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Resenha James Clifford
Resenha James Clifford
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Graduandos em Ciência Sociais
Assim, argumenta Clifford, a etnografia tradicional liga-se historicamente a
este discurso surgido no século XVII, onde a cientificidade, o positivismo, a
objetividade e a empiria advogam uma posição de neutralidade e
universalidade em seus conhecimentos. Clifford faz duras críticas a esse
posicionamento, vai às suas raízes históricas para nelas evidenciar justamente
os seus elementos contraditórios, que desconstroem a legitimidade que essa
discursividade arroga para si. Questiona a própria possibilidade pleiteada de
neutralidade e de objetividade, não no sentido de negar a etnografia o caráter
científico, mas, de modo a reflexivamente negar e situar historicamente os
critérios que foram utilizados para referenciar essa legitimidade do discurso
etnográfico.
Clifford oferece, na medida que elenca essas convenções de legitimação do
discurso etnográfico, os argumentos que desconstroem a possibilidade de fazer
da etnografia uma ciência nos moldes desse discurso tradicional, questiona e
desconstrói de forma contundente, inclusive, a possibilidade de que esses
critérios pudessem um dia ser atendidos. Para Clifford, não faz sentido essa
busca pela objetividade da etnografia baseada na neutralidade, objetividade,
sincronicidade e na própria relatabilidade da experiência baseada na
observação participante, segundo o autor, a etnografia, mesmo quando
defendeu essa espécie de autoridade, baseada na própria experiência do
etnógrafo, enquanto observador, relatando objetivamente as coisas tal como
aconteceram, nunca foi ausente da subjetividade que buscava expurgar. Há ,
ao seu ver , uma impossibilidade de excluir da etnografia tanto as dimensões
da subjetividade, da literariedade, quanto do caráter político do discurso
etnográfico, pois está, mesmo nas condições em que Malinowski ou Ruth
Benedict as escreveram, sempre foram construções relacionados a própria
retoricidade e literariedade da escrita e a subjetividade e contextualizadas no
lugar, no espaço social ocupado pelo etnógrafo e nas relações de força e poder
incontornáveis com seus interlocutores "nativos".
Ou seja, a etnografia sempre foi escrita, sempre poética e literária, sempre
política e parcialmente construída, embora, nunca antes discutida
reflexivamente por seus autores nesses termos. A etnografia simulava, com o
uso da própria retórica e de modos de expressão literariamente convencionais,
um distanciamento, uma objetividade, uma universalidade e uma legitimidade
impossíveis, apenas construídas discursivamente, fazendo uso dos próprios
meios expressivos que argumentava não interferirem nesse processo. Desse
modo, o autor conclui, a etnografia sempre fora subjetiva, literária e política,
seus relatos, na medida em que construídos, selecionados e retoricamente
(figurativamente) organizados pelo etnógrafo, sempre foram parciais, ou seja,
nunca puderam, como convencionalmente afirmava-se, descrever a totalidade
dos modos de existência relacionados a uma determinada cultura, quem dirá,
as estruturas e a totalidade das culturas humanas. O autor chega a afirmar que
a etnografia pode ser entendida como uma “ficção etnográfica”, recorrendo ao
conceito de ficção em duas dimensões complementares, de que ela é
construída socialmente, literariamente e também que , em uma certa
perspectiva, é ‘falsa”, no sentido de que , embora baseada em elementos de
uma realidade observada, os aspectos transpostos de uma realidade
observada sempre são interpretados, selecionados e agrupados
discursivamente e hierarquicamente a partir do lugar do etnógrafo. Nesse
sentido, o significado do título, "verdades parciais", diz respeito não somente a
parcialidade no que se refere a elementos que escapam ao olhar do
antropólogo, mas que sua própria posição, gênero, sexualidade,
nacionalidade,institucionalidade e intencionalidade influenciam a invenção, a
narrativa escrita como resultado do trabalho etnográfico. Ou seja, na própria
ausência de neutralidade.
