos bens e serviços; um mecanismo social per-
cebido pelas ciências sociais como produtor de sentido e de
identidades, independentemente da aquisição de um bem;
uma estratégia utilizada no cotidiano pelos mais diferentes
grupos sociais para definir diversas situações em termos de
direitos, estilos de vida e identidades; e uma categoria cen-
tral na definição da sociedade contemporânea.

No mesmo sentido é o entendimento de Bjurström (2000)


ao afirmar que a publicidade pode contribuir para moldar a visão
de vida das pessoas, assim como transformar e/ou modificar os seus
valores morais, atitudes e ideias culturais baseando-se naqueles que
predominam na sociedade de consumo. De acordo com o autor es-
sas influências exercidas pela informação publicitária podem durar
muito tempo, sendo difícil isolá-las na sociedade de consumo.
Um estudo patrocinado pela Organização Mundial da Saúde
destaca que nas questões envolvendo publicidade para crianças e
adolescentes:

Há grandes diferenças nas abordagens utilizadas pelos países


na regulamentação da publicidade televisiva. Alguns se fun-
damentam somente em regulamentações estatutárias (aque-
las estabelecidas por leis, estatutos ou regras destinadas a
complementar os detalhes de conceitos amplos determina-
dos pela legislação). Outros preferem a auto-regulamentação
(aquela colocada em vigor por um sistema auto-regulatório,
no qual a indústria, que tem participação ativa, acaba sen-
do responsável por sua própria regulamentação). Em mui-
tos casos, ambas as formas de regulamentação coexistem. O

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
283
princípio subjacente a muitas regulamentações é que a pu-
blicidade não dever ser enganosa ou abusiva. A maioria das
regulamentações nacionais reconhece as crianças como um
grupo especial que necessita de considerações específicas e
estipula que a publicidade não deve ser prejudicial ou explo-
radora da sua credulidade. (HAWKES, 2006, p. 7)

É importante, portanto, compreender o papel que a informação


publicitária exerce no cotidiano das pessoas e ao mesmo tempo
verificar de que forma a propaganda mercadológica pode influenciar
crianças e adolescentes ao consumismo precoce. E desta forma,
pensar de que forma, ou ainda, se é possível proteger a criança e o
adolescente destas informações. Esta é uma preocupação que não só
do Brasil, mas de muitos países.
Um estudo sobre o cenário global das regulamentações da
propaganda voltada para produtos alimentícios constatou-se que:

Nos últimos anos, propostas para restringir a publicidade te-


levisiva para crianças têm sido feitas em diversos países, in-
cluindo Alemanha, Austrália, Brasil, França, Índia, Irlanda,
Itália, Malásia, Nova Zelândia, Polônia e Reino Unido. Várias
dessas propostas se referem especificamente aos produtos
alimentícios. No Brasil, por exemplo, um projeto de lei, colo-
cado em pauta em fevereiro de 2003, fundamenta-se na saú-
de infantil para tentar restringir a publicidade de produtos
alimentícios. Na França, uma ementa à Lei da Saúde Pública
para proibir comerciais de produtos com teores elevados de
açúcar e gordura durante o horário infantil de televisão foi
proposta ao parlamento. No Reino Unido, um projeto de lei
para proibir certos comerciais de alimentos dirigidos a crian-
ças foi reintroduzido em novembro de 2003, e, no mês se-
guinte, o parlamento irlandês discutiu (mas não aprovou)
um projeto de lei proposto por parlamentares que proibiria
comerciais de alimentos considerados não saudáveis (junk
food)” Também no final de 2003, a Coalizão para a Publi-
cidade de Alimentos para Crianças (Coalition on Food Ad-
vertising to Children – CFAC) da Austrália reiterou sua de-

284 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
manda de proibição de um comercial de alimentos dirigido a
crianças abaixo dos 12 anos de idade. (HAWKES, 2006, p. 7)

No plano internacional já há o desenvolvimento de códigos


auto-regulatórios para estabelecer algumas regras sobre a publici-
dade voltada para o público infantil que têm sido discutidas pela
International Chamber of Commerce (Câmara Internacional do Co-
mércio - ICC). A International Chamber of Commerce – ICC é uma
organização que atua como ‘a voz internacional do mundo dos negó-
cios’ e elabora ‘regras e padrões acordados internacionalmente que
as empresas adotam de forma voluntária.
A ICC – Câmara Internacional do Comércio – desenvolveu
uma série de códigos de prática que estabelecem padrões éticos para
diferentes tipos de marketing, cada um deles incluindo uma cláusu-
la sobre crianças. Muitos países têm aplicado ou adaptado os códigos
da ICC para formar a base dos seus próprios sistemas nacionais de
auto-regulamentação publicitária.
A publicidade televisiva é coberta pelo Código Internacional
de Prática Publicitária (International Code of Advertising Practice)
da ICC, que lançado em 1997, ainda encontra-se em fase de revisão.
De acordo com esse código, a publicidade não deve ser abusiva ou
enganosa, entendendo a publicidade conforme os artigos abaixo:

Artigo 1. Toda publicidade deve ser legal, decente, honesta


e verdadeira.
Artigo 5. A publicidade não deve conter qualquer declaração
ou apresentação visual que, diretamente ou por implicação,
omissão, ambigüidade ou apelo exagerado, possa confundir
o consumidor.
Artigo 12. A publicidade deve ser claramente distinguível
como tal, seja qual for sua forma ou o meio em que esteja
sendo veiculada.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
285
Artigo 14. As seguintes provisões aplicam-se à publicidade
dirigida a crianças e jovens menores sob a lei nacional apli-
cável.
Inexperiência e credulidade
a. A publicidade não deve explorar a inexperiência ou credu-
lidade de crianças e jovens.
b. A publicidade não deve subestimar o grau de habilidade
ou nível de idade geralmente exigido para utilizar ou usu-
fruir de um produto.
i. Deve-se tomar cuidado especial para assegurar que a publi-
cidade não engane as crianças e jovens com relação ao real
tamanho, valor, natureza, durabilidade e desempenho do
produto divulgado.
ii. Se forem necessários itens extras para usá-lo, como pilhas,
ou produzir o resultado mostrado ou descrito, como tinta,
isso deve ser deixado claro.
iii. Deve-se indicar claramente quando um produto for parte
de uma série, bem como o meio de se adquirir a série.
iv. Quando os resultados do uso do produto forem mostrados
ou descritos, a publicidade deve representar o que pode ser
razoavelmente obtido pela média das crianças ou um jovem
na faixa etária para a qual o produto se destina.
c. A indicação do preço não deve ser feita de forma a condu-
zir as crianças e jovens a uma percepção irreal do verdadei-
ro valor do produto, por exemplo, pelo uso da palavra ‘só’.
Nenhuma publicidade deve sugerir que o produto divulgado
está imediatamente ao alcance do orçamento de toda famí-
lia.

No relatório produzido pela Organização Mundial da Saúde


em 2006, há informação de que há muitas divergências entre os paí-
ses na forma como regulamentar a publicidade abusiva voltada para
a o público infantil. De acordo com o documento:

Organizações como a ICC, a Federação Mundial de Anun-


ciantes (World Federation of Advertisers – WFA), o Grupo

286 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Europeu de Publicidade Televisiva (EGTA) e a Aliança Eu-
ropéia de Padrões Publicitários (Easa) argumentam que a
publicidade para crianças já é rigorosamente regulamentada
tanto pelo governo quanto pelas SROs, e que controles mais
estatutários são desnecessários. O raciocínio é que com rela-
ção à legislação, a auto-regulamentação é mais rápida, mais
custo-eficaz e flexível. Também reverte o princípio da obri-
gação de apresentar provas; assegura que as sanções sejam
proporcionais e eficazes; facilita o estabelecimento de postu-
ras pró-ativas e preventivas; e – uma questão crucial quando
se trata de sanções – promove o cumprimento ao invés de
incentivar a evasão. Em resposta ao argumento das “raposas
vigiando o galinheiro”, as SROs afirmam que “na indústria
publicitária, a auto-regulamentação, apoiada por sanções
apropriadas e suporte legal, é altamente eficaz”. (HAWKES,
2006, p. 34)

No Brasil, atualmente a propaganda mercadológica é autore-


gulamentada pelo Conselho Nacional de Autoregulamentação Publi-
citária (CONAR). O CONAR é uma organização não-governamental
criada em 1980 com o objetivo de frear a sanção de uma lei federal
que previa censura prévia à propaganda. O CONAR que tem em sua
composição pessoas da sociedade civil, sendo constituído por publi-
citários e profissionais de outras áreas, foi responsável pela criação
de um Código Brasileiro de Autoregulamentação Publicitária.
Além de autoregulamentar o mercado publicitário no país, o
CONAR tem como atribuição principal o atendimento a denúncias
de consumidores, autoridades, associados ou formuladas pelos inte-
grantes da própria diretoria.

As denúncias são julgadas pelo Conselho de Ética, com to-


tal e plena garantia de direito de defesa aos responsáveis
pelo anúncio. Quando comprovada a procedência de uma
denúncia, é sua responsabilidade recomendar alteração
ou suspender a veiculação do anúncio. O CONAR não
exerce censura prévia sobre peças publicitárias, já que
se ocupa somente do que está sendo ou foi veiculado.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
287
Mantido pela contribuição das principais entidades da pu-
blicidade brasileira e seus filiados – anunciantes, agências e
veículos –, tem sede na cidade de São Paulo e atua em todo
o país.184

De acordo com o grifado, observa-se que o CONAR por ser


um Conselho de Autoregulamentação não impõe de forma coercitiva
nenhuma medida as agências de publicidade que veicularem propa-
ganda contrária aos princípios éticos e jurídicos previsto na legisla-
ção brasileira, apenas recomenda a sua não veiculação. E também
não regula a informação publicitária que é lançada na sociedade,
uma vez que sua atuação na maioria das vezes ocorre por meio de
denúncias. Não há efetiva fiscalização à propaganda mercadológica
que são anunciadas, cabendo as agências apenas seguir “por espon-
tânea vontade” o Código Brasileiro de Autoregulamentação Publici-
tária criado pelo CONAR.
A seção 11 do Código Brasileiro de Autoregulamentação Pu-
blicitária discorre sobre os interesses de crianças e adolescentes e in-
forma que “nenhum anúncio publicitário dirigirá apelo imperativo
de consumo diretamente à criança.” (art. 37) E mais:

Art. 37, II - Quando os produtos forem destinados ao consu-


mo por crianças e adolescentes seus anúncios deverão:
a. procurar contribuir para o desenvolvimento positi-
vo das relações entre pais e filhos, alunos e professores, e
demais relacionamentos que envolvam o público-alvo;
b. respeitar a dignidade, ingenuidade, credulidade,
inexperiência e o sentimento de lealdade do público-
-alvo;
c. dar atenção especial às características psicológicas
do público-alvo, presumida sua menor capacidade de
discernimento;
d. obedecer a cuidados tais que evitem eventuais distorções
psicológicas nos modelos publicitários e no público-alvo;

184
Informação disponível em: <http://www.conar.org.br/>. Acesso em 20 abr. 2013.

288 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
e. abster-se de estimular comportamentos socialmente con-
denáveis. (grifou-se)

Observa-se que o inciso II do art. 37 informa que a publici-


dade mercadológica pode ser destinada à crianças e adolescentes,
observados alguns requisitos, quando sob os preceitos da Doutrina
da Proteção Integral, esses anúncios que envolvam crianças e ado-
lescentes como público alvo deveriam ser direcionados aos pais e/ou
responsáveis. A redação das alíneas “b” e “c” indicam que a criança
e o adolescente, por estar em processo de desenvolvimento não tem
capacidade reflexiva e crítica sobre o conteúdo publicitário que lhes
é anunciado, o que pode vir a acarretar no consumismo precoce.
Por isso, ao se considerar que o foco desta pesquisa é a preo-
cupação com a efetivação dos direitos de crianças e adolescentes
expostas à propaganda mercadológica, resta saber se a autorregu-
lamentação do CONAR no Brasil, e as demais medidas protetivas
que se tem adotado no âmbito internacional são mecanismos su-
ficientes para evitar o consumismo precoce. É imprescindível para
que haja efetiva mudança, pensar em ações conjuntas envolvendo a
sociedade, a família e o Estado, e a compreensão de que este é um
fenômeno complexo e que não se limita ao território de um país
apenas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo do Direito Internacional dos Direitos Humanos que
passa a situar o ser humano como verdadeiro sujeito do direito inter-
nacional, cuja proteção intrínseca é a de resguardar a sua dignidade
humana, envolve revisar também a própria noção tradicional de so-
berania estatal.
Neste breve estudo, procurou-se demonstrar em linhas gerais
a trajetória história do Direito Internacional dos Direitos Humanos
e relacioná-lo com o Direito da Criança e do Adolescente no Brasil.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
289
O principal objeto desta pesquisa envolve situar a criança e o ado-
lescente como sujeito de direitos, bem como, sujeitos do Direito In-
ternacional dos Direitos Humanos, e como tal, tentar verificar qual
resposta normativa o sistema internacional e o sistema internam
dão para os riscos a que estão expostos estes sujeitos à publicidade
mercadológica.
Atualmente no Brasil não há regulamentação normativa
voltada para combater a publicidade mercadológica para crianças
e adolescentes, há apenas a autoregulamentação imposta para as
agências de publicidade pelo Conselho Nacional de Autoregulamen-
tação (CONAR). O CONAR é um órgão não-governamental formado
por membros da sociedade civil, sendo que muitos destes são vincu-
lados às próprias agências de publicidade, o que resta apenas confiar
que dêem uma atenção devida ao tema.
Como se viu, outros países também dão atenção ao tema e a
própria Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989,
embora não mencione o termo publicidade em seu catálogo norma-
tivo, menciona que a criança e o adolescente deverão receber prote-
ção contra toda a informação que prejudique o seu bem estar.
Indivíduos conscientes e responsáveis são à base de uma so-
ciedade mais justa e fraterna, que tenha a qualidade de vida não
apenas como um conceito a ser perseguido, mas com uma prática a
ser vivida.
É necessário que o processo de mudança e conscientização
sobre a temática envolva toda sociedade, capaz de acionar um
processo de mobilização da opinião pública que abarque a proteção
de crianças e adolescentes expostas à publicidade mercadológica.
Destaca-se, a urgência que o Estado, a família e a sociedade
têm em cumprir o seu papel, enquanto garantidores dos direitos de
crianças e adolescentes. Trata-se de proposta de pesquisa em relação
a um tema preocupante o qual poderá trazer contribuição histórica
significativa.

290 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A publicidade mercadológica tem como objetivo principal a
persuasão para o consumo do item anunciado. É importante que se
comece a desenvolver pesquisas sobre este tema de tamanha im-
portância na sociedade atual, porque o consumismo infantil é uma
questão urgente e de interesse geral que envolve questões éticas (va-
lores) decorrentes deste processo.
É de fundamental importância verificar se a autoregula-
mentação imposta às agências de publicidade é mecanismo
suficiente para resguardar os direitos de crianças e adolescentes.
Para a compreensão dos temas que envolvem a garantia dos direitos
da infância e adolescência e questões referentes aos estudos sobre
publicidade versus consumismo precoce. É imprescindível um estudo
aprofundado sobre Direito da Criança e do Adolescente e sobre as
questões éticas, sociais e jurídicas que envolvem o consumismo de-
corrente das informações publicitárias mercadológicas.
Essa reflexão, portanto, interdisciplinar possibilita a com-
preensão da necessidade urgente em estudar o Direito da Criança e
do Adolescente a partir também da perspectiva da sociedade de con-
sumo. A escolha por esses dois marcos teóricos permitirá uma análise
mais concisa acerca da necessidade de implantação de mecanismos
jurídicos que protejam de forma efetiva os direitos de crianças e ado-
lescentes para além, se necessário, da via da autoregulamentação.

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
293
XENOFOBIA E PRECONCEITO NAS
POLÍTICAS EUROPEIAS DE IMIGRAÇÃO: A
DIRETIVA DE RETORNO E SEU IMPACTO NA
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DA
CRIANÇA
Caroline Santos de Viera
Mestre em Ciências Criminais, Especialista em Ciências Penais, Bacharel em Di-
reito pela PUCRS. Advogada. (carolviera@outlook.com)

Gustavo Oliveira de Lima Pereira


Doutorando em Filosofia pela PUC\RS. Bolsista CNPq. Mestre em Direito pela
Unisinos. Professor de Direito Internacional e Teoria do Direito da PUC\RS.
(gustavo.pereira@pucrs.br)

Resumo:
O conflituoso cenário geopolítico mundial traz novos desafios aos direitos humanos, no ím-
peto de realização do sonho de uma comunidade internacional cosmopolita. No contexto
político mundial, a diretiva de retorno, desenvolvida na Europa como instrumento para neu-
tralização e afastamento de imigrantes, são circunstâncias que possibilitam diagnosticar que
há um contexto de criminalização do estrangeiro em importantes centros políticos interna-
cionais e que esta aversão ao acolhimento da diferença pode representar um retrocesso em
termos de internacionalização do direito. Nos termos do retorno a xenofobia europeia, quem
mais sofre na pele são as crianças estrangeiras, pois a diretiva de retorno, em muitos pontos,
atua assimetricamente às Convenções Internacionais de proteção à criança. Neste sentido, o
presente artigo visa problematizar os flancos e aporias que o direito internacional se situa, em
relação à proteção das crianças estrangeiras.
Palavras-chave: diretiva de retorno, direitos humanos, criança.

Sumário: 1. Introdução. 2. A Diretiva de retorno: o repúdio à diferença e a criminalização do


estrangeiro. 3. O Sistema Internacional de proteção aos direitos da criança. 4. Considerações
Finais. 5. Referências.

294 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa analisar o atual tratamento jurídico
internacional do fenômeno da migração de crianças. Para tanto, ana-
lisaremos a Diretiva de Retorno desenvolvida na Europa, que pode
ser vista como um instrumento que intenta obstaculizar o trânsito
de estrangeiros, facilitar a sua exclusão das nações europeias e até
criminalizar imigrantes bem como aqueles que os auxiliam. Eviden-
temente, o recrudescimento das políticas imigratórias em relação
aos estrangeiros. Neste grupo, evidentemente, estão as crianças que
acompanham seus pais, bem como aquelas que estão desacompa-
nhadas e ou separadas dos mesmos e é este o ponto que pretende-
mos focar: o descaso em relação às crianças estrangeiras. Para tan-
to, apresentaremos os diplomas de direitos internacionais humanos
relativos aos direitos da criança, a fim de demonstrar a construção
teórica pertinente ao tema no que tange ao Direito Internacional e
sua disparidade em relação a diretiva de retorno.
A pesquisa possui relevância acadêmica e social, pois o fe-
nômeno da migração não é uma novidade, ocorre desde que a vida
humana iniciou, como um processo econômico, social e político que
afeta todas as pessoas envolvidas direta e indiretamente nesse pro-
cesso. As pessoas atravessam fronteiras para buscar melhores opor-
tunidades de emprego, para oferecer um futuro melhor para suas
famílias185, para fugir da violência, do desastre e da fome, razão pela
qual cada vez mais as crianças protagonizam essas migrações.
Neste sentido Jacqueline Babha186 alerta:

185
REYES, Melanie M. et all. Migration and Filipino Children Left-Behind: A Literature Re-
view. p. 1. Disponível em: <http://fahnoe-domains.ph/filer/toledo-cebu/Synthesis_
StudyJuly12008.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2013. Traduzido pelos autores.
186
BHABHA, Jaqueline. Arendt’s chuldren: Do today migrant children have a right to have
rights? p. 412. In: Human Rights Quarterly, v. 31, n. 2, maio/2009. p. 410-451.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
295
The above-cited definition of a stateless person in international law
is straightforward. It divides the universe into two groups of peo-
ple—those who are “considered nationals” by a state and those who
are not. But the reality of child statelessness today is anything but
straightforward. The unenforceability of fundamental rights related
to nationality impinges on a heterogeneous group of children that
includes undocumented immigrants, “irregular” migrants, and tra-
fficking victims. By some accounts, the group also includes children
whose birth is never registered and who therefore lack a legal identity
or the ability to prove one—a group that encompasses approximately
forty percent of annual births globally.8

Na Europa, o controle do fluxo migratório se mostra xenofó-


bico, sobretudo tendo em vista a postura exercida pelo Presidente da
França Nicolas Sarkozy (de 2002 a 2007), que ficou conhecido pelas
suas políticas de repressão extrema aos imigrantes ilegais na França
chegando a prometer, em campanha presidencial, o corte de novos
imigrantes em território francês pela metade. Em outubro de 2009,
Sarkozy convocou um debate sobre a identidade nacional, afirman-
do que a burca é contra a cultura francesa. A partir disso foi desen-
volvida uma lei que impunha multas de até 750 euros para quem
saísse em território francês com o rosto inteiramente mascarado
(permitindo-se exceções festivas como no período do carnaval). Não
há como não se notar que o ataque supostamente laico e em nome
da dignidade dos direitos humanos (cuja França reivindica ser o seu
berço) acaba reiterando a absoluta intolerância à diferença e refor-
çando a defesa do específico modo de vida francês187.
No ano de 2010, aproximadamente 1.700 ciganos em situa-
ção “irregular” foram expulsos do território francês com a aprovação
do presidente Nicolas Sarkozy, gerando um intenso embate entre o
governo francês e a Comissão Europeia. A polêmica, que repercutiu
a patamares internacionais, promoveu uma situação conflitante en-
tre Paris e Bruxelas, cidade considerada a capital de fato da União

187
ŽIŽEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: boitempo, 2012. p. 17-18.

296 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Europeia. O desconforto surgiu em virtude de uma diretriz emitida
pelo Ministério do Interior. Uma circular oficial mencionava expli-
citamente como “prioritário o desmantelamento de acampamentos
ilegais de ciganos188. A população dos ciganos na França é estimada
em 15 mil pessoas. (Da mesma maneira o governo italiano seguiu os
procedimentos de expulsão da população cigana, estimada em 152
mil pessoas, um terço de nacionalidade italiana189).
O dia 6 de maio de 2012 trouxe novas expectativas ao ce-
nário político europeu. A eleição de François Hollande como novo
presidente da França, com 51,6 % dos votos, significa a retomada da
esquerda ao governo francês, após 17 anos de hegemonia direitista.
O resultado demonstrou o descontentamento público com a política
de Nilcolas Sarkozy, apesar da apertada diferença de votos. Em meio
a crise econômica vivenciada pela Europa, o povo francês optou pela
mudança; mas o que seduziu os eleitores do novo presidente guar-
da relação com as propostas de flexibilização da política imigratória
francesa por ele proposta?
François Hollande, em sua plataforma, acentuou e prometeu
manter restrições na política imigratória do país, porém enfatizou
que em seu governo haverá uma flexibilização nesta guerra de força
contra os estrangeiros.
É sabido que o recrudescimento da política imigratória no
país conta com o apoio popular há tempos. “Eles roubam nossos
espaço de empregos, hospitais e escolas!”. Está frase é disseminada
pelos arredores de Paris. O que não é sabido ainda é o alcance da
flexibilização desta política no novo governo. De fato ocorrerá ou
entrará para os anais do falatório político europeu sobre a questão da
imigração? Atenuará a forte hostilidade destinada aos estrangeiros
desenvolvida, principalmente, após a criação da diretiva de retorno

188
Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/09/franca-expulsou-1700-
ciganos-em-quase-tres-meses-ministro.html>. Acesso em: 12 maio 2013.
189
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u421361.shtml>.
Acesso em: 12 maio 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
297
europeia? Estas questões são de suprema importância para o hori-
zonte dos direitos humanos.

2 A DIRETIVA DE RETORNO: O REPÚDIO


À DIFERENÇA E A CRIMINALIZAÇÃO DO
ESTRANGEIRO
A diretiva de retorno (também reverenciada como diretiva
da vergonha) foi desenvolvida na Europa para obstaculizar o trân-
sito de estrangeiros, facilitar a sua exclusão das nações europeias
e até criminalizar imigrantes bem como aqueles que os auxiliam.
Esta criminalização, a título exemplificativo, é prevista no artigo
318 do código penal espanhol, que prevê uma pena de até 8 anos de
prisão para aqueles que conferem assistência para algum imigran-
te ilegal ou clandestino (circunstância que ficou conhecida como
crime de hospitalidade190), além de não possibilitar medidas alter-
nativas à expulsão.
Aos países da União Europeia não é permitido a não apli-
cação da diretiva de retorno, porém nada obsta a confecção de leis
mais benéficas aos estrangeiros do que aquelas previstas na diretiva.
Portugal, por exemplo, pode aplicar a sua legislação sobre o tema,
que traz consideráveis benefícios aos imigrantes ilegais em compa-
ração com a diretiva de retorno.
O argumento principal para o desenvolvimento da Diretiva
se direcionou no sentido de sustentar que a imigração é vista como
algo problemático nas populações de destino e também fortalecer
o controle migratório interno dos países que recebem pessoas em
condição ilegal, consagrando a soberania do Estado. A União Euro-
peia deliberou e concluiu que a figura do estrangeiro ilegal é capaz
de despertar um sentimento de medo ou de ameaça em relação a
aspectos tais como o emprego, a cultura, identidade, a segurança
e a ordem econômica. Para tanto, a ideia seria tolher os imigrantes
190
Sobre o tema, conferir também o tocante filme “Bem-Vindo” do diretor Phhilipe Lioret,
produzido em 2009.

298 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


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ilegais, ou seja, eliminar, em tese, somente àqueles que estariam em
território europeu de forma irregular. Cabe aqui brevemente referir
que o termo “ilegal”, além de estigmatizar, também sugere uma sub-
categoria de ser humano que pelo simples fato de ter deixado o seu
país de origem, em grande parte por necessidade sociais e econômi-
cas, são considerados criminosos191.
A tensão ganha outros contornos quando se trata dos imi-
grantes que estão em condição legal, pois estes também podem,
a qualquer momento, ter seu direito de permanência, apesar da
condição jurídica regular (frise-se uma vez mais), suprimido, pois,
conforme disposição literal da diretiva, em seu artigo 6, n. 6: “a
presente diretiva não obsta a que os Estados-Membros tomem a
decisão de pôr termo a uma permanência legal, juntamente com
uma decisão de regresso e/ou uma ordem de afastamento, e/ou
uma interdição de entrada, no âmbito de uma decisão ou ato admi-
nistrativo ou judicial previsto no seu direito interno”. Uma rápida
análise deste dispositivo nos permite afirmar, sem hesitar, que em-
bora o discurso oficial que legitima a Diretiva se afirme no sentido
de combater a imigração ilegal, com a expressa possibilidade de tal
política se estender também aos estrangeiros legais, o verdadeiro
interesse da União Europeia está na, discricionária, exclusão geral
dos estrangeiros, vistos como seres que infestam, sujam e conspur-
cam os interesses da Europa.
Ousamos afirmar, sem reticências, que a diretiva de retorno
representa o símbolo da xenofobia europeia em detrimento da diver-
sidade intercultural e do reconhecimento e acolhimento do outro;
– tido como inimigo –, ganhando, em algum sentido, a tonalida-
de totalitária que tornou a Europa um barril de pólvora durante as
guerras mundiais. A diretiva de Retorno é composta por 23 artigos.
Exporemos alguns deles para explicitar nossa tese.

191
LEITE, Rodrigo de Almeida. Os paradoxos do tratamento da imigração ilegal na União
Europeia frente à Diretiva de Retorno. Revista Espaço acadêmico. n. 108. Maio de 2010,
p. 61-70, p. 64.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
299
A diretiva de retorno representa o posicionamento adotado
pela comunidade europeia em relação ao imigrante, a exemplo da
proposta do governo Berlusconi, aprovada pelo parlamento italia-
no, segundo a qual a entrada e permanência ilegal na Itália seria
punível como crime com pena de até 3 anos, obrigando, ainda, os
funcionários públicos a denunciarem imigrantes ilegais. O quórum
de votação desta normativa foi de 369 votos a favor, 197 contra e
106 abstenções, e, após receber alterações do parlamento europeu,
foi recepcionada por todos os países da União Europeia em 2010. O
artigo 19 prevê a entrega ao Parlamento Europeu e ao Conselho, de
três em três anos, um relatório, por parte da Comissão da diretiva,
informando como vem sendo a sua aplicação da Diretiva por parte
dos Estados-membros.
Percorrendo o procedimento de regresso do estrangeiro ile-
gal em território europeu, disposto na diretiva, analisa-se a existên-
cia do sistema de retorno: segundo o artigo 7º, n. 1, é emitida uma
ordem voluntária para que o imigrante deixe a União Europeia, no
prazo entre 7 e 30 dias. Cabe ressaltar que o Estado europeu pode
eliminar este prazo ou troná-lo inferior aos 7 dias caso entenda,
discricionariamente, que o estrangeiro representa uma ameaça a
ordem ou segurança pública ou nacional do país (art. 7, n. 4).
Se não incorrer em ameaça à segurança nacional, o estran-
geiro ilegal poderá ter ampliado o prazo, quando as especificidades
no caso concreto permitirem, como a existência de filhos ou outros
membros da família em período escolar (art. 7, n. 2). Neste caso,
podem ser impostas determinadas obrigações para evitar o risco de
fuga, como a exigência de apresentações periódicas às autoridades,
o depósito de caução adequada, a apresentação de documentos ou a
obrigação de permanecer em determinado local durante o referido
período, sem deslocar-se pelo território europeu (art. 7, n. 3).
Não cumprido o prazo previsto para retorno voluntário por
parte do imigrante, estará legitimado o Estado europeu a expulsá-lo
de seu território. A possibilidade de regresso do estrangeiro expulso
ao território europeu também está regulada pela diretiva de retorno,

300 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
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que prevê, em seu artigo 11, n. 2 e 3, que no instante onde é decidi-
do o retorno do imigrante, deve o Estado também estipular o prazo
de proibição de regresso. Segundo a diretiva, este prazo não deverá
exceder a cinco anos. No entanto, se o Estado europeu entender que
o estrangeiro é nocivo a segurança pública e a segurança nacional,
este prazo poderá ser, discricionariamente, ampliado.
Além de estipular o prazo de regresso, a decisão pelo retorno
do estrangeiro deverá ser escrita e fundamentada, explicitando as
razões de fato e de direito para tal resolução. Tal situação está re-
gulada pelo artigo 12 da diretiva, que é destinado a tratar a respeito
das garantias processuais ao imigrante ilegal, cujo Estado decidiu
por seu retorno. Importante ressaltar que a divulgação das razões de
fato pode ser suprimidas, caso o Estado entenda que elas ameaçam
a segurança nacional do país. Assim, é possível observar que a publi-
cização dos motivos da exclusão são absolutamente discricionários
(art. 12, n. 1).
Além disso, o tópico que trata das garantias processuais tam-
bém traz outra dimensão curiosa: os Estados podem fornecer uma
tradução escrita ou oral dos principais elementos das decisões re-
lacionadas com o imigrante, mas farão isso somente a pedido do
interessado (art. 12, n. 2). Ou seja, não é garantia fundamental do
imigrante ter consigo a decisão que decide seu iminente destino. É
somente se conseguir requerê-la. E como terá ele condições de re-
querê-la? Quem pode acreditar na transparência dos órgãos envolvi-
dos no sentido que informar ao imigrante esta condição? No mesmo
sentido está disposto o artigo 13, n. 1, que confere a mera possibili-
dade de assistência judiciária ao estrangeiro, para poder questionar e
recorrer das decisões que decretam o retorno, sem que isso implique
efetivamente uma garantia fundamental ou uma obrigação primária
do Estado; situação que evidentemente fere tudo que se possa en-
tender por devido processo legal192.

192
FREITAS, Isis Hochmann de. O inimigo estrangeiro: a Diretiva de Retorno à luz da inter-
nacionalização dos direitos humanos. Dissertação de mestrado. Programa de pós-gra-
duação em Ciências Criminais - PUC/RS, 2011. p. 114.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
301
O artigo 15 (n. 1) da diretiva prevê as possibilidades de pri-
são do imigrante ilegal, nos casos onde o país europeu suspeite, dis-
cricionariamente, que há risco de fuga do estrangeiro ou quando
ele tenta retardar o seu regresso voluntário ou o procedimento de
retorno. O prazo de detenção máximo é estipulado em seis meses,
podendo ser prorrogado por mais doze meses, perfazendo um total
de dezoito meses de detenção de um estrangeiro ilegal, por falta de
cooperação do estrangeiro ilegal, ou por atrasos na obtenção da do-
cumentação necessária junto de países terceiros (art. 15, n. 5 e 6).
Assim, por questões alheias à vontade do imigrante ilegal, ele
poderá ficar detido por um prazo de dezoito meses unicamente por
não possuir um documento de identificação (algo que segundo as
regras do direito internacional, no que tange a solicitação do status
de refugiado, não pode ser levado em conta), e, também em virtude
da burocracia do seu país de origem em fornecer a documentação.
Destaco também a possibilidade de prisão de menores, prevista pela
diretiva de retorno (tratada no art. 17), contrariando inúmeros Tra-
tados e Convenções internacionais a respeito da proteção da criança
e do adolescente e contrariando, inclusive, os próprios preceitos da
Diretiva, que estabelece, em seu artigo 5, que a presente normativa
se compromete com “o interesse superior da criança” e com “a vida
familiar”193.
A decisão que estipula a pena de prisão do imigrante é pas-
sível de revisão. Aqui há outro ponto de importante destaque a se
observar: a versão original da diretiva determinava que as ordens
de internamento deveriam ser reexaminadas pelo menos uma vez
por mês194, sempre por uma autoridade judicial. Esta versão sofreu
alteração, onde se estabeleceu que a detenção será reapreciada a in-
tervalos razoáveis (a critério do país europeu) (artigo 15, n. 3).
193
FREITAS, Isis Hochmann de. O inimigo estrangeiro: a Diretiva de Retornoà luz da inter-
nacionalização dos direitos humanos. Dissertação de mestrado. Programa de pós-gra-
duação em Ciências Criminais - PUC/RS, 2011. p. 116.
194
LEITE, Rodrigo de Almeida. Os paradoxos do tratamento da imigração ilegal na União
Europeia frente à Diretiva de Retorno. Revista Espaço acadêmico. n. 108. Maio de 2010,
p. 61-70, p. 66.

302 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


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Os imigrantes irregulares cuja prisão fora decretada permane-
cerão em um Centro de internamento de estrangeiros, onde deverão
permanecer enquanto não retorna ao seu país de origem. A regra geral
para a detenção dos estrangeiros ilegais são esses chamados centros
especializados, que por si só já configuram verdadeiras prisões. Não
há acesso a visitas nem tão pouco a advogados, por se tratar se uma
retenção e não de uma detenção legal, segundo o discurso oficial195.
Além disso, segundo estudos de entidades não governamentais, os
imigrantes retidos não podem realizar atividades ao ar livre, além de
contar com assistência médica e de higiene minimamente satisfató-
rias196, sendo, inclusive, dificultado ingresso de ONGs aos centros.
Mesmo sabendo-se que os centros de internamento são, de
fato, já prisões, caso algum Estado-Membro não detenha os cen-
tros, autoriza-se a detenção em estabelecimento prisional comum,
podendo, a pedido, contatar representantes legais, familiares ou au-
toridades consulares (art. 16, n. 1 e 2). Ressalta-se, uma vez mais, a
expressão “a pedido”, contida na diretiva. Significa que contatar um
advogado não se trata de um direito fundamental evidentemente
indiscutível. Ele terá contato com alguém que o defenda somente se
assim o requerer.
Mais uma vez evidencia-se que o plano formal não dá conta
de questões desta envergadura. De que adianta a Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos prever, em seu artigo 13, que “toda pessoa
tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este
regressar”, se vemos que os critérios discricionários dos Estados, ga-
rantidos também pela estrutura formal, permitem subvertê-la197.

195
TORRES, Gabriela. Encerrados sin ser culpables. Disponível em: <http://news.bbc.co.uk/
hi/spanish/international/newsid_7460000/7460946.stm>. Acesso em: 12 março 2013.
196
Um estudo realizado pela consultoria Steps Consulting Social, a pedido do próprio par-
lamento europeu, demonstrou a precariedade dos centros de internamento, dando
destaque às debilidades do centro espanhol. Disponível em: <http://estaticos.elmun-
do.es/documentos/2008/04/11/20080411.centrosdeinternamiento.pdf>.Acesso em:
18 maio 2013.
197
É válido também mencionar que a diretiva também afronta Convenção Internacional
para a Convenção de Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migratórios e suas Famí-
lias, de 1990, principalmente em seu artigo 8º.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
303
Por óbvio, tal dinâmica de rechaço ao estrangeiro ilegal afeta
também a dinâmica da proteção internacional dos direitos humanos
aos apátridas e refugiados (que também são tidos, a primeira vista,
como imigrantes ilegais). É claro que os imigrantes indesejados são
somente aqueles que podem ser retratados como a “sujeira da Euro-
pa” – Os sem papéis –. Aos estrangeiros capacitados economicamen-
te e cientificamente, o tapete de boas vindas é estendido. Esquece a
Europa de seu passado recente, onde em meados do século XX, mi-
lhares de imigrantes europeus necessitaram migrar para os demais
continentes em virtude dos regimes totalitários.
Percorrida a breve análise a respeito da diretiva de retorno e
sua implicação perante os estrangeiros, direcionamos nosso olhar
neste instante para a implicação da diretiva em relação as crianças.
A criança estrangeira talvez seja quem mais sofra na pele os efeitos
da Diretiva. A Diretiva de Retorno pode ser tida como um retrocesso
no que tange aos diplomas internacionais de proteção da criança.
Neste sentido, faremos uma breve exposição a seguir, contemplan-
do os principais Tratados Internacionais a respeito da proteção da
criança no horizonte do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

3 O SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO


AOS DIREITOS DA CRIANÇA
O sistema especial de proteção está respaldado pela “Doutri-
na das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança”, documento
que possui força coercitiva para os Estados signatários, entre os quais
o Brasil198. O documento é formado por diversos diplomas, dentre os
quais, a Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assem-
bleia das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959, reconhece que

198
Para fins de pesquisa acerca da trajetória histórica da elaboração dos diplomas de direi-
tos humanas indicamos o seguinte trabalho: SCHMIDT, Fabiana. Adolescentes privados
de liberdade: a dialética dos direitos conquistados e violados. Dissertação (Mestrado
em Serviço Social). Faculdade de Serviço Social. Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. p. 17.

304 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


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a criança, em decorrência de sua imaturidade física e mental, precisa
de proteção e cuidados especiais, acabando por estabelecer dez prin-
cípios norteadores do sistema de proteção.
Este diploma invoca o reconhecimento de condições de pro-
teção e igualdade para as crianças, trazendo em seu segundo prin-
cípio a definição do objetivo primordial do novo paradigma jurídico
que demanda a adoção, pelas nações signatárias, de ações que ga-
rantam o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social,
de forma sadia e normal, em condições de liberdade e dignidade. Na
instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em conta sobre-
tudo, os melhores interesses da criança.199
Outro instrumento integrante da Doutrina, a Convenção das
Nações Unidas de 1989200, ratificada pelo Brasil em 21.11.1990, atra-
vés da publicação do Decreto n. 99.710, seguindo pelos princípios da
Declaração de 1959, especifica e detalha ainda mais os direitos de-
correntes do novo paradigma, estabelecendo em seu artigo 3º que o
interesse superior da criança será uma consideração primordial para
toda e qualquer medida inerente ao direito da criança.
A convenção estabelece o direito à reunificação da família,
em seu artigo 10, no qual consta que todos os pedidos formulados por
uma criança ou por seus pais para entrar num Estado Parte ou para o deixar,
com o fim de reunificação familiar, são considerados pelos Estados Partes de
forma positiva, com humanidade e diligência. O artigo referido condicio-
na ainda que a apresentação de eventual pedido não deve acarretar,
por parte dos Estados, consequências adversas para os seus autores ou para
os membros das suas famílias.
O artigo da Convenção 22 assegura proteção especial à crian-
ça refugiada, determinando que os Estados Partes adotem as medidas
necessárias para que a criança requeira esta condição ou que seja considerada

199
Disponível em: <www.culturabrasil.pro.br/direitosdacrianca.htm>. Acesso em: 18 nov.
2012.
200
Disponível em: <http://www.unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_direitos_
crianca2004.pdf>.. Acesso em: 18 out. 2012.

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Construção da Paz e Segurança Internacional
305
refugiada, cooperando com os esforços desenvolvidos pela ONU e ou-
tras organizações governamentais ou não-governamentais no senti-
do de oferecer toda a proteção e assistência humanitária à criança.
O mesmo texto normativo adota, entre outros critérios fun-
damentais, que nenhuma criança seja submetida a tortura nem a
outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes,
com a vedação a pena de morte e a prisão perpétua, trazendo a pri-
vação de liberdade apenas em conformidade com a lei e como último
recurso, de forma breve, o acesso a justiça e o direito a impugnar a
legalidade da privação de sua liberdade perante um tribunal ou ou-
tra autoridade competente, independente e imparcial, além de uma
rápida decisão a respeito de tal ação.
Este diploma atingiu importante avanço no sentido de esta-
belecer o imperativo de respeito e eficácia dos direitos fundamentais,
impondo a observância do princípio da legalidade, da presunção de
inocência, ao contraditório, à defesa técnica e à proporcionalidade
entre a infração cometida e a medida a ser aplicada.
O Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas, em
sua Observação Geral nº 6 (2005) mostra-se uma importante fonte
de interpretação sobre o princípio do superior interesse da criança,
elaborando orientações sobre o tratamento de menores desacompa-
nhados e separados de sua família fora do seu país de origem. (Doc.
ONU CRC/GC/2005/6 de 01/09/05. Pár. 12-18), assim como outros
instrumentos internacionais e regionais201.
A peculiaridade que caracteriza a criança no sistema jurídico
é a sua condição de pessoa humana em desenvolvimento, razão pela
qual construiu-se um sistema especial de proteção, no qual impera o
respeito ao princípio do superior interesse da criança, contemplado
em diversos instrumentos normativos internacionais.

201
Vale conferir o documento elaborado pelo ACNUR, listando uma série de diplomas
internacionais e regionais de suma relevância. In: ACNUR, Diretrices para la determi-
nación del interés superior del niño, maio de 2008, p. 15. Documento disponível em:
<http://www.acnur.org/biblioteca/pdf/7126.pdf?view=1>. Acesso em: 25 abr. 2013.

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O princípio do superior interesse do menor é contemplado pe-
los tratados internacionais de Direitos Humanos, os quais se desen-
volvem em uma longa trajetória de acordos entre as nações. Segundo
Munir Cury et all, a inspiração de reconhecer proteção especial para
a criança e o adolescente não é nova. O autor relata que a Declara-
ção de Genebra de 1924 determinava a necessidade de proporcionar à
criança uma proteção especial, enquanto a Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948 afirmava o direito a cuidados e assistência
especiais, e o Pacto de São José de 1969 trazia em seu artigo 19 que
toda criança tem direito às medidas de proteção que na sua condição
de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado202.
Muito embora tais diplomas não abordem uma definição con-
ceitual exaustiva sobre o princípio, concordamos com SANCHEZ MO-
JICA, ao afirmar que se trata da busca do bem estar integral do menor,
tendo em conta as circunstâncias particulares do mesmo, sobretudo
de acordo com a sua idade, grau de maturidade, gênero, presença de
seus pais ou tutores, pertencimento cultural e étnico, assim como as
circunstâncias de especial fragilidade em que se encontre203.
A despeito de seu conceito formal, entendemos que importante
é identificar, em cada caso concreto, qual atitude respeita o princípio
do melhor interesse da criança, como forma de efetivar os direitos
consagrados nos diplomas internacionais e regionais.
Por este motivo é importante considerar a elaboração, pelo
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (AC-
NUR), das Diretrizes para a determinação do superior interesse da
criança, entendida enquanto pessoa menor de dezoito anos de ida-
de204. As Diretrizes dirigem-se às crianças migrantes solicitantes de

202
CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários
jurídicos e sociais. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 18.
203
SANCHEZ MOJICA, Beatriz Eugenia. Em la frontera. El papel de la corte interamericana
de derechos humanos en la protección de los derechos de los menores migrantes en
situación irregular. In: Hendu 3 (1): 57-89, 2012. P. 66. Traduzido pelos autores.
204
ACNUR, Diretrices para la determinación del interés superior del niño, maio de 2008,
p. 8. Documento disponível em: <http://www.acnur.org/biblioteca/pdf/7126.pdf?-
view=1>. Acesso em: 25 abr. 2013

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Construção da Paz e Segurança Internacional
307
asilo, refugiadas, migrantes internas, devolvidas, acompanhadas
de seus pais ou desacompanhadas, independentemente da legali-
dade da migração.
O documento elaborado dispõe de um processo formal de ava-
liação do interesse superior do menor (DIS), no qual são analisadas as
circunstâncias específicas de cada caso concreto com o objetivo de ofe-
recer a melhor resposta à situação da criança sob a competência des-
te órgão. Prevê uma série de garantias processuais, proporcionando
sempre que a criança possa externar sua opinião, através da atuação
de profissionais especializados de múltiplas áreas do conhecimento.
O procedimento de apuração do superior interesse do me-
nor (DIS) passa pelos estágios da identificação e encaminhamento
a tratamentos de saúde que se façam necessários, com a adoção de
medidas de caráter provisório caso sejam crianças separadas e ou
desacompanhadas de seus pais ou de caráter duradouro, no caso das
crianças consideradas refugiadas, visando a reunificação familiar do
menor, através da a busca pelos familiares adultos da criança, po-
dendo prever a nomeação de tutor, encaminhamento a cuidadores
temporários ou a pais de acolhida205.
Infelizmente as diretrizes do ACNUR não possuem efeito vin-
culativo para os países, sendo estimado que cerca de cem mil crian-
ças se encontrem atualmente vivendo na Europa separadas de seus
pais e ou de seus tutores legais206. E diante desse contexto viven-
ciamos casos de violações aos diretos das crianças, como o ocorrido
em Lampeduza, na Itália, em 2006 quando um menino de dezesseis
anos de idade foi levado ao centro de detenção e obrigado a se despir
completamente para que sofresse uma revista corporal.

205
ACNUR, Diretrices para la determinación del interés superior del niño, maio de 2008,
p. 19. Documento disponível em: <http://www.acnur.org/biblioteca/pdf/7126.pdf?-
view=1>. Acesso em: 25 abr. 2013
206
SMITH, Terry. Separated children in Europe programme, separated children in Europe: pol-
icies and practices in European Union member states: a comparative analusis 5 (2003). P.
5. Disponível em: <http://www.evasp.eu/attachments/066_Separated%20Children%20
in%20Europe,%20Policies%20and%20Practices%20in%20European%20Union%20Mem-
ber%20States,%20a%20comparative%20analysis.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2013.

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No centro de detenção ele passou dois dias dormindo em um
quarto com seis homens adultos, sendo posteriormente transferido a
outro centro, mais ao sul da Itália, passando a dividir um quarto com
mais 12 adultos por um mês. Passados cinco meses desde que o me-
nino chegou na Itália não havia lhe sido sequer nomeado um tutor207.
Outro caso digno de nota ocorreu no Reino Unido, em 2005,
com uma menina que foi encontrada desacompanhada de seus pais,
de cuja idade foi posta em dúvida pelas autoridades, sendo narrado
da seguinte forma:

L was a female asylum seeker from Guinea who fled after being im-
prisoned and tortured with her mother and brother on account of her
father’s political activi- ties. The Asylum Screening Unit disputed her
age and her local authority told her that it would not support her until
she obtained medical confirmation of her age and the Immigration
and Nationality Directorate accepted that she was a minor. She com-
mented, “Social services treated me like a dog . . . because the Home Of-
fice said I was not under 18. They just told me to go away. I was so sad.
They need to treat people as humans and give them food and shelter208.

Salientamos ainda o que aconteceu com Tabitha Kaniki Mi-


tunga , uma menina congolesa de cinco anos de idade, imigrante
209

ilegal na Bélgica, que estava sendo enviada por seu tio ao Canada,
para encontrar sua mãe, a qual possuía o status de refugiada desde
2001. O tio de Tabitha trouxe-a do Congo para Bruxelas, para então
poder enviá-la ao encontro de sua mãe. Contudo, chegando ao aero-
porto de Bruxelas o setor de imigração deteve a criança, pois ela não
possuía os documentos suficientes para ingressar no país. Tabitha fi-

207
Amnesty int’l, Invisible children: the human rights of migrant and asylum-seeking mi-
nors detained upon arrival at the maritime border in Italy (Fevereiro, 2006). Disponível
em: <http://web. amnesty.org/library/index/engEUR300012006.>.
208
BHABHA, Jacqueline; FINCH, Nadine. Seeking asylum alone: Unaccompanied and
separated children and refugee protection in the U.K. 56 (Nov. 2006). Disponível em:
<http://www.ilpa.org.uk/seeking%20asylum%20alone.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2013.
209
TEDH, Caso Mubilanza Mayeka anda Kaniki Mitunga v. Belgium, sentença de
12/10/2006.

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Construção da Paz e Segurança Internacional
309
cou presa por dois meses em um Centro de Detenção de imigrantes,
sendo posteriormente deportada, retornando à República Democrá-
tica do Congo. Apenas após a intervenção dos Primeiro Ministros da
Belgica e do Canadá conseguiu unir-se à sua mãe.
Ambos os casos retratam o descaso e descompromisso das
autoridades com a situação da criança, em total desrespeito ao prin-
cípio do superior interesse do menor, revelando o resultado de uma
política de xenofobia que se incrementou após o 11 de setembro,
com o discurso de guerra ao terror.
Em termos quantitativos tem-se os dados oficiais210 de que a
França, utilizando-se da Diretiva de Retorno, efetuou 160 (cento e
sessenta) retornos forçados em 2009, em detrimento de 46 (quarenta
e seis) retornos voluntários de crianças desacompanhadas de 2003 a
2009. Além disso, a Noruega realizou 158 (cento e cinquenta e oito)
retornos forçados de crianças desacompanhadas e 583 (quinhentos
e oitenta e três) retornos forçados de crianças com familiares.
No mesmo relatório constatamos que na França 698 (seis-
centas e noventa e oito) crianças desacompanhadas foram detidas
em 2009, enquanto 318 (trezentas e dezoito) crianças acompanha-
das de suas famílias ficaram detidas antes de serem retornadas. Em
seguida, o documento afirma que 1.160 (mil cento e sessenta) crian-
ças deixaram a detenção no Reino Unido211.
Aliado a este contexto de violações verificadas no plano da
realidade, entendemos que a Diretiva de Retorno acaba por legiti-
mar formalmente, através de um instrumento legislativo, a política
de repulsa ao estrangeiro, possibilitando, através do respaldo legal,
a violação dos direitos das crianças em situação de vulnerabilidade,
ignorando toda a normativa internacional construída por décadas.

210
European Comission Directorate – General Home. Comparative Study on parctices in
the field of return minors. Home/2009/RFXX/PR/1002. Final Report,2011. p. 28. Dispo-
nível em: <http://ec.europa.eu/home-affairs/doc_centre/immigration/docs/studies/
Return_of_children-final.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2013.
211
Idem, p. 34.

310 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Curiosamente, a Comissão Europeia menciona em documen-
to um Plano de Ação para menores desacompanhados, no ano de
212

2010, prevendo a elaboração de um relatório entre os anos de 2012 a


2015, que possibilite avaliar estatisticamente qual a situação em que
efetivamente se encontram essas crianças para, de acordo com os
dados coletados, elaborar um novo plano de ação que responda mais
adequadamente ao interesse superior do menor. Ficaremos atentos
aos resultados, para o prosseguimento desta pesquisa.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conflituoso cenário geopolítico mundial traz novos desafios
aos direitos humanos, no ímpeto de realização do sonho de uma comu-
nidade internacional cosmopolita. Verificamos que no contexto político
mundial, a Diretiva de Retorno, desenvolvida na Europa como instru-
mento para neutralização e afastamento de imigrantes, são circuns-
tâncias que possibilitam diagnosticar que há um contexto de crimina-
lização do estrangeiro em importantes centros políticos internacionais.
Nos termos do retorno a xenofobia europeia, quem mais so-
fre na pele são as crianças estrangeiras, pois a Diretiva de Retorno,
em muitos pontos, atua assimetricamente às Convenções Interna-
cionais de proteção a criança. Isto porque, diferentemente de todos
os diplomas internacionais de direitos humanos analisados, a Dire-
tiva prevê a possibilidade de prisão de menores, tratada no artigo 17,
caso seja necessário sob a perspectiva da segurança nacional.
A Diretiva de Retorno afronta os direitos humanos assegu-
rados à criança, pois não prevê qualquer meio de proteção à criança
retornada, que possivelmente não deteria condições de realizar o re-
torno voluntário, no prazo de sete a trinta dias, previsto no artigo 7
da referida Diretiva. Sobretudo no caso da criança desacompanhada

212
European Comission. COMMUNICATION FROM THE COMMISSION TO THE EUROPEAN
PARLIAMENT AND THE COUNCIL. Action Plan on Unaccompanied Minors (2010 – 2014).
SEC(2010)534. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri
=COM:2010:0213:FIN:EN:PDF>. Acesso em: 15 abr. 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
311
de seus pais, que enfrenta todo o tipo de privações, certamente aca-
bariam por serem deportadas, na modalidade de retorno compulsó-
rio previsto pela mesma norma, o que significa, a nosso ver, uma to-
tal incompatibilidade com o direito à reunificação familiar, prevista
no artigo 22 da Convenção dos Direitos da Criança.
De modo diametralmente oposto, o ACNUR, com a elabora-
ção de suas Diretrizes para a determinação do interesse superior da
criança estabelece, no documento examinado no subtítulo acima,
um procedimento dotado de garantias fundamentais, que possibilita
a identificação da criança, para o atendimento ágil de suas neces-
sidades básicas, levando em conta a opinião da criança envolvida,
para a adoção de medidas de caráter provisório e duradouro de pro-
teção. Interessante notar, que as Diretrizes trazem mecanismos de
determinação do superior interesse da criança refugiada, desacom-
panhada e separada de seus pais, visando primordialmente a possi-
bilidade de reunificação familiar.
Enquanto isto, constatamos que a realidade apresenta casos
de sérias violações aos direitos propugnados por toda a normativa
internacional, com detenções arbitrárias, constrangimentos ilegais,
e tratamento degradante de crianças sujeitas à soberania dos países
europeus mencionados no trabalho. Aliado ao dado qualitativo, per-
cebemos que a análise quantitativa dos números apresentados, de
acordo com o relatório elaborado pela Comissão Europeia também
dá conta dos efeitos da utilização da Diretiva pelos países europeus,
com nítida inclinação ao rechaço de crianças estrangeiras.
Por fim, acreditamos que a Diretiva de Retorno pode se tornar
um meio de legitimação formal das arbitrariedades já praticadas no
plano da realidade, sendo um instrumento autorizador da ofensa
aos Direitos da Criança, podendo representar um retrocesso em ter-
mos de internacionalização do direito, pois segue na contramão dos
esforços humanitários para o tratamento do fenômeno da migração
de crianças.

312 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
5 REFERÊNCIAS
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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
313
OS DIREITOS HUMANOS SOB A ÓTICA
DO PARADIGMA DA SOCIEDADE
INTERNACIONAL: traços poermanentes e
duradouros de uma comunidade internacional
global

Juliana Graffunder Barbosa


Graduanda do sétimo semestre do curso de Relações Internacionais da Universi-
dade Federal de Santa Maria (UFSM). Pesquisadora do Núcleo PRISMA – Pesqui-
sas em Relações Internacionais de Santa Maria. (jugraffunder@gmail.com)

José Renato Ferraz da Silveira


Doutor em Ciência Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), mestre em Ciência Política e bacharel em Relações Internacionais pela
mesma instituição. Atualmente é professor adjunto do Departamento de Ciências
Econômicas, coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM) e líder do Núcleo PRISMA – Pesquisas em Rela-
ções Internacionais de Santa Maria. (jreferraz@hotmail.com)

Resumo:
O presente trabalho busca mostrar o papel dos Direitos Humanos como um dos traços funda-
mentais e permanentes de uma comunidade internacional em gestação. Utilizando o ferramen-
tal teórico da Sociedade Internacional, analisaremos primeiramente o debate e a complexa bus-
ca por graus de convergência ao consenso universal dos Direitos Humanos; em segundo, apre-
sentaremos a tensão entre as forças centrípetas (integração) e centrífugas (fragmentação) que
limitam a construção de uma comunidade internacional global no confronto entre o princípio
da seletividade e a universalização dos direitos humanos; e, por último, avaliaremos os avanços
e retrocessos da universalização dos Direitos Humanos tendo como interlocutor a Organização
das Nações Unidas. Como método de pesquisa, foi empregado a revisão bibliográfica de livros e
artigos que englobam as áreas de Relações Internacionais e Direitos Humanos.

Palavras-chave: Sociedade Internacional – Universalização dos Direitos Humanos – Princípio


da Seletividade. Governança Global.

Sumário:
1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Considerações Finais. 4. Referências.

314 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa é oriunda das visões interpretativas de
Martin Wight (2002) e Hedley Bull (2002), teóricos do paradigma
da Sociedade Internacional das Relações Internacionais. Notamos
que a teoria da Sociedade Internacional denominada também de Es-
cola Inglesa213, é melhor compreendida como uma tradição de diálo-
gos, marcados entre outros pelo seu foco nos “três erres” de Wight214
como um conjunto no qual as pessoas podem participar sem estarem
comprometidas a determinadas linhas.
Partimos do seguinte pressuposto teórico, os Direitos Huma-
nos são traços fundamentais e duradouros da sociedade internacio-
nal, como as potências, potências dominantes, as grandes potências,
as revoluções internacionais, a anarquia internacional, o equilíbrio
de poder, a guerra e as intervenções. Isto posto, a pesquisa utilizou
do método bibliográfico, e opera a partir de um rigoroso pluralismo
teórico sob as dimensões realista, racionalista e revolucionista e, em
outros momentos, podemos considerar como maquiavélica, grocia-
na e kantiana.
O objetivo geral deste artigo é mostrar que existem traços
fundamentais e permanentes de uma comunidade internacional em
gestação. De fato, reiteramos que a promoção e a defesa dos direi-
tos humanos pode ser apontada como representativa das forças cen-
trípetas (integração) da sociedade mundial (identidades e culturas
compartilhadas entre os Estados).

213
Jackson e Sorensen (1999, p. 34) qualificam como teoria das Relações Internacionais o
Realismo, o Liberalismo, a Sociedade Internacional e a Economia Política Internacional.
214
Os “três erres” são as três óticas nas quais a Sociedade Internacional enxerga os fatos
no contexto internacional, utilizadas concomitantemente. Elas são compostas pelo Rea-
lismo, que tem como expoentes os autores clássicos Maquiavel e Hobbes, o Raciona-
lismo, com base no pensamento de Grotius, e o Revolucionismo, que utiliza as ideias
de Kant.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
315
Destarte, a abordagem da pesquisa quanto a expansão dos
direitos humanos data a partir do fim da II Guerra Mundial (1945)
e transcorre no surgimento da Carta de São Francisco (1948), nas
polaridades definidas da Guerra Fria e polaridades indefinidas da
Nova Ordem Internacional.
Relativo aos objetivos específicos, analisamos: primeiro, de-
bater e apontar a complexa busca por graus de convergência, - o
consenso universal dos Direitos Humanos; segundo, revelar a tensão
entre as forças centrípetas (integração) e centrífugas (fragmenta-
ção) que limitam a construção de uma comunidade internacional
global no confronto entre o princípio da seletividade - componente
maquiavélico-hobbesiano - e a universalização dos direitos huma-
nos - consenso kantiano; terceiro, avaliar os avanços e retrocessos
da universalização dos Direitos Humanos tendo como interlocutor a
Organização das Nações Unidas.

2 DESENVOLVIMENTO
O término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) demar-
cou a presença de duas revoluções internacionais que definiriam os
contornos institucionais e o nova ordem da sociedade internacional:
a bipolaridade do choque de concepções entre americanos e soviéti-
cos; e a universalidade advinda com a criação das Nações Unidas.
A etimologia da palavra revolução, do latim revolutio, signifi-
ca a passagem de um estado a outro. Uma revolução internacional,
conforme elucida Wight (2002), repercutem por toda a sociedade in-
ternacional, demostrando certo grau de unidade desta e, ao mesmo
tempo, o desafio aos fundamentos da mesma.

Essas doutrinas revolucionárias internacionais transpõem a


essência da política do poder para um novo plano. Elas in-
troduzem a paixão e o fanatismo nos cálculos de utilidade
política, e a doutrina algumas vezes sobrepuja ou reinterpre-
ta o interesse. Elas tornam difusa a distinção entre a política

316 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
doméstica e a externa; transformam a diplomacia e transfor-
mam a guerra. (WIGHT, 2002, p. 76-77)

Segundo Kissinger (1999), a Guerra Fria inicia antes mesmo


da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) chegar ao seu término, de
fato. A corrida pelos despojos da Alemanha Nazista entre os aliados
de guerra Estados Unidos e União Soviética em 1944 ilustra a com-
petição que se transformará em conflito ideológico. Neste contexto a
sociedade internacional passa por uma revolução que transmutará o
concerto de múltiplas potências em alinhamento leste-oeste.
A Guerra Fria dividiu o mundo em duas zonas de influên-
cias que possuíam visões de mundo, organização do Estado e pro-
dução diametralmente opostas. Outra característica em destaque
foi a emergência de superpotências que se destacavam das demais
potências pela autossuficiência de modelo econômico (capitalismo e
socialismo) e potencial de destruição em massa.
Entrementes, outra revolução internacional emana dos des-
troços do período das Grandes Guerras (1914-1945), considerando
aqui a Segunda Guerra como continuação da Primeira Guerra Mundial
(1914-1918). A Conferência de São Francisco (1945) produziu a Car-
ta de São Francisco que, segundo Dupuy “fez dos direitos humanos
um dos axiomas da nova organização, conferindo-lhes idealmente
uma estatura constitucional no ordenamento do direito das gentes.”
(DUPUY APUD REZEK, 2000, p.211), que estabeleceu uma nova or-
dem internacional fundada na universalização dos direitos huma-
nos, ou seja, a necessidade de alicerçar o ideal dos direitos humanos
através de normas internacionais. Sem dúvida, o marco fundador é
a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
A Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), como ar-
gumenta Lafer (1999, p.141), “tem como objetivo civilizar o anár-
quico “estado de natureza” da guerra de todos contra todos, que o
“realismo” da visão hobbesiana, tal como a maquiavélica, identifi-
cam como sendo a característica definidora da vida internacional”.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
317
A Carta das Nações Unidas - que inaugura, no plano interna-
cional, a abrangente positivação dos direitos humanos - con-
sagrou, assim, em vários artigos, com uma amplitude que
não tinha o Pacto da Sociedade das Nações, uma leitura kan-
tiana dos direitos humanos. Vale dizer, admitiu a possibili-
dade da inserção operativa de uma razão-abrangente da hu-
manidade que poderia, no tempo, conter a “raison-d´État”
discricionária das soberanias” impeditivas da tutela jurídica
internacional da pessoa humana. A Carta das Nações Unidas
representou assim um “direito novo”, axiologicamente sen-
sível à tradição kantiana e por isso mesmo crítico da tradição
maquiavélico-hobbesiana. Traçou, consequentemente, uma
política do Direito para tornar realizável, no plano interna-
cional, a prevalência de uma visão kantiana dos valores ine-
rentes à tutela dos direitos humanos. (LAFER, 1999, p. 189)

Na concepção de Fonseca Jr. (2010), ainda que a Carta tives-


se força legal – era uma “declaração de intenções” –, a declaração
preconiza direitos e liberdades que eram vistos como “ameaça po-
tencial” pelos países socialistas, autoritários, racistas (como a África
do Sul) etc. Indubitavelmente, seu texto inspira e modela tudo o que
será feito daí em diante no sistema multilateral na área de Direitos
Humanos.

Os direitos humanos, como valores fundamentais da con-


vivência coletiva, logicamente correlacionados com a demo-
cracia no plano interno e a paz no plano internacional, na
lição de Norberto Bobbio, podem ser considerados como um
“adquirido axiológico” de alcance universal. Este “univer-
sal”, dadas as rupturas e descontinuidades que caracterizam
o processo histórico, é fugidio. (LAFER, 1999, p. 200)

O conflito entre as duas superpotências mundiais ocasionou


em uma paralização do principal órgão decisório da ONU, o Conse-
lho de Segurança, onde seus membros permanentes (Estados Uni-
dos, Rússia, China, Reino Unido e França) utilizaram 279 vezes o
direito de veto entre 1946 e 1990 (FUJITA, 1996).

318 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Evidentemente, como pondera Lafer (1999, p. 192), “as for-
ças centrípetas predominaram de maneira bastante avassaladora, na
primeira etapa do pós Guerra Fria - a que se estende da queda do
Muro até a Guerra do Golfo”. Não obstante, na Conferência de Viena
(1993), notamos o fortalecimento da universalização dos Direitos
Humanos.
De acordo com Lafer (1999, p. 193), “no campo dos valores,
em matéria de direitos humanos, democracia e paz, a Conferência
de Viena de 1993 é uma admirável expressão do melhor de uma
“ilustrada” lógica de globalização, que dá sequência à Declaração
Universal de 1948”. Ainda segundo Lafer (1999), o consenso de 171
Estados, reforçado pela atuação da sociedade civil através da presen-
ça de organizações não governamentais, foi uma verdadeira leitura
kantiana das formas de conceber a vida em sociedade.
Superou a seletividade maquiavélico-hobbesiana e foi além
da “coexistência pacífica” grociana, ao asseverar a universalidade,
indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos (e tam-
bém dos seus feixes axiológicos), nas suas múltiplas gerações, trans-
cendendo, assim, através de uma razão abrangente da humanidade,
a razão mais circunscrita dos interesses da polaridades Leste-Oes-
te, Norte-Sul, até então prevalecentes na matéria. A Conferência de
Viena endossou a democracia como forma de governo mais favorável
para a tutela dos direitos humanos. Registrou que a sua observância
contribui para as relações amistosas e pacíficas entre as nações. Re-
conheceu, consequentemente, os direitos humanos como um tema
global, ou seja, como um ingrediente positivo para a governabilidade
do sistema mundial, legitimando e legalizando, desta maneira, em
novos moldes, a preocupação internacional com a sua promoção e
afastando a objeção de que o tema dos direitos humanos está no âm-
bito exclusivo da competência soberana dos Estados (LAFER, 1999,
p. 194).
No entanto, o consenso kantiano viabilizado na Conferência
de Viena (1993), sofre revezes importantes na década de 90, princi-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
319
palmente diante de um sistema internacional de polaridades indefi-
nidas e por obra da lógica de fragmentação. Na contribuição valiosa
de Lafer (1999, p. 192), “as forças centrífugas, derivadas do aflorar
dos particularismos e das especificidades, fizeram sentir o ímpeto de
sua presença no segundo pós-Guerra Fria”.

Os padrões ideológicos dos anos 90 que prevalecem são o


neoliberalismo quanto as desconstruções pós modernas. No
primeiro caso, porque exacerbam os mecanismos competiti-
vos entre as nações; no segundo, porque ao transformar os
ideais de justiça em narrativa, enfraquecem a própria natu-
reza universal da luta, concedendo razão aos que relativizam
qualquer organização de justiça (FONSECA JR APUD NAS-
SER, 2010, p. 26).

Como alerta Gelson Fonseca Jr. apud Nasser (2010), a pri-


meira observação é a de que a universalização deve se apoiar em um
consenso amplo, que permitiria realizar os ideais que incorpora. E
isso não se dá. “Ou melhor, se dá em planos regionais, onde a base
da cultura é mais sólida - especialmente na Europa e nas Américas,
que tem instituições de proteção de Direitos Humanos que vão além
das universais” (FONSECA JR APUD NASSER, 2010, p. 26).
Por outro lado, o otimismo liberal do início dos anos 90, que
acreditava nas forças de globalização ao estimular consensos e, nes-
se sentido, permitindo ganhos razoáveis de governabilidade em um
mundo de crescente interdependência não vingou. Acreditava-se no
consenso que valeria para o mundo da economia (especialmente no
que tange o comércio e o fluxo de capitais), para questões relativas
ao meio ambiente (mudanças climáticas, derretimento das calotas
polares, poluição, extinção da fauna e da flora) e, especialmente,
para os Direitos Humanos. Como infere Minc (1999, p. 10):

A nova ordem será ameaçada por alguns imprevistos que, no


mínimo, a deixarão abalada. Imprevistos estratégicos: aca-
bamos de sair de um mundo ameaçado, mas sem riscos para

320 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
entrar num outro mundo, sem ameaças, mas com riscos.
Imprevistos sociais: o reino de mercado que chega anda de
par com um ciclo crescente de desigualdades. E, finalmente,
imprevistos culturais: surge uma tensão entre a tendência
à uniformidade dos modos de vida e até dos pensamentos,
nascida da globalização dos produtos, e a aspiração, cada vez
maior, à identidade. A globalização pode ser vantajosa, se as-
sim o quisermos, mas não condiz com o fim da História.

Oran Young destaca o papel dos regimes internacionais, onde


arranjos transnacionais que formam sistemas de governabilidade ou
governança orientariam práticas sociais de indivíduos e grupos, pari
passo que Estados exerceriam a governança (SATO, 2000). Entre-
tanto, Andrew Hurrell sublinha que os movimentos estruturais faci-
litam os consensos e geram solidariedade, “ao mesmo tempo que as
desigualdades de poder bloqueiam, “deformam” o movimento por
um grau maior de governança na ordem internacional” (HURRELL,
2007, p. 144).
Conforme atesta Wight (2002), o mundo de relações inte-
restatais, anárquicas ou descentralizadas, são os próprios estados
soberanos que, acima de tudo, são os responsáveis pela função de
transformar as regras efetivas. “São os Estados que fazem as leis e as
comunicam, administram, interpretam, aplicam, legitimam, adap-
tam e protegem” (ALTEMANI, apud WIGHT, 2002, p. 22), e através
da atuação destes, sujeitos primários ou imediatos da ordem jurídica
internacional, é que organizações internacionais também ganham
legitimidade de atuação e autoridade, na medida em que produzem
bens públicos (HERZ, 2004).
Sendo assim, os direitos humanos alcançaram, no plano
universal, por obra da integração dos valores da convivência coleti-
va, normativamente positivados, o status de valores fundamentais.
Como afirma Lafer (1999, p. 194), “tornaram-se pois parâmetros das
formas de conceber a vida em sociedade, standards da legitimidade
do poder das soberanias e como tal indicadores e balizas do locus

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
321
standi e da credibilidade dos Estados e de seu acesso à cooperação
internacional”. E nas palavras de José Guilherme Merquior (apud
LAFER, 1999, p. 195), “na sua análise da relação entre os valores e
a história, na obra de Miguel Reale, os direitos humanos seriam, em
outras palavras, um ‘adquirido axiológico’ desvendado pelo ‘senso
majestoso da História’”.
Especialmente após a criação das Nações Unidas e a elabo-
ração da Carta de São Francisco, verificamos em nosso estudo, sob
um prisma multidimensional, a tensão entre as forças de integra-
ção e fragmentação no que concerne aos direitos humanos. O que
podemos chamar de consenso kantiano ou a estruturação da Pax
Universalis (JAGUARIBE, 2008), em um movimento universalista de
Direitos Humanos é admitido na concepção de Lafer (1999) como
um consenso frágil, do ponto de vista da realizabilidade.
Do ângulo institucional, dois avanços importantes são regis-
trados. O primeiro foi a instituição do Tribunal Penal Internacio-
nal, que atua na condenação de indivíduos (não de Estados, como
a Corte Internacional de Justiça) que cometem crimes contra a hu-
manidade, agressão e, crimes de guerra e de genocídio (ESTATUTO
DE ROMA, 1998); e o segundo, a criação do Conselho de Direitos
Humanos (UNHRC) pela Assembleia Geral da ONU, com a finalida-
de de fortalecer a promoção e proteção dos Direitos Humanos, além
de fazer recomendações ao Conselho de Segurança sobre a violação
destes (ONU, 2006).
Ademais, notamos dois aspectos normativos como positivos.
A I Conferência Mundial de Direitos Humanos, mas conhecida como
Conferência de Teerã, realizada em 1968 com a participação de 84
Estados, além de Organizações Não-Governamentais e Organizações
Internacionais, “resultou fortalecida a universalidade dos direitos
humanos mediante, sobretudo, a asserção enfática da indivisibilida-
de destes” (TRINDADE, 1997, p. 178). Já a II Conferência Mundial
de Direitos Humanos, resultou na Declaração de Viena, que objetiva
aperfeiçoar os princípios universais de direitos humanos; e, o Pla-

322 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
no de Ação, que buscou efetivar o primeiro, incentivando a ratifica-
ção sem reservas por toda a sociedade internacional. De acordo com
Lima Jr (2002, p. 14):
Ambos foram adotados pelo consenso de 171 Estados, perfa-
zendo como objetivo comum da comunidade internacional o fortale-
cimento e o aperfeiçoamento da proteção dos direitos humanos em
nível mundial, de modo a assegurar a observância universal dos di-
reitos humanos decorrentes da dignidade inerente à pessoa humana.
Embora imbricado de fatores políticos, os temas de Direitos
Humanos que “entram” na agenda de segurança internacional. “A
responsabilidade de proteger passa a ser um tema na agenda das Na-
ções Unidas” (FONSECA JR, apud NASSER, 2010, p. 27). É notório
como os fatores políticos e estratégicos pesam sobre os valores mo-
rais, visualizando o contraste entre a intervenção em Kossovo, com
o potencial risco de migração em massa de refugiados para a Europa
desenvolvida, tendo em vista a proximidade geopolítica regional; e a
“abstenção” diante do genocídio em Ruanda, perpetrado por grupos
étnicos locais (hutu e tutsi), distante geopolítica e estrategicamente
das áreas de interesse nacional e econômico das potências.
As resistências, a lógica da fragmentação, a razão de Estado
inerentes ao campo estratégico militar, a insistência na prevalência
centrífuga de tradições, costumes e visões de mundo vem redun-
dando na sublevação dos particularismos, em especial, os de cunho
fundamentalista, intolerante e excludente dificultando a realizabi-
lidade do consenso. Nas considerações de Gelson Fonseca Jr. (apud
NASSER, 2010, p. 26), “é evidente que a latitude do ingrediente par-
ticular é indefinida e, de uma maneira ou de outra, será argumento
dos que resistem à universalização”.
É possível, assim, dizer que a expansão dos Direitos Humanos,
com vocação universalista, se torna um ingrediente necessário da
ordem internacional e elemento primordial para a evolução da
sociedade internacional global, em que vivemos, na conformação
da ius gentium do ser humano, não mais da nação, o sentimento de

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
323
comunidade que extrapola da noção de fronteira, e da gestação da
sociedade mundial.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora o mundo internacional, parafraseando Wight e Bu-
tterfield (1966), é necessariamente do conflito, do medo e da des-
confiança que notamos avanços significativos no universalismo dos
Direitos Humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos,
inegavelmente, é um documento que consagra o racionalismo gro-
tiano nas relações internacionais.
Deste modo, somente após o desfecho da bipolaridade, inter-
pretado como parte de um amplo processo de transformações que
se apresentava em andamento duas décadas antes de sua derrocada
final (SATO, 2000), e o retorno a um cenário multipolar, supunha-se
que a universalidade se realizaria de fato.
A fragilidade dos modos de ordenação do sistema somados
ao declínio relativo da Hegemonia Norte Americana que está longe
de produzir public goods, como assevera Gelson Fonseca Jr., reforçado
pelo unilateralismo que marca as gestões presidenciais de Clinton e,
de modo, muito mais contundente, a de Bush. Acrescenta-se a isso,
o “desserviço” americano à causa dos Direitos Humanos, a prática
da negação do devido processo legal e tortura a muitos prisioneiros
sob a alegação de participação em atentados terroristas.
Constatamos que o desenvolvimento e a legitimidade na área
dos Direitos Humanos é permeada por graus de consenso variados,
processos deliberativos frágeis, diferenças culturais significativas,
difíceis pontos de equilíbrio e assimetrias profundas. Conforme Hé-
lio Jaguaribe (2008, p. 265) reconhece “nas condições de um mundo
tecnologicamente globalizado, somente uma ordenação racional e
eqüitativa [sic] do conjunto do mundo dispõe da possibilidade de
lhe assegurar um equilíbrio estável, conveniente para todos e única
alternativa para uma autaniquilação do mundo”.

324 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Deste modo, em nossa avaliação, apesar dos movimentos de
resistência e particularistas, os direitos humanos são valores unifica-
dores, que nunca se esgotam como um dado da realidade, mas que
se inovam e se projetam no futuro enquanto vis diretiva de conduta.
Apesar das reconhecidas limitações e deficiências da ONU,
sem dúvida, é uma organização essencial na promoção dos ideais
éticos, em geral, e dos direitos humanos, em particular. O triunfo
definitivo das ideias universais dos direitos humanos, ou mesmo o
“retorno às origens” de um novo jus gentium como propõe Cançado
Trindade (2002), tendo a ONU como criadora dos mecanismos e de-
fensora dos mesmos é uma incógnita.

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326 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
O “GLOBALISMO” DE IMMANUEL KANT
E HANS KELSEN: ideias sobre um projeto
filosófico e um projeto jurídico para alcançar
a paz

Brenda Luciana Maffei


Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Bolsista CAPES. Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES. Advogada pela Facultad de derecho de
la Universidad de Buenos Aires (UBA). Membro do Grupo Núcleo de Pesquisas
sobre Integração Regional, Paz e Segurança Internacional EIRENÈ. Diretora de
projeto de pesquisa da Faculdade de Direito da UBA. DECYT 1223. El Parlamento
del Mercosur: aspectos amplio y estrictos de la cuestión democrática en el bloque.

Resumo:
O presente trabalho estuda as concepções sobre a conformação de uma Federação de Estados
livres, na construção teórica de Immanuel Kant e a conformação de um Estado Mundial na
elaboração teórica de Hans Kelsen. As duas teorias visam ser construções teóricas para a paz
mundial. Com isso não é objetivo deste trabalho nem apontar para a possibilidade de uma
aplicação prática dessas teorias, nem apontar alguma conclusão sobre um possível fracasso
ou sucesso dessas teorias na atualidade, simplesmente oferece o estudo de um marco teórico
comparativo de dois projetos teóricos para alcançar a paz.
Palavras-chave: Federação de Estados livres – Estado mundial – Paz.

Sumário:
1. Introdução. 2. Immanuel Kant. 2.1 A guerra como um estado natural que deve ser su-
perado. 2.2 A criação de uma federação de Estados livres como garantia de paz. 3. Kelsen.
3.1 O Direito Internacional como forma primitiva de Direito: a guerra como sanção. 3.2 A
evolução do Direito Internacional como garantia para a paz: formação do Estado mundial.
4. Kant e Kelsen: influências e diferenças no “globalismo pacifista”. 5. Considerações Finais.
6. Referências.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
327
1 INTRODUÇÃO
Antes de mencionar quaisquer ideias que nos introduzam na
exposição deste trabalho, é importante determinar o que se pretende
dizer quando utilizamos a palavra “globalismo” no título do presen-
te trabalho.
A palavra “globalismo” pode ser identificada, também, como
universalismo e, em termos bem sucintos, denota a ideia de uma
conformação ou de uma união mundial de Povos215 ou de Estados.
Essa conformação ou união mundial de Povos ou de Estados é equi-
parada à união ou conformação que deu origem ao Estado nacional,
tal qual hoje o conhecemos. Isto quer dizer que o termo “globalis-
mo” ou “universalismo” tem uma estreita relação conceitual com
aquilo que se entende como Estado nacional, como se aquele termo
fosse uma “reprodução” do último, em um nível superior no proces-
so de união entre povos216.
Havendo efetuado essa breve definição, agora estamos em
condições de marcar os principais objetivos do presente trabalho.
Assim sendo, o que este trabalho pretende estudar são as concep-
ções sobre a conformação de uma Federação de Estados livres, na
construção teórica de Immanuel Kant e a conformação de um Es-
tado Mundial na elaboração teórica de Hans Kelsen. As duas teo-
rias visam ser construções teóricas para a paz mundial. Resulta de
215
Utiliza-se o termo “povos” não em um sentido retórico, pelo contrário, identifica-se o
termo com o conceito de: Povo, “Direito dos povos” e “Sociedade dos Povos” utilizados
por John Rawls em: RAWLS, John. O Direito dos povos. Trad. Luís Carlos Borges. Martins
Fontes. São Paulo, 2004.
216
Danilo Zolo identifica como “globalismo jurídico” a ideia kantiana da unidade moral do
gênero humano. Sustenta que essa concepção jusnaturalista e ilustrada é articulada
por Kelsen nas ideias da unidade e objetividade do ordenamento jurídico, da primazia
do Direito Internacional, do caráter parcial dos ordenamentos jurídicos nacionais e da
ideia de desalojar a concepção mesma de soberania. Sustenta Zolo, ademais, que o
globalismo jurídico é hoje uma teoria do Direito que triunfa e que ela pretende levar à
sociedade mundial contemporânea, o sucesso da centralização jurídica e política ela-
borada no interior do Estado. Veja: ZOLO, Danilo. Una crítica realista del globalismo
jurídico desde Kant a Kelsen y Habermas. Trad. Pedro Mecardo Pacheco. Univesidad
de Granada. Anales de la Cátedra Francisco Suarez, 36 (2002), 197-218. Disponível em:
<www.ugr.es/~filode/pdf/contenido36_81.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2012.

328 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
importância ressaltar, então, que não é objetivo deste trabalho nem
apontar para a possibilidade de uma aplicação prática dessas teorias,
nem apontar alguma conclusão sobre um possível fracasso ou suces-
so dessas teorias na atualidade.
As bases bibliográficas são principalmente as obras: “À Paz
Perpétua. Um projeto filosófico217” de Immanuel Kant e “Direito e Paz nas
relações Internacionais218” e “A paz por médio do Direito219” de Hans Kel-
sen. A partir do estudo das concepções dos dois autores sobre a ideia
de um “globalismo pacifista220”, tentaremos identificar se existem
diferenças substanciais entre ambos no que diz respeito à forma de
atingir o objetivo da paz com base na institucionalização de um di-
reito internacional.
Os escritos desses autores estão separados por ao redor de
150 anos de história e vale lembrar o contexto em que eles foram
elaborados.
O trabalho do primeiro dos autores, resumidamente, foi o re-
sultado do contexto intelectual dos séculos XVI e XVII e de dois fatos
históricos relevantes: a independência dos Estados Unidos da Amé-
rica (EUA) em 1776 e a posterior adoção de uma Constituição em
1787 e a Revolução Francesa em 1789. No que diz respeito ao con-
texto intelectual, por uma lado é uma crítica à concepção grociana
de que existia, por parte dos Estados, um direito a fazer a guerra221.

