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Escolhida Pelo Destino Luiza Ranuzzi
Escolhida Pelo Destino Luiza Ranuzzi
Com amor,
Luiza.
Para todos os leitores, que usam as
histórias para escapar da solidão.
Vida nasce.
Vida morre.
Quando o mal ascender
E a escuridão ganhar poder
Na luz existe a resposta
Da luz foi criada àquela que
Pura
Equilibrará bem e mal
Fará da escuridão
Casa
Fará da luz
Poder
E protegerá os mundos
Ela há de ser sua rainha
Porque ela será salvação
Ela estava correndo porque sua vida dependia disso. Seu coração
batendo na garganta. Seus músculos protestando, cada vez que seu pé
descalço tocava a terra molhada. O vestido de Francesca já estava
encharcado e destruído pela lama que cobria o solo. Seu corpo pedia um
tempo, mas ela era incapaz de desistir agora. Não queria morrer. Não hoje.
Ainda não. Não estava pronta.
Passou a vida toda na sarjeta. Como um rato no esgoto desta cidade
pútrida. A cidade que nunca lhe acolheu, que lhe acusou de bruxaria por
carregar uma marca na pele, com a qual já nascera e não tivera nenhum
poder de escolha sobre. Foi amaldiçoada pelos deuses, ou pelo deus daquela
cidadela, muito antes de ao menos saber falar. Em seu primeiro choro, sua
própria família lhe deixou no relento, ainda bebê.
Amaldiçoada pelo deus da fortuna.
Marcada para morrer.
A floresta começou a se abrir mais, as árvores ficando mais
espaçadas e o caminho mais largo. Ao longe, era possível escutar o rio Arno
correr com força, devido a tempestade que caía, como se para lavar seu
corpo para o momento final. Um trovão rugiu ao longe, mas Francesca
poderia jurar senti-lo sob os pés. Uma celebração da vitória do deus que a
marcou — sua sentença de morte.
De vez em quando, a menina se permitia olhar para trás, mesmo
consumida pelo medo, para se certificar de que ele ainda não a tinha
alcançado. Prometeram protegê-la, mas a verdade era que ninguém era
páreo para aquele homem. Por isso, agora estava sozinha, em meio a uma
tempestade, buscando refúgio na floresta amaldiçoada de Florença. As
árvores se movimentavam impetuosamente, as folhas pareciam sussurrar
seu nome, e todos os animais se esconderam para não verem o que
aconteceria em seguida.
Se Francesca tivesse ouvido mais a Guardiã, saberia que este não
era o melhor lugar para se esconder. Os espíritos do mal rondavam esta
floresta, desde quando perseguiram as primeiras bruxas e as queimaram
para extinguir o mal que, supostamente, espalhavam. E Freya bem que
tentou avisar que ele viria atrás dela. Ela falou que deveria escapar do
convento que lhe acolheu e continuar fugindo pelo resto da vida. Se tivesse
escutado a mulher de cabelos dourados e roupas pretas, que parecia estar
em um luto eterno, talvez as irmãs do convento que cuidaram dela estariam
vivas.
E se Francesca soubesse melhor, não estaria correndo em direção ao
rio, onde não haveria onde se esconder. Mas era jovem demais.
Despreparada demais. Apenas uma criança. Era como se tudo à sua volta
conspirasse a favor do homem que prometera caçá-la e matá-la.
A lama ficou mais espessa e logo a garota avistou as águas frias de
outono do rio Arno. No fundo, sabia que ali restava seu fim. Com uma
última olhada para trás, Francesca o viu. Glorioso. Intocado. Como se
pudesse ser imune à chuva e à lama. Era como um deus, só que a trabalho
do mal.
Lúcifer em pessoa.
A menina tropeçou nos próprios pés, assinando seu breve destino ao
cair na terra, cheia de pedrinhas, que levava à margem do rio. As pedras
cortaram suas mãos e pernas e ela grunhiu de dor.
Não importava se não estava pronta para morrer, porque era isto que
o destino havia escrito para aquela noite.
—Por favor, Francesca, fique sobre seus pés — a voz do homem era
fria, contida, e cheia de frivolidade. Ele era tão indiferente quanto alguém
poderia ser, porque a vida de Francesca, não significava absolutamente nada
para ele. — Não quero precisar me curvar para cortar sua garganta.
A menina tremeu. Seu coração parecia querer sair pela boca, e ela se
pegou implorando para que ele parasse de funcionar de vez, e a poupasse de
uma morte nas mãos do homem que, agora, estava parado à sua frente.
— Levante-se! — ele rugiu, quando a menina não se moveu e
continuou encolhida no chão.
Francesca tentou fazer suas pernas trêmulas funcionarem. Buscou
apoio no chão lamacento. E rezou. Rezou ao Deus que as freiras de seu
orfanato a ensinaram a acreditar, e pediu que um milagre a salvasse. Se não
houvesse milagre disponível, que pelo menos pudesse levá-la rapidamente.
Tinha medo do sofrimento e da dor que poderiam aguardá-la.
Ela era apenas uma criança. Era uma menina que não tinha vivido
nada ainda. Era uma casca, cheia de oportunidades, que nunca de fato
provaria.
Quando finalmente conseguiu ficar em pé, a menina deu um passo
incerto para longe do homem, que a observava parecendo estoicamente
intrigado. A cabeça dele pendeu para o lado e seus olhos de fumaça
piscaram por entre os pingos de chuva. Era um predador observando a
presa.
— Ainda não posso acreditar, que ele pensou que um ser como você,
poderia me destruir — sua voz era puro desgosto. Ele a rodeou como uma
serpente prestes a dar o bote. — Você não é nada. Fraca. Humana demais.
O coração da menina continuava a golpear seu peito sem pausa,
como se desesperado por continuar batendo. Seu corpo tremeu e não era
mais por conta do frio. Por um momento, pensou em pular no rio e deixar
que a correnteza a levasse. Estaria morta em pouco tempo, por causa das
baixas temperaturas da água. E não seria aquela morte, menos pior, do que a
que enfrentaria com aquele homem impiedoso?
— Estás com medo? — ele perguntou, se aproximando como um
felino.
Ele parecia apreciar o medo. O terror era a sua maior recompensa.
Era seu alimento predileto.
Francesca se recusou a responder.
O homem puxou uma adaga de dentro do casaco. O cabo era longo e
esculpido por ornamentos arcaicos, incrustados por pequenos rubis
vermelho-sangue. Uma pedra negra enfeitava o topo do seu pomo.
Francesca nem mesmo recuou com a vista da arma porque sua beleza
parecia fascina-la.
— Não pense que me deleito com a ideia de matá-la, jovem —
disse, aproximando-se da menina. A adaga firme nas mãos impiedosas. —
Mas não posso deixar que meu destino seja corrompido por uma criança.
— Se este fosse mesmo o vosso destino, ninguém seria capaz de
intervir — a menina sussurrou com bravura.
O homem sorriu.
— Percebe, então, que o seu destino é morrer em minhas mãos? —
Ele balançou as mãos enluvadas ao redor, com a graça de um príncipe,
como ele bem devia ser. — Ninguém irá me impedir.
Sim.
Por mais amedrontador que pudesse parecer, a menina agora parecia
perceber isso. O fato simplesmente tomou seu coração, o conhecimento de
que, assim como ela, muitas viverão e morrerão, até que pudesse nascer
aquela que, finalmente, seria capaz de completar seu destino, e concluir a
profecia.
Por isso, Francesca assentiu levemente para a pergunta do homem.
Ela sabia que tinha que morrer naquela noite. Suas decisões a levaram até
aquele momento. O destino colaborou um pouco também, ela sabia disso.
Mas, agora, pareceu entender que, apesar de não ser justo, era o que tinha
sido planejado.
Quando a lâmina da adaga rasgou a garganta da menina, sua alma já
se desprendia da dor do corpo e não sofreria a partir dali. Porque a verdade
era que Francesca era luz, e nem mesmo a grande escuridão que se
apossava do homem, que tirava sua vida, poderia apagá-la.
Outras viriam. E ele as temeria.
Aquela noite parecia insana.
A garotinha sonolenta estava adormecida no banco traseiro do carro,
quando ouviu os pais esbravejando. Ela bocejou, já irritada com aquele
passeio que ela não queria fazer e, agora, ainda mais, porque os pais não
ficavam quietos tempo suficiente para ela dormir.
Ela não queria estar ali e já sentia falta de casa. Era para estar
assando marshmallows em frente ao Lago, observando a lua e as estrelas
que eram sempre mais bonitas naquele período do ano, perto do seu
aniversário.
Logo, ela faria oito anos e estava animadíssima com isso. Até os
pais a importunarem com essa viagem. Ela não entendia o motivo e nem
tinha interesse em compreender.
Quando a mãe abriu a janela e o vento estapeou o rosto da menina,
ela enfim demonstrou sua irritação.
— Eu quero dormir!
Seu pai, do assento do motorista, virou-se apenas por um segundo
para fitá-la.
— Eu sei, pequena pássara, mas temos que seguir. Logo chegaremos
em casa.
— Minha casa está para trás — ela protestou, mas o pai não
respondeu.
Com um suspiro, a garotinha fechou os olhos com força e se ajeitou
no banco, para que pudesse tentar dormir de novo.
— Victor está se aproximando deles — ouviu a mãe sussurrar.
Quem era Victor?
— Talvez devêssemos voltar — o pai sussurrou de volta.
A menina abriu os grandes olhos negros, apenas para observar os
pais. Eles eram cheios de “assuntos de adulto”, dos quais ela nunca tinha
permissão de participar. Aquele — ela imaginou — devia ser um deles.
Ela não achava justo ser punida por sua curiosidade. Até achava que
ela contribuía para a perspicácia que o pai tanto elogiava nela.
—Não tem mais como voltar — a mãe disse baixinho, e virou-se
para encontrar a menina que, habilmente, voltou a fechar os olhos. — Eles
estão perto demais.
O pai soltou um suspiro tenso.
A garota não estava acostumada a vê-lo daquela forma. Tenso e
receoso. A mãe, por outro lado, sempre parecia estar preocupada, sempre
atenta a tudo, como uma ave de rapina. Ela adorava como parecia ter
herdado um pouquinho de cada lado.
De repente, o carro passou por uma curva sinuosa em alta
velocidade. Foi só então que ela percebeu o quanto estavam indo rápido. O
pai realmente devia estar ansioso para essa viagem!
Um estrondo soou alto, fazendo a garotinha tapar os ouvidos com as
mãozinhas, uma delas marcada. Ela se virou, assim como a mãe, buscando
a origem do barulho.
Ela gritou ao mesmo tempo que a mãe arfou alto.
—Mamãe! Papai! — ela gritou. — O que é aquilo?
Atrás deles, um carro pegava fogo depois de bater contra um
canteiro de obras no meio da estrada escura. O fogo já crepitava alto e
quente, que mesmo a quilômetros de distância, a menina parecia ser capaz
de sentir. Atrás deles, os carros continuavam o trajeto, parecendo temer
parar.
Os pais fizeram o mesmo.
— Um acidente, filha — a mãe disse, com pesar na voz. A garotinha
entendeu, que a pessoa naquele carro, devia ter se ferido bastante. — Não
olhe, tudo bem? Já estamos quase em casa.
Então, pelos próximos longos minutos, a menina forçou os olhos a
se fecharem. Temia que algum pesadelo a perseguisse, como sempre
acontecia quando fechava os olhos, mas ela não parecia capaz de limpar a
mente, por tempo o suficiente para cair no sono.
Mas manteve os olhos fechados, na tentativa falha.
— Era Victor? — ouviu o pai sussurrar.
A resposta da mãe pareceu doer dentro da garotinha.
— Sim.
“Não tenho medo”.
Foram essas as últimas palavras, da garota em meus sonhos, antes
de ter a garganta cortada.
Sempre o mesmo sonho, com garotas diferentes e cenários
diferentes, mas sempre a mesma história. O mesmo homem, coberto por
sombras, que não me permitiam ver seu rosto com clareza, perseguia e
então matava as garotas. Às vezes, elas eram tão novas, que mal pareciam
ter tido seu primeiro período menstrual. E ele sempre usava a mesma arma:
uma adaga com uma longa lâmina e um cabo incrustado por pedras. Em
meio ao breu da noite, eu mal conseguia distinguir seus rostos, tudo o que
conseguia ver eram suas silhuetas e o brilho das pedras. Mas sempre
conseguia identificar suas emoções. Medo e indiferença. Aceitação e
crueldade. Luz e escuridão.
Havia anos que eu era assombrada por pesadelos. “Terrores
noturnos” era como minha mãe gostava de chamá-los. Não queriam dizer
nada, era somente meu subconsciente transformando meus medos e
inseguranças em imagens durante meu sono.
Mas nem por isso, deixavam de ser extremamente inconvenientes.
Antes dos sonhos começarem, nunca nem havia pensado na morte o
suficiente para ter medo dela.