Desse modo, mesmo que inicialmente buscasse para si uma posição alheia
à história, às relações de poder e de força que a sua própria presença em
campo constitui, que a sua própria escrita de modo relacional expressa, o
etnógrafo, está, inevitavelmente, sujeito a essas dimensões inerentes ao
próprio ofício a que se dedica.
Nessa linha de raciocínio, a de que as etnografias são “agrupamentos de
discursos” e estão imersas de modo relacional em relações de poder e nos
próprios modos expressivos e retóricos que a compõe, o autor defende que
esta não é razão para pensar que a etnografia não seja científica ou objetiva,
mas que esses critérios constitutivos "do bom trabalho etnográfico" são
passíveis de transformações, não determinados, e podem ser discutidos e
questionados de modo reflexivo.
Se a etnografia não é neutra e seus relatos expressam verdades que são
parciais, no sentido anteriormente expresso, o autor conclui, então, a
incorporação de um “senso de parcialidade” e a construção da etnografia com
uma atitude de reflexividade é possível e pode enriquecê-la. Há a descida do
antropólogo da redoma em que se escondia, "olhando sem ser visto",
"escrevendo em ser incomodado", da pretensão de um espaço privilegiado,
para um lugar problematizado e de reflexividade, no qual esses elementos,
antes escamoteados, são amplamente discutidos e apropriados na própria
escrita etnográfica. A objetividade, segundo o autor, é algo possível de
alcançar mesmo com a incorporação do subjetivo, com o que há de literário,
com o que há de poético e político. Traz, como ponto central para a
especificação do espaço ocupado pelo próprio etnógrafo e o discurso
etnográfico, que este busque dimensionar à sua escrita a relação com os seus
interlocutores, na descrição que faz da cultura, tornando-se o etnógrafo, na
medida que reflete sobre o que observa, abertamente sensível à posição a
partir da qual observa, a relação e aos efeitos de sua presença em campo, e,
mesmo a retoricidade e literariedade da dimensão escrita de seus relatos.
Clifford, ainda situa historicamente uma série de tendências históricas que
julga essenciais para o advento da subjetividade e da própria problematização
do lugar ocupado pelo antropólogo, a saber, o contexto da colonização, do
declínio do imperialismo, do movimento da “negritude”, apresentado por
autores como Aimé Césaire, em suma, um conjunto de transformações que
passaram a problematizar a posição do antropólogo, seja enquanto agente da
empreitada colonial, seja enquanto ator político. Essa fragmentação da
antropologia tradicional abriu espaço para a incorporação de outras
perspectivas, hermenêuticas, fenomenológicas e sociológicas, para uma
subjetividade maior.
Há o próprio surgimento do relato de campo, como um subgênero da
etnografia, no qual antropólogo deixa transparecer a sua impressão subjetiva.
Também, aponta Clifford, desponta a questão da autoridade etnográfica, que
passa por processos de inovação em diferentes aspectos, com o surgimento do
“etnógrafo nativo”, de relatos polifônicos, nos quais a própria autoria é
problematizada.
O autor traz duas pesquisas etnográficas, a primeira onde o autor, Richard
Price, apresenta um relato onde incorpora reconhecidamente um senso de
parcialidade, e, a partir deste, construiu uma etnografia na qual, de modo
reflexivo, preenche na mesma medida que constrói as lacunas de sua
narrativa, a segunda chamada “The Sun Dance and other ceremonies of the
Oglala division of the Teton Sioux”, de “autoria” de James Walker, em que são
agrupados uma série de relatos etnográficos díspares, inclusive, um desses, de
um etnógrafo nativo, onde a própria questão da autoria e da autoridade
monofônica é destituída, abrindo espaço para um trabalho que incorpora
diversas "autoridades etnográficas" num discurso polifônico e inovador.
MATERIAL REFERENCIAL
CLIFFORD, J. Introdução: verdades parciais. In: CLIFFORD, J. e MARCUS, G. A
escrita da cultura: poética e política da etnografia. Rio de Janeiro: UERJ/Papéis
Selvagens, 2016 (1986)