217
Kant, Immanuel. Hacia la paz perpetua. Un proyecto filosófico. Traducción: Macarena
Marey y Juliana Udi. Universidad Nacional de Quilmes. Buenos Aires, 2007.
218
KELSEN, Hans. Derecho y paz en las relaciones internacionales. Versión española de:
Florencio Acosta. Fondo de cultura Económica. México, 1943
219
KELSEN, Hans. La paz por medio del Derecho. Traducción: Luis Echávarri. Editorial Losa-
da S.A. Buenos Aires, 1946.
220
Veremos no transcurso deste trabalho que o objetivo, tanto de Kant como de Kelsen ao
falar da conformação, tanto de uma federação de Estados quanto da conformação de
um Estado mundial, é alcançar a paz como fim último e, por esse motivo, utilizamos o
termo “globalismo pacifista”.
221
Considerado o primeiro grande sistematizador do direito internacional moderno, sus-
tentava que a guerra não era contrária ao direito natural. Grócio apontava três causas
como legítimas para a guerra externa: a defesa contra uma injúria, atual ou ameaçado-
ra, a recuperação do que é legalmente devido para o Estado prejudicado e a punição do

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
329
Por outro lado é uma retomada das ideias desenvolvidas pelo Aba-
de de Saint Pierre222. Já o trabalho do segundo autor, coloca-se no
contexto de entre guerras e foi contemporâneo à criação da Liga das
Nações e da Organização das Nações Unidas. Vale ressaltar, também,
que o autor foi alvo da perseguição nazista.
O trabalho segue dividido em dos pontos centrais. O primeiro
traz elementos da teoria de Kant, fazendo especial menção a sua
concepção sobre guerra, paz e conformação de uma federação de
Estados livres. Já no segundo, tratam-se das mesmas questões, mas
elaboradas por Kelsen na sua obra. O terceiro ponto do trabalho ten-
ta dar resposta ao objetivo do trabalho e realizar uma comparação
teórica sobre ambos os projetos.

2 IMMANUEL KANT
2.1 A guerra como um estado natural que deve ser
superado

[...] el mecanismo de la naturaleza, merced al cual las inclinaciones


egoístas se oponen externamente unas a otras de manera natural,

Estado injuriador. O objetivo da guerra era, precisamente, assegurar a conservação da


vida e do corpo. A alternância entre a guerra e a paz era aceita como natural. Com isso,
o direito das gentes do século XVII entendia que os Estados possuíam um direito à guer-
ra como possibilidade da expansão da sua soberania, que era entendida em termos
absolutos e como um poder supremo, quer dizer, aquele que não dependia de outro
superior. GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. v. 1 e 2. Trad. Ciro Mioranza. Ijuí:
Unijuí, 2004.
222
Em seu projeto, o Abade de Saint Pierre tentou demonstrar que a criação de uma socie-
dade permanente, entre os Estados da Europa, consistia na única solução possível para
frear as guerras e garantir a segurança suficiente para a execução dos tratados. Para
isso, ele propõe uma Santa Aliança entre os Estados cristãos da Europa. O trabalho não
foi reconhecido pela maioria dos intelectuais, acadêmicos e estudiosos da época. Além
disso, o escrito foi acusado de utópico e plenamente rechaçado pela política francesa
que considerava a proposta de aliança europeia uma diminuição do seu poder. Por
esses motivos a obra foi desaparecendo pouco a pouco, permanecendo esquecida até
1981, momento em que os volumes foram reeditados. SAINT-PIERRE, Abbé de. Projeto
para Tornar a Paz na Europa. 1ª edição. Trad. Sérgio Duarte. São Paulo: Editora Uni-
versidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), 2003. No
original: “Projet pour rendre la paix perpétuelle en Europe”.

330 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
puede ser utilizado por la razón como medio para darle curso a su
propio fin, la prescripción jurídica, y con ésta, a su vez, para fomen-
tar y asegurar la paz, tanto exterior como al interior de Estado, dado
que ello depende del Estado mismo…223

Segundo Kant, a situação de paz não é a forma em que a


natureza faz ou, o que é o mesmo, a natureza quer que os homens
vivam. Ao utilizar a construção “a natureza faz” ou “a natureza quer”,
Kant pretende indicar que o estado de guerra entre os homens con-
siste em uma situação em que a própria natureza coloca o homem,
querendo ele ou não. O estado de guerra seria alheio a toda vontade
humana. Assim, por mais que não tenha sido declarada uma guerra
entre determinados sujeitos, existe uma ameaça constante de que
a guerra acontecerá a qualquer momento e em qualquer lugar. O
estado de guerra pode ser considerado, então, tanto como indican-
do uma situação bélica determinada, como também a situação de
ameaça de guerra constante. Dessa forma, o homem – e também o
povo – que se encontre nesse estado natural seria uma ameaça per-
manente para os outros homens ou os outros povos. No estado natu-
ral, sem nenhuma classe de direito público sancionado, não existem
critérios que determinem qual reivindicação pode ser considerada
justa. Ao não contar com tal instância, o exercício da violência se
transforma no único modo disponível para resolver as disputas. A
violência, por mais que possa ser a única forma de exercer uma rei-
vindicação, não pode, segundo o autor, ser considerada um modo
legítimo de reivindicar um direito.
Pode-se extrair do seu escrito que a guerra se daria pela não
sujeição dos povos a uma lei externa. Assim como o estado de guerra
entre os indivíduos se dá pela não sujeição de suas liberdades a uma
lei externa, da mesma forma, acontece com os povos (grupo de indi-
víduos que conformam o Estado), que não se submetem a um poder
superior. Dessa forma, o homem e também o povo, que se encontre

223
Kant, Immanuel. Hacia la paz perpetua... p. 76.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
331
nesse estado natural, seria uma ameaça constante para os outros.
Para ele, então, será necessário que todos os homens formem parte
de alguma Constituição civil. Ela é caracterizada como sendo:
1) ius civitatis: Constituição baseada no Direito civil político
dos homens do povo
2) ius gentium: Constituição baseada no Direito de gentes
dos Estados nas suas relações mútuas
3) ius cosmopoliticum: Constituição baseada no Direito cos-
mopolita dos homens e do estado nas suas relações exter-
nas como cidadão de um Estado universal da humanida-
de.
Pode ser observado em Kant que, apesar de a natureza ter
posto o homem em um estado de guerra, para ele é também a mes-
ma natureza que pode dar garantias para atingir a paz perpétua.
Em outras palavras, para Kant, a natureza estabeleceu um estado de
coisas que podem ser tomados a favor e não em contra do objetivo
de atingir a paz. Isso porque, em primeiro lugar, a natureza fez com
que os homens pudessem viver em todas as partes do mundo; em
segundo lugar, fez com que os homens fossem distribuídos, median-
te a guerra, por todas as partes; e, em terceiro lugar, é essa mesma
guerra que obriga os homens entrarem em relações mútuas.
A ideia da natureza como garantidora da paz pode ser resu-
mida da seguinte forma: a natureza quis com que o homem (por
natureza egoísta e guerreiro), por meio da guerra, habite o mundo e,
também, a natureza é a responsável pela criação dos diferentes po-
vos pelo fato de terem diferentes línguas ou, mesmo tendo a mesma
língua, pelo fato de estarem separados por grandes extensões de ter-
ra. Apresentados os fatos em que a natureza colocou o homem, esses
obrigaram aos povos, apesar de ir contra a natureza egoísta, a se uni-
rem e a se organizarem para se defender do vizinho que o acossa e o
ameaça constantemente. Eis aqui a Constituição baseada no Direito
civil político dos homens do povo que, para Kant, não requer o me-

332 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
lhoramento moral dos homens. Simplesmente requer deles o mero
entendimento para saber que a boa organização do Estado é a forma
de neutralizar os efeitos destrutivos de uma liberdade sem lei224.
A outra forma de Constituição, i.e. aquela baseada no Direito
de gentes dos Estados nas suas relações mútuas, requer dos homens
a superação dos mecanismos da natureza (que fez com que os povos
tivessem diferentes línguas e religiões) mediante o fortalecimento
da cultura e do consenso dos princípios. Por último, mediante o es-
pírito de comércio, os povos se unem e os Estados estão compelidos
a frear a guerra e promover a paz.

2.2 A criação de uma federação de estados livres


como garantia de paz

[...] La idea del derecho de gentes presupone la separación de mu-


chos Estados vecinos, independientes unos de otros, y, aunque una
condición de este tipo es ya en sí misma un estado de guerra (si no
hay una unión federativa de Estados que prevenga el estallido de las
hostilidades), según la razón esta situación es mejor que la fusión de
los Estados operada por una potencia que controle a todos y dé lugar
a una monarquía universal…225

Nas últimas linhas do parágrafo anterior, foram esboçadas


as ideias kantianas sobre Constituição baseada no Direito civil polí-
tico, no Direito de gentes e no Direito Cosmopolita. No primeiro dos
casos, a única forma de governo que pode estabelecer uma Consti-

224
Os objetivos decorrentes da conformação dessa organização, segundo Kant, podem
ser resumidos nas seguintes linhas do seu texto: “...Ordenar uma multitud de seres ra-
cionales que, en conjunto, demandan leyes universales para su preservación pero que,
por separado, tienden secretamente a exceptuarse de ellas, y organizar su constitución
de modo tal que, aún cuando se opongan mutuamente en sus intenciones privadas,
éstas se refrenen unas a otras a fin de que aquellos se comporten publicamente como
si no tuvieran estas malas intenciones...” (KANT, Immanuel. Hacia la paz perpetua. Un
proyecto filosófico... p. 75.
225
KANT, Immanuel. Hacia la paz perpetua. Un proyecto filosófico... p. 76.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
333
tuição baseada no Direito civil político é a republicana. No segundo
caso, a única forma de alcançar o Direito de gentes é a que deriva da
fundação de uma federação de Estados livres. Finalmente, a Cons-
tituição baseada no Direito cosmopolita será de possível realização
quando as formas anteriores tenham sido alcançadas.
A analogia se faz presente na teoria sobre o Direito de gentes
de Kant. Isso quer dizer que os Estados podem ser assemelhados aos
indivíduos onde na sua condição natural causam danos uns aos ou-
tros (pelo uso da força e de uma liberdade sem lei). Por outro lado,
também, a federação de Estados livres pode ser considerada, segun-
do Kant, como sendo uma analogia da Constituição civil, pela qual
todos têm garantidos seus direitos.
Contudo, essa federação de Estados não deve ser um “Estado
de povos”. Essa ideia é fundamental para o conceito de “globalismo
pacifista kantiano”, já que ela parte da unidade mínima (o indiví-
duo) que decide se unir num Estado. Assim, o Estado implica a rela-
ção entre um superior (o legislador) e o inferior (o povo, ou conjunto
de indivíduos) baseado numa forma republicana de governo. Agora
bem, a fusão de muitos povos em um único Estado faria um único
povo, o que, no seu modo de raciocinar, contrairia o fato de existirem
diferentes Estados e diferentes povos226. A origem dessa federação
livre de Estados se encontraria em uma espécie de “contrato origi-
nário internacional” onde se instaura e se garante a situação de paz.
Como já se mencionou no parágrafo anterior, a ideia de fe-
deração de estados livres em Kant, supõe conservar e salvaguar-
dar a liberdade de todos e cada um dos Estados, sem se submeter
a leis públicas ou a sua coação. Essa é a diferença substancial entre
a Constituição baseada no Direito civil (criada entre indivíduos que
se submetem a um poder superior) e a Constituição baseada no Di-

226
Determina claramente que: “...Un Estado mundial es contradictorio con el derecho de
soberanía que retienen los pueblos en el sentido de que lo viola…” (KANT, Immanuel.
Hacia la paz perpetua. Un proyecto filosófico... p. 57.

334 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
reito de gentes (criada para garantir a paz entre os povos, mas sem
nenhuma classe de submissão desses povos a um poder superior)227.

3 KELSEN
3.1 O direito internacional como forma primitiva de
direito: a guerra como sanção

[...] En cuanto a sus cualidades técnicas, el Derecho internacional


general es un Derecho primitivo, como lo hace patente, entre otros
aspectos el hecho de que carece enteramente de un órgano especial
encargado de la aplicación de las normas jurídicas a los casos con-
cretos […]

Segundo a concepção teórica de Kelsen, a guerra é a sanção


do Direito Internacional. A paz é considerada por ele a situação onde
não existe a força. Contudo, a ausência absoluta de força derivaria
em anarquismo, razão pela qual a força é reservada à comunidade,
nas relações entre os indivíduos. Em outras palavras, na concepção
de Kelsen, sempre que seja considerada uma sanção e que o indiví-
duo atue como um órgão da ordem social ou como um agente da co-
munidade, a força está permitida. Não só é permitida, mas também
é necessária para não cair no anarquismo.
Quando quem atua na comunidade é um agente dela e utili-
za a força contra o indivíduo ou grupos de indivíduos responsáveis
227
A ideia kantiana de federação de Estado livres é criticada, p.ex., por Habermas e susten-
tada por Rawls. Habermas indica um paradoxo nesse raciocínio. Ele sustenta que, por
um lado, Kant pretende um agrupamento de Estados que preservam suas soberanias,
o que daria a possibilidade, a qualquer Estado, de dissolver o “contrato” em qualquer
momento, mas, por outro lado, essa aliança deve fomentar uma paz duradoura. Para
ele, a pergunta que Kant não responde é como assegurar a permanência voluntária dos
Estados, uma vez que continuam a ser soberanos. Veja: HABERMAS, Jürgen. A inclusão
do outro. Estudos de teoria política. Tradução George Sperber, Paulo Astor Soethe. São
Paulo: Edições Layola, 2002. p. 190-191. Ralws, ao sustentar a formulação de certos
princípios para o Direito dos Povos, admite a possibilidade de criação de certas asso-
ciações ou federações cooperativas, mas não a conformação de um Estado mundial,
coincidindo plenamente com Kant. Veja: RAWLS, John. O Direito dos povos... p. 46.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
335
pela violação do Direito, a utilização da força, ou também chamada
“vingança de sangue” tem o caráter de sanção e está permitida. Es-
sas comunidades são do tipo “primitivas”. Isso porque não estabe-
lecem um órgão diferente dos indivíduos, que determine e aplique
a sanção. O fato de serem sociedades primitivas não quer dizer, para
Kelsen, que não sejam comunidades jurídicas. Isso porque, ao esta-
belecerem uma ordem coercitiva e atos como sanções, têm natureza
jurídica.
A contrario sensu, as sociedades que delegam a um órgão cen-
tral o direito de empregar a força como sanção são sociedades mais
evoluídas. Nesse sentido, o Estado mostraria ser o tipo mais perfeito
de ordem social pela centralização do uso da força e, dessa forma,
pode ser alcançada a paz nacional. Assim, o uso da força (salvo por
uma revolução ou guerra civil) é retirado das potestades dos cida-
dãos de um Estado e reservados a um órgão autorizado para utilizar
a força (governos, tribunais).
De tal modo, para Kelsen, os Estados nas suas relações mú-
tuas se comportam como os indivíduos nas sociedades primitivas.
Mediante o conceito de bellum justum, a guerra só é permitida como
reação contra a violação do Direito Internacional. A relação entre os
Estados e as sociedades primitivas deriva do fato de que, no Direito
Internacional, não contamos com um órgão central suscetível de de-
terminar a sanção e aplicá-la. Em outras palavras, ao mesmo tempo
em que ao homem primitivo é permitida a “vingança de sangue”
como sanção, da mesma forma pode caracterizar-se a guerra como
um delito ou uma reação contra esse delito e, portanto, como uma
sanção.
No Direito Internacional, de caráter primitivo, se os Estados
não chegam a um acordo, cada Estado tem direito para decidir, ele
mesmo, a questão de se o outro Estado violou ou não seu direito.
Nesse caso, o Estado prejudicado está autorizado a pôr em vigor o
Direito, recorrendo à guerra contra o transgressor.

336 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
3.2 A evolução do direito internacional como
garantia para a paz: formação do Estado
Mundial

[...] cuando se plantea la cuestión de cómo puede asegurarse la paz


internacional, de cómo puede eliminarse el empleo más terrible de la
fuerza, a saber, la guerra, de las relaciones entre los Estados, ninguna
respuesta puede ser más evidente por sí misma que ésta: uniendo a
todos los Estados individuales, o por lo menos el mayor número de
ellos posible, en un Estado mundial[...]228

A analogia entre o ordenamento jurídico interno e o ordena-


mento jurídico internacional, como se pode ver no ponto anterior,
está presente na teoria kelseniana sobre o “globalismo pacifista”.
Nesse sentido, se o Estado moderno é o tipo mais perfeito de ordem
social garantidora da paz nacional, uma estrutura garantidora da
paz mundial, com as mesmas características, deve ser possível em
nível internacional, mediante a evolução do Direito internacional
(isto é, mediante a centralização e o monopólio da força em um ente
superior aos Estados)229.
A criação desse Estado Mundial em Kelsen não deriva, exclu-
sivamente, do fato de se estabelecer um contrato originário interna-
cional. Para ele, a teoria sobre o nascimento do Estado mediante o
contrato social foi abandonada na sua época. O que imperava era a
ideia do nascimento do Estado mediante conflitos entre grupos so-
ciais. Contudo, ele não descarta nem uma nem outra postura. Indica

228
KELSEN, Hans. La paz por medio del Derecho. p. 29
229
Essa ideia recebe algumas críticas de Danilo Zolo: ele sustenta que essa visão é uma for-
ma de idealizar a justiça internacional, sem ter em consideração a estreita conexão que
existe entre o Direito Internacional, a política internacional e a força militar. Por outro
lado, considera que tais ideias sobreestimam o papel do Direito e da jurisdição penal
no seu objetivo de acabar com a guerra e duvida de que a aplicação de sanções contra
os indivíduos responsáveis pelos ilícitos internacionais incida, de alguma forma, sobre
as razões profundas da agressividade humana do conflito e da violência armada. (ZOLO,
Danilo. Una crítica realista del globalismo jurídico desde Kant a Kelsen y Habermas. p.
200)

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
337
que não seria possível criar um estado de paz duradouro sem um
mínimo de consentimento, mas que também é necessário um poder
para colocar em ordem a comunidade. ‘... O Direito é uma organização
da força...”230.
Não poderia negar Kelsen que a conformação de um Estado
mundial é um processo lento e de uma evolução longa e chega a
afirmar que só será possível no momento em que as diferenças cul-
turais entre as nações se igualarem231/232. Afirma, entretanto, que no
seu momento atual233, uma conformação de tal tipo não estava ao
alcance da realidade. A única coisa que era factível era a organização
de uma união internacional de Estados e não de um Estado mundial
federal.
O primeiro passo para se chegar a uma união de Estados,
segundo Kelsen, é lograr a assinatura de um Tratado internacio-
nal, pela maior quantidade de Estados, criando um Tribunal In-
ternacional que tenha jurisdição obrigatória, submetendo todas as
disputas à decisão dele e cumprindo-as de boa fé. A pergunta que
segue, então, é a seguinte: o que acontece se um Estado não cum-
pre com aquilo que foi determinado pelo Tribunal? Pois bem, con-
tinuando com a sua linha argumentativa, Kelsen leva sua analogia
até as últimas consequências, dizendo que será necessária que uma
polícia internacional que faça cumprir as ordens do tribunal. Não
obstante isso, continua dizendo que, enquanto não exista um exe-
cutivo centralizado que crie essa força armada internacional, os
Estados, mediante o emprego das suas próprias forças armadas e

230
KELSEN, Hans. La paz por medio del Derecho. p. 33.
231
Ibidem, p. 39
232
Essa ideia também é fortemente criticada por Danilo Zolo para quem o “globalismo
jurídico” implica uma espécie de etnocentrismo (europeu e ocidental) que se mostra
indiferente a tradições culturais, políticas e jurídicas diferentes da ocidental. (ZOLO,
Danilo. Uma crítica realista del globalismo jurídico desde Kant a Kelsen y Habermas...p.
201)
233
Cabe lembrar que o livro foi escrito durante o período de guerras, acontecido entre
1939 e 1945, razão pela qual, poderia ser considerada uma absoluta utopia a confor-
mação de um Estado mundial.

338 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
com a direção daquele órgão central, poderão fazer com que o Es-
tado inadimplente cumpra. A criação da força armada central seria
um dos últimos passos no caminho até a conformação do Estado
mundial.

4 KANT E KELSEN: INFLUÊNCIAS E DIFERENÇAS


NO “GLOBALISMO PACIFISTA”
Dos dois autores que acabamos de apresentar neste bre-
ve trabalho não cabe outra conclusão de que resulta evidente a
influência que Kant exerceu na teoria de Kelsen sobre o Direito
Internacional. No entanto, apesar dessa influência, em aparência
bem evidente, apontamos uma diferença substancial entre ambas
as teorias.
Enquanto para Kant a guerra é um estado natural do ser
humano (liberdade sem lei), Kelsen utiliza a guerra para lhe dar
uma forma jurídica: a sanção. Os dois autores utilizam uma ana-
logia entre o “doméstico” e o “internacional”. Kant faz uma ana-
logia entre o estado natural em que se encontram os indivíduos
antes da conformação de uma sociedade civil e o estado em que
se encontram os diferentes povos nas suas relações mútuas inter-
nacionais. Kelsen faz uma analogia entre as sociedades primitivas
(onde a sanção é aplicada pelo danificado ou “vingança de sangue”
e onde a determinação e a aplicação da sanção não se encontram
centralizadas) e as relações entre os diferentes Estados no Direito
internacional, também primitivo, por apresentar-se semelhante a
essa sociedade primitiva.
Nos trabalhos analisados, não se pode determinar com cla-
reza o que entende Kelsen por estado de natureza. Isso porque ele
parte de uma sociedade jurídica onde existe um Direito, apesar de
primitivo. Por outro lado, no livro analisado de Kant, o autor não faz
menção a uma sociedade primitiva. Ele parte de um estado natural
(o estado de guerra) até a conformação de um Estado civil legal (que

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
339
segue o princípio de que um individuo não está permitido a proceder
de modo hostil contra outro, salvo que tenha sido danado por essa
pessoa). Kant não explica, claramente, mas parece que as relações
que se estabelecem entre os indivíduos sob esse princípio podem ser
consideradas uma sociedade primitiva, para logo depois estabelecer
uma constituição (jurídica) baseada no direito civil político dos ho-
mens de um povo (ius civitas).
Para Kant, os Estados, nas suas relações mútuas, podem ser
considerados como homens individuais na sua condição natural.
Para Kelsen, os Estados, nas suas relações mútuas, podem ser con-
siderados como indivíduos das sociedades primitivas. Nesse sentido,
Kant coloca a relação entre os Estados fora de qualquer relaciona-
mento jurídico. Kelsen, pelo contrário, indica que a relação que se
estabelece entre os Estados encontra-se regulada pelo Direito, o Di-
reito Internacional geral, que é primitivo.
Para Kant, é bem claro indicar os motivos pelos quais os
Estados têm de sair do estado natural em que se encontram. No
estado natural (de guerra constante, de liberdade sem lei) os povos
causam dano uns aos outros. Para acabar com o dano e as hostili-
dades, a guerra deve acabar para sempre. Para Kelsen, os motivos
pelos quais os Estados devem sair do Estado em que se encontram
(por estarem regulados por um Direito primitivo) é o fato de se
encontrar no Estado moderno o tipo mais perfeito de ordem so-
cial, que centraliza o monopólio da força e garante a paz. Mas a
pergunta em Kelsen continua vigente: por qual motivo os Estados
devem sair do estado primitivo em que se encontram? Por que, se
a guerra é considerada uma sanção e a comunidade internacional
concorda com isso, os Estados devem sair desse estado primitivo
e compor um órgão tão centralizado que chegue a conformar um
Estado mundial?
Uma resposta que se pode dar para essas perguntas é a se-
guinte: Kelsen não pretende alcançar uma “paz perpétua”, a ausên-
cia de força, para ele, não é possível. O emprego da força entre os

340 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
indivíduos se evita reservando-o para a comunidade. Desse modo,
quando ele fala de “paz nacional”, provocada pela conformação do
Estado moderno, não quer significar que exista ausência de força no
plano interno, mas que existe o monopólio da força. Sua intenção de
criar uma paz internacional não pretende significar a ausência com-
pleta do uso da força, mas sim que ela seja utilizada por um órgão
internacional centralizado. Em Kant, essa mesma pergunta pode ser
colocada. Acontece que, seguindo a analogia entre indivíduos e Es-
tados, se do princípio de que a um individuo não lhe está permitido
proceder de modo hostil contra outro, salvo que tenha sido lesado
por essa pessoa segue a mesma consequência para os Estados: por-
que seria importante e benéfico sair de esse “estado civil primitivo”
onde a guerra é aplicada como resposta a um dano anterior? A guer-
ra é o estado natural (de liberdade sem lei) ou é o método que os
Estados encontram para se protegerem?
O fato é que ambos os autores se empenham por demonstrar
que a situação na que se encontram os Estados nas suas relações
mútuas é um estado natural (segundo Kant) ou um estado onde
existe um direito primitivo (segundo Kelsen) e que, para garantir a
paz é importante sair desses estados.
Eis aqui outra diferença entre ambas as teorias. Para Kant, a
forma de sair desse estado natural requer, principalmente, o enten-
dimento dos homens para saber que a boa organização do Estado é
a forma de neutralizar os efeitos destrutivos de uma liberdade sem
lei. A partir desse entendimento, será possível estabelecer entre os
diferentes povos, relações mútuas pacíficas mediante a conformação
de uma federação de Estados livres. Para Kelsen, a forma de sair do
estado primitivo é mediante a técnica de aperfeiçoamento do Direito
internacional geral ou, o que é o mesmo, a sua evolução. Contudo,
os dois coincidem em que, para sair desses estados, é necessário um
processo lento e contínuo.
Por último, pareceria existir outra diferença substancial no
que diz respeito ao que denominamos aqui de “globalismo pacifis-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
341
ta”. Isso porque, segundo o que se pode ler no desenvolvimento des-
te trabalho, Kelsen advoga pela conformação de um Estado mun-
dial, enquanto Kant parece ser contrário à essa ideia. Não obstante
essa afirmação não pode ser traçada claramente, já que, Kant não é
claro neste tópico e as passagens em que expressa suas ideias sobre
a conformação de uma federação de estados livres podem ser inter-
pretadas de vários modos234.
Alguns autores sustentam que Kant propôs a formação de
um governo mundial, seguindo uma analogia doméstica plena. Um
segundo grupo de autores sustenta que Kant propôs a formação vo-
luntária de uma liga das nações, devido à situação cultural e política
da sua época (argumento pragmático)235.
Nesse sentido, se considerarmos que Kant resistia a qualquer
criação de um Estado mundial para continuar intacta a soberania
plena dos Estados, encontrar-se-ia uma contradição na sua teoria
(não seguindo uma analogia plena), segundo o que foi dito na nota
de rodapé 13. Assim, Kelsen viria salvar essa teoria de sua contradi-
ção interna, fazendo uma analogia total e levando-a até as últimas
consequências. Se considerarmos, ao contrário, que Kant pretendeu
marcar um ideal “com a conformação de um Estado mundial”, mas
que, na situação atual, não era concebível e, por esse motivo, só se-
ria possível uma confederação de Estados livres, então, Kelsen, em

234
O parágrafo que deu lugar a várias interpretações determina: ‘... para los Estados en
relaciones recíprocas no puede haber, según la razón, ninguna otra manera de salir
de la condición sin ley, que consiste únicamente en la guerra, que renunciar, como los
hombre individuales, a su libertad salvaje (sin ley), acomodarse a un derecho público
coactivo y formar, así, un Estado de pueblos (civitas gentium) en aumento constante,
que englobaría finalmente a todos los pueblos de la tierra. Pero considerando que,
según su idea del derecho de gentes, en absoluto quieren esto –con lo cual lo que es
correcto in thesi lo rechazan in hypothesi-, entonces (si es que no todo ha de perderse)
en lugar de la idea positiva de una república mundial, sólo el sustituto negativo de
una alianza de defensa contra la guerra, permanente y siempre en expansión, puede
detener el torrente de las inclinaciones hostiles que le temen al derecho, si bien con
el constante peligro de su estallido…” (KANT Immanuel. Hacia la paz perpetua. Un
proyecto filosófico... p. 63).
235
Ibidem, p. 27.

342 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
verdade, deu continuidade a essa teoria e indicou o modo como a
criação de um Estado mundial pode ser levado à prática jurídica:
mediante a evolução da técnica do Direito internacional. Nesse sen-
tido, ambos os trabalhos poderiam ser vistos como uma unidade, em
que Kelsen pretende reposicionar o projeto filosófico kantiano no
plano da técnica do Direito.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho pretendeu apontar algumas convergên-
cias e diferenças entre dois projetos teóricos elaborados em con-
textos históricos diversos. Os dois, contudo, pretenderam oferecer
soluções teóricas para garantir a paz. Para isso estabeleceram uma
proposta para que a guerra (o uso da força) não seja utilizada, pelos
Estados, como mecanismo para defender ou conquistar um direito.
O trabalho, contudo, não teve como objetivo identificar a aplicação
prática dessas teorias na atualidade. Fica, dessa forma, para reflexão
dos leitores analisarem os benefícios ou não que elas podem trazer
para a manutenção da paz.
O que se pode apontar aqui é que resulta evidente que am-
bos os autores pretendiam, com as suas teorias, modificar uma rea-
lidade que eles observavam como sendo indesejável atuando, dessa
forma, como teóricos políticos normativos. Nesse sentido, Como
indica Antonio Valdecantos, o teórico político normativo, “está
convencido de que a formulação da sua teoria conduzirá determi-
nado tipo de recepção por uma comunidade de destinatários (a
opinião pública, o soberano, certa classe social) que a entenderão
da maneira prevista por ele sem distorções nem equívocos e de
que essa recepção culminará, caso a teoria triunfe, na aplicação
ou execução da teoria por seu grupo receptor, de modo que a orga-
nização da sociedade se leve a cabo conforme aquilo que a teoria
considerava ser uma sociedade boa ou justa”. Assim, os receptores
da teoria têm a capacidade de compreender as teorias e de poder
levar à prática seus conceitos.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
343
Nesse sentido:

El actor dramático competente entiende bien el texto de un drama y


sabe, por tanto, sobre la acción lo mismo que sabe el autor. Pero el
actor tiene el privilegio de alterar el texto en múltiples formas que el
autor no podría haber previsto. De modo que el actor sabe lo que sabe
el autor y sabe además lo que el propio actor va a hacer con el texto.
Las previsiones del autor sobre la conducta de los actores son fali-
bles y precarias, pero las del actor sobre su propio obrar son profecías
que pueden autocumplirse. La representación de una obra dramá-
tica presupone que los actores obedecen los mandatos del autor, pero
también, que éste ha perdido la autoridad sobre su texto: a la hora
de actuar, los actores mandan y los autores obedecen. Los usuarios de
teorías políticas son actores rebeldes que doblegan a su antojo a los
teóricos. (VALDECANTOS, 1996, p. 309)

6 REFERÊNCIAS
BOBBIO, N. y ZOLO, D. Hans Kelsen, the Theory of Law and the International Le-
gal System: A talk. In: European Journal of International law 9, 1998, 355-367
HABERMAS, J. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Trad., George Sperber.
Edições Loyola. São Paulo, 2002.
KANT, Immanuel. Hacia la paz perpetua. Un proyecto filosófico. Trad. Macarena Marey
e Juliana Udi. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2007.
KANT, Immanuel. À paz perpétua. Trad. Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2008.
Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita. Trad. Arturo Mo-
rão. In: Immanuel Kant. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70. 1988.
p. 21-37.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luis Carlos Borges. São Pau-
lo: Martins Fontes, 2005.
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
KELSEN, Hans. Derecho y paz en las relaciones internacionales. Trad. Florencio Acosta.
México: Fondo de Cultura Económica, 1943.
KELSEN, Hans. La paz por medio del Derecho. Trad. Luis Echavarri. Revisión. Genaro
Rubén Carrió. Buenos Aires: Losada, 1946.

344 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
KELSEN, Hans. Princípios do Direito Internacional. Trad. Gilmar Antonio Bedin e Ul-
rich Dressel. Ijuí: Unijuí, 2010.
RAWLS, John. O Direito dos povos. Trad. Luís Carlos Borges. Martins Fontes. São
Paulo, 2004.
SAINT-PIERRE, Abbé de. Projeto para Tornar a Paz na Europa. Trad. Sérgio Duarte.
São Paulo: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais (IPRI), 2003.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Extrato e julgamento do Projeto de Paz Perpétua de
Abbé de Saint-Pierre (1756). BATH, Sérgio. (trad.) Rousseau e as Relações Interna-
cionais. São Paulo: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), 2003.
VALDECANTOS, Antonio. Entre el leviatán y cosmópolis. Kant, Hobbes, la dico-
tomía hecho/valor y los efectos no intencionados de las teorías políticas. In: ARA-
MAYO R. Roberto; MUGUERZA, Javier; ROLDÁN, Concha (editores). La paz y el
ideal cosmopolita de la ilustración. A propósito del bicentenario de Hacia la paz perpetua de
Kant. Madrid: Tecnos, 1996. p. 275-323.
ZOLO, Danilo. Una crítica realista del globalismo jurídico desde Kant a Kelsen y Habermas.
Trad. Pedro Mecardo Pacheco. Univesidad de Granada. Anales de la Cátedra Fran-
cisco Suarez, 36 (2002), p. 197-218.
International Peace through International Law. European Journal of International
Law. n. 9. 1998, p. 306-324.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
345
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS NORMAS
INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS:
a criação do Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Direitos Humanos
Matheus de Carvalho Hernandez
Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dou-
rados. Doutorando em Ciência Política pela Universidade Estadual de Cam-
pinas. Bacharel em Relações Internacionais e Mestre em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual Paulista. Coordenador da Pós-graduação em Di-
reitos Humanos e Cidadania da Universidade Federal da Grande Dourados.
(matheuschernandez@gmail.com)

Resumo:
O presente artigo tem como objetivo analisar o surgimento do Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). O ACNUDH foi aprovado pela Assembleia Geral
da ONU ao final de 1993, iniciando seus trabalhos em 1994. A discussão acerca de sua criação
decorreu de recomendação da II Conferência Mundial para os Direitos Humanos da ONU,
realizada em junho de 1993. O objetivo deste artigo é compreender os processos e dispu-
tas políticas historicamente construídas subjacentes à criação dessa instituição. Diante da
lacuna de pesquisa acerca do ACNUDH, as questões que se suscitam são as seguintes: qual
é a historicidade do surgimento do ACNUDH? Por que é que um órgão proposto, pela pri-
meira vez, na década de cinqüenta e, posteriormente, na década de sessenta e setenta, só
foi criado ao final de 1993? Acredita-se aqui que ele foi criado não somente pelo anseio
intra-institucional de maior eficiência procedimental no sistema internacional de proteção
aos direitos humanos, mas também pela força que o discurso e a dimensão da efetividade
dos direitos humanos atingiram no pós-Guerra Fria, especialmente junto às Organizações
Não-Governamentais (ONGs), catalisado pela Conferência de Viena. Com o intuito de proble-
matizar a questão do ponto de vista teórico-metodológico abordar-se-á a análise a partir do
Institucionalismo Histórico e de alguns apontamentos ontológicos construtivistas acerca de
normas.no ambiente internacional.

Palavras-chave: Direitos Humanos – ONU – Organizações Internacionais – Alto Comissariado


para os Direitos Humanos.

346 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Sumário:
1. Introdução. 2. O Institucionalismo Histórico. 3. As tentativas frustradas de criação do
ACNUDH. 4. A Conferência de Viena e a criação do ACNUDH. 5. O surgimento do ACNUDH e o
Institucionalismo Histórico. 6. Considerações Finais. 7. Referências.

1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo analisar o surgimento de
uma instituição ainda pouco estudada na Ciência Política, nas Re-
lações Internacionais e no Direito: o Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).
O ACNUDH, liderado por um Alto Comissário, foi aprovado
pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) ao
final de 1993, iniciando seus trabalhos em 1994. A discussão acerca
de sua criação foi levada a essa instância deliberativa da ONU por
força de recomendação da II Conferência Mundial para os Direitos
Humanos da ONU, realizada em junho de 1993, em Viena – por isso
conhecida como Conferência de Viena.
A este artigo não interessará diretamente analisar as funções
desempenhadas pelo ACNUDH, mas sim compreender quais os pro-
cessos e, portanto, as disputas políticas historicamente construídas
que subjazem a criação dessa instituição. Diante da referida lacuna
de pesquisa acerca do ACNUDH, as primeiras questões empíricas
que se suscitam, às quais esse trabalho se dedicará, são as seguintes:
qual é a historicidade do surgimento do ACNUDH? Ou seja, por que
é que um órgão proposto, pela primeira vez, na década de cinqüenta
e, posteriormente, na década de sessenta e setenta, só foi criado ao
final de 1993?
Entretanto, essas importantes questões empíricas acerca do
ACNUDH devem ser pensadas como espelhamentos de questões
teóricas de fundo a respeito da importância da relação entre as nor-
mas e as instituições internacionais de direitos humanos. Nesse sen-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
347
tido, a partir de um aporte construtivista, estabelecem-se algumas
perguntas.
Mas antes de explicitá-las, vale ressaltar que uma forte preo-
cupação da abordagem construtivista é compreender como as nor-
mas (no caso aqui, de direitos humanos) constituem os interesses e
as identidades dos atores internacionais em casos particulares. Por
isso, àquelas perguntas empíricas se vinculam tais indagações teó-
ricas: por que algumas ideias, como os direitos humanos, adquirem
autoridade discursiva e institucional no campo da política interna-
cional? Como e por que algumas manifestações coletivas da com-
preensão humana, não sendo válidas aprioristicamente, tornam-se
práticas sociais estabelecidas em sistemas sociais e disseminadas in-
ternacionalmente?
Com o intuito de problematizar historicamente e de enqua-
drar metodologicamente essas questões citadas acima, abordar-se-á
o surgimento do ACNUDH a partir do Institucionalismo Histórico.
Para isso, o artigo se iniciará descrevendo e analisando as categorias
e conceitos dessa abordagem teórico-metodológica. Feito isso, pas-
sar-se-á a discutir as tentativas frustradas de criação do ACNUDH,
bem como a proposta aprovada em 1993 à luz daquelas categorias e
conceitos.

2 O INSTITUCIONALISMO HISTÓRICO
Antes da exposição a respeito do Institucionalismo Histórico
(IH), vale uma observação importante. Na introdução deste traba-
lho, anunciou-se a adoção da abordagem construtivista. Por isso, o
leitor pode se perguntar: por que tratar do IH e não do construtivis-
mo nesta seção teórico-metodológica? A primeira razão de cunho
prático diz respeito às limitações de espaço do trabalho neste forma-
to de artigo, o que impede a exposição de ambos aportes. A segunda
e mais importante razão é de cunho teórico. O construtivismo tem
como peculiaridade seus apontamentos no nível ontológico, e não

348 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
no nível empírico das estratégias de pesquisa (SIKKINK; FINNE-
MORE, 2001).
O construtivismo, diferentemente do realismo, liberalismo e
marxismo, não é uma teoria política propriamente dita, mas uma
teoria social que trabalha em um nível mais amplo de abstração. Por
isso, o construtivismo não produz “automaticamente” explicações
e tampouco faz previsões acerca do conteúdo das estruturas ou da
natureza dos agentes, mas defende apenas que eles se constituem
mutuamente.
Na verdade, o construtivismo, tal como a escolha racional,
é uma espécie de moldura para pensar a construção da realidade
social em âmbito internacional. O conteúdo e os argumentos efeti-
vos são trazidos pela pesquisa, isto é, o construtivismo necessita de
outras fontes para se completar em um desenho de pesquisa236. Por
isso, os achados e análises a respeito da criação do ACNUDH par-
tem de um ponto de vista ontológico construtivista, mas ganham
densidade teórico-metodológica, ainda que essa vinculação esteja
em andamento na presente pesquisa, a partir do Institucionalismo
Histórico. Sendo assim, diante das limitações de espaço e, por isso,
da necessidade de escolha expor questões ontológicas ou questões
teóricas, optou-se pela segunda alternativa.
Dito isso, debrucemos-nos sobre o Institucionalismo Históri-
co. O IH se distingue de outras abordagens das ciências sociais pela
sua atenção a questões empíricas do mundo real, pela sua orientação
histórica e pela sua atenção às formas pelas quais as instituições
estruturam e modelam os comportamentos e os resultados políticos.
Essa abordagem teórica se mostra bastante pertinente para
os fins deste trabalho, uma vez que ela considera as instituições não

236
“Constructivists need methods that can capture the intersubjective meanings at the
core of their approach. […] To accomplish this, constructivists have used a variety of
tools to capture intersubjective meanings, including discourse analysis, process tracing,
genealogy, structured focused comparisons, interviews, participant observation, and
content analysis.” (SIKKINK; FINNEMORE, 2001, p. 395).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
349
apenas como arenas ou “recipientes” nas quais a política se desen-
volve, e concede grande importância ao modo específico através do
qual uma instituição se constrói237 (SKOCPOL, 1985; STEINMO,
2008; SANDERS, 2006).
Ademais, essa abordagem contempla os objetivos do pre-
sente artigo na medida em que ela propõe uma metodologia in-
dutiva, e não dedutiva (HALL; TAYLOR, 2003). A intenção deste
estudo, apesar das preocupações analíticas, não é necessariamente
afirmar um modelo de análise generalizável acerca do surgimento
de instituições, mas averiguar o modo específico através do qual
o ACNUDH surgiu238. A vinculação das dimensões institucionais e
históricas nos permitirá, assim, compreender tanto quais processos
históricos e políticos subjazem o surgimento do ACNUDH quanto
as razões de ele ter surgido naquele determinado momento (1993-
1994).
Outro ponto que singulariza o IH – e também faz dele uma
pertinente abordagem para os objetivos deste estudo – são as ques-
tões que o caracterizam. O IH dá muita atenção a questões de quem
são (ou o que são) os agentes responsáveis por mudanças institu-
cionais, isto é, quem estabeleceu a instituição? Que forças sociais
exógenas ou dinâmicas internas são responsáveis por surgimentos
ou mudanças institucionais?

237
Segundo Hall e Taylor (2003, p. 196), instituições, para o IH, assim se definem: “[...] pro-
cedimentos, protocolos, normas e convenções oficiais e oficiosas inerentes à estrutura
organizacional da comunidade política ou da economia política. Isso se estende das re-
gras de uma ordem constitucional ou dos procedimentos habituais de funcionamento
de uma organização até às convenções que governam o comportamento dos sindicatos
ou as relações entre bancos e empresas. Em geral, esses teóricos tem a tendência a as-
sociar as instituições às organizações e às regras ou convenções editadas pelas organi-
zações formais”. Interessante observar como o ACNUDH é completamente compatível
com essa definição proposta pelo IH.
238
Vale salientar que essa não pretensão de produzir grandes explicações generalizáveis
é compartilhada pelo IH e por grande parte dos construtivistas. Os construtivistas mo-
dernos, com os quais compartilhamos vários pressupostos, procuram focar mais em
explicações de generalização contingente do que em elaborar teorias concorrentes.
Por isso, se debruçam sobre problemas e sobre como abordá-los, tal como estamos
tentando aqui fazer com o surgimento do ACNUDH.

350 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Essas questões exigem que se recorra à história não apenas
como pano de fundo ou cenário para uma investigação acerca das
funções desempenhadas por uma instituição, mas como ferramenta
analítica. É importante observar que o IH tende muito mais a ob-
servar as origens de uma instituição do que suas funções (THELEN,
1999). No caso deste trabalho, o foco é dado ao surgimento do AC-
NUDH, e não às suas funções, uma vez que elas, além de não serem
centrais para as perguntas que mobilizam este estudo, não nos pare-
ce deter toda a potencialidade explicativa de tal surgimento.
Mas a história também importa ao IH na medida em que os
atores ou os agentes podem aprender com a experiência. Por isso, é
muito importante ter em vista os momentos em que as propostas de
criação do ACNUDH, tenham sido elas frustradas ou exitosas, apa-
receram na agenda política internacional.
Como já dito, um trabalho calcado nessa abordagem, como
é o caso deste estudo, não é motivado pelo objetivo de estabelecer
um argumento ou uma metodologia necessariamente generalizável,
mas sim pelo objetivo de responder e problematizar questões empíri-
cas do mundo real (STEINMO, 2008). Daí por que faz todo o sentido,
ao se perguntar a respeito do surgimento do ACNUDH, retornar aos
processos de construção dessa instituição, uma vez que é por meio
desse retorno, que tem sua base (sua pergunta mobilizadora) no
presente, que os nexos causais aparecerão e, eventualmente, abrirão
novas agendas de pesquisa.
Um outro elemento que caracteriza o IH e que é de grande
valia para compreender o processo histórico de criação do ACNUDH
é a ideia de que surgimentos e mudanças institucionais são de difícil
realização. Isso ocorre, muitas vezes, por que uma instituição está
incorporada em um conjunto maior de instituições. Por conta disso,
é provável que haja resistências significativas à mudança por parte
de alguns atores (STEINMO, 2008). Em termos conceituais, a cons-
trução da trajetória de uma instituição é vista por essa abordagem
como a efetivação de passos em uma direção particular (path depen-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
351
dent ou trajetória dependente). Esses passos podem induzir a movi-
mentos adicionais na mesma direção, e, com isso, podem aumentar
os custos de abandonar um caminho (político e institucional) já tra-
çado ou de modificá-lo239 (THELEN, 1999).
Em processos de emergência e desenvolvimento institucio-
nal, como é o caso do ACNUDH, o “quando” um evento ocorre pode
ser crucial (PIERSON, 2000). Segundo Fioretos 2011, p. 371),

[…] historical institutionalism considers attention to temporality


crucial for analytical reasons, since later events are conditioned by
earlier ones (not simply the constellation of interests and constraints
at the moment), but also in substantive terms because it redefines
the disciplinary object from one directed at the study of stationary
outcomes to one focused on explaining diverse and dynamic processes
of institutional development.

Nesse sentido, a ideia de momentos críticos ganha importân-


cia. O IH trabalha com argumentos a respeito de momentos cruciais
fundantes de uma formação institucional (critical junctures). Esses
momentos são de grande importância na medida em que geram al-
gum tipo de ruptura. Esses momentos de ruptura se caracterizam
pela produção de mudanças institucionais, criando “bifurcações”
que levam ao desenvolvimento de uma nova trajetória institucional.
Por último, as ideias no IH são diferentes de preferências
(como define a Escolha Racional) e de consciência das regras (como
sugere o institucionalismo sociológico). O IH não se importa tanto
com o fato de elas serem abstrações ou não das preferências indivi-
duais. O IH se importa muito mais é com o fato das ideias (como os

239
Uma série de elementos do longo processo de negociação e criação do ACNUDH pode-
riam ser trabalhados a partir da trajetória dependente: a dúbia posição do Alto Comis-
sário enquanto ombudsman ou burocrata, sua atuação a partir da diplomacia silenciosa
como herança da Guerra Fria, o respeito ao princípio da soberania, o baixo orçamento
do ACNUDH como legado dos esparsos recursos do Centre for Human Rights, a decisão
do ACNUDH ser liderado por uma única pessoa e não por um colegiado, dentre outros.

352 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
direitos humanos) serem forças mobilizadoras da ação coletiva por
grupos que querem criar ou mudar instituições.

3 AS TENTATIVAS FRUSTADAS DE CRIAÇÃO DO


ACNUDH
Esta seção cuidará de discutir bastante sinteticamente as
tentativas fracassadas de criação do ACNUDH. Antes de entrar nes-
sa discussão, é muito importante salientar que há pouquíssimos es-
tudos produzidos a respeito dessas tentativas. A grande exceção é o
livro de Roger Stenson Clark, de 1972, resultado de seu doutorado
na Universidade de Columbia (EUA). Além dessa obra, resoluções
da ONU na tentativa de reconstruir os processos de idas e vindas
políticas e institucionais em torno da criação do ACNUDH foram
utilizadas.
A despeito da importância posterior das ONGs, a primeira ini-
ciativa para a criação do ACNUDH veio de um Estado (a França), em
1947, durante a elaboração da Declaração Universal (UN, 1947)240.
Ainda em 1950, a sugestão de criação do ACNUDH foi assumida pelo
governo do Uruguai (NOWAK, 2009). A proposta foi apresentada
sobre a base de um Alto Comissário único, mas poderia, segundo
Clark, ser adaptada ao esquema com um Comissário central e vários
regionais (CLARK, 1972). Tal como a proposta de 1947, a proposição
uruguaia não obteve muito apoio, nem mesmo do Secretário-Geral
(UN, 1955). Mas na década de sessenta, o debate se reacende com a
proposta encabeçada pelos EUA (BLAUSTEIN, 1963).
A partir de 1964, o interesse das ONGs tornou-se um fator
de extrema relevância para a sobrevivência da proposta. Elas reali-
zaram um pronunciamento conjunto em favor do ACNUDH e um
esboço de uma resolução da Assembleia Geral. A circulação desse
240
Após a decisão da Assembleia Geral de criar o Alto Comissariado para os Refugiados
em 1949, a Consultative Council of Jewish Organizations trouxe uma nova proposta,
redigida por Robert Langer. A proposta de Langer previa que o Alto Comissário para os
Direitos Humanos fosse uma espécie de promotor ou defensor público internacional.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
353
esboço acendeu os lobbies governamentais. Logo no início de 1965,
o governo da Costa Rica introduziu a proposta de criação do ACNU-
DH, mas a pauta terminou não sendo debatida com profundidade
(CLAPHAM, 1994).
O fórum seguinte no qual o ACNUDH foi debatido foi o Semi-
nário sobre Direitos Humanos em Países em Desenvolvimento, que
ocorreu em Dakar, Senegal, em fevereiro de 1966. Segundo Clark
(1972), mais significante do que qualquer contribuição que o Se-
minário possa ter tido para o conteúdo foi sua composição: 23 paí-
ses africanos e observadores da França, URSS, EUA e um grupo de
ONGs.
A partir daí, no início de 1967, um Grupo de Trabalho foi
montado e produziu um relatório e um esboço de estatuto estabe-
lecendo o ACNUDH (UN, 1966). Dentre os vários pontos debatidos
pelo GT, um deve ser destacado: a proposição de um painel de con-
sultores especialistas (experts) para auxiliar o Alto Comissário. Essa
proposta representou a conciliação entre duas visões divergentes:
uma minoria dos membros do GT que eram favoráveis a um corpo
colegiado em vez de um único oficial e uma maioria que preferia a
segunda opção.
A Comissão de Direitos Humanos considerou o relatório do
GT ao final de sua sessão de 1967. O representante soviético circulou
uma carta alegando que omissões e equívocos estavam contidos no
estudo do Secretário-Geral. Na sua visão, o estudo e o relatório do
GT tinham se concentrado em argumentos que a priori justificavam
a desiderabilidade da criação do cargo. Ele ainda disse ver como sur-
preendente que o GT não tivesse considerado a adoção, em 1966,
dos Pactos sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Econômi-
cos, Sociais e Culturais (UN, 1967). Embora diante dessa e de várias
outras críticas, a proposta do GT conseguiu ser aprovada dentro da
Comissão por vinte votos a sete, com duas abstenções.
Depois de várias tentativas e passados dez anos, em 1977, o
projeto saiu da Comissão de Direitos Humanos e foi para a Assem-

354 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
bleia Geral241. Segundo Boven (2002), um dos principais fatores para
a proposta de criação do ACNUDH ter voltado à agenda da ONU no
final dos anos setenta foi a chegada de Carter à presidência dos EUA.
Outros fatores também devem ser levados em conta. Os dois pactos
haviam acabado de entrar em vigor (1976). Entretanto, a atenção da
ONU não estava focada tanto nos procedimentos de implementação
desses pactos, mas sim nas violações massivas de direitos humanos
ligadas ao apartheid, racismo e discriminação racial, dominação co-
lonial, etc. Além disso, novos conceitos emergiam na agenda dos
direitos humanos, com forte destaque para a demanda dos países do
terceiro mundo, como o direito ao desenvolvimento e o estabeleci-
mento de uma nova ordem econômica internacional e procedimen-
tos decisórios mais equânimes. Outras demandas do terceiro mundo
se focavam na interdependência e na indivisibilidade entre direitos
civis e políticos e econômicos, sociais e culturais. Praticamente todas
essas demandas apareceram na resolução de 1977, de forma a atrair
os países do terceiro mundo para o projeto de criação do ACNUDH.
Essa proposta também não conseguiu aprovação porque mui-
tas delegações e o próprio secretariado geral temiam que o ACNUDH
fosse entrar em choque com sua atuação, especialmente pelo tradi-
cional papel do Secretário-Geral na condição prestigiosa de “perso-
nificação” da ONU em negociações internacionais.
A última tentativa de criação do cargo durante a Guerra Fria
aconteceu na primeira metade da década de oitenta, com destacado
apoio dos EUA e de delegações latino-americanas e africanas. Ape-
sar dessa forte mobilização da delegação norte-americana na Comis-
são de Direitos Humanos e dos outros apoios, o Departamento de
Estado e outras potências ocidentais, diante da resistência de alguns
países (Cuba, Índia, Paquistão), concluíram que a proposta não sai-

241
Naquele momento, já havia alguns poucos mecanismos de direitos humanos da ONU
desenvolvidos: a Resolução 1503, desde 1970, já envolvia a Comissão de Direitos Hu-
manos e sua Subcomissão em debates confidenciais a respeito de violações; e, em
1977, o Comitê do Pacto dos DCP começava seus trabalhos, examinando relatórios dos
Estados-parte (FLOOD, 1998).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
355
ria vitoriosa naquele momento e optaram por não levá-la à votação
na Comissão.
Ao longo dos aproximadamente dez anos subseqüentes, a
pauta acabou sendo eclipsada dentro da Comissão. Além disso, o
Comitê de Direitos Humanos e o Comitê de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais começaram, naquele período, a supervisionar os
dois pactos e outros comitês foram estabelecidos para supervisionar
outros tratados. Os mecanismos temáticos – GTs e relatores especiais
– que podiam receber complaints também foram criados e os relato-
res por países foram apontados pela Comissão de Direitos Humanos
(ALSTON, 1997).
Elencar o desenvolvimento desses mecanismos é importante
por dois motivos. Primeiro por que o desenvolvimento de tais inicia-
tivas parece ser um dos principais fatores, juntamente com a entrada
em vigor dos dois Pactos em 1976, a serem considerados quando se
percebe como a criação do ACNUDH, do fim dos anos setenta ao fim
da Guerra Fria, perde a importância relativa dentro da agenda inter-
nacional de direitos humanos. Por outro lado, ter em mente o desen-
volvimento gradual de todos esses mecanismos de fiscalização inter-
nacional dos direitos humanos é vital para compreender a diferença
entre o contexto da década de oitenta, quando a proposta de criação
do ACNUDH perdeu força relativa, e o contexto do início da déca-
da de noventa e de realização da Conferência de Viena. Vale ressaltar
que em matéria de mecanismos institucionais de direitos humanos
no âmbito da ONU, o início da década de noventa se caracterizou pela
complexidade institucional e foi quando, de fato, o ACNUDH teve sua
proposta de criação aprovada, tema da próxima seção.

4 A CONFERÊNCIA DE VIENA E A CRIAÇÃO DO


ACNUDH
Depois de várias tentativas, a proposta de criação do ACNU-
DH conseguiu sua aprovação ao final de 1993. Mas, a análise desse

356 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
momento deve ser realizada em relação com a Conferência de Viena.
Isso porque a Conferência se tornou espaço e estímulo para a mobili-
zação de uma série de propostas no campo dos direitos humanos até
então encapsuladas pela lógica da Guerra Fria. A proposta de criação
do ACNUDH, que, segundo Nowak (2009), foi a de maior visibi-
lidade nos meios de comunicação, chegou à Conferência de Viena
através da Anistia Internacional, o que já sugere a importância da
participação das ONGs na Conferência.
Já no processo preparatório, a proposta foi encampada pela
Reunião Regional Latino-Americana e Caribenha e pelas potências
ocidentais, com destaque para os EUA (LAATIKAINEN, 2004). Os
apoiadores da proposta justificavam a criação de um ACNUDH pela
necessidade de maior coordenação e contato na matéria de direitos
humanos. Vale dizer que a busca por maior coordenação e articula-
ção entre os diversos órgãos da ONU era um dos principais objetivos
da Conferência.
A proposta era objetada, por sua vez, por muitos países não-
-ocidentais, com destaque para os propagadores do debate dos Valo-
res Asiáticos, pois a viam como uma forma de privilegiar a fiscalização
exclusiva dos direitos civis e políticos (em detrimento dos direitos
econômicos, sociais e culturais) e como possibilidade de ingerência
ocidental intrusiva em suas respectivas soberanias (ALVES, 2001). A
falta de consenso sobre o ponto permaneceu até o final do evento.
Não havendo solução, o Plenário da Conferência se viu obrigado a
encaminhar a proposta para a Assembleia Geral colocando-a como
prioritária (UN, 1993). Assim, a proposta, mobilizada pela Anistia
Internacional, foi aprovada por consenso em Nova York, na Assem-
bleia Geral da ONU, em 20 de dezembro de 1993242 (BRETT, 1995;
LAWSON, 1996).

242
A missão do ACNUDH foi assim sintetizada por Schöfer: “The mandate of OHCHR is
to promote and protect the enjoyment and full realization, by all people, of all rights
established in the Charter of the United Nations and in international human rights
laws and treaties. The mandate includes preventing human rights violations, securing
respect for all human rights, promoting international cooperation to protect human

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
357
Segundo Alston (1993), aquelas tentativas frustradas ha-
viam apenas sedimentado a oposição de muitos governos em relação
à proposta, temerosos quanto à interferência em suas questões do-
mésticas, em relação a um programa de direitos humanos da ONU
mais efetivo e intrusivo, e em relação a uma agenda supostamente
ocidental estritamente. Essa impressão teria ficado mais forte quan-
do a proposta não foi acordada em Viena e foi postergada para a
Assembleia Geral seguinte.
Segundo Alves (2003), o consenso foi obtido porque as delega-
ções não-ocidentais discordantes perceberam que a criação do cargo
não constituiria uma ameaça às suas soberanias. De acordo com Als-
ton (1997), alguns fatores ajudam a explicar como se conseguiu apro-
var e criar o ACNUDH naquele momento: a campanha articulada das
ONGs, liderada pela Anistia Internacional; o apoio pela administração
Clinton; apoio homogêneo dos países da Europa do leste e central; e a
habilidosa negociação diplomática, sobre a qual Ayala Lasso, primeiro
Alto Comissário, exerceu um papel de grande influência.
De acordo com Ayala-Lasso (2002; 2009), Ramcharan (2002)
e Magazzeni (2009), a Conferência de Viena funcionou como uma
base a partir da qual as reformas dos métodos da ONU em matéria
de direitos humanos se fundamentaram, com forte destaque para o
Alto Comissariado para os Direitos Humanos243.

rights, coordinating related activities throughout the United Nations, and strengthe-
ning and streamlining the United Nations system in the field of human rights.”
(SCHÖFER, 2009, p. 405).
243
De acordo com Nowak (2009), “The establishment of the Office of the High Commis-
sioner for Human Rights (OHCHR) constitutes the most important structural result of
the Vienna World Conference on Human Rights.” (NOWAK, 2009: p. 106). Segundo
Schöfer, “[...] the OHCHR, established as a result of the VDPA in 1993, represents the
international community’s main focal point for the protection and promotion of human
rights.” (SCHÖFER, 2009, p. 395). Kyung-wha Kang, Alto Comissário interino entre 1º
de julho e 1º de setembro de 2008, também afirmou: “The Vienna Conference is of
particular significance to all of us at OHCHR [Office of High Commissioner for Human
Rights], for it was the Vienna process that gave concrete voice to the long-standing wish
of the human rights community to create the post of the UN High Commissioner for Hu-
man Rights. Those who were directly involved in the Vienna process […] recall that the
issue of creating the post of the High Commissioner was an undercurrent of controversy

358 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Apesar da importância da questão da eficiência procedimen-
tal no sistema internacional de proteção aos direitos humanos, não
nos parece que esta seja a única e, tampouco, a principal motivação
do surgimento do ACNUDH. O regime internacional dos direitos hu-
manos até o final da Guerra Fria sofria de um condicionamento fru-
to da disputa bipolar. Todos os debates a respeito da efetividade dos
direitos humanos eram condicionados por essa disputa, assim como
pelo argumento da não-interferência das questões internas, apoiado
nas chamadas doutrinas de segurança nacional.
O término da Guerra Fria trouxe a possibilidade de que o
principal fim do regime internacional dos direitos humanos pudes-
se ser abertamente debatido: a efetividade de tais direitos (e não
apenas a eficiência das instituições e agências que o promovem). A
criação do ACNUDH, e a própria realização da Conferência de Viena,
ligam-se a esse fim normativo.
Aquele contexto do imediato pós-Guerra Fria (assim como
posteriormente) assistiu à ascensão não apenas de temáticas sociais
em âmbito internacional (direitos humanos, migrações internacio-
nais, meio-ambiente, etc), mas à ascensão internacional das ONGs
ligadas a tais temáticas. Nesse sentido, nos parece importante não
negligenciar a participação das ONGs, lideradas pela Anistia Inter-
nacional, no processo de aprovação do ACNUDH.
De acordo com Clapham (1994), o anúncio da realização da
Conferência de Viena forçou os envolvidos com direitos humanos a
considerarem as fraquezas daquele sistema de proteção e a proporem
novas ideias. A partir daí, a Anistia Internacional passou a promover
a iniciativa, que se tornou a principal bandeira da organização du-
rante a Conferência. Inicialmente, a ONG se concentrou na reunião
regional preparatória africana para a Conferência de Viena, realizada
em Túnis, em dezembro de 1992. Nesse mesmo mês, a Anistia pu-

at the Conference, not extensively debated openly but kept alive in the corridors and
small group meetings among delegates who were keen not to let the opportunity pass.”
(KANG, 2009, p. 65).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
359
blicou um documento intitulado “World Conference on Human Rights:
facing up to the failures: proposals for improving the protection of human
rights by the United Nations”.
Esse foi um documento preparado pela Anistia no contexto
de preparação da Conferência de Viena, integrando a documenta-
ção de seu processo preparatório e, assim, portanto, circulando en-
tre os atores envolvidos nesse processo preparatório: delegações de
Estados, outras ONGs e a ONU. A ONG ressaltou a necessidade da
ONU criar novos mecanismos de direitos humanos e reforçar aque-
les já existentes a fim de garantir maior efetividade a tais direitos. A
principal proposta desse documento foi a criação de um Comissário
Especial para os Direitos Humanos, que viria a se constituir no AC-
NUDH posteriormente.
Inseridas nessa demanda por efetividade dos direitos huma-
nos, a Anistia colocou uma série de demandas mais específicas. To-
das elas foram mobilizadas pela ONG para justificar a criação do
ACNUDH. Praticamente todas elas foram debatidas em Viena e,
finalmente, foram incorporadas ao mandato e à estrutura institu-
cional do Alto Comissariado244, demonstrando toda a importância
do trabalho das ONGs, lideradas pela Anistia Internacional, para a
criação do posto.
Ao contrário do que advoga atualmente, naquele momento a
Anistia afirmou que o ACNUDH não precisaria de uma grande equipe
de apoio, uma vez que ele implementaria os programas já inseridos em
Genebra. Fica claro como a Anistia queria um cargo de alto prestígio
político e com clara inclinação gerencial e não tanto um novo órgão.
Isso, em certa medida ocorreu, pois o ACNUDH não é exatamente
uma agência da ONU, tanto é que está submetido ao Secretariado245.

244
“It is clear that, in order to address the complexity and range of pressing human rights is-
sues still confronting the international community today, a major new initiative is needed.
Amnesty International is proposing that this need could be met by the establishment of a
UN Special Commissioner for Human Rights.” (ANISTIA INTERNACIONAL, 1992, p. 4).
245
Nos seus primeiros anos de existência, de fato, o ACNUDH possuía uma atuação mais
gerencial, mais voltada à coordenação. Entretanto, com o amadurecimento de sua tra-

360 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Mais uma vez dois pontos ficam claros. O primeiro deles é
que a Anistia (e ao que parece a criação do ACNUDH teve realmente
este enfoque) via o Comissário Especial como um elemento de ra-
cionalização institucional das políticas de direitos humanos da ONU
em prol da efetividade desses direitos, isto é, ele seria o responsável
por coordenar tais políticas desde o mapeamento de problemas e
formulação de políticas, passando pelo acompanhamento e envolvi-
mento na execução até a mensuração e publicização da efetividade e
do impacto de tais políticas.
O segundo elemento sempre presente na argumentação da
ONG, e que claramente a favorece politicamente, é de que o novo
mandatário deveria sempre levar em conta as contribuições das
ONGs na produção de suas análises. Além de cobrar tal considera-
ção, a Anistia afirma que as ONGs deveriam também vir a ser bene-
ficiárias dos programas de assessoria.
A AI também dá grande destaque para a negligência com o di-
reito ao desenvolvimento, apesar da existência da Declaração de 1986,
em que se ressalta a vinculação estreita entre direitos humanos e de-
senvolvimento. Vale lembrar que essa vinculação viria a ser uma das
grandes marcas de Viena (juntamente com a democracia, formatando
o chamado 3D), o que, consequentemente, tornaria o direito ao desen-
volvimento como um dos principais focos de proteção do ACNUDH.
Enfim, o papel da Anistia Internacional e de uma série de
ONGs articuladas ao redor dela foi determinante para a inclusão da
proposta do ACNUDH no documento final de Viena246. Mobilizando o
discurso da necessidade premente de efetividade dos direitos huma-

jetória institucional – algo que foge ao escopo deste artigo – ele deixou de ser simples-
mente uma autoridade independente em relação à estrutura da ONU e passou a ser
um formulador de alto nível de políticas de direitos humanos inserido e integrante da
hierarquia burocrática da ONU (BOVEN, 2002).
246
O relatório do Fórum das ONGs, relatado por Manfred Nowak, de 14 de junho de 1993,
assim recomendou sobre o ACNUDH: “An office of a High Commissioner for Human
Rights should be established as a new high-level independent authority within the Unit-
ed Nations system, with the capacity to act rapidly in emerging situations of human
rights violations and to ensure the coordination of human rights activities within the

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
361
nos (e não apenas um discurso voltado à eficiência institucional), ela
imprimiu muita pressão nas negociações de Viena (BOVEN, 2002).
A proposta também foi – ainda que mais timidamente quan-
do comparada à mobilização da Anistia – incorporada pelas dele-
gações latino-americanas, que realizaram sua reunião preparatória
na Costa Rica. Além disso, a proposta de criação do ACNUDH foi
seriamente discutida pelos governos no encontro inter-regional de
especialistas em direitos humanos, promovido pelo Conselho da Eu-
ropa em Estrasburgo, em janeiro de 1993.
Com toda a pressão, especialmente vinda das ONGs, a Declara-
ção e Programa de Ação de Viena recomendou que a questão da cria-
ção do ACNUDH fosse considerada altamente prioritária na Assem-
bleia Geral posterior, ao final de 1993. De junho a dezembro de 1993,
portanto, abriu-se um novo período para negociações diplomáticas e
pressões políticas. Mais uma vez, a Anistia Internacional, juntamente
com outras ONGs teve papel imprescindível nesse processo247.
Em outubro de 1993, a Anistia, a Human Rights Watch, a In-
ternational Federation for Human Rights, International Human Rights Law
Group, International League for Human Rights e Lawyers Committee for
Human Rights fizeram um pronunciamento conjunto estabelecen-
do quais seriam os desafios com os quais o ACNUDH deveria lidar
(CLARK, 2002).
Nesse mesmo mês, a Anistia elaborou outro documento in-
titulado “United Nations: a High Commissioner for Human Rights: time
for action.”. Esse documento foi uma das maiores expressões do lobby
feito pela ONG em relação à causa do ACNUDH. A grande preocupa-

United Nations system and the integration of human rights into all United Nations pro-
grammes and activities.” (NOWAK, 1994, p. 78).
247
Conforme Clapham (1994), muitas ONGs do mundo todo entraram em ação nesse mo-
mento. A NGO Liaison Committee, formado em Viena, mobilizou redes regionais de
ONG de maneira que elas pudessem debater a questão com seus respectivos governos.
Clapham ainda destaca o esforço que foi feito para que representantes de ONGs de paí-
ses do sul pudessem ir até Nova York e mostrar que a demanda por um Alto Comissário
para os Direitos Humanos não era apenas uma demanda das potências ocidentais.

362 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
ção da AI diante das discussões é que se decidisse criar o cargo sem
assegurar o mandato e autoridade necessária ao posto de maneira
que ele fosse capaz de satisfazer as reais necessidades do sistema de
direitos humanos da ONU.
O que mais chama a atenção no documento é que ele condi-
ciona diretamente a execução e o êxito concreto das recomendações
de Viena à criação do posto de Alto Comissário, ou seja, ele seria
uma espécie de continuador das reflexões de Viena, zelando pela im-
plementação e monitoramento daquelas deliberações materializadas
em seu documento final (ANISTIA INTERNACIONAL, 1993).
Alston (1997) argumenta que a formulação aberta da Reso-
lução 48/141, de criação do ACNUDH, possuía todas as vantagens e
desvantagens de um típico compromisso diplomático multilateral.
Ela teve que responder a cada uma das principais lacunas identi-
ficadas pelos grupos mais importantes, os quais esperavam que a
criação do ACNUDH viesse a solucionar a questão do direito ao de-
senvolvimento, o papel de coordenação do sistema de direitos hu-
manos da ONU, a capacidade de resposta diante das violações e o
fortalecimento do secretariado da ONU.
Mas essa combinação de fatores não criou um todo coerente
e tampouco deixou clara quais seriam a atuação e o papel do ACNU-
DH. Conforme Alston, estas questões tiveram seus esclarecimentos
condicionados à prática, sujeitas à ponderação de pressões competi-
tivas, ao curso dos acontecimentos políticos, à personalidade do Alto
Comissário e às suas relações com seus pares no Secretariado, nos
governos e com seu superior, o Secretário-Geral.
Uma questão da negociação de criação do ACNUDH tornou-
-se muito mais decisiva em 1993 do que nas tentativas anteriores:
a questão de quais direitos o ACNUDH iria promover e proteger. E
sua resolução deixa evidente, inspirada claramente na Declaração e
Programa de Ação de Viena (DPAV), que o ACNUDH deve promover
e proteger todos os direitos humanos. A resolução frisa a univer-
salidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação e

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
363
ressalta a importância da promoção do desenvolvimento sustentável
e da garantia do direito ao desenvolvimento. A inclusão inequívoca
dos direitos econômicos, sociais e culturais e do direito ao desenvol-
vimento na resolução de criação do ACNUDH deve-se, em grande
parte, aos debates da Conferência de Viena trazidos pelos países em
desenvolvimento. Essa inclusão é de suma importância para com-
preender esse processo de criação.
O ACNUDH, cuja sede principal está em Genebra e o Escritó-
rio em Nova York, afora ser um secretariado dos órgãos de fiscaliza-
ção de tratados (Comitês de Tratados), tem como objetivo, segundo
seu mandato, promover e proteger o exercício dos direitos humanos
para todos os indivíduos; exercer um papel ativo na remoção dos
atuais obstáculos à realização dos direitos humanos, impedindo a
continuidade de violações; e coordenar as atividades de promoção e
proteção desses direitos no sistema ONU248.
O ACNUDH, que no organograma institucional da ONU está
na alçada do Secretariado-Geral, é chefiado por um Alto Comissário.
Observe-se que a visão de que o tal cargo deveria ser ocupado por
uma única pessoa e não por um colegiado foi vitoriosa. O primei-
ro Alto-Comissário foi José Ayala-Lasso (1994-1997), seguido por
Mary Robinson (1997-2002), Sérgio Vieira de Mello (2002-2003),
Bertrand Ramcharan (2003-2004), Louise Arbour (2004-2008) e,
desde setembro de 2008, Navanethem Pillay249.
É interessante notar que a criação do cargo não era do agrado
do então Secretário-Geral da ONU, Boutros-Ghali250. Quando a cria-
248
O ACNUDH se compõe de 4 divisões, as quais refletem suas temáticas prioritárias e
seus nichos de atuação: Direito ao Desenvolvimento & Pesquisa; Tratados e Conselho
de Direitos Humanos; Procedimentos Especiais e Operações de Campo. Essa última
comporta onze escritórios nacionais, dez escritórios regionais e dois centros regionais
de direitos humanos.
249
O Alto Comissário para os Direitos Humanos é indicado pelo Secretário Geral da ONU e
aprovado pela Assembleia Geral, levando-se em conta um critério de rotação geográfica.
250
Essa postura reticente de Boutros-Ghali era, de certa forma, contraditória com seu dis-
curso a respeito da necessidade de reforma da ONU, especialmente por conta da ine-
ficiência da organização em responder rapidamente a situações de altas violações de
direitos humanos.

364 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
ção efetivou-se, Boutros-Ghali, segundo Alston (1997), apontou um
diplomata cuidadoso – Ayala Lasso251 – com baixa credencial em ma-
téria de direitos humanos e com um histórico de oposição a qualquer
consideração da matéria pelo Conselho de Segurança.
Durante todas as negociações para a criação do ACNUDH, os
Secretários-Gerais da ONU não se mostraram fortes apoiadores da
proposta. Um dos motivos é que temiam que a ascensão dos direitos
humanos dentro da organização pudesse atrapalhar o cumprimento
de suas tarefas, cujo principal interesse é manter boas relações com
os Estados-membros da organização. O ACNUDH sempre foi visto
por eles como um potencial competidor e causador de embaraços
políticos internacionais.
Como dito na introdução, o foco deste trabalho está no surgi-
mento e não no desenvolvimento da trajetória institucional do AC-
NUDH. O que o mobiliza é investigar o que explica o surgimento do
ACNUDH naquele contexto de imediato pós-Guerra Fria, tendo em
vista as iniciativas anteriores frustradas, e em que medida esse pro-
cesso de institucionalização reflete uma ascensão dos direitos huma-
nos, pensados como normas. Com essa pergunta está se colocando
em discussão as motivações de tal surgimento. Tendo feita nesta e
na seção anterior uma brevíssima exposição da trajetória histórica
das negociações, na seção seguinte analisar-se-á essa trajetória de
criação do ACNUDH à luz dos conceitos trazidos pelo Instituciona-
lismo Histórico.

5 O SURGIMENTO DO ACNUDH E O
INSTITUCIONALISMO HISTÓRICO
O objetivo da presente seção é abordar o processo de criação
do ACNUDH a partir de um enfoque que historicize essa trajetória
que deu origem à instituição da qual nos ocupamos neste artigo. Ao
251
Ayala Lasso, então Representante Permanente do Equador na ONU e ex-Ministro das
Relações Exteriores, foi nomeado Alto Comissário em fevereiro de 1994 e assumiu o
posto em 5 de abril do mesmo ano.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
365
contrário de tentar fazer afirmações categóricas e definitivas des-
se processo a partir dessa abordagem, nos ocuparemos de esboçar
algumas vinculações entre a trajetória de criação do ACNUDH e o
Institucionalismo Histórico que nos parecem frutíferas. Insere-se o
intento no campo da “tentativa” ou do “esboço” pelo fato de ele se
colocar em um “duplo ineditismo”. Primeiro, porque o ACNUDH foi
e é objeto de raros estudos. Segundo, porque o Institucionalismo
Histórico, abordagem bastante disseminada no campo da Ciência
Política, ainda foi pouco utilizado nas RI quando comparado aos
seus congêneres de matriz sociológica e da escolha racional.
A compreensão do processo histórico auxilia a observação
das fronteiras temporais que caracterizam as relações causais. Sabe-
-se, por exemplo, que toda a mobilização pela criação do ACNUDH
no pós-1945 tem influência para o seu surgimento em 1993 e, de cer-
ta forma, constituem relações causais para entendê-lo. Porém, não
se pode alinhá-las como variáveis independentes ou fatores explica-
tivos do que seria a variável dependente (surgimento do ACNUDH),
uma vez que elas são separadas por contextos temporais diferentes
(STEINMO, 2008).
A esse olhar crítico do IH para a ideia de causalidade, se com-
plementa, no presente trabalho, a concepção de causalidade trazida
pelo construtivismo. Nessa abordagem ontológica a causalidade está
muito ligada à ideia de constituição social ou construção social. E
trazer à tona esses processos, tal como brevemente feito nas duas
seções anteriores, não implica em um esforço meramente descritivo,
pois ao compreender como as coisas se constituem está se dando um
passo explicativo importante para entender como elas se comportam
ou ainda de que maneira causam determinados resultados políticos
(WENDT, 1998; BARNETT; FINNEMORE, 1999). Complementando
o comentário feito na introdução, é por ter dentro de si (pelo menos
de algumas de suas versões) algum traço de causalidade, que a abor-
dagem construtivista permite a construção de pesquisas empíricas
voltadas relativamente à problematização de causas, tal como esta
que aqui se apresenta.