Eram quatro e meia da manhã e havia dias que eu não tinha uma
noite de sono ininterrupta. E depois de todo o sangue que vi esta noite, tive
absoluta certeza de que não conseguiria voltar a dormir. Com um suspiro
pesado, levantei-me e fui ao banheiro, desviando-me de todas as caixas pelo
meu quarto.
Mais caixas. Mais uma mudança. Tenho dezessete anos e nunca,
desde os meus sete anos, passei mais do que um ano em uma mesma
cidade. Há dezessete anos, venho aprendendo a não acumular muitas coisas.
Roupas e sapatos estavam sempre sendo doados. Móveis sempre
pertenciam a casa na qual estávamos vivendo no momento, nunca nossos de
verdade. A única coisa que eu insistia em guardar eram meus livros.
Orgulhava-me deles como uma mãe se orgulhava de um filho. Perdi a conta
de quantos livros tinha guardado nessas caixas, mas provavelmente mais de
duzentos. Por sorte, meu pai dividia a mesma paixão comigo, então não me
repreendia pelo meu gosto antiquado. Henry Monroe sempre me
presenteava com um novo livro ou me emprestava um de seu próprio
acervo. E era grata por isso porque, nesses dezessete anos, foram os livros,
meus únicos companheiros. Isso porque além do meu pai e da minha mãe,
não havia mais ninguém em minha vida. Sempre fui ensinada em casa,
longe das escolas e dos adolescentes comuns, então não tive muitas
oportunidades de me enturmar em nenhum lugar que morei. Nenhum
amigo. Nenhum namorado. Nada.
Era só eu e as palavras quase sempre.
Os livros impediram que eu me afundasse em completa solidão. E
talvez isso dissesse algo sobre o quão sozinha, eu de fato era.
No sétimo dia, por algum milagre, tanto meu pai quanto minha mãe
alegaram precisar resolver negócios na cidade, o que me permitiu um
momento sozinha em casa. Coisa rara. Com sorte, ficariam fora por
algumas horas e me dariam liberdade para andar pela propriedade em paz.
Saí do meu quarto, assim que percebi que já tinham partido.
O sol hoje estava mais forte e nos últimos dias tentei me distrair
nadando no Lago, praticando stand-up ou usando o Jet-ski para percorrer o
perímetro. Não tive mais notícias do estranho e não ouvi mais nenhuma
conversa secreta dos meus pais. Nenhum carro apareceu no gramado
vizinho também. Eu estava tão ignorante a tudo quanto sempre estive. E,
assim como minha ignorância, meus pesadelos eram persistentes.
Por isso, a primeira coisa que fiz, sem meus pais para me vigiarem,
foi correr até a casa vizinha e tentar entrar pela mesma janela da última vez.
Mas minhas esperanças foram destruídas quando a janela nem se moveu.
Meus pais deram um jeito de trancar essa casa direito. Ou avisaram ao
estranho que eu estava invadindo.
Grande merda.
Cocei as costas da minha mão direita. Era um tique nervoso que eu
tinha desenvolvido. Toda vez que estava muito nervosa, meus dedos livres
corriam para a marca de nascença estampada na minha mão. Sempre fui
muito consciente dela, mesmo que não fosse nada demais, e como resultado
de um colapso nervoso, coçava a marca fervorosamente.
Olhei ao meu redor, querendo encontrar algo para fazer que não se
resumisse à minha bunda colada no colchão ou aos treinos físicos que,
mesmo sem conversar com meus pais, não haviam sido interrompidos. Em
alguns momentos, me perguntava se meus pais talvez não estivessem
querendo me transformar em algum tipo de soldado. Só isso poderia
explicar porque diabos me matavam com tanto treino, todo santo dia.
Meus pais não eram pessoas violentas apesar dos treinos. Na
verdade, nem eram violentos nos treinos. Meu pai era calmo e instrutivo e
minha mãe era exigente. A combinação de ambos resultava em horas de
exercícios repetitivos e complexos.
Falhando em encontrar um meio de entrar na casa, acabei decidindo
que a floresta parecia interessante. Certifico-me de prestar atenção no
caminho para não me perder, já que a floresta era bastante fechada. A cada
passo que eu dava para dentro dela, aquela dificuldade era compensada, o
verde estonteante e o ar úmido ali, trazia muita beleza para a trilha. As
árvores se encontravam no alto e suas flores e folhas se beijavam no topo.
Os pinheiros eram mais reclusos, mas inconfundíveis.
Minhas pernas queimavam pelo esforço quando cheguei a uma trilha
mais fechada e reclinada, principalmente depois de dias de treino árduo,
mas insisti em continuar.
Eu estava quase chegando à ponta da floresta que tocava no Lago,
quando escutei um farfalhar de folhas atrás de mim. Virei-me tão rápido em
busca de um animal selvagem que acabei tropeçando nos meus próprios
pés.
— Merda!
A terra estava meio úmida e sujou minhas mãos. Apoiei-me no chão
para levantar, observando as árvores à minha volta e limpei minhas palmas
sujas no short jeans. Por um instante, não houve barulho algum. Nem
mesmo o da água do rio ondulando levemente.
Mas então escutei.
À minha esquerda, outro barulho. Passos.
Fui puxada com tanta força para fora do caminho e para trás de uma
árvore gigantesca, que um grito saiu pelos meus lábios. Comecei a me
debater contra o corpo do estranho, mas sua mão direita prendeu meus
braços para trás e sua mão esquerda tapou minha boca.
Meu coração martelava contra meu peito e me obriguei a encarar o
estranho.
Ele era jovem. Talvez dois ou três anos mais velho que eu. Seu
cabelo castanho caía em ondas em cima de seu olho. Seus olhos cor de
chocolate estavam meio cerrados, uma sobrancelha longa e reta estava
curvada em uma expressão tensa.
— Fique quieta.
Sua voz me atingiu com força, como um sopro no rosto. Era firme e
sem abertura para debate.
Ele até podia ser grande e musculoso, mas fui treinada a vida inteira
e eu não estava prestes a ser sequestrada ou morta, ou sei lá o que, por um
garoto.
Tentei morder sua mão, mas, além de um olhar feio que me lançou
de resposta, ele nem se mexeu, os olhos presos além das árvores. E foi por
causa de um segundo de distração, que me permitiu erguer o joelho e o
acertar com força, bem no lugar onde sabia que todo homem odiaria ser
acertado. Podia até não ter tido muito contato humano, mas li o suficiente
sobre pessoas, e sabia de um fato incontestável sobre os homens: eles
adoravam o que tinham no meio das pernas. E odiavam quando estas
preciosidades eram maltratadas.
O estranho se curvou com um grunhido rouco de dor, e relaxou os
braços o suficiente para que eu me soltasse e corresse.
— Ei! — sua voz era quase um grito, mas percebi que ele tentava
falar baixo. — Volte aqui!
Eu estava mais alerta do que nunca. Durante os dez anos que fui
treinada pelos meus pais, nunca — nunca mesmo — me ocorreu o pânico
que eu sentia agora. Nunca tive o medo que eles tanto tinham. Nunca entrei
em pânico no meio de um trânsito parado ou em uma rua escura. Nunca tive
motivo para isso. Mas agora, meu corpo inteiro estava em alerta total,
gritando para que eu corresse.
Corra. Corra. Corra.
Eu tentei pegar o caminho de volta para minha casa quando escutei
um xingamento mais para frente. O estranho estava atrás de mim. Mas
quem diabos estava entre eu e o Lago?
Acabei demorando tempo demais pensando para onde ir. Logo senti
a mão do estranho se fechar no meu pulso e me puxar para trás.
— Me solta! — gritei, tentando puxar minha mão do seu aperto.
O estranho não cedeu.
— Eu preciso que pare de lutar contra mim, Alyssa — sua voz foi
firme como um soco no estômago.
O espanto facilitou o trabalho dele, porque ele conseguiu me levar
para longe dos passos que se aproximavam com maior facilidade.
Ele sabe meu nome.
Como diabos ele sabia meu nome? Nunca o vi na vida!
— Como sabe meu nome?
— Vem comigo — meio que me impressionava que ele pedisse, e
não ordenasse. — Precisamos sair daqui antes que nos alcancem.
— Quem?
Porém seus olhos já não estavam em mim.
Ele se moveu tão rápido que não consegui acompanhá-lo. O
estranho me puxou contra seu corpo ao mesmo tempo que pulava para o
lado, nos escondendo atrás de um pinheiro.
O estalo se seguiu tão forte que me curvei contra o corpo do garoto,
tentando proteger minha cabeça.
— Porcos malditos — ele grunhiu.
O pinheiro não era grande o bastante para esconder nosso corpo
completamente. E o corpo do estranho, apesar de magro, era largo demais e
seus braços fortes não estavam protegidos. Encarei o corte no seu braço, ao
mesmo tempo que percebi uma faca presa na casca da árvore atrás dele. Seu
rosto nem se contorceu quando deveria sentir dor.
Arremessaram uma faca em nós!
Quem quer que fosse as pessoas que agora nos perseguiam, percebi
que o estranho à minha frente era a minha melhor opção. Pelo que parecia,
ele não queria deixar que me matassem. E, bem, eu tão pouco queria
morrer. Decidi que aquela era uma aliança bastante conveniente dada as
circunstâncias.
E ele sabia meu nome. Talvez houvesse alguma explicação plausível
para toda essa grande merda.
“Nós podemos garantir o nível de segurança necessário para
manter qualquer ameaça longe, hoje mais do que nunca.” — o outro
desconhecido, o que confrontou meus pais naquela madrugada, disse. Eu
sabia que não eram a mesma pessoa só pela diferença em seus tons de voz.
Aquele, de noites atrás, havia dito que era preciso me proteger. Só não
acreditei que haveria assassinos atrás de mim. Parte de mim — aquela que
eu preferia escutar na maioria das ocasiões — pensou que ele estava
falando sobre um perigo menos palpável. Talvez uma doença. Assassinos,
no entanto, saía um pouco da minha linha de imaginação.
Estava meio que óbvio, agora, que meus pais tinham algum motivo
para me manter escondida.
O estranho à minha frente estava me bloqueando com seu corpo. Ele
me observou por um segundo. Um segundo longo que me peguei
observando-o de volta. Mas logo seus olhos focaram-se de volta na ameaça
além das árvores.
— Eu vou distraí-los — ele anunciou. — Preciso que corra de volta
para sua casa e fique lá dentro até eu aparecer e dizer que é seguro. — Seus
olhos me perfuraram. —Entendeu?
— Quem são essas pessoas?
Ele suspirou, frustrado.
— Agora não é uma boa hora para perguntas, Alyssa.
— Vamos lá, garotinho — uma voz feminina cortou pelas árvores.
— Me dê a Fidly e deixo que você viva mais um dia da sua vidinha infeliz.
Alguém riu.
Eram dois deles.
O estranho me sacudiu de leve.
— Você me entendeu?
Eu tinha duas opções aqui: fugir ou ser teimosa o bastante para ficar
e talvez ser morta.
Sabiamente, optei pela primeira.
Balancei a cabeça em confirmação para o estranho.
Ele me soltou tão rápido que precisei me apoiar contra a árvore.
Observei enquanto ele pulava para onde a mulher e o homem com a faca
podiam vê-lo. Pisquei uma vez e ele já não estava mais do meu lado.
Fiquei parecendo uma barata tonta procurando por ele em meio às
árvores. Acho que ele percebeu, porque quando o avistei, alguns metros à
frente, ele se virou para gritar que eu corresse, antes de pegar a cabeça do
homem que nos ameaçava e bater contra o tronco de uma árvore.
Ok. Talvez meus pais estivessem certos e eu estivesse tendo sonhos
sem ao menos perceber que estava em um. Porque não era minimamente
possível que isso estivesse mesmo acontecendo.
Não fui muito longe.
Ouvi algo se partir e um rugido. Meus pés travaram e parei de
correr, antes mesmo que meu cérebro assimilasse a ordem. Um homem
rugiu de dor. E meu corpo todo se tencionou ao perceber que era aquele que
estava tentando me salvar.
— Bastardos de merda! — a voz do estranho que me ajudou era um
urro.
Em todos os meus treinos minha mãe me dava ordens para pensar
em mim. “Se houver perigo, não seja leal, Alyssa. Fuja.” Sempre achei
estranho meus pais ensinarem isso. Não era a lealdade um dos atributos
mais importantes de uma boa pessoa? Não era a coragem que diferenciava
aqueles dignos de uma história e os indignos de memória?
Por que então aquele garoto não fazia isso? Por que ficar para me
proteger?
Se ele estava me ajudando, era apenas justo que eu fizesse o mesmo.
Então corri de volta para ele.
O garoto estava se levantando quando eu dei o primeiro soco no
agressor, depois outro. Foram socos dignos de quebrar seu nariz e deslocar
sua mandíbula. Eu sabia o que estava fazendo.
Mas o homem estranho riu com o barulho da sua mandíbula
estalando e seu nariz esmagado, como se fosse um prazer para ele ouví-lo.
Parecia um sádico. E então ele atacou. Suas mãos sujas me agarraram com
tanta força que tive certeza que marcaria minha pele. Eu gritei e tentei
chutá-lo, mas seu corpo era como chumbo.
Ele me jogou no chão como se eu fosse uma boneca de pano. Suas
mãos procuraram algo na parte de trás da calça e logo uma espada de
lâmina estranha foi erguida. Minhas mãos tatearam o chão cegamente.
Meus dedos tocaram uma pedra e eu a peguei. Mirei na cabeça do homem e
a lancei. Acertei em cheio e ele rosnou como um animal.
Levantei-me com dificuldade, grunhindo de raiva. Com um
movimento rápido, consegui chutar suas costelas e socar seu queixo,
esperando que ele caísse no chão. Mas não. O homem nem pareceu
perceber minha tentativa débil. Ele me encarou com ódio estampado em seu
olhar.
Eu estava pronta para levar um novo golpe quando senti algo molhar
meu rosto e peito. Abri os olhos. O garoto havia enfiado uma lâmina na
garganta do homem. Ele segurava uma espada que parecia feita de vidro,
um tipo que nunca vi nem em filmes de ficção. Sangue agora jorrava pelo
corte feito no homem de olhos negros. Minhas mãos trêmulas correram para
limpar o sangue em meu rosto, mas na verdade, acabei me ajoelhando no
chão e vomitando. Se minha mãe me visse, ela diria que este era um erro
que não poderia nunca cometer. Você luta. Só depois desmorona.
Nunca levei isso a sério porque nunca pensei que precisaria mesmo
lutar. Nem que veria tanto sangue na minha frente.
O garoto me puxou para cima e me colocou atrás de seu corpo. À
nossa frente, a mulher encarava o homem caído, os olhos negros ainda
abertos.
Só agora, quando a mulher me olhou, vi que seus olhos também
eram negros. Não eram só pretos como os meus. Não. Os dela eram
completamente negros. Não havia esclerótica branca. Eram como dois
buracos negros no rosto tenebroso dela. Estes mesmos olhos fincaram-se
em mim como duas adagas. Suas roupas pretas eram retalhos sujos, mas o
cinto de armas era reluzente. Havia algo de muito errado com estas pessoas.
Eles nem pareciam humanos.
— Outros como nós virão atrás de você, Fidly — disse para mim.
Então ela apontou a espada para mim, dando apenas uma olhadela para o
estranho ao meu lado. — Você não conseguirá se defender e nem mesmo
estas crianças serão capazes de salvá-la.
Constatei que ela estava prestes a fugir, mas o estranho a
interrompeu.
— Eu matei o seu amigo e você nem ao menos vai tentar vingá-lo?
— o garoto provocou, um sorriso sinistro nos lábios. — O seu tipo
realmente não tem um pingo de orgulho, não é?
A mulher nem se mexeu.
Percebi, então, que o estranho queria que ela atacasse. Apesar disso,
ele se manteve na minha frente, como um escudo, mesmo sem nem
demonstrar ter reparado na minha presença, desde que voltei para me
certificar que ainda estava vivo. Ele não queria que ela me machucasse. Ele
queria que ela atacasse para que ela não tivesse a chance de fugir e, quem
sabe, chamar outros.
Ela soltou uma risada seca.
— E você acha que me importo? — ela replicou, seus olhos negros
como dois buracos sem fundo. Então, ela focou em mim novamente. — Seu
tempo está se esgotando.
Com isso dito, ela pegou algo no bolso da sua calça, estendeu a mão
para cima e desapareceu como fumaça em meio ao vento.
—Alyssa.
A voz tentou chamar a minha atenção, mas eu ainda estava
paralisada e transtornada demais, sem saber se encarava o vazio onde a
mulher, cinco segundos atrás estava, ou o corpo sem vida há poucos metros
dos meus pés.
Senti o garoto se aproximar. Ele tocou meu ombro, mas ainda não
era capaz de encará-lo.
— Você está tremendo — ele percebeu.
Olhei minhas mãos. Não tinha reparado antes, mas eu estava
tremendo mesmo. Meu coração também batia descontroladamente no meu
peito. Acho que só agora estava caindo a ficha de que havia um assassino
ao meu lado e que havia acabado de fugir de um casal de olhos negros.
— Ele está morto.
O garoto tentou me tocar de novo, mas eu pulei para longe.
— Você matou ele — acusei.
Ele pareceu confuso.
— Para salvar você — ele rebateu.
— Mas ele... ele era humano... — era mesmo? — Você não pode
simplesmente matar as pessoas. Devíamos ter chamado a polícia!
Ele quase, quase mesmo, riu da minha cara, mas se conteve.
— Acredite em mim, não há nada humano naqueles malditos. E a
sua polícia faria pouco para nos ajudar.
Eu estava tremendo tanto que quando tentei caminhar para longe,
minhas pernas falharam. As mãos fortes do assassino/salvador me pegaram
antes que eu caísse no chão. Só agora vi que a sua espada tinha voltado a
ser embainhada em seu cinto.
Quem, em pleno século XXI, usava espadas?
— Hum… — meu corpo estava pressionado contra o dele e seus
olhos estavam buscando algo nos meus. — Acho que você está em choque.
— Você acha? — zombei. — Tem um homem morto a menos de
dois metros dos meus pés. Você o matou. E essa mulher... ela tinha olhos
estranhos, que não deveria me chocar tanto quanto o fato de ela querer me
matar. E ela simplesmente desapareceu no ar! E nada disso faz sentido! Por
que estavam atrás de mim? — Tentei sair do aperto dele. Ele me deixou ir,
mas me cercou como se tivesse medo que minhas pernas falhassem
novamente. — Por que ela me chamou de “Fidly”? Que merda é essa? E o
que diabos ela quis dizer quando me avisou que outros viriam atrás de
mim? Que outros?
— Alyssa, você precisa falar mais devagar. Parece que você está
surtando.
— Eu estou surtando! — gritei para ele. — Como sabe meu nome?
Aliás, qual é o seu nome?
— Venha. — Ele me estendeu a mão, ignorando minhas perguntas.
— Vamos andando para a sua casa. Aquela mulher pode acabar voltando
com outros para ajudá-la.
Meu corpo se contraiu em resposta.
Há mesmo outros?
Olhei para o corpo estendido no chão.
— Vamos deixá-lo aqui?
O olhar que ele lançou para o homem era de puro nojo.
— Eu é que não vou tirá-lo daqui. Os animais podem tomar conta
dele à noite. — Ele percebeu meu olhar chocado e acrescentou: — Confie
em mim quando digo que ele não merece nada melhor. — Ele pegou a
minha mão bruscamente. —Vamos. Precisamos sair daqui.
— Você vai responder às minhas perguntas?
— Todas que eu puder. — Ele pareceu sincero.
— Então me diz o seu nome.
Seus olhos brilharam enquanto encaravam os meus, como se
ninguém nunca tivesse realmente se importado com este detalhe.
— Meu nome é Roman.
Encontre-o!
Acordei capaz de escutar a ordem como se ela estivesse marcada
nos meus ossos.
Esta noite o pesadelo havia sido diferente. Não assisti uma garota
morrer nas mãos de um homem — que agora sabia quem era — com uma
adaga incrustada por pedras. Não. Esta noite foi diferente de tudo. Não senti
medo. Ninguém morreu.
E pude ver, exatamente, quem era.
Diana. A garota da foto na casa vizinha. A foto que roubei e agora
se fazia ainda mais presente escondida no meio de um livro em minha
estante.
A garota que descobri ter sido como eu, pouco menos de duas
décadas atrás.
Ela segurava o bebê que vi em seus braços na foto que encontrei, e
andava pela margem do Lago. A cada passo que dava, a água parecia se
esforçar para tocá-la, como se fosse atraída pela garota. Mulher. Diana se
tornou mãe antes de ser morta e lutou pelo filho, o que imagino ser
suficiente para transformar uma menina em mulher.
Sei que lutou pelo seu filho, porque lembrava de suas palavras: Mas
vou dar um jeito de continuar viva, nem que eu precise me trancafiar no
outro lado. Apenas para garantir que meu bebê viva. Ela queria viver por
aquele bebê. Queria ser mãe, mesmo tão jovem.
Pensei que ela não pudesse me ver no sonho, que eu só estava ali
para observar. Ela parecia feliz, caminhando com o menino nos braços. Mas
logo antes de acordar, ela se virou para mim, os olhos cheios de água e
pediu, com uma intensidade que fez meus ossos tremerem: encontre-o.
Minutos se passaram, enquanto eu encarava o teto em meio a
escuridão do meu quarto. Longos minutos em que tentei pensar a respeito
do que Diana poderia estar falando. Se, talvez, esse sonho fosse mais do
que um sonho e estivesse tentando me dizer algo.
Será que ela queria que eu fosse atrás de Vicenzo? Estaria me
pedindo para vingá-la? Talvez pensasse que se fosse atrás dele, ao invés de
ficar esperando ele vir até mim, eu tivesse mais chances de pegá-lo
desprevenido.
O problema era que, aparentemente, era bem fácil me matar.
Saí da cama e caminhei até minha janela, que ainda estava molhada
pela chuva. Agora o céu estava claro e o sol se esforçava para sair de trás
das nuvens. Observei a casa vizinha, meus olhos se demorando no jardim
de flores na parte de trás do terreno. Tão rápido quanto o raio que vi cair
além do Lago, me veio um pensamento: o que aconteceu com o seu bebê?
— Aly?
Olhei para a porta ao ouvir a voz da minha mãe. Ela entrou no
quarto, me pegando sentada no pequeno espaço acolchoado sob a minha
janela. Seus olhos castanhos cor de mel pareciam preocupados. Havia dias
que parecíamos andar sobre uma corda bamba que nunca parecia ter fim.
Era triste, porque sentia falta dela, ao mesmo tempo que estava irada por ter
me mantido no escuro por tanto tempo. Por insistir em manter as coisas
assim.
— Teve um pesadelo? — ela perguntou.
Voltei a olhar para além da janela. Um pedaço do Lago, escuro e
onduloso pela chuva, parecia em revolta.
— Não exatamente.
Mas isso não sanou a curiosidade da minha mãe. Ela enrolou o
roupão de seda no corpo e andou até mim. Sentou-se à minha frente e me
observou, curiosa.
— O que isso quer dizer?
— Não tive um pesadelo. Mas não sei como exatamente me sinto
sobre meu sonho.
— Por que?
— Porque acho que, mesmo sem ser como os pesadelos com os
quais estou acostumada, sonhei com uma Fidly morta.
— Você pode ser mais específica, Alyssa? — minha mãe pareceu
impaciente.
Arqueei uma sobrancelha.
— Acho que sonhei com Diana.
Ela franziu o cenho. A informação pareceu deixá-la inquieta, como
se o simples nome da mulher a fizesse tremer. Não de medo, percebi.
Saudade, acho. Talvez culpa.
— Como você saberia que é ela?
Acenei com a cabeça para a casa vizinha.
— Encontrei uma foto dela quando invadi a casa — esperei que
minha mãe me repreendesse por isso, mas quando ela não o fez, eu
continuei: — Vi ela com uma criança no colo, e um garoto, um pouco mais
velho, ao seu lado.
— Sim, era Diana quem você viu. Ela se apaixonou por seu
Protetor, Brian. Eles acabaram se descuidando e ela engravidou quando
tinha quinze anos.
Observei minha mãe, atônita. Essa era, provavelmente, a primeira
vez que me dava alguma informação por livre e espontânea vontade.
— Não é tão difícil me contar as coisas, não é mesmo?
Ela suspirou.
— Não seja petulante.
Eu a ignorei.
— E o que aconteceu depois? Diana teve o filho e morreu? Eu li
algo em que ela dizia que iria tentar de tudo para ficar viva ao lado da
criança.
Observei o sorriso triste que repuxou os lábios da minha mãe.
— Diana era uma força da natureza. Corajosa. Bondosa. Bondosa
demais para esse mundo. Eu tinha vinte anos quando me colocaram para
protegê-la. Havia mais três Protetores encarregados, e dividíamos os
horários. Brian Cross era o garoto mais jovem da história a ser designado
para um papel tão importante. Ele tinha dezesseis anos quando o colocaram
no turno de proteção. Mas desde sempre se mostrou um prodígio. Era o
melhor. — Ela estalou a língua, um meio sorriso nos lábios. — Bem, depois
de mim, claro. Mas definitivamente diferenciado dado a idade dele.
Eu sorri.
Queria tanto isso. Desde que descobri a verdade, tudo o que queria
era que fosse sincera comigo. Mostrasse esse lado guerreira, de quem foi
nascida e criada para a guerra e deixasse que eu a conhecesse daquela
maneira. E agora podia entender um pouco mais da verdade. Podia juntar as
peças e torná-las mais claras. Minha mãe era uma guerreira. Havia fogo
dentro dela. Determinação e um tipo de força que, nem enquanto
treinávamos, pude imaginar servir para algo tão grande. Uma Protetora.
Fosse lá o que isso realmente implicava.
— Mas Brian fez o que ninguém jamais ousou antes: se apaixonou
pela garota que deveria proteger.
— Mas isso é ruim? — eu a interrompi. — Isso não quer dizer que
ele a protegeria ainda mais?