366 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Enfim, é imprescindível recorrer à historicidade do proces-
so de surgimento do ACNUDH, uma vez que os eventos políticos
ocorrem em contextos históricos específicos e não isolados. Esses
contextos tem, muitas vezes, conseqüências diretas sobre as deci-
sões e os eventos. As várias postergações da Assembleia Geral para
a criação do ACNUDH refletem um contexto de Guerra Fria, no qual
os direitos humanos se encapsularam em uma disputa ideológica.
Essa disputa refreou o avanço da proteção internacional desses di-
reitos e os situaram muito mais na dimensão promocional do que
de efetividade. Daí por que argumentos a respeito das doutrinas de
segurança nacional e da exclusividade jurisdicional levantadas pelos
Estados aparecerem com tanta recorrência no processo de criação do
ACNUDH. Mesmo a não aprovação do posto durante a Conferência
de Viena também deve ser analisada mediante o contexto de ascen-
são de argumentos “culturalistas”, especialmente vindo dos países
asiáticos, que contestavam a formatação ocidental dos direitos hu-
manos (especialmente a ênfase nos direitos civis e políticos) e ar-
gumentavam em favor de concepções locais de tais direitos (dentro
das quais os direitos econômicos, sociais e culturais e o direito ao
desenvolvimento ganhavam destaque).
Outro ponto ao qual nos remetemos é a importância dada pelo
IH ao processo de aprendizagem dos atores e agentes por força da
experiência. É bastante relevante ter em vista o contexto específico
em que a proposta de criação do ACNUDH voltou à tona no início dos
anos noventa. O fim da Guerra Fria, o “descongelamento” da ONU
e seus projetos de reforma e a ascensão internacional das ONGs não
são apenas cenários de fundo pra criação do ACNUDH, mas elemen-
tos que, quando articulados, tornam-se explicativos dessa ocorrên-
cia. Elementos que não surgem simplesmente. Como visto, as aspi-
rações a um sistema internacional de direitos humanos mais efetivo
já apareciam durante a Guerra Fria, assim como já existiam ONGs,
ainda que em número muito menor.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
367
A ideia de que surgimentos e mudanças institucionais são
de difícil realização também nos parece bastante útil para pensar o
surgimento do ACNUDH. O seu processo de criação esteve repleto
de divergências e reviravoltas que impediram, durante quase cin-
qüenta anos, seu surgimento. Segundo Steinmo, isso pode ocorrer
por alguns motivos. Um deles é o fato de uma instituição, como o
ACNUDH, estar incorporada em um conjunto maior de instituições,
como é a ONU. Sendo assim, era provável e esperado que tensões e
resistências presentes no arcabouço institucional da ONU como um
todo se refletissem nas negociações do ACNUDH e, por isso, dificul-
tassem a ocorrência de mudanças significativas, como é a criação de
uma nova instituição. Isso pôde ser observado desde a resistência
soviética durante a Guerra Fria até as contestações “culturalistas”
dos países do sudeste asiático.
Outro fator que dificulta, segundo Steinmo (2008), surgimen-
tos e mudanças institucionais é o custo da aprendizagem de novas
regras. Atores formam expectativas – instrumentais e normativas
– em torno de um conjunto de regras e instituições. Alterá-las traz
custos, tanto materiais quanto em matéria de novas imprevisibilida-
des. Por isso, os atores tendem a ser resistentes a mudanças. À luz
dessa série de razões também podemos interpretar as resistências ao
surgimento do ACNUDH, já que ele representaria, se criado naquele
contexto, e representou, no momento de seu surgimento, uma alte-
ração no sistema internacional de proteção aos direitos humanos.
Deve-se ressaltar que o Alto Comissariado é o principal responsável
pelos direitos humanos dentro do arcabouço institucional da ONU,
que, por sua vez, tem nos direitos humanos um de seus principais
pilares.
A ideia de trajetória dependente, de acordo com Thelen
(1999), inclui duas dimensões de análise: uma referente a momen-
tos fundantes e a outra ao desenvolvimento das instituições con-
dicionados às suas trajetórias passadas. A ênfase aqui é dada, em
um primeiro momento, ao primeiro aspecto, já que o segundo seria

368 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
de maior valia se o objetivo do estudo fosse investigar a trajetória
institucional do ACNUDH. Por isso, faz-se bastante pertinente res-
saltar a influência da Conferência de Viena ter ocorrido naquele de-
terminado período para o surgimento do ACNUDH (a preparação da
Conferência se iniciou em 1990 e sua realização se deu em junho de
1993)252.
A Conferência de Viena tornou-se um fórum aberto e plural
sobre direitos humanos, quando comparada a outros eventos inter-
nacionais anteriores. Assim, foi decisiva, e, portanto, um momento
crítico, para a viabilização do ressurgimento e da aprovação da cria-
ção do ACNUDH253. Voltaremos a essa questão mais a frente.
Apesar de o objetivo se restringir ao surgimento do ACNUDH,
pode-se considerar também o segundo aspecto analítico da trajetó-
ria dependente, ou seja, todo o processo que antecedeu sua criação
como conformadora de algum tipo de trajetória dependente. Pre-
tende-se, com tal consideração, apenas apontar alguns elementos e
escolhas presentes nas longas negociações do ACNUDH que vieram
a influenciar a formatação dessa instituição.
A elaboração do mandato do ACNUDH diante de tantas di-
vergências e de uma diversidade de opiniões acabou gerando esco-
lhas que viriam a conformar a condução de seus trabalhos, especial-
mente em sua primeira gestão. Como visto, o mandato do ACNUDH

252
Ao refletir sobre os momentos críticos, Pierson afirma: “The necessary conditions for
current outcomes occurred in the past. The crucial object of study becomes the critical
juncture or triggering events, which set development along a particular path, and the
mechanisms of reproduction of the current path – which at first glance might seem
commonplace or at least analytically uninteresting.” (PIERSON, 2000, p. 263).
253
Segundo Boven, “As it appeared, in Vienna the ground was prepared for the General
Assembly to establish the post of a High Commissioner for Human Rights. However,
the terms of the relevant paragraph in the Vienna final document were cautious: [...]
begin, as a matter of priority, consideration of the question of the establishment etc.”
Moreover, history had proven that the concept of a High Commissioner was fraught
with many sensitivities and complexities. It was therefore a small miracle or a large
success that the General Assembly at its 48th session on 20 December 1993 adopted
resolution 48/141 in which it decided to create the post of the High Commissioner for
Human Rights and thus fulfilled a wish cherished for a long time by many human rights
activists and defenders.” (BOVEN, 2002, p. 12-13).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
369
tornou-se sintomático da negociação multilateral que o caracterizou:
vago e abrangente. Isso não esclareceu qual seria o tipo de atuação
e o papel a ser exercido por seu staff. Essa ausência de especificação
também justifica sua análise a partir da abordagem do IH, uma vez
que diante da imprecisão advinda do compromisso multilateral do
qual decorreu, o ACNUDH vem conformando em grande medida sua
atuação a partir de suas atividades práticas.
Voltando à questão do mandato em si, algo em disputa desde
as primeiras negociações de criação do ACNUDH, seu caráter vago
teria assegurado, por exemplo, que nenhuma responsabilidade de
averiguação de fatos fosse conferida ao mandatário, que o papel de
coordenação se mantivesse limitado e impreciso, que a missão de
responder às violações fosse apenas uma parte do amplo mandato e
que as questões de staff e financiamento não fossem abordadas.
A esse caráter vago, que também auxilia a compreender por-
que o ACNUDH conseguiu ser criado em 1993 mesmo diante de vá-
rias resistências, se junta o caráter abrangente de seu mandato. Essa
característica, por sua vez, resultou em igual atenção aos conjuntos
de direitos – econômicos, sociais e culturais, e civis e políticos – e
ao direito ao desenvolvimento. A abrangência do mandato também
teria permitido enfatizar o papel do ACNUDH em atividades de edu-
cação em direitos humanos, programas de informação pública e as-
sistência técnica.
Voltando ao primeiro aspecto analítico da formação da traje-
tória dependente, qual seja, os momentos críticos, voltamos à Con-
ferência de Viena. Após observar toda a trajetória das negociações
do ACNUDH, a Conferência de Viena parece realmente se apresen-
tar como um momento fundante do surgimento da instituição, na
medida em que ela expressa as conseqüências específicas do fim da
Guerra Fria para os direitos humanos (REIS, 2006). Como já obser-
vado, a Conferência pautou-se pela preocupação com a efetividade.
Isso em si já se configurou em um forte estímulo por reformas ins-
titucionais do sistema de proteção de direitos humanos da ONU. E

370 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
foi a partir disso que a Anistia Internacional se aproveitou do con-
texto para recuperar a proposta de criação do ACNUDH. Mas apenas
apontar a preocupação com a efetividade não seria suficiente para
explicar o surgimento do ACNUDH e tampouco para configurar a
Conferência como momento fundante do ACNUDH.
A caracterização da Conferência de Viena como um momento
crítico depende de que se interprete os dissensos nela ocorridos não
apenas como discordâncias instrumentais, mas a partir da percep-
ção dos direitos humanos como uma linguagem. Na Conferência de
Viena, as delegações periféricas se valeram do espaço para recolocar
a discussão sobre os princípios basilares dos direitos humanos de
modo a se valer da legitimidade da linguagem dos direitos humanos
para contestar as assimetrias do sistema internacional de proteção
aos direitos humanos e do próprio sistema internacional como um
todo.
Foi a partir desta lógica que as delegações dos países perifé-
ricos conseguiram associar o debate sobre indivisibilidade e inter-
dependência com a importância dos direitos econômicos, sociais e
culturais e do direito ao desenvolvimento. Observe-se que a grande
peculiaridade da proposta de criação do ACNUDH de 1993 foi jus-
tamente a inclusão dos direitos econômicos, sociais e culturais e do
direito ao desenvolvimento no mandato da instituição.
Começa a fazer mais sentido a abrangência do mandato do
ACNUDH. Essa abrangência, recorrentemente criticada pela litera-
tura, decorre não apenas das características das fórmulas das nego-
ciações multilaterais, mas justamente do fato de a Conferência de
Viena ter alargado e expandido a concepção contemporânea dos di-
reitos humanos, que passou a incluir não apenas os chamados direi-
tos de segunda geração, mas também o direito ao desenvolvimento
e os direitos de titularidade coletiva e difusa. O alargamento dessa
concepção fomentou reformas institucionais do sistema de direitos
humanos da ONU, no qual se inclui o surgimento do ACNUDH, cuja
missão passou a ser zelar por essa concepção alargada. Portanto, a

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
371
abrangência do mandato do ACNUDH é fruto de negociações po-
líticas estratégicas, mas também da exigência de legitimidade im-
posta pela própria estrutura normativa dos direitos humanos (KRA-
TOCHWIL, 1989) e da qual várias ONGs articuladas em rede foram
ávidas defensoras254.
Mais uma vez em complemento ao IH, o construtivismo pa-
rece trazer um interessante olhar para a questão não apenas por con-
siderar de maneira sofisticada os componentes normativos da nego-
ciação, mas também por elucidar que o apelo normativo das normas
de direitos humanos foi importante na negociação do ACNUDH, na
medida em que tal concepção alargada, citada acima, foi importante
justamente porque ela funcionou como uma estrutura comum de signi-
ficados, elemento essencial para a construção de consensos a respeito
de acordos e soluções coletivas (KRATOCHWIL, 1989).
Se, como afirma Pierson (2000), o desenvolvimento político
das instituições é pontuado por momentos críticos (critical junctu-
res) que modelam os contornos básicos da trajetória institucional,
diante de todos esses pontos de inflexão, pode-se argumentar que a
Conferência de Viena é um momento crítico para o surgimento do
ACNUDH, inclusive por que criou condições políticas e normativas
para a forja dessa estrutura comum de significados. Isso pode ser
defendido na medida em que ela vinculou (e proporcionou enquan-
to fórum, aberto praticamente de forma inédita para ONGs) a preo-
cupação com a efetividade, fomentando propostas de reforma, ao
esforço de ascensão dos direitos humanos como pauta global e como
elemento de legitimidade internacional – elementos que sustenta-
ram a legitimidade da proposta de criação do ACNUDH.
254
A partir do olhar construtivista sobre as normas, os direitos humanos parecem se cons-
tituir como normas de grande exigência normativa, pois, além de serem dotados em
si mesmos de alto grau de legitimidade internacional, essa legitimidade de alta inten-
sidade permite que quase nenhuma razão para descumpri-los goze de legitimidade:
“In order to arrive at decisions which are not only based on idiosyncratic grounds but
which command assent, such pleas will have to satisfy some formal criteria and certain
substantive norms which are widely held in the society. The formal criteria in such a
discourse on grievances and obligations largely concern conditions of equality in the
claiming process, as well as the acceptance of the no-harm principle as a baseline from
which we argue.” (KRATOCHWIL, 1989, p. 9-10).

372 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Por último, é importante ressaltar a concepção que o IH tem
de “ideias”. Como já dito, as ideias no IH não são importantes em
abstrato, ou seja, não importa tanto se são preferências individuais
ou consciência acerca das regras, mas na medida em que são for-
ças mobilizadoras de ação coletiva de grupos desejosos de criarem
ou alterarem as instituições255. Este nos parece ter sido o caso da
mobilização das ONGs em Viena e pós-Viena, lideradas pela Anistia
Internacional.
A Anistia Internacional apoiou seus posicionamentos pró-cria-
ção do ACNUDH na dimensão da efetivação dos direitos humanos.
Isso não significa, é claro, que a Anistia não tenha ressaltado, inclusi-
ve em seus documentos, aqui analisados, a importância da eficiência
procedimental. Entretanto, isso vinha sendo o mote desde as primei-
ras tentativas de criação do ACNUDH, e não surtiu o efeito espera-
do. O que explica a força da mobilização das ONGs, em especial da
Anistia, não foi sua ênfase na necessidade de melhorias nos aspectos
meramente procedimentais e institucionais do sistema de direitos hu-
manos da ONU. O que explica tal força é a legitimidade trazida pela
mobilização do discurso normativo da efetividade (e não da eficiên-
cia), predominante no contexto internacional daquele período.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo se colocou dois objetivos articulados. O primeiro
deles era explorar o surgimento do ACNUDH, instituição que, apesar
de sua importância dentro da estrutura da ONU e de estar vinculada
a uma temática-sustentáculo dessa organização, é pouco conhecida

255
Uma das agendas das pesquisas construtivistas é mostrar a força causal independente
das normas e das ideias diante dos interesses de atores poderosos. Segundo Keck e
Sikkink (1998), as normas de direitos humanos, definidas por elas como a preferência
do fraco, tem mostrado momentos de triunfo sobre atores fortes e Estados poderosos.
Nesse sentido, é interessante notar a importância da participação da Anistia Interna-
cional no processo, assim como evidenciar que a criação do ACNUDH só se efetivou
quando atores menos poderosos do sistema conseguiram colocar suas demandas no
mandato da instituição.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
373
e pesquisada. Tentou-se colocar em discussão a ideia de que o sur-
gimento do ACNUDH tem suas motivações mais ligadas ao projeto
da efetividade dos direitos humanos do que simplesmente à meta
de trazer mais eficiência procedimental ao regime internacional de
direitos humanos.
Como visto ao longo do trabalho, a dimensão da efetividade
foi eclipsada durante a Guerra Fria. Foi o fim do conflito bipolar que
possibilitou maior visibilidade ao tema. Essa maior visibilidade veio
diretamente acompanhada pelos projetos de efetividade dos direi-
tos humanos capitaneados especialmente pelas ONGs. Foram esses
projetos os grandes mobilizadores da Conferência de Viena, a partir
da qual a discussão acerca da criação do ACNUDH voltou à agenda
internacional.
É importante observar que, como nos lembra Weber, o Es-
tado se define por seus meios, isto é, a força ou a possibilidade de
usá-la legitimamente. As temáticas sociais que ascendem interna-
cionalmente com o fim da Guerra Fria, como direitos humanos e
meio-ambiente, por exemplo, tem em seus fins (efetividade dos di-
reitos humanos e a preservação ambiental), e não em seus meios
seu potencial normativo e mobilizador de lutas políticas. As ONGs e
os movimentos sociais, por mais que tenham grandes preocupações
com os meios mobilizadores de suas lutas, tem nos fins suas carac-
terísticas definidoras. É justamente por força dessa compatibilidade
de temáticas e atores que se definem pelos fins, e não pelos meios,
que se argumentou ao longo do texto que a explicação acerca do
surgimento do ACNUDH deve ser buscada no projeto de efetividade
dos direitos humanos, e não simplesmente no anseio por maior efi-
ciência procedimental das instituições do regime internacional dos
direitos humanos. Isso significa explicar o surgimento do ACNUDH
não meramente por suas funções, mas pelas ideias que legitimaram
as lutas políticas que levaram a sua criação.
O segundo objetivo decorre da opção teórico-metodológica do
presente trabalho, que foi justamente tentar analisar o surgimento

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Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
da referida instituição a partir da abordagem histórico-institucional
e de um olhar ontológico construtivista. O fato de o IH trabalhar
a partir de uma metodologia indutiva – que, em vez de impor um
modelo ou uma metodologia ao objeto, faz as conexões e estabelece
nexos causais a partir da historicidade do processo analisado – casa-
-se muito bem com o fato de o ACNUDH ser objeto de raros estudos
no campo das RI.
Finalmente, a abordagem histórico-institucional, aqui em-
pregada para discutir o surgimento do ACNUDH, também abre pos-
sibilidades para a continuidade deste estudo na medida em que ela
permite direcionar o olhar da análise para o desenvolvimento da tra-
jetória institucional do ACNUDH e os eventuais momentos de mu-
dança e continuidade dessa instituição. Nesse sentido, o conceito de
retornos crescentes (PIERSON, 2000; THELEN, 1999) e a ideia de refor-
mas graduais (RUGGIE, 2004), ambos característicos do IH, podem
ser, tal como os outros mobilizados até agora, de grande valia para
essa agenda de pesquisa.

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
377
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS SOBRE A
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS E SUAS DECISÕES
Natasha Karenina de Sousa Rego
Mestranda em Direito e Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação
da Universidade Federal de Santa Catarina, membro do Observatório de Direitos
Humanos. (nkarenina@gmail.com)

Resumo:
A proteção dos Direitos Humanos, na América Latina, se relaciona ao aprimoramento das
instituições democráticas e a construção recente e diuturna da Organização dos Estados
Americanos e do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos no pós-Segunda
Guerra. O presente estudo busca retratar o comportamento e a evolução destes instrumen-
tos com foco na Corte Interamericana de Direitos Humanos. As sentenças emanadas pela
Corte são importantes meios de consolidação do Pacto de San José da Costa Rica, da proteção
dos direitos do homem e de reparação de violações a indivíduos. A demanda do cumprimento
envolve embates não apenas atinentes ao Direito Internacional como também de Relações
Internacionais e confronta pilares do Estado Moderno.

Palavras-chave: Direitos Humanos – Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos


Humanos – Corte Interamericana de Direitos Humanos – Cumprimento – Sentença.

Sumário:
1. Introdução. 2. A OEA e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. 3. A
Corte Interamericana de Direitos Humanos. 4. As decisões da Corte IDH. 5. A supervisão e o
cumprimento das decisões. 6. Teorias do Direito Internacional e das Relações Internacionais e
as sentenças da Corte IDH. 7. As sentenças da Corte IDH e o Brasil. 8. Conclusão. 9. Referências.

1 INTRODUÇÃO
Apesar da problemática dos direitos humanos ser antiga, o
Direito Internacional dos Direitos Humanos se consolidou em tempo
relativamente recente, que data do pós-Segunda Guerra Mundial.
A produção teórica, legal e judicial, assim como a discussão prin-

378 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
cipiólogica, assegurariam o total respeito pelos direitos humanos e
pela dignidade da pessoa humana se fosse cumprida integralmente.
Contudo, os eventos cotidianos no âmbito doméstico e no interna-
cional nos levam a elucubrar sobre o aparente paradoxo que há entre
a proliferação de tratados internacionais e as constantes e massivas
violações de Direitos Humanos.
As violações de Direitos Humanos em âmbito doméstico e
internacional têm sido alvo de maior preocupação na segunda me-
tade do século XX e passaram a integrar as agendas internacionais
de todos os países. O boom de tratados internacionais e de outros
documentos aptos a proteger conjuntos de direitos atesta essa rea-
lidade.
O surgimento das Nações Unidas é o marco, no Direito In-
ternacional, para a mudança na forma de regulação dos Estados. O
empenho dos países vencedores da Segunda Guerra foi fundamental
para a criação e consolidação da ONU, vista como apta a garantir
uma paz estável e duradoura e evitar o surgimento de novas guerras.
Ao mesmo tempo que o modelo prescrito pela Carta prenuncia a hu-
manização e diversos princípios pacifistas, percebe-se que a arquite-
tura da ONU foi projetada para acomodar as estruturas de poder da
época. A estrutura monolítica do Conselho de Segurança e a extrema
concentração de poder evidenciam esta realidade.
A preocupação dos que defendem a universalização da prote-
ção dos Direitos Humanos se expressa no fato de as violações serem
cometidas em geral pelos Estados. A mudança no próprio tratar dos
Direitos Humanos enseja a subordinação do direito estatal e a redis-
cussão do conceito de soberania. Os pilares do Estado Moderno são
colocados em check.
Consequência desse processo é a mudança paradigmática no
que tange a própria proteção dos Direitos Humanos. O sistema glo-
bal da ONU não é mais o único: Europa, África e América também

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
379
têm consolidados sistemas regionais de proteção dos direitos hu-
manos aptos a lidar de forma mais incisiva com demandas locais e
específicas.
No que tange a América, continente de culturas democráti-
cas recentes e proteções e violações de direitos humanos díspares,
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (a Comissão ou
CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (a Corte, ou
Corte IDH) têm contribuído positivamente para moldar a conduta
dos Estados com base no sistema de petições previsto na Convenção
Americana de Direitos Humanos.

2 A OEA E O SISTEMA INTERAMERICANO DE


PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
No pós-1948, a proteção dos Direitos Humanos passou a fi-
gurar nas falas, discursos e ações como tema prioritário. A Carta da
Organização dos Estados Americanos, filha deste contexto, foi ado-
tada em 1948 e criou a Organização dos Estados Americanos. Con-
ferências anteriores no âmbito dos estados americanos ocorreram
desde 1889, contudo a necessidade de se consolidar esta organização
internacional de caráter regional foi apressada pelo fim da Segunda
Guerra Mundial.
A 9ª Conferência Internacional americana, reunida em Bo-
gotá em 1948, deu estatuto internacional à organização america-
na por meio da Carta em 30 de abril de 1948 nomeando-a OEA e
declarando-a “organismo regional das Nações Unidas” (ACCIOLY,
2009, p. 438)
Os capítulos I e II da Carta dispõem sobre os propósitos e os
princípios da Organização. Sua principal finalidade é garantir a paz
e a segurança do continente seja assegurando a solução pacífica das
controvérsias, organizando ações solidárias das repúblicas em caso
de agressão e promovendo o desenvolvimento econômico, social e
cultural.

380 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Não é nenhuma coincidência que a Carta da OEA tenha sido
assinada juntamente com a Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem sete meses após a Declaração Universal dos Di-
reitos Humanos. Os trabalhos preparatórios deste documento ins-
piraram aquele, que trouxe não apenas os direitos como também os
deveres do homem.
O artigo 112 da Carta da OEA prevê a Comissão IDH que
tem por função principal promover o respeito e a defesa dos di-
reitos humanos e servir como órgão consultino da OEA no tema.
Contudo, apenas 21 anos depois da aprovação da Carta, a necessi-
dade de transferir o dever de proteção a um sistema supranacional
levou países-americanos a fortalecerem as bases e as articulações
em prol deste intento. A Convenção Americana sobre Proteção dos
Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica (Convenção
ou Pacto) surge como fruto desse momento: foi aprovada na Costa
Rica em 22 de novembro de 1969 para complementar o dispositivo
da Carta.
Apesar da guerra do Vietnã e dos regimes ditatoriais na Amé-
rica Latina, a Convenção se reuniu na Costa Rita em 1969. Diversas
delegações preocupavam-se com os possíveis conflitos entre os dis-
positivos constitucionais e os artigos da Convenção. Já a delegação
estadunidense temia a dificuldade de harmonização dos princípios
do common law com os de direito romano. Apesar das preocupações,
a Convenção foi assinada e aceitou a ideia de se criar a Corte Inte-
ramericana de Direitos Humanos (Corte ou Corte IDH). Importan-
te notar que o Estado-membro da Convenção não aceita automa-
ticamente a jurisdição da Corte. Deve manifestá-la expressamente
(ACCIOLY, 2009, p. 441).
Guardadas as semelhanças e diferenças entre as Declarações
e Sistemas Protetivos, ainda é possível se estabelecer uma compara-
ção entre a realidade americana e a europeia. O Sistema americano,
diferente do europeu, em virtude dos condições culturais, históricas,
sociais e econômicas de seus habitantes, foca nos problemas gerados

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
381
em virtude desta realidade específica e prioriza a melhoria das con-
dições de vida de seus habitantes.
O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Huma-
nos (Sistema ou SIDH) possui dois instrumentos de controle: a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, responsável por
averiguar denúncias e encaminhar pareceres ao segundo órgão, a
Corte Interamericana de Direitos Humanos, que deve proceder à
investigação dos fatos e posteriormente julgá-los. Se no plano teó-
rico e jurídico estes instrumentos parecem dar conta das deman-
das locais, no plano prático percebe-se um desconhecimento da
população destas formas de defesa e uma estrutura que ainda não
dá conta da demanda, o que dificulta a luta contra violações aos
direitos humanos nos países do continente americano. A situação
controvertida da aplicação do Direito Internacional face às normas
de direito interno e do cumprimento das sentenças emanadas pela
Corte acentuam o problema. Ainda que um caso de desrespeito
aos direitos humanos seja levado a Comissão e chegue a Corte, sua
decisão pode não ser cumprida pelo Estado ao alegar que o julga-
do configuraria um desrespeito à concepção moderna de soberania
nacional.
Acompanhando as modificações pelas quais passa a nossa so-
ciedade, a OEA tem procurado adotar uma postura mais contunden-
te em relação ao Estados signatários e seus deveres. No entanto, ain-
da há uma discrepância entre os tratados internacionais, as decisões
do SIDH e a atuação dos Estados. Assim, qual o valor normativo da
Convenção? Como o SIDH dialoga com os ordenamentos jurídicos
pátrios?
O processo de redemocratização dos países latino-america-
nos traz consigo uma nova postura dos países em relação aos Direi-
tos Humanos. Se antes internacionalmente se tinha uma postura
absenteísta e internamente de patente desrespeito aos Direitos Hu-
manos, com a redemocratização não apenas o Poder Executivo passa
a se pautar por princípios democráticos como também os demais

382 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Poderes e instituições, ao menos no plano teórico. Curioso notar que
a Convenção, uma das cartas mais importantes no continente sobre
Direitos Humanos, apesar de ter sido adotada em 1969 só foi ratifi-
cada pela Argentina em 1984, pelo Uruguai em 1985, pelo Paraguai
em 1989 e pelo Brasil em 1992. O reconhecimento jurídico da ju-
risdição da Corte também demorou e no Brasil só se deu em 1998.
Apesar de os países latino-americanos apresentarem uma infinidade
de ordenamentos jurídicos com diferentes níveis democráticos, per-
cebe-se a tendência do cuidado e da proteção em matéria de Direitos
Humanos.
No que tange ao nível hierárquico dos tratados sobre Direitos
Humanos no ordenamento jurídico interno, os países latino-ameri-
canos apresentam tratamentos diversos, que vão desde o tratamento
como lei ordinária à recepção enquanto nível constitucional. No Uru-
guai, a Constituição de 1967 dispõe que a competência de concluir e
celebrar tratados é do Presidente da República e que cabe ao Poder
Legislativo analisá-los, aprová-los ou não. A Constituição prevê ain-
da que a existência de direitos e garantias no seio institucional não
exclui outros inerentes a pessoa humana e não prevê tratamento
especial para os tratados de direitos humanos que são internalizados
com o mesmo nível da legislação infraconstitucional.
A Constituição paraguaia de 1992 demonstra grande preocu-
pação com os direitos fundamentais e aduz que os tratados se en-
contram hierarquicamente superiores às leis emanadas pelo Con-
gresso mas abaixo da Constituição. A Constituição argentina de
1983 – reformada em 1994 – prevê que os tratados que não versem
sobre direitos humanos têm status hierarquico superior ao das leis
ordinárias enquanto os que tratam de direitos humanos não têm.
Na Colômbia, a Constituição – reformada de 2005 – determina que
os tratados que vesam sobre Direitos Humanos aprovados pelo Con-
gresso prevalecem sobre a ordem jurídica interna.
As constituições latino-americanas têm conferido destaque
aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos dife-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
383
renciando-os em hierarquia dos tratados tradicionais. Esta atitude é
louvável porque demonstra a abertura dos ordenamentos jurídicos
nacionais aos Direitos Humanos não apenas em discursos mas tam-
bém em leis e em práticas. A Convenção foi adotada por 25 países
que assim se comprometeram a zelar no continente americano pela
proteção aos Direitos Humanos.

3 A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS


HUMANOS
No SIDH, à Corte coube o papel de solucionar as questões
atinentes à proteção dos direitos humanos. Como órgão de cúpu-
la, a Corte é responsável por sua própria competência. Seu espaço
de atuação é bastante amplo o que permite que conheça questões
pendentes no âmbito local ou que deveriam ter sido investigadas
mas não o foram. Em última instância, cabe a Corte fixar o momento
em que houve ou não o esgotamento de recursos internos.
Ainda se tem uma compressão equivocada sobre o papel de
uma Corte Internacional e sua relação com a soberania de um Esta-
do. A condenação de um Estado perante a Corte IDH se faz em favor
dos indivíduos e em prol da defesa dos direitos humanos que repre-
sentam valores superiores em tese comungados pelo Estado.
A Corte é o segundo órgão da Convenção e não da OEA. Sua
criação decorre do artigo 33 que dispõe que “são competentes para
conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos com-
primissos pelos Estados-parte nesta Convenção: […] a Corte Intera-
mericana de Direitos Humanos”. Sobre sua composição, aduz André
de Carvalho Ramos (RAMOS, 2012, p. 222):

A Corte IDH é composta por sete juízes, cuja escolha é feita


pelos Estados-partes da Convenção, em sessão da Assem-
bleia Geral da OEA, de uma lista de candidatos propostos
pelos mesmos Estados. Cada Estado-parte pode propor até 3
candidatos (pode propor apenas um nome), desde que sejam

384 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
eles nacionais do Estado que os propõe ou mesmo de qual-
quer outro Estado-membro da OEA. Caso o Estado proponha
três nomes, pelo menos um dos candidatos deve ser nacional
de um Estado diferente do proponente. Os juízes da Corte
serão eleitos para um mandato de seis anos e só poderão ser
reeleitos uma vez.

Sua competência se concentra em conhecer casos contencio-


sos quando o Estado demandado tenha formulado declaração uni-
lateral em que aceita a sua jurisdição de acordo com o art. 62 da
Convenção que dispõe sobre o dever de o Estado-parte expressar o
seu reconhecimento sobre a jurisdição obrigatória da Corte. Assim,
os casos julgados dizem respeito das violações sofridas em face do
Pacto de San José da Costa Rica. 21 Estados e aproximadamente 550
milhões de pessoas estão sob a jurisdição da Corte.
No que tange a legitiminidade, no polo passivo sempre figura
o Estado, já que a Corte não é um Tribunal que julga pessoas. Sobre o
polo ativo, o art. 61 da Convenção dispõe que somente Estados-parte
e a Comissão podem processar Estatos perante a Corte Interamerica-
na, o que deixa os indivíduos refens da provocação de outro Estado
ou da Comissão para que suas demandas cheguem à Corte. André
de Carvalho Ramos (RAMOS, 2012, p. 225) dispõe, citando Cançado
Trindade, que:

Essa restrição ao direito de ação internacional da vitima (já


questionado perante a Corte EDH, como vimos) é criticada
pela doutrina especializada. CANÇADO TRINDADE é um
dos maiores defensores da reforma da Convenção America-
na, no sentido de dotar a vítima do direito de ação. Enten-
de o citado professor, que a Comissão é parte apenas proces-
sual no feito perante a Corte. A verdadeira parte material é
aquela que é titular do direito pretensamente violado. As-
sim, inexplicável, para o citado autor, que a atual situação
perdure.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
385
Em 2001, atento a este reclamo, o regulamento da Corte per-
mitiu “a participação da vítima e de seus representates em todas as
faces do processo judicial, com direito a se manifestar com igualdade
de condições com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e
o Estado-réu, tal qual um assistente litisconsorcial do Autor” (RAMOS,
2012, p. 225). Posteriormente em 2009, o regulamento da Corte foi
alterado e permitiu que as vítimas ou seus representantes sejam in-
timados a apresentar petição inicial do processo internacional. Estes
foram avanços substanciais rumo à igualdade de tratamento entre a
vítima e o Estado no foro interamericano.

4 AS DECISÕES DA CORTE IDH


As medidas provisórias, solicitadas pela Comissão, ou por al-
gum Estado que reconheça a jurisdição da Corte são uma forma de
resolução. Indicam que um Estado submetido à jurisdição está des-
respeitando os Direitos Humanos. Seu uso se autoriza em caso de
gravidade e urgência para evitar danos irreparáveis ou conter danos
já causados conforme os artigo 63.2 da Convenção, 25 do Regula-
mento da Corte e 74 do Regulamento da Comissão.
As decisões da Corte, no geral, fixam obrigações de indeni-
zar, obrigações cível-administrativas, obrigações relativas à liberda-
de pessoal e obrigações de adequação legislativa. O objeto de uma
sentença da Corte é extremamente amplo no âmbito de uma ação
de responsabilidade internacional do Estado: “é assegurado à víti-
ma o gozo do direito ou liberdade violados e ainda são reparadas as
consequências da medida ou situação que haja configurado violação
desses direitos” (RAMOS, 2012, p. 235).
A condenação do Estado enseja a fixação da medida de re-
paração e o supervisionamento pela Corte de sua decisão. A origem
desse procedimento são as medidas cautelares já que era necessário
verificar a atuação do Estado para atestar a aderência das medidas
no caso concreto.

386 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A responsabilização dos agentes violadores apresenta pecu-
liaridades no SIDH. A produção de efeitos das decisões exaradas
pela Corte não é imediata: demanda muitas vezes interpretação e
integração de normas jurídicas. A necessidade de se harmonizar o
ordenamento jurídico interno com o internacional no que tange a
proteção dos Direitos Humanos é colocada também como um desa-
fio para a proteção de forma integral.
A execução das sentenças no plano nacional pode ocorrer de
forma espontânea pelo Estado ou forçada por meio do Poder Exe-
cutivo. No caso brasileiro, a implementação das sentenças da Corte
IDH é tão obrigatória quanto as emanadas pelo Poder Judiciário na-
cional. A obrigatoriedade decorre da ratificação da Convenção Ame-
ricana e do reconhecimento da competência contenciosa da Corte
pelo Estado brasileiro. Não se pode alegar a impossibilidade jurídica
para o descumprimento das sentenças por suposta afronta a legisla-
ção interna.
Como a Corte IDH não tem o caráter penal, suas sentenças
não substituem as medidas penais cabíveis no âmbito dos Estados.
Com base na Convenção Americana, a Corte julga a responsabilida-
de dos Estados pelas violações a Direitos Humanos. Uma vez res-
ponsabilizado, o Estado tem obrigação de cessar a violação e inde-
nizar a vítima. As medidas cabíveis devem ser tomadas para que
as sentenças sejam concretizadas sob pena de ser responsabilizado
novamente.
Este tipo de sentença não é considerada estrangeira e sim
internacional. Não cabe a prévia homologação pelos Tribunais in-
ternos dos Estados-parte. A sentençaadvém da jurisdição da Corte
IDH que os Estados reconhecem ou não livremente.Convém lem-
brar que no plano contencioso a Corte profere sentenças inape-
láveis de acordo com o Pacto de San José da Costa Rita. Uma vez
reconhecida a competência da Corte, as sentenças são obrigatórias
para os Estados. A reparação do dano reconhecido pela Corte deve
ser imediata.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
387
Um dos princípios fundamentais do Direito Internacional é
o pacta sunt servanda. O Estado deve obedecer o que é prescrito nos
pactos em que ele seja parte exatamente porque o pactou de forma
livre e o que foi pactuado deve ser cumprido com base na boa fé. De
acordo com os incisos 1º e 2º do artigo 68 da Convenção Americana,
os Estados-membro se comprometem a cumprir integralmente as
decisões exaradas pela Corte.
O princípio pacta sunt servanda e a irrecorribilidade das de-
cisões por si só não autorizam a supervisão da Corte. A obrigato-
riedade das condenações respaldadas em normas internacionais,
primeiramente, baseia-se no dever de honrar os pactos celebrados.
Devemos considerar ainda a impossibilidade de se alterar uma deci-
são. Por enquanto a supervisão é o meio mais eficaz para verificar o
cumprimento integral da condenação. (PADUA, 2006, p.182)
Por ter aceito fazer parte do Sistema, os Estados devem cum-
prir as determinações das condenações impostas pela Corte mesmo
que não haja nos ordenamentos internos normas que estabeleçam
as especificidades e pormenores do cumprimento. Para que a falta
da legislação interna não venha a ser um impecílio, os legisladores
domésticos devem estar atentos aos acordos internacionais firmados
para que haja consonância entre os ordenamentos e normas inter-
nas aptas a garantir a efetivação das internacionais.
A supremacia da ordem interna sobre a internacional e a so-
berania estatal frente as decisões internacionais são problemáticas
que não podem ser esquecidas. A fragilidade dos meios coercitivos
do SIDH também deve ser notada.

5 A SUPERVISÃO E O CUMPRIMENTO DAS


DECISÕES
A supervisão do cumprimento das decisões é um procedimen-
to recente da Corte que visa sanar as fragilidades dos meios coerciti-
vos do SIDH. O caso Baena Ricardo e Outros contra o Panamá trouxe

388 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
consigo o questionamento sobre a competência da Corte para a su-
pervisão do cumprimento das sentenças referentes ao Estado do Pa-
namá. Em 28 de novembro de 2003, a própria Corte Interamericana
decidiu com base em sua jurisprudência e no Direito Internacional
que a Corte é competente para supervisionar suas decisões e pode
solicitar aos Estados informações pertinentes. Cada nova decisão da
Corte enseja uma nova responsabilização dos Estados e com ela a
supervisão do cumprimento da decisão.
Este procedimento não tem forma definida. Pode ser feita
pela própria Corte ou por ela coordenada com a presença do país
condenado ou da Comissão. A vítima ou seu representante legal
também participam do processo. Em geral, se busca a verificação do
cumprimento das determinações das sentenças e dos compromissos
assumidos pelos Estados no âmbito dos direitos humanos, especifi-
camente da Convenção.
A Corte tem o dever de informar a Assembleia Geral da OEA
em cada período ordinário de sessões um informe de suas atividades
no ano anterior no que tange o cumprimento de suas sentenças e a
possibilidade de submeter propostas ou recomendações sobre o me-
lhoramento do sistema interamericano no que diz respeito ao traba-
lho da Corte. O artigo 65 da Convenção em si autoriza o acompanha-
mento da conduta dos Estados em relação as obrigações advindas
de sentenças. Esta postura não exorbita os poderes da Corte e sim os
integra; é coerente com seus propósitos de defesa dos direitos huma-
nos e contribui para que o sistema alcance bons resultados.
Após aproximadamente um ano da sentença, a supervisão
culmina em uma resolução de cumprimento, geralmente emana-
da em novembro, pouco antes da Corte encerrar suas atividades.
A resolução informa o que foi e o que não foi implementado pelo
Estado. As consequências da não-implementação são decisões com
conteúdos diversos. A Corte pode reiterar a obrigação de cumprir ou
submeter a questão a Assembleia Geral da OEA. No caso de cumpri-
mento, o processo é arquivado.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
389
Se a sentença não for executava em um prazo razoável ou for
descumprida, o Estado pode incorrer em uma segunda violação à
Convenção e ser submetido novamente a outro processo de respon-
sabilização internacional. O Estado não pode se omitir para recusar
cumprir as determinações judiciais que aceitou livremente ao aderir
a Convenção e aceitar a jurisdição da corte IDH. Tanto os ordena-
mentos domésticos quanto o internacional prelecionam o princípio
da prestação jurisdicional em prazo razoável.
Ao analisar o cumprimento das decisões emanadas pela Cor-
te IDH, deve-se pensa o Direito Internacional da forma mais alar-
gada possível para incluir os possíveis acordos amistosos entre os
Estados violadores, a Corte e outros organismos internacionais e as
vítimas. Nesse diapasão, o cumprimento não é estático e nem possui
conceito uniforme.
Classicamente temos a teoria de Young (GARBIN, 2010, p.15)
que propõe que o cumprimento ocorre quando o comportamento de
um sujeito se adequa a prescrição normativa. Assim o cumprimen-
to ocorreria para evitar punições expressando a conformidade com
as normas internacionais. Este entendimento é passível de crítica
porque não comportaria relações de causalidade.
Contemporaneamente este conceito de cumprimento é visto
de forma mais ampla a partir do enxergar o cumprimento como um
comportamento ativo em que diante de uma obrigação internacio-
nal os Estados se vêem compelidos a tomar medidas positivas para
reparar uma violação. Assim, entende-se que existe cumprimento
de decisões quando houver aceitação do julgamento por parte dos
Estado e atuação no sentido de cumprir as obrigações.
Implementação e efetividade podem ser, grosso modo, usa-
das como sinônimos de cumprimento, mas tecnicamente cabe di-
ferenciação. A primeira consiste em colocar em prática os com-
promissos internacionais – seja mudando a legislação seja se
comprometendo com a criação de instituições internas ou interna-
cionais. Pode ser visualizada enquanto uma fase do cumprimento

390 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
sem nele se exaurir ou se confundir. Se a decisão dispõe sobre os
compromissos que o Estado assumiu e ainda não implementou, é
nitidamente uma fase a implementação. Se, em sentido diferente,
a decisão ou não se refere a compromissos ou, em se refererindo,
o Estado já as cumpriu anteriormente, não há que se falar em im-
plementação.
A efetividade possui, por sua vez, o caráter mais político que
técnico por significar a potencialidade de uma regra ou regime jurí-
dico modificar o comportamento estatal com finalidade política, de
cessação de uma violação ou outro fim. Assim, os regimes interna-
cionais podem ser efetivos e o cumprimento ser pouco. O contrário
também pode acontecer. Como a efetividade aufere potencialidade,
um Estado pode ter um regime jurídico potencialmente hábil a in-
duzir mudanças e não cumprir as decisões.
É possível pensar efetividade e cumprimento conjuntamente.
As decisões da Corte IDH, por exemplo, contrárias aos Estados ensejam
medidas coercitivas para que haja o cumprimento das decisões. As
mudanças comportamentais dos Estados em prol do cumprimento de
decisões gera, de forma geral, efetividade do Sistema Interamericano
de Proteção dos Direitos Humanos, doravante SIDH. Pensando
globalmente, a efetividade do SIDH tem impacto positivo no sistema
global de proteção dos Direitos Humanos. Medir a efetividade e con-
sequentes impactos políticos é muito mais complexo do que auferir os
esforços dos Estados para cumprir as decisões da Corte IDH.
Com isso não se quer inferir que estudar o cumprimento das
decisões da Corte seja uma tarefa fácil. Qual o objetivo de quem pre-
tende estudar o cumprimento das decisões? Quais subsídios elas têm
para sua pesquisa? As estatísticas oficiais parecem um bom começo
mesmo que os números sozinhos não expressem realidades sociais
e possam ser utilizados diversamente a depender do interesse polí-
tico. Os trabalhos das Ciências Sociais Aplicadas, em contrapartida,
oferecem bons subsídios para se entender sob diversos vieses o sig-
nificado dos dados estatísticos.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
391
Por enquanto, este estudo segue a metodologia da Corte IDH
que divide o cumprimento em três categorias - cumprimento total,
parcial e pendente – mesmo que na prática este agrupamento gere
mais ambiguidade que clareza.
Além de satisfações pessoais do pesquisador, o estudo se en-
tende necessário para auferir os êxitos dos Estados, os ganhos de
Direitos Humanos da população e até mesmo entender como está a
efetivação dos Direitos Humanos no âmbito do continente america-
no e do sistema global de Direitos Humanos.
A delimitação do local de fala é importante aqui não só en-
quanto identidade mas também para se conhecer o objeto de estudo
e a metodologia empreendida. A fala do Direito Internacional dia-
loga com as Relações Internacionais, com a Ciência Política e outras
áreas do saber para investigar o cumprimento das decisões, mas foca
a prevalência do Direito e enfoca o porquê dos Estados cumprirem os
tratados internacionais.

6 TEORIAS DO DIREITO INTERNACIONAL E


DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E AS
SENTENÇAS DA CORTE IDH
As Escolas de Direito Internacional e de Relações Intenacio-
nais têm desenvolvido teorias sobre como o direito internacional é
internalizado e consequentemente como os direitos humanos são
recebidos nos ordenamentos jurídicos domésticos. Assim, a partir
destas teorias é possível entender também como as sentenças in-
ternacionais são recebidas nos ordenamentos jurídicos domésticos
e como são cumpridas. Começemos com uma breve explanação das
teorias advindas primeiras escolas.
Na segunda metade da década de 1990, Harold Hongju Koh
apresentou a teoria da obediência ou do processo legal transnacional
que considera a interação entre atores públicos e privados na elabo-
ração de normas transnacionais. O ponto central – processo legal

392 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
transnacional – que dá nome a teoria se inicia quando um ou mais
atores trasnacionais interagem com os demais, objetivando a enun-
ciação de uma norma (GARBIN, 2010, p. 25).
Assim, as normas produzidas – um tratado, por exemplo –
representam a interpretação comum de regras pelos Estados que
podem ou não ser internacionalizadas nos ordenamentos jurídicos
pátrios. De acordo com o autor, a interação, a interpretação e a in-
ternalização são as etapas deste processo em que o cumprimento
das regras internacionais está ligado ao próprio avanço das fases do
processo transnacional legal. A formalização de uma regra no âm-
bito interno enseja a um comportamento de obediência e assim ao
cumprimento internacional.
Uma crítica válida que se pode fazer é que ao invés de Koh
explicar as motivações que levam um Estado a cumprir regras inter-
nacionais, ele simplesmente descreve um caminho para a incorpo-
ração de normas de direito doméstico com foco nos atores e em suas
práticas (GARBIN, 2010, p. 25).
Koh é importante enquanto marco no Direito Internacional
por abordar o elemento processualístico de produção de normas in-
ternacionais e abranger também atores não-estatais.
Contemporaneamente a Koh, Thomas Franck desenvolveu a
teoria da legitimidade ou da justiça que visa explicar por que os Es-
tados se sentem compelidos a honrar compromissos internacionais.
A justiça e a legitimidade são os pontos centrais da anuência a trata-
dos internacionais e posterior cumprimento. Se o Direito Internacio-
nal é justo e legítimo há maior possibilidade de haver cumprimento.
A legitimidade de uma regra pode ser auferida por: deter-
minação, que são requisitos de clareza e transparência das regras;
validação simbólica, ou seja, os atributos da regra que a sinalizam
como parte de um sistema de ordem social; coerência; conexão como
as regras do processo. A presença dos quatro fatores aponta fortes
tendências ao cumprimento que pode ser percebido pela ampla acei-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
393
tação normativa de regras internacionais consistentes, coerentes,
justas e legítimas (GARBIN, 2010, p. 26).
No que tange a Teoria das Relações Internacionais podemos
destacar o realismo, o neorealismo e a teoria da interdependência.
O realismo destacou-se especialmente da década de 1930 a
1950, centrou-se em questões como as causas da guerra e as condi-
ções de paz, a natureza do poder, a segurança nacional e reconheceu
apenas as unidades estatais, membros da sociedade internacional e
do Sistema Europeu de Estado como atores principais dos proces-
sos. Sua prioridade mais aparente era a manutenção do status quo: as
mudanças não tinham tanto valor para esse paradigma (OLIVEIRA,
2003, p.56). Para os realistas, o Estado só deve obedecer o direito
internacional quando for de seu interesse.
O neorealismo surge a partir da obra de Kenneth Waltz em
que as Relações Internacionais passariam pelos processos de so-
cialização e competição, sendo a estrutura do sistema político in-
ternacional condicionada a anarquia, inexistência de diferenciação
entre as unidades e a existência de distribuições de desigualdade
de capacidade entre os grandes e os pequenos poderes. Muitas crí-
ticas foram feitas ao autor tendo em vista seu pouco enfoque nas
transformações globais da sociedade internacional (WALTZ, 2003,
p.163).
O neo-realismo, de forma geral, recebeu muitas críticas por
não ter tentado reduzir o papel máximo do Estado como ator prin-
cipal das Relações Internacionais, por não criticar a política do po-
der ou a luta da força bruta, apesar das tentativas de aplicar um
rigor metodológico maior à disciplina. Omitiu-se ainda em perceber
a presença de atores novos e emergentes apresentando-se como um
movimento que repaginou o paradigma tradicional sem criticá-lo ou
fazer modificações aptas a torná-lo mais atual
Nye foi um dos co-fundadores do neoliberalismo na teoria
das Relações Internacionais. Juntamente com Keohane, ele desen-

394 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
volveu os conceitos de interdependência assimétrica e complexa. Os
pesquisadores estudaram a possibilidade de que as relações transna-
cionais entre agentes não-Estados (tais como multinacionais), fizes-
sem com que houvesse uma superação da concentração excessiva de
cientistas políticas na relações entre as nações. Analisaram também
as relações transnacionais e da política mundial (OLIVEIRA, 2003,
p. 97-103).

7 AS SENTENÇAS DA CORTE IDH E O BRASIL


Um ponto importante é identificar no plano interno a pessoa
jurídica apta a executar a decisão da Corte. Como, no plano interna-
cional, apenas a República é apta a comprometer-se externamente:
é sua a capacidade de ser imputável. No caso brasileiro, a República
divide-se em União de estados, DF e municípios. O artigo 21, inciso
I, da CF/88 atribui a União esta responsabilidade. Não importa se a
conduta violante tem implicações estaduais ou municipais, a res-
ponsabilidade internacional é federal. O Presidente da República, de
acordo com o inciso VIII, artigo 84, representa a União e assim se
encarrega de favorecer o cumprimento da condenação mesmo que
possa delegar esta tarefa a órgãos auxiliares.
O protagonismo da União não se elide em virtude do pacto
federativo e da repartição federal de competências. Enquanto pes-
soa jurídica a União personifica o Estado Federal aos olhos das res-
ponsabilidades internacionais. Os estados da federação devem junto
com a União se empenhar para concretizar a sentença na medida
de sua competência e de suas limitações. Depois da comunicação ao
país, a sentença deve ser encaminhada a Presidência para emitir o
ato hábil a materializar as decisões ou delegar a atribuição de prati-
cá-lo a outro órgão.
A obrigação de indenizar é incumbência da União enquanto
cível-administrativa poderá ser ou não cumprida pela União. A ade-
quação legislativa segue a anterior.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
395
O Poder Executivo e o Legislativo podem espontaneamente
executar as sentenças da Corte IDH. Já o Poder Judiciário, em vir-
tude da inércia da jurisdição, deve ser provocado para participar da
execução das sentenças e das decisões internacionais. No caso da de-
mora injustificada ou inércia do Estado, a vítima, seu representante
legal ou o Ministério Público podem provocar o ao Judiciário para
providenciar o cumprimento forçado das setenças da Corte IDH. No-
ta-se que mesmo que os atos judiciais possam gerar responsabili-
dade internacional do Estado, eles não podem ser modificados por
uma sentença internacional.
De acordo com o art. 100 da Constituição Federal de 1988 e
os artigos 730 e 731 do Código de Processo Civil, o pagamento de
indenizações segue o procedimento dos precatórios. No que tange
as reparações de natureza não-pecuniárias, a Convenção dita que os
Estados se comprometam a adotar as medidas cabíveis e necessárias
para concretizar os direitos e as liberdades individuais. Deixa livre,
portanto, que os Estados-parte sigam os procedimentos estabeleci-
dos pelo direito interno no que tange as esta modalidade de repara-
ção. No caso brasileiro, segue o artigo 461 do CPC.
Em nome do Estado, o Poder Legislativo deve observar os tra-
tados internacionais, não aprovar normas contrárias ou conflitantes
com os compromissos internacionais e garantir o pleno cumprimen-
to da sentença. O inciso XXV do artigo 5º da CF/88 preleciona que
nenhuma lesão ao direito pode ser excluída da apreciação do Poder
Judiciário, o que autoriza a atuação desde poder, após provocação,
para executar as sentenças da Corte IDH. O juiz de primeira instân-
cia da Justiça Federal competente para executar a sentença da Corte,
em geral, é aquele do local de residência da vítima.

8 CONCLUSÃO
O SIDH refere-se antes de mais nada a uma questão de luta
por justiça. As vítimas e seus representantes quando conseguem

396 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
acessar o Sistema já de muito carregam a dor no peito e o grito de
justiça na garganta. A situação de desrespeito aos direitos humanos
é ainda pior quando protagonizada pelo Estado cujo dever de cuida-
do e proteção são antagônicos a posturas comissivas e omissivas de
violações.
O resgate inicial do histórico dos Direitos Humanos e do Sis-
tema Interamericano de Direitos Humanos e fez necessário para
rememorarmos que os instrumentos jurídicos de proteção não são
fatos consumados ou benesses dos Estados; advém de reinvindica-
ções, conflitos de interesse e disputas; sofrem avanços e retrocessos.
Se antes os Estados eram os atores por excelência, hoje têm per-
dido espaço para as ONGs, indivíduos e outros atores emergentes.
O protagonismo da pessoa humana como sujeito de direito é uma
conquista recente.
O Sistema consolida-se como um importante instrumento
para fortalecer a luta contra as violações de Direitos Humanos em
situações em que o Estado não as garante. A atuação de atores não-
-estatais – organismos não-governamentais ou outros – reforçam a
luta por justiça no Sistema e reunem elementos para o acesso à jus-
tiça nacional e internacional. Ainda assim a coerção política advinda
da Corte ou de organismos internacionais ainda é o melhor meio de
compelir um Estado a observar com vigor as sentenças da Corte e
cumpri-las.
Casos individuais na Corte não implicam em uma violação ao
princípio da isonomia tão repisado por agentes violadores no âmbito
interno. Em maior ou menor grau, o pleito individual leva ao estudo
pormenorizado da situação periclitante e de violação sofrida para
que ela seja cessa em todos os casos, julgados ou não.
A internacionalização dos direitos humanos pode ser sentida
nas constituições dos países latino-americanos e na própria atribui-
çãodos tratados de Direitos Humanos à matéria internacional de-
monstra a hierarquia diferenciada nos ordenamentos jurídicos em
relação a outros tipos de tratados. Não se trata apenas de uma ques-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
397
tão formal: a elevação desses tratados ao bloco de constitucionalida-
de dá mostras dos compromissos assumidos pelos Estados perante
sua população.
Ciente dos avanços e limitações do Sistema Interamerica-
no de Direitos Humanos podemos reforçar o reconhecimento deste
como um importante instrumento de luta, proteção e consolidação
dos direitos humanos no continente americano e também em todo o
globo. Entender como funciona a Corte, nesse sentido, e popularizar
este instrumento jurídico para reforçar a construção da democracia
na América e contribuir com a nossa cultura de direitos humanos.

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398 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
399
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO
ORDENAMENTO JURÍDICO DOS PAÍSES DO
MERCOSUL
Isabella Alonso Panho
Acadêmica do 3º ano do curso de direito (UEL), colaboradora do projeto integra-
do de pesquisa e extensão Júri na Escola e estagiária do projeto de extensão “O
Direito Infanto-juvenil e a Educação: os fundamentos jurídicos para o exercício
do magistério da educação infantil ao ensino médio no município de Londrina e
região”. (isabella.alonso2@hotmail.com)

Beatriz Oliveira
Acadêmica do 2° ano do curso de direito (UEL), colaboradora do projeto de pesqui-
sa e extensão (UEL) Juri na Escola: análise do discurso. (beaolivei@gmail.com)

Orientadora: Prof. Me. Juliana Kiyosen Nakayama


Doutoranda em Estudos da Linguagem (UEL), Mestre em Direito (UEL). Espe-
cialista em Educação a distância (SENAC). Coordenadora do projeto integrado de
pesquisa e extensão Júri na Escola. Professora na Departamento de Direito Públi-
co (UEL). (junakayama@hotmail.com)

Resumo:
Com esse trabalho temos por objetivo evidenciar o princípio da Dignidade humana, que é,
para nós, norte supremo de todos os direitos fundamentais. Explicamos, de forma sintéti-
ca, como a Dignidade é trazida nas constituições dos países sul-americanos, membros do
Mercosul. Ainda abordando a questão da aplicação da Dignidade, falamos sobre alguns pro-
blemas sociais, que são obstáculos à efetivação desse princípio na sociedade. Evidenciamos,
outrossim, a recepção dos tratados internacionais em cada um dos ordenamentos estuda-
dos, pensando na Declaração Interamericana de Direitos Humanos, a qual todos os Estados-
-membros do Mercosul são signatários.
Palavras-chave: Dignidade – Princípio Constitucional – Aplicação Social – Mercosul.

400 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Sumário:
1. Introdução. 2. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a sua Importância nas
Constituições Contemporâneas. 2.1 O princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 3. O
Panorama Geral da Questão da Dignidade Frente aos Membros do Mercosul. 3.1 A Dignidade
do Ordenamento Brasileiro. 3.2 A Dignidade do Ordenamento Paraguaio. 3.3 A Dignidade do
Ordenamento Uruguaio. 3.4 A Dignidade do Ordenamento Venezuelano. 3.5 A Dignidade do
Ordenamento Argentino. 4. Considerações Finais. 5. Referências.

1 INTRODUÇÃO
Nessa pesquisa procuraremos elucidar sobre o princípio da
Dignidade Humana, que é mais que um princípio, é uma finalidade
social do Estado, sobre a qual todas suas ações devem ser guiadas e
emolduradas.
Iniciaremos o estudo do tema, observando os ensinamentos
gerais sobre princípios e normas constitucionais, visando relembrar
conceitos essenciais à compreensão da próxima parte do estudo.
Na sequência, exploraremos a questão da dignidade em si,
lembrando-nos dos ensinamentos de Sarlet, que nos diz que a Dig-
nidade é um principio constitucional fundamental e um princípio
geral do Direito.
Passaremos, então, a conhecer um pouco do trato desse prin-
cípio fundamental nos países membros do Mercosul, discorrendo
sobre onde encontramos o termo “Dignidade” em seus textos maio-
res, como esse princípio se expressa nesses sistemas jurídicos, qual
o status da Declaração Interamericana de Direitos Humanos da OEA
nesses ordenamentos e, por fim, quais as barreiras de implementa-
ção social da Dignidade.
Em relação à questão da implementação social do princípio,
discutiremos um pouco da questão da desigualdade na América La-
tina e a dificuldade de acesso aos serviços básicos pelos marginali-
zados.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
401
É dessa forma que objetivamos mostrar o que falta para a
concretização social da Dignidade Humana em termos de América
Latina. Dentro do espaço amostral dos membros do Mercosul, pro-
curaremos deixar evidente que os problemas travados nos Estados
da região são semelhantes, ou ao menos muito parecido.
Gostaríamos de incentivar, então, a reunião política e jurídica
dos Estados Latino-americanos para o combate a desigualdade e di-
ficuldade de acesso a serviços essenciais de suas populações; tendo
em vista que os obstáculos seguem a mesma linha lógica.

2 O PRINCÍPIO DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


E SUA IMPORTÂNCIA NAS CONSTITUIÇÕES
CONTEMPORÂNEAS
O Direito, conforme teoria consagrada de Miguel Reale, é “a
realização ordenada e garantida do bem comum numa estrutura
tridimensional bilateral atributiva”256. É bilateral atributiva porque
envolve sempre no mínimo dois sujeitos, cujos comportamentos se-
guem uma proporção objetiva que permite fazer algo ou ter a expec-
tativa de que o outro o faça257. É tridimensional porque toda relação
jurídica é composta necessariamente desses três elementos: fato (a
circunstância social), valor (a acepção axiológica que uma sociedade
tem a respeito do fato) e norma (resultado final do fato valorado
tutelado pelo direito), o que configura, em síntese, a experiência ju-
rídica como “um elemento de fato, ordenado valorativamente em
um processo normativo”258.
Assim, a norma jurídica, ápice do processo que dá origem
ao Direito, nada mais é do que “determinada prescrição de condu-
ta ou de organização, dotada de generalidade (pois obriga a todos os
que se encontram sob sua égide, atendendo ao princípio da isono-
256
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 67.
257
Idem, p. 51.
258
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004. p. 384-385.

402 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
mia)259 e de abstração (pois a norma é o oposto de casuística, já que
deve abranger o maior número de situações possível”)260-261. Dentre
as diversas categorias de normas – o costume, as leis ordinárias, um
regimento interno de determinado órgão –, observaremos aqui as
normas constitucionais, que, embora sejam normas tais quais to-
das as outras contidas dentro de um ordenamento jurídico, possuem
certas características específicas que as diferem das demais, como:
supremacia, abertura (dá cláusulas gerais e confere bastante poder
ao intérprete) e dimensão política relevante, conforme classificação
de L. R. Barroso262.
Se observadas no tocante à sua função, podem ser elas di-
vididas em regras e princípios263. Regras são normas cujo conteúdo
expressa comandos objetivos de conduta, preceitos, proibições ou
permissões, tendo uma estrutura que, na maior parte das vezes é
descritiva de comportamentos, favorecendo a segurança jurídica. Já
princípios expressam decisões políticas fundamentais, valores a se-
rem observados ou fins públicos a serem atingidos; sua estrutura
normativa é finalística e indeterminada – aponta um ideal a ser al-
cançado, que necessita de meios concretos para se efetivar no exer-
cício de qualquer das três funções estatais –; evitam a rigidez do or-
denamento. Princípios são normas que apontam uma diretriz, uma
forma de comportamento que o Estado deve adotar para a realização
de todas as suas atividades, quais sejam, de forma genérica, admi-
nistrativa, judiciária e legislativa.
A forma por meio da qual se aplicam essas duas categorias
de normas constitucionais constitui, desse modo, a maior diferença
entre ambas. As regras são aplicadas mediante subsunção – enqua-

259
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
p. 85.
260
Idem.
261
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 195.
262
Idem, p. 198-200.
263
Idem, p. 204-212.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
403
dramento, de forma mais objetiva possível, do fato à norma que lhe
disciplinar – e princípios são aplicados na medida em que coube-
rem no caso específico. Os princípios obedecem a um sistema de
contrapesos: podem ser aplicados concomitantemente, um cedendo
espaço ao outro conforme a situação demandar, o que evita o apa-
rente “choque” que pode haver entre eles. Princípios são “normas
que ordenam que algo se realize na medida do possível, segundo
as possibilidades fáticas e jurídicas. [...] podem realizar-se em di-
ferentes graus, em virtude da necessidade de ponderá-los frente à
observância de outros princípios”264. Entre princípios, em situações
concretas, é esperado que haja conflitos, uma vez que é impossível
que todos sejam sempre exercidos de maneira absoluta (“Absoluta
é a regra, mas jamais o princípio”)265, o que leva à necessidade de
contemporização entre eles. O mesmo não pode ocorrer com as re-
gras – não pode haver desconformidade entre os preceitos de uma
ou outra, havendo, muito provavelmente, vícios em uma delas.
A eficácia dos princípios pode ser dita como programática266.
A eficácia é a produção, por parte da norma jurídica, dos efeitos so-
ciais planejados267. Há, dessa forma, que se deixar clara a seguinte
distinção no tocante à eficácia das normas constitucionais, segun-
do a classificação de J. Afonso da Silva268, mais aceita pela doutrina
contemporânea: há, em primeiro lugar, as normas constitucio-
nais de eficácia plena e aplicabilidade imediata, que produzem
264
MACEDO, Regina Maria. FERRARI, Nery. Normas Constitucionais Programáticas: nor-
matividade, operatividade e efetividade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
p. 213.
265
ALEXY, Robert apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advoga-
do Editora, 2008. p. 76.
266
MACEDO, Regina Maria. FERRARI, Nery. Normas Constitucionais Programáticas: nor-
matividade, operatividade e efetividade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
p. 215.
267
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 24. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
p. 91.
268
SILVA, José Afonso da apud BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2010. p. 214-215.

404 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
os efeitos pretendidos sem necessidade de outras normas ulteriores
que regulem a sua aplicação; em seguida, há as normas constitu-
cionais de eficácia contida (ou restringível) e aplicabilidade
imediata, mas passiveis de restrição, que são normas que, assim
como as da primeira categoria, produzem, através de sua própria
normatividade, todos os efeitos pretendidos, mas têm mecanismos
que permitem a adição de normas que restrinjam sua eficácia; por
fim, há as normas constitucionais de eficácia limitada, as quais
têm normatividade, mas, para exercer os seus efeitos, necessitam
de normas ulteriores que concretizem a sua eficácia, a exemplo dos
princípios constitucionais.
A programaticidade dos princípios não conota uma falta de
normatividade, apenas que, por estabelecerem fins conforme os
quais deve agir o Estado, necessitam de outras normas, de aplicação
mais imediata – mas não necessariamente regras269 –, cuja escolha é
deixada em aberto, para se concretizarem. Caso essas normas com-
plementadoras apresentem discrepância de conteúdo em relação às
demais do ordenamento, ficam sujeitas à inconstitucionalidade270.

2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana


Os princípios têm, portanto, uma função diferenciada nos or-
denamentos jurídicos de forma geral. São norteadores, ou seja, de-
terminam a postura que o Estado deve adotar na realização de suas
atividades e o intuito de todo o seu ordenamento.
A dignidade da pessoa humana, contudo, é considerada um
princípio constitucional fundamental em virtude de constar logo nas
primeiras linhas das constituições e de ser um norteador de todo o
269
MACEDO, Regina Maria; FERRARI, Nery. Normas Constitucionais Programáticas: nor-
matividade, operatividade e efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 217.
A norma de eficácia programática necessita de outra norma que concretize a sua eficá-
cia; essa norma, contudo, pode ser também uma outra norma de eficácia programáti-
ca, tendo, ainda assim, um conteúdo um pouco mais restrito e objetivo do que aquela
que visa complementar.
270
Idem, p. 212-220.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
405
regulamento e de todas as ações do mundo jurídico subjacente. Se-
gundo outros autores, a dignidade da pessoa humana seria melhor
denominada como “princípio geral de direito”271, contudo, conforme
Sarlet observa272, uma denominação não exclui a outra, a primeira
abarca a segunda – se o princípio é constitucional fundamental, logo
ele também é um princípio geral do direito.
Assim, como todos os princípios, a dignidade da pessoa hu-
mana necessita de normas que determinem como se dará a sua con-
cretização. Essas normas são os direitos e as garantias fundamentais.
Nesse sentido, esclarece Sarlet:

[...] sendo correta a premissa de que os direitos fundamen-


tais constituem – ainda que com intensidade variável – ex-
plicitações da dignidade da pessoa, por via de consequência
e, ao menos em princípio (já que exceções são admissíveis,
consoante já frisado), em cada direito fundamental se faz
presente um conteúdo ou, pelo menos alguma projeção da
dignidade da pessoa. [...] a dignidade da pessoa humana, na
condição de valor (e princípio normativo) fundamental que
‘atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais’, exige e
pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos funda-
mentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim prefe-
rirmos.). 273

Consequentemente, pode-se auferir em que medida há o res-


peito à dignidade da pessoa humana na mesma proporção em que
se observa o respeito aos seus direitos fundamentais. O desrespeito
a qualquer direito dessa categoria é a forma mais direta de ofensa à
dignidade de algum indivíduo.

271
SILVA, José Afonso da apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e
direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p. 71. (ver nota de rodapé n. 155)
272
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Cons-
tituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 71. (ver
nota de rodapé n. 155)
273
Idem, p. 88.

406 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Embora a dignidade seja citada em trechos diversos dos orde-
namentos em meio a regras, por ser uma norma jurídica que se tra-
duz sob a forma de princípio constitucional fundamental, mantém
a sua força de princípio, uma vez que continua, ainda que nessas
situações, a representar uma finalidade social a que todas as ações
do Estado devem se voltar.

3 PANORAMA GERAL DA QUESTÃO DA


DIGNIDADE FRENTE AOS MEMBROS
DO MERCOSUL
Na próxima parte de nosso trabalho, procuraremos estudar
como é tratado o tema da dignidade em alguns países sul-america-
nos: Brasil, Paraguai, Uruguai, Venezuela e Argentina. Escolhemos
particularmente esses países, por serem membros do Mercosul274, o
principal bloco econômico da America Latina.
Iremos expor um panorama geral da questão na região, por
acreditarmos que as semelhanças históricas, linguísticas e de objeti-
vos comuns existentes entre as nações regionais, fazem da America
Latina uma sociedade275 em sentido amplo, que deve ser assim ana-
lisada.
Introdutoriamente, nos parece necessário ressaltar que tais
Estados são signatários da Organização dos Estados Americanos e
obrigam-se a seguir aquilo que foi estabelecido na Declaração In-
teramericana de Direitos Humanos (1948). A Declaração tem por
objetivo garantir os direitos do homem, aqueles direitos inerentes
à dignidade, como: liberdade, integridade, vida, entre outros276. É
274
Fazemos ressalva nessa parte, pois o Paraguai até a presente data encontra-se suspen-
so dentro do bloco Mercosul.
275
RAUS, Diego Martins. Pensar la sociedad y la cuéstion social en América Latina. In:
DÍAZ, Laura Mota; COHEN, Nestor; CATTANI, Antonio David (Orgs.). América Latina In-
terrogada. México: Miguel Ángel Porruá, 2012. p. 15-43.
276
OEA. Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem. Disponível em: <http://
www.cidh.oas.org/basicos/portugues/b.Declaracao_Americana.htm>. Acesso em: 04
maio 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
407
válido lembrar, outrossim, que os países signatários desses contratos
estão sujeitos a Corte Interamericana e aos mecanismos de controle
de respeito aos Direitos Humanos, da OEA.

3.1 A dignidade no ordenamento brasileiro.


A dignidade da pessoa humana é, no ordenamento jurídico
brasileiro, elencada a nível de princípio constitucional fundamental,
posto que é contemplada logo no art. 1º da Constituição, como fun-
damento do Estado Democrático de Direito Brasileiro:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela


união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Fe-
deral, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos ter-
mos desta Constituição.

Por esse motivo é que, para alguns autores, a dignidade da


pessoa humana é um princípio geral do direito277.
Ademais, também consta em diversos outros dispositivos
constitucionais e infraconstitucionais, mantendo a sua força de
princípio. A exemplo:
– na Constituição Federal:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do


trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar

277
Vide nota de rodapé no 19.

408 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça so-
cial, observados os seguintes princípios:
[...]
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado as-
segurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educa-
ção, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, dis-
criminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

– no Código Penal

Injúria
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o de-
coro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

– no Código de Defesa do Consumidor

Art. 4º - A Política Nacional das Relações de Consumo tem por


objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito
à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses
econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a trans-
parência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes
princípios:
[...]

– no Estatuto da Criança e do Adolescente

Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos funda-


mentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção inte-
gral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros
meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condi-
ções de liberdade e de dignidade.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
409
É interessante destacar, também, que os tratados no Brasil
são recepcionados, depois de aceitos no ordenamento pelo Congres-
so Nacional, com status de norma constitucional; ou seja, a Declara-
ção Interamericana de Direitos Humanos integra nosso texto consti-
tucional. Ressaltamos, também, que nosso país tem um dos maiores
índices de cumprimento das sentenças dadas pelo Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos, mostrando seu comprometimento para
com os interesses da Organização278.
As dificuldades para a aplicação social daquilo que está tão
maravilhosamente expresso em nossas leis, está, sem dúvidas, nos
obstáculos de acesso da população geral à alimentação, educação,
saúde, condições dignas de moradia e meio ambiente salutar, entre
outras necessidades essenciais. Temos um programa bilionário de
apoio aos pobres necessitados e projetos interessantes para melhoria
do acesso, entretanto estamos muito longe de podermos dizer que
efetivamos a Dignidade a todas as camadas sociais de nossa Nação.

3.2 A dignidade no ordenamento Paraguaio


O Paraguai é um país que passou diversas vezes por gover-
nos ditatoriais. No período recente de 1989 a 1993, foi comandado
por governos autoritários, tendo sido eleito um governo civil de-
mocrático, somente no final de 1993. Nesse ano, passou a vigorar
no país uma nova Constituição, na qual é possível observar maior
esmero com a dignidade, sendo que, diferente de todas as Consti-
tuições anteriores, traz os direitos fundamentais logo em sua pri-
meira parte279.
278
BASCH, Fernando; FILLIPINI, Leonardo; LAYA, Ana; NINO Mariano; ROSSI, Felicitas;
SCHREIBER, Bárbara. A eficácia do sistema de Direitos Humanos: uma abordagem
quantitativa sobre seu funcionamento e sobre o cumprimento de suas decisões. Re-
vista Internacional de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.surjournal.org/
conteudos/getArtigo12.php?artigo=12,artigo_02.htm>. Acesso em: 5 maio 2013.
279
SALGUEIRO, Jorge Silvero. La Constitución de la República Paraguaya de 20 de junio
de 1992. Revista Jurídica Boletín Mexicano de Derecho Comparado. Disponível em:
<http://www.juridicas.unam.mx/publica/rev/boletin/cont/92/art/art10.htm>. Acesso
em: 4 maio 2013.

410 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
No primeiro artigo da Constituição, juntamente com a forma
de estado e governo, já está exposto que o Estado Paraguaio é fun-
dado no reconhecimento da Dignidade Humana. Frente a isso, fica
claro que o governo deve ter suas ações subordinadas aos direitos
fundamentais, assim como, que os direitos fundamentais são inde-
pendentes da estruturação do Estado e do governo, que deve respei-
tar a liberdade e a igualdade das pessoas.
Todo o título II da Constituição trata dos deveres, direitos e
garantias do homem, sendo que a Seção 1 fala sobre a vida. Logo de
inicio, explicita que a garantia à vida é inerente à pessoa humana,
desde a concepção; abole a pena de morte e proíbe qualquer tipo de
tortura; garante que o Estado protegerá a integridade física e psíqui-
ca, assim como a honra e reputação dos sujeitos; e, por fim, assevera
a qualidade de vida, através de planos e medidas estatais280.
Essa última garantia citada merece particular tratamento por
evidenciar a importância dada aos direitos sociais, planos e políti-
cas estatais quando falamos de manutenção da dignidade. A Cons-
tituição paraguaia reconhece a importância da intervenção estatal,
de forma direta, através de planos e políticas públicas, para que se
cumpra a dignidade real dos em situação de pobreza extrema e dos
impedidos por incapacidade ou idade.
Quanto aos tratados, ao serem assinados pelo Paraguai, pas-
sam a ter status supraconstitucional, conforme previsto no artigo 137
da Constituição paraguaia281.
A desigualdade, que afeta diretamente a efetivação do prin-
cípio da dignidade, possuí raiz histórica no Paraguai, tendo sido ini-

280
PARAGUAI. Constituição (1992). Constitución Política de 1992. Disponível em: <http://
pdba.georgetown.edu/constitutions/paraguay/para1992.html>. Acesso em: 4 maio
2013
281
PARAGUAI. Constituição (1992). Constitución Política de 1992. “Art. 137: La ley supre-
ma de la República es la Constitución. Esta, los tratados, convênios y acuerdos interna-
cionales aprobados y ratificados, las leyes dictadas por el Congreso y otras disposicio-
nes jurídicas de inferior jerarquía, sancionadas en consecuencia, integran el derecho
positivo nacional en el orden de prelación enunciado.”

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
411
ciada no tempo da colonização. O governo ditatorial de Stroessner
(1957–1987) corroborou bastante para a atual situação, quando,
através de sua política de governo e corrupção, criou uma elite cívi-
co-militar, que se apropriou dos bens estatais282.
Na atualidade, o principal empecilho para a concretização do
princípio da Dignidade na sociedade paraguaia está no difícil acesso
à educação, à saúde e à justiça. Existe previsão legal para que haja
o acesso à educação e à cultura, conforme pode ser observado do
artigo 68 ao 85 da Constituição Paraguaia. A parte formal já existe e
é bem estruturada, o que falta é a aplicação social desses princípios
e normas.

3.3 A dignidade no ordenamento uruguaio


A Constituição Uruguaia vigente foi aprovada, através de ple-
biscito, em novembro de 1966; é conhecida como Constituição de
1967. Possuí 322 artigos e está dividida em dezenove seções.
Traz a questão dos direitos humanos, na seção II, dos “Di-
reitos, Deveres e Garantias”, que se estende do artigo 7° ao 72°. Na
primeira parte da seção, do artigo 7° ao 39°, encontram-se listados
os direitos fundamentais, enquanto que do artigo 40° ao 71° encon-
tram-se os direitos sociais283.
É valido ressaltar, que não há, na Constituição uruguaia, o
termo “Dignidade”, entretanto entendemos esse princípio como
norte absoluto de todos os Direitos Fundamentais, que estão expos-
tos na Carta Magna.
Quanto à recepção dos tratados no ordenamento interno, a
Constituição não deixa claro com qual status o tratado é incorporado
282
CANCIO, Ana Inés Couchonnal. La desigaldad como relación social. Apuntes sobre
ideologia de la desigualdad a partir de la reseña de um caso paraguayo. In: DÍAZ, Laura
Mota; COHEN, Nestor; CATTANI, Antonio David (Orgs.). América Latina Interrogada.
México: Miguel Ángel Porruá, 2012. p. 71-87.
283
GOMEZ, Pedro J. Montano. La Constitución de la República y el Derecho Penal Uru-
guayo. Disponível em: <http://www.fder.edu.uy/contenido/penal/montano-constitu-
cion-y-derecho-penal.pdf>. Acesso em: 5 maio 2013.

412 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
no ordenamento. Entretanto, a jurisprudência e a doutrina uruguaia
demonstram que os tratados passam a valer com status de lei ordiná-
ria dentro do país284.
Em relação aos desafios sociais para a implementação da Dig-
nidade, encontramos os mesmo problemas de desigualdade, pobreza
e dificuldade de acesso à educação, à saúde e à alimentação. É ver-
dade que o Uruguai tem a terceira maior renda per capita da região,
ficando atrás do Chile e Argentina, somente. Além disso, o PIB do
país teve perceptível aumento ano passado, graças ao bom preço de
exportação dos comodities; entretanto, os déficits sociais continuam
enormes e há um longo caminho a ser seguido285.

3.4 A dignidade no ordenamento venezuelano


Quando tratamos do ordenamento venezuelano, nos depa-
ramos com um tema polêmico, em nível mundial. Em 1999, o país
passou por uma Assembleia Constituinte, que substituiu a antiga
Constituição de 1967. Essa transformação constitucional era a prin-
cipal plataforma política de Húgo Chávez Frías, militante do antigo
Movimento Bolivariano Revolucionário-200 (MBR-200)286.
A Constituição é polêmica, devido ao fato de o governo de
Chávez ser polêmico; sendo o falecido presidente ora defendido por
uns, como o homem que deu voz aos venezuelanos, ora atacado por
outros, como o ditador populista da Venezuela. Verdade é que a nova

284
HEDERSON, Humberto. Los tratados internacionales de derecho humano em orden in-
terno: la importancia del principio pro homineI Instituto Interamericano de Derechos
Humanos. Disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/
Documentos/La%20importancia%20del%20princ%C3%ADpio%20pro%20homine.pdf>
Acesso em: 5 maio 2013.
285
HERRERA, Ernesto. Uma Visão Interna da Economia do Uruguai. Disponível em:
<http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/uma-visao-interna-da-economia-do-uru-
guai> Acesso em: 5 maio 2013.
286
PÁDUA, Adriana Suzart de. Mudança e Continuidade: Notas comparativas da
Constituição Bolivariana da Venezuela. Revista Dialogus. Ribeirão Preto, v. 4, n. 1, 2008.
Disponível em: <http://www.gedes.org.br/downloads/0ad2c8b1229b26b2ae227fbe-
1525c31b.pdf>. Acesso em: 5 maio 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
413
Constituição (1999) trouxe maior voz ao povo, que estava descon-
tente com a incapacidade dos governantes anteriores de resolverem
a alastrada crise econômica e a corrupção desmedida.
A Constituição de 1999 é fundamentada nos ideais libertários
de Simón Bolívar. Conforme é possível observar logo no preâmbulo
do documento, pauta-se na independência do Estado, na necessi-
dade de integração da América Latina e na garantia fundamental e
indivisível dos direitos humanos287.
O artigo 2° da Carta Magna traz como um dos valores supe-
riores do ordenamento jurídico a preeminência dos direitos huma-
nos, sendo que é no artigo 3° que pela primeira vez aparece a palavra
Dignidade, como sendo um dos fins essenciais do Estado.
Outra questão importante a ser ressaltada é que os tratados
internacionais, os quais a Venezuela for signatária, incorporam seu
ordenamento jurídico com status de norma constitucional. Aqui
destacamos, novamente, que esse Estado é signatário da Organi-
zação dos Estados Americanos e obriga-se a seguir aquilo que foi
estabelecido na Declaração Interamericana de Direitos Humanos
(1948)288.
O problema atual para a implantação plena da Dignidade na
sociedade venezuelana está na grande disparidade econômico-so-
cial; hoje, o país conta com desvalorização monetária, aumento da
inflação, corte de benefícios sociais e falta de produtos relativos à
alimentação289.

287
VENEZUELA. Constituição da Venezuela (1999). Constitución de la República Bolivaria-
na de Venezuela. Disponível em : <www.tsj.gov.ve/legislacion/constitucion1999.htm> .
Acesso em: 5 maio 2013.
288
OEA. Países Membros. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/sobre/estados_mem-
bros.asp>. Acesso em: 5 maio 2013.
289
PACETE, Luiz Gustavo. Futuro Econômico da Venezuela é incerto após a morte de
Hugo Chávez. Istoé Dinheiro. Disponível em: <http://www.istoedinheiro.com.br/noti-
cias/113903_FUTURO+ECONOMICO+DA+VENEZUELA+E+INCERTO+APOS+A+MORTE+-
DE+HUGO+CHAVEZ>. Acesso em: 5 maio 2013.

414 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
3.5 A dignidade no ordenamento argentino
A Constituição argentina em vigor data de 1853, tendo sofri-
do, até então, seis reformas em seu texto (reformas de 1860, 1866,
1898, 1949,1972, 1994). A última reforma (1994) trouxe à Constitui-
ção uma abordagem mais atual dos direitos humanos, acrescentan-
do proteção a vários direitos sociais, aos direitos dos indígenas, das
mulheres e do meio ambiente290.
A Constituição Argentina por ter formação histórica diferen-
te da maioria das constituições latino-americanas, apresenta uma
organização distinta das demais. Diferentemente das constituições
anteriormente estudadas, essa é menos principiológica, tanto que
não encontramos nela, sequer uma vez, a palavra Dignidade.
É interessante, dentro do tema da reforma de 1994, observar-
mos o artigo 75, inciso 19, que prevê uma série de regulamentações
próprias ao desenvolvimento humano, voltada para a manutenção
de sua dignidade291. O inciso 22 desse mesmo artigo é interessante
ao tema do princípio da Dignidade humana, por versar sobre a ques-
tão dos tratados internacionais. Esses, desde que aprovados pelo
Congresso Nacional, têm hierarquia superior ao da lei ordinária e
complementam o disposto na Constituição.
290
GELLI, María Angélica. Legitimidad e poder em la reforma constitucional argentina de
1994. V Congreso de Derecho Iberoamericano. Disponível em: <http://biblio.juridicas.
unam.mx/libros/libro.htm?l=113> Acesso em: 5 maio 2013.
291
Argentina. Constituição da Argentina. Constitución Nacional (1853). Art. 75: “Cor-
responde ao Congresso... inc. 19: Proveer lo conducente al desarrollo humano, al
progreso económico con justicia social, a la productividad de la economía nacional,
a la generación de empleo, a la formación profesional de lós trabajadores, a la de-
fensa del valor de la moneda, a la investigación y al desarrollo científico y tecnológi-
co, su difusión y aprovechamiento [...] promover políticas diferenciadas que tiendan
a equilibrar el desigual desarrollo relativo de provincias y regiones. [...] Sancionar
leyes de organización y de base de la educación que consoliden la unidad nacional
respetando las particularidades provinciales y locales; que aseguren la responsabili-
dad indelegable del Estado, la participación de la familia y la sociedad, la promoción
de los valores democráticos y la igualdad de oportunidades y posibilidades sin discri-
minación alguna; y que garanticen los principios de gratuidad y equidad de la edu-
cación pública estatal y la autonomía y autarquía de las universidades nacionales.
Dictar leyes que protejan la identidad y pluralidad cultural, la libre creación y circulación
de las obras del autor; el patrimonio artístico y los espacios culturales y audiovisuales”

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
415
Ainda no inciso 22, está expresso no texto constitucional
que a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem; a
Declaração Universal de Direitos Humanos; a Convenção Ameri-
cana sobre Direitos Humanos; o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais; o Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos e seu Protocolo Facultativo; a Convenção sobre a
Prevenção e a Sanção do Delito de Genocídio; a Convenção Inter-
nacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
Racial; a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Dis-
criminação contra a Mulher; a Convenção contra a Tortura e outros
Tratos ou Penas Cruéis, Inumanos ou Degradantes; a Convenção
sobre os Direitos da Criança; durante o período de sua vigência,
são válidos no ordenamento, complementando os demais direitos
e garantias expressos.
Em relação às políticas públicas para implementação social
ampla da Dignidade, a Argentina têm diversos planos assistenciais,
no campo alimentar292, de educação, de saúde, entre outros de ne-
cessidade popular. Entretanto sofre com problemas econômicos e
políticos oriundos de uma série de políticas de governo irresponsá-
veis, que acabaram por gerar várias crises econômicas e casos graves
de inflação.
Desde 1975, o Estado argentino já passou por sete crises, com
diversos ápices inflacionários293. Enquanto houver esse temor econô-
mico, que afeta diretamente a relação de consumo e o mercado de
trabalho, é difícil pensar em concretização da Dignidade e dos direi-
tos sociais, que estarão constantemente ameaçados pelas intempé-
ries econômicas.

292
IERULLO, Martin. Los desafios de las políticas assistenciales en Argentina actual. In:
DÍAZ, Laura Mota(Org.); COHEN, Nestor (Org.); CATTANI, Antonio David (Org.). America
Latina Interrogada. México: Miguel Ángel Porruá, 2012. p .243-264.
293
PALACIOS, Ariel. Passados 10 anos, Argentina revive crise. Estadão. São Paulo, 2 jun.
2012. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,passados-10-a-
nos-argentina-revive-crise-,894498,0.htm> Acesso em: 5 maio 2013.

416 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, concluímos este trabalho, que busca dar um panora-
ma geral sobre a temática da dignidade da pessoa humana não só
no ordenamento jurídico brasileiro, mas também nos ordenamentos
dos demais países da América Latina que compõem o Mercosul.
Faz-se mister ressaltar a importância de serem feitas aborda-
gens acadêmicas nesse sentido, tendo em vista que a distancia geo-
gráfica e econômica entre esses países é pequena, e a distância socio-
lógica, contudo, é enorme e precisa ser superada, principalmente no
que tange à relação do Brasil, em específico, com os demais países.
A América Latina, apesar da sua heterogeneidade, constitui
uma sociedade com muitos pontos em comum. Embora haja dife-
renças culturais e econômicas entre os Estados, há uma série de fa-
tores, de ordem histórica e principiológica, que unem os países do
Mercosul. São eles todos signatários da Declaração Interamericana
de Direitos Humanos de 1948, o que já estabelece um compromis-
so comum de todos eles de agir no sentido de melhor concretizar
o acesso aos direitos humanos, o que coaduna, por sua vez, com o
verdadeiro respeito à dignidade da pessoa humana.
Afirmamos, então, que é necessária e imprescindível para o
desenvolvimento humano dos latinos americanos, a reunião política
e social dos Estados da região, tendo por objetivo a superação da po-
breza e da marginalização.

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
419
O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO
E A PROTEÇÃO DOS PRISIONEIROS DE
GUERRA
Thalyta dos Santos
Assessora no Programa de Educação em Direitos Humanos do Instituto de De-
senvolvimento e Direitos Humanos – IDDH em Joinville/SC. Formada em Direito
pela Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, Brasil. Pós-graduanda em
Direito Público Constitucional e Administrativo pela Universidade do Vale do Ita-
jaí – UNIVALI, Brasil. (thalyta_santos_@hotmail.com)

Resumo:
O presente artigo objetiva descrever, por meio de interpretação da legislação e doutrinas
pertinentes, a guerra e o nascimento do Direito Internacional Humanitário, especialmente
a proteção conferida por este aos prisioneiros de guerra. O método utilizado é o indutivo,
procedendo-se a pesquisa e identificação das particularidades do fenômeno ora estudado.
Para efetivação desta pesquisa, utilizou-se da metodologia da pesquisa qualitativa através do
emprego de meios bibliográficos, explorando o tema com base em trabalhos já publicados
com fins de produzir uma pesquisa descritiva, visando registrar e analisar os fatos e fenôme-
nos colhidos sem, contudo, manipulá-los. Com este estudo foi possível analisar o surgimento,
a evolução, a conceituação e as características do Direito Internacional Humanitário, bem
como delinear todos os aspectos relevantes da proteção conferida aos prisioneiros de guerra.
Chegou-se a conclusão com esta pesquisa de que a guerra sempre fez parte da história das
nações e, portanto, a devida regulamentação dos conflitos tornou-se imprescindível, princi-
palmente com o intuito de proteger a dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: Direito Humanitário – Guerra – Prisioneiros de Guerra – Lei – Conflitos.

Sumário:
1. Introdução. 2. Guerra Clássica e Regulamentação das Hostilidades. 3. O Direito Internacional
Humanitário. 3.1 Evolução histórica. 3.2 Conceitos e Características. 4. Prisioneiros de
Guerra e a Proteção pelas Convenções de Genebra. 4.1 Direitos dos prisioneiros de guerra
4.2 Condições de internamento 4.3 Condições morais e psicológicas do internamento. 4.4
Relacionamento dos prisioneiros com as autoridades e disciplina. 4.5 Sanções. 4.6 Garantias
Judiciais. 5. Considerações Finais. 6. Referências.

420 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
1 INTRODUÇÃO
No contexto internacional a guerra sempre teve um papel re-
levante. Os Estados se utilizavam dela para defender seus interesses
e resolver conflitos. No entanto, o uso da força entre os beligerantes
sempre foi sujeito a normas que, inicialmente, eram acordadas entre
as próprias partes em conflito e vigiam somente entre elas (ICRC,
2002, p. 8).
Tem-se uma estimativa que entre os anos de 3600 a.C. e 2000
d.C. cerca de 14.500 conflitos armados tenham ocorrido entre nações,
deixando cerca de quatro bilhões de mortos no total (CRETELLA
NETO, 2008, p. 463).
Conforme a crescente e constante evolução da sociedade in-
ternacional a forma dos conflitos militares também foi se modifican-
do. De fato, as normas da guerra vêm se desenvolvendo pelo direito
costumeiro (JO, 2000, p. 552-554).
No passado, as guerras não envolviam diretamente as pes-
soas privadas, e sim, eram conduzidas através de conflitos diretos
entre forças militares. Ao longo da história as guerras já tiveram
os mais variados objetivos tais como obter territórios, criar inde-
pendência, proteger território ou adquirir tronos (MELLO, 2000, p.
1.499-1.501).
De acordo com Jo (2000, p. 555): “As guerras dos séculos
XVIII e XIX eram disputadas mais entre forças armadas do que en-
tre povos. Por isso, as regras desenvolveram-se também no sentido
de proteger os próprios membros das forças armadas que se encon-
trassem fora de combate, como os doentes, feridos, prisioneiros de
guerra, etc.”
Progressivamente, os conflitos armados vêm assumindo no-
vas formas que facilmente se constatam ao se observar as décadas
de 1980 e 1990, bem como o início do século XXI. Neste cerne, bem

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
421
lecionou Borges (2006, p. 3): “[...] é imprescindível que o direito,
como fator regulador da vida em sociedade, volte-se para essa ques-
tão e crie mecanismos para mitigar o sofrimento humano causado
por uma situação de conflito armado, ou, em outras palavras, que
se proponha a ‘humanizar’ a guerra”. Assim, traduz-se essencial a
existência de um ramo do direito que regule tal situação.
É com este objetivo que nasce o Direito Internacional Hu-
manitário, que se traduz no conjunto de regras que conduzem os
tempos de guerra, com o objetivo de evitar o sofrimento humano
durante as hostilidades e impedir a plena e livre atuação do ente
público (CICR, 2002, p. 13-15).
Nesse diapasão, importante analisar os aspectos concernen-
tes à proteção dos prisioneiros de guerra, cujo histórico de vulnera-
bilidade e maus tratos em tempos de conflitos é notadamente co-
nhecido.
Os documentos basilares do Direito Internacional Humanitá-
rio são as quatro Convenções de Genebra que tiveram sua gênese no
livro escrito por Henry Dunant após os horrores presenciados por ele
na Batalha de Solferino ocorrida na Itália no ano de 1859. Na época,
tais documentos eram escritos inéditos acerca do tema, visando pro-
teger todos os envolvidos nas batalhas: civis, militares do exército e
da marinha feridos e doentes, bem como os combatentes capturados
denominados prisioneiros de guerra (CICR, 2002, p. 7).
Desta feita, o que se pretende é descrever todos os aspectos
relevantes do Direito Internacional Humanitário, bem como deli-
near todos os aspectos de proteção que a III Convenção de Genebra,
escrita em 1929, traz aos prisioneiros de guerra.

2 GUERRA CLÁSSICA E REGULAMENTAÇÃO DAS


HOSTILIDADES
O conceito de guerra não é de fácil alcance perante o Direito
Internacional. Para a formação de uma guerra internacional é neces-

422 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
sário que exista um conflito militar armado e a vontade das partes
em praticar a guerra, ou seja, a intenção de guerrear. Essa intenção,
em princípio, deveria se manifestar de forma explícita através de
uma declaração de guerra (CRETELLA NETO, 2008, p. 463). Hoje,
entretanto, por motivos estratégicos as guerras se iniciam sem pré-
vios avisos.
Portanto, a guerra existe mediante a reunião de dois elemen-
tos: o elemento objetivo, que se traduz na luta armada entre Estados
e o elemento subjetivo, que é a vontade de estar em guerra. A união
destes elementos cria o estado de guerra que possui regulamenta-
ção própria. A guerra, portanto, surge da vontade do Estado, sendo
necessária para o seu início a vontade de apenas um dos envolvidos
(MELLO, 2000, p. 1.411).
A diferença entre o estado de guerra e aqueles atos em que se
usa força mas não se configuram como guerra é basicamente a falta
do elemento subjetivo, ou seja, a falta da intenção de guerrear.
Segundo definição de Clausewitz (1996, p. 7): “A guerra é
pois um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-
-se à nossa vontade”.
Já Mello (2000, p. 1.499) define a guerra da seguinte maneira:

A guerra é o estágio mais grave nas relações internacionais.


Ela é um ilícito ou mesmo um crime internacional. Os con-
flitos armados que não são guerras não obrigam os tercei-
ros Estados ao estatuto de neutralidade, os tratados entre
as partes em luta não são suspensos ou rompidos, nem há
necessariamente o rompimento de relações diplomáticas.
A guerra é um status jurídico que foi definido em uma evo-
lução durante séculos. O conflito armado é uma noção hu-
manitária que surge no século XX. Ele não rompe o status
de Paz.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
423
Finalmente, conceito mais completo é trazido por Dinstein
(2004, p. 21): “Guerra é a intenção hostil entre dois ou mais Estados,
seja num sentido técnico ou material.” Mais adiante, explica que:
“A guerra no sentido técnico é o status formal produzido por uma
declaração de guerra. A guerra no sentido material é gerada pelo uso
da força armada, que deve ser extensiva e realizada por pelo menos
uma das partes em conflito”.
Entre os anos 1864 e 1949 as Convenções de Genebra foram
elaboradas na Suíça, cujos textos definem as normas para as leis
internacionais relativas ao Direito Internacional Humanitário, pres-
crevendo os direitos e deveres de pessoas, combatentes ou não, em
tempo de guerra, visando, portanto, proteger os seres humanos que
de alguma maneira estejam envolvidos em conflitos armados (CICR,
2002, p. 6-8).

3 O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO


3.1 Evolução histórica
Primariamente, as regras que regulavam os conflitos arma-
dos não eram escritas, eram baseadas unicamente nos costumes.
Após, surgiram acordos geralmente bilaterais, ratificados muitas
vezes depois de findo os conflitos. Estas leis aplicadas em conflitos
armados variavam muito, dependendo muitas vezes do período em
questão, da população, do local, entre outros fatores. Ademais, na
maioria das vezes, tais acordos só eram aplicáveis em um conflito
específico (ICRC, 2002, p. 8).
É notável, portanto, que até meados do século XIX, acordos
cujo objetivo era proteger as vítimas da guerra obrigavam unicamen-
te as partes contratantes e, na maioria das vezes aconteciam de for-
ma ocasional e eram válidos somente enquanto perdurava o conflito
(BORY, 1982).

424 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
O Direito Humanitário Contemporâneo tem sua gênese em
1859 na Itália, no campo de batalha de Solferino. Durante esta
batalha, Henry Dunant testemunhou acontecimentos cruéis, e se
indignou com o abandono das centenas de soldados feridos. De-
cidiu então, organizar o socorro e a assistência aos feridos (CICR,
2002, p. 7).
Após a batalha, Dunant escreveu o livro Lembrança de Sol-
ferino, descrevendo as atrocidades do campo de batalha. Além
disso, Dunant apresentou suas idéias acerca de como melhorar a
assistência aos feridos. Tinha basicamente três propostas: fundar
em cada país sociedades de socorro para assistir os feridos da guer-
ra, isso porque, nestas situações, os serviços médicos eram em sua
grande parte insuficientes; considerar “neutros” os feridos durante
o combate, assim como os médicos e equipamentos de assistência
e; propor um tratado de força internacional, que garantisse o cum-
primento das medidas mencionadas, garantindo a proteção dos fe-
ridos e do pessoal médico (TRINDADE; PEYTRIGNET; SANTIAGO,
2004).
Descreve detalhadamente Valladares (2006, p. 123-124):

Em 24 de junho de 1859, o cidadão suíço Jean Henri Du-


nant encontra-se em Lombardia, norte da Itália, onde o
exército francês combatia o austríaco, nas proximidades
de Solferino. Dunant havia viajado até o lugar mencionado
para entrevistar o Imperador Napoleão III da França, com
a esperança de conseguir seu apoio em alguns projetos de
índole pessoal.
A batalha cruel deixou milhares de feridos, que por insufi-
ciência de corporações médicas de seus próprios exércitos,
não recebiam a atenção adequada.
Dunant, comovido pelo triste espetáculo de corpos mutila-
dos, de vozes febris que imploravam por ajuda, começou de
imediato a socorrer os feridos e os enfermos com a colabo-
ração dos habitantes do povoado de Castiglione, dissipando

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
425
socorro mais adiante de bandeiras, uniformes distintos ou
qualquer discriminação de índole desfavorável.
De volta a Genebra, concretizou as impressões vividas em
um livro: “Lembrança de Solferino”.

A obra de Dunant teve grande repercussão e, no ano de 1863


formou-se o “Comitê Internacional de Socorros aos Feridos”, com-
posto por cinco membros: Gustave Moynier, Guilaume-Henri Dufo-
ur, Louis Appia, Théodore Maunoir e o próprio Dunant. Mais tarde
este comitê foi o fundador da Cruz Vermelha e promoveu as Con-
venções de Genebra. Em 1880, a organização ficou conhecida como
Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR, 2002, p.7).
Nas palavras de Valladares (2006, p. 130-131),

[...] o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), é uma


organização imparcial, neutra e independente que tem a
missão exclusivamente humanitária de proteger a vida e a
dignidade das vítimas dos conflitos armados e de certas si-
tuações de violência interna, assim como de prestar-lhes as-
sistência. Também, procura prevenir o sofrimento mediante
a promoção e o fortalecimento do direito internacional hu-
manitário e seus princípios universais.

Portanto, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha visa pro-


teger primordialmente as vítimas dos conflitos armados, sejam elas
militares ou civis, destacando-se as seguintes tarefas: visitar prisio-
neiros de guerra e detidos civis, procurar pelas pessoas tidas como
desaparecidas, manter o contato entre famílias que foram separadas
por conflitos e posteriormente reuni-las, prover água, alimentos e
assistência médica aos civis, divulgar o Direito Internacional Huma-
nitário e zelar por sua aplicação.

O Conselho Federal Suíço convocou, em 1864, uma Confe-


rência Diplomática em Genebra que teve a participação de dezesseis
Estados. Durante esta Convenção foi adotado o texto da primeira

426 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Convenção de Genebra que visa proteger os feridos e os doentes das
forças armadas em conflito. No ano de 1866, uma batalha naval em
Lyssa fez nascer a Convenção para proteção do militar náufrago que
foi adotada em Haia em 1907. Posteriormente, a Primeira Guerra
Mundial demonstrou a necessidade de se proteger os prisioneiros
de guerra, nascendo em 1929, a Convenção sobre a proteção dos pri-
sioneiros de guerra. Já em 1949 em uma Conferência Suíça, foram
revisadas as três convenções anteriores e nasceu a quarta convenção,
relativa à proteção dos civis em tempos de guerra (VALLADARES,
2006, p. 124-126).
Nesse sentido, afirmou Sousa (2007, p. 52):

Na segunda metade do século XIX acontece o que se pode


chamar de ‘fato gerador’ do moderno Direito Internacional
Humanitário: o nascimento do CICV. Através da iniciativa de
determinados cidadãos e do governo suíço, catorze delegados
de países europeus presentes a uma Conferência Internacio-
nal realizada em Genebra resolveram adotar um corpo de
normas que vincularia os Estados em situações de conflito.

As Convenções de Genebra são, portanto, os principais docu-


mentos que disciplinam os conflitos armados.

3.2 Conceito e características


O Direito Internacional Humanitário nasceu da necessidade
de proteção dos indivíduos durante conflitos armados internacio-
nais ou não-internacionais, sendo parte, portanto, do Direito Inter-
nacional Público (ICRC, 2002, p. 4-7). Nas palavras de Mello (1997,
p. 137): “Talvez se possa definir o Direito Internacional Humanitário
como o sub-ramo do Direito Internacional Público Positivo que inte-
gra o Direito Internacional dos Direitos Humanos, tendo por finali-
dade proteger a pessoa humana em conflitos armados”.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
427
O Direito Internacional Humanitário é um conjunto de regras
que, em tempos de guerras e conflitos, procura proteger aqueles que
não são parte do conflito (civis) ou aqueles que já foram partes do
conflito (soldados feridos).
De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha
(2002, p. 14):

O direito internacional humanitário, denominado também


direito dos conflitos armados ou direito de guerra, é o con-
junto de normas que, em tempo de guerra, permite prestar
proteção as pessoas que não participam ou deixaram de par-
ticipar das hostilidades, assim como limitar os métodos e os
meios de fazer a guerra. Sua finalidade principal é limitar e
prevenir os sofrimentos do ser humano em tempo de conflito
armado.

Uma definição mais abrangente é trazida por Swinarski


(1990, p. 31):

O Direito Internacional Humanitário é um conjunto de nor-


mas internacionais, de origem convencional ou consuetudi-
nária, especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos
armados, internacionais ou não-internacionais, e que limi-
ta, por razões humanitárias, o direito das partes em conflito
escolherem livremente os métodos e os meios utilizados na
guerra (Direito de Haia) ou que protege as pessoas e os bens
afetados (Direito de Genebra).

A função primordial deste ramo do direito é organizar as re-


lações entre os Estados em situação de hostilidade com o intuito
de proteger os indivíduos em situação de violência. Essas normas
impõem obrigações aos Estados, a grupos armados, a organizações
internacionais e, inclusive, aos indivíduos.
As principais fontes do Direito Internacional Humanitário
são os tratados internacionais, as normas consuetudinárias, os prin-

428 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
cípios gerais do direito e a jurisprudência dos Tribunais Internacio-
nais (SOUSA, 2002, p. 413).
As regras essenciais do Direito Internacional Humanitário
são:
a) as partes conflitantes devem distinguir os combatentes
da população civil; nenhum civil deve ser atacado;
b) os ataques devem ser somente contra alvos militares,
sendo proibido matar ou ferir adversário que já tenha se
rendido ou que não mais seja parte da guerra;
c) os meios e métodos de guerra não são de livre escolha
para os Estados em conflito nem para suas forças arma-
das. É expressamente proibido o uso de armas ou mé-
todos que causem perdas desnecessárias ou sofrimento
excessivo;
d) os feridos e doentes devem ser recolhidos e tratados pela
parte conflitante que os tem em seu poder e, o pessoal e
os equipamentos médicos devem ser poupados;
e) os civis em poder do Estado inimigo ou os combaten-
tes capturados devem ter sua dignidade, sua vida e suas
crenças respeitadas. Eles tem direito a se comunicar com
suas famílias, a tratamento médico e as garantias judi-
ciais básicas.
Ademais, os princípios essenciais do Direito Internacional
Humanitário, são:
a) cláusula de Martens: preconiza que tanto os civis quanto
os combatentes ficam sob a autoridade e a proteção dos
princípios de direito internacional mesmo nas situações
não previstas;
b) estatuto jurídico das partes: respeitar ou aplicar as nor-
mas de Direito Internacional Humanitário não implica
estar em guerra, ou seja, a aplicabilidade destas normas
não afeta o status jurídico dos Estados;
c) princípio da inviolabilidade: são invioláveis a vida, a in-
tegridade física, moral, as convicções religiosas e pessoais

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
429
das vítimas dos conflitos (pessoas afetadas pelas hostili-
dades);
d) princípio de não discriminação: não pode haver discrimi-
nação por motivo de raça, sexo, nacionalidade, opinião
religiosa ou política dos adversários feridos ou prisionei-
ros;
e) princípio da segurança: ninguém pode renunciar aos di-
reitos conferidos pelas Convenções, representando isso
que sempre será garantido a permanência da legalidade
jurídica mínima em qualquer situação;
f) princípio da neutralidade: diz respeito à assistência aos
feridos. O pessoal sanitário não é considerado parte do
conflito, devendo portanto serem imunes a ataques des-
de que se abstenham de qualquer ato de hostilidade;
g) princípio de limitação: diz respeito a limitar os meios e
os métodos de combate, no sentido de distinguir civis de
combatentes, proteger edifícios históricos ou religiosos e
proibir meios desleais de combate como armas que cau-
sem danos excessivos e desnecessários.

O Direito Internacional Humanitário possui algumas peculia-


ridades na sua aplicação quais sejam: suas normas são de natureza
imperativa; os Estados Partes das Convenções de Genebra têm não
só a obrigação de respeitar suas normas como também fazê-las res-
peitar e, finalmente, não há condição de reciprocidade nas Conven-
ções, ou seja, o fato de um Estado Parte não respeitar seus deveres
não permite que se adversário faça o mesmo. Ademais, destaca-se
que, cabe aos Estados partes das Convenções de Genebra cumprir
as normas de Direito Humanitário assim como exigir que outros
Estados as respeitem; também, devem os Estados disseminarem o
conhecimento acerca deste ramo do direito para a população civil e
militar (SOUSA, 2002, p. 414-417).

430 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
4 PRISIONEIROS DE GUERRA E A PROTEÇÃO
CONFERIDA PELAS CONVENÇÕES DE
GENEBRA
Na Antiguidade, o tratamento que recebiam os prisioneiros
de guerra era extremamente desumano. Tinha-se como regra geral
matá-los ou transformá-los em escravos; a exceção era libertá-los.
Somente com o advento do Cristianismo que este tratamento come-
çou a se humanizar (MELLO, 2000, p. 1.537).
A partir do Século XIX, firmou-se o princípio de que o captu-
rador deveria tratar o prisioneiro do mesmo modo que tratava suas
próprias tropas (MELLO, 2000, p. 1.538).
Assinada em 1949, a Terceira Convenção de Genebra regula o
tratamento dos prisioneiros de guerra. Esta Convenção não se aplica
apenas ao estado guerra, mas em qualquer tipo de conflito arma-
do. A regulamentação não alcança somente as forças armadas, mas
também as milícias, os movimentos de resistência, etc. Os direitos
que esta Convenção concede aos prisioneiros são irrenunciáveis. Im-
portante enfatizar também que a violação das leis da guerra por par-
te do combatente não lhe retira o estatuto de prisioneiro de guerra
(MELLO, 2000, p. 1.538-1.540).
O artigo 4º da Terceira Convenção de Genebra regula o es-
tatuto do prisioneiro de guerra clássico. Seu princípio geral é que
qualquer membro das forças armadas de uma Parte em conflito é
combatente e qualquer combatente capturado pela Parte adversária
será prisioneiro de guerra (CICV, 1992, p. 63-65).
Destaca o Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de
12 de agosto de 1949, relativo à proteção das vítimas dos conflitos
armados internacionais (Protocolo I) que, qualquer pessoa que for
capturada participando das hostilidades será considerada prisionei-
ro de guerra e como tal tratada, mesmo em caso de dúvida quanto
ao seu estatuto. Conforme o artigo 45 deste Protocolo (CICV, 1998,
p. 36-37):

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
431
ARTIGO 45 – Proteção das pessoas que tomam parte nas
hostilidades
1. Aquele que tomar parte em hostilidades e cair em poder de
uma Parte adversa será considerado prisioneiro de guerra e,
em consequência estará protegido pela III Convenção, quan-
do reivindicar o estatuto de prisioneiro de guerra, ou contar
que possui direito ao estatuto de prisioneiro de guerra, ou
quando a Parte de que depende reivindicar para ele esse es-
tatuto, por notificação à Potência que o detém ou à Potência
Protetora. Se existir alguma dúvida sobre o seu direito ao es-
tatuto do prisioneiro de guerra, ele continuará a se beneficiar
desse estatuto e, consequentemente da proteção da III Con-
venção e do presente Protocolo, enquanto estiver à espera da
determinação do seu estatuto por um tribunal competente.
2. Se uma pessoa em poder de uma Parte adversa não for
detida como prisioneiro de guerra e tiver de ser julgada por
essa Parte por uma infração ligada às hostilidades, fica ha-
bilitada a fazer valer seu direito ao estatuto de prisioneiro
de guerra perante um tribunal judicial e a obter uma deci-
são sobre essa questão. Sempre que as regras de processo
aplicáveis o permitam, a questão deverá ser decidida antes
de julgada a infração. Os representantes da Potência Prote-
tora têm direito de assistir aos debates em que essa questão
for decidida, salvo no caso excepcional em que os debates
ocorrerem a portas fechadas, por razões de segurança do
Estado. Neste caso, a Potência Detentora deverá avisar a
Potência Protetora.
3. Todo aquele que, tendo tomado parte nas hostilidades, não
tiver direito ao estatuto de prisioneiro de guerra e não se be-
neficiar de um tratamento mais favorável, em conformidade
com a IV Convenção, terá em qualquer momento direito à
proteção do artigo 75 do presente Protocolo. Em território
ocupado, e salvo no caso de detenção por espionagem, ele se
beneficiará, igualmente, não obstante o disposto no artigo
5 da IV Convenção, dos direitos de comunicação previstos
naquela Convenção.

Desta feita, possível constatar que o princípio basilar acer-


ca dos prisioneiros de guerra contido na Terceira Convenção de Ge-

432 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
nebra ressalta que qualquer pessoa que for capturada participando
das hostilidades deve ser considerada prisioneiro de guerra e tratada
como tal, até mesmo em caso de dúvida quanto ao seu estatuto. Tal
medida visa, principalmente, evitar qualquer tipo de atitude arbitrá-
ria à época da captura.
Acerca do tema preceitua o artigo 5º da Terceira Convenção
de Genebra: “Se houver dúvida quanto ao enquadramento em uma
das categorias enumeradas no artigo 4 de pessoas que tiverem co-
metido um ato beligerante e caírem em poder do inimigo, tais pes-
soas se beneficiarão da proteção deste Convênio, aguardando que
um tribunal competente determine o seu estatuto” (CICV, 1992,
p. 65).
Ademais, é importante ressaltar que a Convenção proíbe ex-
pressamente em seu artigo 7º que os prisioneiros de guerra renun-
ciem, seja total ou parcialmente, os direitos que lhes são conferidos
por ela.

4.1 Direitos dos prisioneiros de guerra


O primeiro grande princípio concernente aos direitos dos pri-
sioneiros de guerra diz respeito ao fato que os prisioneiros estão em
poder da Potência inimiga, e não dos indivíduos que os capturaram.
Portanto, a Potência detentora sempre será a responsável pelo tra-
tamento que for dado aos prisioneiros em seu poder, independente-
mente de quaisquer responsabilidades individuais que possam vir a
existir (CICV, 1992, p. 67).
A Convenção também preceitua a importância do tratamento
humano que deve ser dado aos prisioneiros. Deverá sempre haver o
respeito à pessoa e à honra dos prisioneiros e proteção destes contra
atos de violência, intimidação ou insultos.
Destaca o artigo 13 da Terceira Convenção de Genebra que
“[...] nenhum prisioneiro de guerra poderá ser submetido a qual-
quer mutilação física, a experiência médica ou científica de qualquer

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
433
natureza que não se justifique pelo tratamento médico do prisionei-
ro e que não seja em seu interesse” (CICV, 1992, p. 67).
Também, é obrigatório que a Potência detentora forneça gra-
tuitamente aos prisioneiros o necessário para o seu sustento e a as-
sistência médica necessária ao seu estado de saúde, e trate todos os
prisioneiros igualmente sem nenhuma distinção de caráter desfavo-
rável, ressalvadas aquelas necessárias ante ao estado de saúde, idade
ou qualificação profissional dos prisioneiros (CICV, 1992, p. 68).
Desta maneira, sendo a Potência detentora a responsável pelo
tratamento oferecido aos prisioneiros, deverá ela prover as condições
materiais e sociais mínimas para uma vivência digna por parte dos
detentos durante o período de reclusão.

4.2 Condições de internamento


A Potência detentora é a responsável pelas condições viáveis
de internamento, sendo considerado pela Convenção uma infração
grave qualquer tipo de atitude que venha resultar em perigo a saúde
ou até mesmo a morte dos prisioneiros.
Conforme destaca Omedas (2003), “a organização de um
campo de prisioneiros está regulada muito ordenadamente na Ter-
ceira Convenção de Genebra tanto em seus aspectos logísticos de
localização e infraestrutura como em seu regime de vida e funciona-
mento que compreende, por sua vez, os regimes interiores, assisten-
cial, laboral, penal e disciplinário”.
De acordo com o artigo 25 da Convenção, o local de interna-
mento dos prisioneiros de guerra deve estar localizado em terra fir-
me onde seja possível proporcionar as devidas condições de higiene
e salubridade (CICV, 1992, p. 72).
Deverá haver nos campos uma estrutura mínima que garanta
a existência de locais separados para dormitórios, banheiros, cozi-
nha, refeitórios e locais para assistência médica.

434 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Os dormitórios devem ter condições de habitação digna, com
circulação de ar, proteção contra umidade e frio e a devida ilumina-
ção, além, inclusive, de mobília suficiente e material apropriado para
dormir (CICV, 1992, p. 72).
Dispõe o artigo 26 que a alimentação diária deverá ser sufi-
ciente tanto em quantidade quanto em qualidade e variedade, vi-
sando primordialmente a mantença do bom estado de saúde dos
prisioneiros além de evitar perda de peso. A água potável deverá
estar sempre disponível (CICV, 1992, p. 72).
Ademais, o artigo 28 da Terceira Convenção de Genebra obri-
ga a existência, em todos os campos de prisioneiros, de cantinas
onde os prisioneiros possam adquirir produtos alimentares, objetos
de uso corrente, sabão e tabaco (CICV, 1992, p. 73).
O vestuário completo deve ser fornecido pela Potência deten-
tora em quantidade suficiente, devendo ser levado em consideração o
clima da região onde se encontram os prisioneiros (CICV, 1992, p. 72).
Quanto à higiene, preceitua o artigo 29 que é responsabilida-
de da Potência detentora assegurar que os campos sejam limpos e
insalubres, evitando assim epidemias. Deverá haver instalações apro-
priadas para banho com disponibilização de água e sabão suficiente
para a higiene pessoal e lavagem de roupas. (CICV, 1992, p. 73).
Deverá haver enfermaria adequada em todos os campos e os
prisioneiros deverão receber todos os cuidados médicos que neces-
sitem, devendo as despesas ser assumidas pela Potência detentora
(CICV, 1992, p. 73-74).

4.3 Condições morais e psicológicas do


internamento
A Convenção de Genebra não se preocupa somente com os
proventos materiais dos prisioneiros de guerra, mas, também traz
disposições acerca do estado moral e psicológico dos prisioneiros.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
435
Aos prisioneiros de guerra é assegurada total liberdade para o exercício
de sua religião, devendo haver locais adequados e reservados para os
ofícios religiosos.

Deverá também haver o desenvolvimento de atividades es-


portivas e intelectuais, procurando evitar a monotonia e incentivar
o convívio social, conforme o disposto no artigo 38 da Terceira Con-
venção de Genebra (CICV, 1992, p. 76):

Artigo 38. Embora respeitando as preferências individuais


de cada prisioneiro, a Potência detentora deverá encorajar
as atividades intelectuais, educativas, recreativas e des-
portivas dos prisioneiros de guerra; deverá tomar medidas
necessárias para assegurar o exercício dessas atividades e
colocar a sua disposição locais adequados e o equipamento
necessário.
Os prisioneiros de guerra deverão ter a possibilidade de pra-
ticar exercícios físicos, incluindo esportes e jogos, e desfrutar
de ar livre. Para isso, deverão ser reservados espaços livres
suficientes em todos os campos.

A Terceira Convenção de Genebra também confere a Potência


detentora a possibilidade de empregar os prisioneiros de guerra que
se encontram sob sua responsabilidade.
Conforme destaca o Comitê Internacional da Cruz Vermelha
(1983, p. 27): “[...] o trabalho é limitado por uma série de normas
bastante estritas, evitando-se assim que o trabalho realizado pelos
prisioneiros se degenere em exploração desumana ou em participa-
ção imoral na atividade bélica da Potência Detentora”.
Segundo disposições da Convenção, os prisioneiros de guerra
poderão ser empregados nos serviços relacionados com a adminis-
tração, instalação ou manutenção do próprio campo, ou em traba-
lhos que se incluam nas seguintes categorias: agricultura, indús-
trias de produção, extração e manufatura (excetuada as indústrias

436 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


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mecânicas e químicas ou serviços de caráter militar), transportes e
manutenção sem caráter militar, atividades comerciais ou artísticas,
serviços domésticos e serviços públicos sem caráter militar. Qualquer
trabalho não incluído nestas categorias é vedado. Ademais, as condi-
ções de trabalho devem ser adequadas à função que é exercida pelo
prisioneiro (CICV, 1992, p. 79-80).
Quando a Potência detentora empregar prisioneiros, deverá
aplicar as leis nacionais de proteção ao trabalho e segurança dos tra-
balhadores. A duração diária do trabalho não poderá ser excessiva,
devendo haver intervalo de no mínimo uma hora.
A Convenção também preza pela saúde e segurança dos pri-
sioneiros trabalhadores, conforme destaca o artigo 52 da Convenção
(CICV, 1992, p. 80):

Nenhum prisioneiro de guerra poderá ser submetido a ser-


viços de caráter insalubre ou perigoso, salvo no caso de ser
voluntário. Ele não poderá ser submetido a um serviço consi-
derado humilhante para um membro das forças armadas da
Potência detentora. A remoção de minas e de outros dispo-
sitivos análogos é considerada como um trabalho perigoso.

Ademais, deverá ser aberta conta em nome dos prisioneiros,


onde ficará o dinheiro proveniente dos trabalhos prestados, deven-
do esse valor ser repassado ao prisioneiro quando do término do
cativeiro.
A Convenção também assegura aos prisioneiros o direito de
enviar e receber cartas e mensagens pessoais. Se a Potência deten-
tora julgar necessário limitar as correspondências, deverá ser auto-
rizado aos prisioneiros o envio de no mínimo duas cartas e quatro
mensagens por mês. (art. 71 da III Convenção de Genebra).
De acordo com Omedas (2003):

Uma parte muito importante do sistema de proteção resi-


de no estabelecimento de uma rede de informação que trata

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
437
de manter, desde o primeiro momento, um contato estável,
continuado e organizado entre o prisioneiro e sua família.
Já desde o começo das hostilidades, cada parte em conflito
constituirá uma Oficina Nacional de Informação que canali-
zará a informação recebida relativa aos prisioneiros feridos,
enfermos e desaparecidos tanto próprios como inimigos e
também relativa a combatentes falecidos cujos restos te-
nham sido recolhidos.

Além disso, conforme ressalta o artigo 72 da mesma Con-


venção (CICV, 1992, p. 87), os prisioneiros de guerra podem receber
remessas contendo,

[...] gêneros alimentícios, vestuários, medicamentos e arti-


gos destinados a satisfazer suas necessidades em matéria de
religião, estudo ou lazer, incluindo livros, objetos de culto,
material científico, formulários de exame, instrumentos mu-
sicais, material esportivo e material que lhes permita prosse-
guir seus estudos ou exercer uma atividade artística.

As correspondências recebidas ou enviadas a prisioneiros de


guerra podem ser censuradas tanto pelo Estado remetente quanto
pelo Estado destinatário, devendo obedecer às seguintes premissas,
conforme enfatiza o artigo 76 da Terceira Convenção de Genebra
(CICV, 1992, p. 89):

Artigo 76. A censura da correspondência expedida ou recebi-


da pelos prisioneiros de guerra deverá ser feira o mais rapi-
damente possível. Só poderá ser feita pelos Estados remeten-
te e destinatário, uma única vez para cada um deles.
O controle das remessas destinadas aos prisioneiros de guer-
ra deverá ser efetuado de modo a não prejudicar a conserva-
ção dos gêneros que contiverem; a menos que se trate apenas
de textos escritos ou impressos, será feito na presença do
destinatário ou de um companheiro devidamente autorizado
por ele. A entrega das remessas individuais ou coletivas aos
prisioneiros de guerra não poderá ser retardada sob o pretex-
to de dificuldades de censura.

438 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Qualquer proibição de correspondência promulgada pelas
Partes em conflito, por razões militares ou políticas, só pode-
rá ser temporária e com menor duração possível.

Portanto, é direito dos capturados em combate se comunicar


com o exterior, tendo pleno direito de receber tanto cartas quanto gê-
neros que possam melhorar sua qualidade de vida durante a detenção.

4.4 RELACIONAMENTO DOS PRISIONEIROS COM


AS AUTORIDADES E DISCIPLINA
Em todos os locais onde houver acampamentos de prisio-
neiros é direito destes eleger livremente, de seis em seis meses, re-
presentante de sua confiança que terá a função de representá-los
perante as autoridades militares, as Potencias protetoras, o Comitê
Internacional da Cruz Vermelha, etc. (CICV, 1992, p. 90-91).
Além disso, todo e qualquer prisioneiro tem o direito de apre-
sentar, diretamente, petições dirigidas às autoridades militares rela-
tivas às suas condições em cativeiro. Essas petições ou queixas não
podem de modo algum serem limitadas devendo, inclusive, serem
transmitidas com urgência. Ressalta-se também que estas petições
não podem ensejar nenhum tipo de punição ao prisioneiro reme-
tente, tudo em conformidade com o artigo 78 da III Convenção de
Genebra (CICV, 1992, p. 90).
Sendo assim, os prisioneiros de guerra podem tanto se auto-
-representarem perante as autoridades como escolherem um repre-
sentante para tal.
Já o Capítulo VI da Terceira Convenção de Genebra trata das
normas disciplinares dos prisioneiros de guerra.
Todos os campos de prisioneiros estarão sempre sob a autori-
dade direta de um oficial das forças armadas regulares da Potência
detentora. Este oficial deverá ter completo conhecimento das Con-
venções de Genebra e velar por sua aplicação.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
439
Deverá haver a disposição de todos os prisioneiros de guerra
o texto da III Convenção de Genebra em um idioma que possam
compreender. Qualquer tipo de regulamento, aviso ou ordem dirigi-
da aos prisioneiros também deverá ser disponibilizada em idioma de
sua compreensão (CICV, 1992, p. 77).
O uso de armas contra prisioneiros é permitido, especialmen-
te em casos de tentativa de fuga. Entretanto, tal uso deverá ser res-
trito somente a casos extremos.
4.5 Sanções
O princípio geral acerca do direito aplicável aos prisioneiros
de guerra encontra-se consagrado no artigo 82 da Terceira Conven-
ção de Genebra (CICV, 1992, p. 92):

Art. 82. Os prisioneiros de guerra estão sujeitos às leis, re-


gulamentos e ordens em vigor nas forças armadas da Po-
tência detentora. Esta será autorizada a tomar medidas ju-
diciais ou disciplinares em relação a qualquer prisioneiro
de guerra que tenha cometido uma infração a essas leis,
regulamentos ou ordens. No entanto, não é permitido qual-
quer procedimento ou sanção contrários às disposições do
presente capítulo.
Os atos que forem considerados puníveis pelas leis, regula-
mentos e ordens da Potencia detentora quando cometidos
por prisioneiros de guerra, e que não sejam assim conside-
rados quando cometidos por membros das forças armadas
dessa Potência, só poderão ser objeto de sanções discipli-
nares.

O artigo 83 da Convenção traz uma cláusula geral de tole-


rância para os casos em que houver dúvida entre a aplicabilidade da
punição disciplinar ou judicial, devendo sempre dar preferência às
medidas disciplinares ao invés das medidas judiciais.
Os prisioneiros deverão ser julgados por tribunais militares e
nunca poderão ser punidos mais de uma vez pela mesma infração.

440 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Ademais, não poderão em hipótese alguma ser condenados a penas
diferentes das previstas para as mesmas faltas quando cometidas
por membros das forças armadas da Potência detentora. ( conforme
artigo 87 da III Convenção de Genebra). As penas nunca durarão
mais que trinta anos.
Destaca o artigo 89 que “em caso algum as penas poderão
ser desumanas, brutais ou prejudiciais à saúde dos prisioneiros de
guerra” (CICV, 1992, p. 94).
Em casos de faltas disciplinares haverá inquérito imediato.
As penas disciplinares só poderão ser impostas por oficial munido de
poder disciplinar, na qualidade de comandante do campo. Em caso
de pronuncia de pena disciplinar o prisioneiro deve ser informado
das acusações feitas e deverá ter a oportunidade de se defender.
Por conseguinte, é possível auferir que mesmo nos casos em
que houver cometimento de infrações por parte dos prisioneiros de
guerra, estes deverão ser penalizados de forma justa e equânime,
sem que a sanção lhes cause prejuízos a sua integridade física.

4.6 Garantias jurídicas


As garantias judiciais dos prisioneiros de guerra são aquelas
já consagradas no âmbito do direito internacional: o prisioneiro
terá informação completa e sem demora das infrações das quais
está sendo acusado, irretroatividade da lei penal, presunção de ino-
cência, ausência de coerção para qualquer tipo de confissão, julga-
mento na presença do acusado, direito a representação por advoga-
do de sua escolha e direito ao contraditório e ampla defesa (CICV,
1983, p. 30).
Poderá haver culminação de pena de morte se o crime co-
metido for punido com tal pena na Potência detentora. Ao proferir
a pena de morte o tribunal deverá levar em conta que o prisioneiro
não é um nacional da Potência detentora e não está ligado a ela por
nenhum vínculo de fidelidade. Ademais, a pena de morte somente

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
441
poderá ser executada no mínimo seis meses após o envio da comuni-
cação detalhada da condenação para a Potência protetora, conforme
destaca o artigo 101 da Convenção (CICV, 1992, p. 97).
A sentença proferida contra um prisioneiro de guerra somen-
te será válida se provier dos mesmos tribunais e seguir os mesmos
procedimentos aos quais os membros das forças armadas da Potên-
cia detentora estão submetidos, sendo clara a não aceitação da cria-
ção de tribunais ad hoc para este fim.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dos maiores desafios do mundo moderno é a busca pela
paz e pela relação amigável entre os povos e nações, busca essa cor-
roborada pela decisão dos povos explicitada no Preâmbulo da Carta
das Nações Unidas de “preservar as gerações vindouras do flagelo da
guerra”. (NAÇÕES UNIDAS, 2001, p. 8)
A guerra, desde a Antiguidade, serviu como um dos princi-
pais meios das nações alcançarem seus objetivos e, lamentavelmen-
te, ainda tem lugar nas sociedades modernas.
Quando a mantença da paz torna-se impossível, imprescin-
dível é a adoção de regras com o primordial objetivo de resguardar os
direitos fundamentais do todos aqueles envolvidos voluntária ou in-
voluntariamente na guerra. Neste sentido, afirmou Borges (2006, p.
30): “A partir do momento em que a voz da razão se cala e as normas
do direito internacional público são desrespeitadas, surge à necessi-
dade de adotar um conjunto de regras mínimas com a finalidade de
atenuar os efeitos malignos da guerra”.
Inicialmente, os conflitos armados eram regulados pelos cos-
tumes e, em um segundo momento, passaram a existir acordos so-
mente entre as partes conflitantes e que vigiam apenas em quanto o
conflito subsistia.
Então, é que em meados do século XIX os esforços do Con-
selho Federal Suíço em Genebra criam o Comitê Internacional da

442 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Cruz Vermelha – gênese fundamental do Direito Internacional Hu-
manitário.
Foi também neste momento, no ano de 1864, que nasceu a
Primeira Convenção de Genebra, visando resguardar os direitos dos
militares feridos ou doentes.
Nos anos seguintes, mais três Convenções foram criadas com
o intuito de proteger todos aqueles que de alguma forma estivessem
envolvidos em conflitos armados.
Neste diapasão, a Terceira Convenção de Genebra objetiva de-
linear o tratamento mínimo que deve ser dispensado aos prisioneiros
de guerra em todos os aspectos: condições físicas, morais e psicológi-
cas de internamento, disciplina, sanções e garantias judiciais.
Tal Convenção justifica-se na constatação histórica do trata-
mento desumano que sempre sofreram os capturados pelo inimigo
em conflitos armados que, regra geral, eram mortos ou transforma-
dos em escravos.
Nesse contexto, com o objetivo de resguardar ao máximo a
dignidade da pessoa humana, a Terceira Convenção tem como princí-
pio fundamental que, até mesmo em caso de dúvida, toda e qualquer
pessoa capturada participando das hostilidades deverá ser considera-
da prisioneiro de guerra e estar, portanto, sob a égide da Convenção.
No final da década de setenta, dois Protocolos Adicionais as
Convenções de Genebra foram criados com o intuito de adequar as
normas as novas demandas da sociedade moderna.
Nota-se, então, que o desenvolvimento e a expansão do Di-
reito Internacional Humanitário são perenes tendo em vista a cons-
tante modificação da realidade social e os novos delineamentos do
mundo contemporâneo.
Por fim, importante considerar o caráter essencial do Direi-
to Internacional Humanitário que visa evitar o sofrimento, o caos e
barbárie absolutos, considerando que intenta essencialmente limi-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
443
tar os instrumentos e procedimentos usados em tempo de guerra
preservando o princípio mais aclamado pela sociedade internacional
globalizada: a dignidade da pessoa humana.

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
445
ZONA DE SEGURANÇA PARA REFUGIADOS:
ALTERNATIVA À QUESTÃO DOS
REFUGIADOS
Elisa Moretti Pavanello
Bacharel em Ciências Sociais pela UFSC, Bacharel em Direito pela FAMEG, mes-
tranda do curso de PPGRI/UFSC sob a orientação da Prof. Dra. Danielle Annoni.
Voluntária na ONG APHER. (eli_mp2003@yahoo.com.br)

Resumo:
O presente trabalho visa compreender o que é uma zona de segurança para refugiados den-
tro do país em que está ocorrendo o conflito. Ela é vista como uma alternativa ao fechamento
das fronteiras pelos Estados vizinhos que não querem abrigar um contingente volumoso de
refugiados. O artigo é divido em duas partes. O primeiro visa contextualizar historicamente
uma zona de segurança, destacando a zona de segurança em Nanking. Em seguida, será ana-
lisado o funcionamento de duas zonas de seguranças após o período da Guerra Fria, Iraque
e Srebrenica.

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Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Palavras-chave: zona de segurança para refugiados – massacre de Nanking – massacre de
Srebrenica – uso da força.

Sumário:
1. Introdução. 2. Contextualização da Zona de Segurança para refugiados. 2.1 Zona de
Segurança: Primórdios. 2.2 Normatização da Zona de Segurança: Quarta Convenção de Viena
de 1949. 2.3 Papel dos refugiados durante e depois da Guerra Fria. 3. Zona de Segurança:
Alternativa na proteção aos refugiados. 3.1 Busca de definição para Zona de Segurança. 3.2
Iraque: Primeira Zona de Segurança. 3.3 Massacre de Srebrenica: repetição da história. 4.
Considerações Finais. 5. Referências.

1 INTRODUÇÃO
Parte-se do princípio que nenhuma pessoa abandona a sua
terra, sua família, sua cultura por capricho. É uma decisão tomada
com base na sua sobrevivência como ser humano, a fim escapar das
violações dos direitos humanos e preservar a sua integridade física.
Dessa forma, quando o Estado receptor nega o direito de buscar um
lugar seguro, põe em risco à vida daquela pessoa.
A zona de segurança é uma alternativa quando o refugiado
não consegue abrigo em outro Estado. Na teoria, essa zona é um
lugar em que o indivíduo tem garantido certos direitos humanos
básicos como a vida, moradia, alimentação, direito de se locomover,
até que ele possa retornar ao seu lar em segurança.
Podem-se perceber os primórdios de uma zona de seguran-
ça antes da 2ª Guerra Mundial, tendo destaque a zona criada em
Nanking durante o conflito sino-japonês, em que ainda não havia
algum tipo de normatização que legitimasse o funcionamento de
uma zona de segurança. Essa legitimação ocorre com a incorpora-
ção do termo “zona de segurança” nas Convenções de Genebra de
1949, introduzindo esse termo no círculo do direito internacional
humanitário.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
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Durante o conflito de bipolaridade que vai marcar quase todo
o século XX, os refugiados tinham um papel estratégico dentro desse
contexto. Mas, após o fim desse período, eles começam a ser vistos
como um “estorvo”. Em vista disso, o funcionamento de uma zona
de segurança ganha cada vez mais força em se tornar uma alter-
nativa à situação de fechamento das fronteiras aos refugiados que
buscam abrigo em outros Estados, como aconteceu com os curdos
iraquianos.
Ao mesmo tempo, em que ela se torna uma alternativa para
proteger os refugiados, pode se tornar um “matadouro”, em que
uma das partes se aproveita do aglomero de refugiados e os atacam
como aconteceu na zona de segurança em Srebrenica.
No final do trabalho será apresentado o ponto de intersecção
entre as três zonas de segurança, Nanking, Iraque e Srebrenica e
porque somente no Iraque houve uma garantia real na proteção aos
refugiados que não houve nas outras duas.

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA ZONA DE
SEGURANÇA PARA REFUGIADOS
Esse tópico tem como finalidade compreender o que é uma
zona de segurança para refugiados, desde os primórdios com o sur-
gimento informal dessas zonas. Em seguida, houve a normatização
delas através da Convenção de Genebra de 1949. E, por último, o
papel que os refugiados representaram no contexto da Guerra Fria,
é como são vistos após com o fim desse período.

2.1 Zona de segurança: primórdios


Inicialmente, o conceito de zona de segurança não estava re-
lacionado com o fechamento das fronteiras estatais, mas sim, vin-
culado mais a questão humanitária, em garantir proteção aos civis
e ajudar os feridos e doentes oriundos de conflitos. (LONG, 2012).

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CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
E, o funcionamento de uma zona de segurança era realizado infor-
malmente, sem alguma base jurídica que as tutelassem, o que viria
ocorrer somente com as Convenções de Genebra de 1949.
No século XX, antes da 2ª Guerra Mundial, houve o funcio-
namento de três zonas de segurança: Madrid, Jerusalém, Nanking.
Será feita uma breve exposição das duas primeiras zonas. A primeira
foi em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, foram evacuadas
aproximadamente 700 mil crianças para áreas de segurança, a fim
de protegê-las dos mais novos armamentos bélicos daquela época,
as armas de longo alcance e os bombardeiros aéreos. Essas zonas
de seguranças eram denominadas de “colônias infantis” que foram
estabelecidas longe dos ataques, geralmente na costa ou nas mon-
tanhas. Mesmo nas “colônias”, as crianças continuavam estudando
(CANADÁ, Ministério dos Serviços Públicos). Jerusalém foi à se-
gunda zona de segurança criada em 1948, durante conflito Palesti-
no, procurando enviar, principalmente, mulheres e crianças para as
“áreas seguras”.
Nanking foi deixada por último, pois ela servirá de ponte
para análise da zona de segurança em Srebrenica (seção 2.3). Em
dezembro de 1937, estava em funcionamento uma zona de segu-
rança em Nanking294, a fim de abrigar chineses durante a Guerra
Sino-japonesa. Ela estava localizada na parte ocidental de Nanking
e a sua extensão era de 3,86 km (ASKEW, 2002). Ambos os Esta-
dos, Japão e China, acordaram em não atacar essa zona. Contu-
do, o governo japonês não cumpriu com o mesmo e atacou a zona
de segurança. Mas, não foi uma simples agressão, mas sim, um
genocídio em que milhares e milhares de chineses foram mortos,
dependendo do registro, o número de mortes pode variar entre 150
mil a 300 mil, por isso que esse ataque ficou conhecido como Mas-
sacre de Nanking (ASKEW, 2002). Destaca-se que não havia o uso

294
Há muita controversa entre os autores sobre à quantidade de mortos e as brutali-
dades cometidas na zona de segurança em Nanking durante a ocupação das tropas
japonesas.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
449
da força para proteger essa zona de segurança, pois a zona tinha
fins humanitários e como havia um acordo entre os beligerantes,
não havia a necessidade de se empregar a força para protegê-la.
Isso é um dado importante, pois a história irá se repetir quase 60
anos depois em Srebrenica.
As zonas são um refúgio para aqueles que buscavam abrigo,
pois estavam em perigo devido às operações militares nas redonde-
zas. A partir da menção de uma zona de segurança em um instru-
mento legal, como as Convenções de Genebra de 1949, o conceito de
zona de segurança torna-se parte do direito internacional humanitá-
rio que será realizado uma breve análise sobre essa legislação.

2.2 Normatização de zona de segurança: Quarta


Convenção de Genebra de 1949
A 2ª Guerra Mundial provocou uma proporção inimaginável
de feridos, doentes, desabrigados e refugiados que não tinham o am-
paro de instrumentos jurídicos que pudessem assisti-los durante um
conflito. Em 1949, foram elaboradas as Convenções de Genebra com
o objetivo de assistir todos os afetados pelos conflitos.
A Primeira Convenção de Genebra que se refere sobre a me-
lhoria das situações dos feridos e doentes das forças armadas em
Campanha estabelece em seu artigo 23295 a criação de zonas seguras.

295
I Convenção de Genebra de 1949, art. 23º: In time of peace, the High Contracting
Parties and, after the outbreak of hostilities, the Parties to the conflict, may estab-
lish in their own territory and, if the need arises, in occupied areas, hospital zones
and localities so organized as to protect the wounded and sick from the effects of
war, as well as the personnel entrusted with the organization and administration
of these zones and localities and with the care of the persons therein assembled.
Upon the outbreak and during the course of hostilities, the Parties concerned may
conclude agreements on mutual recognition of the hospital zones and localities
they have created. They may for this purpose implement the provisions of the Draft
Agreement annexed to the present Convention, with such amendments as they
may consider necessary. (grifo da autora)
The Protecting Powers and the International Committee of the Red Cross are invit-
ed to lend their good offices in order to facilitate the institution and recognition of
these hospital zones and localities. (ICRC, CONVENTION I).

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CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
E, a Quarta Convenção de Genebra, em seu artigo 14296 permite pela
primeira vez que um país possa criar zonas de segurança dentro de
seu território ou em território ocupado por um Estado, mesmo que
esteja ocorrendo um conflito. Mas, é imprescindível que o Estado em
questão reconheça tal zona, para que a mesma tenha efeito legal por
meio de um acordo oficial.
Os comentários sobre os conceitos utilizados pelas Convenções
explicam a escolha de certas palavras como “zona” que é um termo
“utilizado para descrever uma parte relativamente grande extensão de
campo e podem incluir um ou mais locais” (ICRC, CONVENTION I).

As Convenções de Genebra de 1949 são omissas em relação


a vários pontos, tais como: definição do conceito propriamente dito
do que é uma zona de segurança, sua utilidade, sua organização, os
procedimentos para supervisão. Essa omissão será refletida nos fun-
cionamentos das zonas de segurança após o período da Guerra Fria
que será abordado no próximo tópico.

2.3 Papel dos refugiados durante e depois da


Guerra Fria
Durante o período da Guerra Fria, a “aquisição” de refugia-
dos por um das superpotências era mais por questões de político-

296
VI Convenção de Genebra de 1949, art. 14º: In time of peace, the High Contracting
Parties and, after the outbreak of hostilities, the Parties thereto, may establish in
their own territory and, if the need arises, in occupied areas, hospital and safety
zones and localities so organized as to protect from the effects of war, wounded,
sick and aged persons, children under fifteen, expectant mothers and mothers of
children under seven.
Upon the outbreak and during the course of hostilities, the Parties concerned may
conclude agreements on mutual recognition of the zones and localities they have
created. They may for this purpose implement the provisions of the Draft Agree-
ment annexed to the present Convention, with such amendments as they may con-
sider necessary. (grifo da autora)
The Protecting Powers and the International Committee of the Red Cross are invit-
ed to lend their good offices in order to facilitate the institution and recognition of
these hospital and safety zones and localities (ICRC, CONVENTION IV).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
451
-estratégicas e de superioridade na rivalidade geopolítica. Para Bill
Frelick (1993)

[...] durante esse tempo, no entanto, os refugiados eram


muitas vezes tolerados, mesmo encorajados a deixar seus
países de origem, porque eles tinham um papel de apoio que
representavam no drama da Guerra Fria. [...] Muitas vezes,
eles faziam parte dos objetivos da política externa dos países
de acolhimento, pois podiam trabalhar para desetabilizar os
governos de seu países de origem, que o governo anfitrião e
seus patronos consideravam inimigos.

Após esse período, os refugiados297 passam a serem considera-


dos mais como “estorvos” do que uma “boa aquisição” (HYNDMAN,
2003). Essa mudança da política internacional trouxe novos proble-
mas a questão dos refugiados (DIN, 2010), entre eles o acirramento
das fronteiras estatais298 à entrada de refugiados, refletindo a nova
posição dos Estados anfitriões perante os refugiados. Desse modo, a
comunidade internacional passa a questionar sobre o que fazer com
os refugiados que não conseguem proteção em outro Estado e, ainda
estão correndo perigo se ficar dentro de seu Estado.
Os refugiados passaram a serem vistos como passivos pelos
Estados que os recebem, pois estes são obrigados pela Convenção de

297
É considerado refugiado, o indivíduo que receia “com razão de ser perseguido em
virtude de sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das
suas opiniões políticas, se encontra fora do país de que tem nacionalidade e não
possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou
que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência
habitual não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar”. (artigo
1º, parágrafo 2, Convenção de 1951).
298
Desde 1991 as seguintes fronteiras entre os países foram fechadas: Turquia e Ira-
que em 1991, Zaire e Ruanda em 1994 e 1996, Tanzânia e Burundi em 1995, Ruan-
da e Burundi em 1996, Macedônia e Kosovo em 1996, Todas as fronteiras Afeganis-
tão com seus vizinhos em 2000-2001, Chade e Sudão em 2006, Jordão e Iraque em
2006, Síria / Irão e Iraque em 2007, Malawi e Tanzânia em 2007, Quênia e Somália
em: 2007 e até hoje, Egito com a fronteira da Faixa de Gaza e Israel 2007 e até hoje,
República Democrática do Congo e Zâmbia em 2008, Arábia Saudita e Iêmen em
2009. (ACNUR, LONG, 2010, p. 4)

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1951 e pelo Protocolo de 1967299 a garantir certos direitos como mo-
radia, segurança, alimentação, saúde, trabalho aos refugiados que os
estrangeiros não têm. Assim, muitos Estados começaram a fechar as
suas fronteiras, para que os indivíduos não obtivessem o status de
refugiados.
Desse modo, o funcionamento de uma zona de segurança
vem se tornando uma alternativa quando o refugiado é impedido de
entrar em um Estado que será analisado a seguir.

3 ZONA DE SEGURANÇA: ALTERNATIVA NA


PROTEÇÃO AOS REFUGIADOS
Esse tópico tem o objetivo de definir o que é uma zona de
segurança, apesar de ainda não haver um consenso político e legal
sobre o tema. Em seguida, será feita uma sucinta exposição da pri-
meira zona de segurança criada após o período da Guerra Fria. E, por
último, a análise do emblemático caso de Srebrenica.

3.1 Busca de uma definição para zona de segurança


Uma das alternativas foi à criação de uma zona de segurança
para os refugiados. Essa zona é um espaço cedido pelo Estado que
está localizada dentro desse mesmo Estado em que está ocorrendo
o conflito sob a proteção de uma organização internacional, sendo
reconhecido como um território internacional (DIN, p.4, 2005) até o
fim do conflito ou do cessar-fogo. A finalidade da zona de segurança
é proteger e garantir os direitos básicos aos indivíduos que não fa-
zem parte do conflito. Até que ponto o funcionamento de uma zona

299
A Convenção de Genebra de 1951 - Relativa ao Estatuto dos Refugiados que dis-
põe exclusivamente sobre refugiados. Ela teve, até aquele presente momento, o
maior progresso em relação ao Direito Internacional dos Refugiados, pois, pela
primeira vez, houve a definição geral para o termo de refugiado. E, o Protocolo
de 1967 excluiu o marco temporal e espacial que delimitava a abrangências de
pessoas tuteladas por aquela Convenção, tornado esta de “caráter verdadeira-
mente universal”.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


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453
de segurança é uma alternativa efetiva sem um marco regulatório
que define as diretrizes, os parâmetros que devem ser respeitados
por todas as partes envolvidas?
A definição para “um lugar em que as pessoas estão protegi-
das do conflito, sem saírem de seu próprio Estado” tem diferentes
variantes300, não havendo um consenso em torno de uma definição
política e legal. Inclusive, pode ser uma nova categoria analítica nas
relações internacionais. Nesse trabalho será utilizado o conceito de
“zona de segurança”, definição legal adotada pelo Direito Interna-
cional Humanitário e que se encontra no artigo 14, da Quarta Con-
venção de Genebra de 1949 e o Primeiro Protocolo Adicional de 1977
aborda questões de “localidades e zonas de proteção especial”. E,
também, o Conselho de Segurança das Nações Unidas utiliza o ter-
mo “zonas de segurança” (HYNDMAN, 2003).
A precisão na definição é de extrema importância (LAND-
GREN, 1995), porque permite que o funcionamento de uma zona
de segurança esteja amparado por critérios já pré-definidos, espe-
cificando direitos e obrigações de todas as partes envolvidas. E, as-
sim, estabelecer o antes, durante e depois do funcionamento de uma
zona de segurança para que erros do passado não se repitam, como
foi o caso do Massacre de Srebrenica que será analisado no item 2.3.

3.2 Iraque: primeira zona de segurança


As zonas de segurança antes da 2ª Guerra Mundial tinham
um caráter mais humanitário como visto no tópico 1.1, enquanto
que as zonas de segurança após a Guerra Fria tem caráter mais polí-
tico, resultando do fechamento das fronteiras estatais.

300
Din (p.18-19, 2010) identifica os diferentes conceitos: áreas seguras (Bósnia), zonas
neutras, área protegida pelas Nações Unidas (Croácia, 1992), áreas de segurança
humanitárias, corredores de segurança, zonas segurança (entre Etiópia e Eritréia),
zonas confidencias (Costa do Marfim) e zonas de exclusão área, corredores huma-
nitários (Chechenia), corredores da paz (Bosnia, 1994; República Democrática do
Congo, 1999), zonas de tranquilidade.

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A primeira zona de segurança criada para abrigar refugiados,
após o período da Guerra Fria, aconteceu no Iraque durante a Guerra
do Golfo em 1991 (HYNDMAN, 2003; DIN, 2010), milhares de curdos
foram perseguidos pelo governo de Saddam Hussein. Logo, os curdos
iraquianos procuraram buscar refúgio na Turquia, mas ela fechou as
suas fronteiras à entrada deles. A consequência desse fechamento
resultou na morte de 1500 refugiados em três dias (UNHCR, LONG,
2010).
Como medida paliativa para assistir aos curdos, após o go-
verno turco se recusar a abrir as suas fronteiras, a Resolução nº 688
do Conselho de Segurança das Nações Unidas estabeleceu uma zona
de segurança

na fronteira com a Turquia para ampliar sua presença no nor-


te do Iraque, construção de acampamentos dentro de uma
zona de segurança que permitam a população curda voltar
ao Iraque e à comunidade internacional para prestar socorro
no local (UNHCR, LONG, 2010).

Essa mesma Resolução autorizou o uso da força sob a lide-


rança dos Estados Unidos que encamparam uma coalizão denomi-
nada de “Operação Prover Conforto”, tendo o objetivo de conduzir
uma operação humanitária. Esse uso da força almejada coibir qual-
quer tipo de agressão do governo do Saddam Hussein à zona de se-
gurança.
Não é objetivo de esse trabalho analisar as críticas em rela-
ção ao uso da força em uma zona de segurança, em que para alguns
significa a erosão dos princípios humanitários da imparcialidade, in-
dependência e neutralidade (UNHCR, LONG, 2010). Mas, se fosse
para colocar na balança os princípios humanitários de um lado, é a
vida dos refugiados do outro, o que vale mais. É o que próxima seção
procurará tratar, do Massacre de Srebrenica.

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Construção da Paz e Segurança Internacional
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3.3 Massacre de Srebrenica: repetição da história
Nesta seção procura-se pontuar o momento em que houve
o massacre na zona de segurança de Srebrenica, pois, até hoje, essa
zona é considerada a mais perigosa que as Nações Unidas têm sob
a sua tutela. Srebrenica foi uma das seis301 zonas de segurança esta-
belecidas na Bósnia-Herzegovina para abrigar o contingente intenso
de refugiados que procuravam um lugar seguro durante a Guerra da
Bósnia302. Acordos entre as partes do conflito foram feitos, para que
aquelas zonas não fossem atacadas, mas esses acordos não foram
respeitados.
Em julho de 1995, as forças sérvias atacaram Srebrenica,
executando 8 mil muçulmanos, a maioria eram homens jovens. A
melhor analogia que pode ser feita sobre esse fatídico episódio, é
que Srebrenica foi literalmente um matadouro, pois reuniu em um
mesmo lugar milhares de muçulmanos inofensivos, sem nenhuma
proteção de força para ampará-los (DIN, 2010) de algum tipo de
agressão.
A História se repete por que quase 60 anos antes, a zona de
segurança de Nanking também “caiu nas mãos dos japoneses” e o
resultando foi o mesmo: genocídio. Em ambos os casos, não havia a
utilização do uso da força para proteger essas zonas de um eventual
ataque de uma das partes dos conflitos. E, também, o acordo estabe-
lecendo o funcionamento dessas zonas com os beligerantes foi des-

301
As seis zonas de segurança forma: Srebrenica, Sarajevo, Tuzla, Zepa, Gorazde e
Bihac com a finalidade de proteger as seis cidades dos ataques das forças sérvias
(DIN, 2010).
302
“A guerra compreende o período do verão de 1992 a dezembro de 1995 quando foi
assinado o Acordo de Paz Dayton. Nos dois primeiros anos da guerra, a batalha en-
volveu três partes: o governo bósnio, os croatas bósnios e os sérvios bósnios. Em-
bora as tensões entre eles continuaram, a luta entre o governo bósnio e as forças
dos croatas bósnios terminaram em Março de 1994, com o Acordo de Washington
e a criação da Federação Croata-Muçulmana. O resultado final da campanha brutal
e sistemática de limpeza étnica, mais da metade da população foi “desenraizada”.
Em dezembro de 1995, 900 mil eram refugiados, 1 milhão e 300 mil eram desloca-
dos internos de uma população anterior a guerra de 4 milhões e 300 mil” (CUTTS,
1999).

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CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
cumprindo. Desse modo, verifica-se que a imposição de um acordo
é fraca, quando não é seguida de algum tipo de coerção, caso haja o
descumprimento do mesmo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde 1936 é que há o funcionamento de uma zona de se-
gurança na proteção da população civil, mas até o presente mo-
mento, ainda não se tem um consenso sobre uma definição precisa
do que é uma zona de segurança, essa imprecisão no termo, pre-
judica o funcionamento dela, pois não se tem parâmetros do que
realmente ela precisa ter, para que se torne uma alternativa efetiva
na proteção aos refugiados que ficam no Estado que está ocorrendo
o conflito.
Os instrumentos jurídicos internacionais existentes não são
garantia de cumprimento de uma norma, se os Estados não estive-
rem dispostos a respeitá-la e cumpri-la. Mesmo os refugiados estan-
do amparadas por aqueles instrumentos, não são suficientes para
impedir que os Estados fechem as suas fronteiras. Mesmo incluir a
zona de segurança no rol dos termos de direito humanitário interna-
cional e alguns procedimentos como o acordo entre os beligerantes
em não atacar essa zona e, repete-se novamente, não são suficientes
para coibir agressões, evitar genocídios, pois mesmo sob a égide do
direito humanitário internacional, a zona de segurança de Srebre-
nica foi atacada brutalmente como a de Nanking. A diferença é que
durante o funcionamento da zona de segurança de Srebrenica ainda
não vigora nenhuma normatização sobre o tema.
O ponto de intersecção entre a zona de segurança no norte do
Iraque e a de Srebrenica e de Nanking é o uso da força, pois na pri-
meira, com o suporte militar dos Estados Unidos foi possível garan-
tir de fato a segurança daqueles que se encontravam dentro da zona
de segurança. Enquanto que nas duas últimas zonas de segurança,
não havia, no momento em que iniciaram os ataques, forças para

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Construção da Paz e Segurança Internacional
457
proteger os refugiados, resultando na morte de dezenas de milhares,
configurando o genocídio.
Caso houvesse o emprego do uso da força para garantir a pro-
teção dos refugiados, teriam acontecido os massacres? Os acordos
entre os beligerantes em não atacar as zonas de segurança seriam
rompidos? Até que ponto uma zona de segurança com proteção mi-
litar seria uma “Convenção de Genebra de 1949” as avessas? São
indagações que a própria História ajuda a questionar, pois as lições
do passado nada servem em procurar as soluções necessárias para
que elas não se repitam mais.

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
459
A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS COMO UM OBSTÁCULO AO
ESTABELECIMENTO DE UM REGIME
DEMOCRÁTICO EM MYANMAR
Thamirys Mendes Lunardi
Graduada em Política Internacional (International Political Studies) pela Univer-
sidade de Ashland (Estados Unidos); Graduanda em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina. (thamy2112@gmail.com)

Resumo:
Este artigo procura abordar o processo de democratização que está acontecendo em
Myanmar desde 2011 e compreender como a violação sistemática dos direitos humanos
da minoria muçulmana do país é um grande obstáculo ao estabelecimento de um governo
democrático.
Palavras-chave: Democratização. Myanmar. Direitos humanos.

Sumário:
1. Introdução. 2. Birmânia ou Myanmar. 3. O processo de democratização em Myanmar. 4.
Limpeza étnica, perseguição e violência. 5. Considerações finais. 6. Referências.

1 INTRODUÇÃO
O mundo ocidental viu com grande expectativa e esperança
a dissolução do governo militar em Myanmar, em 2011. Após cinco
décadas de autoritarismo e repressão, os militares, na pessoa do pre-
sidente Than Swe passaram o poder para Thein Sein, também mili-
tar, mas com aspirações de liberalizar e democratizar o país. O novo
presidente assegurou que eleições para uma um novo parlamento

460 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
fossem realizadas, realizou reformas importantes para a sociedade
civil, e garantiu eleições para presidente e outros postos em 2015
e 2020. A laureada com Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, uma das
líderes do partido oposicionista Liga Nacional pela Democracia, tem
feito acordos com o presidente e apoiado a transição democrática
sendo uma forte candidata as eleições de 2015. Liberdade política e
de associação, e a garantia de outros direitos civis estão sendo asse-
gurada a população, e assim uma forte injeção de capital e investi-
mento internacional tem acelerado a economia do país. Com o forta-
lecimento e comprometimento do governo e das elites políticas com
o ideal democrático, a comunidade internacional tem incentivado o
crescimento do país diminuindo e até excluindo antigas sanções. No
entanto, apesar de haver otimismo doméstico e internacional para
um regime democrático, tanto o atual governo quanto a oposição pa-
recem estar fechando os olhos para um grande obstáculo à implan-
tação de uma democracia em Myanmar. O país, de maioria budista,
possui uma minoria étnica muçulmana que além de não possuir sua
nacionalidade reconhecida possuindo poucos direitos protegidos
pelo Estado, há muito tempo é perseguida e violentada pela maioria
étnica do país. Apesar da opressão não ser novidade, desde 2012
a violência contra os muçulmanos Rohingya tem se intensificado,
assim como movimentos xenófobos contra outras etnias e religiões,
movimentos que surpreendentemente tem nascido dentro de mo-
nastérios budistas. A violação de direitos humanos da minoria mu-
çulmana Rohingya é um impedimento latente ao estabelecimento
de uma democracia no país, uma vez que em um relatório liberado
pela Human Rights Watch no início de abril, a organização declarou
que o que está acontecendo no país são crimes contra a humanidade
e limpeza étnica. A violência, de acordo com os relatórios, nasceu
nos monastérios budistas e conta com uma ajuda zelada do aparato
estatal. Enquanto a violência e a perseguição contra as minorias não
cessa, e estes não adquirem a cidadanias e todos os seus direitos

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
461
anexos, Myanmar estará longe de iniciar seu processo de consolida-
ção democrática.

2 BIRMÂNIA OU MYANMAR?
Antes de analisar a história dos regimes no país do sudeste
asiático, um problema de ordem terminológica se faz mais impor-
tante. Afinal, o país localizado entre Índia, Bangladesh e Tailândia,
chama-se Birmânia ou Myanmar? Nomeado Birmânia pelos Ingle-
ses durante a colonização iniciada no século XIX, o país teve seu
nome alterado por uma junta militar, em 1989 nomeando-o Repú-
blica da União de Myanmar. A controvérsia quanto a alteração do
nome do país reside na legitimidade do governo ao momento da
mudança. Críticos a esta mudança alegam que a mesma foi reali-
zada sem o consentimento da população, imediatamente após um
golpe militar que cerceou os efeitos das eleições recém-realizadas e
de protesto popular. De acordo com uma reportagem na Foreign Po-
licy Magazine303, os militares fizeram a mudança, acreditando que o
nome Birmânia, e diversos outros nomes de cidades que também fo-
ram alterados, representavam o passado de dominação colonial Bri-
tânica enquanto o novo nome supostamente mais autêntico traria
unidade e coesão a um país tão dividido. Muitos clamam que o que
os militares estavam fazendo era na realidade, estar declarando sua
propriedade do país304. Como consequência, diversos membros da
oposição do país como Aung San Suu Kyi, apesar de vinte anos pas-
sados da mudança de nome, recusam-se a aceitar a mudança. A raiz
do problema quanto ao nome do país, como bem explorado por Min
Zin, reside no fato de que os “governantes de Mianmar vivem no
seu país. Os cidadãos da Birmânia, vivem no deles”305. Suu Kyi e seu
partido se recusam a aceitar a mudança, e baseado nesta oposição
303
ZIN, Min. Burma or Myanmar: the name game. Foreign Policy Magazine. Dispo-
nível em: <http://transitions.foreignpolicy.com/posts/2012/07/05/burma_or_
myanmar_the_name_game>. Acesso em: 23 abr. 2013.
304
Ibidem.
305
“The rulers of Myanmar live in their country. The citizens of Burma live in theirs”.

462 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
diversos países e meios de comunicação internacional continuam a
se referir ao país como Birmânia, apresentando-se bastante dividi-
dos quanto a certa denominação do país. Para este projeto, mesmo
tendo a maioria das fontes consultadas referindo-se ao país como
Birmânia, irei adotar o nome oficial do país uma vez que é como o
Brasil reconhece em suas relações diplomáticas com o país.

3 O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO EM
MYANMAR
No final da década de 1980, após duas décadas de governo
militar autoritário, a população tomou as ruas, protestando contra
o regime vigente uma vez que as décadas anteriores haviam sido
de opressão e cerceamento de direitos sob o poder dos militares.
Das manifestações populares e da pressão da oposição, resultou um
pleito realizado em 1990 no qual o partido de Aung San Suu Kyi
garantiu 80% dos assentos no que seria a assembleia constituinte.
Os militares, no entanto, recusaram-se a deixar o poder e continua-
ram a comandar o país como o Conselho de Paz e Deenvolvimento
Estatal (State Peace and Development Council) até 2011. Duran-
te este período Suu Kyi e demais opositores sofreram desde prisões
domésticas até tortura e assassinato. Promovendo mudanças sutis
desde metade da década de 2000, a junta militar no poder percebeu
o atraso econômico no qual o país se encontrava quando comparado
a outros países e a intensa e gravosa miséria que assolava o país que
conta com um dos piores índices de desenvolvimento do mundo306.
Em 2011, em movimento que surpreendeu os observadores inter-
nacionais e nacionais, o então presidente Than Shwe, abriu o pro-
cesso eleitoral para presidente e o parlamento. Dessas fraudulentas
eleições, como ressaltado por Zin e Joseph, foi eleito o candidato do
regime, o ex militar Thein Sein. Apesar de duras críticas recaírem
sobre a o pleito, uma vez que o poder foi transmitido a um partidário
tímido do regime e que não alterava o status quo anterior no que
306
ZIN, M.; JOSEPH,B. The Democrat’s Opportunity. Journal of Democracy, v. 23, n. 4. p. 104.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
463
toca uma maior diversidade étnica ou religiosa no pode, Sein e seu
gabinete vem agindo como um governo e não mais como um alto
comando do exército.
Desde que assumiu o poder então, Thein Sein vem, implan-
tando reformas e introduzindo uma abertura política no país. No
entanto, apesar de os militares esperarem lentas e controladas libe-
ralizações, devido a manifestação e pressão popular, da mídia e de
grupos de oposição, estas foram muito mais ousadas, libertadoras
e protetoras de direitos civis e políticos do que seria imaginável em
2011. Segundo Zin e Joseph, diversos presos políticos foram liberta-
dos, exilados retornaram ao país, leis que versavam sobre associa-
ções e partidos políticos foram reformadas, e as leis sobre censura de
imprensa e controle da sociedade civil foram relaxadas. No entanto,
apesar das mudanças serem significativas e de eleições estarem pre-
vistas para 2015, Myanmar não só ainda é um regime militar quanto
no que se refere aos elementos necessários para uma democracia ser
instituída, o país está muito distante do que definem os teóricos.
Caso adotada a definição de democracia do eminente cientis-
ta político Robert Dahl307, na qual um regime só pode ser considera-
do democrático quando tiver cinco instituições políticas específicas
(cidadania inclusiva, eleições livres, justas e frequentes, liberdade
de expressão, fontes alternativas de informação e autonomia asso-
ciativa), a falta de proteção dos direitos políticos das minorias de
Myanmar será sempre um obstáculo no caminho do país para o es-
tabelecimento de um regime democrático. Esta corrente doutrinária
acredita que só quando todas as cinco instituições políticas estive-
rem vigentes em um regime é que um país pode se considerar como
no caminho para a consolidação de uma democracia. A etapa da
consolidação democrática, que pode durar anos e até mesmo déca-
das, é responsável pelo estabelecimento ou reforma das instituições
jurídicas, políticas e civis para que estas sejam condizentes a um
Estado de Direito democrático. De acordo com esta vertente então, é
307
DAHL, Robert. On Democracy. New Haven: Yale University Press, 1998. p. 92.

464 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
imperioso que a todos os adultos residentes no território (com limi-
tadas exceções) seja assegurado aos habitantes do país. Neste senti-
do, é que a proteção das minorias étnicas e religiosas de Myanmar,
não apenas no sentido de concessão de cidadania mas também de
direitos políticos e civis, é imperiosa para o estabelecimento de um
regime democrático no país.
O relatório da Human Rights Watch estabelece que desde a
década de 1980 é de conhecimento da organização e das Nações Uni-
das que a cidadania é negada aos muçulmanos Rohingya que são
considerados, pelas autoridades e demais cidadãos, como estrangei-
ros e imigrantes no país, vindos de Bangladesh. Ainda de acordo
com o relatório e outros relatos, o novo governo pouco tem feito em
mudar a situação. Pouco foi feito pelas autoridades no sentido de se
prevenir as violações dos direitos humanos do Rohingya e em asse-
gurar uma convivência pacífica e digna entre todos os habitantes
do país. Com isto em mente, é difícil de acreditar que democracia
estará no futuro próximo do país, uma vez que a limpeza étnica dos
rohingya é iminente e nenhum sinal de cidadania para as minorias
encontra-se no horizonte do país.

4 LIMPEZA ÉTNICA, PERSEGUIÇÃO E VIOLÊNCIA


Em 2012, durante os primeiros meses do governo de Thein
Sein, começaram a ser relatados casos de violência e perseguição
contra muçulmanos rohingya habitantes, em sua maioria, do esta-
do de Arakana, no sul do país. O relatório da Human Rights Watch
afirma que o que está acontecendo em Myanmar é muito mais do
que casos isolados de extremo nacionalismo e preconceito religioso e
étnico, sendo um caso de crimes contra a humanidade e limpeza ét-
nica de muçulmanos Rohingya. As ondas de violência iniciadas em
junho de 2012 já produziram mais de 125.000 refugiados e mataram
centenas de pessoas, deixando localidades completamente destruí-
das. Essa violência contra os muçulmanos Rohingya, que represen-
tam 5% da população, explicita o caráter xenófobo e preconceituoso

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
465
da maioria budista que se considera como os verdadeiros cidadãos
de Myanmar.
De acordo com o relatório, por mais de duas décadas as Na-
ções Unidas tem documentado extensivamente violações de direi-
tos humanos contra os Rohingya em Burma, violações que incluem
deslocamento humano forçado e deportação. Ainda de acordo com
o relatório, 400 agências das Nações Unidas e enviados especiais,
tem consistentemente documentado abusos como assassinatos, es-
tupros, destruição de propriedade e trabalho forçado de Rohingya,
muitas vezes descritos como sistemáticos. Esse longo histórico de
tensões inter-étnicas, foi exacerbado em específicos momentos como
quando da colonização britânica na qual o uso da política de “divi-
dir- e- governar”, e também pelas cinco décadas de governança mili-
tar no país. Durante a segunda guerra mundial, recém-independen-
tes, o predominantemente birmanês “Exército de Independência da
Birmânia” (Burma Independence Army) foi a guerra para auxiliar
os japoneses contra os britânicos, enquanto as demais minorias ét-
nicas, que incluiu os Rohingya, permaneceu leal a Inglaterra308. Du-
rante as décadas seguintes, ondas de perseguição e violência entre as
etnias continuaram a acontecer, e como toda a população, sem dis-
tinções, era oprimida pela regime, o Estado se limitava a não prote-
ger nenhum dos grupos. No entanto, o que acontece neste momento
da história é que por mais que o Estado não seja o ator principal na
desenfreada perseguição e violência contra muçulmanos, o Estado
não pode ser eximido de responsabilidade.
Na raiz da violência estão monges budistas que desafiam o
estereótipo ocidental da religião budista, no qual se acredita esta
ser uma religião baseada em pacifismo, serenidade e altruísmo. Os
relatos que saem de Myanmar dão conta de que é a partir de monas-
térios budistas que está sendo disseminado o forte sentimento anti-
-muçulmano que se espalha pelo país. O movimento principal e mais

308
HUMAN RIGHTS WATCH. All You Can Do Is Pray: Crimes against humanity and ethnic
cleansing of Rohingya Muslims in Burma’s Arakan State.