Minha mãe mordeu o lábio, parecendo buscar as palavras certas.
— Não é que ele não a protegeria com tudo o que tinha. Ele com
certeza teria morrido por ela e definitivamente matou muitos por ela
também. Mas quando nós amamos alguém, nem todos os nossos
movimentos são claros e racionais. Às vezes, fazemos escolhas que, mesmo
diante de boas intenções, não são nada mais que um erro.
Observei seu rosto atentamente. Podia vê-la tentando esconder suas
emoções. Minha mãe nunca foi um livro aberto, mas acho que agora eu
podia perceber que todas as vezes que me negou algo, era devido ao medo
de fazer uma dessas escolhas erradas. Porque ela viu, em primeira mão,
como o amor podia matar.
Eu não gostava disso. Não gostava da forma como ela lidava com a
verdade, mas talvez, se eu estivesse em seu lugar, tivesse feito o mesmo.
— Por isso, nunca me permiti tomar decisões baseadas
completamente na emoção quando se tratava de você. Porque não quero
cometer o mesmo erro.
Eu sabia que ela estava sendo sincera.
— Eu não entendo. O que Brian poderia ter feito que foi tão ruim?
— Brian não deveria ser visto ou ouvido. Era para ele ser um
fantasma — disse. — Mas ele não soube ficar longe dela. O elo era muito
forte, acho.
— Elo?
— Hum, há histórias que dizem que a Fidly possui um elo, uma
ligação de alma, como quer que queira chamar, com uma única pessoa —
explicou. — Como se o Destino tivesse ligado as almas destes dois
indivíduos e fossem, de alguma forma, atraídos um pelo outro.
Predestinados a ficarem juntos.
— Todas possuem isso?
Roman havia mencionado aquilo e eu tinha ficado curiosa porque
sempre imaginei o motivo pelo qual certas pessoas se encontravam nesta
vida. Porque meu pai tinha, dentre tantas pessoas, ficado fascinado com
minha mãe e como ela havia parado para ouvi-lo mesmo não tendo tempo.
Ou como alguns casais simplesmente pareciam certos, como se não fizesse
sentido não estarem juntos.
E eu não podia deixar de imaginar se o Destino me destruiria
daquela forma: dando-me algo que eu nunca poderia realmente ter, não se
morresse como todas as outras. Não queria imaginar que ele fosse cruel ao
ponto de unir duas pessoas de um modo tão profundo, mesmo sabendo que
nunca se conheceriam, ou poderiam de fato ficar juntas.
Mesmo assim, tinha sido exatamente isso que havia feito com Diana
e Brian.
—Teoricamente, todo ser vivo possui um elo com um outro ser, mas
com as Fidlys tudo é mais forte. O Destino as desenhou especialmente,
como se vocês fossem sua grande obra de arte. Pelo que sei, o elo que a
Fidly sente é mais intenso, mais palpável. Por isso que, enquanto o resto de
nós precisamos procurar ou esperar pela pessoa que divide esse elo
conosco, o elo da Fidly atrai a pessoa como um ímã. De alguma forma,
acabam se encontrando. Não foi por acaso que Brian foi escolhido para
protegê-la, e não foi por acaso que acabaram se esbarrando — ela parou,
tentando se lembrar de algo. — Se não me engano, a cultura japonesa criou
uma teoria, uma lenda, para o fato de uma pessoa pertencer e ser atraída por
outra. Para eles é como se houvesse um fio vermelho unindo essas duas
almas que, independente de tudo, de qualquer força externa ou
possibilidade, estavam irremediavelmente destinados a se encontrarem.
Unmei no akai ito. A lenda japonesa do fio vermelho. Já li sobre
isso, era um mito bonito. Que talvez não fosse nem um pouco mito.
O Destino parecia ter um grande apreço pelo controle e marcação.
Éramos suas marionetes, às vezes ligados por algo superior e mais forte, às
vezes marcados por profecias.
Meus olhos caíram para a marca em minha mão. A mesma marca
que esteve comigo a vida toda e nunca me pareceu grande coisa. Tudo por
causa desta marca. Ela era a prova de tudo o que eu devia representar. Uma
marca que o Destino insistiu em deixar, como se para me lembrar do que
meu caminho prometia.
— E Brian tinha esse elo com Diana — conclui, voltando meus
olhos para ela.
— Sim. Eles se amaram profundamente. Era como se... como se um
respirasse o ar do outro. Como se o mundo não pudesse existir sem a
presença da alma com quem dividia o elo. — Ela soltou um suspiro. — Mas
apesar do que muitos dizem, Brian foi um bom Protetor. Ele a salvou
sozinho quando sua casa foi atacada por Desertores. Ele a trouxe para o
Lago e a manteve segura o máximo que pôde.
— Então o que deu errado?
— Diana engravidou e ela deixou de se preocupar tanto consigo
mesma e passou a se preocupar com a nova vida que crescia dentro dela.
Não a culpo. Quando você for mãe, entenderá.
Ela dizia aquilo com tanta facilidade que queria acreditar que
haveria uma chance de, um dia no futuro, tornar-me mãe.
— Por um tempo, ela esteve segura. Quando o bebê nasceu, Brian já
não conseguia fingir que aquela vida não seria tão importante quanto a de
Diana. E um dia ele simplesmente escolheu errado. Ele deu a ela um
momento com a criança, que acabou lhe custando a vida. — A memória
parecia capaz de lhe causar dor física. — Diana queria passear no sol com o
seu bebê, e Brian permitiu que ela desse uma volta pelo Lago.
Um arrepio frio passou pela minha coluna.
— Vicenzo a matou na frente do bebê?
— Vicenzo não tem escrúpulos, Alyssa — sua voz era puro ódio ao
falar o nome do homem que prometia me matar. — Ele teria matado o bebê
também se Brian não tivesse levado a criança para longe.
Um arrepio percorreu meu corpo.
Um bebê. Mesmo que ele fosse jovem o suficiente para não se
lembrar do que havia acontecido, essas coisas simplesmente se agarravam
ao subconsciente da pessoa como um parasita. Meu coração se apertou pelo
garotinho — o bebê — que mesmo tão novo presenciou algo tão terrível.
— Espere. — Ergui meus olhos para ela. — Pensei que os
Desertores não podiam entrar no território do Lago.
— Eles ainda não podem — minha mãe confirmou. — Mas isso não
os impede de espreitar nossas florestas. Vicenzo a encontrou na margem da
floresta, mostrando algumas flores para o bebê. Ela estava só se divertindo
e Brian estava indo encontrá-la. Não sei bem como, Brian nunca nos contou
em detalhes. Pode ser que ela tenha se enganado com a fronteira, ou algo
assim. Mas quando ele a encontrou, Vicenzo a estava fazendo lutar.
— Mas ela não sabia sobre a regra da maioridade?
— Sabia, claro. — Seus olhos tristes partiram meu coração. Acho
que Diana era mais do que uma Fidly para minha mãe. Ela era uma amiga.
— Eu expliquei tudo que ela precisava saber. Quando ficou grávida,
implorei para que ela não saísse de casa. Eu sabia que a criança seria usada
para atingi-la.
— Ela decidiu lutar pelo bebê — percebi, triste.
— Sim. Vicenzo deve ter o ameaçado.
— E por que Brian não a salvou?
— Porque ela lhe implorou para salvar o filho. Ele não poderia
salvar os dois. Então teve que escolher. — Seus olhos se voltaram para a
chuva. Alguns raios de luz lutavam para sair pelas nuvens espessas. O dia
queria amanhecer. — E a verdade é que nenhum de nós venceria uma luta
contra Vicenzo. Nem mesmo uma Guardiã foi capaz. Se Brian tivesse
ficado para lutar com Vicenzo, com certeza teria morrido, e não havia
garantias que conseguiria salvar Diana.
— Por isso fomos criadas — observei.
Minha mãe desviou o olhar. Talvez ela não conseguisse suportar o
peso de suas palavras, o peso da verdade.
— Depois que Diana morreu... Foi como se Brian tivesse morrido
também. Ele é apenas a casca do que um dia foi, e acho que só se manteve
vivo, por todo esse tempo, por causa do filho.
— Ele era o homem que esteve aqui naquela madrugada, não é? O
que ouvi falar com você e papai.
Ela assentiu.
A imagem do garoto que conheci quando criança me veio à cabeça
como um chute no estômago. Era apenas ele e o pai.
Assim como Brian e o filho eram sozinhos.
— Mãe, o homem e o garoto que viviam aqui, antes de nos
mudarmos, eram Brian e o seu filho com Diana?
Minha mãe ficou tensa. Uma máscara de indiferença cobriu seu
rosto antes que eu pudesse ler as emoções escritas ali. Talvez ela fosse
incapaz de pensar neles e não se lembrar da amiga morta.
— Sim, mas eles não moram mais aqui.
Lembrei-me do quarto com roupas masculinas que encontrei quando
invadi a casa.
Talvez eles não vivessem aqui, mas com certeza visitavam.
Busquei as memórias daqueles anos, quando ainda era apenas uma
criança irritadiça.
— Acho que ele era meu amigo.
Ela não disse nada.
Os minutos se passaram e o silêncio preencheu meu quarto. Ela não
estava me contando alguma coisa. Mas decidi não pressionar, pelo menos
não hoje. Aquele dia havia sido a primeira vez que havia me contado tantas
coisas. Talvez fosse melhor esperar um pouco para descobrir mais. O tempo
poderia fazer com que se abrisse novamente.
— No sonho ela estava bem — eu sussurrei. Os olhos castanhos de
mamãe encontraram os meus, tantas emoções que me atingiram como uma
onda. — Ela parecia... sei lá. Acho que em paz. Todas as outras vezes que
imagino ter sonhado com as Fidlys, elas estavam sendo mortas. Foi uma
boa mudança — lembrei. — Ela tinha o bebê no colo e andava pelo Lago.
Parecia bem.
Não sei porque acabei não contando sobre o que Diana disse, mas
provavelmente porque não queria falar sobre o quanto ela parecia nervosa.
O fato de ela, provavelmente, estar se referindo a encontrar Vicenzo,
também não soava como algo que eu gostaria de discutir com a minha mãe.
Jasmine nem mesmo me deixava encontrar pessoas normais, duvidava que
gostaria da ideia de me deixar ir atrás de Vicenzo.
Nem eu mesmo gostava.
Pareceu ser o certo a se dizer, quando um sorriso sincero se abriu no
rosto da minha mãe.
— Eu só espero que ela esteja em paz.
Eu não conhecia Diana, mas aquilo era algo que eu me pegava
desejando também.
Uma semana se passou, desde minha primeira conversa
esclarecedora com a minha mãe. Serena começou a aparecer mais e passar
mais tempo comigo, e mesmo sabendo que era seu trabalho, fiquei feliz
com o tempo que tinha com ela. Nunca tive uma amiga antes, e agora,
finalmente, tinha tempo para conhecer alguém o suficiente para cultivar sua
amizade. Era bom poder falar sobre diferentes coisas e me divertir com
alguém além dos meus pais.
E era bom não precisar ficar sozinha.
Houve uma novidade essa semana, no entanto. Conheci outro
Protetor, dessa vez um homem mais velho que meu pai, por volta dos
cinquenta e poucos anos. Não que ele parecesse velho ou algo assim. Seu
corpo gigantesco fez meu pai parecer uma criança. Seus cabelos castanhos-
claro e cacheados, com alguns fios grisalhos, presos no topo de sua cabeça
em um nó, fazia-o parecer ainda mais mortal. Ele era exatamente o tipo de
guerreiro que víamos nos filmes, em alguma história viking. Talvez eu
tivesse demorado tempo demais olhando para a cicatriz em seu pescoço,
encoberta pela tatuagem dos Protetores, que se originava em sua clavícula
direita e subia por toda a extensão até o seu pomo de adão. Tudo nele fazia
com que eu quisesse sair correndo, em especial, o seu olhar de aço. Frio.
Inabalável. Criado para ser um guerreiro e nada mais, e, se aquela cicatriz
era algum indício, endurecido pelo que a vida havia lhe mostrado.
Suas primeiras palavras para mim foram firmes, apesar de terem
sido um cumprimento. “Prazer em conhecê-la, Fidly. Meu nome é Jasper.”
— as seguintes foram ainda mais frias. “Espero que esteja pronta para
treinar e espero que não me decepcione.”
Não deixei de reparar o olhar de respeito da minha mãe em sua
direção, ou a forma como aceitou que ele desse as ordens e tomasse a frente
do treino. O homem, apesar de parecer rígido, era respeitado, até mesmo
pela mulher que fugiu de pessoas como ele: Protetores.
Meus pais nos deixaram sozinhos logo em seguida.
Quando Jasper pediu que eu me posicionasse à sua frente, foi
quando percebi que ele era uma montanha e eu, um pedregulho minúsculo
em comparação. Estava tentada a dizer que precisava ir ao banheiro e correr
de volta para a floresta. Talvez eu tivesse uma melhor chance contra a
Desertora.