466 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
poderoso, o Movimento 969 nasceu no monastério de Masoyeim, em
Mandalay, e é encabeçado pelo monge U Wirathu309. Fazendo dis-
cursos inflamados contra muçulmanos, o monge e seu movimento
têm como objetivo a expulsão completa dos Rohingya do território
de Myanmar. Quando se compreende qual é a vertente do budismo
praticada em Myanmar, e qual o papel dos monastérios nesta tra-
dição, fica mais fácil de compreender a grande influência e poder
do movimento na sociedade. Na tradição da Theravada, vertente do
Budismo praticada em Myanmar e uma das mais tradicionais e con-
servadoras, os monges ocupam um local central não apenas na vida
religiosa das comunidades, mas em todos os ambitos sociais. Mary
Fisher afirma que essa posição social de reverência aos monges nas-
ce do fato de que eles são enxergados como figuras de autocontro-
le, bondade e inteligência. As pessoas comuns são compreendidas
como sendo impróprias à prática da religião de forma independente,
tendo sua participação limitada a suportar os monastérios na for-
ma de dízimos aos monges, para só assim adquirir a possibilidade e
o mérito para renascimentos, tão importantes para a crença budis-
ta. Com essa inserção e importância na sociedade, os monges tem
grande influência nos rumos do país e na organização social, o que
explica em grande parte o seu papel em disseminar o preconceito e
violência contra os muçulmanos Rohingya.
Os monges acreditam que a comunidade muçulmana do país
representa uma ameaça ao país inteiro e a sua religião dominan-
te. Conforme Francis Wade em sua análise das ondas de violência
contra muçulmanos, o local de nascimento da movimentação xenó-
foba é justamente onde o mundo ocidental menos espera, um mo-
nastério, o de Moulmein mais especificamente, no sul do país. Foi
neste monastério que nasceu o movimento 969, que é responsável
por incentivar a violência contra os muçulmanos, de lá saem os ade-
sivos que podem ser encontrados em diversas cidades de Myanmar,
adesivos com o nome do grupo e que são compreendidos por muitos

309
The monks who hate muslims 2.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
467
observadores internacionais como um símbolo de um nacionalismo
e budismo extremistas.
Nas mais de 100 páginas do relatório da Human Rights Wa-
tch são detalhadas as violências e perseguições contra os Rohingya
no estado de Arakan. A violência contra a minoria começou em ju-
nho de 2012, após o estupro de uma mulher budista e arakanesa
por três homens muçulmanos. Nos primeiros momentos ambos os
lados estavam praticando ataques de violência, no entanto devido a
ser em maior número e por ter o aparato militar a seu lado, a onda
de violência escalou rapidamente contra os muçulmanos. Em pou-
co tempo milhares tiveram de deixar suas casas por temerem por
suas vidas e também porque a vida em suas localidades se tornava
bastante difícil, pois sofriam com difícil acesso a comida e com sua
liberdade de locomoção cerceada. Com o perigo iminente, mais de
100 mil muçulmanos deixaram, ou foram expulsos, de suas casas,
indo para campos de pessoas deslocadas internamente (Internally
Displaced Person-IDP).
A vida nos campos, o relatório afirma, também viola de for-
ma contundente os direitos humanos dos muçulmanos Rohingya.
Segundo o relatório, os campos superlotados sofrem com a falta de
água e abrigo, assim como condições sanitárias e atendimento mé-
dico. O problema vai além, segundo o relatório, que afirma que as
forças de segurança do estado que deveriam proteger os desabriga-
dos, na realidade age como guardas da prisão, impedindo o acesso a
mercados, meios de subsistência e auxílio humanitário, coisas que a
maioria se encontra em grande desespero para obter. Enquanto estas
violações acontecem àqueles que conseguiram fugir, antes da fuga
ou àqueles que ainda ficaram em suas localidades a violência é con-
tinua e perversa. Ao menos 27 vilas foram completamente destruí-
das, e muitas vezes o ataque foi anunciado anteriormente o que não
garantiu que a polícia fosse ao resgate dos muçulmanos Rohingya,
prevenindo o ataque.

468 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Os ataques que iniciaram em 2012, de acordo com o relató-
rio, são caracterizados como crimes contra a humanidade realiza-
dos como parte de uma campanha de limpeza étnica. Sob a égide
do direito internacional, os crimes contra a humanidade são crimes
cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático
contra uma população civil. O ataque, segundo o relatório, deve
ser contra uma população específica e parte de uma política esta-
tal ou minimante organizada. Organizações não estatais, incluindo
partidos políticos e grupos religiosos, podem ser responsáveis por
crimes contra a humanidade caso tenham um nível mínimo de or-
ganização. O relatório é claro ao endereçar a situação em Myanmar
como crime contra a humanidade uma vez que a população mu-
çulmana tem sofrido com os assassinatos, deslocamento forçado
perseguição e outras violências sistemáticas e dirigidas especifica-
mente ao grupo.
Como conclusão o relatório também ressalta o envolvimen-
to direto e indireto do governo na violência contra os muçulmanos
rohingya. O governo e o Presidente Thein Sein não têm tomado
medidas sérias com o intuito de responsabilizar os culpados pelos
ataques ou para evitar futuros surtos de violência. O relatório im-
plica diretamente líderes políticos e religiosos do estado de arakan.
Enquanto os ataques muitas vezes parecem ter sido realizados por
guerrilhas armadas, diversas divisões do aparato de segurança es-
tatal estava presente nos ataques, falhando em proteger os muçul-
manos, e há relatos de que por vezes a polícia e o exército tiveram
papel direto nas atrocidades. Essa conclusão do relatório da Human
Rights Watch vai ao encontro da análise de Igor Blazevic, no jor-
nal Irrawady, especializado em notícias do sudeste asiático. Blazevic,
antes mesmo do relatório, afirmou que era difícil de eximir o poder
público dos atentados contra a minoria islâmica. Para ele, esse ex-
terminio étnico é “normalmente o trabalho de grupos paramilitares
bem treinados, organizados por elementos do aparato de segurança.
A tarefa destes grupos é de fazer o trabalho sujo sem mostrar a co-
nexão direta com as forças regulares, os oficiais e os patricinadores

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
469
políticos”310 (Blazevic, 1). O conluio entre os mandantes e executan-
tes da violência contra muçulmanos, em que se pese a participação
do Estado, é beneficial para os dois mais poderosos grupos do país,
de acordo com Francis Wade: os grupos civis com forte sentimento
ultra-nacionalista e o a bancada linha dura do exército. Wade nota
que caso ambos os grupos saiam fortalecidos desta união contra os
muçulmanos, o impacto é muito maior do que se imagina no que diz
respeito aos prospectos de um futuro democrático para Myanmar.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta participação direta e indireta do Estado na violação
dos direitos humanos da minoria muçulmana no estado de arakan,
demonstra como é complexo o processo de democratização em
Myanmar, não apenas para o presidente e o gabinete atual, mas
também para Aung San Suu Kyi e seu partido. Como ressaltado por
William Macgowan311, Suu Kyi tem um problema budista uma vez
que a xenofobia e nacionalismo extremista dos budistas é que tem
incitado e alimentado os ataques contra os muçulmanos. A limpeza
étnica que está acontecendo atualmente no estado, assim como os
crimes contra a humanidade, estão chamando atenção do mundo
ocidental e oriental, que em breve, principalmente após a publica-
ção do relatório do Human Rights Watch, irá demandar por atitudes
mais severas como a responsabilização dos culpados e um tratamen-
to mais adequado a ser despendido àqueles que foram deslocados de
suas residências.
Myanmar precisa não somente parar com a limpeza étnica
contra os muçulmanos no estado de Arakan, mas principalmente
criar garantias constitutionais de direitos de cidadania não apenas

310
“It is usually the work of well-trained paramilitary groups organized by elements of the
security apparatus. Their task is to do the dirty work without showing the direct link
with the regular forces, officials and their political patrons”
311
Disponível em: <http://www.foreignpolicy.com/articles/2012/09/17/aung_san_suu_
kyi_s_buddhism_problem>. Acesso em: 16 abr. 2013.

470 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
para este grupo, mas para todas as minorias não compreendidas
atualmente como cidadãs de Myanmar. Enquanto direitos sociais e
políticos não sejam garantidos a todos os cidadãos do país, Myanmar
ainda não estará no processo de consolidação de um regime demo-
crático, uma vez que cidadania inclusiva é um dos requisitos para o
estabelecimento de uma democracia.

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
471
A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
NO HAITI: UMA RECORRÊNCIA HISTÓRICA
E SEUS REFLEXOS NA ATUAL MIGRAÇÃO
PARA O BRASIL
Marina Sanches Wünsch
Advogada. Mestranda em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Unisinos. Bolsista CAPES/PROSUP e Membro do grupo de pesquisa Direito Sani-
tário no Rio Grande do Sul (FAPERGS). (marina20_bg@hotmail.com)

Sandra Regina Martini Vial


Doutora em Direito, Evoluzione dei Sistemi Giuridici e Nuovi Diritti, Università
Degli Studi di Lecce e pós-doutora em Direito, Università degli studi di Roma
Tre. É professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, da Scuola Dottorale
Internazionale Tullio Ascarelli e professora visitante da Università Degli Studi di
Salerno. tualmente é pesquisadora gaúcha FAPERGS, e pesquisadora produtivida-
de CNPq. (srmvial@terra.com.br)

Resumo:
A história do Haiti é marcada por intervenções e violações de direitos. O país esta longe de
atingir a estabilidade e o terremoto que devastou o país em 2010 agravou ainda mais a situa-
ção, neste contexto, inúmeros haitianos tem deixado o país em busca de melhores condições
de vida. O Brasil é dos principais destinos escolhidos pelos haitianos, contudo, diante da cres-
cente migração, o governo brasileiro optou por restringir a concessão de vistos, sob a justifi-
cativa de que os haitianos não podem ser considerados refugiados, porém, esta justificativa
pode ser questionada diante dos instrumentos jurídicos internacionais sobre refugiados.
Palavras-chave: Direitos Humanos – Haiti – Vistos – Brasil – Direito Internacional.

Sumário:
1. Introdução. 2. Breve Histórico sobre o Haiti. 3. O terremoto de 2010 e a crescente migração.
4. A proteção internacional dos refugiados. 5. Conclusão. 6. Referências Bibliográficas.

472 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
1 INTRODUÇÃO
Atualmente mudanças no contexto internacional refletem
um processo de globalização e interdependência internacional, no
qual novos valores como a proteção dos Direitos Humanos reper-
cutem na crescente intensificação da chamada cooperação mútua
internacional, bem como possibilita o surgimento de novas institui-
ções, a exemplo da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Estes fenômenos vêm modificando significativamente o pa-
pel do Estado Soberano, contudo, a efetivação do que hoje chama-
mos de Direitos Humanos está longe de ser plenamente concretiza-
da, pois ainda depende do grau de organização das políticas públicas
e da incorporação destes direitos nas esferas internas de cada Estado.
Um dos temas que mais vem ganhando destaque são as de-
mandas migratórias que repercutem diretamente nos tradicionais
conceitos de soberania, fronteira e na violação de direitos humanos.
Desse modo, este trabalho tem por objetivo analisar a temática da
migração através da atual situação do Haiti, país que ocupa o terço
oeste da ilha Hispaniola, segunda maior do Caribe e que possui um
histórico de intervenções e violações de direitos, não bastasse isso,
o país foi vítima em 2010 de um terremoto que arrasou o mesmo, o
que contribuiu de forma significativa para o processo de migração de
haitianos, especialmente, para o Brasil.
Diante desta crescente migração, o Brasil se vê obrigado a
tomar uma posição, porém este posicionamento deve responder a
demandas tanto internas como internacionais, uma vez que, os esta-
dos estão mais interdependentes e, portanto, esta interdependência
gera uma necessidade de cooperação, assim, é preciso buscar novas
soluções para garantir uma maior efetividade dos direitos. Cumpre
ressaltar que a conquista de direitos nunca foi um processo fácil -
não podemos esquecer que os homens fazem sua própria história
– mas sabemos, também, que a luta pela conquista dos direitos não

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
473
pode parar, temos que estar mais vigilante com os direitos já con-
quistados e seguir buscando a realização dos direitos básicos para
todos os cidadãos.
Não podemos permitir retrocessos e para que isto não ocorra
é fundamental revermos a história, não no sentido de acomodação,
mas resgatando na própria história elementos fundantes para a con-
cretização deste novo ideal e como eles refletem nas tomadas de de-
cisões, especialmente em questões migratórias.

2 BREVE HISTÓRICO SOBRE O HAITI

“Os homens fazem sua própria história, mas não a


fazem sob circunstâncias de suas escolhas e sim sob
aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado312”.

A história do Haiti é marcada por fatos turbulentos. O país,


que ocupa o terço oeste da ilha Hispaniola, segunda maior do Ca-
ribe, conquistou sua independência em 1804, em um processo que
teve início em 1788 e culminou com uma rebelião de escravos contra
o colonialismo francês. Desse modo, em 1794, o Haiti tornou-se o
primeiro país do mundo a abolir a escravidão. Ou seja, temos ele-
mentos históricos de lutas no país que mostram as possiblidades
concretas de transformação social.
Com isso, o Haiti tornou-se o primeiro país do hemisfério oci-
dental a ser governado por um ex-escravo depois do período colonial
e sua independência teve um enorme impacto no mundo colonial
americano. Porém, com medo de que a independência do Haiti in-
centivasse outros Estados coloniais na América Latina, o novo país
se viu submetido a um isolamento diplomático e com grandes difi-

312
MARX, Karl. O 18 Brumário. In: MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1974. p. 17.

474 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
culdades para se inserir na economia e política da comunidade in-
ternacional313.
Não bastasse isso, o país passou por um longo período de
ditadura - A ditadura de Duvalier. Os governos de François Duvalier
(conhecido como “Papa Doc”), que governou de 1957 a 1971, e seu
filho Jean-Claude Duvalier (o “Baby Doc”), de 1971 a 1986, são tidos
por analistas como dois dos mais violentos governantes da história.
Somente em 1990 foram realizadas eleições presidenciais li-
vres, quem venceu estas eleições foi o padre salesiano Jean-Bertrand
Aristide. Contudo, em 29 de setembro de 1991, o presidente eleito
foi deposto por um golpe militar de Estado.
Este golpe foi condenado pelo Conselho de Segurança (reso-
luções 46/7 e 46/138) que, após qualificar a questão de forma dúbia,
invocando o Capítulo VII da Carta da ONU e aprovou sanções contra
o Haiti. Na segunda resolução o Conselho de Segurança da ONU
inclusive condena as violações de direitos humanos e demonstra
sua preocupação com a onda massiva de refugiados, caracterizando,
para alguns autores de maneira estratégica, como uma situação de
ameaça à paz e à segurança mundial314.
Assim, em 1991 ocorreu a intervenção norte-americana no
Haiti, desta vez para reempossar o presidente democraticamente
eleito Jean-Bertrand Aristide; esta operação ficou conhecida como
operação “Restaurar a Democracia”315.
Porém, as sanções previstas para tentar fazer com que o pre-
sidente Aristide reassumisse a presidência não foram capazes de fa-
zer com que as forças militares respeitassem o novo governo, dando
sequência a dois novos golpes em 1994. Na resolução 940, de 1994, o

313
O. RODRÍGUEZ, Jaime. E. (Coord). Revolucíon, independência y las nuevas naciones de
América. Madrid: Fundación Mapfre Tavera, 2005, p. 41-60. (tradução indireta minha)
314
BAPTISTA, Eduardo Correia. O poder público bélico em direito internacional: o uso
da força pelas Nações Unidas em especial. Coimbra: Almedina, 2008. p. 949-952.
315
VICENTINO, Cláudio. História geral. 8. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Scipione, 1997.
p. 459.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
475
Conselho de Segurança qualifica novamente os golpes como “amea-
ças à paz” e autoriza o uso da força para depor as autoridades e
reinstalar o presidente eleito, tal autorização acabou por gerar um
conflito armado e instalou a presença de 2.000 fuzileiros norte-ame-
ricanos no país316.
Tal situação segundo B. S. Amor demonstra: “a futilidade de
apelar para a força ou a coerção externa para sustentar um regime demo-
crático no formal em condições de extrema pobreza generalizada e carente de
tradição institucional317”.
Em 2004, no entanto, uma revolta derrubou novamente Aris-
tide. Logo após este acontecimento foi criada a Missão das Nações
Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) com o objetivo de
ajudar a restabelecer a ordem política no país, sob o comando do
Brasil. Em 2006, após dois anos de instabilidade social e política, o
país realizou novas eleições que levaram o ex-presidente René Preval
de volta ao cargo com ajuda da missão da ONU, mas a situação con-
tinua delicada no país318.
A participação brasileira na Missão das Nações Unidas para a
Estabilização no Haiti (MINUSTAH) é o principal envolvimento do
Brasil em operações de manutenção da paz. O Brasil é o maior contri-
buinte de tropas para essa Missão. Desde 2004 o Brasil manteve um
contingente de 1200 militares, com rotação semestral319. As ações

316
BAPTISTA, op. cit., p. 949-952.
317
AMOR, Bernardo Sepúlveda. No intervención y derecho de injerencia: el império o
la decadência de la soberania. In: VÁSQUEZ, Modesto Seara (Comp). Las Naciones
Unidas a los cicuenta años. México: Ed. Fondo de Cultura Econômica, 1995. p. 193.
(tradução indireta minha)
318
PORTAL DE NOTÍCIAS R7. 2010. Entenda o que é a missão de paz no Haiti. Disponível
em: <http://noticias.r7.com/internacional/noticias/entenda-o-que-e-missao-de-paz-
no-haiti-20100114.html>. Acesso em: 14 maio 2010, às 11h02min.
319
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Disponível em: <http://www.un.org/ga/
search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)HYPERLINK “http://www.un.org/ga/
search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://www.un.org/en/
peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”&HYPERLINK “http://www.
un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://www.
un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”referer=http://

476 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
da força de paz no Haiti têm o objetivo de restaurar a segurança e
a ordem, além de promover ações políticas para tornar mais fortes
as instituições do governo e proteger os direitos humanos, uma vez
que, segundo a ONU, o Haiti não tem nenhuma estrutura política e
sua história é um revezamento de ditaduras e rebeliões.
Contudo, ainda que perante a comunidade internacional to-
das as ações empregadas no Haiti estão sob o amparo de garantir
uma assistência humanitária, a história demonstra que este país
sempre foi objeto de intervenções, desse modo, é preciso ter cuidado
para que um país que se encontra em uma situação tão frágil não
vire simplesmente objeto de interesses econômicos.
A necessidade de ajuda humanitária diante da situação que
o país se encontra é evidente, entretanto, a falta de uma data efetiva
para a retirada das tropas, a falta de participação da população neste
processo de reconstrução levam a duvidar da real motivação da per-
manência das tropas neste país.
O ideal seria que as tropas tivessem uma data para se retirar e
um plano de reestruturação democrática do país sem intervenção e,
assim, este governo democrático é quem visaria à proteção dos direi-
tos de sua população, já tão sofrida e submetida a violações ao longo
da história, mas que ao mesmo tempo demonstrou ter a garra para
lutar por sua independência de forma pioneira na América.
Como afirmava Marx: “Os homens fazem sua própria histó-
ria, mas não a fazem sob circunstância de suas escolhas e sim sob
aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas
pelo passado”320 e a circunstâncias com que se defrontam os haitia-

www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtmlHYPERLINK “http://
www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://
www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”&HYPERLINK
“http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=ht-
tp://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”Lang=S>
Acesso em: 26 set. 2012.
320
MARX, Karl. O 18 Brumário. In: MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1974. p. 17.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
477
nos hoje é a de sua exclusão deste processo de reconstrução, repro-
duzindo o que se apresentou em outros momentos passados, impe-
dindo assim de serem protagonistas de sua história.
Não bastasse todo o sofrimento desses anos de intensos con-
flitos e intervenções, ainda que a solidariedade internacional tenha
se empenhado em reduzi-los, o Haiti e, principalmente, a capital
Porto Príncipe, às 16h53 minutos da tarde de terça-feira, dia 12 de
janeiro de 2010, foi vítima de uma catástrofe ambiental de força ini-
maginável - um terremoto que transformou o país em escombros e
deixou dezenas de milhares de pessoas mortas ou feridas. “A situa-
ção humanitária do país, o mais pobre das Américas, é caótica. Pelo
menos 200 mil pessoas morreram, 300 mil ficaram feridas, 4 mil
foram amputadas. Há um milhão de desabrigados”321.

3 O TERREMOTO DE 2010 E A CRESCENTE


MIGRAÇÃO

La solidarietà avvicina mondi mentre la solitudine


vive di separazioni e di distanze322.

A solidariedade coloca em discussão as possibilidades que


temos de unificar e reduzir as distâncias. Com isso, identificamos
que temos muito mais direitos do que efetivamente podemos reali-
zar e vemos também que leis e legislações – as mais variadas – não
nos faltam. Nesse contexto, algumas indagações são fundamen-
tais: como o fenômeno da globalização reflete nos fundamentos do
Estado-nação? Quais são as relações entre os poderes públicos e a
globalização? É possível transportar democracia e justiça além das

321
PORTAL DE NOTÍCIA G1. 2010. Cobertura completa: terremoto no Haiti. Disponível em:
<http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1446514-5602,00-COBERTURA+COM-
PLETA+TERREMOTO+NO+HAITI.html>. Acesso em: 14 maio 2010.
322
RESTA, Eligio. Il Diritto fraterno. Laterza, 2002. p. 09. [Tradução livre:] A solidariedade
aproxima mundos enquanto a solidão vive de separação e de distância.

478 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
fronteiras do Estado? Qual justiça estamos ultrapassando, se é que
ultrapassamos? Qual democracia?323
Ora o questionamento sobre a possibilidade de uma justiça e
de um direito global capazes de efetivar todos os direitos fundamen-
tais passa necessariamente pela forma como lidamos com os dife-
rentes. Seguindo os pressupostos da Metateoria do Direito Fraterno,
retomamos a fraternidade, que me leva a ver o outro – inclusive e,
sobretudo, o diferente, como meu irmão, como um outro EU. Nesta
era global, precisamos refletir sobre a situação da migração, fenôme-
no antigo, mas que, na contemporaneidade, assume um novo pata-
mar de exclusão324.
A Constituição Federal brasileira, ao dar tratamento igualitá-
rio aos brasileiros e estrangeiros residentes no país (art. 5º) assegu-
rou a estes a possibilidade de acesso às políticas públicas existentes.
A Lei 9.474/97, por sua vez, expressão do compromisso do Brasil com
a causa humanitária do refúgio, chamou o país à efetivação destes
direitos quando sinalizou para a implementação de políticas públi-
cas para a integração dos refugiados e refugiadas.
Após o terremoto, o Brasil passou a manter um contingente
de 2.100 militares no país; com este contingente a participação bra-
sileira no Haiti, desde o início até hoje, contou com mais de 13 mil
militares325. Apesar dos esforços que as missões de paz vêm empre-
323
Para aprofundar estas reflexões ver: CASSESE, Sabino. Il Diritto Globale – Giustizia e
Democrazia oltre lo Stato. Torino: Einaudi, 2009. Especialmente o capítulo final. Verso
una giustizia e una democrazia globali? p. 156–167.
324
Sobre isso, consultar: RESTA, Eligio. In: Globalizzazione e diritti futuri. A cura di R. Finelli,
F. Fistetti, F. R. Recchia Luciani, P. Di Vittorio. Ministero dell’Istruzione. Roma: Università
e Ricerca scientifica, 2004. p. 367.
325
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Disponível em: <http://www.un.org/ga/se-
arch/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)HYPERLINK “http://www.un.org/ga/se-
arch/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://www.un.org/en/pea-
cekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”&HYPERLINK “http://www.un.org
/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://www.un.org/
en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”referer=http://www.
un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtmlHYPERLINK “http://www.un.
org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://www.un.org/
en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”&HYPERLINK “http://www.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
479
gando, o temor assola o país, além disso, seguiram-se uma epidemia
de cólera e outras doenças, fatores estes que levaram a intensa imi-
gração de haitianos para o Brasil.
Contudo, a imigração se deu de forma desorganizada, os imi-
grantes começaram a chegar em larga escala ao Amazonas e ao Acre,
depois de passar por países como República Dominicana, Panamá,
Equador, Colômbia, Peru e Bolívia. Sendo que um dos principais pro-
blemas enfrentados pelos haitianos que almejam chegar ao Brasil
é a utilização de um serviço ilegal de atravessadores (também co-
nhecidos como coiotes), desse modo, mediante pagamento a estes
atravessadores, os imigrantes atravessavam a fronteira em condi-
ções precárias326.
À vista do intenso fluxo imigratório, o governo federal decidiu
pela regularização da situação dos haitianos que estão no Brasil,
uma vez que, depois do terremoto que atingiu o país caribenho, em
janeiro de 2010, cerca de 4 mil cidadãos entraram no Brasil em busca
de melhores condições de vida.
Para tanto, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) – órgão
ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego – aprovou as condições
do visto de trabalho em caráter especial a ser concedido a cidadãos
haitianos em função dos problemas econômicos e humanitários de-
correntes do terremoto de 2010. Desse modo, os naturais daquele
país poderão obter permissão para ficar no Brasil pelo período de até
cinco anos327 e, antes de terminar o período de cinco anos eles deve-
rão comprovar sua situação laboral junto ao Ministério do Trabalho
e Emprego para fins de renovação de sua permanência no Brasil e
expedição de nova Cédula de Identidade de Estrangeiro.

un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://www.un.
org/en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”Lang=S>. Acesso em:
26 set. 2012.
326
PORTAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/
main.asp?ViewID=%7BA5F550A5-5425-49CE-8E88-E104614AB866%7D&pa-
rams=itemID=%7B8B08936F-6EDC-440C-AE51-9C2665272476%7D;&UIPartUID=%7B-
2218FAF9-5230-431C-A9E3-E780D3E67DFE%7D>. Acesso em: 26 set. 2012.
327
Ibidem.

480 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Após a resolução, a idéia é emitir 1,2 mil vistos permanentes
por ano (100 por mês, em média) pela Embaixada do Brasil no Haiti,
para tanto, não será necessário comprovar qualificação, nem víncu-
lo com empresa, diferentemente dos vistos de trabalho comuns328,
além disso, os canais de vistos anteriores oferecidos para turismo,
estudo, trabalho temporário continuam a existir também para os
haitianos.
Com relação aos haitianos que já estavam no país antes da
publicação da resolução, estes serão regularizados por meio do CNIg.
Porém, quem chegar ao país após a publicação da resolução do CNIg
e não estiver regular (com visto obtido na embaixada do Brasil no
Haiti) será notificado a deixar o país. Caso não deixe, poderá ser
deportado329.
Cumpre ressaltar, que o estrangeiro que recebe o status de
permanente no Brasil é assegurado o exercício dos mesmos direitos
civis, liberdades sociais, culturais e econômicas dos brasileiros, em
particular o direito ao trabalho e à livre iniciativa, além do acesso à
justiça, inclusive a gratuita, à saúde, à educação, e aos direitos ad-
vindos das relações de trabalho e emprego, entre outros330.
Hoje, dos 4 mil haitianos que entraram no Brasil, 1.600 já
estão regulares, pois receberam visto humanitário do Conselho Na-
cional de Imigração e cerca de 2 mil estão em tramitação entre o
Ministério da Justiça e o Ministério do Trabalho para regularização.
Portanto, todos os que já estavam no Brasil até a data da pu-
blicação da resolução do CNIg receberam a permanência, todavia, os
haitianos que chegarem após a data da publicação da Resolução do

328
PORTAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/
main.asp?ViewID=%7BA5F550A5-5425-49CE-8E88-E104614AB866%7D&pa-
rams=itemID=%7B8B08936F-6EDC-440C-AE51-9C2665272476%7D;&UIPartUID=%7B-
2218FAF9-5230-431C-A9E3-E780D3E67DFE%7D>. Acesso em: 26 set. 2012.
329
Ibidem.
330
PORTAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/data/Pa-
ges/MJA5F550A5ITEMID5927F8256B2C446F9D78E6D52E1FC3B6PTBRNN.htm>. Aces-
so em: 26 set. 2012.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
481
CNIg ou entrarem ilegalmente serão notificados a deixar o país e se
não o fizerem serão deportados331.

4. A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS


REFUGIADOS

Il centro del diritto non si trova nella


legislazione, né nella scienza del diritto,, né nella
giurisprudenza, ma nella società stessa332.

É fato que o Brasil há muitos anos está comprometido com a


pacificação, a reconstrução e o desenvolvimento do Haiti, contudo,
diante da crescente imigração de haitianos para o Brasil, o que se
verifica com a resolução do CNIg é que a solução encontrada foi a de
restringir o número de vistos, para evitar que a situação fugisse do
controle das autoridades. Segundo Salem Nasser:

Do ponto de vista humanitário, o Brasil parece estar toman-


do medidas apropriadas em relação aos imigrantes que já es-
tão em território nacional. Com relação aos que viriam, e que
agora precisarão de visto, o raciocínio do governo foi prova-
velmente orientado pela ideia de que a ajuda humanitária,
na forma de permissão de entrada aos imigrantes, não pode
ser ilimitada, já que o Brasil não teria como sustentar isso.

Ainda, de acordo com o CONARE - Comitê Nacional para os


Refugiados, os haitianos não podem ser considerados refugiados,
pois não são perseguidos por motivos políticos, de raça ou religião

331
PORTAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/
main.asp?ViewID=%7BA5F550A5-5425-49CE-8E88-E104614AB866%7D&pa-
rams=itemID=%7B8B08936F-6EDC-440C-AE51-9C2665272476%7D;&UIPartUID=%7B-
2218FAF9-5230-431C-A9E3-E780D3E67DFE%7D>. Acesso em: 26 set. 2012.
332
RESTA, Eligio. Diritto vivente. Bari: Eiditori Laterza, 2008, p. 29. [Tradução livre:] o cen-
tro do direito não se encontra na legislação, nem na ciência do direito, nem na jurispru-
dência, mas na própria sociedade.

482 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
em seu país, conforme dispõe a Lei nº 9.474 de 22 de julho de 1997
em seu art. 1º:

Art. 1º - Será reconhecido como refugiado todo indivíduo


que:
I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de
raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políti-
cas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa
ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde
antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira
regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no
inciso anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos hu-
manos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para
buscar refúgio em outro país.

Diante deste posicionamento, os haitianos, para não chegar


ao Brasil ilegalmente, deveriam solicitar o visto em seu país de ori-
gem. Porém, na prática isto não vem acontecendo. Esta decisão do
governo de fechar as fronteiras para os haitianos divide a opinião
de especialistas em Direito Internacional, pois se, por um lado, a
iniciativa reforça a soberania brasileira sobre o seu território, já que
o Brasil não pode assumir o Haiti, por outro, avaliam que a mesma
coloca em xeque as políticas adotadas nos últimos anos em relação
aos direitos humanos333.
O Ministro de Justiça, José Eduardo Cardozo, por sua vez,
afirma:

Ao contrário, regularizamos a entrada. Além dos vistos nor-


mais concedidos aos haitianos, como de trabalho, de estu-

333
PORTAL DE NOTÍCIA G1. Reportagem de 10/01/2012. Decisão do governo de fechar
fronteiras divide especialistas. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/decisao-
do-governo-de-fechar-fronteiras-divide-especialistas-3637970#ixzz26jUPCdvy>. Aces-
so em: 27 out. 2012.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
483
do e de turismo, concedemos um adicional, um plus a mais.
Uma excepcionalidade. Não houve desrespeito aos direitos
humanos. Foi uma decisão de respeito e solidariedade da
presidente Dilma. O que não pode é uma situação como es-
tava. Uma máfia internacional se valendo da desgraça das
pessoas, no caso dos coiotes. Uma máfia que explorava seres
humanos334.

Esta medida adotada pelo Brasil de restringir a entrada de


haitianos, não lhes atribuindo o status de refugiados, pode estar le-
galmente amparada diante do conceito apresentado pela Lei 9.474,
mas surpreende do ponto de vista humanitário e se choca com a
política externa do Brasil.
Não obstante, este posicionamento pode ser questionado,
pois o Brasil é signatário, também, de outros instrumentos interna-
cionais que tratam da proteção e integração dos refugiados e, estes,
interpretados de forma extensiva, estariam de acordo com a política
externa humanitária do Brasil e confeririam aos haitianos a prote-
ção de refugiados.
Nesse sentido, importante destacar a Declaração de Carta-
gena, que foi adotada pelo “Colóquio sobre Proteção Internacional
dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas
Jurídicos e Humanitários”, do qual o Brasil participou; segundo o
Colóquio, também, poderiam ser considerados refugiados as pes-
soas que tenham fugido de seu país porque sua vida, sua segurança
ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada,
os conflitos internos, a violência maciça dos Direitos Humanos ou
outras circunstâncias que tenham pertubado gravemente a ordem
pública. Nota-se que a situação dos haitianos poderia ser facilmente

334
PORTAL DE NOTÍCIA G1. Reportagem de 12/01/2012. Resolução regulamentando
presença de Haitianos é aprovada. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/
resolucao-regulamentando-presenca-de-haitianos-aprovada-3653344#ixzz26jWC-
gX2j>. Acesso em: 27 out. 2012.

484 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
enquadrada neste instrumento jurídico, contudo, o Brasil optou por
restringir o conceito.
Em 2011 a resolução 2012 (2011) do Conselho de Segurança
da ONU manifestou-se pela diminuição do número de militares da
Minustah. Contudo, sabe-se que apesar dos esforços das forças de
paz no Haiti, a situação do país permanece instável e caótica e muito
se deve ao fato de que a própria população vem sendo excluída deste
processo, desse modo, continua crescendo o número de haitianos
que vem para Brasil335.
Nesse sentido destaca-se o relatório do Conselho de Seguran-
ça da ONU:

La policía de la MINUSTAH, junto con la Policía Nacional de


Haití, mantiene una presencia de seguridad permanente y
patrullas reforzadas en siete campamentos de alto riesgo y
lleva a cabo patrullas diarias por turnos de rotación en apro-
ximadamente 150 de los llamados campamentos “no perma-
nentes”. La presencia de la policía de la MINUSTAH facilita
el registro de las denuncias y reclamaciones de los residentes.
No obstante, siguen produciéndose numerosos incidentes de
violencia sexual y por razón de género y muchas mujeres
siguen sin sentirse seguras en los campamentos. Las denun-
cias han aumentado, pero aún son muchos los incidentes de
este tipo que no se denuncian336.

335
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Disponível em: <http://www.un.org/ga/
search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)HYPERLINK “http://www.un.org/ga/
search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://www.un.org/en/
peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”&HYPERLINK “http://www.un.
org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://www.un.org/
en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”referer=http://www.
un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtmlHYPERLINK “http://www.un.
org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://www.un.org/
en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”&HYPERLINK “http://www.
un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://www.
un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”Lang=S> Acesso
em: 26 set. 2012.
336
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Disponível em: <http://www.un.org/
es/comun/docs/?symbol=S/2012/534>. Acesso em: 27 set. 2012.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
485
De fato, quando catástrofes naturais acontecem como é o
caso do terremoto no Haiti, onde a capital Porto Princípe foi devasta-
da, é natural ocorrer o deslocando de comunidades inteiras. Porém,
a situação no Haiti é agravada por uma agitação civil, causanda por
uma insegurança generalizada diante de tanta violência, desestru-
turação, epidemias, além disso, não é somente a partir do terremoto
que a situação do país esta caótica, a história deste país, conforme
acima descrita, é marcada por violação de Direitos Humanos.
Nestas circunstâncias podemos dizer que estas pessoas são
deslocadas à força para proteger a vida e a integridade física, pois,
diante delas somente se vislumbra duas opções: a morte por priva-
ção, violência, ou a vida no exílio.
Diante da complexidade da situação, o Alto Comissário das
Nações Unidas para Refugiados apresenta uma distinção entre imi-
grantes econômicos e refugiados:

Los patrones globales de migración se han vuelto cada vez más com-
plejas en los tiempos modernos, con la participación no sólo de los
refugiados, sino también a millones de inmigrantes económicos. Los
migrantes, especialmente los migrantes económicos, deciden mudar-
se con el fin de mejorar las perspectivas de futuro de sí mismos y
sus familias. Los refugiados tienen que moverse si quieren salvar sus
vidas o su libertad. Ellos no tienen la protección de su propio Estado
- de hecho, es a menudo su propio gobierno que está amenazando con
perseguirlos. Si otros países no les brindan la protección necesaria, y
no les ayudan una vez dentro, entonces pueden estar condenádolos a
muerte - o a una vida insoportable en las sombras, sin sustento y sin
derechos.337

É evidente que os haitianos poderiam enquadrar-se tanto no


conceito de imigrantes econômicos quanto refugiados, dependendo
do tipo de análise que se faz daquele país. Mas ao contrário do que

337
LA AGENCIA DE LA ONU PARA LOS REFUGIADOS. ACNUR. Disponível em: <http://
www.acnur.org/t3/a-quien-ayuda/refugiados/>. Acesso em: 27 set. 2012.

486 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
se imagina, não são haitianos miseráveis que buscam o Brasil para
viver, mas pessoas de classe média e profissionais qualificados, como
engenheiros, professores, advogados, pedreiros, ou seja, hoje são as
pessoas de melhor escolaridade que estão saíndo do país. Isso pode ser
observado, principalmente, nas falas dos haitianos que se manifesta-
ram durante a Audiência Pública realizada pela Comissão de Direitos
Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
Dentre os trabalhadores está o professor de línguas Jacksin
Etienne, 30 anos, que fala português e foi contratado por uma em-
presa para ajudar os conterrâneos na adaptação no Brasil, em sua
fala ele afirma que não queira deixar o país, mas seu pai lhe disse
que naquele país ele não tinha futuro. Por respeito ao pai, ele decidiu
deixar o país e foi para República Dominicana, porém lá era muito
dificil e os dominicanos, por disputas históricas, não queriam dar
moradia aos haitianos, por isso, decidiu vir ao Brasil.
Em todos os discursos, o sentimento presente é de que não
havia mais possibilidade de uma vida digna, mas apenas de sobrevi-
vência, por isso, hoje o que mais desejam é poder trazer os familiares
para morar no Brasil.
Portanto, é diante desta complexidade global, onde estão
presentes diversos fatores que levam a imigração, que estas medidas
restritivas quanto à concessão de vistos aos haitianos pode ser ques-
tionada perante o Direito Internacional, uma vez que, percebe-se
que o reconhecimento de determinado status ao imigrante depende
cada vez mais do interesse do Estado do que de uma análise adequa-
da das causas que levaram a imigração.

5. CONCLUSÃO

“Temos de nos tornar a


mudança que queremos ver no mundo.”
(Mahatma Gandhi)

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
487
A globalização e o aumento da interdependência não elimi-
naram as contradições, as desigualdades sociais e econômicas, nem
o desenvolvimento desigual entre nações, mas acentuou as disputas,
a concorrência no âmbito da economia global. Porém, acreditamos
na possibilidade de mudanças, através do respeito a todas as
diversidades e, em especial, no caso do Haiti, a própria construção
história, ou reconstrução da história.
E embora nunca se tenha falado tanto em Direitos Huma-
nos, ao que parece este não é o principal foco dos Estados nas re-
lações internacionais no mundo globalizado. Por isso, mais do que
nunca é fundamental não somente a expansão das normas inter-
nacionais, mas principalmente que seja dada real eficácia às nor-
mas já existentes.
A questão da migração é hoje um dos maiores problemas da
sociedade internacional e do Direito. Atualmente, no Brasil, vivem
cerca de 4.500 refugiados de mais de 70 países diferentes, os mes-
mos, além da proteção legal, têm direito à documentação e ao acesso
às políticas públicas nacionais338.
O que estamos presenciando no Brasil com os haitianos é de
dimensão muito pequena, em comparação com a Europa, por exem-
plo, onde o tema está sempre em pauta, porém, é este o momento de
posicionar-se de acordo com uma política externa humanitária e de
proteção aos Direitos Humanos e este é o desafio da sociedade atual
o de ver o outro como um outro EU, uma vez que a sociedade atual
é o locus tanto do respeito como do desrepeito aos e com os Direitos
Humanos.
Conferir aos haitianos a proteção de refugiados, além de cor-
responder a uma política externa humanitária e de proteção aos di-
reitos humanos, também, reforça o importante papel do Estado não

338
LA AGENCIA DE LA ONU PARA LOS REFUGIADOS. ACNUR. Disponível em: <http://www.
onu.org.br/onu-no-brasil/acnur/>. Acesso em: 27 set. 2012.

488 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
fechado, ora no mundo glabalizado em que vivemos é preciso supe-
rar as fronteiras geográficas construídas pela idéia de soberania.
Por fim, cumpre ressaltar que é preciso ter em mente que
políticas públicas voltadas à assistência e integração dos refugiados
são imprescindíveis para assegurar-lhes os direitos econômicos, so-
ciais e culturais, em especial o direito ao trabalho, à saúde e à edu-
cação, uma vez que, os refugiados chegam e devem reconstruir sua
vida, em um ambiente totalmente desconhecido, frente a uma nova
e diferente cultura, ou seja, uma sociedade completamente diferente
daquela que viveu em seu país de origem.

6 REFERÊNCIAS
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Documentos de acesso exclusivo em meio eletrônico:


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<http://www.acnur.org/t3/a-quien-ayuda/refugiados/>. Acesso em: 27 set. 2012.
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<http://www.onu.org.br/onu-no-brasil/acnur/>. Acesso em: 27 set. 2012.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
489
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Disponível em: <http://www.
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rer=http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/facts.shtml&Lan-
g=S)”&HYPERLINK “http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/
RES/2012(2011)&referer=http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minus-
tah/facts.shtml&Lang=S)”referer=http://www.un.org/en/peacekeeping/mis-
sions/minustah/facts.shtmlHYPERLINK “http://www.un.org/ga/search/view_doc.
asp?symbol=S/RES/2012(2011)&referer=http://www.un.org/en/peacekeeping/
missions/minustah/facts.shtml&Lang=S)”&HYPERLINK “http://www.un.org/ga/
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PORTAL DE NOTÍCIA G1. Reportagem de 12/01/2012. Resolução regulamentando
presença de haitianos é aprovada. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/
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rams=itemID=%7B8B08936F-6EDC-440C-AE51-9C2665272476%7D;&UIPar-
tUID=%7B2218FAF9-5230-431C-A9E3-E780D3E67DFE%7D>. Acesso em: 26
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490 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
COOPERAÇÃO PARA PROTEÇÃO DAS
MULHERES EM SITUAÇÃO DE CONFLITO
ARMADO: O CASO DA REPÚBLICA
DEMOCRÁTICA DO CONGO
Marília Lima Santos
Graduanda do 7º semestre do curso de Relações Internacionais da Universidade
Federal de Pelotas. (marilialimas@outlook.com)

Resumo:
Este artigo visa abordar a situação das mulheres em situação de conflito armado, tendo como
base os conflitos na República Democrática do Congo. Este país esteve em guerra durante
quase dez anos, porém, houve continuidade de ação das milícias em algumas áreas, trazendo
novas ondas de violência contra a população civil, principalmente às mulheres. Estas, como
veremos, são por vezes vistas como objetos, sendo atacadas estrategicamente como tática
de guerra.
Palavras-chave: República Democrática do Congo - conflito armado - estupro como arma de
guerra.

Sumário:
1. Introdução. 2. Conflito na República Democrática do Congo. 3. O Papel da ONU no Conflito.
4. A Violência Sexual como Arma de Guerra na RDC. 5. A Evolução da Questão no Âmbito da
ONU. 6. Considerações Finais. 7. Referências.

1 INTRODUÇÃO
Em situações de conflito armado ou ocupação estrangeira, a
população civil, com certa frequência, sofre mais impacto do que a
população beligerante, propriamente envolvida no conflito. Dentro
dessa população civil, uma particularidade que se tem percebido, é
que a população do sexo feminino sofre um impacto consideravel-
mente maior.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
491
A violência sexual contra a mulher, em situações de conflito
armado ou ocupação estrangeira, cada vez mais tem sido usada como
“tática de guerra”339. Por isso, no âmbito do direito internacional, tem-
-se procurado diferentes métodos de aumentar a proteção das mu-
lheres nessas situações, através de acordos entre os Estados limítrofes
para a questão dos refugiados e resoluções do Conselho de Segurança
das Nações Unidas específicas sobre o tema, assim como os Estados
podem cooperar para que essas atrocidades sejam erradicadas.
Neste artigo, o caso a ser analisado é o da violência contra as
mulheres na República Democrática do Congo (RDC). Após o fim ofi-
cial das guerras que, juntas, duraram quase dez anos, com seus vizi-
nhos e milícias atuantes no país, algumas áreas continuaram sob o
domínio destas milícias, principalmente na região leste. Os conflitos
na região são considerados exemplos na ineficiência do combate a vio-
lência de gênero em conflito armado, sendo RDC um dos países onde
a prática do estupro como tática de guerra está mais disseminada.

2 CONFLITO NA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO


CONGO
O conflito na RDC pode ser dividido em três momentos: a
Primeira e a Segunda Guerra do Congo e o Estado de Violência340 que
se seguiu com o fim oficial das guerras. É chamado por alguns estu-
diosos de “Guerra Mundial Africana”, devido ao número de atores
envolvidos e às proporções humanitárias.
A origem do conflito vem do descontentamento da população
com o regime ditatorial de Mobutu Sese Seko, presidente o qual ha-
via tomado o poder em 1965341 em um golpe e dominava o país até
339
UNSC. Resolução 1820. Disponível em: <http://womenpeacesecurity.org/media/pdf-s-
cr1820.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2013.
340
CASTELLANO, Igor. Congo, a Guerra Mundial Africana: conflitos armados, construção
do estado e alternativas para a paz. Porto Alegre: Leitura XXI, 2012. 272p., p. 46.
341
GHISLENI, Alexandre Peña. Direitos humanos e segurança internacional: o tratamento
dos direitos humanos no Conselho de Segurança das Nações Unidas. - Brasília: Funda-
ção Alexandre de Gusmão, 2011. 292p., p. 106.

492 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
então342. Porém, seu estopim teria sido pelo auxílio fornecido por Mo-
butu às milícias hutus que haviam fugido após atuarem ativamente
no genocídio em Ruanda, o que levou o país vizinho, entre outros
também descontentes com a política de Mobutu343, a apoiar a Aliança
das Forças Democráticas para a Libertação do Congo-Zaire (AFDL).
A AFDL, apoiada pelos governos de Ruanda e Uganda, mar-
cha sobre Kinshasa com o objetivo de depor Mobutu, não encon-
trando resistência da população, e com um exército enfraquecido
devido a diversas medidas preventivas de Mobutu344. Mobutu tam-
bém não possuía mais o mesmo apoio das potências que o apoiaram
durante a Guerra Fria – pois esta havia acabado e “não havia mais
o perigo do comunismo”345. Logo, houve a vitória da AFDL, o “fim”
da Primeira Guerra do Congo e seu líder Laurent Kabila proclama-se
presidente em 1997. Porém, apesar de trocar o nome para República
Democrática do Congo, o regime de Kabila cada vez mais parecia
com o de seu predecessor, o que acabou causando inquietação na
população congolesa e em seus vizinhos, inclusive seus apoiadores.
Em 1998, Kabila ordena a partida de todas as tropas estran-
geiras do país, ordem que fora descumprida. Em seguida, forças
ruandesas avançaram sobre Kinshasa, com o objetivo de substituir
Kabila pelo grupo União Congolesa pela Democracia (RCD, sigla
francesa) – intento impedido pelo auxílio de Kabila aos governos de
Angola, Namíbia e Zimbábue. Logo, estes países estariam todos en-
volvidos em uma segunda guerra travada em território congolês346.
342
Uma das medidas do governo de Mobutu fora, em 1971, mudar o nome do país para
Zaire. Quando Kabila assume o poder, retoma o antigo nome do país, República Demo-
crática do Congo, adotado entre 1964 e 1971.
343
CASTELLANO, Igor. Op. cit., p. 132.
344
A partir de 1975, com receio de que houvesse tentativa de golpe militar contra si, Mo-
butu passa a destruir o próprio exército nacional Zairense. (CASTELLANO)
345
O Brasil foi um dos países a apoiar, inicialmente, Mobutu; tendo como fatores de apro-
ximação os regimes ditatoriais de ambos, e de afastamento as políticas de Mobutu que
se tornaram inconsistentes com o pensamento brasileiro.
346
Tanto a primeira quanto a segunda guerra do congo tiveram características de guerras
proxy, guerras travadas com exércitos mercenários, financiados principalmente através
do mercado negro dos recursos naturais da região.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
493
Em 1999, os Estados envolvidos, mais o Movimento de Libertação
do Congo (MLC), firmaram o Acordo de Lusaka347, prevendo um ces-
sar-fogo, a retirada das tropas estrangeiras, a solicitação de envio de
missões de paz pelas Nações Unidas, e a formação de um governo
provisório.
O conflito foi declarado oficialmente terminado em 2003, po-
rém, as milícias não reconheceram o acordo e continuaram atuando,
principalmente nas regiões de Ituri e Nord e Sud Kivu, tendo nova-
mente ondas de violência e atos de limpeza étnica348. O Estado de Vio-
lência que seguiu no pós-guerra na RDC apresenta números de mor-
tes quase equivalentes ao da Segunda Guerra do Congo, mesmo não
sendo oficialmente “guerra”349. A falta de infraestrutura do país, que
prejudicava a pacificação das regiões mais distantes, é citada como
um dos fatores para a situação violenta no país. Estudos qualificam
a guerra na RDC como a de mais alta mortalidade desde a Segunda
Guerra Mundial350. Até o fim de 2008, o governo de Kinshasa entrou
em mais um conflito, contra o governo de Ruanda, na região leste do
país. Porém, no final de 2008, a RDC e Ruanda uniram forças para
combater a FDLR nas províncias de Kivu do Norte e do Sul. Relatos de
estupros em massa, assassinatos, entre outras atrocidades cometidas
pelos rebeldes e também pelas tropas do governo continuam. Com o
surgimento de um novo grupo rebelde, o M23, o acordo entre a RDC e
Ruanda colapsou, pois a RDC acusa Ruanda de apoiar o M23.
A situação da RDC entra no conceito de “novas guerras”, de
Mary Kaldor351, onde não há delimitação de fronteiras entre guerra,

347
Disponível em: <http://www.un.org/Docs/s815_25.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2013.
348
A característica étnica dos conflitos tem origem no seu período colonial, principalmen-
te na forma de colonização belga.
349
CASTELLANO, Igor. Congo, a Guerra Mundial Africana: conflitos armados, construção
do estado e alternativas para a paz. Porto Alegre: Leitura XXI, 2012. 272p.
350
IRIN, DRC: Conflict deadliest since World War II – aid agency. Disponível em: <http://
www.irinnews.org/Report/42969/DRC-Conflict-deadliest-since-World-War-II-aid-
agency>. Acesso em: 24 abr. 2013
351
KALDOR, Mary. New and Old Wars: Organized Violence in a Global Era. Second Edition.
Stanford University Press, 2007.

494 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
crime organizado, violação em larga escala de direitos humanos e
direito internacional humanitário. Eles se diferenciam dos confli-
tos “tradicionais” em termos de objetivos, formas de organização,
formas de financiamento, e formas de articulação entre o interno e
o externo. Seus objetivos não estão mais relacionais a razões geopo-
líticas ou ideológicas, eles têm a ver com uma questão de política
de identidade, no sentido da luta pelo poder estar baseada numa
identidade particular.
No caso da RDC, o estopim para o conflito fora o transbordo
das milícias hutus ruandesas para território congolês, as quais con-
tinuaram suas atividades contra a população tutsi, no território vi-
zinho, com o apoio de Mobutu. Todavia, esse singular conflito reas-
cendeu outros conflitos étnicos como entre as etnias Hema e Lendu,
na região de Ituri352. Em termos de métodos, as novas guerras têm
mais características de técnicas de guerrilha, com um objetivo de
obter o controle político da população, mais do que de batalhas mi-
litares. O objetivo, aqui, é incitar o medo e o terror na população
local; é controlar a população, livrando-se de todos que tenham uma
identidade ou opinião diferente. Para isso, as técnicas utilizadas in-
cluem assassinatos, deslocamentos forçados, intimidação, estupros
sistemáticos – cada vez mais aumenta o número de vítimas dentro
da população civil. Em termos de organização, os atores do conflito
são altamente descentralizados, unidades paramilitares, senhores
de guerras locais, forças policiais, grupos mercenários, além de gru-
pos militares regulares.
Algumas das milícias atuantes na RDC são: as Forças Demo-
cráticas de Libertação de Ruanda (FDLR), Mai-Mai, M23, Exérci-
to de Resistência do Senhor (LRA)353. Em termos econômicos, estes

352
O caso Hema-Lendu foi agravado durante o governo de Mobutu, pois neste regime
houve uma manutenção status existente na época colonial. Há declarações de que o con-
flito não é entre Hemas e Lendus, e sim entre certos grupos favorecidos e desfavorecidos
da região (CASTELLANO, Igor. Congo, a Guerra Mundial Africana: conflitos armados, cons-
trução do estado e alternativas para a paz. Porto Alegre: Leitura XXI, 2012. 272p.).
353
Lord’s Resistance Army – tradução livre.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
495
países são fundamentalmente dependentes de ajuda externa. O fi-
nanciamento das guerras muitas vezes acontece através do merca-
do negro ou de assistência externa354. A RDC é extremamente rica
em recursos minerais, como diamante, cobre, cobalto, entre outros;
existe uma noção de círculo vicioso devido ao fato de que, estes re-
cursos atraem muitas vezes as milícias para o conflito, e financiam
o próprio conflito.355
Kalyvas356 tem uma distinção entre velhas e novas guerras
civis similar a de Mary Kaldor, porém distingue-as em três dimen-
sões: causas e motivações, suporte, violência. As novas guerras ci-
vis, em suma, diferem das antigas por não possuírem ideologia, há
apenas a busca por lucros e saquear os territórios em que atuam.
Não possuem suporte popular, pois geralmente quem propaga estes
conflitos são milícias rebeldes que atuam estrategicamente contra
a população civil. Por fim, a violência adquire senso de gratuida-
de e falta de disciplina. Uma crítica a essa diferenciação, proposta
pelo mesmo texto de Kalyvas, seria de que alguns pesquisadores
afirmam que as pesquisas realizadas em zonas de conflito não con-
sideram válida a visão dos grupos rebeldes, é apenas enfatizada a
visão do governo, o que sempre irá deslegitimar os possíveis ideais
das milícias. Muitas vezes estes rebeldes agem por motivos que vão
além da simples bandidagem, assim como não só os atos cometidos
por atores não-estatais são percebidos como de violência gratuita
e indescritível, como dos órgãos do próprio governo. Especifica-
mente sobre conflitos na África, diz-se que eles são estigmatiza-
dos, pois, suas visões ideológicas não correspondem aos padrões
“ocidentais”.
354
No caso da segunda guerra do Congo, os países que haviam participado da 1ª, apro-
veitaram o conhecimento de campo adquirido, para maior exploração das riquezas do
território congolês.
355
Em 2010, o governo norte-americano aprova uma lei para proibir o comércio ilegal
de minerais provindos de áreas de conflito. Lei disponível em: <http://www.gpo.gov/
fdsys/pkg/PLAW-111publ203/pdf/PLAW-111publ203.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2013.
356
KALYVAS, Stathis. “New” and “Old” civil wars: a valid distinction? World Politics, v. 54,
n. 1, Oct 2001. Disponível em: <http://www.polsci.wvu.edu/faculty/hauser/Summe-
r2011InternalConflict/KalyvasCivilWarsWP2001.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2013

496 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Em 2006, após 40 anos de independência, ocorreram as pri-
meiras eleições livres do país357. Estas foram estabelecidas com o au-
xílio da MONUC, e tiveram como presidente eleito o filho de Laurent
Kabila, Joseph Kabila. Este se mostrou mais aberto que seus prede-
cessores, procurando retomar o diálogo com seus vizinhos e criar
novos diálogos com outros países, buscando aumentar os direitos
civis, entre outras medidas.

3 O PAPEL DA ONU NO CONFLITO


Em 1999, o Conselho de Segurança das Nações Unidas apro-
vou, através da resolução 1258358, o envio da Missão de Organização
das Nações Unidas na RDC (MONUC), na forma de uma equipe de
observadores, a qual se tornaria com os anos a maior Missão de Paz
das Nações Unidas359. Em maio de 2003, o Conselho de Seguran-
ça das Nações Unidas autorizaria, pela resolução 1484, o envio de
uma Força Multinacional Interina de Emergência, que seria liderada
pela França, para ajudar a MONUC a conter a violência na região de
Ituri. Na resolução de instalação de mandato da MONUC, consta a
tarefa de monitorar os direitos humanos, com “atenção particular
aos grupos vulneráveis como mulheres, crianças e crianças-soldado
desmobilizadas”360.
A MONUC foi planejada inicialmente para observar o cessar
fogo e a retirada das tropas e manter a articulação de todas as partes
com o acordo de cessar-fogo. Mais tarde, em uma série de resolu-
ções, o Conselho expandiu o mandato da MONUC para a supervisão
da implementação do Acordo e atribuiu-lhe múltiplas tarefas adi-

357
UN Peacekeeping, 2006: a year of hope for congolese people. Disponível em: <https://
www.un.org/en/peacekeeping/publications/yir/2006/congo.htm>. Acesso em: 28 abr.
2013.
358
Resolução disponível em: <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N99/230/
08/PDF/N9923008.pdf?OpenElement>. Acesso em 20 abr. 2013.
359
GHISLENI, Alexandre Peña, op. cit., p. 107.
360
MONUC, mandato. Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/
monuc/mandate.shtml>. Acesso em: 10 mar. 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
497
cionais. As primeiras eleições livres do país em 46 anos foram em
2006, e o processo eleitoral representou um dos mais complexos que
a ONU já ajudou a organizar361.
Após as eleições, a MONUC continuou no território, para
continuar a implementação de tarefas políticas, militares, entre
outras mandatadas pelas resoluções do Conselho de Segurança,
incluindo tentar resolver os conflitos que ainda seguiam nas pro-
víncias orientais. Em junho de 2010, através da resolução 1925, o
Conselho renomeou a Missão para Missão de Organização e Esta-
bilização das Nações Unidas para a RDC (MONUSCO), para refletir
sobre a nova fase do país. Esta nova missão foi autorizada para
usar todos os meios necessários para executar seu mandato rela-
tivo a proteger os civis, o pessoal humanitário e os defensores dos
direitos humanos sob ameaça iminente de violência física, e para
apoiar o governo da RDC na estabilização e nos esforços da conso-
lidação da paz362.
As futuras reconfigurações da MONUSCO seriam determina-
das de acordo com a situação do território, incluindo: a realização de
operações militares nas províncias de Kivu do Norte e do Sul, assim
como outras províncias orientais; capacidades governamentais me-
lhoradas de proteger a população efetivamente; e a consolidação do
estado de autoridade para todo o território.

4 A VIOLÊNCIA SEXUAL COMO ARMA DE


GUERRA NA RDC
Desde o início do conflito, inúmeros casos de violência se-
xual têm sido registrados na República Democrática do Congo – e
acredita-se que outros tantos aconteceram, mas não devem estar
registrados. A escala destes abusos e suas consequências física,
361
MONUSCO. Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/monus-
co/background.shtml>. Acesso em: 10 mar. 2013.
362
MONUSCO, mandato. Disponível em: <http://www.un.org/en/peacekeeping/mis-
sions/monusco/mandate.shtml>. Acesso em: 10 mar. 2013.

498 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
emocional e econômica continuam a reforçar a instabilidade, espe-
cialmente no leste do país363, devido à presença das milícias hutus
ruandesas, e os conflitos étnicos congoleses. Margot Wallstrom,
representante especial das Nações Unidas sobre violência sexual
em conflitos armados, nomeou a RDC como a “capital mundial do
estupro”364.
As vítimas deste tipo de violência não têm perfil exato. Crian-
ças, bebês e até senhoras idosas sofrem esses ataques. Em relatório
da anistia internacional365, há relatos que afirmam que, devido a su-
perstições, há preferência por crianças antes de atingirem a puber-
dade e mulheres pós-menopausa, pois os perpetradores acreditam
que estas os farão imunes a doenças, inclusive ao HIV/AIDS, ou ain-
da os curará caso já estejam infectados.
Acredita-se, todavia, que há uma relação direta entre a dis-
criminação praticada contra as mulheres de forma geral e a violên-
cia exacerbada sobre ela em tempos de guerra366. A desigualdade de
gênero na RDC está impregnada em todos os níveis da sociedade,
desde o sistema jurídico (que, por exemplo, em caso de adultério
possui uma lei mais severa para mulheres do que para homens),
até o sistema educacional, que incentiva as mulheres a ficarem em
casa e os homens a estudarem, o que gera uma enorme discrepância
na taxa de analfabetismo entre os gêneros. O fato de a mulher ser
considerada uma propriedade do homem já antes da guerra é um
incentivo às violências sofridas durante o conflito.

363
Background on sexual violence. Disponível em: <http://monusco.unmissions.org/De-
fault.aspx?tabid=10817&language=en-US>. Acesso em: 10 mar. 2013.
364
BBC, “UN official calls DR Congo “rape capital of the world”. Disponível em: <http://
news.bbc.co.uk/2/hi/8650112.stm>. Acesso em: 18 fev. 2013.
365
ANISTIA INTERNACIONAL, DEMOCRATIC REPUBLIC OF CONGO: Mass Rape – Time
for Remedies. Disponível em: <http://www.amnesty.org/en/library/info/AFR62/018/
2004>. Acesso em: 25 abr. 2013.
366
FITZPATRICK, Brenda. Tactical Rape as a Threat to International Security: A Norm De-
velops. Disponível em: <http://cesran.org/index.php?option=com_content&view=arti
cle&id=1459%3Atactical-rape-as-a-threat-to-internationalsecurity-a-norm-develops&-
catid=67%3Amakale-ve-raporlar&Itemid=107&lang=en>. Acesso em: 20 abr. 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
499
Já sobre o perfil dos perpetradores, todas as forças armadas
envolvidas no conflito já cometeram estupro e violência sexual, in-
cluindo forças do governo. Isso significa as milícias Mai-mai, RDC-
Goma, MLC, RCD-ML, UPC, FNI, FAPC, FDLR, FDD, FNL, e forças
armadas de RDC, Ruanda, Burundi e Uganda367. As forças armadas
ou milícias atacam vilarejos, atacam a população civil, estupram as
mulheres, crianças, torturam todos, fazem uso de tratamento de-
gradante, saqueiam e vão embora, às vezes sequestrando algumas
meninas do local como “esposas” ou “escravas sexuais”.
A situação das meninas tomadas como esposas é particular-
mente grave368. Quando raptadas, elas podem ficar meses, até anos
com seus malfeitores. No caso de serem raptadas por forças oficiais
de outro país, com o fim do conflito, muitas vezes por vergonha de
voltar às suas comunidades de origem, ou por não terem outra es-
colha, seguem as tropas estrangeiras na retirada ao país de origem.
Quando em outro território, seus sequestradores voltam para suas
famílias, e elas ficam sem lar, sem proteção legal do governo, tendo
que recorrem à prostituição como forma de sobrevivência.
A situação das gravidezes em função dos estupros é outra
problemática que repercute muito além do conflito, tendo impactos
muito além da própria agressão. Os filhos nascidos em razão des-
ta violência, quando não rejeitados pela própria mãe, por ser uma
memória do ataque, são rejeitados pela comunidade em que vivem.
São as chamadas “crianças do inimigo”369, e ainda que a mãe passe
a aceitá-lo, muitas vezes ela é obrigada a se excluir daquela comuni-
dade com a criança para criá-la de uma forma mais digna.
Outra questão é a falta de proteção das mulheres e meni-
nas deslocadas: muitas vezes elas são “interceptadas” ao saírem em
busca de água, lenha, alimentos370. Quanto mais nova, maiores são
367
ANISTIA INTERNACIONAL, op. cit.
368
Idem.
369
Idem.
370
IDMC; NRC. Democratic Republic of Congo: IDPs needs further assistance in context
of continued attacks and insecurity. Disponível em: <http://www.internal-displace-

500 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
as chances de elas serem raptadas para servirem como escravas se-
xuais, para gravidezes forçadas, ou até para a formação de “crianças-
-soldado”. Em 2007, o Secretário-Geral das Nações Unidas lançou
um relatório sobre a situação das crianças em conflitos armados,
enumerado uma lista de 58 partes que recrutam ou utilizam crianças
em situação de conflito armado em 13 países do mundo371.
Dentre as motivações descritas em relatório da Anistia In-
ternacional372, tem-se como fator comum a impunidade. As forças
armadas, sejam milícias ou oficiais, cometem tais atos pela noção
de que será muito difícil que algo lhes aconteça. Esse é, também,
um dos maiores fatores que acua as vítimas na hora de depor contra
seus malfeitores.
De acordo com Denis Mukwege373, médico ginecologista o qual
teve uma grande atuação humanitária salvando meninas e mulheres
vítimas de violência sexual na RDC, o estupro começou a ser utiliza-
do, sistematicamente, como arma de guerra, em torno de 1999; e a
questão não era apenas a violência sexual, a maioria das vítimas as
quais ele tratava havia sido mutilada, como, por exemplo, levando
tiros em suas pernas e órgãos genitais. Como forma de humilhar não
só a vítima, mas toda a comunidade, muitas vezes a violência sexual
era praticada em grupo na frente de toda a comunidade.
Em relatório lançado de parceria entre o Centro de Monito-
ramento de Deslocados Internos (IDMC) e o Conselho Norueguês
de Refugiados (NRC)374 sobre a situação da RDC, em 2011, os nú-
meros são alarmantes. Em julho de 2011, ainda havia um número

ment.org/8025708F004CE90B/(httpCountrySummaries)/FE8DB3FD4D9A0D5B-
C12578FE002BF556?OpenDocument&count=10000>. Acesso em: 08 mar. 2013.
371
UNSC, Final report of the Group of Experts on the DRC, pursuant to Security Council
resolution 1698 (2006). Disponível em: <http://www.securitycouncilreport.org/atf/
cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/CAC%20S2007%20423.pdf>.
Acesso em: 22 abr. 2013.
372
ANISTIA INTERNACIONAL, op. cit.
373
BBC: Denis Mukwege: The rape surgeon of DR Congo. Disponível em: <http://www.bbc.
co.uk/news/magazine-21499068>. Acesso em: 07 mar. 2013.
374
IDMC; NRC, op. cit.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
501
estimado de 1,7 milhões de pessoas deslocadas internamente. Esse
número incluía mais de 128.000 “novos” deslocados no primeiro
quarto de 2011. A maioria estava fugindo em tentativa de escapar
de grupos rebeldes e das forças armadas congolesas, enquanto ou-
tros eram vítimas diretas dos ataques e violências perpetradas por
estas partes e por outros indivíduos armados. Como já previamente
citado, a MONUSCO tem fornecido apoio ao exército na luta contra
os grupos rebeldes, assim como tem liderado pequenas operações
também.
Em 2011, grupos armados não estatais conseguiram retomar
posições antigas e renovar ataques contra civis, matando e estupran-
do os deslocados internos, que são os grupos mais vulneráveis da
população civil, enquanto o exército estava sendo retirado, deixando
a população sem nenhuma proteção. Devido a esses níveis de inse-
gurança, as taxas de retorno diminuíram em 2011, quando compa-
radas aos meses anteriores375. Houve também problemas com a fron-
teira da Angola quando, de janeiro de 2010 a janeiro de 2011, foram
expulsos 70.000 congoleses, com relatos de violências sexuais, e ou-
tros tipos de tortura. Parceiros humanitários insistem que se tenha
uma assistência básica aos mais vulneráveis, e que estas expulsões
sejam levadas da maneira mais digna e de acordo com os princípios
do direito internacional dos direitos humanos376.
Yakin Ertürk377, relatora das Nações Unidas, em missão espe-
cial na RDC, destacou que entre os perpetradores estavam homens
de milícia, membros das forças armadas do exército congolês, oficiais
da polícia nacional e, em número cada vez maior, civis. Continuando
seu relato, ela descreve que a situação é mais “aguda” em Kivu do
Sul, onde grupos armados não estatais, principalmente milícias es-
trangeiras, praticam atrocidades com “brutalidade inimaginável”,
375
IDMC; NRC, op. cit.
376
Idem.
377
UNHRC. Relatório do Relator Especial sobre a violência contra as mulheres, suas causas
e consequências. Disponível em: <www.unhcr.org/refworld/docid/4a3f5fc62.html>.
Acesso em: 07 mar. 2013.

502 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
visando à destruição completa do psicológico e do físico daquelas
mulheres, com implicação para a sociedade como um todo.

5 A EVOLUÇÃO DA QUESTÃO NO ÂMBITO


DA ONU
No âmbito internacional, tem-se procurado proteger as mu-
lheres das desigualdades de gênero através de convenções como a
Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação
Contra a Mulher (CEDAW)378, e outras conferências mundiais da
ONU sobre a mulher, dentre elas a Conferência de Pequim, que deu
origem a “Declaração de Pequim”, a qual contem um capítulo intei-
ro que versa sobre mulheres e conflito armado, com um respectivo
Plano de Ação para os governos guiarem suas políticas. Este foi o
primeiro grande passo para quebrar o tabu existente sobre o tema.
A temática da violência contra mulheres e crianças em con-
flito armado passou a ter maior evidência no ano de 2000, quando,
a partir da Resolução 1.325379, foi abordada pela primeira vez no
âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Essa reso-
lução é considerada um marco histórico para a questão da prote-
ção das mulheres em conflito armado, pois a partir dela que co-
meçaram a ser idealizadas metas para a abolição das práticas de
violências baseadas em questões de gênero em conflito armado. A
questão das mulheres em conflito armado só teria sido abordada
previamente na Declaração de Pequim380, a qual é relembrada no
preâmbulo da Resolução 1.325.
A resolução é tratada como um marco, pois, pela primeira
vez em um órgão tão importante no âmbito internacional, reconhe-

378
CEDAW. Disponível em: <http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/text/econven-
tion.htm>. Acesso em: 18 mar. 2013.
379
UNSC. Resolução 1325. Disponível em: <http://www.un.org/events/res_1325e.pdf>.
Acesso em: 19 mar. 2013.
380
Declaração de Pequim e Plataforma de Ação. Disponível em: <http://www.un.org/wo-
menwatch/daw/beijing/pdf/BDPfA%20E.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
503
ce-se publicamente a vulnerabilidade das mulheres em situações de
conflito armado. Especifica-se que a população civil, especialmente
mulheres e crianças, são os maiores afetados em conflitos armados,
principalmente como refugiados e deslocados internos, pois são al-
vos tanto de forças armadas oficiais quanto das milícias.
Também se tem como marco referencial da resolução a ênfa-
se dada ao reconhecimento do papel da mulher na prevenção e reso-
lução dos conflitos e no processo de construção da paz, ressaltando
a importância de sua participação em todos os processos de tomada
de decisão; bem como a urgência de integrar uma perspectiva de gê-
nero nas operações de paz, relembrando a Declaração de Windhoek
e o Plano de Ação da Namíbia para a Integração da Perspectiva de
Gênero em Operações de Suporte de Paz Multidimensionais381.
A implementação da resolução tem sido agilizada através
do desenvolvimento de Planos de Ação Nacionais (NAP) e outras
estratégias em níveis nacionais. Estes NAP assistem aos países na
identificação de prioridade e recursos, determinando suas respon-
sabilidades e comprometendo-se na ação. Dentre os países que já se
comprometeram com o NAP, encontram-se: Bélgica, Canadá, Libé-
ria, Estônia, Finlândia, entre outros – incluindo a própria RDC.
Outro ponto chave da Resolução 1.325 é a luta para retirar os
crimes de violência sexual contra mulheres e crianças como passíveis
de anistia, enfatizando a responsabilidade dos Estados em acabar com
a impunidade e julgar os culpados elencando junto com crimes de ge-
nocídio, crimes contra a humanidade, e crimes de guerra, dando uma
maior segurança às vítimas, principalmente às refugiadas que dese-
jam voltar para suas casas. Uma das críticas aos processos de “fim”
de conflito da RDC é a incorporação de todos os atuantes do conflito
em papeis centrais da administração e no exército congolês, que além
de ser o contrário de punir os responsáveis pelas atrocidades, incita

381
Declaração de Windhoek. Disponível em: <http://www.un.org/womenwatch/osagi/
wps/windhoek_declaration.pdf>. Acesso em: 11 mar. 2013.

504 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
o surgimento de novas milícias ou ressurgimento de antigas milícias
desejosas de obterem para si cargos de relevância administrativa.
A UNIFEM, em documento-comentário à resolução 1325382,
explica que a questão da anistia pode facilitar nos processos de
acordos de paz, deixando os culpados por crimes tão hediondos es-
caparem livres destas atrocidades. Porém, essa é uma das maiores
problemáticas da justiça de transição: diz-se que há urgência para
alcançar a paz, mas qual paz está realmente sendo buscada – a paz
negativa, onde só se visa o fim do conflito, em que as desigualdades
e as injustiças permanecem, podendo gerar conflitos no futuro, ou
a paz positiva, que visa o fim dos conflitos e reformas sociais para
o bem da população. “A reintegração de ex-combatentes que teriam
cometido crimes contra as mulheres, além de se enquadrar na situa-
ção de impunidade, é um desrespeito às mulheres, não levando em
consideração seu sofrimento nem suas necessidades”.
Outra resolução do Conselho de Segurança das Nações Uni-
das foi bem relacionada às mulheres, sobre um tema ainda mais
específico: a resolução 1820383, de 2008. Nesta resolução, o Conselho
tratou especificamente do fato de o estupro estar sendo utilizado
como arma de guerra. Ela reitera que a prática de ataque à popu-
lação civil tem como alvo principal as mulheres pelo uso da violên-
cia sexual, incluindo-a como tática de guerra para humilhar não só
estas mulheres, mas como toda a comunidade em que elas vivem,
forçando muitas vezes toda a sua família da vítima a se deslocar por
não conseguir viver com esta violação da honra. Além disso, preo-
cupa o fato de que as práticas de violência sexual, em alguns casos,
continuam a ocorrer mesmo após a cessação das hostilidades384.
A Resolução 1.820 também tem uma preocupação com o fato
de que, apesar da condenação prévia da resolução anterior, a violên-

382
UNIFEM. Resolução 1325 comentada. Disponível em: <http://www.peacewomen.org/
pages/about-1325/scr-1325-what-it-means>. Acesso em: 25 fev. 2013.
383
Resolução 1820. Disponível em <http://womenpeacesecurity.org/media/pdf-scr1820.
pdf>: Acesso em: 19 fev. 2013.
384
Idem.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
505
cia sexual praticada contra mulheres e crianças continua a ocorrer, e
em alguns casos sistematicamente, com características de brutalida-
de, assim como a população civil tem cada vez mais percebido como
uma situação “normal”, e em número cada vez maior os perpetra-
dores estão, além de em grupos armados rebeldes ou do governo, na
própria população civil385.
Além destas duas resoluções, há algumas posteriores, para
reforçar o papel delas: a resolução 1888, a qual tem entre suas pro-
visões o monitoramento mais sistemático, prevendo relatórios sobre
os conflitos relacionados à violência sexual, solicitando a considera-
ção de problemas de violência sexual dentro dos processos de paz,
abordando a implantação de times – de militares e experts sobre a
questão de gênero – em áreas de conflito, entre outros. Já a resolu-
ção 1889, a qual se concentra no envolvimento das mulheres du-
rante o período pós-conflito e na reconstrução da região envolvida,
enfatizando a importância do aumento das mulheres entre o pessoal
de peacekeeping e peacebuilding, trata de obstáculos da participação das
mulheres nos processos de paz, e pede pelo desenvolvimento de in-
dicadores globais para seguir a implementação da Resolução 1.325,
e a melhoria das respostas nacionais e internacionais às necessida-
des das mulheres em cenários de conflito e pós-conflito. Por fim, a
Resolução 1.960, pede o fim da violência sexual em conflito armado,
e visa a criação de ferramentas institucionais para combater a impu-
nidade, esboçando passos específicos para a prevenção e proteção da
violência sexual no conflito386.
Estas resoluções, em suma, pregam que as mulheres, quando
em situação de conflito armado ou em território sob domínio estran-
geiro, além de estarem em uma situação complexa como o restante
da população civil, sofrem um tipo particular de violência, a vio-
385
Resolução 1820. Disponível em <http://womenpeacesecurity.org/media/pdf-scr1820.
pdf>: Acesso em: 19 fev. 2013.
386
Demais resoluções: <http://www.un.org/en/sc/documents/resolutions/index.shtml>
PeaceWomen. Comentários das resoluções 1888, 1889, 1960. Tradução livre. Disponí-
vel em: <http://www.peacewomen.org/themes_theme.php?id=14&subtheme=true>
Acesso em: 26 fev. 2013.

506 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
lência baseada no gênero, como prática de dominação de um povo
ou ainda humilhação do povo já dominado. É também enfatizada a
importância do papel da mulher na resolução destes conflitos, nos
processos de construção e manutenção da paz, posto que não acre-
ditam que a paz será realmente alcançada se não tiver uma posi-
ção das mulheres, defendendo as suas necessidades, a partir do seu
próprio ponto de vista. A própria Organização das Nações Unidas
requer uma maior participação de mulheres nas suas atividades de
construção e manutenção da paz, como espécie de “consultoras” ao
pessoal técnico. Para isso, precisa-se de uma maior ocupação destas
mulheres também em cargos de liderança, em posições efetivas de
tomada de decisões.
A partir desses marcos, começa-se a caminhar, ao menos no
âmbito das organizações internacionais, ainda que timidamente, em
direção a uma maior cooperação em direção à proteção de mulheres
que se encontram tão vulneráveis.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A vulnerabilidade das mulheres, principalmente em época
de conflito armado, é um assunto cada vez mais emergente no ce-
nário internacional, o qual não pode mais ser ignorado. Ainda que
haja boas iniciativas por parte do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, através da introdução da questão em suas resoluções, faz-
-se necessário um maior impulso junto aos países, pois é visível que
as medidas não estão sendo implementadas. O que está ocorrendo,
de fato, nos conflitos, é a continuidade das violências baseadas no
gênero de forma sistemática, apesar dos esforços contínuos da co-
munidade internacional.
No caso da República Democrática do Congo, o excesso de
violência contra a população de sexo feminino em tempos de guerra
é visto como um reflexo da própria sociedade congolesa, que mesmo
em tempos de paz é severa e desigual com as mulheres. Por isso,

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
507
faz-se necessária a maior participação das mulheres nos processos
de construção e manutenção da paz, o maior acesso delas às insti-
tuições políticas, bem como uma maior conscientização pós-conflito
na sociedade, para acabar com a culpabilidade da vítima, que fica
estigmatizada pelo ocorrido, vivendo excluída de sua comunidade,
deslocada por ter sofrido aquela violência.
Também reforça-se o pedido para uma maior cooperação en-
tre os países de território limítrofe em questões de assistência huma-
nitária, no acolhimento em campos de refugiados, até que a situação
possa ser revertida e estas pessoas possam retornar a salvo para suas
casas.

7 REFERÊNCIAS
ANISTIA INTERNACIONAL. Democratic Republic of Congo: Mass Rape – Time
for Remedies. Disponível em: <http://www.amnesty.org/en/library/info/
AFR62/018/2004>. Acesso em: 25 abr. 2013.
BBC; Denis Mukege: The rape surgeon of DR Congo. Disponível em: <http://www.
bbc.co.uk/news/magazine-21499068>. Acesso em: 07 mar. 2013.
BBC; Q&A: DR Congo Conflict. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/news/
world-africa-11108589>. Acesso em: 09 mar. 2013.
BBC, UN official calls DR Congo “rape capital of the world”. Disponível em: <http://
news.bbc.co.uk/2/hi/8650112.stm>. Acesso em: 18 fev. 2013.
CASTELLANO, Igor. Congo, a Guerra Mundial Africana: conflitos armados, constru-
ção do estado e alternativas para a paz. Porto Alegre: Leitura XXI, 2012. 272p.
CEDAW. Disponível em: <http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/text/
econvention.htm>. Acesso em: 18 fev. 2013.
Conselho de Segurança das Nações Unidas, Final report of the Group of Experts on
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508 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
509
MINUSTAH: AS DIFERENTES PERCEPÇÕES
DE UMA LONGA MISSÃO
Mayra Coan Lago
Mestranda do Programa de Integração da América Latina (PROLAM/USP). Pós-
-graduanda em Política e Relações Internacionais na Fundação Escola de Política e
Sociologia (FESP) e graduada em Relações Internacionais pela Fundação Arman-
do Alvares Penteado (FAAP). (mayracoan@usp.br)

Resumo:
Este artigo tem o objetivo de demonstrar os diferentes olhares sobre o mesmo fenômeno: a
Minustah. A partir de “como nós olhamos” e “como eles olham” a Minustah, pretende-se fa-
zer uma reflexão acerca do significado das tropas militares no Haiti, além de suas implicações
ou influência nas violações de direitos humanos da população. Nesse sentido, pretende-se,
em um primeiro momento retomar a história do Haiti para entender e identificar os elemen-
tos que continuaram fazendo parte após a permanência da Minustah e os que surgiram por
esse motivo. Em um segundo momento, repensar as tropas da Minustah sob duas visões
diferentes: a visão brasileira e a visão haitiana. Por fim, busca-se uma reflexão acerca das
perspectivas do povo haitiano frente aos diversos desafios que estão enfrentando.
Palavras-chave: Brasil – Haiti – MINUSTAH – Direitos Humanos – Tropas de Paz.

Sumário:
1. Introdução. 2. Haiti: Seis séculos de veias abertas. 3. Minustah: Como nós olhamos. 4.
Minustah: Como eles nos olham. 5. Considerações Finais. 6. Referências

1 INTRODUÇÃO
O Haiti é um país com 9,8 milhões de habitantes. Dentre eles,
80% da população está abaixo da linha da pobreza, 40% está desem-
pregada e 47,1% é analfabeta. Este último dado está diretamente
ligado ao fato de o país ter duas línguas oficiais, o francês e o crioulo,
sendo que a primeira é falada pela elite e a segunda só foi reconheci-
da em 1986, representando a massa da população (CIA FACTBOOK,

510 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
2013, on line). Embora a situação esteja caótica do ponto de vista
dos dados, alguns especialistas afirmam que nem sempre o Haiti foi
assim, sendo fruto de uma exploração histórica que foi iniciada pela
França e continuada pelos Estados Unidos.
A instabilidade política do país atingiu o auge em 2004 quan-
do, o então presidente, Jean Bertrand Aristide teve de partir para
o exílio após três anos no governo. Apesar de a Missão de Estabili-
zação das Nações Unidas para o Haiti (Minustah) ter iniciado sua
permanência no país em 2004, foi apenas em 2010 que os “olhos do
mundo” voltaram-se para o Haiti que estava devastado por um ter-
remoto de magnitude de 7,3 graus na escala Richter. A partir deste
momento, a situação do país que era crítica por problemas estru-
turais históricos, configurou-se sub-humana do ponto de vista das
condições enfrentadas pela população. Nesse sentido, o povo haitia-
no tem passado por situações como: fome, miséria, desabrigo, con-
dições higiênicas precárias, violência, explorações sexuais, doenças,
entre outros.
O Brasil é responsável pelas tropas da Minustah desde 2004.
Do ponto de vista de sua política externa, nota-se uma importante
mudança de paradigma da política externa brasileira, passando de
um princípio de não ingerência387 para o da “não indiferença”388. Isso
significou: que a partir deste momento prestaríamos apoio e solida-
riedade ativos em situações de crise, sempre que formos solicitados
e for representar um papel positivo; e que a partir deste momento,

387
Baseado nesse princípio, o país declinava da participação de missões, por exemplo,
de intervenções humanitárias, uma vez que interferir em assuntos internos de outros
países significa abrir precedente nesse campo e, consequentemente, estar disposto a
suportar tais medidas em seu domínio doméstico. No mesmo sentido, reafirmando a
sua posição pacifista e mediadora, recusava-se a integrar missões autorizadas sob o
capítulo VII da Carta da ONU (CARVALHO; ROSA, 2011).
388
De acordo com Celso Amorim, o então Ministro das Relações Exteriores da época, a
“não indiferença” realça o princípio da solidariedade e da justiça social. Esses elemen-
tos devem nortear a ação de qualquer Estado aos seus pares (LIMA, 2005).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
511
o Brasil teria um papel mais ativo na região quando se tratar de in-
tervenções humanitárias. Atitude que reforçaria e ampliaria a sua
liderança regional e a sua projeção internacional, principalmente na
Organização das Nações Unidas.
Levando em consideração essas informações iniciais e basean-
do-se nessa alteração do princípio da não-ingerência brasileira, o ar-
tigo tem como objetivo demonstrar as diferentes percepções de um
mesmo fenômeno: Minustah. Nesse sentido, o trabalho está dividido
em três partes principais, além da introdução e considerações finais:
a primeira parte tratará do breve histórico do Haiti, procurando iden-
tificar os problemas estruturais do país e o sofrimento da população
resultado, em grande parte, de uma exploração sem limites e da cons-
tante violação dos direitos humanos; a segunda parte tratará da Mi-
nustah pelos “nossos olhares”, isto é, a presença militar no Haiti e o
que ela representa e significa, assim como quais foram os avanços e
os desafios, além dos resultados alcançados; e a terceira parte tratará
da Minustah pelos “olhares dos haitianos”. Embora não esteja narra-
do apenas por haitianos, esta parte tem como objetivo demonstrar os
outros aspectos e os desdobramentos das tropas no Haiti, assim como
levantar questões acerca de alguns resultados apresentados até o mo-
mento atual e dos desafios que as tropas ainda vão enfrentar.
É importante dizer que pelo tema ser complexo, vasto e
delicado, não pretendo criticar ou colocar uma das visões que serão
apresentadas como a “correta”. O que pretendo é apresentar essas
visões e, a partir delas, iniciar uma profunda reflexão dos diferentes
olhares e das implicações das atitudes das tropas para o país,
buscando identificar as perspectivas para esta população.

2 HAITI: SEIS SÉCULOS DE VEIAS ABERTAS


Nos últimos anos tem-se nomeado o Haiti como o “país
mais pobre das Américas e um dos mais pobres do mundo”. Se-
gundo Franck Seguy (2010), o adjetivo pobre não seria a me-

512 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
lhor maneira de falar do Haiti, sendo mais conveniente falar de
um povo “empobrecido”. Isso é justificado pelo fato da história
do Haiti ser composta por dois elementos: luta e exploração. Nes-
se sentido, o subtítulo desse tópico, cunhado do livro do Eduardo
Galeano389, é adaptado pelo haitiano como a melhor forma de ca-
racterizar a situação atual do Haiti.
Diante de tal declaração, considero interessante retomar os
principais fatos do país a partir de um breve histórico com o intuito
de demonstrar que o país tem problemas estruturais históricos, as-
sim como a nítida violação de todos os direitos de cidadãos e conse-
quentemente, dos direitos humanos.
O Haiti tornou-se colônia francesa no final do século XVII,
a partir do Tratado de Ryswick390. Na época, o país era conhecido
como “Pérola nas Antilhas” pela produção de grande quantidade
de café e açúcar, por meio da exploração escrava, para o mercado
mundial (JOACHIM, 1979). Devido à intensa exploração e a insa-
tisfação da população, o Haiti foi o primeiro país latinoamericano e
a primeira República negra a proclamar a Independência em 1804,
além de ser o primeiro país a acabar com a escravidão no mundo.
A Independência do Haiti teve desdobramentos que auxiliaram a
deterioração do país. Entre estes, destacam-se: isolamento pela falta
de reconhecimento da Independência pela metrópole e pelos demais
países; bloqueio econômico pelo motivo anterior; e devedor em ra-
zão de uma divida altíssima pelo reconhecimento de sua Indepen-
dência pela metrópole391. Também é preciso mencionar a devastação
causada pela guerra da Independência.
389
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L & PM,
2012.
390
Em 1697, a Espanha fez com a França um tratado, do qual resultou a separação da ilha
em duas partes, que são conhecidas hoje como a República Dominicana (leste) e a Re-
pública do Haiti (oeste) (COGGIOLA, 2010).
391
De acordo com Benoit Joachim (1979), tratava-se de um embargo internacional que,
em 1825, impôs ao Haiti a obrigação de pagar 150 milhões de francos-ouros à França
para que fosse reconhecida a Independência. O valor, que era quatro vezes o orçamen-
to público da república francesa naquela época, foi avaliado em 2003 em 21 bilhões de
dólares (CIA FACTBOOK, on line).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
513
De acordo com Ricardo Melani (2010), os Estados Unidos
invadiram o Haiti em 1915 e mantiveram-se a força até 1934392, a
partir da ocupação militar e da dominação das revoltas populares.
Desse período em diante, quase todos os governos, direta ou indi-
retamente, deram continuidade à política de defesa aos interesses
norteamericanos. Entre os mais conhecidos “defensores” estão:
François Duvalier, também conhecido como “Papa Doc” 393, e seu
filho, Jean Claude Duvalier, também conhecido como “Baby Doc”
394
, que governaram o país de 1957 a 1986. Apoiada pelos Esta-
dos Unidos, a ditadura Duvalier implementou um programa que
destruiu as pequenas propriedades camponesas para fornecer mão
de obra para as indústrias multinacionais395. Além disso, a dívida
externa e a corrupção aumentaram significativamente, o que pro-
porcionou o enriquecimento dos governantes e o empobrecimento
dos haitianos.
392
De acordo com Eduardo Galeano (2010), o secretário de Estado americano, Robert Lan-
sing justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz
de governar-se a si própria, pois tem “uma tendência inerente à vida selvagem e uma
incapacidade física de civilização”. Um dos responsáveis da invasão, William Philips,
desenvolveu tempos antes a sagaz idéia: “Este é um povo inferior, incapaz de conservar
a civilização que haviam deixado os franceses” (p. 5).
393
François Duvalier era médico e foi Ministro de Estimé, o então presidente. Reunia ao
seu redor os representantes mais destacados da oligarquia negra e uma fração ativa e
pequena de comerciantes instalados no Haiti. Recebeu o apelido afetivo de “Papa Doc”
pelo seu comportamento brando e passivo. Com a ascensão à presidência, Papa Doc
mostrou o outro lado da sua personalidade, iniciando um período que ficou conhecido
como O terror (CASANOVA, 1990).
394
Jean Claude Duvalier, Baby Doc, assumiu o cargo de presidente vitalício com 19 anos,
como sucessor do seu pai. Baby Doc governou o país entre 1971 e 1986, quando se re-
fugiou na França. De acordo com a Justiça do Haiti, Baby Doc desviou mais de US$ 100
milhões de obras sociais. Durante seu governo, Baby Doc perseguiu, torturou e matou
opositores. Além disso, os Tonton Macoute, a polícia armada do governo, aterroriza-
ram a população durante anos. Baby Doc refugiou-se na França, mas, atualmente, vive
no Haiti onde está sendo acusado de crimes contra a humanidade. Cabe dizer que por
sua representatividade e influência, alega-se que parte de seus crimes estão prescritos
(CASANOVA, 1990).
395
É importante ressaltar que em decorrência dessas medidas, muitos camponeses deixa-
ram o campo para as cidades, sobretudo, Porto Príncipe. De acordo com Franck Seguy
(2010) é isso que “explica” o porquê de 300 mil pessoas terem sido mortas no terremo-
to do dia 12 de janeiro. Porto Príncipe é uma cidade cuja arquitetura foi concebida para
abrigar somente 500 mil habitantes, no entanto, a partir das políticas acima apontadas,
acabou agrupando quase 3 milhões de pessoas.

514 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Também merece destaque a criação de zonas francas396. Nes-
ses locais, as empresas internacionais têm imunidades, além de ex-
plorarem a mão-de-obra barata do país. Esses “ambientes de tra-
balho” estão presentes até os dias atuais no Haiti. De acordo com
Franck Seguy (2010), nessas “áreas de trabalho”, os operários rece-
bem um salário mensal equivalente a 110 reais, fabricando produ-
tos que não podem comprar397. É importante dizer que muitas vezes
esse mesmos funcionários não têm acesso à água potável ou a um
banheiro.
Em 1986, após um longo período de lutas, o povo haitiano
por meio de grande rebelião popular derruba a ditadura dos Duva-
lier. As eleições de 1990, sob uma nova Constituição, despertaram
a “esperança democrática” de um governo distinto, comprometido
com as massas. Esse governo foi representado pelo ex-padre salesia-
no Jean-Bertrand Aristide398. Contudo, poucos meses após assumir,

396
Essas “áreas de trabalho” foram incentivadas no governo de Aristide. Segundo Ricar-
do Melani (2010), as dezoito zonas francas que foram criadas por Aristide em 2002
são regiões nas quais as empresas não sofrem tributação como no restante do país,
e em que tampouco são respeitadas as condições sociais e trabalhistas básicas. O
autor comenta que uma costureira na capital Porto Príncipe recebe o equivalente à
US$ 0,50 por hora. É uma remuneração inferior aos US$ 3,27 pagos no Brasil e muito
abaixo dos US$ 16,92 dos Estados Unidos, conforme a consultoria Werner (MELANI,
2010, p.28).
397
Em sua entrevista à Revista PUC Viva, o haitiano relata um caso que não deveria ter
espaço na mente humana. De acordo com Franck Seguy, em linhas gerais, no ano de
2004, a Companhia de Desenvolvimento Industrial (Codevi) entrou em confronto com
o Sindicato dos Operários da Codevi Wanament (Sokowa, em crioulo). Devido à insa-
tisfação da Codevi com relação às reinvidicações dos direitos que as mulheres estavam
requerendo, a companhia lançou uma “campanha de vacinação” para proteger a saúde
dos trabalhadores. No entanto, não era uma simples campanha de vacinação e assim,
os resultados foram inimagináveis: as trabalhadoras que estavam grávidas abortaram,
até mesmo as que estavam no nono mês; as mulheres não-grávidas tiveram as suas
menstruações alteradas e descontroladas e passaram a observar uma secreção ver-
dejante na vagina e assim por diante. Foi um jeito encontrado por Fernando Capellan
para não ter que dar licença-maternidade, além de aumentar a produtividade de cada
trabalhadora. Importante destacar que o caso foi ignorado pelas autoridades (SEGUY,
2010, p.18).
398
Jean-Bertrand Aristide é um ex-padre salesiano. Foi ligado à Teologia da Libertação e a
setores progressistas da igreja católica no Haiti durante o sacerdócio. Sua importância
também é ligada ao fato dele ter sido o primeiro presidente a discursar em crioulo no
dia da posse- idioma que só foi reconhecido como oficial no ano de 1986 (HIRST, 2009).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
515
Aristide foi deposto399 por um golpe militar comandado por Raoul
Cédras400.
A Junta Militar governou sob um embargo promovido pela
Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização das
Nações Unidas (ONU). O embargo coletivo ou não seletivo provocou
graves problemas, atingindo especialmente a população mais caren-
te. Em 1994 Jean Bertrand Aristide é reestabelecido por Bill Clinton,
então presidente dos Estados Unidos, a partir de uma operação mili-
tar definida como “invasão consentida” (HIRST, 2007) 401.
Segundo Ricardo Seitenfus (2009), em 2001 Aristide reele-
ge-se para um segundo mandato sob eleições controversas. Ainda
de acordo com o autor, o segundo mandato de Aristide foi mar-
cado pelo que chamou de “maldição no Palácio Nacional”, onde
seus ocupantes tendem a se transformar com o exercício do poder.
Aristide organizou a violência com milícias paralelas, integradas
inclusive por crianças e, desse modo, perdeu apoio de quase todas
as forças que o conduziram ao poder. Em 2004, três anos depois de
eleito, é obrigado a partir para o exílio devido às pressões popula-
res402 (SEITENFUS, 2009).

399
De acordo com Frank Seguy (2010), o presidente Aristide frustrou as expectativas nele
colocadas em três momentos: Chegou ao poder promovendo um discurso nacionalista
e populista. Enquanto nacionalista, apoiava-se constantemente em Charlemagne Péral-
te, o líder das lutas contra a primeira invasão americana em 1915. Enquanto populista,
incomodava a fração mais conservadora da burguesia local. O momento encerra-se no
sétimo mês de seu mandato, quando foi golpeado e exilado nos Estados Unidos em
1991; o segundo momento é quando Aristide é reestabelecido por Bill Clinton, então
presidente dos Estados Unidos, três anos depois com alguns acordos a cumprir; e o
terceiro momento é o cumprimento das exigências norteamericanas, inclusive a priva-
tização de empresas públicas (SEGUY, p. 13).
400
Raoul Cédras é um ex-militar haitiano que ocupou a presidência da Junta Militar entre
1991 e 1994. Após o retorno do Aristide em 1994, vive no Panamá (HIRST, 2007).
401
O presidente Aristide retorna em 1994 e em 1995 estabelece por decreto a extinção
das Forças Armadas do Haiti, sendo substituídas pela Polícia Nacional Haitiana – PNH.
Atualmente vive no exílio na África do Sul. O ex-presidente continua sendo uma figu-
ra importante na política haitiana e alguns analistas acreditam no seu retorno (HIRST,
2007).
402
Aristide alega ter sido derrubado por um golpe de Estado apoiado pelos governos da
França e dos Estados Unidos.

516 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
No mesmo dia em que Aristide partiu para o exílio, o presi-
dente da Suprema Corte, Boniface Alexandre assumiu a presidên-
cia e requisitou a presença da comunidade internacional como for-
ma de auxiliar a estabilização do país. Em resposta, o Conselho de
Segurança, por meio da Resolução nº 1529, estabeleceu uma Força
Multinacional Interina (MIF), composta de tropas dos Estados Uni-
dos, da França, do Canadá e do Chile, com um mandato máximo
de três meses. A força estava baseada no capítulo VII403 da Carta
da Organização das Nações Unidas, tendo como função: facilitar o
fornecimento de ajuda humanitária e auxiliar na manutenção dos
direitos humanos e segurança pública. Após seu mandato, a MIF
foi sucedida pela Missão de Estabilização das Nações Unidas para o
Haiti (Minustah) em junho de 2004, sendo que o referendo nº 1.542
tinha sido aprovado em abril404.
O breve histórico teve como objetivo demonstrar que o Hai-
ti, mesmo antes da Minustah, tem problemas estruturais históricos
que precisam ser superados. Além destes problemas, nota-se a vio-
lação dos direitos humanos que foi e é permitido e, por vezes, in-
centivado pelas autoridades governamentais. Essa violação pode ter
sido fruto de políticas governamentais que incentivavam “O terror”,
como também das condições de trabalho e das zonas francas que o
país comporta há mais de 20 anos. O fato é que precisamos pensar
nesse país e nas possíveis alternativas as mais diversas violações que
estamos assistindo.
403
A Resolução 1.529 também faz referência ao capítulo VII no seu preâmbulo. Além disso,
autorizou os países participantes da MIF a tomarem todas as medidas necessárias para
o cumprimento de seu mandato.
404
Cabe dizer que desde o golpe militar de 1991, o Haiti teve oito intervenções estrangei-
ras: MICIVIH (International Civilian Mission in Haiti), Resolução da Assembleia Geral
47/208 de Abril de 1993; UNMIH (United Nations Mission in Haiti), Resolução 940 do
Conselho de Segurança de Agosto de 1993; UNSMIH (United Nations Support Mission
in Haiti), Resolução 1063 do Conselho de Segurança de junho de 1996; UNTMIH (United
Nations Transition Mission in Haiti), Resolução 1123 do Conselho de Segurança de julho
de 1997; MIPONUH (United Nations Civilian Police Mission in Haiti), Resolução 1141 do
Conselho de Segurança de Novembro de 1997; MICAH (International Civilian Support
Mission in Haiti), Resolução 54 /193 da Assembleia Geral de Dezembro de 1999 e MIF
(Multinational Interim Force), Resolução 1.529 do Conselho de Segurança de Fevereiro
de 2004 (SOUZA, 2012).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
517
3 MINUSTAH: COMO NÓS OLHAMOS
Em um primeiro momento cabe dizer que a Minustah405 não
é uma operação de peacekeeping tradicional. De acordo com Young
(2006), não é tradicional porque não havia no país um conflito co-
mum, mas sim um Estado em processo de desintegração. O que, de
certa forma, faz sentido porque não houve um cessar fogo no Haiti,
de forma que as gangues que estavam contribuindo para a deses-
tabilização no país não estavam dispostas a desarmar-se quando a
missão foi criada.
Segundo Morneau (2006), as funções da missão dividir-se-
-iam em três esferas: a) criação de um ambiente seguro e estável;
b) garantia do respeito aos direitos humanos; e c) apoio ao processo
político no Haiti (p. 74-75). A missão deve ser entendida como uma
operação de imposição da paz, envolvendo tanto missões ofensivas
como ações tradicionais de manutenção da paz e de estabilização,
além de distribuição de assistência humanitária (op. cit., p. 74). De
acordo com Mônica Hirst (2007), além de atender a função de ma-
nutenção da ordem local, a missão executa uma ampla gama de res-
ponsabilidades vinculadas à assistência eleitoral, segurança pública,
proteção ao meio ambiente e incentivo ao desenvolvimento econô-
mico (p.2).
A complexidade das funções desempenhadas pela Minustah
é um elemento importante para entender o envolvimento do Brasil
na missão no Haiti406. Danilo Souza (2012) afirma que a missão sina-
liza uma mudança na participação do Brasil nas missões de paz que,
até então, eram realizadas de acordo com o capítulo VI da Carta da
Organização das Nações Unidas (ONU), em situações em que havia
o consentimento entre as partes e nas quais se aplicava o mínimo

405
A Minustah é composta pelos seguintes países: Argentina, Brasil, Bolívia, Canadá, Chi-
le, Croácia, Equador, Espanha, Estados Unidos, Filipinas, França, Guatemala, Jordânia,
Malásia, Marrocos, Nepal, Paraguai, Peru, Sri Lanka e Uruguai.
406
A diplomacia brasileira defende uma visão de compromisso de longo prazo com o Haiti
com o objetivo de tratar das raízes dos problemas enfrentados com base no tripé: se-
gurança, reconciliação política e desenvolvimento (Brasil, 2007, p. 63-65).

518 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
uso da força pela tropa. Essa mudança de uma operação de paz de
capítulo VI para uma de capítulo VII407 ocorreu após a pressão da
comunidade internacional para que a Minustah passasse a realizar
operações de paz “mais robustas”. De acordo com o general Augusto
Heleno Ribeiro Pereira, antigo responsável pela missão:

Houve demora da maior parte dos contingentes dos países


envolvidos em perceber que a missão era efetivamente uma
missão de imposição da paz, e não simplesmente [de] ma-
nutenção da paz. Tal demora resultou em uma postura das
tropas por vezes classificada como tímida, por relutarem em
usar a força além da autodefesa, em interpretação excessi-
vamente conservadora das regras de engajamento (Pereira,
2007 apud Verenhitach, 2008, p. 59).

De acordo com Danilo Souza (2012), essa particularidade da


Minustah é ressaltada pelo fato de não se tratar de uma missão de
paz clássica, mas sim de uma missão complexa em um ambiente de
violência urbana generalizada. Por essa razão, a tropa deve ser muito
bem treinada, de forma que envolve civis e o cenário urbano onde a
maioria dos contingentes está desdobrada.
De acordo com Mônica Hirst (2007), a participação dos paí-
ses sul americanos na Minustah acompanhou a evolução do proces-
so haitiano, a partir de 2003, podendo identificar três fases: Fase I
(2003-04): falência e desestruturação do governo Aristide e a inter-
venção da força multinacional provisional, que precipita a renúncia
do governo haitiano; Fase II (2004-06): início da intervenção da Mi-
nustah com o uso moderado da força, emprego de dissuasão política
e militar e garantia da estabilidade para a transição política. A etapa
foi concluída com as eleições presidenciais e a vitória de René Préval;
Fase III (a partir de maio de 2006): assegurar condições de governabi-
lidade a Préval a partir da garantia de um contexto de estabilidade
407
Uma missão de paz com base no capítulo VII está autorizada a utilizar todos os meios
necessários, incluindo o uso da força, para proteger a população civil e funcionários da
ONU, além de evitar que atores armados violem os acordos de paz vigentes.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
519
em todo o território nacional e da reconstrução do Estado articulado
à cooperação internacional.
De acordo com Giuliana (2008) e retomando a questão dos
contingentes enviados com base no capítulo VII da Carta das Na-
ções Unidas é preciso ressaltar que nas fases da Minustah houve
contingentes que foram baseados no capítulo VI da Carta das Na-
ções Unidas. Isso implica uma readaptação da forma de atuação no
Haiti408.
A situação do Haiti e a complexidade da missão foram agra-
vadas em 12 de janeiro de 2010 com um terremoto de 7,3 graus na
escala Richter e duas réplicas de menores magnitudes que atingiram
o país, gerando comoção mundial e reações por parte de organiza-
ções estrangeiras, entidades civis e da comunidade internacional. De
acordo com os dados do Estadão, o terremoto matou mais de 200 mil
pessoas e deixou 1,5 milhão de pessoas desabrigadas.
Segundo a BBC Brasil, após o terremoto foram doados US$ 9
bilhões (R$ 18,3 bi) para a assistência humanitária - US$ 3 bilhões
dados por indivíduos e empresas privadas e US$ 6 bilhões por go-
vernos e instituições globais (conhecidos como doadores bilaterais
e multilaterais), segundo o escritório do enviado especial da ONU
ao Haiti (OSE, na sigla em inglês). Embora esse dinheiro tenha sido
doado, o escritório do enviado especial da ONU ao Haiti (OSE) se
pergunta por que menos de 10% desses US$ 6 bilhões chegaram ao
governo haitiano e por que menos de 1% foi dado ás organizações
locais.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o
Brasil tem um papel de destaque no Haiti e está contribuindo de
forma significativa para a reconstrução do país no âmbito político,
408
Cabe mencionar os diferentes contingentes enviados nas três fases. O primeiro deles
tinha sido preparado para enfrentar uma missão de manutenção da paz baseada no ca-
pítulo VI; no entanto, ao chegar ao terreno, modificou-se esta avaliação, de forma que
o segundo contingente já sabia que enfrentaria um ambiente hostil. Foi apenas com o
terceiro contingente, entretanto, que os militares receberam treinamento para atuar
em uma missão de capítulo VII (GIULIANA, 2008, p. 72-73).

520 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
social e estrutural através dos contingentes militares409 enviados ao
país:

O Brasil é o maior contribuinte de tropas para essa Missão.


De 2004 a fevereiro de 2010, o Brasil manteve contingente
de 1200 militares, com rotação semestral. Após o terremoto,
passou a manter contingente de 2.100 militares no terreno.
Desde o início da participação brasileira até hoje, mais de
13 mil militares brasileiros tiveram experiência no Haiti. O
comando militar de todos os 8.609 militares que compõem a
MINUSTAH, provenientes de 19 países, é exercido por gene-
rais brasileiros desde 2004. (ONU, 2010)

Segundo o Itamaraty a missão tem êxito e preserva a sobera-


nia do Haiti. Como destacou Celso Amorim na Conferência Ministe-
rial Preparatória sobre o Haiti:

O compromisso do Brasil com o Haiti não é novo nem cir-


cunstancial. Por todos os laços culturais, políticos e históri-
cos que unem o Brasil ao Haiti, temos estado presentes com
projetos e iniciativas que visam a promover o desenvolvi-
mento daquele país, contribuindo ao mesmo tempo para a
autoestima dos haitianos, capazes de conduzir seu próprio
destino (...).Em nossas discussões, não podemos perder de
vista que a ajuda ao Haiti deve responder aos anseios do povo
haitiano e do seu Governo. Estamos ajudando ao Haiti, não
a nós mesmos. Nossa tarefa é contribuir para que o Governo
do Haiti possa exercer, em sua plenitude e no mais breve pra-
zo, a responsabilidade de definir as prioridades de seu povo e
a melhor maneira de canalizar a ajuda internacional. Não es-
tamos aqui para substituir as autoridades legítimas do Haiti .
(AMORIM, 2010)

409
Cabe mencionar a vinculação entre a atuação das tropas em Porto Príncipe e a possibi-
lidade de uso de táticas semelhantes como parte do combate do crime organizado no
Rio de Janeiro. Uma vinculação entre Rio de Janeiro e Porto Príncipe ocorreu no final de
2010, quando soldados com experiência na Minustah atuaram no processo de pacifica-
ção de comunidades carentes do Rio de Janeiro. Como o “esforço mais complexo” des-
taca-se em novembro e dezembro de 2010 do mesmo ano, a pacificação do Complexo
do Alemão, que envolveu o estabelecimento de uma Força de Paz comandada por um
general ex-comandante do contingente militar na Minustah (ARAÚJO, 2010, on line).

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
521
Embora o Brasil e a Organização das Nações Unidas decla-
rem o “sucesso” da Minustah, a missão tem sido muito criticada
por parte da população brasileira e pela própria população haitiana.
Com relação ás críticas da população brasileira, Mônica Hirst (2007)
ressalta que as controvérsias partem dos âmbitos políticos e intelec-
tuais410. Ainda de acordo com a autora, as controvérsias giram em
torno de quatro pontos principais: a) origem golpista da missão; b)
sua subordinação “de facto” aos interesses dos Estados Unidos; c)
os custos e benefícios para o país de ação; d) as possibilidades de
sucesso da missão 411 (HIRST, 2007, p. 5).
Além dessas críticas, também ressalta-se a controvérsia do
Brasil em conter a corrupção. Nesse sentido, os críticos afirmam que
o Estado não consegue conter o envolvimento de políticos e dos sis-
temas policiais com o crime organizado e o narcotráfico que vem
sendo apontado como um dos aspectos mais problemáticos de seus
quadros crônicos de insegurança pública no país, o que dirá conter
no Haiti412.
Por fim, é preciso citar a dimensão simbólica e histórica da
Minustah, na qual se reúnem elementos da memória coletiva la-
tinoamericana, referências ideológicas comuns e antecedentes po-
líticos e diplomáticos. De acordo com Mônica Hirst (2007), esses
elementos contribuíram para a construção do discurso oficial dos
países sul-americanos, no qual se buscou somar um sentido iden-
410
A autora faz uma análise da atuação da Argentina, Brasil e Chile na Minustah. Devido à
proposta deste artigo, foquei-me nas críticas brasileiras.
411
O primeiro ponto está diretamente relacionado aos eventos políticos haitianos que
motivaram a tomada de decisão pelo Conselho de Segurança da ONU; o segundo é
relacionado ao primeiro, no sentido das suspeitas do envolvimento dos Estados Unidos
nos processos políticos haitianos; e os dois últimos pontos estão relacionados ao fato
da preferência da utilização dos recursos econômicos e militares em situações de inse-
gurança doméstica. Ademais, acredita-se que a possibilidade de sucesso da Minustah
é quase impossível frente às condições sócio-economicas e político-institucionais que
prevalecem no Haiti. Somado a esses elementos, tem-se os fenômenos naturais que
devastam ainda mais o país (HIRST, 2009).
412
Celso Amorim rebateu algumas dessas críticas e defendeu a missão afirmando que os
problemas internos do Brasil não poderiam ser colocados como empecilho para o envol-
vimento brasileiro, visto que “não é preciso ser rico para ser solidário” (OLIVEIRA, 2006)..

522 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
titário regional às motivações políticas e humanitárias que normal-
mente estão presentes em operações de paz.
O próximo tópico tratará das críticas de parte da população
haitiana e dos críticos em geral, com relação à presença das tropas da
Minustah. É interessante notar as diferentes percepções das tropas
no Haiti, pois os “nossos olhares” e “nossas ações”, principalmente as
do governo brasileiro, nem sempre refletem aquilo que esperávamos.

4 MINUSTAH: COMO ELES NOS OLHAM

Quem tem vontade de conhecer o bom trabalho desenvol-


vido pela Minustah no Haiti precisa apenas conversar com
alguns estudantes da Université d’État d’Haïti. Será fácil
eles explicarem quantas vezes foram bombardeados com
gás só porque estavam acompanhando as manifestações de
operários por um reajuste do salário mínimo. Poderá con-
versar também com os pacientes e médicos do Hospital da
Université d’État d’Haïti, que contarão quantas vezes tive-
ram que sair correndo do hospital porque, tratando-se de
defender os interesses dos patrões, a Minustah não respeita
escola, nem universidade nem hospital. Quem quiser co-
nhecer o verdadeiro papel da Minustah no Haiti é só ir a
Site Solèy, a maior e mais pobre favela de Porto Príncipe.
Ali, a população contará quantas crianças foram assassina-
das pelas balas humanitárias da Minustah e dos soldados
brasileiros; quantas mulheres grávidas foram mortas em
decorrência da missão de paz de Lula, enquanto dormiam.
(SEGUY, 2010, p. 15)

A partir do trecho extraído da entrevista de Franck Seguy


para Revista PUC Viva pode-se notar o objetivo deste tópico, isto é,
mostrar algumas das críticas mais comentadas. Essas críticas giram
em torno da violação dos direitos humanos, assim como da sobera-
nia do Haiti413. Há até uma campanha pela Retirada das Tropas do Hai-
413
Há interessantes documentários sobre o assunto. Entre eles, destaco dois: O que se
passa no Haiti? (2007) do jornalista estadunidense Kevin Pina e Haiti: Estamos Cansa-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
523
ti414 que reúne diversos países da América Latina, como: Argentina,
Bolívia, Brasil, Haiti, México, Peru, entre outros.
De acordo com Mônica Hirst (2007), a percepção dos haitia-
nos sobre a atuação das tropas da Minustah vem sendo construída
a partir de uma perspectiva comparativa com relação a outras ex-
periências de ocupação externa. Nesse sentido, a autora afirma que
quando comparado às ocupações anteriores, como a Força Multina-
cional Interina (MIF), composta por Estados Unidos, França, Cana-
dá e Chile, lhe é atribuído um sentido mais benigno. Com relação à
elite local, a autora destaca que as críticas têm como base o questio-
namento do uso moderado da força.
Entre as diversas críticas, destacam-se as que vão ser comen-
tadas neste tópico: a) desvio de verbas doadas; b) violação dos di-
reitos humanos; c) surto de cólera; d) pela presença das tropas no
Haiti. Com relação ao desvio de verbas, como foi mencionado no
tópico anterior, o Haiti recebeu um montante significativo em razão
do terremoto de 2010, entretanto, o governo teve acesso a uma parte
mínima. Entre as razões desse acontecimento, destacam-se a cor-
rupção e à fraqueza das instituições haitianas.
Cabe mencionar que a percepção com relação ao progresso da
reconstrução do Haiti também é negativa415. No início da reconstru-
ção, a Comissão Interina para a Reconstrução do Haiti (CIRH)416 teve
os seus trabalhos adiados em Porto Príncipe. Ademais, esses planos

dos (2010) de Daniel Santos. Ambos contam com relatos de opiniões críticas a respeito
das tropas da Minustah no Haiti e de algumas ações destas tropas contra os haitianos.
414
Para maiores informações, acesse: <retiradatropashaiti.blogspot.com.br>.
415
O Centro Gumilla de Caracas menciona que enquanto isso, os principais problemas do
país, como a degradação do meio ambiente, o agravamento da pobreza e a carência de
infraestrutura e dos serviços sociais de base, bem como as necessidades fundamentais
dessas vítimas ainda não estão sendo avaliadas.
416
A CIRH é composta por 30 membros, dos quais 13 são haitianos com direito a voto. A
Comissão que tem como função gerir os fundos para a reconstrução é co-presidida por
Bill Clinton e pelo Primeiro Ministro haitiano Jean-Max Bellerive. A CIRH está sendo
cada vez mais questionada pelos partidos de oposição e grupos de haitianos organiza-
dos que consideram que essa é mais uma estrutura destinada a reforçar a dependência
do Haiti (CENTRO GUMILLA DE CARACAS, 2010).

524 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
não contaram com a participação da sociedade civil haitiana, que,
consequentemente, não se sente interpretada (Centro Gumilla de
Caracas417). Em um segundo momento, representado por três anos
após o terremoto, os haitianos têm a sensação de que o progresso é
lento. Exemplo disso é que cerca de 358 mil pessoas permanecem
em abrigos temporários com pouco acesso ao saneamento básico,
saúde e educação (BBC Brasil). A lentidão do processo implica, por
exemplo, na frustração e na desconfiança de alguns países, como é o
caso do Canadá, em doar dinheiro.
Além da reconstrução, deve-se pensar na situação dessas pes-
soas nos campos. De acordo com o Centro Gumilla de Caracas, em
2010, quase dois milhões de pessoas viviam nesses lugares em uma
situação de insegurança alimentar e em condições precárias, sendo
ameaçadas por uma eventual crise humanitária durante a tempora-
da de ciclones que se anunciou. Para agravar a situação houve a mu-
dança de estratégia do governo com relação aos alimentos enviados
a esses campos,

É importante recordar que o atual governo haitiano pôs fim,


em meados de abril (três meses depois do cismo), à fase de
urgência, caracterizada pela coleta e distribuição de ajuda
humanitária maciça em alimentação, assistência médica e
outras ajudas em benefício das vítimas do sinistro, com o pre-
texto de evitar a invasão do mercado local haitiano por produtos agrí-
colas estrangeiros, como o arroz (...) Muitos produtos alimentícios se
encontram retidos nos portos e vários deles com data muito próxima
do vencimento. E são alimentos destinados à população vítima do
sinistro, principalmente às pessoas que se encontram nos campos de
deslocados (CENTRO GUMILLA DE CARACAS, 2010, p. 55).

O segundo objeto das críticas é, de certa forma, ligado ao pri-


meiro. As acusações das frequentes violações dos direitos humanos
417
O centro está sob a coordenação de Francisco José Virtuoso, S.J. Esse Centro elabora
uma análise de conjuntura da América Latina e Caribe. As informações deste artigo
correspondem a segunda parte da análise da conjuntura da América Latina e Caribe,
referente aos meses de abril-junho de 2010.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
525
partem de recentes acontecimentos como: o ataque em 2005 à maior
e mais pobre favela do Haiti, Cité Solèy418; o ataque em um bairro
popular de Porto Príncipe, Bel-Air, sob o objetivo de procurar ban-
didos; o trabalho forçado de crianças denunciado pela Organização
Internacional do Trabalho419; as recentes acusações de estupros em
campos de refugiados420 e sequestros 421. São inúmeros os casos des-
tas violações e o que deve-se pensar é como contê-las e o que fazer
com os responsáveis, de forma que estão impunes.
O terceiro objeto de críticas é relacionado ao surto de cóle-
ra no país. Nesse sentido, destaca-se a recente matéria da Folha de

418
De acordo com Marcelo Carreiro (2009), em 6 de julho de 2005, ainda sob o comando
do General Heleno, a Minustah faz uma incursão maciça no paupérrimo bairro de Cité
Soleil, onde cerca de 200 mil habitantes ocupam barracos frágeis. A ação ocorre à noi-
te, com a justificativa de assassinar Dread Wilme, identificado como líder de uma das
várias gangues que aterrorizavam Porto Príncipe no vácuo de poder criado com a que-
da de Aristide em 2004. Após sete horas de ataque, que consomem 22 mil cartuchos
de munição, a Minustah se retira sem verificar baixas inimigas – apenas assume que
Wilme foi morto em combate e declara o sucesso da missão. É importante dizer que a
Cité Soleil sofreu seis ataques até 2008. Além disso, baseando-se em um relatório do
Medecins Sans Frontiers, o autor destaca o aumento do número de vítimas civis atingi-
das por balas, especialmente explosivas.
419
De acordo com a OIT, uma em cada dez crianças haitianas trabalha em regime forçado.
Em 2012, o dado era de que 225 mil crianças, entre 5 e 17 anos, tinham um trabalho
infantil como uma forma de escravidão moderna. O sistema mais comum desse traba-
lho forçado iniciou-se após o terremoto, quando os pais mandavam seus filhos para
casa de parentes que estão melhores financeiramente. No entanto, quando as crianças
chegavam, se tornavam escravos modernos, trabalhando com uma média de 14 horas
por dia, além de, em muitos casos, receberem maus tratos e serem explorados sexual-
mente (FOLHA DE S. PAULO, 2012).
420
A Anistia Internacional, em 2010, denunciou casos de abusos sexuais contra as mulhe-
res que têm se difundido nos acampamentos instalados no Haiti após o terremoto. De
acordo com Chiara Liguori, pesquisadora da instituição, “A violência sexual está am-
plamente presente nos campos. Constituía já um grande motivo de preocupação antes
do terremoto. Agora, a situação em que vivem as vítimas cria um risco ainda maior”.
Segundo um relatório publicado em janeiro do mesmo ano, a Anistia declarou que pelo
menos 250 mulheres foram estupradas nos 1.150 campos que existiam no Haiti cinco
meses após o terremoto (FOLHA DE S. PAULO, 2010).
421
De acordo com Franck Seguy (2010), quando era jornalista, cobriu inúmeros casos
como esse. O entrevistado destaca um desses casos: Uma vez uma mulher rica
foi sequestrada. A família dela negociou com os sequestradores um resgate para
salvar a sua vida. Quando a família foi levar o resgate no local indicado, foi uma
imensa surpresa ver os sequestradores chegando num carro da Minustah, no qual
estavam escritas as letras UN (United Nations/Nações Unidas) (SEGUY, 2010, p.16).

526 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
S. Paulo, relatando que as evidências científicas divulgadas recente-
mente reforçaram a hipótese de que a causa do surto da cólera que
começou em 2010, sendo responsável pela morte de 8 mil e conta-
minação de 600 mil haitianos teve origem nos soldados nepaleses
da Minustah422. Em março de 2013, os haitianos protestaram contra
a ONU em Porto Príncipe e acusaram a organização de ser culpada
pelo surto.
Por fim, o último objeto entre as críticas que destaquei é re-
lacionado à presença das tropas no Haiti. Na realidade, mais do que
a presença, tem-se questionado a respeito dos seus desdobramentos
e os resultados negativos. Franck Seguy é muito crítico com relação
à presença das tropas no Haiti e ao papel que as Organizações Não
Governamentais têm representado,

A maior perspectiva para qualquer organização, partido ou


grupo progressista não pode ser outra que a emancipação.
A emancipação das classes trabalhadoras e populares, e de
toda a sociedade. A condição em que se encontra o Haiti hoje
obriga a colocar a recuperação da soberania do país como
primeiro passo rumo à emancipação (...) Porém – e é o mais
importante – o maior inimigo do povo haitiano não é a Mi-
nustah. O nome desse inimigo se declina em três letras: O
N G. É através das ONGs que se realiza hoje o trabalho abo-
minável de desumanização do povo negro haitiano. Até que
consigamos neutralizar o desempenho das ONGs não haverá
nenhuma melhora nas condições de vida das classes popula-
res haitianas. (SEGUY, 2010, p. 21)

Como foi mencionado acima, há uma campanha pela Retirada


das Tropas do Haiti. Esse comitê é composto por membros de diversas
422
De acordo com os pesquisadores, a base dos soldados do Nepal ficava ao lado de um
afluente na parte alta do Rio Artibonitte - o local apontado pelo novo relatório como
provável início do surto. Reportagens mostraram que não havia o devido tratamento
dos dejetos das bases nepalesas, jogados no córrego. Os pesquisadores ressaltam que
as condições precárias de saneamento no Haiti e o difícil acesso da população à água
tratada contribuíram para o efeito devastador da doença e ainda afirmaram que casos
de cólera não eram registrados no país havia mais de um século.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
527
nacionalidades, inclusive por alguns haitianos que, entre críticas e
denúncias, exigem a retirada imediata das tropas que, em seus re-
latos, só tem explorado o povo haitiano. A situação do Haiti é com-
plexa e diante de tantas violações dos direitos humanos, exige uma
reflexão profunda acerca do que a presença das tropas militares no
país representam.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após completar nove anos da Missão de Estabilização das
Nações Unidas para o Haiti (Minustah) é preciso refletir sobre o seu
significado com base em alguns aspectos, como: previsão da retirada
das tropas; a situação dos haitianos no Brasil; o Haiti na atualidade
e os desafios que ainda terão de enfrentar.
Com relação à previsão da retirada das tropas. Em 2011 foi
noticiado que a redução do contingente brasileiro ocorreria a partir de
março de 2012, de forma gradual para entregar o controle do Haiti ao
seu próprio governo, de maneira coordenada. Como afirmou o Minis-
tro da Defesa, Celso Amorim: “Não devemos e não queremos nos eternizar
no Haiti, mas também não vamos sair de maneira irresponsável” (BBC BRA-
SIL). Cabe dizer que a redução dos contingentes da Minustah423 não
incluiu nenhuma companhia de engenharia ou mesmo dos membros
de seu batalhão que têm atuado na reconstrução de pontes, poços ar-
tesianos e produção de energia, entre outras obras emergenciais. Eles
não se retiraram devido ao reconhecimento de que ainda são necessá-
rios esforços no âmbito da reconstrução do país.
Em setembro de 2011, perante a Assembleia-Geral da ONU, o
presidente Michel Martelly afirmou ser favorável a continuidade da
Minustah embora tenha cometido erros inaceitáveis, como declarou:
423
A primeira redução foi em 2012, passando de 2200 militares para 1900. A segunda re-
dução ocorrerá a partir do dia 27 de março até junho de 2013, 460 militares brasileiros
vão deixar o Haiti, colocando fim ao segundo batalhão criado para atender à emergên-
cia do grande terremoto que abalou a ilha em 2010. Mesmo assim, o contingente mili-
tar brasileiro continuará sendo o mais numeroso, contando com 1450 homens (BRASIL,
2012; EBC, 2013).

528 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
“Sei dos erros inaceitáveis cometidos que mancharam o prestígio da missão,
mas as árvores não podem esconder a floresta” (BBC BRASIL). É impor-
tante pensar nas diversas manifestações da população haitiana com
relação à retirada das tropas do Haiti. Até que ponto essas tropas
estão sendo favoráveis ao país? Elas cumpriram ou estão cumprindo
com os seus objetivos? Pode-se considerar o país “a caminho” da
ordem?
Com relação ao segundo aspecto, retomo o que o Ministro
da Defesa, Celso Amorim afirmou: a manutenção da paz traz o preço da
participação. Nesse sentido, o Brasil como o responsável pela Minus-
tah recebe grande contingente de haitianos. Em 2012, a presidente
Dilma Rousseff aprovou 1,2 mil vistos humanitários anuais e a regu-
larização daqueles que já estão no país. Recentemente, os haitianos
foram matéria de capa em diversos jornais do Brasil em razão de o
prefeito da cidade de Brasileia ter declarado a cidade em “estado de
emergência” devido ao grande contingente de haitianos. Com rela-
ção aos haitianos à procura de um emprego, o Sul tem recebido hai-
tianos para trabalhar em algumas fábricas, mas ainda assim, não é
suficiente. Com relação a esse aspecto, creio que seja interessante se
perguntar: Como são as condições em Brasileia? Que tipo de abrigo
o país oferece? E quais são as condições dos haitianos que vão tra-
balhar no Sul? Será que eles são registrados? Como ressaltou Celso
Amorim, o desafio com os haitianos é grande. Por essa razão, cabe
aos políticos, militares, acadêmicos, empresários e membros da so-
ciedade civil debaterem o quanto o Brasil está disposto a pagar pelo
preço da ajuda humanitária.
Por fim é necessário pensar se houve avanços no Haiti. Nes-
se sentido retomo algumas questões, como: Há perspectiva para a
população que permaneceu no Haiti? De que forma os outros países
podem ajudar o Haiti visto que alguns haitianos não querem mais
a Minustah? E o que fazer com as milícias que se reorganizaram?
Como alcançar a estabilidade política e social necessária para a reti-
rada das tropas?

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
529
São questões que não têm respostas fáceis. Quando se pensa
no Haiti é preciso lembrar dos problemas que perpassam as ques-
tões militares e esbarram em outras bem complicadas, como as de
cunho social, político e ambiental. A atuação da Minustah coloca
novos desafios, relacionados tanto à sua presença no Haiti, quanto à
estabilidade político-social do país. A atuação brasileira gerou enor-
me interesse internacional, ao qual se seguiram pedidos de maior
envolvimento do Brasil em países como Sudão, Guiné-Bissau e Líba-
no. Embora o país esteja com a imagem positiva perante o Sistema
Internacional, o “sucesso” da Minustah é essencial para que essa
imagem permaneça. E o que se deve pensar é quanto tempo irá levar
para que o “sucesso” seja alcançado (se é que vai).

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rim_mdb.shtml>. Acesso em: 10 abr. 2013.

530 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


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CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
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532 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Grupo de trabalho 4.

A (IN)COMPATIBILIDADE ENTRE A
SEGURANÇA NACIONAL DOS ESTADOS
E A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS
REFUGIADOS
Joanna de Angelis Galdino Silva
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito do PPGD/UFSC com ingres-
so em 2013. Área de Concentração: Direito e Relações Internacionais. Advogada.
Especialista em Direito do Trabalho pelo Centro Universitário Curitiba (2009). Es-
pecialista em Direito do Trabalho pela Escola da Magistratura do Trabalho de San-
ta Catarina - Amatra 12 (2010). (joannadeangelisgaldino@gmail.com)

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
533
Resumo:
O presente artigo tem por objetivo analisar o instituto do asilo e a relação entre a segurança
nacional e a proteção internacional dos refugiados, sob a ótica do Direito Internacional dos
Direitos Humanos. Ao sair de seu país e pedir o asilo, os refugiados já perderam muitos dos
seus direitos e garantias mínimas. A negação do refúgio não pode se justificar pela raça, tri-
bo, religião ou nacionalidade de alguém. Ao mesmo tempo, a segurança nacional do Estado
concedente do asilo tem que ser considerada, já que os nacionais não devem, de maneira
alguma, ficar em uma situação pior que a dos próprios refugiados. Isso ocorre quando os
recursos de seu Estado, tanto de pessoal como financeiro, são remanejados em larga escala
para atender as necessidades dos asilados. A proposta do artigo é verificar esta linha tênue
entre a segurança dos Estados e a proteção que deve ser dada aos refugiados, e como manter
este equilíbrio.
Palavras-chave: Direitos Humanos – Segurança Nacional – Refugiados.

Sumário:
1. Introdução. 2. O Direito de Asilo. 3. Segurança Nacional. 4. Proteção dos Refugiados. 5.
Considerações finais. 6. Referências.

1 INTRODUÇÃO
O presente artigo se propõe a analisar o direito de segurança
estatal em face da proteção internacional dos refugiados, e se há
possibilidade de compatibilizá-los considerando a relação entre o Di-
reito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional
dos Refugiados.
A questão é histórica. Na obra mais popular do mundo, a Bí-
blia, são relatados alguns casos como sendo de refugiados: Jacob
(1620 a.C. – 1490 a.C.) fugiu da ira de Esaú e refugiou-se em Haram,
na casa de Labão; Moisés (1593 a.C. – 1473 a.C.), devido às ameaças
de morte do Faraó, abandonou as margens do Nilo e refugiou-se no
deserto a caminho de Madian; o rei David (1040 a.C. – 970 a.C.) é
também um refugiado das invejas de Saul e depois das ambições do
seu filho Absalão.
A evolução do enfoque sobre os direitos humanos tem refle-
xos sobre a questão dos refugiados, e somente após a chamada uni-

534 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
versalização – resgatada com a internacionalização de tais direitos
(RAMOS, 2012, p. 147) – é que se deu uma nova abordagem, mais
ampla, sobre a matéria. Para o autor a positivação e a universaliza-
ção são obtidas simultaneamente para toda a humanidade com as
sucessivas convenções e declarações internacionais de proteção de
tais direitos.
A ressaltar que, para alguns autores, tal universalização pode
ser considerada eminentemente ocidental, e no dizer de PANIKKAR
o conceito de direitos humanos é fundado “na visão antropocêntri-
ca do mundo”, ainda que em algumas culturas predomine a “visão
cosmoteológica”, o que comprometeria o conceito de universalidade
(RAMOS, 2012, p. 150).
Outro aspecto a ser considerado é o predomínio de um grupo
de países no concerto das nações, enfatizado por Boaventura Santos
(apud RAMOS, 2012, p. 149-150), para quem “não é difícil concluir
que as políticas de direitos humanos estiveram em geral ao serviço
dos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas
hegemônicos”. Santos defende uma concepção multicultural de
direitos humanos (apud PIOVESAN, 2007, p. 17).
Há que se destacar, entretanto, a chamada “margem de apre-
ciação” nacional, alegada pelos Estados na Corte Europeia de Direitos
Humanos, considerada pelos críticos como “disfarce teórico para o re-
lativismo no campo dos direitos humanos” (RAMOS, 2012, p. 149).
Uma visão ocidental da questão seria, portanto, unilateral, e
poria todo o pensamento oriental em desvantagem pelo pré-julga-
mento sustentado no viés do fundamentalismo, do radicalismo e do
atraso filosófico-jurídico.
Para a realização deste trabalho adota-se a universalidade
dos direitos humanos como realidade posta eis que, a contrario sen-
su, o direito dos refugiados se inviabilizaria em face de quaisquer
idiossincrasias estatais, sejam econômicas, políticas, culturais ou
religiosas.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
535
Nesta temática, aduz Cançado Trindade (1997, p. 318-319)
que há aproximações ou convergências entre os direitos humanos e os
direitos dos refugiados, as quais estão nas “Conclusões sobre a Prote-
ção Internacional dos Refugiados” do ACNUR, que expressam “preo-
cupação pelas violações dos direitos humanos dos refugiados”. Entre
elas a Conclusão 22, de 1981, estabeleceu “normas mínimas básicas”
relativas ao tratamento de tais pessoas, sendo estas: “acesso à justiça,
princípio da não-discriminação, e vigência dos direitos civis funda-
mentais reconhecidos internacionalmente, em particular os enuncia-
dos na Declaração Universal de Direitos Humanos”. Já a Conclusão 50
estabeleceu a “relação direta existente entre a observância das normas
de direitos humanos, os movimentos de refugiados e os problemas da
proteção”, na qual se enfatiza a necessidade de proteger os refugiados
contra, por exemplo, a detenção arbitrária.
A prevalência dos direitos humanos como regra máxima apli-
cável também aos refugiados poderia vir a causar situações de enfra-
quecimento da segurança nacional dos Estados: ao acolher levas de
pessoas em situação de risco e inseri-las em seu território, o Estado
se arriscaria a ver rompido o equilíbrio de forças políticas, culturais
e sociais já sedimentadas.
É este o enfoque a ser abordado.

2 O DIREITO DE ASILO
A palavra “asilo” tem origem na palavra grega “sylum” (que
quer dizer violência), acrescentada do prefixo negativo “a”. Assim,
tem-se que “asilo” quer dizer “não-violência”.
Inegável que o direito de asilo decorre da institucionalização
e do reconhecimento universal dos direitos humanos, os quais en-
contram em PECES-BARBA (apud RAMOS, 2012, p. 30) sua ampla
definição. Para ele os direitos humanos são:

[...] faculdades que o Direito atribui a pessoas e aos grupos


sociais, expressão de suas necessidades relativas à vida, li-

536 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
berdade, igualdade, participação política, ou social ou a
qualquer outro aspecto fundamental que afete o desenvolvi-
mento integral das pessoas em uma comunidade de homens
livres, exigindo o respeito ou a atuação dos demais homens,
dos grupos sociais e do Estado, e com garantia dos poderes
públicos para restabelecer seu exercício em caso de violação
ou para realizar sua prestação.

Um dos mais importantes regramentos de Direito Interna-


cional, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, prescreve em
seu art. XIV, que “1 – Todo homem, vítima de perseguição, tem o
direito de procurar e de gozar asilo em outros países.”
Tal direito, entretanto, encontra seu limite e “[...] não pode
ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por
crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e prin-
cípios das Nações Unidas.” (art. XIV, 2, Declaração Universal dos
Direitos do Homem).
Desde a Antiguidade tal direito já existe, mas somente a par-
tir das grandes invasões é que o instituto do asilo começa a produ-
zir efeitos jurídicos propriamente ditos (MELLO, 2011, p. 1.092). À
época – entre os séculos XV e XVIII – o criminoso político não era
beneficiado, com exceção apenas aos períodos das guerras religiosas
e civis, quando então lhe era concedido refúgio do tipo político.
A partir da Revolução Francesa começou-se a admitir como
regra o asilo do criminoso político e a extradição do criminoso co-
mum, tornando-se o asilo, no século XIX, um princípio jurídico.
O direito de asilo, apesar de ter por finalidade proteger a pes-
soa humana, é ainda considerado um direito do Estado e não do
indivíduo. Assim, o Estado não é obrigado a conceder o asilo, prati-
cando tal ato por mera liberalidade (MELLO, 2011, p. 1.091).
Conforme estabelecido no art. 1° da Convenção Interameri-
cana sobre Asilo Territorial “todo Estado tem direito, no exercício
de sua soberania, de admitir dentro de seu território as pessoas que

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
537
julgar conveniente, sem que, pelo exercício desse direito, nenhum
outro Estado possa fazer qualquer reclamação”. Também aqui se
percebe que não há obrigatoriedade para que um Estado conceda
asilo aos refugiados que demandam tal benefício.
No mesmo vértice, a Constituição Brasileira de 1988 estabe-
lece em seu art. 4º que um dos princípios das relações internacionais
do Brasil é o de concessão de asilo político. Esclarece Mello (2011,
p. 1093) que tal princípio abrange o asilo diplomático e o territorial
e, ainda, que não há obrigatoriedade de concessão de asilo, já que
a qualificação do indivíduo como perseguido político é da compe-
tência do Poder Executivo, que tem a atribuição de administrar as
matérias de política externa.
Ainda no âmbito brasileiro, o asilo concedido pode ser re-
vogado. A Lei 9.474/97, que, entre outras providências, define me-
canismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de
1951, instituiu o CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados.
De acordo com o CONARE, há a perda da condição de refugiado
no caso de renúncia (I), que se pressupõe ato de vontade do be-
neficiado, e ainda quando ocorrer: II - a prova da falsidade dos
fundamentos invocados para o reconhecimento da condição de re-
fugiado ou a existência de fatos que, se fossem conhecidos quando
do reconhecimento, teriam ensejado uma decisão negativa; III - o
exercício de atividades contrárias à segurança nacional ou à ordem
pública; IV - a saída do território nacional sem prévia autorização
do Governo brasileiro.
Salienta o Comitê que a perda da condição com fundamento
nos incisos II e III pode sujeitar os refugiados às medidas compulsó-
rias previstas na Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980. Esta é a Lei que
define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil e cria o Conselho
Nacional de Imigração.
Piovesan (2001, p. 51) decorre acerca de procedimentos que
seriam justos e satisfatórios para a concessão de asilo. São eles: o

538 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
organismo encarregado de adotar as decisões deve ser indepen-
dente, especializado e alheio a ingerências políticas; todas as so-
licitações de asilo devem ser examinadas pessoalmente por um
entrevistador qualificado e especializado em Direito Internacional
dos Direitos Humanos; as refugiadas devem ter a opção de ser en-
trevistadas por mulheres; em todas as etapas do processo devem
estar presentes intérpretes competentes, qualificados e imparciais;
todas as solicitações de asilo devem ser estudadas de forma im-
parcial e exaustiva; os solicitantes devem dispor de assistência; os
solicitantes devem ter um tempo para preparar sua petição e bus-
car assistência jurídica; os solicitantes de asilo que estiverem sem
a documentação necessária devem gozar do benefício da dúvida,
em vista de suas especiais circunstâncias; os solicitantes de asilo
devem ter o direito de permanecer no país até que se faça pública a
solução final de seu pedido.
No entanto, em casos atuais como o noticiado pelo ACNUR,
quando, até 22 de abril do corrente ano, o número de refugiados
sírios no Egito, Iraque, Jordânia, Líbano e Turquia ultrapassava 1,38
milhão, como colocar em prática todos esses requisitos? Não há
qualquer possibilidade de disponibilizar uma quantidade tão grande
de pessoas e recursos para uma análise detalhada de cada pedido de
asilo destes refugiados. Aqui deve-se tentar sobrepor a necessidade
imediata de proteção dos refugiados e de acordo com as possibilida-
des do Estado concedente analisar os casos que despertem suspeitas.
Assim, após uma conclusão baseada neste estudo deliberar sobre a
expulsão, realocação ou permanência de tais refugiados em seu ter-
ritório.
Portanto, partir do momento em que há solicitação de asilo
ou refúgio, há também uma violação aos direitos humanos. O que
deve ocorrer de plano são formas de prevenção aos direitos huma-
nos, pois dessa forma não mais haverá necessidade das pessoas dei-
xarem seus lares em busca de locais nos quais estas pessoas tenham
seus mínimos direitos respeitados.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
539
3 SEGURANÇA NACIONAL

É certo que o atentado de 11 de setembro de 2001 em Nova


Iorque teve repercussão no que seria o aparato ideal de garantia da
segurança nacional, e não somente nos Estados Unidos. Destaque
entre as superpotências tanto no aspecto econômico como no bélico,
ainda assim o país não conseguiu evitar o ataque. O episódio expôs a
vulnerabilidade a que estão sujeitos os Estados, e com o advento do
medo vieram as ideias de ampliação dos mecanismos de segurança e
a consequente restrição de direitos e liberdades.
A resposta ao terror será sempre extrema, como extremo é
o ato terrorista. No entanto, no campo do Direito Internacional os
esforços se direcionam no sentido de preservar a prevalência da le-
galidade, e uma das conclusões do UN Working Group on Terrorism
é a de que “A proteção e a promoção dos direitos humanos sob o
primado do Estado de Direito são essenciais para a prevenção do
terrorismo.” (apud PIOVESAN, 2007, 31).
Indissociável do conceito de soberania, a segurança nacional
se afigura meio pelo qual o Estado mantém a integridade de seu
território, a proteção da população e a incolumidade dos interesses
nacionais. Contrastando com esta ideia sobrepõe-se o enfoque pós-
-Segunda Guerra, quando os direitos humanos alcançam o status de
tema de interesse internacional, levando a uma revisão da noção tra-
dicional de soberania absoluta do Estado, que se relativiza e passa a
ter de admitir intervenções que permitam a proteção de tais direitos
(PIOVESAN, 2007, p. 12).
Ainda assim não há um mesmo conceito de segurança nacio-
nal inerente a todos os Estados porque somente cada um, particu-
larmente, tem condições e parâmetros para avaliar se e quando a sua
segurança interna está ameaçada. Um conceito único de segurança
nacional como uniformização, por certo seria considerado como in-
terferência aos assuntos internos de cada Nação.

540 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Em relação a uma definição singular de segurança nacional
concluiu Peidro (2005, on line) que tal conceito é eminentemente
subjetivo e político. Portanto, a inclusão de cláusulas de segurança
nos tratados tem por objetivo permitir que os Estados, autonoma-
mente, controlem o que consideram como ameaça, já que não estão
dispostos a ceder esta parte de sua soberania.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhece que
todo Estado tem o direito e o dever de garantir a sua segurança,
mas as medidas a serem adotadas para tal não podem ser ilimitadas.
A Convenção Americana de Direitos Humanos traz artigos que, ao
mesmo tempo em que estabelecem cláusulas de restrição ou suspen-
são, também trazem limites a estes atos.
O reconhecimento, por parte do Direito Internacional e o
Sistema Interamericano de Direitos Humanos, do direito inerente
a todo Estado de proteger sua segurança nacional, esbarra no tênue
equilíbrio entre tal direito e a tomada de medidas que, em prol da
segurança, venham a enfraquecer a dignidade da pessoa humana
(PEIDRO, 2005, on line).
O direito dos Estados de garantir a segurança e de se ocupar
dos controles de fronteiras no que tange às pessoas que objetivam
entrar em seu território é reconhecido pelo ACNUR - Alto Comissa-
riado das Nações Unidas para Refugiados. Entretanto há que se ob-
servar a compatibilidade entre os legítimos interesses de segurança
dos Estados e suas obrigações internacionais em relação aos direitos
humanos e, ainda, que os controles de migração não afetem os que
necessitam da proteção internacional, como os refugiados, de forma
indiscriminada (MURILLO, 2009, p. 121, on line).
Para o autor as crescentes preocupações de segurança dos Es-
tados, advindas da luta contra o terrorismo, afetaram os refugiados e
poderiam menosprezar o regime internacional para sua proteção, já
que as políticas restritivas de asilo foram acentuadas. Como exemplo,
em alguns casos considerou-se os refugiados como ameaças para a

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
541
segurança dos Estados e até mesmo potenciais terroristas avaliando
apenas aspectos como nacionalidade, religião ou país de procedência.
Portanto, apesar da segurança ser um interesse legítimo dos
Estados, já que os países têm o direito de proteger seu território e
sua população, estes mesmos Estados, ao assinarem e pactuarem
tratados e convenções de direitos humanos e de questões relativas a
refugiados, assumiram obrigações internacionais que incluem a pro-
teção internacional dos refugiados, e será sempre imperioso realizar
uma análise cuidadosa no momento da sobreposição da segurança
nacional em face da proteção do refugiado, e vice-versa.
Considerando as novas referências que se tem com relação
à segurança, houve um significativo aumento das variáveis a serem
verificadas e que possam vir a ser consideradas como ameaças.
Assim, na causa dos refugiados a problemática da seguran-
ça nacional surge por diversas razões. O tema envolve desde “um
colapso econômico e financeiro, a degradação social e ambiental, o
tráfico de drogas, o crime organizado, os problemas de ordem pú-
blica e violência interna, as migrações” e, finalmente, os refugiados
(GUIMARÃES, 2005, p. 15).
Para a autora (2005, p. 17-18),

(...) ao longo da Guerra Fria, quando se pensava em seguran-


ça, Estado e sociedade eram considerados uma coisa só. Os
interesses nacionais eram defendidos como representando
todos os indivíduos. No modelo da Guerra Fria, estar seguro
para um indivíduo residia em sua condição de cidadão, e a
insegurança vinha de cidadãos de outros Estados.

Assim, a negativa na concessão de asilo com base na segu-


rança nacional, sem qualquer investigação de resultado incontro-
verso, é um retrocesso equivalente a volta ao tempo da Guerra Fria.
As inquietações sobre a segurança dos Estados vêm afetando
a proteção dos refugiados, exemplificativamente em três áreas: aces-

542 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
so ao território, processo para determinar a condição de refugiado e
exercício de direitos e a busca de soluções duradouras. Nos ditames
do autor é preocupante que “se pretenda analisar sua aplicação an-
tes mesmo de se chegar à conclusão de que a pessoa reúne os re-
quisitos para ser um refugiado, conforme a Convenção Relativa ao
Estatuto dos Refugiados, de 1951” (MURILLO, 2009, p. 125, on line).
Conforme Buzan e Waever:

[...] devido à natureza especial das ameaças à segurança, se-


ria legítimo o uso de medidas extraordinárias para lidar com
elas. Evocar a segurança seria a maneira mais tradicional de
se legitimar o uso da força e a mobilização e a adoção de
poderes especiais para lidar com tais ameaças, pois estas de-
finem uma condição de emergência, na qual é legítimo que
se utilizem todos os meios necessários para impedir o desen-
volvimento de tal ameaça. (GUIMARÃES, 2005, p. 24)

Amplificando-se a noção de segurança (sem considerar um


conceito universal de segurança nacional) poder-se-ia conceituá-la
como “a ausência relativa de ameaças reais ou percebidas e a baixa
vulnerabilidade a danos da identidade e dos valores adquiridos de
coletividades específicas em importantes setores da vida coletiva”
(Davies apud GUIMARÃES, 2005, p. 25).
Weiner desenvolve um modelo de análise dando ênfase aos
aspectos políticos das migrações, sejam elas voluntárias ou forçadas,
e destaca a possibilidade de que movimentos populacionais interna-
cionais criem conflitos dentro e entre Estados. Desta forma os refu-
giados devem ser estudados não só como consequências de conflitos,
mas também como uma possível causa destes (apud GUIMARÃES,
2005, p. 25).
O autor elenca tais situações, aqui colacionadas para um me-
lhor entendimento: 1ª. Os refugiados configuram uma ameaça às re-
lações entre dois países – de origem e o anfitrião – por se opor ao re-
gime do primeiro; 2ª. Os refugiados como ameaça direta, política ou

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
543
de segurança, para o regime do país anfitrião, pela possibilidade de
os refugiados se voltarem contra tal regime, caso este não os apoiem
em sua contenda com governo do país de origem; 3ª. Os refugia-
dos apresentariam uma ameaça cultural ao país anfitrião, ao tentar
manter seus próprios valores e costumes, se associando em alguns
casos a minorias locais; 4ª. Os refugiados poderiam ser uma ameaça
à segurança nacional por criarem problemas sociais e econômicos, já
que podem gerar um enorme gasto com habitação, educação, trans-
porte e outros serviços públicos.
Não pode ser descartada, ainda, a possibilidade de envolvi-
mento dos refugiados em atividades ilícitas, com aumento da crimi-
nalidade. Por fim, Davies complementa as hipóteses de Weiner com
a possibilidade de os refugiados serem vistos como ameaça política
a identidade de valores para terceiros e/ou para a segurança regional
e global.
De todo o exposto percebe-se que haverá conflito entre a se-
gurança nacional e a proteção dos refugiados, uma vez que a pre-
sença desses interfere no equilíbrio interno do país que os receber,
e que a intensidade de tal interferência resulta em consequências
mais ou menos relevantes, daí deduz-se que somente uma análise
caso a caso (qual refugiado e solicitante de asilo) poderá definir se a
concessão é ou não uma ameaça à segurança estatal.
Sempre haverá situações nas quais o asilo é solicitado por um
número muito grande de pessoas ao mesmo tempo, o que impossi-
bilita tal verificação específica. Para não haver injustiças nem em re-
lação à população que terá de acolher e conviver com os refugiados,
nem quanto a estes, que já tiveram a grande maioria de seus direitos
violados, será indispensável uma ponderada análise.
É certo que os refugiados não devem sofrer qualquer
injustiça no que tange a seu direito de proteção, garantido por países
signatários de tratados e convenções com esta temática. Mas é certo,
igualmente, que há um limite que não deve ser ultrapassado, no

544 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
que se refere aos direitos que os nacionais detêm em relação à sua
segurança interna.

4 PROTEÇÃO DOS REFUGIADOS


Estados que se negam a abrigar refugiados424 podem usar vá-
rios argumentos, entre eles o de que essas pessoas afetariam de for-
ma negativa sua segurança nacional.
Noticia-se que muitas vezes os fluxos em massa na verdade
fazem parte da estratégia militar de grupos que querem eliminar
algum outro dentro do mesmo Estado ou população (GUIMARÃES
2005, p. 18).
A partir de 1990 a comunidade internacional tem sido sensi-
bilizada pela ideia de que os impactos gerados por fluxos de refugia-
dos – considerados durante muito tempo ao longo da história “pro-
dutos das guerras” – podem configurar uma ameaça à segurança dos
Estados anfitriões.
Isso ocorre por várias razões: os refugiados, fugidos de guer-
ras, de perseguições por motivo de questões de raça, religião, na-
cionalidade, grupo social ou divergências políticas chegam a outros
Estados, muitas vezes em grande quantidade e de uma só vez, e
precisam de condições mínimas para sobreviver, como comida, água,
emprego, entre outros direitos que garantem a cidadania de qual-
quer pessoa, em caráter imediato.

424
Definição de refugiados. Art. 1º da Convenção de 1951. A Convenção da Organização
de Unidade Africana – OUA, que rege os aspectos específicos dos refugiados na África,
de 1974, ampliou a definição de refugiados, sendo estes considerados “qualquer pessoa
que, receando com razão, ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade,
filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontra fora do país
da sua nacionalidade e não possa, ou em virtude daquele receio, não queira requerer
a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país da
sua anterior residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtu-
de desse receio, não queira lá voltar” e também “qualquer pessoa que, devido a uma
agressão, ocupação externa, dominação estrangeira ou a acontecimentos que perturbem
gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade do seu país de origem ou do
país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da residência habitual para
procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de nacionalidade”.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
545
A questão parece incontornável, pois assim como os refugia-
dos têm obrigações em relação ao país em que se encontram, con-
forme o art. 2º da Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refu-
giados, também têm direitos que se equiparam, ao menos, aos dos
estrangeiros em geral (art. 7º, alínea c).
Há situações nas quais os países anfitriões não têm estrutu-
ra para abrigar tantas pessoas em tão pouco tempo, e acabam re-
manejando seus recursos com urgência, para, por exemplo, cons-
truir campos de refugiados e disponibilizar pessoal especializado em
áreas como saúde e educação, atendendo assim as necessidades dos
refugiados. Tais investimentos terminam por comprometer seu orça-
mento, impedindo ou retardando a realização de obras e programas
necessários ao bem estar da população nacional, impondo privações
que se afigurarão injustas com os locais, enquanto os estrangeiros
recebem atenção humanitária. Será difícil convencer uma população
a passar por necessidades não previstas ou imaginadas até antes da
chegada dos refugiados ao seu país, se isto representar benefícios
para “estranhos”.
Cabe trazer aqui, a propósito, a ideia de patriotismo defendi-
da por Rousseau (apud SANDEL, 2011, p. 281):

Parece-me que o sentimento da humanidade se evapora e se


dilui quando é estendido a todos os cidadãos do mundo, e
que não podemos ser afetados pelas calamidades na Tartária
ou no Japão da mesma forma como o somos quando elas
acontecem na Europa.

Um exemplo atesta a força do pensamento de Rousseau. No


início da década de 1980 a fome na Etiópia fez com que 400 mil pes-
soas – entre elas judeus etíopes, os falashas – fugissem para o Sudão
e passassem a viver em campos de refugiados. Em 1984 o governo
judeu empreendeu a Operação Moisés, secreta, que resgatou 7 mil
falashas, levando-os para Israel. Em 1991 foram mais 14 mil. O que
fica clara é a escolha, por parte de Israel, de quem seria salvo dos

546 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
campos de refugiados sudaneses. Nas palavras do então primeiro-
-ministro Shimon Peres “Não descansaremos enquanto todos os nos-
sos irmãos e irmãs da Etiópia não estiverem a salvo em casa.” Para
ele, “irmãos e irmãs da Etiópia” não eram quaisquer seres humanos,
ou os etíopes em geral, todos vítimas da mesma situação extrema,
mas tão-só os judeus que lá viviam (SANDEL, 2011, p. 279-280).
Analisando a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados
de 1951, observa-se que a segurança nacional dos Estados que acei-
tam refugiados merece atenção e destaque, tanto que é ressalvada
como regra geral e preeminente sobre os demais artigos do docu-
mento da ONU – Organização das Nações Unidas.
Com efeito, o artigo 9 da Convenção prevê que

Nenhuma das disposições da presente Convenção tem por


efeito impedir um Estado Membro, em tempo de guerra ou
em outras circunstâncias graves e excepcionais, de tomar
provisoriamente, a propósito de uma pessoa determinada, as
medidas que este Estado julga indispensáveis à segurança
nacional, até que o referido Estado determine que essa pes-
soa é efetivamente um refugiado e que a continuação de tais
medidas é necessária a seu propósito, no interesse da segu-
rança nacional.

Pelo art. 28, § 1º, os Estados-membros têm a liberalidade de


entregar ou não documentos de viagem aos refugiados que residam
regularmente em seu território, e havendo “razões imperiosas de se-
gurança nacional e ordem pública” opostas, os Estados podem, por
mera discricionariedade, vedar que os refugiados viagem para fora
de seu território. Tal artigo limita claramente o direito de ir e vir,
dando preferência à segurança nacional em detrimento da postulada
cidadania plena, e literalmente “prendendo” os refugiados em um
espaço restrito e exclusivo, um campo construído para tal fim.
O art. 32, § 1º da Convenção de 1951 permite que, em nome
da segurança nacional e da ordem pública, os Estados-membros ex-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
547
pulsem um refugiado que se encontre regularmente residindo/aloja-
do em seu território.
Aqui se percebe que em nome da segurança nacional é possí-
vel uma atitude que, por certo, causará enorme prejuízo na vida do
refugiado. Esta pessoa já saiu de seu país, perdeu suas referências e
deve estar ciente que, a qualquer momento, porque o país que a aco-
lhe julga cabível, poderá perder sua condição de refugiado, não sa-
bendo ainda se será expulsa para outro país ou se devolvida para seu
país de origem. Neste caso deve ser observado o princípio de direito
internacional do non-refoulement (não devolução), que tem por obje-
tivo a proteção das pessoas refugiadas, impedindo que sejam devol-
vidas para os Estados ou localidades onde seus direitos, incluindo a
vida e a liberdade, podem ser ameaçados de forma extrema. Mesmo
que tal expulsão ocorra somente conforme o processo previsto em lei
(com a possibilidade de ampla defesa por meio do fornecimento de
provas, apresentação de recurso e até mesmo representação legal –
art. 32, § 2º), é certo que o refugiado, que muitas vezes vem de um
país com idioma e legislação diferentes, terá grandes dificuldades
para usar de tal prerrogativa, fato que reduziria em muito suas chan-
ces de permanência no país de acolhida.
Por fim, pelo que consta no § 2º do art. 33 o refugiado não po-
derá beneficiar-se da Convenção se for considerado um perigo para
a segurança nacional do país onde está, por “motivos sérios”, ou
ainda que tenha sido condenado definitivamente por crime ou delito
particularmente grave e seja considerado uma ameaça para a comu-
nidade do referido país.
Realiza-se, neste cenário, a contraposição de direitos indivi-
duais – os do refugiado – e direitos que se podem considerar coleti-
vos, pois o Estado está a defender sua integralidade, e em seu terri-
tório abriga seu povo, o mais das vezes um conjunto de milhões de
indivíduos ao qual também devem ser assegurados direitos.
O Estado acolhedor dos refugiados terá, desta forma, de pon-
derar o que seja um motivo realmente sério, fato tão grave que ense-

548 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
jaria a exclusão do asilado com base nos direitos e deveres trazidos
pela Convenção. Tal decisão depende dos regramentos internos que
regulem a defesa nacional de cada Estado, pois ainda que os direi-
tos humanos tenham alcançado a universalização, resta inatingido
o conceito de soberania do anfitrião.
Com o surgimento de novas situações não previstas quando
da elaboração da Convenção de 1951, que considerava as circunstân-
cias vigentes ao fim da 2ª Guerra Mundial, fez-se necessária a edição
um Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados que, vigorando a
partir de 4 de outubro de 1967, pretende contemplar os novos tipos
de refugiados. No entanto, em relação à segurança nacional e os re-
fugiados, tal Protocolo não trouxe qualquer alteração.
Ainda, nem a Convenção da OUA – Organização da União
Africana, de 1969, que “Rege os aspectos próprios aos problemas dos
refugiados na África”, e amplia a definição de refugiados, nem na
chamada Convenção de Kampala – “Convenção da União Africana
sobre a proteção e assistência às pessoas deslocadas internamente
na África”, de outubro de 2009, há menção acerca do tema seguran-
ça nacional e sua relação com a proteção de refugiados.
Também na Declaração de Cartagena sobre os Refugiados,
datada de 1984, instrumento importante para a proteção destas
pessoas, nada se falou ou convencionou no que tange à segurança
nacional do anfitrião e proteção oferecida aos refugiados. Cabe sa-
lientar que a Declaração, nos dizeres de Cançado Trindade (1997, p.
328-329) “situou a matéria (refugiados) no universo conceitual dos
direitos humanos” e “aprofundou as relações entre os direitos dos
deslocados e os direitos humanos”.
Seria então possível inclinar-se no sentido de que a seguran-
ça nacional deve ser preservada e defendida, mas é necessário que
tal posicionamento não fira o dever obrigatório e incontornável de
proteção aos refugiados, compromisso assumido pelos Estados sig-
natários do conjunto de tratados que regulam a matéria.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
549
Ainda que a característica primordial dos direitos humanos
seja a universalidade, é forçoso lembrar que tal universalidade é,
como já dito inicialmente, ocidentalizada. Assim, há casos em que
a nacionalidade, a religião e a cultura dos refugiados podem causar
estranhamento e resultar em análises preconceituosas, prejudicando
ou impedindo o processo. Entretanto, não é por ser oriundo de um
país com histórico de ataques terroristas, ou que está em guerra re-
ligiosa, ou onde haja perseguição entre tribos, que o refugiado será
obrigatoriamente uma ameaça ao país que o abriga.
Exemplificando, recentemente, em 13 de dezembro de 2012,
foi noticiado que um refugiado anti-islâmico foi detido e ameaçado
de expulsão pelo simples fato de usar de sua liberdade de expressão
contra o Islã. Cabe ressaltar que este refugiado paquistanês reside na
Espanha desde 2010, por meio de concessão de asilo político, e foi
proibido de difundir um filme no qual o questionamento era sobre
se Maomé seria “assassino e estuprador de crianças”. Tal decisão
partiu do poder judiciário espanhol. Ou seja, o refugiado foi julgado
conforme o Código Penal Espanhol, e não por normas internacionais
(CADENASER, 2013).
Analisando o exemplo pode-se concluir que se mesmo em
um país ocidental, signatário de diversos tratados sobre direitos hu-
manos, como a Espanha, há esse receio, muitas vezes infundado, de
que um ato de liberdade de expressão de um refugiado possa afetar
a segurança nacional, mais provavelmente o fato se dará em paí-
ses que sabidamente têm outra formação histórica e cultural acerca
dos direitos humanos, que possuem tribos, castas e povos que se
digladiam por divergências religiosas ou políticas. Claramente os re-
fugiados que entrem nesses países e cuja religião, opinião política
ou histórico cultural, entre outras características, sejam demasiado
diferentes das particularidades do país que os refugia, poderão ser
considerados como ameaças à segurança nacional unicamente pe-
las diferenças, independentemente da prática de atos concretos que
possam ser caracterizados como tal.

550 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Nos Estados Unidos, noticiou o Alto Comissário da ONU para
Refugiados, António Guterres (ACNUR, 2010, on line), que, ao mes-
mo tempo em que este país tem boas políticas sobre asilo e refu-
giados (para quase meio milhão de pessoas foi concedido asilo e há
mais de 2 milhões de refugiados reassentados nos Estados Unidos
desde 1980), enquanto o pedido para a obtenção de asilo é analisado
os refugiados ficam em centros de detenção. O ideal seria que tais
lugares fossem “menos isolados e menos parecidos com uma pri-
são”. Para Guterres mereciam destaque:

[...] as novas diretrizes sobre a liberdade condicional para


os requerentes de asilo emitidas recentemente pelo Depar-
tamento de Segurança Nacional, falando sobre um “melhor
equilíbrio entre as exigências da segurança nacional e as ne-
cessidades das pessoas que fogem de perseguições, que não
deveriam ser detidas.”

Demonstrando sua preocupação quando a segurança nacio-


nal se sobrepõe ao direito internacional de proteção ao refugiado,
pelo menos quando da análise para ingresso do refugiado no país
solicitante de asilo, o ACNUR (2011, on line), por meio de seu Presi-
dente Regional para os Estados Unidos e Caribe, opinou no sentido
de que “a ampla maioria dos solicitantes de refúgio não deveria estar
presa” e ainda “nas raras ocasiões em que se determina a detenção
de um solicitante de refúgio, então as instalações de Berks incorpora
as melhores práticas de um modelo de detenção civil para imigran-
tes” (sic).
O Centro Familiar do Município de Berks, localidade do in-
terior da Pensilvânia, EUA, é um centro de detenção para onde são
enviadas as pessoas detidas pela imigração no momento em que
tentavam entrar nos Estados Unidos. No local há serviços de apoio
psicológico que propiciam aos detentos contar suas histórias de vida,
muitas vezes pela primeira vez. Todas as famílias tem um tutor que
cuida do acesso a serviços essenciais durante o tempo da detenção.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
551
Nas palavras da promotora pública Elizabeth Yager, “se você irá deter
solicitantes de refúgio, então Berks é um modelo a ser seguido”. No
entanto cabe salientar que, mesmo sendo um local com apoio e es-
trutura, enquanto os solicitantes de refúgio aguardam o julgamento
de seus casos estão detidos, portanto compartilhando o mesmo es-
paço com pessoas que aguardam julgamentos oriundos de processos
criminais ou imigratórios. Ainda, conforme a notícia do ACNUR, “os
dados mais recentes do Departamento de Segurança Nacional in-
dicam que, no ano de 2008, aproximadamente nove mil dos 30 mil
indivíduos em centros de detenções eram solicitantes de refúgio”.
Pureza, citando Perez Luño (BALDI, 2004, p. 93), adverte que

[...] hoje, tanto o indivíduo como as colectividades resultam


insuficientes para responder a agressões que, por afectarem
toda a humanidade, só podem ser contrariadas através de
direitos cuja titularidade corresponda, solidária e universal-
mente, a todos os homens.