— Talvez você possa me ensinar alguns movimentos antes de...
Ele arremessou uma faca, antes que eu pudesse completar a frase.
Uma faca. Pulei para o lado a tempo de escapar da lâmina que, com certeza,
estaria presa no meu braço direito agora.
— Que merda é essa? — gritei e xinguei ao mesmo tempo. Minha
mãe nunca tinha usado armas em nossos treinos, e principalmente nunca
contra mim.
O olhar de Jasper, no entanto, foi de completa indiferença.
— Antes um braço do que o coração. Ou a cabeça.
Ele podia ser assustador, mas isso não me impediu de lançar um
olhar detestável em sua direção.
— Pelo menos me avise — rosnei.
Ele assentiu, circulando calmamente pelo gramado.
— Tudo bem. — Ele parou a poucos metros, os olhos fixos em mim.
— Vou arremessar uma faca na direção de seu estômago agora.
Aparentemente, um estômago não estava no mesmo nível de
importância que uma cabeça ou um coração. Perfeito.
Suas palavras levaram apenas um segundo para se assentarem em
meu cérebro. Um segundo que não eu não tinha para gastar, porque a faca já
estava voando, pronta para empalar meu estômago. Joguei-me no chão com
um grunhido de surpresa e rolei para a esquerda, parando sobre minha
barriga, ofegante e não acreditando naquele homem.
Mas que merda!
— Aparentemente, —murmurei, sem fôlego. — não preciso me
preocupar apenas com os Desertores querendo me matar.
Jasper andou até mim, e eu só queria me enterrar no chão quando
me encolhi com sua aproximação. Como a merda de uma covarde.
— Não quero nem ver quando se mijar ao encontrar um Desertor —
ele resmungou.
Impedi que um palavrão pulasse da minha língua. Um bem feio. E
recusei sua mão estendida para me levantar.
— Não se preocupe. Não foi tão ruim.
Ele me observou abanar a sujeira para fora da minha calça legging.
— Certo. Você os encontrou quando estava com Roman, não é?
Não respondi.
— Talvez um dia precise enfrentá-los sozinha — acrescentou.
— Então está atirando facas em mim na esperança de que eu
aprenda a fugir da deles.
— Exato.
— Muito boa tática de ensino — eu disse, exalando ironia.
Ele riu. Bem, pelo menos pareceu minimamente como uma risada.
— Meus alunos não reclamaram. — Ele estendeu a mão,
oferecendo-me espaço. — Quer tentar a ofensiva?
Eu o encarei. Ele estava blefando, eu tinha certeza disso.
Jasper estendeu uma de suas muitas facas presas em seu cinto.
— Mire no coração, Fidly.
Peguei uma das facas, e ele deu alguns passos para trás.
— Meu nome é Alyssa —disse, mesmo que ele não parecesse dar a
mínima para aquilo.
Pesei a faca em minhas mãos. Era leve e se encaixava bem na minha
palma. Seu cabo era de uma pedra branca e tinha um design tão bonito, que
fiquei tentada a roubá-la.
Olhei da faca para o peito de Jasper, onde devia mirar. Como diabos
devo jogar uma faca no peito de alguém? E se eu realmente acertar?
— Pare de ser medrosa, apenas mire e lance.
Eu o olhei, irritada.
— O que acontece se eu realmente acertar? Que eu saiba você pode
morrer como qualquer humano.
Jasper pareceu cético, prestes a rir novamente.
— Você não irá acertar, criança.
Criança. Quando eu não era a “Fidly” era “criança”. Ótimo.
Maravilhoso.
Esplêndido.
Ajeitei a faca na minha mão e, soltando minha respiração,
arremessei, mirando seu ombro — não o seu peito. Mas Jasper se movia
como água. Fluido, rápido e silencioso. Em um instante estava em minha
mira, no seguinte estava desviando e parando quase ao meu lado.
Sua expressão me dizia que não estava contente.
— Você não mirou corretamente.
Dei de ombros e fingi não entender do que ele estava falando. Não
importava que isso fosse um treino e ele fosse incrivelmente habilidoso, não
podia arriscar machucar ninguém. E se eu acertasse onde ele me pediu para
mirar... eu poderia matá-lo.
— Enquanto tiver mais medo do que pode fazer, do que o que
podem fazer a você, será sempre uma presa fácil.
Meu estômago se revirou.
— Agradeço a dica.
Então, passamos o resto do dia em discussões sobre minha ofensiva
ser fraca e hesitante. Por vezes, Jasper gritou ordens que me recusava a
atender, mesmo quando meu sangue fervia de raiva. Mesmo quando me
chamava de covarde. Não iria me tornar uma assassina, mesmo que por
acidente.
Nos dias seguintes, quando ele apareceu, seus treinos se tornaram
mais corporais. Como me recusava a mirar em locais mortais, ele entendeu
que talvez no combate corpo a corpo eu fosse melhor. E eu era. Um
pouquinho. Nada comparado a ele. Ou a minha mãe.
Ainda.
Talvez eu e meu pai estivéssemos começando a nos equiparar, visto
que ele não possuía as capacidades de um Protetor. Mas nem de longe era
boa o bastante, não como um Protetor. Então, quando Jasper se irritou,
exigiu que eu corresse quilômetros e mais quilômetros e nadasse milhas e
mais milhas.
Não me tornaria uma assassina, mesmo que por acidente.
Mas então me atingiu o que aquela marca em minha mão
significava. Matar ou morrer. Era para aquilo que eu havia nascido. Se a
perspectiva de tirar a vida de alguém me assustava tanto, como diabos eu
deveria tentar matar Vicenzo?
— Como foi seu dia com Jasper? — meu pai perguntou, durante o
jantar.
— Digamos que estou pronta para ter Serena de volta —
resmunguei. O lado direito do meu corpo doía como o inferno, mas eu
imaginava que deveria agradecer por não ter quebrado nenhuma costela.
Minha mãe balançou a cabeça, em discordância.
— Jasper é um guerreiro treinado e experiente. E sua exigência nos
treinos é esperada e necessária — disse. — Serena se tornou sua amiga
demais.
— E qual o problema de eu finalmente ter uma amiga?
— O problema é ela ser uma Protetora — retrucou, inabalável,
pegando mais comida do prato.
— Você é minha mãe e minha Protetora — rebati.
—Por isso, já temos inconvenientes o suficiente.
Inconvenientes.
— O que sua mãe quer dizer, Alyssa, é que já existem questões
emocionais o suficiente sendo envolvidas — meu pai disse, sempre o
apaziguador. — Quanto mais Protetores focados em seus trabalhos, melhor.
Minha mãe assentiu.
— Exato. — Ela limpou a boca com um guardanapo, o perfeito
exemplo de etiqueta. — E já temos problemas o suficiente com os
Protetores. Quanto mais afastada deles você estiver, melhor.
— Que tipo de problemas?
Minha mãe soltou um suspiro exasperado, então me virei para meu
pai, demandando uma resposta.
— Ravenna quer vê-la, antes do combinado, e espera que você passe
mais tempo no Outro Lado — ele contou.
— Por que?
— Porque ela gosta de exigir coisas. — Minha mãe se esticou na
cadeira, raiva brilhando em seus olhos cor de mel. — Só para mostrar que
pode.
Ah, existia uma história ali. Havia mais do que puro desgosto.
— E por que isso seria tão ruim? — perguntei. — Quero dizer, estou
bem vivendo aqui, mas qual o problema de eu ir lá conhecê-los?
— O problema é que não confio em Ravenna de jeito nenhum —
disse. —E para ser bem sincera, não confio em mais da metade deles.
— Por que? — Confusão sombreou minha mente. Achei que minha
mãe partilhava, de toda aquela coisa, de confiar e apoiar em seus irmãos
Protetores. Serena me disse o quanto era importante que fossem unidos.
— Porque a maioria são pessoas que se recusam a evoluir e viver
além de seus velhos hábitos.
Não deixei passar o olhar que minha mãe dirigiu ao meu pai. Havia
algo naquele olhar. Reconhecimento.
O casamento deles provavelmente foi mal visto pelos Protetores.
Pelo que me contaram, eles acreditavam que deviam continuar casando os
seus com os seus, assim não haveria perigo de extinção ou de diluição dos
seus poderes, e as novas gerações continuariam se tornando mais fortes.
— Eles foram muito ruins quando você contou sobre o papai?
Minha mãe terminou de comer e se encostou contra a cadeira. Ela
cruzou os braços e pareceu se aventurar nas lembranças daqueles anos,
antes de eu nascer.
— Por que acha que fui embora?
— Achei que fosse minha culpa.
Foi meu pai quem falou primeiro.
— Quando sua mãe ficou grávida, ela já tinha deixado os Protetores.
Não deixou a causa, claro, porque isso significaria desertar, então continuou
caçando Desertores pelo país — meu pai explicou, chegando mais perto da
minha mãe e passando um braço por seu ombro. Ela pareceu relaxar
imediatamente e fiquei me perguntando se talvez ela estivesse errada quanto
ao elo ser forte apenas para a Fidly. Parecia tão claro que havia algo mais
intenso do que apenas amor entre eles. Havia devoção, como se fossem a
extensão um do outro. — Mas Ravenna foi... especialmente desagradável. E
quando descobriram que você era a Fidly, pouco depois de seu nascimento,
Ravenna foi quem deu a ideia de levá-la para o Outro Lado.
— Ravenna queria ser responsável por você. Achou que, porque eu
era uma Protetora, deveria dar você como se fosse um objeto, para que eles
cuidassem como bem quisessem.
Eu odiava o modo como meus pais haviam escondido as coisas de
mim. Odiava como fui excluída da sociedade. Mas não deixava de ser um
fato que eu havia sido criada em uma gaiola de amor. Uma prisão, sim, mas
uma que me fez sentir querida, importante e, acima de tudo, amada. Meu
pai sempre teve a paciência de um santo para me ensinar as matérias da
escola. Minha mãe sempre me deu tudo o que podia e sempre fez questão
de me mostrar as belezas dos lugares para os quais nos mudávamos. Ambos
me amaram e amam sem restrições. Por isso, mesmo sentindo falta de tudo
o que não pude ter por causa de quem eu era, ainda era grata pela vida que
tive. Pelo amor que tive. Não podia me imaginar tendo tudo isso, sendo
criada pelos Protetores, como se eu fosse algum tipo de animal a ser
adestrado.
— Obrigada por terem escolhido ficar comigo. Mesmo que tenha
sido mil vezes mais difícil para vocês assim.
Até agora estive tanto tempo presa à minha mágoa, por causa da
mentira de dezessete anos, que acabei ignorando o fato de que, enquanto me
escondiam, Henry e Jasmine também se escondiam. Eles precisaram fugir
comigo toda vez que algo ou alguém me ameaçava. Por anos. Anos longe
da família e amigos que conheciam. Anos se esquivando do mundo. Viviam
nessa gaiola tanto quanto eu.
Minha mãe veio até mim com passos largos e me abraçou forte. Mal
pude levantar meus braços para abraçá-la de volta devido à força com que
me segurava. Protetora como apenas uma mãe podia ser.
— Você é minha filha, Alyssa. Não um fardo — ela disse isso
enquanto escovava meus cabelos com os dedos, como sempre fazia desde
que eu era criança. — Eu iria até o inferno por você. Não porque eu preciso.
Não porque é minha obrigação. Mas porque eu te amo.
Meu pai se juntou a nós no abraço, deixando um leve beijo em
minha testa.
— Você foi o melhor presente que nós poderíamos receber, filha —
sua voz era rouca e eu soube, sem olhá-lo, que ele lutava contra as lágrimas.
— Você é nosso próprio milagre. Extraordinária. Escolhida a dedo para ser
parte da nossa família.
Fiquei ali. Parada. No meio do abraço das duas pessoas mais
importantes da minha vida. E decidi que não podia mais culpá-los por me
manter isolada. A solidão era o motivo pelo qual eu estava viva. E foram
eles que se certificaram de que eu estivesse protegida. De tudo. Mesmo
daqueles que deveriam ser meus aliados.
— Eu só quero que você viva — minha mãe sussurrou em meus
cabelos.
Meu coração quebrou junto com a sua voz.
Não podia prometer que ficaria viva por muito mais tempo. Não
podia, porque desconfiava que o destino não estivesse a meu favor. Mas
estava determinada a viver. Mesmo que apenas um pouco.
Eu também quero viver, mãe.
Mesmo que só uma única vez.
Eram duas da manhã quando acordei de repente.
A chuva de verão, lá fora, anunciava a nova estação quente. Senti-
me abafada sob as cobertas e algo em meu corpo se inquietou. Não por um
pesadelo, porque pelo que pareceu um milagre, minha noite ainda não havia
sido aterrorizada por um.
Fiquei imóvel na cama, tentando entender porque diabos acordei em
uma noite tão maravilhosa para dormir. A desconfiança cresceu no fundo do
meu estômago, mas não escutei nada além da chuva.
Mesmo assim, o incômodo me fez sair da cama. Era como se meu
corpo não pudesse se aquietar. Estava prestes a chamar meus pais, quando
passei pela minha janela e vi duas figuras correndo no gramado da casa ao
lado, em meio a chuva.