A condição de refugiado não pode ser considerada uma esco-


lha voluntária, ela é fruto de uma situação extrema, que obriga seres
humanos a abandonarem raízes familiares, bens materiais, direitos
básicos, a própria história de vida, para começar tudo de novo longe
de seu país.
Assim, o direito de asilo e a proteção internacional dos refu-
giados, que contempla pessoas que em sua maioria fogem de guer-
ras, perseguições e demais intolerâncias, teria de ser observado pelos
Estados signatários do compromisso como anfitriões, mesmo não
tendo tal instituto jurídico coercitividade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No momento em que a concessão de asilo ou refúgio vai ser
dada ou negada, é necessário que o Estado concedente leve em con-
ta que tal decisão muitas vezes implicará na vida ou morte de uma
pessoa.

552 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Conforme bem salientado por Murillo (2009, p. 122, on line),
“a segurança e a luta contra o terrorismo, tal como a proteção inter-
nacional dos refugiados, são também questões de direitos humanos
e não devem ser vistas como antitéticas ou opostas.”
“Conflitos e deslocamentos ao redor do mundo se tornaram
mais complexos”, disse Guterres na Universidade de Georgetown,
ressaltando que estamos vivendo “[...] tempos desafiadores para os
refugiados, os requerentes de asilo e os deslocados internos”. Há,
segundo dados oficiais do ACNUR, uma onda de retornos involun-
tários de requerentes de asilo no Mediterrâneo, no Chifre da África e
no Sudeste Asiático para a qual o palestrante faz um alerta.
Confrontado com uma proliferação de más práticas, Guterres
disse, o compromisso da Lei sobre Refugiados para com o princípio
da proteção dos refugiados tem um significado ainda maior.
Se nos tempos que correm a dignidade humana é direito que
tem garantida a proteção internacional, a aparente dicotomia com o
direito do Estado de manter a sua segurança interna não prospera.
E não encontra razão porque o princípio da soberania, do qual de-
riva a discricionariedade estatal, encontra-se mitigado pela ideia de
comunidade internacional. Antes de serem países independentes,
os Estados hoje são membros de comunidades, blocos e mercados
comuns, organismos que, se por um lado os fortalecem, ao mesmo
tempo se alimentam de parcelas de soberania das quais os integran-
tes abdicam em prol do grupo.
A prevalecer a tendência, aos Estados comprometidos pelas
Convenções humanitárias resta o dever de priorizar o elenco dos direi-
tos humanos sob proteção internacional – dos quais o direito de asilo
é derivado – sem alegações outras, nem sequer a própria soberania.
Ao mesmo tempo deverão os anfitriões buscar soluções que
evitem prejuízos aos seus nacionais quando o asilo afetar a econo-
mia interna e os direitos básicos de cidadania, o que se espera seja
possível em ações de cooperação internacional.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
553
Inadmissível, portanto, que refugiados possam ser
considerados ameaça à segurança nacional e aos cidadãos do Estado
anfitrião sem a existência de acusações formais e sem que tenham
exercido seu direito de defesa em plenitude.

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
555
TERRORISMO: história e medidas em prol da
segurança internacional

Raíssa Teixeira Almeida de Souza


Graduanda de Relações Internacionais; Estudante; Universidade Federal da Gran-
de Dourados; Realizou intercâmbio na Universidade do Porto, participou de di-
versos congressos em relações internacionais e direito. (rah.teixeira@gmail.com)

Daphne Martins Batista Antonio


Graduanda de Filosofia; Estudante; Universidade Federal do Mato Grosso do Sul;
É participante do grupo de pesquisa GIMPEC. (pontoaton1z@gmail.com)

556 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Resumo:
O terrorismo na pós-modernidade vacila entre concepções individuais de cada grupo, Estado
ou instituição. São adotadas várias medidas para combatê-lo. Partindo da Revolução Francesa,
percorrendo os anarquistas do século XIX, o embaralhado século XX e a Guerra ao Terror do
século XXI, busca-se uma definição de terrorismo e medidas para a Segurança Internacional,
compreendendo que para se haver uma efetiva erradicação do terrorismo, deve-se haver um
aprofundamento no estudo específico de cada grupo que deseja se eliminar.
Palavras-chave: Terrorismo – histórico do terrorismo – Segurança Internacional – antiterro-
rismo.
Sumário:
1. Introdução. 2. Sobre a concepção de terrorismo. 3. Sobre as fases do terrorismo. 4. Outros
grupos. 5. Sobre a Segurança Internacional. 6. Considerações finais e uma nova Perspectiva
de Segurança Internacional. 7. Referências

1 INTRODUÇÃO
Este presente artigo tem por objetivo mostrar a importância
da compreensão em relação ao terrorismo e seu papel nos diferentes
períodos históricos, abordando tal compreensão como ponto de par-
tida para se efetivar a luta contra o terrorismo dentro da Segurança
Internacional, assim, procurando os diferentes conceitos e referen-
ciais políticos sobre o tema, para sua efetivação, tendo em vista que
esta não consegue ter uma efetividade em seu combate ao terroris-
mo, pois não há um interesse pelo histórico e pela concepção de ter-
rorismo anterior ao século XXI, nomeadamente pós-11 de setembro,
deste modo propõe-se aqui que haja uma avaliação deste histórico
para que a Segurança Internacional consiga se adequar aos diferen-
tes tipos de terrorismo.
O artigo divide-se em seis partes e aborda o tema terrorismo,
com uma grande ênfase na abordagem histórica, para se poder com-
preender os antigos e novos modelos, concepções, características,
períodos e locais onde há atuação de grupos, que analisados, apro-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
557
fundando em partes importantes da história, podem ser considera-
dos terroristas e assim, compreendendo o terrorismo nos diversos
períodos e contextos, procuramos apontar caminhos para ter uma
mais eficiente Segurança Internacional e e então promover a cons-
trução da paz no mundo.
A primeira parte, Sobre a concepção de terrorismo, trata da
conceituação da palavra terrorismo e de sua origem na história.
Utilizando o autor De Paula, aborda o terrorismo como um ter-
mo político por ter sua definição em mudança sempre que posta
em determinados tempos políticos. Esta parte começa tratando da
conceituação atual para então voltar à conceituação de origem: O
surgimento da palavra terrorismo na Revolução Francesa. Por fim
trata da mudança do conceito na Russia, que sofreu atentados de
anarquistas, também conhecidos como terroristas pré-revolucio-
nários.
A segunda parte, Sobre as fases do terrorismo, divide o terroris-
mo em quatro fases, e baseado na divisão de Souza (2010) estas
fases iniciam-se no século XIX e vem até o tempo presente, e com
maior aprofundamento em grupos como os anarquistas do período
pré-revolução russa, no fim do século XIX; os grupos que tinham
um foco anti-colonial e lutavam pela descolonização, como o IRA e a
ETA, que ocorrem entre as décadas de 40 e 70 do século XX; nos dez
anos seguintes, entre 1975 e 1985 fica visível um caráter político-i-
deológico nos grupos focando-se mais na ideia esquerda/direita; já a
quarta fase tem início na década de 90 que traz o terrorismo suicida
como forma de ataque.
A terceira parte, Outros grupos, analisa diferentes tipos de gru-
pos que podem vir a ser terroristas dependendo da perspectiva abor-
dando as características para consideração da legitimação da luta
dos grupos. Exemplos como As FARCs, Hezbollah, Hamas são des-
critos e analisados e também descreve sobre o nazismo como uma
forma de terrorismo, contrapondo as classificações da segunda parte
deste artigo por haver uma lacuna entre períodos.

558 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
A quarta parte, Sobre a Segurança Internacional, tem o objetivo
de mostrar quais medidas tem sido aplicadas para que o terrorismo
seja de fato erradicado, analisando medidas tomadas desde a déca-
da de 70, passando por resoluções da ONU e estratégias da União
Europeia.
A quinta parte, Considerações Finais e uma nova Perspectiva de
Segurança Internacional, tem como objetivo apresentar uma forma de
melhoria na efetividade da Segurança Internacional em relação ao
combate do terrorismo em âmbito global, tendo em vista que deve-
-se compreender com mais afinco as especificidades dos grupos que
planejam erradicar.
Como metodologia para a formulação deste artigo, foram
usados livros (O homem Revoltado de Albert Camus, e Guerrilheiros
e Terroristas de Richard Clutterbuck) , artigos científicos, monogra-
fias e trabalhos de pós-graduação. Aponta-se aqui então os traba-
lhos de maior relevância para a conclusão deste artigo. A dissertação
“Terrorismo e terroristas”, de Andre Raichelis Degenszaijn, aborda
desde a criação do termo terrorismo, sendo de grande importância
para o entendimento da origem e para desenvolver assim o restante
do trabalho; a monografia “Tráfico de drogas, terrorismo e organi-
zação criminosa como delitos antecedentes ao crime de lavagem de
dinheiro”, de Alexis Sales de Paula e Souza, aponta as fases do ter-
rorismo; em “Euskadi Ta Askatasuna: a Percepção do Terrorismo,
Legitimidade e Libertação Nacional”, de Raphael Tsavkko Garcia,
aborda além do grupo ETA, alguns grupos importantes para o enten-
dimento de terrorismo no século XX; no artigo “Os Estados Unidos e
Osama bin Laden uma década depois a derrota da Al-Qaeda e o fim
da unipolaridade?”, Bruno Cardoso Reis aborda a origem e aconte-
cimentos relacionados ao grupo Al-Qaeda e sua relação com os Es-
tados Unidos; na dissertação “Terrorismo: um conceito político”, de
Guilherme Tadeu de Paula, vê-se a conceituação do termo terrorismo
fazendo uma investigação histórica. Portanto, o artigo procura ana-
lisar exemplos históricos e contemporâneos, procurando estabelecer

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
559
conceitos e características que possam esclarecer questões acerca do
terrorismo.

2 SOBRE A CONCEPÇÃO DE TERRORISMO


Para se falar do terrorismo é preciso discorrer sobre o que
é e do que trata este termo que torna-se banalizado. Tem-se então
como primeiro objetivo esclarecer o máximo possível as limitações
do termo principal aqui usado. Por conta da falta de estabilidade da
palavra terrorismo, em sua definição, há uma investigação histórica
ansiando por descobrir onde e por que ocorre um equívoco ao utili-
zá-lo. Paula (2013) interpreta o termo terrorismo como uma palavra
política, pois considera este um termo utilizado no decorrer da his-
tória conforme a preferência de quem a utiliza425, essa afirmação é
feita ao estudar a história tanto pela origem do termo quanto pela
mudança (que se mostra bastante subjetiva).
Para o autor o termo terrorismo hoje, no século XXI, não é
neutro, pois a definição do terrorismo - como um termo político -
que passou pelas inúmeras definições do século XX ficou a mercê
dos grupos dominantes; após 11 de setembro houve um pronuncia-
mento dos Estados Unidos promovendo a “Guerra ao Terror” 426 de-
clarando a pretensão de erradicar grupos terroristas e nações aliadas
ou que dessem guarida a esses grupos. Houve também um proveito
de outras nações que se aliaram ao EUA como movimento contra os
seus próprios inimigos.

Desta maneira, temos que compreender o terrorismo não


simplesmente como um fenômeno político dado, que se re-
petiu em determinados contextos, trazendo em si um con-
junto de características. Como vimos os homens que, no
processo histórico-social forjam o vocabulário político, não

425
PAULA, Guilherme Tadeu de. Terrorismo: Conceito Político. 2013. Disponível em:
<http://www.humanas.unifesp.br/ciencias_sociais/dissertacao-guilherme-tadeu-de
-paula>. Acesso em: 28 abr. 2013, p. 21.
426
Idem, p.25.

560 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
o fazem isentos de intenções e interesses. (PAULA, 2013, p.
19, on line)

A partir dos acontecimentos pós 11 de setembro, por essa mo-


vimentação bélica contra o terrorismo, definir o que é terrorismo ou
quem é ou não terrorista carregará uma responsabilidade singular se
comparada a outras definições históricas da palavra. Atualmente há
grandes divergências quanto à denotação de um grupo ser chamado
de terrorista, mas o conceito aceito com mais frequência é o estipu-
lado pelas nações dominantes.
Entendendo a problemática atual do conceito, voltaremos
para sua origem na tentativa de desembaralhar as definições. Como
foi dito na introdução o termo terrorismo tem origem na revolução
francesa e é preciso salientar que a definição que se sustenta na épo-
ca de seu aparecimento é diferente da concepção usada no século
XXI, porém já tinha um caráter político impregnado em suas ações.
Com a concepção pós-moderna de terrorismo parece impensável a
possibilidade de esta ser considerada uma característica cívica, pa-
triota e positiva para o individuo; características adotadas pela Re-
volução Francesa.

Como antecipamos, além de ser o ponto de partida da pa-


lavra terrorismo como conceito político, a Revolução Fran-
cesa traz ainda a peculiaridade de ser o único momento da
sua trajetória histórica em que o termo não aparece como
uma característica de deslegitimação no debate público
(...). É possível afirmar que, neste primeiro momento, o
terrorismo foi considerado não uma prática, mas uma for-
ma de governo necessária em um período extraordinário.
(...) Chamar alguém de terrorista naquele período não ti-
nha nenhum peso acusativo, mas pelo contrário, poderia
querer dizer que o cidadão estava sendo fiel aos princípios
patrióticos, defendendo a revolução de traidores. (PAULA,
2013, p. 81-82, on line)

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
561
Quanto à concepção cívica de terrorismo, os jacobinos usa-
ram-na, pois tinham de incorporar uma reação defensiva e vontade
punitiva para com os aristocratas e qualquer oposição à suas ideolo-
gias. O Reino do Terror ou Terror Jacobino (1793-1794) se deu pela
aliança dos Jacobinos com o povo, que resultou em um ano de mas-
sacre, representando a vingança e o ódio contra os girondinos, aris-
tocratas e toda e qualquer oposição; o Reino do Terror acabou com a
morte de Robespierre, na guilhotina.
A conotação do terrorismo deixa de ser positiva no mesmo mo-
mento em que deixa de representar a vontade do povo, quando perde
a sua base moral, passando então a ser artigo de deslegitimação.
Após a conotação de terrorismo na Revolução Francesa há
uma miscelânea na concepção de anarquismo com terrorismo, tor-
nando os dois sinônimos naquele determinado período histórico.
Houve uma série de atentados a políticos russos feitos por anarquis-
tas - jovens intelectuais e trabalhadores da classe operaria - como
denuncia a má utilização do poder do Estado russo. O terrorismo
aí não se classificou exatamente como deslegitimação, pois o termo
anarquismo já era deslegitimação suficiente427. Sobre a época:

A verdade é que, mesmo sem uma organização mais siste-


matizada para além dos próprios paradigmas de sua causa e
do desenrolar dos eventos repressivos à militância anarquis-
ta, o processo de luta teve impacto significativo na política da
virada do século XIX para o XX e marcou época na história
da prática daquilo que é terrorismo, frequentemente sendo
citado como um dos primeiros momentos da história do ter-
ror como arma política. (PAULA, 2013, p. 88, on line)

Os atentados anarquistas precederam a revolução russa, ten-


do uma grande influencia no inicio e efetividade desta. O termo ter-

427
PAULA, Guilherme Tadeu de. Terrorismo: Conceito Político. 2013. Disponível em:
<http://www.humanas.unifesp.br/ciencias_sociais/dissertacao-guilherme-tadeu-de
-paula>. Acesso em: 28 abr. 2013, p. 92.

562 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
rorismo no final do século XIX é associado diretamente com anar-
quismo.
Para Paula, o século XX é cheio de concepções embaralhadas
sobre o terrorismo. Para Souza (2006) no século XX é possível iden-
tificar quatro fases do terrorismo, as quais passamos a enumerar e
analisar.

3 SOBRE AS FASES DO TERRORISMO


3.1 Primeiras fases
No Primeiro Período Souza428 classifica como sendo de 1880
a 1914, de caráter anarquista, libertário e populista, focava seus
atentados a figuras políticas se preocupando em não atingir vítimas
(civis); ocorreram principalmente na Europa. Albert Camus em seu
livro: O Homem Revoltado, afirma que 1878 é o ano de nascimento
do terrorismo russo; neste mesmo capítulo ele trata dos anarcoter-
roristas, tanto do grupo A Vontade do Povo, surgido em 1878 com
o atentado de Vera Zassulitch ao general Trepov, governador de São
Petersburgo, quanto do Frances Henry. Os anarcoterroristas de Ca-
mus são assassinos delicados, em sua obra ele os afirma jovens de
morte nobre; um sacrifício pelo futuro desconhecido: “ A partir daí
criou-se o hábito, mais difícil, de sacrificar-se por alguma coisa da
qual nada se sabia, a não ser que era preciso morrer para que ela
existisse”(CAMUS, 2010, p. 196). Os anarquistas tiveram o papel
de pré-revolucionários, pois foi o seu descontentamento sangrento
e explosivo para com o estado russo que possibilitou a Revolução
Russa.

O niilismo, estreitamente ligado ao movimento de uma reli-


gião desiludida, termina, assim, no terrorismo. No universo

428
SOUZA, Alexis. Tráfico de Drogas, Terrorismo e Organização Criminosa como Delitos
Antecedentes ao Crime de Lavagem de Dinheiro. Julho. 2010. Disponível em: <http://
www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=4565>. Acesso em: 28 abr. 2013, p. 37.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
563
da negação total, pela bomba e pelo revólver, e também pela
coragem com que caminhavam para o suplício, esses jovens
tentavam sair da contradição para criar os valores que lhes
faltavam. (CAMUS, 2010, p. 196)

Para entender melhor os anarquistas russos é preciso en-


tender que por mais assassinos que fossem não desconsideravam
o valor da vida, o processo terrorista para eles era um processo de
culpa e sacríficio, eles davam suas vidas ao próprio propósito para
poder tirar as vidas que tinham como alvo. Jeliabov morre após a
morte de seu alvo Alexandre II, pois para se redimir e não viver sua
vida em culpa só sua morte servirá; foi enforcado com quatro de seus
companheiros anarquistas, dentre eles a mulher que amava, Sofia
Perovskaia e o traidor Rissakov. Rissakov morreu solitário, já meio
louco de terror após fraquejar nos interrogatórios, rejeitado pelos
seus camaradas. A fraternidade formada pelos anarquistas entre si,
como camaradas de um mesmo ideal e sacrifício para eles transcen-
dia a amizade, te-los apenas eles mesmos em meio ao terror que não
queriam mas tinham de causar; era servindo esse amor, o amor que
transcendia, que tinham que matar.

3.2 Segunda fase


O Segundo Período foi de 1945 a 1974 focando na anti-colo-
nização e descolonização. Tem como exemplo IRA, ETA, os armênios
e curdos que mantém atentados aos turcos como aviso da lembrança
do genocídio da primeira guerra.
Nesta parte, procura-se estabelecer o início dos movimentos
anti-colonização que ocorrem dando ênfase à Espanha e à Irlanda
no período compreendido entre as décadas de 40 e 70 do século XX,
mas que possuem suas origens nos fins do século XIX e início do
século XX.
Na Espanha do fim do século XIX, o Partido Nacionalista Bas-
co é criado por Sabino de Arana y Goiri, onde defende a manutenção

564 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
do sistema de autogoverno Basco, com forte cunho nacionalista e
conservador, opondo-se ao liberalismo e ao laicismo, e ideias forte-
mente nacionalistas, sendo contra não-bascos, e seguindo a ideia
de uma vida rural, conservadora, voltada para Deus e tendo a igreja
como ponto forte da sociedade.
Alguns membros da juventude do Partido Nacionalista Basco
são fundadores da ETA e a partir dos ideais do PNV, a ETA excluindo
as ideias de racismo, ruralismo e a questão religiosa também prega
a necessidade de preservação da cultura basca, da independência e
da luta por seus objetivos. Assim, os fundadores do grupo viram que
o PNV tinha um caráter burguês, desapontando-se, e que nenhuma
ação contra o regime franquista seria tomada.

A ETA nasce com o ideal de independência, tendo na luta


contra Franco uma primeira etapa para a consecução de seus
objetivos. Desde o princípio a ideologia que permeia a ETA é
a de recuperar e valorizar a cultura e língua bascas, ao con-
trário do senso comum que via na ETA apenas um grupo
anti-franquista. (GARCIA, 2012, p. 2, on line)

Em sua primeira Assembleia, que ocorre em 1962, declara-


-se Movimento de Libertação Nacional. A partir dessa Assembleia, o
grupo discute internamente durante três assembleias sobre o ideário
marxista a ser adotado. A ETA aproxima-se de movimentos operários
nos anos 60 e, assim, começam a seguir o marxismo como ideal para
sua luta e é a partir desse período, onde adotam tais ideias, conside-
rando-se assim “legitimo o uso da força na luta contra a opressão e
contra a subjugação da classe trabalhadora” (GARCIA, 2012) busca
a classe trabalhadora como alicerce de seu ideal e adere ao marxis-
mo, que é efetivado pelo grupo em sua IV Assembleia, em 1964.
No período do regime franquista, a ETA era apoiada e res-
peitada por diversas camadas tanto nacionais como de todo o mun-
do e difere da imagem terrorista disseminada hoje pelo governo
espanhol.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
565
Mas aqui se opõem dois sentidos de democracia: para o Es-
tado espanhol, democracia é a situação atual de direito de
governo que está sendo ameaçado pelo terrorismo, e para o
nacionalismo basco, democracia é o direito do povo basco,
reconhecido como tal, a defender sua capacidade de decidir
por si próprio seu futuro. (VILLALÓN apud GARCIA, 2012,
p. 7)

Llera (1992) define que a ETA passa a ser um grupo terroris-


ta a partir de 1977, no processo de redemocratização da Espanha,
mas como o grupo não foi criado com o objetivo especifico de se
lutar contra Franco, e sim lutando pela liberdade e independência
da região, Franco foi apenas o primeiro inimigo. Já no governo de
Felipe González Márquez, do PSOE (Partido Socialista Operário Es-
panhol), patrocionou grupos terroristas de extrema-direita, “com
ampla participação e direção de membros das forças de segurança
estatal - como os GAL, Batalhão Basco-Espanhol, Cristo Rey e ou-
tros, com o objetivo de matar lideranças e militantes nacionalistas
bascos” (GARCIA, 2012, p. 11-12). Assim, a luta da ETA não termi-
na, e permanece a mesma, mas com um inimigo diferente, onde a
nova democracia instaurada também tortura e mata.
Nos anos 1960, a ETA adere ao Marxismo-Leninismo e em 74
se junta ao Movimento de Libertação Nacional Basca (MLNV).

A base ideológica desta organização pode ser encontrada em


Mao Tsé-Tung que, em seu Livro Vermelho, descreve a forma
organizativa e a necessidade de Movimentos de Libertação
Nacional de serem construções coletivas político-militares
dentro de uma doutrina de Nacionalismo Revolucionário, ou
seja, uma luta de caráter nacional e de classes. Che Guevara,
Ho Chi Min e depois até mesmo Marighella surgem como ma-
trizes ideológicas da guerrilha basca”. (GARCIA, 2012, p. 20)

O movimento pela libertação do país basco torna-se nacional


e revolucionário, adere ao ideal de Libertação Nacional na V Assem-

566 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
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bleia, entre os anos de 1966 e 1967 e tem como base a legitimidade
dada tanto por um grande apoio popular quanto pela resolução 1514
da ONU “(...) que declarava como legítima a luta pela libertação na-
cional, reconhecendo o direito de povos oprimidos à autodetermina-
ção como um direito inalienável”. (GARCIA, 2012, p. 19, on line)
A Espanha é um exemplo de país que lutou e luta contra
as minorias. Catalunya, Galiza e País Basco são regiões do país que
mais sofreram com violência e humilhações pelo governo de Madrid.
Como a Estado espanhól não teve capacidade de inserir e desenvolve
uma ideia de prioridade pelo estatal e uma minimização do local,
não conseguindo implementar mudanças e assim, Bascos, Catalães
e Galegos em menor número puderam resistir por estarem organi-
zados, deste modo, a resistência desses grupos torna-se luta contra
um Estado Ilegítimo, que não foi capaz de impor uma ideia de país
único. As opções desses grupos de luta pela Libertação Nacional são
duas: resistência cultural e Luta Armada.

A ETA, porém, é o melhor dos exemplos de Luta Armada que,


obviamente, dentro do MLNV (Movimento de Libertação Na-
cional Basco), também agregou ações de resistência cultural
contra a opressão cultural - do Estado Espanhol, em muitos
casos armada e violenta. (GARCIA, 2012, p. 28, on line)

Vê-se que a ETA, é considerada grupo legítimo tanto por ca-


madas da população nacional, quanto pela resolução 1514 da ONU,
mas é ilegítimo para o Estado espanhol, e após a redemocratização
do país, começam a considerá-lo grupo terrorista por acreditar que
a democratização do país torna ilegítima uma luta armada e com
ideais libertários.
O IRA (Irish Republican Army) foi criado como um grupo
com o objetivo de independência da Irlanda em relação ao Reino
Unido. A luta pela qual o IRA propunha, resultava, segundo Clut-
terbuck (1977), mais de lutas entre comunidades e menos de ideais
político-ideológicos. Tinha como rival o UVF (Ulster Volunteer For-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
567
ce), e suas lutas tinham raízes mais profundas que os revolucioná-
rios anarquistas e marxistas do século XIX e mesmo em relação ao
século XVIII.
Os conflitos religiosos entre protestantes e católicos na Irlan-
da podem ser datados do século XII, mas têm grande importância já
no século XVII quando James I instala colonos ingleses e escoceses
em território Irlandês, americano e canadense. Então a luta começa
tanto pelo âmbito religioso quanto por questões raciais e naciona-
listas. Clutterbuck coloca que “a religião católica tornou-se o foco
da resistência irlandesa” em relação à entrada dos ingleses em seu
território.
Em 1916, há uma rebelião católica onde há a tomada de po-
der, sem apoio popular e assim foram dominados, mas o governo
inglês teve uma reação exacerbada e consequentemente os rebeldes
conseguiram encaminhar para uma guerra de independência que
durou de 1919 a 1921.
Uma característica que pode-se ver desde o início dos confli-
tos onde o IRA se insere é a de ter a prioridade de combater o Go-
verno, assim, passando pela leitura de Clutterbuck, observa-se que
mesmo após conseguirem retirar os opositores que governavam a
Irlanda e terem no poder um partido aliado, continuaram a com-
bater o governo, e em 1922, o IRA mata Michael Collins, que criou
e liderou o grupo, por não ter conseguido a independência de seis
condados dos 32 que existiam, iniciando uma guerra civil que mas-
sacrou a população tanto da Irlanda do Norte como da Irlanda do
Sul (ou República da Irlanda).
O IRA procura na década de 60 não participar de conflitos
entre protestantes e católicos, procurando uni-los. Condenados pe-
los tradicionalistas do grupo, estes últimos criam o IRA Provisório,
remetendo à 1916, quando houve a tomada pelos católicos, defen-
dendo os princípios tradicionais do IRA que são “subjugar os protes-
tantes, expulsar os ingleses e reunificar a Irlanda”. (CLUTTERBUCK,
1980, p.71)

568 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
O IRA Provisório começa uma verdadeira luta armada contra
os protestantes e em 1966 a UVF tornou a aparecer com assassinatos
e bombas.

Ambos os movimentos de guerrilha urbana construíram suas


bases em comunidades que apresentavam uma característica
talvez única no mundo: AMBAS as comunidades, protestan-
te e católica, sentiam e agiam como minorias prontas para
entrar em combate. (CLUTTERBUCK, 1980, p. 72)

Na década de 1970, o IRA Provisório começa suas ações de


guerrilha urbana, organizando diversos atentados à bomba, conse-
guindo espalhar medo e desordem, com poucas condenações em re-
lação aos crimes cometidos por eles. Aqui pode-se ver que o objetivo
do grupo tende a ser causar o terror e medo na sociedade e assim
conseguir seu objetivo inicial que é o de libertar a Irlanda do Reino
Unido, mas deslegitima-se por usar de métodos abusivos para alcan-
çar tal objetivo. Portanto vê-se que por mais que o IRA tivesse um
objetivo e um motivo legítimos, a partir do momento em que começa
a destruição pela destruição, deslegitima-se.
Em 1971, o Primeiro-Ministro Brian Faulkner propõe ao Go-
verno Britânico a prisão sem condenação de acusados de participar
do IRA, o que levou a um maior número de ataques, assim o governo
renuncia e o país volta para a subordinação inglesa. Começa uma
onda de mortes por ataques do grupo e contra ele, e de 1971 a 1975 o
IRA Provisório conseguiu ter eficácia em seu terrorismo, tendo sido
os anos mais violentos de ação do grupo.
O Problema central do IRA é a de que não consegue aplicar
sua luta no âmbito político, tendo como consequência um conflito,
que pode ser inicialmente considerado como legítimo, mas desle-
gitima-se a partir do momento em que podendo se lançar ao poder
e ter a possibilidade de mudar o que lutavam contra, mantêm-se
sempre na luta contra o governo e torna assim seu objetivo inicial
inexistente.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
569
3.3 Terceira fase
O terceiro Período foi de 1975 a 1985 com um caráter políti-
co-ideológico, separados em esquerda (socialismo) e direita (capita-
lismo). O terrorismo focado na anti-colonização permanece ativo em
alguns países e adiciona alguns outros.
Neste período, o grupo que tem maior destaque é o Talibã,
grupo fundamentalista islâmico nacionalista, difundido no Paquis-
tão e no Afeganistão, criado nos últimos dez anos da Guerra Fria,
com o objetivo de lutar contra a influência soviética sobre territórios
islâmicos e governou o Afeganistão entre 1996 e 2001, quando, logo
após os atentados de 11 de setembro, os Estados Unidos começam a
ação para que se fosse achado e preso os responsáveis pelos ataque
terroristas de setembro de 2001.
Com o fim da Guerra Fria, a derrota da União Soviética é
vista e interpretada por óticas diferentes conforme suas visões do
acontecimento e do fim da guerra. Reis aponta, separando em três
principais participantes diretos da guerra e da luta em relação à do-
minação soviética, no caso, Estados Unidos, Europa Ocidental e isla-
mitas radicais assim mostrando como cada um responde em relação
à ‘vitória’ sobre a URSS, vê-se assim que

Nos Estados Unidos valorizou-se sobretudo o papel de Rea-


gan no final da Guerra Fria, e a sua política externa assertiva
e algo unilateral, assim como o poderio militar e tecnológico
crescente dos norte-americanos – fez-se uma interpretação
mais realista (REIS, 2011, on line);

Enquanto nos Estados Unidos há tal interpretação de como


teria sido o fim da Guerra Fria, há divergências entre os demais par-
ticipantes e ditos vencedores de tal guerra,

Na Europa Ocidental valorizou-se sobretudo as novas nor-


mas dos direitos humanos, (...) o das novas instituições e
grande liberdade e prosperidade da integração europeia le-

570 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
vando ao grande desejo de entrar na CEE de boa parte da
Europa de Leste – fez-se uma interpretação essencialmente
liberal e institucionalista (REIS, 2011, on line);

Nessa diferenciação entre regiões consideradas vencedoras,


para os islamitas radicais sua vitória foi por este conflito ser consi-
derado a jihad,

Os islamitas radicais ligados a bin Laden consideraram que


tinha sido a sagrada guerrilha, a jihad, e o islão que triun-
faram no Afeganistão e ganho a Guerra Fria. Tinham sido
eles – com a protecção divina – e não o Ocidente, quem
ganhou a Guerra Fria. Tinham sido os mujahaddin árabes
e afegãos que tinham derrotado uma URSS muito podero-
sa militarmente, utilizando a guerrilha, do terrorismo, do
combate assimétrico. Em suma, bin Laden e os seus segui-
dores formularam uma interpretação terrorista do final da
Guerra Fria. (REIS, 2011, on line)

Passado o fim da Guerra Fria, o talibã começa, baseando-se


no Sudão, a apoiar os grupos armados da Somália, que estavam fa-
zendo guerrilha contra a intervenção militar norte-americana. A Al-
-Qaeda monta uma estratégia no entendimento que Estados Unidos,
assim como a União Soviética, é vulnerável a táticas de guerrilha e
terrorismo e bin Laden lista casos sucedidos de guerrilha islâmica
contra grandes Estados, onde URSS, Israel, Estados Unidos e Somá-
lia foram alguns exemplos.
Essa tática de guerrilha e terrorismo é apresentada por bin
Laden como a forma de ataque contra os Estados Unidos, fazendo
com que este fique longe do Oriente Médio e facilitando a queda de
regimes árabes com grande dependência no apoio norte-americano.
“Livre do Ocidente, o islão guiado pela Al-Qaida poderia recuperar
a sua unidade e seria um vasto califado e uma nova superpotência.
Este tem sido o objectivo estratégico máximo declarado da Al-Qaida.
E é claro que falhou neste aspecto”. (REIS, 2011)

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
571
De 1996 a 2001, o talibã assume o poder e desde o início pro-
move ataques contra as autoridades anteriores à tomada de poder,
ocorrendo massacres, atentados contra embaixadas, bombardeios,
coalizões, sanções aplicadas pela ONU, rejeição de plano de paz, ho-
mens-bomba, e atentados e, logo após o 11 de setembro, Estados
Unidos começam a luta contra seus agressores.

3.4 Quarta fase


O quarto período tem início a partir de 1993 com o apareci-
mento do terrorismo suicida, com a reorganização dos terroristas
afegãos, promovendo atentados ao que eles chamam de pecadores:
americanos, Israel e regime árabe.
Os ataques ocorridos em 11 de setembro de 2001 às torres
gêmeas e ao Pentágono, nos Estados Unidos, fazem com que a luta
e a corrida contra grupos denominados terroristas - a partir da de-
finição elaborada pelo próprio EUA - torne-se um dos seus prin-
cipais objetivos. Assim, lança-se a Guerra ao Terror. Essa ideia de
combate ao terrorismo denominada Guerra ao Terror é apresentada
pelos EUA.
A Guerra ao Terror é declarada por George W. Bush, na noite
de 11 de setembro de 2001, com o objetivo de perseguir os terro-
ristas que estivessem ligados aos atentados ocorridos neste mesmo
dia.
Tal método de combate perde sua credibilidade em 2003
quando se é aplicada a mesma fórmula à proposta de ataque e a
efetivação deste em relação ao Iraque, onde o terrorismo não é rele-
vante e que mais tarde é descoberto que documentos que revelavam
armas de destruição em massa e outros motivos, que legitimavam a
invasão deste país, eram falsos.
Vê-se aqui que tanto práticas de grupos considerados terro-
ristas, quanto práticas de grupos em combate aos ditos terroristas
podem ser legítimas e se deslegitimarem por não aplicarem bem

572 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
suas propostas de luta e combate, ou por fugirem dos objetivos que
inicialmente eram considerados legítimos.

4 OUTROS GRUPOS
O entendimento de terrorismo parte da definição de um de-
terminado grupo, Estado ou organização, que vêem a atuação de
um grupo sendo prejudicial a seus interesses, alguns grupos podem
ser considerados terroristas pelo Estado onde atuam, como a ETA,
que tem legitimidade de atuação, pelo menos no início de sua luta,
mas que a Espanha considera como grupo terrorista; grupos que têm
objetivos e ações que para alguns pode ser considerada como ações
terroristas e para o Estado não o são; e outros grupos que começam
com ações legítimas e com o passar do tempo acabam por se desle-
gitimar e ser considerados grupos terroristas, como por exemplo se
associar com luta armada fora de um contexto cabível de luta pela
liberdade nacional e também associação com drogas e armas, que é
o caso das FARCs.
As FARCs, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia,
consideram-se um exército popular, que tinham por objetivo lutar
pelos direitos da população que não viam possibilidades de justiça
social pelo Estado, segundo Monteiro. Colocam-se como opositores
da influência norte-americana no país, considerando uma explora-
ção neocolonialista. O grupo começa a se envolver com o comércio
de drogas no país e assim passa a ser um inimigo deslegitimado do
Estado colombiano.

As FARC, sempre polêmicas, são também parte integrante


deste grupo [grupo onde a organização sai de legítima para
ilegítima], pois de um movimento legítimo, nascido em meio
a um período conturbado da história colombiana, tornaram-
-se párias internacionais ligados ao narcotráfico e perderam
boa parte do apoio e mesmo da legitimidade que chegaram a
gozar há algumas décadas. (GARCIA, 2012, p. 17-18)

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
573
Alguns grupos podem encontrar legitimidade com o apoio de
Estados e atores internacionais. Dois exemplos bem conhecidos são
o Hezbollah, partido libanês e o Hamas, organização palestina de
cunho religioso.
O Hezbollah é considerado terrorista pelos Estados Unidos,
mas pela Europa possui escritórios e afirma ser uma organização po-
lítica e humanitária apenas com a intenção de angariar fundos para
a sustentação do partido no Líbano.
O Hamas considera-se um Movimento de Resistência Islâ-
mica, e tem como objetivo, segundo seu estatuto, seguir os manda-
mentos de Alá, enfatiza o Islã. A idéia de Guerra Santa, Jihad, é um
movimento de luta para o islamismo e contra a invasão sionista.

(...) grupos como os palestinos e libaneses que lutam ainda


pela Libertação Nacional e que encontram certa legitimida-
de entre Estados (notadamente islâmicos) e entre a opinião
pública internacional que vê sua luta com simpatia indisfar-
çável. Hezbollah e Hamas são os exemplos que logo surgem
à mente. (GARCIA, 2012, p. 18, on line)

Aqui faz-se um paralelo entre entre estes últimos grupos com


a Al-Qaeda, onde Hezbollah e Hamas são considerados com freqü-
ência grupos legítimos. Garcia (2012, p.29) diz que Hezbollah e Ha-
mas, “se valem das mesmas táticas israelenses, mas por não serem
representantes de um Estado perdem a “razão” ou a “legitimidade”,
(...) mas ao menos no mundo ocidental é de difícil racionalização as
ações da Al-Qaeda”.
E continua, apontando que

Enquanto os grupos palestinos têm como objetivo o de re-


tomar o que lhes foram roubados, possuem um raio de ação
específico e delimitado, a Al-Qaeda busca um objetivo de
dominação/destruição global e a imposição de seus ataques
e objetivos até áreas sem qualquer relação aparente entre
qualquer fator legitimante. (GARCIA, 2012, p. 29, on line)

574 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Outros grupos que também podem ser considerados são gru-
pos com orientações que desrespeitam os direitos humanos e não
possuem qualquer legitimidade

Existe obviamente uma outra categoria que pode ser citada


que é a formada por grupos de orientações político-ideológi-
cas distintas mas que compartilham entre si ideais suprema-
cistas, racistas, xenofóbicos e mesmo fundamentalistas, que
mesmo que possuam algum apoio - ou mesmo vago apoio,
como grupos cujo objetivo é a imposição de ideais islâmicos
e/ou a formação de Califados - não encontram qualquer le-
gitimidade do ponto de vista da carta das Nações Unidas ou
mesmo na Lei Internacional e andam em franco desacordo
com qualquer noção aceitável de Direitos Humanos. (GAR-
CIA, 2012, p. 18, on line)

Entende-se assim que a classificação dos grupos como terro-


ristas ou não envolve profundas relações de interesse, política, ideo-
logia e momentos onde tais grupos tem legitimidade de atuação e
momentos em que não cabe uma luta armada e sem objetivos.
Há também o terrorismo que não trata de grupos, mas em
que o próprio Estado é terrorista: O terrorismo de Estado. Tratamos
aqui do nazismo em específico por este não entrar nas classificações
de terrorismo de Souza, havendo uma lacuna cronológica nas clas-
sificações as quais remetem à Primeira e Segunda Guerra Mundial;
portanto especificaremos o nazismo como terrorismo também. No
governo de Hitler podemos considerar que seus ideais racistas, xe-
nofóbicos e nacionalistas radicais fazem com que a luta pelo poder
e pela manutenção e expansão do mesmo tenha tornado ilegítima
a forma pela qual o governo nazista tenha escolhido lutar. Juridi-
camente nazismo e terrorismo de Estado não possuem diferenças,
e ideologicamente só possuem se for considerar o partido ideacio-
nário de cada um. As técnicas e justificativas de ataque do nazismo
condizem com o terrorismo de Estado, pois este é percebido quando
um Estado utiliza de força injusta para rechaçar com o próprio povo,

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
575
ou povos e estados diferentes. E é assim que Hitler foi um terrorista
para com Judeus, soviéticos, negros, homossexuais, estrangeiros e
toda uma gama de grupos que não tratassem da raça ariana.

5 SOBRE A SEGURANÇA INTERNACIONAL


A Segurança Internacional preocupa-se com a eliminação
do terrorismo, aplicando uma definição genérica para se haver uma
classificação de uma luta contra o terrorismo.
A definição de terrorismo é apresentada

[...] Para a Delta Universal [enciclopédia], o “Terrorismo é o


uso ou a ameaça de violência, com o objetivo de aterrorizar
um povo e enfraquecer sua resistência” e também exempli-
fica a ação terrorista: “Entre os atos mais comuns de ter-
rorismo estão o assassinato, o bombardeio e o seqüestro”.”
(MAZETTO, on line)

Clutterburk afirma que o entendimento do público em rela-


ção às ações terroristas é essencial para que sejam aptos a coopera-
rem com a polícia, aumentando as prisões e condenações conseguin-
do deter tais grupos.
O sequestro é um dos atos cometidos pelos terroristas, onde
diplomatas e alto executivos são alvos visados. Seu objetivo é a
troca de autoridades sequestradas por interesses do grupo como
prisioneiros ou ações do governo em prol da luta do grupo. Um
famoso exemplo é o do embaixador inglês no Uruguai Sir Geof-
frey Jackson que fora sequestrado pelo grupo Tupamaros, grupo
de guerrilha urbana uruguaio, que eram considerados um grupo
que tirava dos ricos para dar aos pobres, mas perde sua boa ima-
gem perante o público após sequestrar e matar Dan Mitrione, um
conselheiro da polícia norte-americano que foi instruir a polícia
uruguaia da época da ditadura.

576 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
O sequestro aéreo também é citado por Clutterbuck e que
começou a ter progresso na década de 1970, com maior número nos
Estados Unidos. A tentativa de se evitar os sequestros dos aviões,
fez com que se criassem perfis de sequestradores e as revistas eram
feitas a partir destes perfis, mas tal mecanismo, mesmo diminuindo
a ação dos sequestradores, não a extinguiu. Consequentemente, a
decisão de uma revista mais aprofundada e em todos os passageiros
tornou-se dispendiosa e de custo para os aeroportos norte-america-
nos, voltando-se tal valor para as passagens, já que essa ação era em
prol dos próprios passageiros. Tal decisão foi de grande eficiência,
mas Clutterbuck entra na temática de que há um sacrifício da liber-
dade pessoal e que o custo em dinheiro e homens é o preço que se
deve pagar para que os terroristas sejam contidos.
Em busca do fim do terrorismo, são tomadas medidas de se-
gurança internacional que se expressam por meio de tratados, reso-
luções de ordem global são tomadas pela Organização das Nações
Unidas (ONU).
A partir de setembro de 2001, logo após os atentados terro-
ristas aos Estados Unidos, a ONU e seu Conselho de Segurança co-
meça criar resoluções para o fim do terrorismo. Ações com o intuito
de impedir o financiamento do terrorismo; a obtenção de armar por
grupos terroristas; cria-se o Comitê Antiterrorismo; supressão do fi-
nanciamento do terrorismo e seus atentados;
E em 2006, é adotada a Estratégia Antiterrorista Global da
ONU, proposta pelo ex-Secretário Geral da ONU Kofi Annan onde
tem como objetivo

Desencorajar os grupos descontentes a adotarem o terroris-


mo como tática; Denegar aos terroristas os meios que ne-
cessitam para perpetrar atentados; Dissuadir os Estados de
apoiarem os grupos terroristas; Desenvolver a capacidade
dos Estados no domínio da prevenção do terrorismo; Defen-
der os direitos humanos e o primado do Direito. (ANNAN
apud RAPOSO, 2007)

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
577
As medidas tomadas pela ONU devem ser acordadas com
medidas tomadas por cada Estado em particular para que o terroris-
mo local e mundial consiga ser erradicado.

Assim sendo, a fim de preservar vidas inocentes, todos os


Estados devem evitar ações que aumentem o sentimento de
injustiça no mundo e que fomentem o ódio entre os povos,
pois este é o principal “combustível” do terrorismo. O ódio
deve ser combatido preventivamente pelos governos envolvi-
dos, de forma integrada coordenada, com atuação extensiva
da Inteligência, da diplomacia e de órgãos fiscais, evitando
animosidades e difundindo uma cultura de tolerância, pois,
uma vez deflagrado o terror, extirpá-lo é trabalho difícil e
demorado. (RAPOSO, 2007, p. 53, on line)

Vê-se assim, que a atuação do Estado é primordial na cons-


trução da paz mundial e da Segurança Internacional, o trabalho de
cada Estado para o combate do terrorismo nacional e apoiando as
medidas tomadas pela Organização das Nações Unidas torna-se es-
sencial para a melhoria das relações entre países, nações, regiões e
culturas diferentes.
A estratégia antiterrorista da União Européia divide-se em
quatro momentos: prevenir, proteger, perseguir e responder. A pri-
meira, prevenir, baseia-se na estratégia de impedir o recrutamento
dos grupos terroristas; impedir os grupos terroristas de fazerem pro-
paganda ou possuírem influencia nos meios de comunicação. A luta
contra o terrorismo é global, a UE afirma que é preciso a colaboração
de informações internacionalmente, e que cabe aos governos está-
veis promoverem os direitos humanos e métodos de bom governo
aos governos instáveis. Proteger trata de defender os possíveis alvos
prioritários (como monumentos, aeroportos...), é a proteção física fo-
cada em infraestrutura, força de indivíduos combatentes, estratégias
e tecnologia. Perseguir aborda desmantelar a economia dos terroris-
tas, impedir tanto de disseminarem suas ideias para o recrutamento
quanto de ocuparem espaço físico aonde quer que suas fronteiras

578 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
alcancem. Os grupos terroristas precisam de financiamento para se
armar, acabar com este financiamento suspende a possibilidade de
terroristas empunharem armas ou dispositivos de alta tecnologia.
Quanto a perseguição há também a legislação, pois deve-se ater as
leis de mandatos e direitos humanos quanto a interrogatórios. Os
aspectos anteriores tratam da tentativa de impedir ataques terroris-
tas, o quarto momento é a resposta; trata de estabelecer um siste-
ma de resposta rápida caso ocorra o atentado, tanto de atendimento
médico quanto de proteção aos civis ou mesmo troca de informações
em fronteiras.
O antiterrorismo da UE possui uma abrangência de estraté-
gias bem elaboradas para tanto prevenir quanto erradicar atentados
terroristas. A ONU aborda questões legislativas de modo em que não
haja brechas, não possibilitando a impunidade de grupos terroristas.
Em ambos os casos há excelência, mas ainda assim não aborda o
problema - terrorismo - de frente.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS E UMA


NOVA PERSPECTIVA DE SEGURANÇA
INTERNACIONAL
Com o objetivo de progredir a capacidade de combater o ter-
rorismo em âmbito global, deve-se fazer uma analise com base nas
especificidades dos grupos podem vir a ser considerados terroris-
tas, mas que devem ser compreendidos particularmente no contex-
to inserido.
A partir da perspectiva histórica feita anteriormente, pode-
mos afirmar que o entendimento mais extenso em relação aos gru-
pos, vulgarmente denominados terroristas, é de extrema importân-
cia para que o combate ao terrorismo seja efetivado.

O terrorismo ganhou uma dimensão inédita neste início de


século, antes restrito a regiões ou países com cismas sociais,
econômicos, culturais, éticos ou religiosos. Agora, o tema é

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
579
colocado como pauta obrigatória na agenda da relações in-
ternacionais. Porém, o ato terrorista, muitas vezes tem sido
confundido, de modo incauto ou premeditado, com ações de
luta armada, movidas por ideais legítimos e como reação ou
resistência à repressão do agressor. (MAZETTO, on line)

A análise que deve ser feita para que haja um combate efetivo
ao terrorismo tem de contar com um aprofundamento na compreen-
são dos atos relacionados ao grupo que quer se combater. Entenden-
do quais os motivos iniciais de criação de um grupo e seus objetivos
de luta, pode-se compreender o que leva o grupo a ter ações violentas
e o uso de armas, que pode ser legitimado se houver motivações váli-
das em relação ao alvo de ataque do grupo, como a ETA, que cria-se
em prol da libertação nacional do país basco e pela redemocratização
do Estado espanhol. Assim, tendo este entendimento específico de
cada grupo, a luta ao terrorismo facilita-se por criar não uma tática
universal de combate, mas sim compreendendo melhor o grupo que
se quer erradicar, torna sua supressão mais efetiva.
O terrorismo como questão política dificulta sua erradicação,
já que o terrorismo de Estado - aquele em que o Estado é o terrorista
- atinge um patamar mais extremo; quais as medidas para definir
que o Estado em questão deve ser desmantelado?

Então, o chamado “terrorismo de Estado”, tem raízes his-


tóricas e está presente até os dias atuais, embora nenhum
poder estabelecido reconheça oficialmente a utilização des-
ses métodos como um recurso estratégico. Sem dúvida é um
tema polêmico, pois é mais fácil atribuir ou reconhecer o ato
terrorista em um indivíduo ou numa organização clandesti-
na. (MAZETTO, on line)

A conceituação universal de terrorismo faz com que caracte-


rísticas imprescindíveis dos grupos não atinjam o conhecimento da
Segurança Internacional.

580 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Medidas contra o terrorismo podem não ser efetivas por não
lidarem de fato com uma situação específica para que se possa tratar
assim do problema em si, considerando um grupo como terrorista,
essa definição torna-se genérica e não abrange as problemáticas re-
ferentes à luta pela qual o grupo supostamente teria. Entende-se por
terrorismo, neste artigo, um conceito que está a mercê dos interesses
da nação dominante (seja econômica ou belicamente).
Com o intuito de classificação o artigo trata de definições,
descrições de grupos para melhor entendimento sobre o assunto e
aborda um breve histórico passando por exemplos de grupos consi-
derados terroristas, mas que analisando suas condições de atuação,
podemos entender que o conceito de terrorismo parte de determina-
dos atores situados em relação ao grupo. A legitimidade e a ilegitimi-
dade destes grupos é flexível, tendo como critério de mudança seus
objetivos, seu período, e os acontecimentos que são os propulsores
da criação de tais grupos.
Conclui-se que resoluções para combate ao terrorismo inter-
nacional não são uma tomada de decisões de Estados com maior
influência econômica e política. O exemplo dos atentados de 11 de
setembro, que mudaram a forma e o combate do terrorismo, pode-
-se perceber que a efetividade de atuação de um Estado hegemônico
como os Estados Unidos não é afirmada por ataques e invasões, não
ocorrendo assim diminuição da ação terrorista no mundo.
Por isso, a atuação dos Estados para que o terrorismo seja com-
batido, deve-se ter o entendimento de que a conceituação de terroris-
mo precisa de um aprofundamento de análise do grupo em questão
para que se realmente possa encaixá-lo na definição e assim tomar
medidas em seu território e nos demais territórios em prol da paz.

7 REFERÊNCIAS
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CLUTTERBUCK, Richard. Guerrilheiros e Terroristas. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exercito, 1980.

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Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
583
ARMAMENTOS NUCLEARES:
CONSIDERAÇÕES SOBRE SEGURANÇA
INTERNACIONAL E CONTRIBUIÇÕES
LATINO-AMERICANAS
Rafael Augusto Masson Rocha
Acadêmico do segundo semestre de Relações Internacionais da Universidade Fe-
deral do Pampa (UNIPAMPA), bolsista do Grupo de Práticas em Direitos Humanos
e Direito Internacional, também da Universidade Federal do Pampa (UNIPAM-
PA). (rafaelmasson@alunos.unipampa.edu.br)

Cristian Ricardo Wittmann


Professor assistente da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) e coorde-
nador do projeto Grupo de Práticas em Direitos Humanos e Direito Internacional,
também da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA).
(cristianwittmann@unipampa.deu.br)

584 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Resumo:
O presente trabalho foca-se no debate sobre a contribuição latino americana para a ques-
tão de segurança nuclear, tanto em âmbito regional quanto internacional. Antes de discorrer
sobre as contribuições da América-Latina a questão de segurança internacional nuclear, é
importante introduzir o debate sobre estes armamentos. A tecnologia nuclear utilizada com
fins bélicos teve seu início aos 6 de agosto de 1945 na cidade de Hiroshima, onde ocorreu pela
primeira vez na história uma explosão nuclear em um conflito. A partir de então, dá-se início
a era nuclear, num âmbito mundial. Abordados inicialmente estes aspectos, passa-se para o
olhar das medidas jurídicas do Sistema Internacional voltadas ao debate de segurança inter-
nacional nuclear, como o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), para depois
discorrer-se sobre as outras iniciativas cabíveis para obter esta segurança, as mobilizações da
comunidade civil e dos Estados num âmbito extra-Nações Unidas. Para, por fim, apanhar as
contribuições latino-Americanas na questão de segurança regional, finalizando com a proble-
matização da necessidade de se pensar em alternativas complementares e diferenciadas ao
debate de não proliferação.
Palavras-chave: Armas Nucleares - Segurança Internacional - América Latina - Direito
Internacional Humanitário.

Sumário:
1. Introdução. 2. Âmbito das Nações Unidas. 3. Âmbito externo às Nações Unidas - sociedade
civil. 4. América Latina e Caribe. 5. Para além da não-proliferação. 6. Considerações finais. 7.
Referências.

1 INTRODUÇÃO
A partir do bombardeio ao Japão é possibilitado a compreensão dos
impactos catastróficos dos armamentos nucleares a segurança, seja a
níveis internacionais, seja a níveis humanitários individuais. Atual-
mente os armamentos nucleares constituem a arma mais destrutiva
e prejudicial já produzida pela humanidade, como aponta a orga-
nização dos Parlamentares Pela Prevenção de uma Guerra Nuclear
(IPPNW)429. Não é ínfimo o debate acerca de seus impactos negati-

429
IPPNW. Abolition 2000, Handbook for a World without Nuclear Weapons. 1995.
Dentre os países que assinaram conjuntamente com a África do Sul, destacam-se os
países latino-americanos: Argentina, Brasil, Chile, Colombia, Costa Rica, Equador, El Sal-
vador, Guatemala, Honduras, México, Nicaragua, Panama, Paraguai, Peru, Uruguai.
SOUTH AFRICA. Joint Statement on the humanitarian impact of nuclear weapons.
Genebra, 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
585
vos, portanto é notável que em caso de uma detonação de uma arma
nuclear numa cidade moderna, haveria possivelmente milhares de
vítimas, tanto direta quanto indiretamente prejudicadas. Como uma
breve explanação, os efeitos nocivos de uma detonação nuclear não
se retêm tão somente aos prejuízos imediatos de uma explosão, mas
também a aspectos como de contaminação do território por radia-
ção, afetando a economia, o desenvolvimento entre diversos outros
fatores de grande monta que continuarão a ser impactados por um
período temporal muito maior do que alguns anos, a exemplo da de-
claração apresentada pelo embaixador Abdul Samad Minty da Áfri-
ca do Sul em conjunto com outros 78 Estados-parte do TNP430, na
Segunda Sessão do Comitê Preparatório à Conferência de Revisão do
Tratado de Não-Proliferação (2013 NPT PrepCom):

Beyond the immediate death and destruction caused by a detonation,


socio-economic development will be impeded, the environment will
be destroyed, and future generations will be robbed of their health,
food, water and other vital resources. SOUTH AFRICA, 2013.431

Como bem coloca a organização International Campaign to


Abolish Nuclear Weapons (ICAN): “The humanitarian consequences of
any nuclear weapon use would be catastrophic and would spread far beyond
boarders and remain for generations to come.”432.

ICAN. Advocacy Guide - Second preparatory committee of the nuclear non-proliferation


treaty 22 April-3 may 2013. p. 6.
430
SOUTH AFRICA. Joint Statement on the humanitarian impact of nuclear weapons. Ge-
nebra, 2013.
Segundo dados da Federation American Society, os arsenais atuais estimados dos paí-
ses são: China com 240 ogiva; Coréia do Norte com menos de 10; Estados Unidos da
América com cerca de 7.700; França com aproximadamente 300; Índia entre 80 a 100;
Israel cerca de 80; Paquistão também entre 80 e 100; Reino Unido com 225; e Rússia
com cerca de 8.500 armas nucleares.
431
Segundo dados da Federation American Society.
ONU. Tratado sobre la No Proliferación de las Armas Nucleares. Londres, Moscou e
Washington, 1968.
432
IAEA. Information Circular. 1970.
ONU. Tratado sobre la No Proliferación de las Armas Nucleares. Londres, Moscou e
Washington, 1968.

586 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Não obstante, a questão de segurança nuclear hoje é liderada
pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (ICRC) a qual é tida
como uma das organizações responsáveis pela segurança interna-
cional nas questões nucleares. Entretanto, em um pronunciamento
feito em 2009, ela afirma a incapacidade de cumprir com essa res-
ponsabilidade internacional, ressaltando que não há mobilização no
mundo que seja capaz de assistir as necessidades requeridas em caso
de detonação nuclear.
Vista essa incapacidade de se lidar com os efeitos posteriores
a uma explosão, é extremamente imprescindível que se trabalhe e
que se volte os esforços internacionais para as medidas capazes de
atenuar as possíveis catástrofes no escopo humanitário internacio-
nal. Atualmente, as soluções cabíveis nos debates acabam por cen-
tralizar-se no aspecto de prevenção, como apresentado no dia 24 de
abril de 2013, pela delegação Sul-Africana no 2013 NPT PrepCom: “
The only way to guarantee that nuclear weapons will never be used
again is through their total elimination.”433
Neste ponto ressaltam-se as medidas já tomadas por alguns
atores das relações internacionais. Pode-se, então, abordar as pre-
cauções internacionais de dois aspectos, no âmbito Estatal das Na-
ções Unidas e fora deste.

2 ÂMBITO DAS NAÇÕES UNIDAS


A mobilização Estatal dentro do escopo da Organização das
Nações Unidas (ONU) é uma tática diplomática muito comum nos
debates sobre cooperação estatal. Certamente o debate sobre segu-
rança internacional, versando sobre desarmamento nuclear não se
mostra diferente.
433
SOUTH AFRICA. Joint Statement on the humanitarian impact of nuclear weapons. Ge-
nebra, 2013.
Declaración Conjunta sobre Desnuclearización de la América Latina, 1963.
Idem, 1963.
ILPI. An Introduction to the Issue of Nuclear Weapons in Latin America and the Carib-
bean, 2012.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
587
Como já apontado, a era nuclear começa com a detonação
das bombas americanas no território japonês, no final da Segun-
da Guerra Mundial. Foi somente a partir deste marco histórico que
o homem pode compreender os impactos humanitários e as reais
dimensões das questões envolvendo armamentos nucleares. Com o
fim da Segunda Guerra, o Sistema Internacional começa a se re-
modelar nos parâmetros da bipolaridade da Guerra Fria. Este novo
período histórico é marcado pela disputa indireta de regiões de do-
mínio da influência entre as duas superpotências: Estados Unidos
da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Neste
embate, a tecnologia bélica nuclear ganha um novo destaque. Tendo
em vista o poderio destrutivo concentrado nesta categoria de arma-
mento, é natural que houvesse um maior enfoque sobre a segurança
presente nesta nova tecnologia. Dá-se início então à era da corrida
armamentista, especialmente em quesito de armas nucleares. Não
é por menos que, atualmente, dentre os nove Estados detentores
de armamentos nucleares (China, Coreia do Norte, Estados Unidos,
França, Índia, Israel, Paquistão, Reino Unido e Rússia)434 os dois
maiores arsenais encontram-se sob o domínio dos Estados Unidos
da América e da República Federativa Russa. Supõe-se que durante
o período da Guerra Fria, as duas superpotências tenham desenvol-
vido tecnologia capaz de produzir milhares de bombas anualmen-
te, com um poder destrutivo superior às daquelas detonadas nas
ilhas nipônicas. Embora não se tenha um número exato, estima-se
que cerca de 70.000 ogivas nucleares estivessem nas mãos das duas
grandes potências durante a Guerra Fria, número reduzido compa-
rado com as cercas de 18.000 ogivas atuais435.
Dentro dessa nova perspectiva de segurança e de uma outra
realidade do Sistema Internacional, as cooperações multilaterais no
escopo ONU decorreram de maneira gradual. Inicialmente priorisa-

434
Carasales Julio C. The So Called Proliferation that Wasn’t the Story of Argentina’s
Nuclear policy, 2000.
435
ILPI. An Introduction to the Issue of Nuclear Weapons in Latin America and the Carib-
bean, 2012.

588 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
va-se questões como a não proliferação da tecnologia nuclear e a uti-
lização desta apenas para usos pacíficos, enfim, novas percepções do
assunto foram possíveis, a medida que o debate fora aumentando.
Foi após cerca de treze anos do início da era nuclear, que as Nações
Unidas mobilizaram-se juntamente com os Estados, com o objetivo
de estabelecer um tratado cujas finalidades principais – dentre as
quais destacam-se a não proliferação das tecnologias nucleares, a
não transferência de armamentos nucleares, bem como a assistên-
cia para o desenvolvimento destas tecnologias, dentre outros pontos
relevantes a concretização de sistemas de segurança internacional
– fossem atendidas.
É criado então, no dia primeiro de julho de 1968, o Tratado de
Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que surge como uma
alternativa para conter o grande avanço da tecnologia nuclear no
mundo, e que começa a vigorar a partir de cinco de março de 1970,
como exemplifica o Artigo IX do Tratado: “[…] Este Tratado entrará
en vigor después de su ratificación por los Estados cuyos Gobiernos
se designan como depositarios del Tratado y por otros cuarenta Es-
tados signatorios del Tratado, […]”436.

By letters addressed to the Director General on 5, 6 and 20 March


1970 respectively, the Governments of the United Kingdom of Great
Britain and Northern Ireland, the United States of America and the
Union of Soviet Socialist Republics, which are designated as the De-
positary Governments in Article IX. 2 of the Treaty on the Non-Pro-
liferation of Nuclear Weapons, informed the Agency that the Treaty
had entered into force on 5 March 1970. IAEA 1970.437

Outro ponto que o Tratado versa é sobre a distinção entre


dois grupos de Estados, aqueles que possuem armamentos nuclea-
res, e aqueles que não possuem armas nucleares, os países não-
436
ILPI. An Introduction to the Issue of Nuclear Weapons in Latin America and the Carib-
bean, 2012.
437
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, DF: Senado
Federal, 1988.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
589
-nuclearmente armados, neste ponto é possível verificar que, para
além da distinção nominal, a dicotomia nuclearmente armados ou
não, traz consigo a ideia de diferentes posturas, garantias e deveres
a serem tomadas no escopo do TNP. Àqueles nuclearmente arma-
dos fica proibida a transferência de armas nucleares, assim como
a assistência para o desenvolvimento de tais tecnologias; já para os
não-nuclearmente armados, é vetado a aquisição dos armamentos,
como também a manufatura destes. Claramente fica expresso no
TNP as intenções que os Estados nuclearmente armados possuíam
em relação aos não-nuclearmente armados em aspectos como o de
concentrar para si a posse, capacidade de aquisição, transferência e
até mesmo o conhecimento de tecnologias capazes de produzir tais
armamentos. Ao analisarmos tais posturas, fica evidente o caráter
de preservação do status quo, uma vez que a posse de armamen-
tos nucleares fica restrita aos países que o tratado caracteriza como
nuclearmente armados.Não obstante, o Tratado de Não-proliferação
versa em seu artigo VI um dos pontos que servem para o embasa-
mento jurídico de medidas mobilizadoras de banimento:

Cada Parte en el Tratado se compromete a celebrar negociaciones de


buena fe sobre medidas eficaces relativas a la cesación de la carrera
de armamentos nucleares en fecha cercana y al desarme nuclear, y
sobre un tratado de desarme general y completo bajo estricto y eficaz
control internacional.438

O Artigo VI do Tratado aborda questões como o da necessida-


de latente de que os Estados-parte visem, a partir de uma perspecti-
va geral, o desarmamento completo destes armamentos e de que isto
seja cumprido haja visto o estreito e efetivo controle internacional.
Embora seja abordado pontos sobre o desarmamento, os desdobra-
mentos do TNP não progride. A ilegalidade dos armamentos mos-
tra-se fundamental para que possa-se trabalhar com o desarme. É
notando tais impedimentos dentro do escopo da Organização das
438
China, Estados Unidos da América, França, Reino Unido e Rússia, de acordo com o TNP.

590 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Nações Unidas que começa-se a pensar em procedimentos exteriores
a tal escopo, inter alia a Conferencia Diplomática sediada pelo Go-
verno da Noruega em março deste ano, cujo enfoque principal fora o
debate sobre os catastróficos impactos humanitários dos armamen-
tos nucleares, e por conseguinte, o comunicado da delegação mexi-
cana de que irá sediar a próxima conferencia. Visto isso, aponta-se
para um outro espaço que pode ser utilizado tanto pela comunidade
Estatal quanto pela sociedade civil, a fim de prosseguir de maneira
diferenciada o debate e as ações para o desarmamento.

3 ÂMBITO EXTERNO ÀS NAÇÕES UNIDAS -


SOCIEDADE CIVIL
Sabe-se do real potencial catastrófico do uso indevido dos
armamentos nucleares e da impossibilidade de uma resposta hu-
manitária eficiente e capaz de aliviar o sofrimento das vítimas. É
notando essa fragilidade que muito além das precauções lideradas
pela sociedade internacional, principalmente das mobilizações dos
Estados, é necessária a participação da comunidade civil, como mais
um instrumento importante para a obtenção de um cenário interna-
cional mais seguro e nuclearmente desarmado. Como aponta a dele-
gação da África do Sul em sua declaração conjunta: “This is an issue
that affects not only governments, but each and every citizen of our
interconnected world. […] civil society has a crucial role to play,
side-by-side with governments, as we fulfil our responsibilities.”439
É neste contexto que surgem organizações não governamentais
que partem deste enfoque construtivista das relações internacionais,
apontando os anseios da comunidade civil junto aos debates Estatais.

439
Transcrição do Discurso da presidenta Dilma na reunião de Alto Nível sobre Segurança
Nuclear, de 22 de setembro de 2011.
Idem.
Idem.
Reaching Critical Will. The NPT Action Plan Monitoring Report, 2013.
Transcrição do Discurso da presidenta Dilma na reunião de Alto Nível sobre Segurança
Nuclear, de 22 de setembro de 2011.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
591
Como um exemplo desta movimentação, existe a Campanha
Internacional para Abolir as Armas Nucleares (ICAN), lançada em
30 de abril de 2007 em Viena, na Austria, com o objetivo principal
de mobilizar-se internacionalmente para conseguir alavancar
imediatamente as negociações a respeito do desarmamento nuclear, a
fim de elaborar uma convenção internacional sobre o desarmamento
nuclear.
Desde 2007, a ICAN tem trabalhado conjuntamente com ou-
tras organizações como a Reaching Critical Will para mobilizar a so-
ciedade civil no combate a estes armamentos. Sua última mobiliza-
ção social aconteceu em março deste ano (2013) na cidade de Oslo,
Noruega, intitulada ICAN’s Civil Society Forum (Fórum da Socieda-
de Civil da ICAN) a qual foi seguida pela Conferência Diplomática
organizada pelo Governo da Noruega. A campanha trabalha dentro
do debate sobre a ilegalidade das armas nucleares, seus impactos
humanitários e como que os Estados, por uma ótica extra-ONU, irão
se mobilizar a fim de conseguir assegurar a Segurança Internacional
Nuclear, ou seja, o desarmamento. Nesta última conferência diplo-
mática, infelizmente ocorreu o boicote dos P5 (países nuclearmente
armados membros do TNP: China, Estados Unidos, França, Reino
Unido e Rússia), no qual estes últimos países não comparecem a
Conferência do Governo da Noruega. Apesar da não participação à
Conferência pelos P5, alguns outros Estados tomaram esta ausência
como um sinal positivo, evidenciando que as mobilizações rumo ao
desarmamento estão progredindo. Será que tão somente a recusa de
participação constitui numa resposta ao sucesso dos países não-nu-
clearmente armados? Cabe a pergunta. Não obstante, os resultados
imediatos desta conferência foram sentidos ao passo que a delega-
ção do México evidenciou o interesse do país em sediar a próxima
Conferência, ainda sem data anunciada para ocorrer.
A participação de países Latino-Americanos como o México
no contexto de movimentação extra-Nações Unidas é de extrema re-
levância uma vez que representa a iniciativa de países não-nuclear-

592 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
mente armados em relação aos impactos destes armamentos. A pos-
tura da República Mexicana demostra a tradição histórica de grande
importância e de liderança da América Latina e o Caribe, pois esta
região constitui a primeira do mundo a tornar-se uma Zona Livre de
Armamentos Nucleares.

4 AMÉRICA LATINA E CARIBE


Como já mencionado, as contribuições dos países latino-a-
mericanos na última Conferência Diplomática que aconteceu em
Oslo, na figura do governo do México, representa a tradição latino-
-americana, no que tange o desarmamento nuclear.
É de grande relevância que se faça uma breve apresentação
do histórico de contribuições latino-americanas, e, neste contexto
naturalmente discorrer-se-á a respeito do Tratado de Tlatelolco. Este
tratado representa a criação da primeira zona livre de armas nu-
cleares na história, numa região habitável. A iniciativa de se pensar
em um acordo internacional visando a segurança nuclear na Amé-
rica Latina surge no início dos anos 1960, contexto no qual a Bolí-
via, o Brasil, o Chile, o Equador e o México mobilizavam-se para tal
criação. A articulação inicial destes cinco países latino-americanos
ocorreu quando os presidentes dos Estados mencionados publica-
ram uma declaração conjunta sobre a desnuclearização da América
Latina, em abril de 1963.

Considerando que por su invariable tradición pacifista los


Estados latinoamericanos deben aunar sus esfuerzo a fin de
convertir a la América Latina en una zona desnuclearizada,
con lo cual contribuirán a disminuir asimismo los peligros
que amenazan a la paz del mundo,
Deseosos de preservar a sus países de las trágicas consecuen-
cias que acarrearía una guerra nuclear.

Este documento serve para apontar os antecedentes da assi-


natura do Tratado de Tlatelolco, ao observar-se que a partir da de-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
593
claração e um acordo regional, os países latino-americanos visavam
promover as negociações e os acordos internacionais, como bem evi-
denciado no pronunciamento: “Alentados por la esperanza de que
la conclusión de un acuerdo regional latinoamericano pueda contri-
buir a la adopción de un instrumento de carácter contractual en el
ámbito mundial”
Inicialmente, os governos mostravam-se favoráveis e bas-
tante mobilizados a realizar um acordo nestas condições, entretan-
to, com o golpe militar brasileiro no ano de 1964, o País, que antes
desenvolvia políticas voltada para esses interesses de desarmamen-
to, passa a demonstrar uma postura completamente nova e oposta
àqueles pensamentos. É notável esta alteração da política externa
brasileira uma vez que, a partir da década de 1970, a República Fe-
derativa do Brasil dá início a um Programa Autônomo de Tecnologia
Nuclear (PATN), cujo objetivo principal era o de alcançar o enrique-
cimento de urânio em materiais físseis.
Vale ressaltar que a Argentina e o Brasil constituíam os prin-
cipais Estados com tecnologia nuclear na América Latina. Tal fato
coloca-os em posição de liderança no escopo latino-americano. Em-
bora ambos apresentavam políticas externas com tradições pacíficas,
ambas eram detentoras de Agências Nacionais voltadas a produção
de tecnologia nuclear.
Um fato interessante de se destacar são as condições con-
textuais, as quais propiciaram a aderência e ratificação do Tratado
de Tlatlelolco tanto pela Argentina, quanto pelo Brasil. Nota-se que
este processo ocorreu em momentos paralelos em ambos os Esta-
dos, a partir dai pode-se dar mais credibilidade ao pensamento que
existia na década de 1970 a respeito das políticas nucleares. Evi-
denciava-se o sentimento de desconfiança existente entre as duas
nações, quase que similar a Guerra Fria, a Argentina e o Brasil
mantinham as suas políticas e programas nucleares com base na
competição entre elas existente. Esta “corrida armamentista” ou
tecnológica nuclear pautava-se no ideólogo de necessidade de estar

594 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
provido dos instrumentos de defesa nacional necessários, bombas/
tecnologias nucleares, para conter um possível ataque ou avanço
tecnológico argentino ou brasileiro. Como explica Carassales: “Ar-
gentina’s policy probably was intended to keep the option available in case
Brazil did developed a nuclear weapon, but that still falls short of having
a dedicated nuclear weapons program.” Sendo assim, é compreensí-
vel de se ter um olhar similar a “corrida armamentista” da Guerra
Fria, entre a Argentina e o Brasil, sem de fato existir o próprio ar-
mamento. Não obstante, sobre as declarações a respeito da política
argentina é interessante que se aponte também a brasileira, prin-
cipalmente em relação aos objetivos do PATN, que visava alcançar
o “latent technological deterrence” (detenção latente da tecnologia) ou
seja “that means to belief that developing the ability to make a bomb would
be sufficient to deter another, for example Argentina from doing so.” Partin-
do destes pontos é perceptível que existiam tensões entre as duas
nações, no sentido de assegurar a liderança tecnológica-nuclear
dentro da América Latina, pensava-se numa disputa de influência
sob o território do continente como maneira de projeção de poder,
e para tal o domínio de tecnologia sensivelmente representava um
grande instrumento. Uma análise que se pode trazer ao problema é
o fato de que ambos teciam criticas às posturas imperialistas norte
americanas, no caso de tecnologia nuclear, sob a América Latina, a
problemática é que ao passo que a América Latina, no nome da Ar-
gentina e Brasil, tentava produzir avanços tecnológicos na questão
nuclear que visavam a independência latino-americana, ambas ati-
nham-se numa disputa direta pelo controle, aos moldes imperia-
listas estadunidense, da região da América Latina. A contradição
da ação se dá justamente no ponto de que, para evitar uma domi-
nação americana maior, restava à Argentina ou ao Brasil, tomar o
papel de predominante tecno-nuclear sob o continente. Consoante
a situação de dependência nas relações internacionais, os países
possuíam posturas de, apesar da desconfiança inicial, cooperação
internacional para abolir as armas nucleares, proibindo sua proli-
feração e outras pautas.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
595
Após os processos de redemocratização que passaram a Ar-
gentina e o Brasil, o cenário de integração e cooperação latino-a-
mericano nos escopos nucleares sofre alterações. Um dos grandes
exemplos é a da mudança da postura sobre armamentos e tecnolo-
gias nucleares que sucederam a promulgação da Constituição Brasi-
leira de 1988.

Capítulo II - Da União
Art. 20. São bens da União:
[…]
XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qual-
quer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa,
a lavra, o enriquecimento de urânio e reprocessamento, a
industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus
derivados, atendidos os seguintes princípios:
toda atividade nuclear em território nacional somente será
adminitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Con-
gresso Nacional;
A sob regime de concessão ou permissão, é autorizada a uti-
lização de radioisótopos para a pesquisa e usos medicinais,
agrícolas, industriais e atividades análogas;
S a responsabilidade civil por danos nucleares indecente da
existência de culpa;

É evidente que a Constituição Brasileira de 88 representa


um passo adiante na questão de segurança nuclear, uma vez que
exclui a possibilidade da utilização de tecnologia nuclear para além
dos fins pacíficos. Passado o período de averiguação das situações
nucleares nos vizinhos latino-americanos, ambos iniciavam um
processo de ratificação de Tratados como o de Não-Proliferação
Nuclear (TNP) e o Tratado da Zona Livre de Armas Nucleares na
América Latina (Tratado de Tlatelolco), entravam os dois países
num período de negociação e cooperação mutua. É instigante o
fato dos brasileiros e argentinos iniciarem esta nova etapa do deba-
te da segurança internacional de maneira temporalmente parale-

596 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
la. Esta correspondência temporal entre os dois vizinhos evidencia
que existia tenções entre ambos, e que, passado a desconfiança,
não lhes faltavam razões para ratificar os tratados, além do mais,
tratava-se de um acordo já assinado e que já estava em vigor em
alguns países da região.
Como já mencionado, é de extrema importância o início da
década de 1990 para os dois países, já que mudou-se o cenário de
desconfiança entre eles para dar-se início ao processo de coopera-
ção regional. O marco que consagra a cooperação e a mobilização
de ambos Estados em prol da segurança regional dá-se com o esta-
belecimento da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e de
Controle de Materiais Nucleares (ABACC) no ano de 1990.
Avançando com o ideal de cooperação Argentina e Brasil as-
sinam o Tratado de Tlatelolco no ano de 1998, conjuntamente com o
Tratado de Não Proliferação.

5 PARA ALÉM DA NÃO PROLIFERAÇÃO


A temática de não proliferação esteve presente nos discur-
sos sobre armamentos e tecnologias nucleares logo após o início da
era nuclear. Notavelmente que tratava-se de um contexto histórico
marcado especialmente pela bipolaridade do cenário internacional,
no qual a retenção e concentração desses armamentos mostrava-se
como um instrumento de poder por demais expressivo e vicioso. A
corrida armamentista foi o exemplo máximo de que os arsenais nu-
cleares portavam-se muito mais como estantes de projeção de poder
do que realmente como um estoque de armas que possivelmente
seriam usadas.
Não distante da ótica de concentração de poder nas super-
potências da Guerra Fria, o Tratado de Não Proliferação surge, mais
uma vez, como um documento capaz de assegurar ainda mais que
as potências mantivessem seus status enquanto os países aliados
permanecessem em órbita daquelas.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
597
Se pensarmos em uma justificativa de utilização dos arsenais
nucleares exorbitantes como um meio de promover a paz e a segu-
rança nacional e internacional, pensaremos então num Sistema In-
ternacional onde as Nações Unidas são lideradas pelos detentores da
chave de segurança internacional, uma vez que o Conselho de Segu-
rança coincide com os cinco países nuclearmente armados, segundo
o conceito do TNP. Mais além, o Tratado de Não Proliferação aumenta
a dependência dos países não nuclearmente-armados, uma vez que
estes não seriam capazes de manter sua segurança nacional, ou re-
gional, já que não são detentores dos instrumentos necessários para
a manutenção da segurança e da paz. Como bem coloca a Presidente
da República, Dilma Rousseff, em seu pronunciamento de abertura
da 66º Assembléia Geral das Nações Unidas, no ano de 2011: “A pos-
se desses arsenais por apenas algumas nações, cria para elas direitos
exclusivos. É resquício de concepção assimétrica do mundo, forma-
da no pós guerra, que já deveríamos deixar renegado ao passado.”
É curioso se pensar em segurança nacional obtida especial-
mente por meio da maior arma de destruição em massa já criada
pelo homem. O questionamento principal é se existia o debate so-
bre a segurança nacional, ou melhor, sobre a insegurança nacional
presente tão somente na posse destes armamentos. Naturalmente
versar sobre o risco de se possuir os armamentos não era superior a
justificativa de se reproduzir o arsenal nuclear para fins de seguran-
ça e de projeção de poder. O pensamento durante a década de 1960,
quando assinado o TNP, concertava-se em outro ponto, é notável isto
a partir da voga da corrente teórica realista das relações internacio-
nais.
Não obstante, cabe aqui levantar o questionamento sobre ou-
tras soluções para além da não proliferação. Certamente o pronun-
ciamento de organizações internacionais como o Comitê Interna-
cional da Cruz Vermelha, sobre a impossibilidade de se assegurar a
assistência necessária as vítimas em caso de uma detonação nuclear,
evidencia a necessidade de se repensar. Seria então o desarmamento

598 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
uma solução cabível e necessária para a segurança internacional?
Pronunciamentos como o da Presidenta Dilma Rousseff, realizado
na reunião de Alto Nível sobre Segurança Nuclear, em Nova Iorque
no dia 22 de setembro de 2011, apontam para esta medida como
sendo a real solução frente a insegurança nuclear.

É imperativo ter no horizonte previsível a eliminação com-


pleta e irreversível das armas nucleares, a ONU deve preocu-
par-se com isso.
[…]
Estudos apontam a deterioração do estado de conservação e
manuseio deste material, sem falar da ameaça permanente
que essas armas de destruição em massa apresentam para a
humanidade.