Reparei na Land Rover preta parada próximo à casa, mas meus
olhos logo se focaram no cachorro e no homem alto debaixo da chuva. Eles
estavam a poucos metros de distância da minha janela e se não fosse pela
escuridão, poderia conseguir enxergá-los melhor.
O cachorro grande, de pêlo marrom e branco, corria pelo gramado
como se estivesse extasiado por estar de volta àquele lugar. O animal, que
parecia um lobo, percorreu todo o território, soltou alguns latidos e parou
eventualmente para farejar lugares específicos. Eu não tinha uma visão
clara, mas podia ver o quão feliz estava. O homem, vestido todo de preto,
correu atrás do lobinho, mas logo desistiu e apenas ficou ali, embaixo da
chuva, esperando que o animal se acalmasse.
Eu sabia que deveria estar preocupada por ter alguém novo por
perto. Sabia que talvez até devesse chamar meus pais para verem quem era
o homem lá fora. Mas tudo o que consegui fazer foi observá-los. Parte de
mim estava curiosa para descobrir se o homem lá fora era Brian ou o filho
dele com Diana.
Mas apesar da curiosidade, também não me movi.
A silhueta do homem não me dizia muito além de que ele era alto e
aparentemente forte. Minutos se passaram, enquanto a chuva o encharcava,
mas ele também não se moveu. Esperou pacientemente pelo seu cão, que
parecia mais do que feliz no meio de tanta natureza. Quando o animal se
aproximou mais da minha casa, o dono o seguiu de perto.
Observei, o que agora sabia ser um jovem, parar a pouco menos de
três metros da minha janela.
Seu rosto jovem estava molhado e os cabelos negros caíam pela sua
testa. Não podia ser Brian. Brian devia ter quase a idade de meus pais. O
homem a poucos metros de distância, parecia poucos anos mais velho que
eu. Aquele devia ser o filho de Diana. Tinha de ser.
Suas mãos estavam nos bolsos da calça e eu enxerguei a camiseta
preta se agarrando ao corpo musculoso. Procurei por alguma marca que me
dizia que ele também era um Protetor, como o pai, mas não encontrei a
tatuagem em lugar algum. Talvez Brian o tivesse mantido longe de tudo
isso depois que Diana foi morta. Isso explicaria porque minha mãe não fala
sobre ele.
O ar me escapou quando a cabeça do jovem se virou e seus olhos
me pegaram espionando-o. O sangue ardeu em minhas bochechas. Mas seus
olhos, inexplicavelmente azuis, eram a prova que eu precisava. Mesmo no
escuro e na distância conseguia distingui-los. Ele tinha os olhos dela, mas
de alguma forma, eram ainda mais incríveis. E não sabia porque diabos
ainda estava encarando, mesmo com seus olhos fixos nos meus.
Suas sobrancelhas grossas arquearam, enquanto ele me observava.
Ele ergueu a mão e, por um segundo achei que iria acenar para mim, mas
não. Sua mão foi direto para o cabelo molhado, tirando-o de sua testa.
Uma pessoa normal desviaria o olhar. Mas o modo como ele
absorveu cada respiração minha, me aterrorizou. E me intrigou. Ele parecia
um animal em exposição para mim e tudo nele me fez querer observá-lo
mais. Uma pessoa acostumada a lidar com outras pessoas, não ficaria
apenas encarando o desconhecido. Se apresentaria. Ou sairia de seu campo
de visão. Mas eu vivi isolada, então estava usando isso como justificativa
para minha notável falta de noção.
Então eu o observei. Analisei seu peito subir e descer lentamente.
Ele não estava com frio? Observei a sombra de seu maxilar se agitar. Notei
ele me olhar como se eu fosse tão interessante quanto ele me parecia.
Talvez eu também fosse um animal em exposição para ele.
Longos minutos se passaram. Ele não disse nada, não que eu fosse
ser capaz de ouvi-lo, mas tão pouco tentou se aproximar.
Seu cachorro, alheio à minha presença, trotou até o garoto e parou
ao seu lado, latindo para chamar sua atenção. Ele parecia finalmente pronto
para entrar na casa. O garoto também percebeu isso. Ele demorou exatos
trinta segundos — nos quais quase pude ouvir a contagem do relógio no
fundo da minha mente — para desviar os olhos dos meus e se virar em
direção à própria casa.
Observei suas costas se afastarem e o cachorro o seguir, até que ele
e o cão estivessem escondidos dentro da casa vizinha.
Demorei horas para pegar no sono novamente.
Dessa vez não sonhei com as garotas mortas. Nem com Diana.
Sonhei com uma cor. Azul. Azul claro, como o Lago.
Como os olhos do filho de Diana.
Horas depois, acordei com o sol quente entrando pela minha janela e
batendo bem no meu rosto. Uma mudança drástica para a noite chuvosa.
Espreguicei-me e tomei um minuto para me lembrar do que vi na
madrugada. Corri para janela, em busca de alguma movimentação na casa
vizinha. Mas não havia nada. Nem mesmo o carro estava estacionado onde
o havia visto horas atrás.
Precisei me esforçar para ter certeza que a noite de ontem não havia
sido um sonho. Minha mente lembrava do garoto de cabelos negros e olhos
azuis e do cachorro ao seu lado como se fosse um filme. Eu estava grogue
de sono e estava caindo os céus, mas eu sabia que havia sido real.
Não sabia porque estava tão interessada em vê-lo de novo, mas me
peguei torcendo para encontrá-lo do outro lado do gramado novamente.
Talvez fosse porque eu sabia quem era sua mãe. Mas aquela decepção
pesando em meu estômago era imprevista.
Um toque musical me tirou do transe. Voltei para minha cama e
peguei o celular que estava carregando em cima da mesinha de cabeceira.
— Feliz solstício de verão! — a voz animada de Serena me atingiu
como um raio. Já era verão. Cinco meses para meu aniversário. Bem, se eu
tivesse sorte.
Respirei fundo. Forcei um sorriso, mesmo que ela não pudesse me
ver.
— Você quer vir aqui e aproveitar o Lago? Mas deixe seus couros
para trás, já que a ideia é aproveitar o sol.
Ela riu.
— Chego em dez minutos — disse, antes de desligar.
E claro, dez minutos mais tarde, ela estava na porta do meu quarto.
Eu já estava pronta, usando um biquíni azul com um vestido leve por cima.
Serena optou por um maiô preto. Ela parecia não ter um único defeito. Seu
corpo magro era torneado, provavelmente pelos incansáveis treinos, sua
pele negra e seus cabelos eram vívidos.
Éramos opostos em muitos sentidos, mas parecíamos a dupla
perfeita. Eu mais baixa, ela com praticamente 1,75. Minha pele alguns tons
mais claros que a dela e meu corpo cheio em todos os lugares em que o dela
era esbelto.
Deixamos a casa para trás e aproveitamos o calor e a água morna.
Vez ou outra conseguia ouvir as vozes dos meus pais chegar até onde
estávamos no Lago, o que significava que eles estavam falando alto
demais.
— Você está muito pensativa hoje — Serena interrompeu meu
devaneio.
Parei de mexer os braços para formar pequenas ondas e ergui meus
olhos para ela.
Encolhi os ombros.
— Sou sempre pensativa.
Ela revirou os olhos, sorrindo.
— Como você é profunda, uma alma cheia de nuances! — Ela jogou
água na minha cara. — Posso saber o que essa cabecinha está pensando?
Meus olhos voaram para a casa vizinha automaticamente.
Serena cerrou os olhos para mim.
— Por que você fica olhando para lá? — quando não respondi de
imediato, minha amiga chegou mais perto. — Alyssa. — exigiu.
— Vi alguém ontem. Na casa vizinha.
Ela franziu o cenho.
— Quem? Você acha que era um Desertor? — Ela então estalou a
língua, repensando. — Saberíamos se fosse um Desertor. E ele teria tentado
matá-la, claro.
— Não acho que tenha sido um — concordei. — Na verdade, acho
que era o filho de Brian e Diana, a antiga Fidly.
Serena pareceu surpresa.
— Não pode ser.
— Por que não?
— Porque ele foi embora há muito tempo.
— Como assim? Você o conhece?
— O conheci no treinamento. Bem, mais ou menos. Ele era mais
velho, então não treinamos juntos, mas eu o via no Outro Lado. — Seus
olhos voaram para a casa vizinha, atrás de mim. — Seu nome é Nathan.
Nathan.
— Então ele é um Protetor também?
— Claro que é. Assim como o pai.
— Eu pensei que talvez Brian tivesse criado o filho longe de tudo
isso, como minha mãe tentou.
— Um Protetor não pode fugir de seu dever, ou nos tornaríamos
aqueles contra quem lutamos — explicou. —Mas Brian, realmente o criou
longe de nós, pela maior parte da vida dele. Na verdade, ele tem mais em
comum com você do que comigo, acho. Assim como você, ele cresceu
longe de todo o restante de nós Protetores, e só foi para o Outro Lado
porque precisava finalizar o treinamento e receber a tatuagem.
Eu observei o gramado da casa, que um dia havia sido de Diana.
— Ouvi dizer que depois que a Fidly morreu, Brian ficou destruído
— Serena continuou. — Literalmente. Como se fosse um fantasma. E ele
quis ir embora, deixar tudo isso para trás. Mas é claro que os Protetores não
iriam aceitar que ele simplesmente desse as costas a tudo, e deixasse essa
vida. Nós simplesmente não podíamos perder um dos nossos melhores
guerreiros. — Ela fez um meneio de cabeça em direção à minha casa. —
Seus pais o ajudaram. Para não ter que desertar, ele prometeu que ajudaria a
proteger você. E acho que sua mãe confiava nele. Por anos eles viveram
naquela casa. Brian treinava o filho, mas nunca deixou que nenhum
Protetor, que não fosse sua mãe, chegasse perto dele, até anos mais tarde,
quando Jasper passou a treiná-lo. Mas no final, ele foi para o Outro Lado de
qualquer forma.
Por que minha mãe não havia me contado isso quando falamos
sobre Diana?
Eu podia entender porque Brian não quis criar o filho perto dos
Protetores. Eles provavelmente eram uma constante lembrança da mulher
que amava e que não pôde salvar.
— Então vocês não têm escolha alguma sobre essa vida? Sobre ser
um Protetor?
Ela balançou a cabeça, negando.
— Somos o que somos, Aly. Nascemos para isso e ponto.
Era triste que todas essas pessoas não tivessem uma escolha.
Fadados a lutar uma guerra eterna, na esperança de que um dia o destino se
concretizasse. Esperando que, de repente, a balança daquele mundo não
precisasse mais de supervisores.
— Mas você disse que ele foi embora...
— Após o treinamento, depois que recebeu sua tatuagem, ele
simplesmente deixou tudo para trás e sumiu — ela contou. — No começo,
todos ficaram loucos, pensando que ele havia desertado, mas eu sempre
fiquei me perguntando, por que ele iria esperar até o último minuto para
isso? Não era como se ele precisasse do treinamento. Brian o tinha treinado
melhor do que ninguém, muito antes de ele pisar em nosso território.
— Então ele não desertou?
— Não. Brian o encontrou poucas semanas depois, mas nunca
trouxe o filho de volta. Dizem que pai e filho se encontraram, logo depois
de Nathan ter feito uma das maiores matanças já vistas pelos Protetores. As
histórias dizem que ele tinha emboscado e matado quinze Desertores
sozinho. E quando Brian voltou, apenas disse para Ravenna que Nathan
estaria caçando Desertores por conta própria e não voltaria tão cedo.
Eu sempre me esquecia que as pessoas que agora me protegiam
eram assassinos também. Que Serena era uma assassina. E não deveria, mas
me chocou um pouco saber que o garoto que vi ontem era um assassino tão
bom quanto Serena relatava.
— Isso não faz sentido algum — eu disse. —Por que ele deixaria o
Outro Lado? Você não vive dizendo que é um lugar incrível e que eu
amaria?
Ela realmente me disse isso milhões de vezes. Acho que para me
preparar para quando eu tivesse que me mudar para lá. Aparentemente,
meus pais não estavam muito confiantes de que conseguirão me proteger
fora da redoma dos Protetores e Ravenna não parecia prestes a mudar de
ideia em nenhum futuro próximo.
Serena balançou a cabeça.
— É um lugar incrível. Não tenho ideia do porquê ele quis ir
embora.
— Porque ele é um covarde.
Dei um pulo de susto, espirrando água para os lados. A voz
profunda e zangada veio de trás de mim. Encontrei Roman parado, de
braços cruzados, em seu couro avermelhado reluzente, na costa do Lago nos
observando com o rosto franzido. Como ele não estava suando como um
porco nestes trajes era um mistério para mim.
— Então você também conhece ele — presumi.
— Nós fizemos o treinamento juntos.
— Roman não gosta dele — Serena me informou, apesar de já
parecer óbvio. — Bem, ele não gosta agora, porque, se me lembro bem,
eles eram amigos antes.
Vi Roman revirar os olhos.