Neste pronunciamento percebe-se que o debate sobre os ar-


mamentos e sua segurança avançaram. Se, num primeiro momento
a segurança era obtida através dos armamentos, hoje o desarma-
mento toma tal espaço, novamente, uma posição natural de se ado-
tar, passado o conflito bipolar da Guerra Fria. Nota-se a presença
de palavras-chave como “estado de conservação e manuseio” como
sendo novas preocupações da segurança nuclear, uma vez que o risco
de se ter tais armamentos extrapolam a detonação intencional, mas
também há um risco considerável da possibilidade de haver-se uma
explosão acidental e não intencionada, causando danos catastrófi-
cos e inesperados a uma sociedade inteira.
Parte deste novo pensamento aborda a questão dos Direitos
Humanos e Direito Internacional Humanitário, os quais trazem ao
centro das preocupações internacionais a seguridade da pessoa hu-
mana, além de apresentarem alguns princípios de regulamentação
do uso de certas armas. Um ponto que também vigora nos deba-
tes sobre desarmamento nuclear é o exemplo de outras proibições e
campanhas de desarmamentos que vieram a completar-se, a exem-
plo das minas terrestre anti-pessoais, as quais passaram à categoria

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
599
de ilegalidade sob a égide do Direito Internacional Humanitário, por
razões como o de não respeitar certos princípios como o de distinção
entre os alvos, ponto que até mesmo as armas nucleares não respei-
to. A comparação entre as proibições das minas-terrestres em 1997,
e das munições clusters em 2008, instiga a mobilização da sociedade
civil ao desarmamento e proibição de uso das armas nucleares. A
titulo de exemplificação, aquelas duas últimas vitórias do Direitos
Internacional Humanitário, deram-se com a presença e participação
expressiva da comunidade civil organizada e representada por in-
termédio de organizações não governamentais, como a ICBL-CMC
(International Campaign to Ban Land-mines - Cluster Munition
Coalition). Para estas últimas, a opção de desarmamento pareceu
funcionar muito bem em quesito de obtenção de segurança, desta
vez não em um escopo somente estatal, mas como já mencionado,
num contexto de seguridade humana. É neste viés que organizações
como a ICAN mobilizam-se para o desarmamento e abolição dos ar-
senais nucleares.
Novamente a participação da América Latina na questão de
desarmamento nucleares consagra-se como uma postura pró-ativa.
Como abordado pela Presidente, na abertura da 66º Assembléia Ge-
ral das Nações Unidas, em setembro de 2011: “O Brasil deixou claro
de que um Mundo no qual as armas nucleares são aceitas será sem-
pre um Mundo inseguro.” Esta iniciativa ressalta a importância de
se abordar a segurança internacional de uma ótica diferenciada, a
insegurança não está mais somente atrelada a detonação intencio-
nal de armas nucleares, mas também na possessão destes. Fica claro
então a trajetória e a evolução do debate mundial sobre desarma-
mento e segurança. Não obstante, a participação do Brasil ao defen-
der o desarmamento nuclear, há a participação dos Estados Unidos
Mexicanos no incentivo em se realizar mobilizações estatais e da
comunidade civil num âmbito paralelo às Nações Unidas. Como já
mencionado, o México será o próximo país que sediará a conferên-
cia internacional sobre a necessidade de proibição dos armamentos

600 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
nucleares, fundamentado nas bases já mencionadas de enfoque na
seguridade da pessoa humana e nos impactos catastróficos em caso
de uma detonação nuclear nos dias de hoje.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É notável o avanço a caminho da segurança nuclear, come-
çando pelo incentivo latino-americano ao estabelecimento da pri-
meira zona livre de armas nucleares do mundo, com o tratado de
Tlatelolco, o que sem dúvidas serviu para a criação de outras zonas
livres dos armamentos. Por mais que se tenham obtidos avanços
significativos como na redução dos arsenais nucleares, ainda resta
vários outros pontos a serem debatidos e assegurados pela comu-
nidade internacional se o foco desta for a segurança mundial. Cla-
ramente passou-se do período histórico em que a posse de ogivas
nucleares representava segurança nuclear e uma necessidade de Es-
tado. O debate mudou e com isso deve-se mudar a postura, o que
já está acontecendo, da não proliferação, chegou-se ao caminho do
desarmamento.
Entretanto ainda restam empasses a serem debatidos. Como
se pode pensar em alternativas e medidas eficazes para alcançar-
-se o desarmamento enquanto as potências nuclearmente-armadas
possuem previsões orçamentarias beirando bilhões de dólares ame-
ricanos para a renovação e desmantelamento dos arsenais, como é o
caso dos EUA? Não obstante, há a retomada do pensamento de que
os arsenais nucleares possam representar projeção de poder, como
no recente caso de ameaça a utilização de ogivas pela República
Popular Democrática da Coréia. Tais fatos são exemplos que servem
de fundamentação para a problematização do assunto.
Cabe a reflexão sobre o futuro da segurança internacional no
âmbito dos armamentos nucleares. Deve-se refletir sobre as adapta-
ções das conjunturas internacionais necessárias para que se possa
desenvolver e alcançar a segurança internacional, assim como sobre

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
601
a participação da América Latina neste processo. Como bem eviden-
cia a Presidente Dilma:

Precisamos sim, aposentar os arsenais nucleares, temos sim


de avançar na reforma do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, ele tem sido baluarte da lógica de privilégio nuclear
por mais de 65 anos, e legitima o acúmulo de material físsil
nas potências nuclearmente armadas.
Redobremos nossos esforços em prol do desarmamento ge-
ral e completo das armas nucleares, sob controle estrito e
efetivo.

Desta forma, torna-se cada vez mais evidente que avanços da


temática de segurança nuclear podem partir de mobilizações exte-
riores aquelas do Conselho de Segurança, representando que preci-
sa-se repensar em certas estruturas. Seja pela participação de Esta-
dos latino-americanos como possíveis centros de políticas eficazes
ao desarmamento, seja pela maior mobilização da comunidade civil
em conjunto com organizações não governamentais, o debate acerca
da segurança nuclear e suas novas necessidades está evoluindo, no-
vas perspectivas, diferentes necessidades surgem e são defendidas
por atores internacionais diferenciados, o que mostra a existência da
real necessidade de se efetivar medidas muito além da não prolifera-
ção dos armamentos nucleares.

REFERÊNCIAS
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tions/Documents/Infcircs/Others/infcirc140.pdf>. Acesso em: abr. 2013.
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nado Federal, 1988.
CARASALES, Julio C. The So Called Proliferation that Wasn’t the Story of Argentina’s
Nuclear policy, 2000.
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em: <http://www.opanal.org/Docs/t_tlatelolco/Declaracion1963.pdf> Acesso em:
abr. 2013.
Discurso da presidenta Dilma na reunião de Alto Nível sobre Segurança Nuclear, Nova

602 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Iorque, 2011. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=DLsm7yH1g-
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FAS. Status of World Nuclear Forces, Washington, 2012. Disponível em: <https://
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IPPNW. Abolition 2000, Handbook for a World without Nuclear Weapons, 1995.
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Disarmament-fora/npt/prepcom13/statements/24April_SouthAfrica.pdf>. Acesso
em: abr. 2013.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
603
A PROPOSTA DE CONSTRUÇÃO DA PAZ
E DE SEGURANÇA INTERNACIONAL DO
ESTATUTO DE ROMA E A CONSTITUIÇÃO
BRASILEIRA
Bruno Arthur Hochheim
Graduando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), bol-
sista PIBIC. Pesquisador focado no Direito Constitucional e na História do Direito.
(brunoah1@gmail.com)

Resumo:
Questões das mais tormentosas e das mais interessantes no cenário jurídico nacional é o da
constitucionalidade do Estatuto de Roma, criador do Tribunal Penal Internacional. Por mais
que ambos simbolizem no cenário internacional um avanço no combate a graves violações de
direitos humanos, pode ser que o Estatuto não seja válido na ordem jurídica brasileira, caso
proteja o cidadão menos do que a Constituição. Visa esse trabalho a levantar os pontos de
conflito em potencial entre ambos.
Palavras-chave: Constituição brasileira – Estatuto de Roma – Constitucionalidade.

Sumário:
1. Introdução. 2. O Ordenamento Jurídico. 3. A Recepção dos Tratados Internacioansi e do caso
do Estatuto de Roma. 3.1 A Recepcão de Tratados no Brasil. 3.2 O Caso do Estatuto de Roma.
3.3 Questões suscitadas pela recepção brasileira do Estatuto. 4. Irrelevância da Qualidade
Oficial. 5. A Entrega de Nacionais. 6. Prisão Perpétua. 7. Imprescritibilidade. 8. Relativização
da Coisa Julgada. 9. Individualização da Pena. 10. O Genocídio e o Tribunal do Júri. 11.
Retroatividade da Lei Penal mais Benéfica. 12. O Estatuto de Roma e a Inconstitucionalidade
por Arrastamento. 13. Referências.

1 INTRODUÇÃO
Ninguém questiona, certamente, a necessidade de constru-
ção de mecanismos voltados à repressão de crimes como o genocídio
e os contra a humanidade. Nesse diapasão, é de grande importância

604 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
a construção de mecanismos internacionais para a perseguição des-
sas condutas. O Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto
de Roma, surge nesse contexto, com a missão de efetivar direitos
humanos.
Contudo, não se pode agir de qualquer forma; não se pode,
em nome da justiça, destruir conquistas de grande importância, rela-
tivizando-se garantias do indivíduo. Até mesmo a concretização dos
direitos humanos, bem como a dos direitos fundamentais, necessita
seguir regras. Caso contrário, cair-se-á no arbítrio e na insegurança,
de modo que nenhum direito passe a ser mais dado como certo.
Importantes no processo de construção da paz e da segurança
internacional são as limitações constitucionais de cada Estado. De
nada adianta um Estado aderir a determinada estrutura de prote-
ção aos direitos humanos se, com isso, ele ignora os direitos de seus
próprios cidadãos, rasgando-os e inutilizando-os. Tudo o que se faz
com isso é abrir um precedente perigosíssimo, ensejador de viola-
ções de direito de grande porte, tudo em nome das conveniências do
momento.
O Estatuto de Roma possui, no contexto brasileiro, uma série
de disposições problemáticas, de constitucionalidade duvidosa. De-
ve-se cuidadosamente analisar cada uma delas, para que não se aca-
be violando a Constituição e, com isso, a proteção que cada cidadão
tem. Em caso de incompatibilidade entre a Constituição e o Estatuto
de Roma, este deve ser, infelizmente, repelido; não se defendem di-
reitos fundamentais violando-se direitos fundamentais, assim como
não se defendem democracias dando-se golpes de Estado.
Visa esse artigo a fazer uma radiografia da questão da cons-
titucionalidade do Estatuto de Roma no Brasil. Levantar-se-ão as
diferentes inconstitucionalidades em potencial, bem como os dife-
rentes argumentos para cada lado, ou razões para que haja algu-
ma inconstitucionalidade. Principiar-se-á realizando-se um resumo

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
605
da estrutura jurídica brasileira; analisar-se-ão, então, as diferentes
questões suscitadas pelo Estatuto de Roma no Brasil, nos seus dife-
rentes planos.

2 O ORDENAMENTO JURÍDICO
Na ideia de ordenamento jurídico atualmente adotada, tem-
-se a concepção deste como uma construção hierárquica de normas
jurídicas, escalonada. Devem as normas hierarquicamente inferiores
ser conforme às normas superiores, não as contrariando. No topo de
todo o ordenamento está a Constituição.
O Brasil é um Estado Democrático de Direito, sendo o povo
soberano. Ele é a fonte do poder estatal, bem como do ordenamento
jurídico por este criado. O povo brasileiro não se submete juridica-
mente a ninguém, cabendo a ele decidir sob que leis viver, escolha
essa consubstanciada principalmente na Constituição. Esta cria a
ordem jurídica nacional, conformando-a, e é, do ponto de vista jurí-
dico, a maior expressão da vontade popular.
A Constituição brasileira prevê uma série de medidas para
que se evite o arbítrio e a violência: separação de poderes; direitos
fundamentais, visando à garantia, para o indivíduo, de uma esfera
livre do Estado ou mesmo da maioria, impedindo medidas como tor-
tura ou tratamento desumano.
Na estrutura normativa brasileira, caracteriza-se a Constitui-
ção por ser rígida: não pode ser alterada pelo método comum de con-
fecção de leis, exigindo um processo qualificado para tanto. Se, ao
contrário, pudesse o Congresso Nacional alterá-la do mesmo modo
que produz leis, poderia facilmente, do ponto de vista jurídico, alte-
rar direitos fundamentais, como o à educação e à saúde.
Deve-se destacar que, na estrutura brasileira, nem tudo pode
ser alterado na Carta Magna. Há um núcleo inalterável, consubstan-
ciado nas chamadas cláusulas pétreas, segundo o art. 60, parágrafo
4º da Constituição: a forma federal de Estado; o voto direto, secreto,

606 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
universal e periódico; a separação dos poderes; os direitos e garan-
tias individuais. Qualquer emenda constitucional tendente a abolir
os preceitos acima é inadmissível, não podendo seu projeto sequer
ser objeto de deliberação.
Desse modo, a Constituição é a origem e o fecho do ordena-
mento jurídico, submetendo todas as demais normas jurídicas – o
que inclui, por exemplo, leis e tratados internacionais440. Todas elas
têm que segui-la, sendo conforme ao que ela determina. Na disso-
nância entre a Constituição e qualquer outra norma, deve a Carta
Magna prevalecer, pela sua posição hierárquica. E isso vale para to-
das as normas, para bem ou para mal.
Por mais louvável que possa ser o objetivo de determinada
norma, como a construção da paz e a segurança internacional, caso
ela viole algum ditame constitucional, padecerá ela do vício de in-
constitucionalidade, não podendo ser aplicada. O jurídico é, ou de-
veria ser, menos sujeito a pragmatismos do que o político; o fim não
justifica os meios, devendo estes também ser conformes à Consti-
tuição. Como se verá adiante, há fortes dúvidas sobre a constitucio-
nalidade da previsão de prisão perpétua albergada pelo Estatuto de
Roma; caso ela seja de fato inconstitucional, não pode ser aplicada.
Mesmo que, em termos gerais, o Estatuto represente um avanço no
combate às graves violações de direitos humanos. Não pode haver
violação de direitos em nome de “bem maior”.
Deve-se, portanto, analisar a compatibilidade de qualquer
norma com a Constituição, para que se tenha certeza de que se tra-
te de norma válida. Isso, repita-se, diz respeito a todas as normas,
inclusive aos tratados internacionais. Afinal, uma vez recepciona-
dos, viram eles norma interna, sujeita ao império da Constituição. O

440
Estamos cientes da discussão sobre a hierarquia dos tratados internacionais de direito
humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Segundo o debate, esses tratados podem
ter três hierarquias: a legal, a supralegal ou a constitucional. Independentemente da
posição que se considere que elas possuam, o que foi aqui escrito continua valendo,
uma vez que sempre se submete, ao menos, às cláusulas pétreas do ordenamento.
Mesmo no caso de hierarquia constitucional.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
607
Estatuto, portanto, também se sujeita a essa análise. Apesar de ser,
no plano internacional, importante ferramenta para a construção da
paz e a segurança internacional, pode ser que ele represente, no pla-
no interno, a violação de direitos do cidadão. Basta ele conferir ao in-
divíduo uma proteção menor do aquela conferida pela Constituição.
A análise de constitucionalidade de uma norma envolve dois
aspectos: o material e o formal.
O lado material diz respeito ao conteúdo de suas prescrições:
é ele compatível com a ordem constitucional? Nenhuma norma pode
determinar algo diferente do que a Constituição; se em determinado
caso a Constituição prescreve A, não pode a lei, para o mesmo caso,
ignorar tal e prescrever B; se a Constituição determina que não ha-
verá tortura, não pode lei alguma autorizar o seu uso.
A dimensão formal, por sua vez, diz respeito não ao conteúdo
da norma avaliada, e sim a outros aspectos, pertinentes ao processo
de formação normativa. Analisa-se se a norma foi produzida pela
autoridade competente, se foi criada seguindo-se o procedimento
para tanto previsto, e assim por diante.
As duas dimensões são independentes; basta vício numa de-
las para que a norma seja considerada inconstitucional, não sendo
mais aplicada. De nada adianta uma norma seguir todo o devido pro-
cesso de sua produção e prever a segregação racial; de nada adianta
a norma prever o acesso universal ao ensino superior, garantindo
vagas a todos, independentemente de realização de vestibular, se ela
foi criada do dia para a noite pelo assessor do vice-presidente da Câ-
mara dos Deputados, sendo por ele mesmo promulgada e publicada.
Os dois aspectos devem ser sempre conformes à Constituição.
Desse modo, passaremos a ver, na seção seguinte, como se dá
o processo de incorporação de tratados internacionais na ordem jurí-
dica brasileira, bem como qual foi o processo específico do Estatuto
de Roma, a fim de se perquirir se há alguma possibilidade de incons-
titucionalidade. Só então analisar-se-á o efetivo conteúdo do tratado.

608 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
3 A RECEPÇÃO DOS TRATADOS
INTERNACIONAIS E O CASO DO ESTATUDO
DE ROMA
3.1 A recepção de tratados no Brasil
Uma das formas de se gerarem normas gerais e abstratas em
nosso ordenamento jurídico é através da recepção de tratados in-
ternacionais. Para que o Estado brasileiro o faça, é necessário um
procedimento em três etapas, as quais são a assinatura do tratado, o
consentimento do Congresso Nacional e a ratificação do Presidente
da República.
A assinatura do tratado internacional é competência privati-
va do Presidente da República (art. 84, VIII, CF), podendo este no-
mear um ministro plenipotenciário para fazê-la em seu lugar.
A próxima etapa do processo é o consentimento do Congres-
so, ocorrendo ela após o presidente encaminhar o texto assinado a
ele. Cabe destacar que o presidente não é juridicamente obrigado a
realizar tal conduta, tendo ele discricionariedade nesse campo. Afir-
ma Rezek (2011, p. 88)

Concluída a negociação de um tratado, é certo que o presi-


dente da República - que, como responsável pela dinâmica
das relações exteriores, poderia não tê-la jamais iniciado,
ou dela não ter feito parte, se coletiva, ou haver ainda, em
qualquer caso, interrompido a participação negocial brasilei-
ra – está livre para dar curso, ou não, ao processo determi-
nante do consentimento. Ressalvada a situação própria das
convenções internacionais do trabalho, ou alguma inusual
obrigação imposta pelo próprio tratado em causa, tanto pode
o chefe do governo mandar arquivar desde logo o produto a
seu ver insatisfatório de uma negociação bilateral ou coleti-
va, quanto determinar estudos mais aprofundados na área
do Executivo, a todo momento; e submeter quando melhor
lhe pareça o texto à aprovação do Congresso.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
609
Tal tem sua lógica. O campo das relações internacionais é um
nos quais a política mais fortemente se manifesta, sendo seus atos,
como a celebração de tratados, assuntos envolvendo guerra e paz e
a nomeação de embaixadores, tipicamente do presidente na história
moderna. Seria inviável dar a competência para realizar esses atos
ao órgão legislativo, o qual é muito mais lento. Aqui age a discri-
cionariedade do Presidente da República, sendo unicamente dele a
escolha quanto ao que fazer com o texto assinado.
Decidindo o Chefe do Executivo prosseguir com o processo,
envia ele o texto assinado ao Congresso. Essa etapa faz-se necessária
no modelo de democracia pautada na divisão de poderes que pos-
suímos, já que se apenas o povo pode criar leis que vinculem todos
os cidadãos, não faria sentido que o Executivo pudesse sozinho re-
cepcionar no ordenamento jurídico normas que vinculem todas as
pessoas. Em cada uma das duas casas há comissões parlamentares
destinadas a estudar o texto enviado pelo presidente. Naturalmente,
faz-se necessário o abono das duas casas legislativas; se uma delas
não concordar com o texto, o processo não pode seguir adiante (RE-
ZEK, 2011, p. 89).
Uma vez tendo aceito o Congresso o compromisso, cria-se um
decreto legislativo publicizando o texto. Ele é promulgado pelo pre-
sidente do Senado e publicado no Diário Oficial da União (REZEK,
p. 89). Como o meio utilizado é um decreto legislativo, a votação em
plenário necessária para a aprovação do tratado requer o quorum or-
dinário de aprovação, a maioria simples.
O Congresso Nacional pode aprovar o texto com restrições ao
texto, as quais o Executivo traduzirá em reservas quando for ratifi-
car (REZEK, p. 92).
O derradeiro passo do processo de recepção é a ratificação.
Ela é a expressão final do consentimento, sendo, como afirmam Ac-
cioly e Nascimento e Silva, (1998, p. 28-9) “...o ato administrativo
mediante o qual o chefe de Estado confirma um tratado firmado em

610 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
seu nome ou em nome do Estado, declarando aceito o que foi con-
vencionado pelo agente signatário”.
A ratificação não é vinculada interna nem externamente,
isto é: tanto pode o Estado decidir não ratificar um texto, mesmo
já sendo seu signatário, quanto pode o Executivo não realizar o ato,
mesmo que o Legislativo já haja aprovado o tratado (REZEK, 2011,
p. 28). “O princípio reinante, pois, é o da discricionariedade da rati-
ficação.” (REZEK, 20011, p. 28).
A ratificação se dá no Brasil mediante decreto do presidente,
ato que ao mesmo tempo promulga o tratado, trazendo ele o texto
com que o Brasil se compromete.

[...] o decreto de promulgação não constitui reclamo cons-


titucional: ele é produto de uma praxe tão antiga quanto a
Independência e os primeiros exercícios convencionais do
Império. Cuida-se de um decreto, unicamente porque os atos
do chefe de Estado costumam ter esse nome. Por nada mais.
Vale aquele como ato de publicidade da existência do trata-
do, norma jurídica de vigência atual ou iminente. (REZEK,
2011, p. 103)

3.2 O caso do estatuto de Roma


Quanto ao Brasil, foi feita a assinatura do Estatuto de Roma
em 7 de fevereiro de 2000; o decreto legislativo correspondente, em
6 de junho de 2002, sendo 112 o seu número; o decreto executivo,
numerado 4.388, em 25 de setembro de 2002.
A questão do Tribunal Penal Internacional, contudo, estava
e está ainda longe de ser resolvida em nosso ordenamento jurídico.
Embora não haja problemas quanto à forma do procedimento ado-
tado, o Estatuto de Roma tem previsões realmente controvertidas.
Dentre outras, podem-se citar a previsão de prisão perpétua, a des-
consideração da qualidade oficial, a entrega de nacionais e a retroa-
tividade da lei penal mais benéfica mais restrita do que a apontada

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
611
pela Constituição. Essas são algumas das mais problemáticas, uma
vez que, em sendo inválidas, o serão, na maior parte das vezes, por
limitação de cláusula pétrea, de modo que não se pode contornar
esse problema.
Devido às fortes dúvidas pertinentes à constitucionalidade do
Estatuto de Roma na ordem jurídica brasileira, a Emenda Constitu-
cional 45 de 2004 criou, dentre outras disposições, o §4º do art. 5º:
“§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacio-
nal a cuja criação tenha manifestado adesão.”
Houve, portanto, a recepção do Estatuto de Roma conforme
usualmente se dá na seara dos tratados internacionais. O incomum
é o fato de haver emenda constitucional, criada após a promulgação
do tratado, repetindo suas disposições, fato inusitado na experiência
brasileira.

3.3 Questões suscitadas pela recepção brasileira


do Estatuto
Ao que tudo indica, a recepção do Estatuto de Roma deu-se
sem irregularidades; segui-se o procedimento devido, havendo a as-
sinatura, o decreto legislativo e o decreto executivo necessários.
O que gera dúvidas é a emenda constitucional que lhe se-
guiu: o que significa ela juridicamente, e quais os seus efeitos?
Dimoulis e Sabadell (2009, p. 63-65) criticam fortemente os
termos da alteração da Constituição. Segundo os autores, o termo
causa estranheza, uma vez que, se o Brasil é soberano, ele não pode
se submeter a nenhuma autoridade estrangeira; em fazendo-o, dei-
xa de ser soberano. Continuam os autores que, independentemente
do termo, quis-se “...sinalizar que o Brasil reconhece e admite a ju-
risdição penal internacional.” (p. 64). De qualquer forma, a Consti-
tuição “...fica marcada por uma grave contradição entre o caráter do
texto originário e a declaração de submissão.” (p. 65)

612 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Pode-se aventar a possibilidade de a EC 45 haver constitucio-
nalizado o Estatuto de Roma. Por um lado, tal tem respaldo no fato
de haver agora previsão constitucional a seu respeito. Por outro lado,
pode-se perguntar até que ponto isso é possível. Isso equivale a uma
nova recepção do Estatuto de Roma – sem que, para isso, se siga o
devido processo; não houve, afinal, nova assinatura, nem novo de-
creto executivo.
Caso se confirme a constitucionalização do Estatuto de Roma,
isso não significa a solução de seus problemas. Emenda Constitucio-
nal alguma tem a possibilidade de alterar cláulas pétreas; se a tives-
se, não seriam, por definição, cláusulas pétreas.
Mas apenas as cláusulas pétreas não seriam alteradas. Qual-
quer outra violação da Constituição por parte do Estatuto poderia
ser superada através da Emenda 45, uma vez que se trata agora de
norma de mesmo nível hierárquico, a qual pode derrogar normas
constitucionais não protegidas por cláusula pétrea.
Isso leva a efeitos interessantes. Há diferentes classificações
de tipos de inconstitucionalidade, conforme distintos critérios. O
que importa na sua aplicabilidade ou não em determinada situação
é a sua utilidade para a resolução de problemas.
Pode-se elaborar uma nova classificação de tipos de inconsti-
tucionalidade, ao lado das já existentes, pautada na possibilidade de
posteriormente se poder contornar o vício que torna a norma disso-
nante em relação à Constituição. Essa é a sua utilidade: deixar claro
se é possível ou não haver norma válida com o conteúdo da norma
em questão.
Como afirmado, partes da Constituição não podem ser alte-
radas, independentemente do quorum ou do procedimento seguido,
devido a cláusulas pétreas. Estas são um fruto da vontade do cons-
tituinte originário, o qual considerou seus preceitos tão centrais ao
nosso ordenamento que decidiu não permitir sua supressão, mesmo
frente a uma enorme maioria, ou até unanimidade. O conteúdo de

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
613
normas que são inválidas devido à incidência de alguma cláusula
pétrea, portanto, não pode ser reproduzido em alguma outra nor-
ma que possa ser válida através de algum outro modo (outro pro-
cedimento, outro quorum, outra autoridade que a constitua, outras
circunstâncias, etc), uma vez que o vício persistiria. Uma inconstitu-
cionalidade desse tipo seria uma inconstitucionalidade nuclear, uma
vez que se dá em decorrência de afronta a algum dispositivo que
integre o núcleo não só da ordem jurídica, mas da própria Constitui-
ção, caracterizado pelas cláusulas pétreas441.
Diferente de uma inconstitucionalidade desse tipo é a incons-
titucionalidade não-nuclear, a qual não afeta o cerne do ordenamen-
to jurídico brasileiro. Se a norma é inválida por ser inconstitucional,
ela o é devido a algum fator que, se alterado, possa permitir a criação
de outra norma com o mesmo conteúdo.
Suponha-se uma emenda constitucional que permita o uso
de tortura no inquérito policial. Apesar de sua criação eventualmen-
te seguir todas as formalidades, ela é inconstitucional, uma vez que
afronta cláusula pétrea, e não há o que se fazer a respeito. Essa seria
uma inconstitucionalidade nuclear, sendo incontornável.
Por outro lado, uma emenda constitucional que altere a idade
mínima para que alguém possa ser candidato a senador de 35 para
33 anos aprovada por 55% dos parlamentares de cada uma das duas
casas em apenas um turno é inconstitucional, uma vez que desres-
441
Podem ser citados - sem se ignorar que suas posições são, por vezes, diferentes – al-
guns autores que possuem um pensamento semelhante que caminha na direção de
caracterizar as cláusulas pétreas como núcleo ou cerne da Constituição: Piovesan
(2010, p.80) - “Atente-se que as cláusulas pétreas resguardam o núcleo material da
Constituição, que compõe os valores fundamentais da ordem constitucional; Ferreira
Filho (2007, p.236) - “Não é infreqüente estabelecerem as Constituições proibições de
alteração quanto a certos pontos, matérias ou princípios. Definem estes, em conse-
qüência, o chamado cerne ‘intangível’ da Lei Magna”; Pontes de Miranda, comentando
a Constituição de 1967 (1967-1968, p. 142-3) - “As Constituïções que se fizessem inal-
teráveis, eternas, seriam ingênuas e imprudentes. Emendar-se, permitir-se alterar-se,
nos indivíduos e nos grupos sociais, é sinal de sabedoria. A tendência é para mínimo
de inalterável, de fixo, de preciso... A Constituïção de 1967, como a de 1946, tem como
cerne inalterável a republicanidade e a ligação permanente entre as entidades interes-
tatais (‘federação’).”

614 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
peita as normas referentes ao quorum de votação e ao procedimento
de uma emenda à constituição. Esses vícios são, contudo, contorná-
veis através da criação de uma nova norma com o mesmo conteú-
do que obedeça aos requisitos impostos pela Constituição. Há, sem
dúvida, ofensa à Constituição, mas não ao seu núcleo, insuprimível,
podendo-se contornar o problema mediante outra norma.
A inconstitucionalidade não-nuclear é contornável; há o que
se fazer, há como o ordenamento jurídico caminhar na direção de-
sejada. A inconstitucionalidade nuclear, por outro lado, é definitiva.
Não há como a norma ser válida sob a égide da Constituição então
vigente.
Assim sendo, a constitucionalização do Tribunal Penal Inter-
nacional, caso tenha realmente ocorrido, contorna qualquer incons-
titucionalidade não-nuclear. Ela só será inútil caso haja, nas previ-
sões do Estatuto, alguma inconstitucionalidade nuclear442.
Isso encerra a análise dos questionamentos formais que a
questão do Estatuto de Roma encerra no Brasil. Passaremos a ana-
lisar os elementos materiais, isso é, se alguma previsão do Estatuto
conflita com a Constituição.

4 IRRELEVÂNCIA DA QUALIDADE OFICIAL


A desconsideração da qualidade oficial relativiza prerrogati-
vas de foro constitucionalmente previstas.
Estabelece o Estatuto de Roma em seu artigo 27

Irrelevância da Qualidade Oficial


1. O presente Estatuto será aplicável de forma igual a todas
as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade ofi-

442
Como bem se pode ver, a classificação entre inconstitucionalidades nucleares e não
nucleares é funcional para qualquer norma, e não só para o caso em tela. Qualquer
norma jurídica, mesmo uma Emenda Constitucional é passível de ser classificada sob o
binômio aqui proposto.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
615
cial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado
ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento,
de representante eleito ou de funcionário público, em caso
algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade crimi-
nal nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per
se motivo de redução da pena.
2. As imunidades ou normas de procedimento especiais de-
correntes da qualidade oficial de uma pessoa; nos termos
do direito interno ou do direito internacional, não deverão
obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa
pessoa.

Essa disposição é potencialmente conflituosa com a Consti-


tuição, uma vez que parece contrariá-la quanto às prerrogativas de
foro que ela concede a quem ocupe determinadas posições no or-
ganograma estatal, como a de parlamentar ou a de presidente da
república. Tome-se por exemplo o art. 102, I, b:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipua-


mente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente: [...]
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República,
o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus
próprios Ministros e o Procurador-Geral da República

Só o STF pode julgar as pessoas indicadas. E por “infrações


penais comuns” entenda-se qualquer crime. Na sistemática da
Constituição, esse termo faz referência a qualquer crime, enquanto
“crimes de responsabilidade” fazem, naturalmente, referência aos
crimes de responsabilidade. Não há margem para um eventual no
argumento no sentido de que “infrações penais comuns” não in-
clui os crimes julgados pelo Tribunal Penal Internacional, uma vez
que eles são dos mais cruéis, constituindo-se como crimes contra
a humanidade, portanto. Há grande de incompatibilidade entre o
Estatuto de Roma e a Constituição, de modo que esse dispositivo

616 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
é inconstitucional se aplicado de modo a ignorar essa competência
que só ao STF pertence.
Contudo, dificilmente se pode argumentar que essas prerro-
gativas de foro sejam protegidas por cláusula pétrea no ordenamen-
to jurídico brasileiro; qualquer emenda constitucional pode, assim
sendo, alterar esse estado das coisas, permitindo relativizações das
prerrogativas. Caso se entenda que a Emenda Constitucional 45
constitucionalizou o Estatuto de Roma, pode-se defender, com gran-
de facilidade, que essas prerrogativas foram flexibilizadas nas hipó-
teses de incidência do Tribunal Penal Internacional.
As prerrogativas de função seriam, portanto, caso de incons-
titucionalidade não nuclear.

5 A ENTREGA DE NACIONAIS
Questão polêmica é a entrega de nacionais ao Tribunal Penal
Internacional. Prevê o Estatuto em seu art. 89

Art. 89.
Entrega de Pessoas ao Tribunal
1. O Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega
de uma pessoa, instruído com os documentos comprovativos
referidos no artigo 91, a qualquer Estado em cujo território
essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse
Estado na detenção e entrega da pessoa em causa. Os Es-
tados Partes darão satisfação aos pedidos de detenção e de
entrega em conformidade com o presente Capítulo e com os
procedimentos previstos nos respectivos direitos internos.

A Constituição, por outro lado, limita severamente as hipóte-


ses de extradição de nacionais. Define em seu artigo quinto

LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturaliza-


do, em caso de crime comum, praticado antes da naturali-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
617
zação, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins, na forma da lei.

Mais uma vez, a possibilidade de conflito entre ambas as dis-


posições é enorme; conflito esse que, cumpre lembrar, deve ser sem-
pre resolvido aplicando-se o que determina a Constituição.
A cláusula de inextradibilidade de nacionais não é peculiari-
dade brasileira; pelo contrário, é relativamente comum nos diferen-
tes ordenamentos jurídicos. Talvez por isso, preveja o Estatuto

Art. 102.
Termos Usados
Para os fins do presente Estatuto:
a) Por “entrega”, entende-se a entrega de uma pessoa por
um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto.
b) Por “extradição”, entende-se a entrega de uma pessoa por
um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado,
em uma convenção ou no direito interno.

Essa disposição, contudo, em pouco ajuda. Como é bem sa-


bido na hermenêutica, não se interpreta a Constituição conforme
qualquer norma inferior, e sim o contrário. A referência para a inter-
pretação constitucional deve ser a própria Constituição, e não qual-
quer outra norma – salvo haja menção expressão da Constituição em
contrário.
Desse modo, o previsto no artigo 102 não contribui muito
ao debate. Traz apenas uma sugestão de conciliação; se a entrega
for distinta da extradição, é porque há margem para isso na própria
Carta Magna, e não porque o Estatuto determinou que é. A se pen-
sar distintamente, deve-se também ter por constitucional uma lei
que determine que, em caso de determinado crime, o juiz aplicará a
medida de perfuração simultânea do corpo por vários projéteis de ar-
mas de fogo disparados por homens alinhados – se a lei em questão

618 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
estabelecer que isso se dá a título de aliviamento do fardo de viver
nesse mundo, uma vez que a pessoa em questão não se mostrou res-
ponsável o bastante para tal, e não a título de pena.
A maioria da doutrina que se debruçou sobre a temática do
Estatuto de Roma no Brasil considera a entrega como aceita pela
ordem constitucional. O argumento básico é o de que extradição não
é o mesmo que entrega; o próprio Estatuto determina, como dito,
que se trata de institutos distintos. Mazzuoli (2004, p. 251-3), por
exemplo, entende que são coisas diferentes, uma vez que a extradi-
ção pressupõe um outro Estado; a entrega, por sua vez, um tribunal
internacional.

Parece clara, assim, a distinção entre a entrega de um nacio-


nal brasileiro a uma corte com jurisdição internacional, da
qual o Brasil faz parte, por meio de tratado que ratificou e
se obrigou a fielmente cumprir, e a entrega de um nacional
nosso (esta sim proibida pela Constituição) a um tribunal es-
trangeiro, cuja jurisdição está afeta à soberania de uma outra
potência estrangeira, que não a nossa, e de cuja construção
nós não participamos com o produto de nossa vontade (MA-
ZZUOLI, 2004, p. 253).

A tônica, para o autor, é a de que a entrega é distinta da ex-


tradição justamente porque é realizada para uma coletividade em
cuja construção o Brasil tenha colaborado. Nessa direção, também
sustenta Rothenburg (2002, p. 78).
Já outros autores entendem que há incompatibilidade com a
Constituição (DIMOULIS; SABADELL, 2007, p. 51; TAVARES, 2010,
p. 560-2). Para Tavares (2010, p. 561), a distinção entre entrega e
extradição é “...meramente grafolófica, não se podendo considerar,
seriamente, ser ontológica...”
O Estatuto de Roma gera questionamentos frente às Cons-
tituições de outros países também, os quais, muitas vezes, buscam
emendá-las para que haja compatibilidade. Até onde é do nosso co-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
619
nhecimento, só houve outro país em que se cogitou de conflito de-
vido a alguma cláusula de inextradibilidade de nacionais: a Alema-
nha. Considerou-se que havia conflito entre ambas as normas, de
modo que se alterou a Constituição – e a emenda se deu justamente
na disposição referente à extradição (Auslieferung), relativizando-a
frente a casos como o envio de cidadãos alemães a tribunais inter-
nacionais. Ou seja, considera-se tal uma extradição, tendo-se apenas
aberto uma exceção para ela. Nem doutrina (IPSEN, 2011, p. 264-5),
nem tribunais (ALEMANHA, 2005) contestam isso.

6 PRISÃO PERPÉTUA
O Estatuto de Roma possibilita a aplicação da pena de prisão
perpétua

Art. 77

Penas Aplicáveis

1. Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode


impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no
artigo 5o do presente Estatuto uma das seguintes penas:
a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até
ao limite máximo de 30 anos; ou
b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do
fato e as condições pessoais do condenado o justificarem

Essa possibilidade é ponto de maior debate na doutrina. A


Constituição proíbe terminantemente a prisão perpétua em seu ar-
tigo quinto:

XLVII - não haverá penas:


a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos
do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;

620 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;

Resta o impasse.
Interpretações conciliadoras são o que não faltam nesse âm-
bito. Steiner (2003, p. 452-457) entende que os princípios preva-
lecem sobre as regras, de modo que os princípios da dignidade da
pessoa humana e o da prevalência dos direitos humanos nas rela-
ções internacionais prevalecem aqui. Aponta também o artigo 7º do
ADCT, o qual determina que o Brasil propugnará pela criação de um
tribunal internacional de direitos humanos, e que os direitos e ga-
rantias fundamentais só tem força dentro do Brasil, não se podendo
dar-lhes eficácia transnacional e utilizá-los como óbice a extradição
ou entrega. Acrescenta a autora que a recepção do TPI causou uma
mutação constitucional, de forma a se permitir esses pontos de dita
inconstitucionalidade e, por último, lembra que a própria Constitui-
ção permite a pena de morte em caso de crime militar cometido em
crime de guerra. Entende ela que, se nessas circunstâncias pode-se
ter pena de morte, pode-se ter também pena de prisão perpétua no
caso de grande violação de direitos humanos, as quais são tão graves
quanto guerras.
Mazzuoli (2004, p. 254-255) argumenta que o STF não vê
problemas em extraditar indivíduos para locais onde podem ser con-
denados à prisão perpétua, de modo que a vedação a essa pena não
pode servir de óbice ao Estatuto (aqui, para o autor, a entrega pode
ser tratada como extradição). Lembra também pode haver a revisão
da pena após o cumprimento de dois terços dela, ou de 25 anos. E
entende também que essa vedação destina-se apenas ao legislador
interno brasileiro, não alcançando legisladores estrangeiros ou in-
ternacionais. Nada impede que a pena de prisão perpétua seja ins-
tituída “...fora do país, por um tribunal permanente de jurisdição

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
621
internacional, do qual o Brasil é parte e deve obediência, em prol do
bem-estar da humanidade”.
Dimoulis e Sabadell (2009, p. 52) discordam. Entendem que

Adotando o ponto de vista do ordenamento jurídico brasilei-


ro, essa incompatibilidade deve ser resolvida no sentido da
prevalência da norma constitucional, pois havendo antino-
mia entre normas de diferentes graus hierárquicos prevalece
aquela que, conforme o critério adotado em cada sistema ju-
rídico, for considerada superior.

Rothenburg (2002, p. 79) também defende a inconstitucio-


nalidade do Tribunal Penal Internacional nesse ponto. Já Flávia Pio-
vesan (2000, p.73) entende que nesses casos há um conflito entre
a vedação à prisão perpétua e a justiça, devendo a balança pesar a
favor desta.

7 IMPRESCRITIBILIDADE
Estabelece o Estatuto de Roma

Art. 29
Imprescritibilidade
Os crimes da competência do Tribunal não prescrevem.

A dúvida é se tal é condizente com a Constituição. Aqui, ao


contrário dos últimos casos, não há norma com previsão expres-
sa. Caso haja violação da Constituição, isso se dará devido a norma
constitucional implícita.
André Ramos Tavares (2010, p. 562) afirma que isso viola a
Constituição pelo fato de tornar vulneráveis as situações jurídicas
consolidadas com o decurso de longo período de tempo, destruindo
um dos pilares do Direito, a pacificação dos conflitos. Além disso,

622 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
isso conflita com a sistemática constitucional, que sempre se referiu
expressamente aos casos de crimes imprescritíveis, não podendo ser
criadas outras hipóteses. Para Aury Lopes (2011, p.23),

Não podemos aceitar que o legislador ordinário crie crimes


imprescritíveis diante da taxatividade constitucional. Não
houve uma delegação da Constituição para que lei ordiná-
ria determinasse quais crimes seriam imprescritíveis (como
ocorreu, noutra dimensão, em relação aos crimes hedion-
dos), senão o claro estabelecimento de um rol. Considerando
a gravidade da medida no que tange à limitação de direitos
fundamentais, inviável tal abertura.

Uma limitação à liberdade, ou sua possibilidade por parte de


determinação legal, deve, ao menos, ser expressamente prevista. Ro-
thenburg (2002, p. 79) também entende que a imprescritibilidade
não pode ser aceita, porque a Constituição já exauriu o que é impres-
critível ou não.
Por outro lado, o Supremo aceitou no RE 460.971 a possibili-
dade de criação de novos crimes imprescritíveis. Segundo a corte, a
Constituição “...se limita, no art. 5º, XLII e XLIV, a excluir os crimes
que enumera da incidência material das regras da prescrição, sem
proibir, em tese, que a legislação ordinária crie outras hipóteses”
(BRASIL, 2007, p. 1)
Pode-se sempre argumentar que não previsão expressa de li-
mitação aos casos de imprescritibilidade, podendo o legislador criar
novas hipóteses.
De qualquer forma, caso se entenda que é possível criar mais
casos de imprescritibilidade, tal sempre estará sujeito ao princípio da
proporcionalidade. Não seria qualquer crime passível de imprescriti-
bilidade; o delito deve agredir bem jurídico de grande importância,
e de forma muito grave, para que se possa afastar absolutamente
a prescrição. Não se pode ter como imprescritível crime de menor
monta: seria claramente inconstitucional a previsão de imprescriti-

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
623
bilidade, por exemplo, para crimes de furto. No caso do Estatuto de
Roma, como ele prevê crimes de enorme violência e destruição, não
haveria muitas dúvidas de que sua imprescritibilidade não violaria a
Constituição no que tange à proporcionalidade.

8 RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA


Questão complicada também é a da relativização da coisa
julgada que o Estatuto de Roma prevê. Tal pode conflitar diretamente
com o direito constitucional à coisa julgada (art. 5º, XXXVI da
Constituição: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada”).

Deve-se analisar cuidadosamente para se verificar se os casos


de desconsideração de julgamento anterior sobre o mesmo fato não
traduzem violações à coisa julgada.

9 INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA
A Constituição prevê o direito à individualização da pena -
todo condenado tem o direito a ter uma pena adequada à conduta
que cometeu. Contudo, há possibilidade de conflito entre esse prin-
cípio basilar da punição no Estado Democrático de Direito brasileiro
e o Estatuto de Roma em duas ocasiões.
A primeira é grande abrangência das possibilidades de pena
a serem cominadas. O Estatuto determina que (art. 77, como acima
visto), para qualquer um dos crimes nele previstos, pode ser cumu-
lada pena de prisão até 30 anos e, excepcionalmente, pena de prisão
perpétua, além de multa e de perda de bens. Tal amplitude na hora
da determinação da pena é inadmissível frente ao princípio da in-
dividualização da pena. Segundo Viggiano Luisi (2000, p. 50), não
se leva em conta a especificidade de cada tipo penal e a relevância
do bem jurídico tutelado, não se considerando a maior ou menor
gravidade da ofensa. Termina o autor (2000, p. 50) afirmando que

624 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
“O impasse, portanto, é de evidência induvidosa. E mesmo insupe-
rável, pois está a exigir ou uma nova Constituição brasileira, ou uma
nova redação do art. 77 do Estatuto”. Steiner, (2003, p.51) por outro
lado, não vê problema em previsão tão genérica; segundo a autora,
o conflito é apenas aparente, uma vez que tal opção apenas reflete
um modo distinto de individualização da pena, e não a ausência de
individualização.
A outra ocasião é a ausência, no Estatuto, de previsão de pro-
gressão de regimes; como ele é nesse ponto silente, entende-se que
a prisão será integralmente cumprida no regime fechado. Já é pací-
fico no STF (2006, p.1) que tal ausência de progressão de regimes é
inconstitucional, por afronta à individualização da pena. Caso real-
mente não haja progressão de regimes para os crimes previstos no
Estatuto de Roma, há fortes possibilidades de inconstitucionalidade.
Aparentemente, a doutrina ainda não percebeu esse conflito em po-
tencial, pois sequer escreveu a seu respeito.

10 O GENOCÍDIO E O TRIBUNAL DO JÚRI


Dentre os vários crimes que o Estatuto de Roma prevê, está o
crime de genocídio

Art. 6o
Crime de Genocídio
Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “genocí-
dio”, qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, pra-
ticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um
grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:
a) Homicídio de membros do grupo;
b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros
do grupo;
c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com
vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial;

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
625
d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos
no seio do grupo;
e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro
grupo.

É necessária uma cuidadosa análise do genocídio cometido


através do homicídio de membros do grupo; deve-se questionar-
-se se isso não se trata de crime contra a vida e, portanto, sujeito à
jurisdição do tribunal do júri. O STF (BRASIL, 2006, p. 1) já despo-
sou o entendimento contrário, definindo que o crime é tutela penal
da existência de grupo racial, religioso, étnico ou nacional, ao qual
pertence a pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas. Deve-se
questionar se isso realmente procede.
O júri tem por competência crimes dolosos contra a vida, por
força de disposição constitucional, contida no artigo quinto:

XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organi-


zação que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos con-
tra a vida;

Deve-se sempre averiguar se o tipo penal em estudo não se


trata de crime doloso conta a vida. O Direito Penal tutela diferen-
tes bens jurídicos (vida, liberdade, integridade física, incolumidade
pública, fé pública, dentre outros). Grosso modo, ou eles tratam de
abstrações relacionadas a interesses extraindividuais, como a fé e a
incolumidades públicas, ou tratam de interesses individuais. Isso se
dá porque, num Estado Democrático de Direito, adota-se uma con-
cepção eminentemente liberal: o cerne é o indivíduo. Abandonou-se
há muito a ideia de grupos sociais como os estamentos.

626 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Desse modo, quando se trata de um interesse individual na
tutela penal, faz-se isso sempre de maneira individualizada. Cuida-
se da liberdade do indivíduo, da integridade física do indivíduo, etc,
porque não há como se violar qualquer desses direitos sem que se
viole esse direito num indivíduo. Assim, deve-se questionar-se se há
como se tratar coletivamente um interesse individual. Essa é uma
interessantíssima questão de teoria do Direito Penal, da qual depen-
de a resposta para esse ponto. Caso não se possa tratar coletivamen-
te um interesse individual, tudo o que se estará fazendo é burlar a
Constituição, ao se coletivizar a tutela penal da vida com o intuito de
se afastar a competência do tribunal do júri.

11 RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS


BENÉFICA
A Constituição estabelece em seu art. 5º, XL, que “a lei penal
não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Se, a qualquer momen-
to, surgir nova lei penal que destine um tratamento mais brando ao
réu, passará ela a ter efeitos imediatos, alcançando o indivíduo em
questão.
O Estatuto de Roma, por outro lado, possui seu artigo 24

Art. 24.
Não retroatividade ratione personae
1. Nenhuma pessoa será considerada criminalmente respon-
sável, de acordo com o presente Estatuto, por uma conduta
anterior à entrada em vigor do presente Estatuto.
2. Se o direito aplicável a um caso for modificado antes de
proferida sentença definitiva, aplicar-se-á o direito mais fa-
vorável à pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada.

Como bem se pode ver, há outro grande potencial de conflito


aqui. Enquanto a Constituição não limita a retroatividade da norma
penal mais benéfica, o Estatuto a limita à hipótese de não ser

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Construção da Paz e Segurança Internacional
627
proferida sentença definitiva. Caso o réu já haja sido definitivamente
condenado, a mudança das normas não a beneficiará de jeito algum.
Cabe questionar se isso não viola a Constituição. Até onde é de nosso
conhecimento, a doutrina ainda não levantou a questão.

11 O ESTATUTO DE ROMA E A
INCONSTITUCIONALIDADE POR
ARRASTAMENTO
O Estatuto de Roma constitui todo um ordenamento jurídi-
co próprio – subordinado à Constituição, devido a sua supremacia
na ordem jurídica (DIMOULIS; SABADELL, 2009, p. 52) –, mas
ainda assim um ordenamento jurídico próprio. Suas normas en-
contram-se fortemente interligadas, numa grande relação de in-
terdependência. Dependendo do caso, pode ser que a invalidade de
apenas uma delas contamine todo o ordenamento, o minissistema,
sendo ele inválido. Tome-se, por exemplo, a previsão de vedação de
prisão perpétua, e partamos que ela seja de fato inconstitucional
no Brasil. Como todo o indivíduo entregue ao tribunal está sem-
pre propenso a receber essa pena, proibida pela Constituição, não
haveria, nunca, como entregá-lo à corte. Se não há como entregar
nunca alguém à corte, todas as demais normas do Estatuto per-
dem o seu sentido, de modo que não há como elas subsistirem no
ordenamento jurídico pátrio. Se uma norma inválida no Brasil for
tão central ao Estatuto de Roma, a ponto de sem ela ele perder seu
sentido, passará ele inteiro a ser inválido, uma vez que não tem
mais como ser aplicado.
Essa contaminação da invalidade, por grande atrelamento
das demais normas à norma que é de fato inconstitucional, tem re-
cebido pelo STF o nome de “inconstitucionalidade por arrastamen-
to”. Esse tipo de inconstitucionalidade já foi abordado em julgamen-
tos desse tribunal, como na ADI 1856, na ADI 2797 e na ADI 2895.

628 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
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12 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Tribunal Penal Internacional é importante meio para o
combate às graves violações de direitos humanos; possui um rol im-
portante de ferramentas para tal, constituindo-se em importante
meio para a construção da paz e a segurança internacional.
Por mais relevante que ele seja no cenário internacional, não
pode significar atropelo no âmbito nacional, e por diferentes razões.
Os fins não justificam os meios, de modo que não pode o Estatuto
de Roma prever medida incompatível com as determinações consti-
tucionais. Caso se o faça, agridir-se-á fortemente algum direito fun-
damental, com prejuízo enorme para o indivíduo e para a sociedade.
Caso o Estatuto contenha alguma inconstitucionalidade, e mesmo
assim ela seja aplicada, em nome de um bem maior, abre-se com isso
um precedente perigosíssimo, ameaçador de todos os direitos fun-
damentais do cidadão – os quais possuem uma grande proximidade
com os direitos humanos. Cair-se-ia no arbítrio e na imprevisibili-
dade, onde nenhum direito seria mais certo; poderia ele, a qualquer
hora, ser relativizado, com base na definição do intérprete de con-
ceitos amplíssimos e vaguíssimos como “justiça”, “bem comum” e
“bem maior”. O Estado Democrático de Direito, onde cada indivíduo
tem seu valor e deve ser protegido, repugna e rechaça tal arbítrio.
Ademais, isso representaria o ignorar da soberania popular,
o que levaria, provavelmente, ao fim da democracia. Não houve no
Ocidente, nos últimos séculos, conceito de democracia que não se
apoiasse na soberania popular; retirando-se esta, aquela desaba.
Cabe ao povo decidir o seu próprio destino, e não ser tutelado pelo
quadro internacional.
Deve-se, assim sendo, analisar com todo o cuidado as dispo-
sições do Estatuto de Roma frente à Constituição brasileira; não se
deve tolerar qualquer inconstitucionalidade, sob pena de conseqü-
ências das mais amargas.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
629
Assim, nesse trabalho, fez-se um breve levantamento da es-
trutura jurídica nacional, passando-se em seguida à análise pontos
ensejadores de eventuais inconstitucionalidades; principiou-se pelos
aspectos formais, seguindo-se nos materiais. Levantou-se a possi-
bilidade o Estatuto ter sido constitucionalizado no Brasil; hipótese
essa que, se correta, leva à superação de todas as inconstituciona-
lidades não nucleares que ele eventualmente contivesse, uma vez
que se trata agora de norma constitucional, com a capacidade de
derrogar as normas que lhe são contrárias. Mas, mesmo assim, ha-
veria problemas, uma vez que as inconstitucionalidades nucleares
não teriam sido sanadas mesmo nesse caso.
Como visto, caso haja inconstitucionalidade no Estatuto, e
caso ela seja referente a algo tão central ao seu funcionamento, de
modo que, sem a norma em questão, o Estatuto de Roma perca com-
pletamente sua razão de ser, todo ele acaba sendo contaminado pela
invalidade, conforme a teoria da inconstitucionalidade por arrasta-
mento. Desse modo, ele por inteiro deve não ser aplicado.
Essas são sempre hipóteses. Pode ser que o Estatuto seja ple-
namente compatível com a ordem constitucional vigente. Deve ser
feito ainda um cuidadoso estudo a respeito. Deve-se ter sempre em
mente, frise-se, que essa análise deve ter em mente a Constituição
em si, e não a construção da paz e da segurança internacional como
um todo. Senão, o que se terá serão concessões inadmissíveis, ami-
gas do arbítrio e da violação de direitos – e não avanço algum.

13 REFERÊNCIAS
ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. Manual de direito internacio-
nal público. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
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Reclamados: Bewilligungsentscheidung der Justizbehörde der Freien und Han-
sestadt Hamburg vom 24. November 2004 - 9351 E - S 6 - 26.4 – e Beschluss
des Hanseatischen Oberlandesgerichts Hamburg vom 23. November 2004 - Ausl

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Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
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632 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
7

MAKING OFF

A 4ª Semana de
Direitos Humanos
– Planejamento e
Organização
OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA
CATARINA E A IV SEMANA DE DIREITOS
HUMANOS
Ana Paula Althoff
Graduanda do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Cata-
rina e bolsista do Observatório de Direitos Humanos da UFSC

INTRODUÇÃO
Os direitos humanos exprimem uma relação entre o ser hu-
mano e a sociedade e entre os próprios seres humanos. Direitos hu-
manos são os direitos que toda pessoa tem por simplesmente ser um
ser humano. Existe uma diversidade de direitos, a maioria aplicada
a certo grupo de indivíduos. Contudo, os direitos humanos são os
únicos aplicados a todo ser humano, isto é, eles são universais. Esses
direitos podem ser encontrados na Declaração Universal de Direitos
Humanos, o documento mais aceito no mundo sobre o assunto, as-
sinado após a catastrófica Segunda Guerra Mundial. Ao todo, são
trinta artigos que compõem a Declaração, os quais defendem que
toda pessoa deve ter a sua dignidade respeitada e a sua integridade
protegida, independentemente da origem, raça, etnia, gênero, idade,
condição econômica e social, orientação ou identidade sexual, credo
religioso ou convicção política.
Toda a pessoa deve ter garantido seus direitos civis (como o
direito à vida, segurança, justiça, liberdade e igualdade), políticos
(como o direito à participação nas decisões políticas), econômicos
(como o direito ao trabalho), sociais (como o direito à educação, saú-

634 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
de e bem-estar), culturais (como o direito à participação na vida cul-
tural) e ambientais (como o direito a um meio ambiente saudável).
Nos últimos anos, com o objetivo de promover e proteger os
direitos humanos, observamos a atuação de numerosos agentes que
têm implementado atividades no campo da educação em direitos hu-
manos. Dentro dessa perspectiva, o Observatório de Direitos Humanos
versa sobre integração multidisciplinar, unindo o conhecimento aca-
dêmico e científico a comunidade através da divulgação desta diver-
sidade na Semana de Direitos Humanos, nos seus respectivos Anais e
nas ações de cidadania ocorridas durante o ano de 2013.
O Observatório de Direitos Humanos propõe, por meio da Se-
mana de Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catari-
na, fomentar a divulgação dos demais projetos de extensão e iniciati-
vas extensionistas da UFSC e da comunidade local e regional em prol
dos direitos humanos. A Semana de Direitos Humanos, com base no
modelo europeu, é promovida pelo Observatório de Direitos Huma-
nos, que está inserido em uma Universidade de expressão regional e
nacional, com o intuito de reunir, num espaço democrático, atores da
sociedade civil, da comunidade universitária, dos movimentos sociais,
para juntos, pensar ações em prol dos direitos humanos.
Neste sentido, o Observatório de Direitos Humanos propõe-
-se a integrar, por meio do evento Semana de Direitos Humanos
da UFSC, as iniciativas extensionistas realizadas dentro e fora da
universidade em prol da promoção e defesa dos direitos humanos,
reunindo atores sociais, estudantes e docentes de todas as áreas do
conhecimento, visando por meio da divulgação conjunta, ampliar a
participação de todos em projetos semelhantes.
A Semana de Direitos Humanos não é, todavia, o único proje-
to de extensão do Observatório, que realiza ao longo do ano, diversos
seminários e palestras visando promover os direitos humanos em
seus mais variados temas e perspectivas.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
635
Os resultados obtidos com a Semana de Direitos Humanos
são reunidos nos Anais do evento. Os Anais da Semana de Direitos
Humanos é outro projeto de extensão que é realizado após a conclu-
são dos trabalhos da Semana de Direitos Humanos. Os Anais con-
têm todos os textos produzidos durante o evento, artigos de pesqui-
sadores locais e convidados, exposição fotográfica realizada durante
o evento e bastidores, entrevistas, opiniões, críticas e depoimentos
dos voluntários que trabalharam no evento. Os Anais da I, da II e da
III Semana de Direitos Humanos podem ser vislumbrados no site
www.direitoshumanos.ufsc.br

JUSTIFICATIVA
O Observatório de Direitos Humanos da UFSC foi criado em
2010, quando a I Semana de Direitos Humanos celebrou o aniver-
sário da Convenção Americana de Direitos Humanos. Neste ano de
2013, o Observatório se propôs a refletir sobre a Construção da Paz e
Segurança Internacional.
A concepção de segurança internacional, que era entendida
como o uso da força militar contra outros países, alterou-se drasti-
camente nas últimas décadas. Novos atores, novas agendas e novos
parâmetros incorporam o atual entendimento sobre segurança inter-
nacional. A construção da paz, uma estrutura de vários níveis e que
deve ser construída dentro e fora das nações, é tema pertinente no
sistema global. O empenho para a edificação de uma paz sustentável,
e não apenas de uma situação de ausência de guerra, é grande entre os
pesquisadores, organismos internacionais e os Estados, ao quais ne-
cessitam criar condições favoráveis para o desenvolvimento humano
sustentado, para amparar os direitos básicos do homem.
Nem todos têm consciência de que possuem esses direitos
ou da complexidade de assuntos que decorrem deles. Nesse sentido,
evitar que se transformem em meros conceitos, limitados à teoria, as
pessoas devem refletir tanto individualmente como em grupo e esta-
belecer vínculos entre os Direitos Humanos e sua vida. Partimos da

636 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
base que eles só se tornam reais se a população for bem informada
e de que só são eficientes se ela sabe como agir no caso de violação
desses direitos.
É essa relação de convivência humana que precisa ser
revista, para que possamos caminhar na perspectiva de construir
uma sociedade humana, livre, igualitária e justa, e quem sabe, num
futuro próximo, contribuir para que em nosso planeta exista paz.
Vista da grande importância, nossa proposta foi realizar o pro-
jeto Semana de Direitos Humanos atingindo os docentes da UFSC e
os discentes de pós-graduação e graduação. O projeto também visou
à integração entre as linhas de pesquisa em direitos humanos e os
programas de pós-graduação com área de concentração em Relações
Internacionais da UFSC. O tema da IV Semana de Direitos Huma-
nos, que ocorreu em junho deste ano, foi a Construção da Paz e Se-
gurança Internacional. Para tal, foi feita uma reflexão em torno do
processo de consolidação dos direitos humanos em âmbito interna-
cional, através da participação de historiadores, internacionalistas e
pesquisadores da área do Direito, Economia, Ciências Sociais, Artes
e Sociologia.
O evento justificou-se por seu impacto social e relevância in-
ternacional, sendo um dos temas da agenda internacional brasileira,
bem como uma das metas de desenvolvimento do milênio: a promo-
ção e efetivação dos direitos humanos no plano nacional, regional
e local. Assim, a quarta edição da Semana de Direitos Humanos da
UFSC possibilitou este espaço de diálogo entre a comunidade uni-
versitária, a sociedade civil e seus diversos atores sociais, fomentan-
do a divulgação e a reflexão dos direitos humanos ao público atingi-
do pela Semana.
Por se tratar de um assunto interdisciplinar, envolve pós-gra-
duandos, graduandos e professores de Administração, Agronomia,
Artes Cênicas, Ciência e Tecnologia Agroalimentar, Ciências Bioló-
gicas, Ciências Contábeis, Ciências da Computação, Ciências Eco-
nômicas, Ciências Sociais, Cinema, Design, Direito, Educação Física

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
637
(bacharelado e licenciatura), Enfermagem, Engenharias, Farmácia,
Filosofia, Geografia, História, Jornalismo, Letras - Língua Alemã, Le-
tras - Língua Espanhola, Medicina, Nutrição, Oceanografia, Odon-
tologia, Pedagogia, Psicologia, Química, Relações Internacionais e
Serviço Social.
A Semana de Direitos Humanos da UFSC abrangeu a socie-
dade civil como um todo, através dos servidores da UFSC e da comu-
nidade que vive em torno da universidade.
No tocante à pós-graduação, a IV Semana de Direitos Hu-
manos da UFSC visou aproximar os programas de pós-graduação
com área de concentração em Relações Internacionais da univer-
sidade, em especial os programas de mestrado em Direito (área de
concentração em Relações Internacionais) e em Relações Interna-
cionais.

OBJETIVOS, RECURSOS E METODOLOGIA


O evento se propôs a despertar a comunidade universitária e
a sociedade civil para o “pensar na promoção e efetivação dos direi-
tos humanos”, visando fomentar o “pensar em soluções compar-
tilhadas”. A IV edição da Semana de Direitos Humanos propiciou
um importante debate em torno da temática, ao reunir pesquisa-
dores dos mais diversos centros de pesquisa, nacionais e interna-
cionais, além de profissionais com atuação em órgãos públicos e
organismos internacionais, como a Organização das Nações Uni-
das (ONU).
Deste modo, como objetivos específicos, a Semana tem o in-
tuito de promover a integração entre os grupos de pesquisa e exten-
são em direitos humanos atuantes na UFSC; possibilitar reflexões
éticas e valores morais; integrar os projetos que abordam a temá-
tica dos direitos humanos na UFSC e demais universidades cata-
rinenses e brasileiras; apresentar os instrumentos internacionais e
nacionais de proteção aos direitos humanos à comunidade; possibi-

638 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
litar a integração entre os programas de pós-graduação em Relações
Internacionais e Direito da UFSC, que possui área de concentração
em Relações Internacionais; respeitar as diferenças em suas diver-
sas dimensões; comprometer-se com a construção da cultura de paz
na comunidade; promover a compreensão da história da construção
dos direitos humanos tanto nacional quanto internacionalmente;
aproximar os professores com linhas de pesquisa em Direito Inter-
nacional dos Direitos Humanos; refletir sobre o novo conceito de
segurança internacional e a construção da paz para a efetivação dos
direitos humanos no mundo.
Observando os objetivos, algumas atividades foram propos-
tas e realizadas pelo projeto. Entre elas, o Observatório promoveu
debates, palestras, seminários, mesas-redondas e minicursos sobre
a temática, com professores e profissionais da área qualificados;
reuniu nas diversas atividades acadêmicas professores dos progra-
mas de mestrado em Direito (área de concentração em Relações
Internacionais) e Relações Internacionais da UFSC, objetivando
fortalecer a linha de pesquisa em Direito Internacional dos Direi-
tos Humanos e a integração entre os dois programas e possibilitou
aos diversos grupos de dança, fotografia, música, artes em geral,
educação física, dentro outros, apresentar e divulgar seus projetos
em prol da comunidade.
Para que tudo ocorresse, foram necessários recursos, com in-
fraestrutura humana e física. O projeto foi composto atualmente de
8 (oito) bolsistas de extensão, 6 (seis) estudantes voluntários e as
professoras responsáveis por coordenar o projeto, assim como de-
mais professores e estudantes da UFSC que participam do evento
anualmente. Além disso, contou-se com um gabinete compartido
com outro docente com acesso à internet e espaço para reuniões,
com material de escritório e alguns móveis. A UFSC disponibilizou
auditórios do Centro de Ciências Jurídicas e do Centro Socioeconô-
mico, possibilitando a integração entre os pesquisadores dos dois
centros de ensino da Universidade.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
639
A metodologia deste projeto consistiu no planejamento das
atividades da Semana de Direitos Humanos, ao longo dos meses
que antecedem o evento e na seleção, organização, edição e publi-
cação dos Anais do evento, nos meses posteriores. O Observatório
foi separado em Comissões, para melhor atender a demanda do
evento. São elas: a Acadêmica, a de Cidadania, a de Marketing, e a
de Parcerias.
A Comissão Acadêmica é responsável por contatar palestran-
tes, organizar as oficinas com os grupos de estudos da UFSC, realizar
debates e minicursos, planejar a palestra de abertura e de encerra-
mento da Semana de Direitos Humanos. Posteriormente é respon-
sável pela seleção dos textos e material a ser utilizado na publicação
dos Anais do evento.
A Comissão de Cidadania organiza as atividades que serão
realizadas junto à sociedade, promovendo a interação entre os alu-
nos e a comunidade. Também é responsável pela parceria do Obser-
vatório de Direitos Humanos com projetos dos cursos da UFSC, como
odontologia, educação física, enfermagem, entre outros, abrindo
portas para que outros projetos possam alcançar um público diver-
sificado. Após o evento, é responsável pelo relatório das atividades,
pelas fotos e pelas entrevistas dos participantes, que serão publica-
dos nos Anais do evento.
A Comissão de Marketing tem a responsabilidade de atuali-
zar as mídias sociais e o website do evento, cuidar da parte gráfica
e confecção de cartazes e material de divulgação. Após o evento, é
responsável pela diagramação dos textos, fotos e transcrição das gra-
vações que serão utilizadas na publicação dos Anais do evento.
A Comissão de Parcerias estabelece acordos entre o Obser-
vatório e sujeitos públicos ou privados, individuais ou coletivos,
como órgãos públicos, empresas privadas, organizações internacio-
nais, ONGs, órgãos de fomento, entre outras entidades para a rea-
lização do evento. Junto com a Comissão de Cidadania, desenvolve
parcerias com empresas privadas para a concretização das ativida-

640 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
des. Busca apoio dos órgãos públicos, como o MRE, de organiza-
ções internacionais, como a Cruz Vermelha, e ONGs, como a Casa
São José.

IV SEMANA DE DIREITOS HUMANOS


Na quarta edição da Semana de Direitos Humanos, que ocor-
reu nos dias 3 a 5 de junho de 2013, o tema abordado foi a Constru-
ção da Paz e Segurança Internacional. O evento é composto por ati-
vidades acadêmicas e de cidadania, que inclui palestras, mini cursos
e capacitações durante todo o ano e atividades que proporcionam
maior integração entre o mundo acadêmico e a comunidade. Desde
a parte de logística até o contato com palestrantes e a comunidade,
as atividades ofereceram experiência e estímulo a dar continuida-
de ao projeto, em busca do aperfeiçoamento deste evento que já é
reconhecido pelos acadêmicos e docentes da UFSC. Os resultados
alcançados pelas comissões são muito satisfatórios, pois envolvem
um público eclético interessado pelo evento.
Neste ano, temas como “a paz como imperativo de proteção
aos direitos humanos”, “conflitos armados e intervenções humani-
tárias”, “refugiados no mundo e no Brasil”, “tráfico de pessoas” e
“segurança internacional e meio ambiente” foram tratados no even-
to. Assim, contamos com palestrantes de renome do Brasil e de ou-
tros países, como Dra. Soledad García Muñoz (Instituto Interameri-
cano de Direitos Humanos – Escritório América do Sul – Uruguay),
Dr. Andrés Ramirez (ACNUR/Brasil) e Dra. Susana Borràs Pentinat
(URV - Espanha).
Além da parte acadêmica, o Observatório de Direitos Huma-
nos também desenvolveu atividades de cidadania durante o ano, em
que houve a interação entre os estudantes da universidade com pro-
jetos de alunos da própria universidade, projetos da comunidade e
entre servidores públicos. As atividades desenvolvidas foram: doa-
ção de sangue, parceria com o Núcleo de Estudos da Terceira Idade

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
641
(NETI) e o grupo de Dança El Tango, capacitações em Direitos Hu-
manos aos professores, líderes comunitários e estudantes da UFSC e
doações à creche “Céu da Dona Ana”.

DOAÇÃO DE SANGUE
Nas últimas décadas,
a ciência avançou a passos
largos. Contudo, ainda não
foi encontrado um substitu-
to para o sangue humano. O
sangue é um transportador
de substâncias necessárias
para o bom funcionamento
corporal. Todos os procedi-
mentos médicos que neces-

sitam de transfusão sanguínea


precisam dispor de um forne-
cimento regular e seguro de
sangue. Todos os dias ocorrem
acidentes, cirurgias e queima-
duras violentas, assim como
portadores de hemofilia, leu-
cemia e anemias necessitam
de transfusão de sangue. Por
isso é essencial que os ban-
cos de sangue sempre este-
jam abastecidos.
Doar sangue é simples, rápido, sigiloso e seguro, já que todo o
material utilizado é descartável e a coleta é feita por pessoal capaci-
tado. A coleta de sangue constitui na retirada de aproximadamente
450 ml de sangue e apenas uma transfusão pode salvar até 4 (qua-
tro) vidas!

642 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Além de beneficiar outro indivíduo, no estado de Santa Cata-
rina, a lei nº 10.567, de 7 de novembro de 1997, afirma que o doador
de sangue fica isento do pagamento de taxas de inscrição a con-
cursos públicos realizados pelo estado, equiparando-se a doador de
sangue para os efeitos desta lei, a pessoa que integre a Associação de
doadores e que contribua, comprovadamente para estimular de for-
ma direta e indireta, a doação. Além disso, o doador é incluído entre
os que prestam serviços relevantes à sociedade e à Pátria.
Segundo o HEMOSC, se cada pessoa saudável doasse sangue
espontaneamente pelo menos duas vezes ao ano, os Hemocentros
teriam hemocomponentes suficiente para atender toda população.
Na IV Semana de Direitos Humanos, o Observatório reali-
zou a terceira Doação de Sangue ao Hospital Universitário Professor
Polydoro Ernani de São Thiago (HU). Em parceria com a Comissão
Organizadora da Gincana do Centro Socioeconômico, voluntários,
bolsistas e calouros realizaram a doação nos dias 27 e 28 de março
e 11 de abril durante o período matutino. Esta ação tem o objetivo
de mostrar que ninguém está livre de precisar de uma transfusão
de sangue, por isso a doação voluntária é indispensável para banco
de sangue dos hospitais. Além disso, durante o período das férias,
há poucas doações, fazendo com que o estoque de sangue diminua
drasticamente.
Como resultado podemos observar a integração entre os alu-
nos por esta grande causa, fazendo com que esta ação se torne con-
tínua. Além disso, muitos estudantes afirmam que não tinham co-
nhecimento do local onde pode realizar a doação, como ela ocorria,
quais os procedimentos, ou que não sabiam que os instrumentos
eram descartáveis. Desta forma, foi desenvolvida a ideia de que o ato
de doar sangue é uma atitude necessária, de solidariedade, cidada-
nia e amor.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
643
TANGO E OS DIREITOS HUMANOS
A dança, assim como as demais manifestações artísticas, é uma
via de expressão capaz de representar diferentes ideias. Na Argentina,
o tango tornou-se sinônimo de paixão, melancolia e liberdade.
A Liberdade, tanto de expressão, de pensamento quanto
qualquer outra, é um dos principais direitos dos cidadãos. Na cidade
de Buenos Aires do ano de 1900, imigrantes, “gaúchos” e ex-escra-
vos viviam em más condições de higiene e trabalhando com míseros
salários. O surgimento do tango ocorreu pela grande necessidade
desse grupo, que privados de todos os seus direitos básicos, busca-
ram sua liberdade com o único recurso de que eram realmente do-
nos: seus corpos.
O tango é dançado em todo o mundo e como consequência
declarado patrimônio da humanidade. Sobre o seu surgimento se há
dito todo o tipo de coisas, a mais conhecida é a versão na que se dan-
çava somente entre homens e por prostitutas, porque as mulheres de
“boa família” dançavam somente as danças europeias. Mas o tango
se dançava também pela periferia dando início a uma dança popular,
completamente original, uma ótima herança cultural.
O tango é uma dança de caráter marcadamente social o que o
torna um espaço privilegiado de encontro, comunicação e expressão.
Tango é uma prática aberta à liberdade individual e à criatividade.
Nos dias atuais, questões relativas à terceira idade vêm ga-
nhando importância, já que o processo de envelhecimento populacio-
nal vem crescendo nos últimos anos. “Mexer o esqueleto” é uma ta-
refa para todas as idades. A dança é uma ótima opção para pessoas da
terceira idade. Encontram-se estreitas relações entre a dança, a qua-
lidade de vida e o idoso. É uma atividade que promove o bem-estar.
As contribuições para a saúde física e mental, como ganhos
ligados à força, ritmo, agilidade, equilíbrio e flexibilidade são gran-
des. Elas podem retardar as doenças e a dança muitas vezes é reco-
mendação médica para amenizar sintomas de doenças como hiper-

644 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
tensão, obesidade, osteoporose, depressão e problemas de memória.
Na dança, as pessoas de terceira idade também estimulam a mente,
a atenção, a concentração e a memória. Além disso, a prática dimi-
nui o stress e a ansiedade, além de melhorar a autoestima.
Entre as atividades confirmadas está a aula de tango, uma
reedição da atividade de muito sucesso da Semana realizada na pri-
meira e segunda edição, juntamente com o Núcleo de Estudos da
Terceira Idade.
O Núcleo de Estudos da Terceira Idade (NETI) há 30 ANOS
abre um mundo de conhecimentos. Os objetivos do Núcleo são am-
pliar e sistematizar o conhecimento da gerontologia; formar recursos
humanos nos diversos níveis; manter atividades interdisciplinares
de ensino, pesquisa e extensão; divulgar e desenvolver ações insti-
tucionais e interinstitucionais; assessorar entidades na organização
de programas de valorização do idoso; oferecer subsídios para uma
política de resgate do papel do idoso na sociedade brasileira e reali-
zar treinamentos, palestras e consultorias na área da gerontologia.
O objetivo da iniciativa foi alcançar os mais variados grupos
e promover a integração entre os graduandos e os alunos da terceira
idade. Além disso, o intuito da Comissão de Cidadania foi integrar
as diferentes atividades de educação e saúde desenvolvidas com as
pessoas idosas no âmbito do NETI e da UFSC promovendo um espa-
ço de animação e sociabilidade.
Como resultado das outras atividades realizadas com o NETI,
a iniciativa teve uma boa recepção pelas alunas, que gostaram muito
da ação e disseram estar dispostas a participar novamente do evento.

DOAÇÃO À CRECHE “CÉU DA TIA ANA”


Uma creche é um espaço assistido, em que pedagogos res-
ponsáveis administram a rotina da criança promovendo o desenvol-
vimento cognitivo e motor. Muitos pais utilizam os serviços da cre-
che por motivo de trabalho.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
645
Atualmente, há 1,4 milhão de crianças em creches no País.
A maior parte está em estabelecimentos públicos e cerca de 500 mil
estão nos berçários, como a unidade é chamada em escolas particu-
lares. Deixar a criança em uma creche pode ser importante para o
seu desenvolvimento. Estímulos com música, cores e brincadeiras,
além da socialização, são as bases da educação infantil. As creches
têm um papel fundamental no aprendizado e no desenvolvimento
dos indivíduos.
Nos dias de hoje, infelizmente, várias creches necessitam de
doações para manterem seus serviços. O ato de doar é de extrema
importância, pois se auxilia os que necessitam de apoio e também é
um incentivo para a tal ação seja praticada por outras pessoas. Con-
tribuir com instituições é um ato de solidariedade.
Tendo em vista a extrema importância do ato de doar, a equi-
pe do Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC) realizou no dia 13 de março uma doação
à creche “Céu da Dona Ana” situada no humilde bairro Dona Ja-
naína, localizado no município de Biguaçu, Grande Florianópolis.
A ação foi iniciada quando Fernando Damázio, estudante do curso
de Relações Internacionais da UFSC, teve o interesse em doar uma
geladeira, uma máquina de lavar roupas e um botijão de gás. O alu-
no procurou o Observatório, que entrou em contato com a creche, a
qual atende crianças carentes da comunidade. A instituição é uma
iniciativa da professora Ana, que auxilia aproximadamente 10 famí-
lias. Atualmente, atende 28 crianças e mantém a instituição apenas
com doações, sem cobrar nada dos pais dos meninos e meninas que
frequentam a creche, nem recebendo apoio financeiro do municí-
pio. Observando tal situação, participantes do Observatório de Direi-
tos Humanos da UFSC auxiliaram na doação dos eletrodomésticos,
além de um aspirador de pó que posteriormente foi arrecadado, a
uma instituição que há 14 anos oferece apoio pedagógico e cuidados
às crianças do bairro.
No mês de junho e outubro, o Observatório realizou novas
doações. Tendo em vista as necessidades da instituição e a grande

646 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
importância da doação para que a iniciativa prossiga, vários itens,
como roupas (mais de 60 itens), comida (mais de 105 quilos) e ma-
terial escolar foram arrecadados. Tudo isso com o apoio dos Cen-
tros Acadêmicos, como o de Relações Internacionais e o de Direito,
e parceria com a Ação Júnior, empresa júnior do Centro Socioeco-
nômico, como ocorreu em edições anteriores do evento. Para o mês
das crianças, o Observatório criou o projeto “Adote uma Criança”.
Voluntários entraram em contato com o Observatório com o intuito
de participar do projeto. Ele consistia na arrecadação de kits para as
crianças. Cada criança recebeu um kit que continha: material esco-
lar (caderno, borracha, lápis de escrever e giz de cera), material de
higiene pessoal (escova de dente, toalha de rosto) e um brinquedo
individual. Foi também durante o projeto que materiais escolares
foram arrecadados para a creche.

CAPACITAÇÕES
Pela primeira vez, o
Observatório de Direitos Hu-
manos realizou capacitações
aos funcionários que estão em
estágio probatório na UFSC,
para graduandos, servidores

e também com a comunida-


de a partir de Conselhos Co-
munitários. Houve mais de 5
capacitações e as temáticas
envolvendo casos atuais so-
bre direitos humanos.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
647
O objetivo dos Conselhos Comunitários é criar uma comuni-
cação e um relacionamento permanente entre a comunidade e pro-
gramar projetos que contribuam para o desenvolvimento socioeco-
nômico do município. Tendo em vista tais objetivos, o Observatório
de Direitos Humanos, em parceria com o Instituto de Desenvolvi-
mento e Direitos Humanos, realizou uma capacitação em liderança
em direitos humanos.
O Brasil tem passado por um processo de expansão do ensino
superior. Mas, para isso, é necessário que este crescimento venha
acompanhado a uma crescente qualidade da formação dos professo-
res. O ensino superior ganhou mais importância e mais responsabi-
lidade em relação à inovação e ao desenvolvimento econômico.
Deste modo, as capacitações oferecidas pelo Observatório ti-
veram a finalidade de auxiliar na formação de bons professores, e,
consequentemente, de uma geração de estudantes qualificados, ne-
cessários parra o crescimento do país em todas as esferas.

EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA
Seguindo a mesma ideia dos eventos anteriores, a exposição
de fotos tem como objetivo conscientizar o maior número possível de
pessoas sobre a importância dos direitos humanos e como ele é fator
comum no dia a dia dos indivíduos. A edição teve como intuito princi-
pal informar a comunidade acadêmica a respeito da situação da popu-
lação onde ocorrem conflitos armados e intervenções humanitárias.
Devido ao grande objetivo da exposição, a exposição perma-
neceu durante os três dias da IV Semana de Direitos Humanos para
que, além dos acadêmicos inscritos no evento, as demais pessoas
possam prestigiar a mostra fotográfica. O local escolhido foi o hall
da Biblioteca Universitária e do CSE, em que há grande circulação
de pessoas.
O objetivo principal dessas exposições vai além da conscien-
tização sobre direitos humanos, mas também de mostrar que não é

648 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
necessário ser um fotógrafo profissional para presenciar situações
em que os direitos humanos são violados ou defendidos e que pes-
soas comuns têm o poder de mostrar e até mesmo ajudar quem pos-
sui seus direitos e liberdades reprimidos.

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650 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:
Construção da Paz e Segurança Internacional
651
CAMISETA DO OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS

Durante o primeiro semestre de 2013 o Observatório teve


como bolsistas dois graduandos em Design pela UFSC, Jean Franco
e Fernando Vargas. Enquanto estiveram na equipe, foram eles os
responsáveis por toda a parte de arte, divulgação e comunicação do
Observatório.

652 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
S

Dentre as atividades por eles desenvolvidas, destaca-se a ca-


miseta do Observatório de Direitos Humanos, a qual foi criada para
reforçar a identidade visual e facilitar a identificação de bolsistas,
voluntários, coordenadores e membros do Observatório de maneira
geral, e foi usada por toda a equipe durante a IV Semana de Direitos
Humanos.

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
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EQUIPE

Danielle Annoni
Juliana Lyra Viggiano Barroso
Amandha Grübel Nunes
Ana Paula Althoff
Camila Dabrowski de Araújo Mendonça
Carolina Nascimento Santana
Caroline Scotti Vilain
Claudemir da Silva
David Fernando Santiago Villena Del Carpio
Eduarda Ramos de Souza
Fernando Duarte Vargas
Giana da Silva Wiggers
Isadora Durgante Konzen
Jade Philippe dos Santos
Jean Lucas Franco

654 Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC: IV SEMANA DE


Construção da Paz e Segurança Internacional DIREITOS HUMANOS
CONSTRUÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL
Krisstarah Dayane Lobo
Letícia Ferreira Haines
Lívia Campos Silva de Souza
Maria Luísa Lange
Mariana Serrano Silvério
Priscilla Batista da Silva
Priscilla Camargo Santos
Tatiana de Andrade Goulart
Thyana Carolina Spode Conrad
Victor Hugo Lopes

Organização
Priscilla Batista da Silva
Jade Philippe dos Santos
Maria Luísa Lange

Anais da 4ª Semana de Direitos Humanos da UFSC:


Construção da Paz e Segurança Internacional
655
Realização:

Observatório de
Direitos Humanos
UFSC

Apoio:

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