— Nunca fomos amigos de verdade.
Serena deu de ombros.
— Se você diz...
— Por que estão falando sobre ele? — Roman questionou.
— Porque Aly viu ele ontem.
— Eu acho que era ele.
— Se ele nos ensinou alguma coisa, é que não devemos esperar que
ele fique por muito tempo — Roman resmungou. Seus olhos varreram a
casa vizinha, acho que para se certificar que estava de fato vazia. —
Imagino que ele já tenha sumido de novo.
— Quando acordei, o carro dele já não estava mais aqui —
confirmei.
— Ele provavelmente veio para o festival de solstício — Serena
arriscou.
Roman bufou, cinicamente, como se aquele fosse o pensamento
mais improvável que alguém poderia ter.
Virei tão rápido para encará-la que meu cabelo jogou água direto em
seus olhos.
— Ei! — ela protestou.
— Há um festival?
— Sim, na cidade, alguns minutos daqui. Acho que os humanos
fazem para celebrar o início do verão — disse. — Por que você está com
esse olhar?
Abri um sorriso malicioso.
— Porque quero que você me leve.
Serena riu tão alto que o som deu eco, percorrendo o Lago até
encontrar a floresta.
— De jeito nenhum.
Fiz biquinho.
— Por favor, Serena! Eu nunca fui em uma festa na vida. Nunca
mesmo.
— Você está ficando louca? — ela esguichou. — Você tem noção do
que está pedindo? Alyssa, você tem a porcaria de um alvo nas costas. Fora
deste Lago, você é uma isca fácil.
— Eu não sou tão inútil assim! — me irritei. — Fui treinada
também. Sei me defender.
— Não contra Desertores.
— Você não sabe — rebati, cruzando os braços.
Ela nadou até a borda do Lago e se ergueu para sair da água. Serena
apontou para Roman, que parecia entretido com a discussão.
— Você acha que ela pode se defender contra um Desertor?
Roman estalou a língua.
— Nem se estivesse em um dia de sorte.
Bufei alto e segui Serena para fora do Lago.
— Vocês me subestimam. Poderiam descobrir que sou melhor do
que pareço.
— Hum, prefiro viver na dúvida. Pretendo deixar você bem longe
daqueles porcos malditos.
Olhei para Roman. Meu olhar pedia apoio. Talvez ele pudesse me
ajudar a convencer Serena. Mas ele parecia totalmente fora de alcance,
enquanto me observava caminhar para fora da água.
— Roman, me ajude aqui — pedi então, com o meu melhor olhar
inocente.
Ele piscou e então coçou a garganta. Seus olhos foram de mim para
Serena.
— Hum, não sei se é uma boa ideia.
— Vocês vão comigo. Vão me manter segura — insisti. Minha mãe
e Jasper têm me treinado todos os dias, eu estava cada vez melhor. Eu
realmente achava que podia me defender contra um Desertor, mas talvez
mais de um seria testar a sorte.
— Mesmo se aceitássemos levar você, seus pais nunca permitiriam
— Serena disse, exasperada.
Minha amiga se enxugou rapidamente e me jogou uma toalha.
— Nós poderíamos sair escondido. Ouvi dizer que eles vão em uma
reunião hoje à noite. Provavelmente vão ficar fora por horas.
— Alyssa... — Roman começou.
— Não — interrompi, antes que tentasse me fazer mudar de ideia.
— Eu sei que é um risco, ok? Eu sei. Mas olhe bem para o passado: Diana
foi morta, mesmo estando enclausurada aqui. Mesmo sem deixar o território
do Lago, eles a encontraram e Vicenzo a matou. — Era tão estranho falar o
nome dele, como se nos conhecêssemos quando nem sabia como ele se
parecia. Não tinha ideia de quem era o homem que queria tanto me matar, e
mesmo assim, um arrepio me percorria toda vez que falava dele. — Nós
não precisamos ficar muito tempo, eu só quero ver como é. Nunca fui em
uma festa. Nunca nem vi grandes interações humanas e quero ter essa
experiência.
— Você percebe que pode ter essa experiência depois que atingir a
maioridade, não é? — Roman expôs.
— Quem me garante que terei a oportunidade? — retruquei.
— Se ficar se mostrando pelas ruas humanas, suas chances caem
bastante! — Serena grunhiu.
— Ei, fale baixo! — bati em seu ombro. Ela me olhou feio. —
Minha mãe tem a mesma super audição que você, caso não se lembre.
— Não estamos perto o suficiente —disse, revirando os olhos para
mim.
Coloquei meu vestido sobre o biquíni ainda molhado e me virei para
Roman. Ele parecia ser minha melhor chance. Eu podia ver o tanto que a
vida que eu levava o perturbava, provavelmente porque ele mesmo se sentia
preso aos Protetores. Provavelmente porque não teve escolha alguma.
Nenhum deles tinha.
Não o conhecia o suficiente, mas podia ler isso em sua expressão,
toda vez que falava sobre os Protetores e o Outro Lado.
— Eu não vi nada — eu disse, tirando o cabelo molhado do rosto.
— Tudo o que conheço é fruto da minha imaginação, ou de livros ou da
televisão. Nunca fui em um parque. Nunca andei na roda gigante ou comi
algodão doce. — Olhei para Serena que me observava, triste. E por mais
que eu odiasse aquele olhar, decidi tentar usá-lo ao meu favor. — Sei que
isso não deveria ser minha maior preocupação agora, mas é. Não tenho
tanto medo da morte quanto tenho de não ter vivido quando ela me
alcançar. Então, por favor, me ajudem a ter pelo menos essa experiência.
Ouvi Roman suspirar.
— Talvez a gente consiga levá-la. — Ele não estava mais olhando
para mim. Seus olhos, cor de chocolate, estavam fixos em Serena. — Ela
pode tentar se disfarçar um pouco.
— Uma peruca, talvez? — sugeri, não tendo ideia onde conseguiria
uma.
— Não seja ingênuo, Roman, qualquer um pode ver a marca dela.
— Eu posso pôr uma luva — sugeri novamente, mesmo sabendo
que nenhum dos dois estavam prestando atenção em mim.
Usar uma luva no verão seria ridículo, mas eu tinha algumas que
não cobriam a mão inteira, que talvez funcionasse. Eu nunca entendi porque
minha mãe me fazia usá-las quando saíamos pela cidade, mas agora fazia
sentido.
— Mesmo assim, a esta altura eles conhecem o rosto dela.
— Nem todos — Roman argumentou.
— Por favor, Serena — implorei de novo, sem o mínimo de orgulho
mais.
— Por que você tem que estar tão interessada nisso? — Ela me
encarou por um tempo, como se tentasse me ler. — É por que acha que vai
encontrar Nathan? Porque, sinceramente, eu sei que disse que ele poderia ir,
mas era uma brincadeira.
A ideia de ver o garoto de olhos azuis não me parecia ruim,
principalmente sabendo que eu provavelmente o conheci quando era
criança. Mas não era por isso que queria ir ao festival. Prometi à minha mãe
que tentaria viver. Viver. E era o que eu estava tentando fazer agora.
Não me importava que fosse exatamente o que ela não queria.
— Não é por isso — neguei. — Só estou cansada de apenas
sobreviver.
Serena suspirou. Alto. Dramaticamente.
E assim eu soube que tinha conseguido convencê-la.
Meus pais já haviam saído para a reunião e deviam ficar lá por mais
ou menos três horas. De qualquer forma, Roman pediu que um Protetor o
informasse. Teoricamente, esta era a sua noite de me proteger, mas Serena
também estava ali para nos acompanhar.
Observei meus Protetores com diversão. Era a primeira vez que via
Roman com roupas normais, e ele ficava bem nelas. A calça jeans e a
camiseta branca, caíam bem, apesar de ele reclamar que era mais difícil
guardar suas armas. Serena, por sua vez, estava usando um vestido azul de
verão lindo. Mas vê-la tão... humana, não me deixava tão espantada, porque
já tinha visto antes em Nova Orleans. Eu decidi ir com uma pantalona jeans
e um cropped com mangas longas de cetim branco, que caiam sobre minhas
mãos.
Saímos de casa com o pôr do sol.
— Isso vai ser incrível — eu disse, confiante do banco de trás do
SUV de Roman.
Através do retrovisor eu vi Roman revirar os olhos e Serena soltar
um suspiro.
— Que bom que um de nós está positivo quanto a isso — minha
amiga retrucou. — Ignorando completamente o fato de ser uma missão
suicida.
Estalei a língua.
— Não, não — disse a ela, com um sorriso. — Isso não é uma
missão, Serena. É um passeio. Haja de acordo.
Não iria me permitir sentir medo. Não naquele dia. Hoje à noite, eu
seria qualquer coisa, menos a Fidly. Eu era só humana e não havia ninguém
me perseguindo.
Pensei ver um riso preso nos lábios de Roman, mas ele logo fechou
o semblante quando Serena o fuzilou com os olhos. Passamos o restante do
caminho em silêncio depois disso. Quase podia sentir a tensão no ar, mas
não permiti que me atingisse. Aquela era a primeira vez que iria participar
de algo tão mundano quanto um festival de solstício. Primeira vez que iria
poder ver as pessoas interagindo de verdade, em um ambiente feliz e
comemorativo.
Era a primeira vez que saía da minha gaiola, e não podia pensar em
nada além de voar.
Quando Roman estacionou o carro, pulei para fora com rapidez.
Meus olhos varreram a paisagem à minha frente. Em um terreno plano e
longo, barraquinhas se erguiam, junto a alguns restaurantes com mesas na
calçada e brinquedos de diversão espalhados. Uma roda gigante estava
posta no centro do festival, e em um canto à minha esquerda, havia uma
banda tocando uma música animada. Outros brinquedos estavam dispersos,
alguns radicais e outros nem tanto.
As pessoas enchiam o espaço. Crianças, jovens e adultos. Até um
grupo de idosos que pareciam em uma excursão me chamou atenção.
Só percebi que estava parada como uma estátua, observando ao meu
redor, porque Roman colocou sua mão na base da minha coluna. Ele me
guiou por um caminho alternativo, onde não esbarraríamos em tantas
pessoas. Seus olhos vasculharam a aglomeração, mas diferente dos meus,
ele não parecia fascinado. Na verdade, não poderia estar menos animado
com o que via. Entendi que seu objetivo era apenas um: encontrar possíveis
Desertores e me manter segura. Roman era um soldado e este era apenas
seu trabalho.
Do meu outro lado, olhei para Serena. Também focada e séria, mas
ao contrário de Roman, ela pelo menos, se permitia absorver alguns traços
do festival. Vi seus olhos subindo para a roda gigante e depois indo para
uma barraca de doces. Ela ergueu as sobrancelhas para mim, indicando a
barraca.
Sorri, satisfeita.
— Você tem mais ou menos duas horas — Roman me informou. —
Decida o que quer fazer e nos diga para acompanhá-la.
O que eu queria fazer?
Deus, queria fazer tudo. Queria andar na roda gigante, tentar o tiro
ao alvo e comer um algodão doce do tamanho da minha cabeça. E depois
queria repetir tudo isso.
— Acho que quero começar com o algodão doce — decidi depois
de um tempo, um sorriso machucando minhas bochechas.
Serena apontou para uma barraquinha, próxima a uma fonte, com o
formato de um anjo.
Enquanto caminhávamos até a barraca, não me preocupei em buscar
possíveis ameaças. Serena e Roman estavam ocupados o suficiente com
isso. Ao contrário deles, me distraí com a música e com as vozes ao meu
redor. Gritos vinham de um brinquedo que levava pessoas até o topo do que
parecia uma torre e depois despencava até quase atingir o chão. Meu corpo
se aqueceu com a adrenalina. A alegria e a normalidade que me envolviam
parecia contagiante.
Isso era vida. Pura. Cheia.
Normal.
Um grupo de crianças corria com brinquedos de pelúcia nas mãos e
um garotinho mais jovem e mais afastado do grupo trombou comigo.
Precisei segurar seus bracinhos para que ele não caísse de bunda no chão.
Seus grandes olhos castanhos encontraram os meus, envergonhados. Sorri
para ele e o soltei. O garotinho, que mal alcançava minha cintura, abriu um
sorriso agradecido e saiu correndo, tentando alcançar os amiguinhos.
Flagrei os olhos de Roman me avaliando atentamente. Arqueei uma
sobrancelha, querendo saber no que estava pensando, mas ele se virou sem
dizer nada, voltando a se concentrar na multidão.
— A moça bonita vai querer um algodão doce? — Uma senhora,
que parecia ter mais de sessenta anos, me ofereceu um sorriso caloroso
quando me aproximei. Ela tinha colares de cristais em seu pescoço e
grandes anéis de ametista por todos os dedos. Os longos cabelos brancos
estavam presos em uma trança simples e seu rosto guardava traços
indígenas.
Devolvi o sorriso.
— O maior que a senhora puder fazer — pedi com gentileza.
Ela assentiu e começou a trabalhar. O processo de fazer um algodão
doce me deixou boquiaberta. Ela rodava um espeto em volta de uma panela
com um furo no centro, onde ela colocou uma grande porção de açúcar.
Quando os fios começaram a se formar, como uma teia de aranha, soltei um
suspiro de apreciação.
— Você realmente nunca tinha visto um algodão doce? — Roman
perguntou, observando-me com os olhos absurdamente atentos.
— Eu já tinha visto um, por fotos. E uma vez meus pais compraram
aqueles que vem em um pote de plástico para mim. Mas nunca vi como
eram feitos.
Serena riu.
— É como se você fosse um filhotinho descobrindo que a coisa
verde no quintal é grama. — Ela apertou minha bochecha e eu dei um tapa
em sua mão. — É adorável.
Revirei os olhos.
— Pare de zombar.
— Não estou zombando — minha amiga respondeu. — Aliás,
queria ter podido te levar às ruas de Nova Orleans à noite. Você ficaria
ainda mais impressionada.
Eu tinha certeza que sim. Enquanto morava lá, mesmo da nossa
casa, mais afastada dos bairros movimentados, era possível ouvir o jazz
tomando a atmosfera, como se possuísse poder próprio. Acho que foi uma
das cidades mais cheias de vida e arte em que já morei.
Roman colocou o dinheiro em cima da mesinha da mulher antes que
eu pudesse negar. A senhora sorriu e estendeu o algodão doce, agora pronto,
para que eu pegasse. Estiquei minha mão em direção a sua e nossos dedos
se tocaram levemente quando tirei o doce de sua mão enrugada. Os lábios
da senhora se abriram, espanto tomando seus olhos escuros e levemente
puxados.
Serena me puxou para mais perto, mas não tirei os olhos da senhora
que ainda me encarava. Quando sua voz finalmente saiu de seus lábios
entreabertos, apenas uma palavra saiu:
— Morte.
A velha me olhou, como se enxergasse minha alma marcada.
— Cuidado, menina — sussurrou.
Sua fala mal chegou em meus ouvidos e já estava tropeçando para
trás. Serena e Roman não disseram nada, apesar dos olhares em seus rostos
me dizerem que também estavam surpresos, talvez até mesmo assustados.
Roman pegou meu braço e me puxou para longe.
— Como...?
Mas Roman não me deixou terminar.
— Alguns humanos tem certa... mediunidade. Alguns são capazes
de ver além da cortina que cobre nossos mundos. Alguns dizem que o
Destino escolheu Margot, já sabendo que ela tinha certo dom quando ainda
era humana.
Margot, a Guardiã da Oceania. Eu não me lembrava muito bem de
qual era o seu poder, mas sabia que ela tinha pertencido a uma tribo em uma
das pequenas ilhas do continente, antes de o Destino abençoá-la. Pelo
menos foi isso que me contaram.
— Então aquela mulher, simplesmente, previu meu futuro? —
minha voz estava tão baixa, que se eles não tivessem habilidades especiais e
eu não estivesse pressionada contra o lado esquerdo do corpo de Roman,
nem ele, nem Serena poderiam ter me ouvido.
— Não — Roman negou rápido. Rápido demais, percebi.
— Nem sempre é uma previsão, Aly — Serena disse. — Talvez ela
pôde sentir a morte das outras Fidlys em você, já que vocês estão
interligadas de alguma forma. Margot presenteou algumas mulheres
indígenas com uma semente do poder espiritual, para que pudessem se
proteger e serem respeitadas pelos homens. Apesar de ela ter feito isso mais
na Oceania, é possível que, ao longo dos milênios, a linhagem tenha se
espalhado.
— Eu deveria saber o que é poder espiritual?
— Entre muitas coisas, é o poder de sentir vida e morte. De ver
espíritos e talvez usá-los — Serena explica. — A Guardiã da Oceania
possui o poder de absorver energia, sentir vida e morte e, ainda, conseguir o
apoio de almas do plano espiritual.
Será que todas as Guardiãs tinham poderes tão estranhos?
— Hum, ok? — eu disse, incerta.
Roman parou de repente e se virou para mim. Suas mãos seguraram
meus ombros e seus olhos cor do chocolate se fixaram nos meus. Ele
pareceu tentar suavizar sua expressão, mas não funcionou tão bem, ainda
parecia tenso demais.
— Não deixe isso acabar com a sua noite, ok? Ela é só uma humana.
O que ela diz não significa nada e mesmo se significasse, nós já estamos
aqui. Nos arriscamos para você aproveitar esta noite, então me faça o favor
de aproveitar.
Sua expressão era determinada, mas não maldosa, apesar de suas
palavras firmes.
— Não iremos permitir que a ameaça a alcance. Juramos com
sangue e fogo — Serena recitou as palavras como se fosse uma oração.
Respirei fundo.
Os dois estavam certos. Não podia deixar todo o trabalho que
tivemos para vir aqui, ser destruído pelas palavras de uma senhora que nem
conhecia.
— Tudo bem.
Por isso, durante a próxima hora, nós brincamos em praticamente
todo brinquedo possível. Ganhei três bichinhos de pelúcia, mas os entreguei
para algumas crianças que estavam por perto, já que não podia haver nada
que me ligasse àquele lugar. Se meus pais descobrissem, eles mesmo me
matariam.
Quando nos cansamos dos brinquedos e jogos, nós nos juntamos às
pessoas na pista de dança sob as cordas de luz, que fazia com que o céu
parecesse iluminado por milhares de estrelas. Roman preferiu ficar mais
longe da dança, apenas observando a movimentação.
Eu e Serena dançamos com várias outras pessoas, enquanto a
música indie nos envolvia. Eu girava, girava e girava, como se fosse um
peão. Alguém me puxou para dançar, engatou os braços nos meus e
rodamos juntos. Era um estranho mais velho, que sorriu com bondade para
mim. Ele então me soltou e agarrei Serena em uma dança estranha e agitada
demais. Eu dei risada quando tropeçamos nos pés uma da outra. Nós
rodopiamos juntas até que estávamos suadas e com os pés cansados.
Eu me sentia livre. Sentia como se a tontura da dança fosse uma
prova de que podia sentir. Que minha vida era minha. Eu podia dançar ou
rodopiar até não conseguir andar em linha reta, e mesmo assim eram
minhas escolhas.
Por fim, deixamos as pessoas dançando e fomos procurar algo para
comer.
Comi mais do que realmente deveria, e quando estava prestes a
subir na roda gigante, meu estômago protestou, mas fingi que não percebi e
fui em direção aos bancos mesmo assim. Serena se juntou a mim, mas
Roman decidiu ficar de guarda em terra firme. Claro que Serena não deixou
aquilo passar e lançou comentários zombeteiros para ele. Como o bom
soldado que era, Roman apenas a ignorou, mantendo sua posição ereta e
vigilante.
Quanto mais alto subíamos, mais me segurava à grade que nos
prendia à cadeira. Minhas mãos ficaram frias, mas engoli o medo e observei
o céu, a cidade e as pessoas abaixo de mim. O brilho da cidade era um
contraste incrível para a escuridão do céu.
Uma brisa fresca balançou meus cabelos e eu sorri para a imensidão
negra.
Pela primeira vez na vida me senti livre. Por um segundo.
— Agora que estamos sozinhas, posso falar o que penso — Serena
disse, olhando para o chão. Segui seu olhar e encontrei a silhueta de Roman
ao longe. — Não sei bem o que aconteceu, mas ele não suporta nem mesmo
tocar no nome de Nathan. Por isso pareceu tão irritado quando tocamos no
assunto.
Franzi a testa.
— Eu não entendo, eles não deveriam ser amigos? — questionei. —
Aquela coisa de irmandade e tudo o mais.
Serena deu de ombros.
— Nathan pode não ter desertado, mas ninguém confia nele.
— Por que?
— Porque faz anos que ele não aparece nos nossos eventos
tradicionais. É como se ele não quisesse fazer parte do que somos. Fora o
fato de tomar certas atitudes... bem, atitudes estranhas.
— Que tipo de atitudes estranhas?
Serena tamborilou os dedos na grade.
— Além de se isolar de nós, ele sempre se mete em missões em que
não devia. Ele não segue as ordens de Ravenna. Todas as suas decisões são
pessoais. Da última vez que ouvimos falar sobre ele, Nathan estava caçando
os Desertores que tiveram envolvimento no ataque que matou seus avós, os
pais de Diana.
— É um problema que ele queira se vingar? Se a ideia é matar
aqueles que desertaram, então ele está se saindo bem.
— O problema é que ele não segue ordens — ela explicou. — Os
Protetores seguem hierarquias bem solidificadas e as defendem com afinco.
A insubordinação de Nathan ainda traz bastante burburinho entre os mais
velhos.
— Você acha que ele desertaria?
— Acho que se ele quisesse, já teria desertado — Serena respondeu.
— Mas isso não quer dizer que confio nele. Não tenho muito motivo para
isso também, a última vez que o vi foi um pouco depois de receber a
tatuagem.
Lembrei-me do jovem da noite passada, de olhos azuis límpidos.
Coberto pela escuridão da noite e a chuva, ele parecia mais como um
fantasma.
Um arrepio subiu pela minha espinha.
— Talvez ele tenha tido algum motivo para ir embora — Serena
disse, depois de um minuto inteiro de silêncio. — Mas não me sentiria
segura com ele. Nathan é, com certeza, um cara perturbado. Era engraçado
que Roman fosse seu amigo, quando eram completamente opostos. Nathan
encontrava um motivo para brigar todo santo dia no Outro Lado, era sempre
Roman ou Jasper que conseguiam acalmá-lo.
— E o pai dele? Brian não estava no Outro Lado também?
Serena observou as pessoas abaixo de nós. Agora que estávamos no
topo, todos pareciam pequenas formigas.
— Não acho que ele e Brian tenham um relacionamento muito
bom.
Por que? Eu queria continuar enchendo Serena de perguntas. Não
duvidava que ela saberia respondê-las.
Diana lutou tanto pelo bebê. Foi uma guerreira até o fim para manter
o filho e Brian a salvo. Parecia estranho que o mesmo homem que observei
abraçar a Fidly com o bebê no colo — naquela foto que encontrei —, não
fosse próximo do próprio filho. Eu me lembrava vagamente do vizinho que
Brian foi um dia, sempre calado, mas educado e gentil. O que havia
mudado? Como Nathan poderia ter se tornado algo além daquilo?
Eu não disse nada pelo resto da descida. Quando a roda gigante
finalmente parou, encontrei Roman no mesmo lugar que antes. Ele me
olhou, parecendo relutante, e então me entregou a bolsa que segurava para
mim.
— Sobre o que estavam falando? — ele perguntou.
— Serena estava me dizendo que não confia em Nathan — disse,
sem contar sobre termos discutido sua relação estranha com o Protetor.
— Bem, ela está certa. Nathan não é confiável. Ele é a porra de uma
bomba relógio — afirmou, amargura tomando sua voz. — Você faria bem
se ficasse o mais longe possível dele, se é que ele de fato está de volta à
cidade.
Ignorei a sensação estranha que me tomou, como se eu não pudesse
aceitar suas palavras. Parte de mim queria defender o jovem que eu nem
mesmo conhecia.
Eu havia sonhado com Diana e o bebê que se tornou Nathan, tão
pequeno e gorducho que parecia impossível que aquela mesma criança, a
qual a Fidly embalava com carinho e devoção, tinha se tornado alguém com
a descrição dada pelos meus amigos. Nathan era alguém que esperava seu
cachorro correr e vasculhar todo o gramado de casa, mesmo embaixo de
chuva, antes de chamá-lo para entrar em casa. Ele não reclamou ou se
irritou, mesmo enquanto a água encharcava suas roupas. Até mesmo
pareceu entretido observando o animal. Alguém que fazia isso poderia ser
tão mal assim?
Mas, se eu fosse sincera, sabia que muitas coisas podiam
transformar uma pessoa e um momento de ternura não definia caráter
algum.
Talvez o tempo ou as circunstâncias tivessem quebrado aquele bebê.
Dessa vez, nós pegamos o barco que há muito tempo estava parado
no galpão ao lado de nossa casa. Colocá-lo na água, por si só, foi um tanto
trabalhoso. Levamos as malas e logo embarcamos. Percorremos uma longa
área, sentindo a água bater contra o casco do barco.
Como sempre, as águas estavam calmas. Ninguém por perto, além
de nós. O vento ricocheteava meu rosto e eu inspirava fundo aquele cheiro.
Natureza. Liberdade. Até onde eu sabia, o Outro Lado podia ficar no
subterrâneo.
Nenhum de nós disse nada o caminho todo. O vento falava o
suficiente.
Por fim, minha mãe parou o barco na costa, em frente a floresta
densa que circulava o Lago. Ao fundo, era possível ver a silhueta de uma
montanha se erguendo. Minha mãe soltou a âncora na água, que se afundou
entre as pedras rapidamente. Não estávamos em uma área muito funda, a
água bateria em minhas coxas, provavelmente, e eu fiquei encarando o
lugar, esperando entender o que estávamos fazendo ali.
— Desculpe. — Olhei em volta. — Mas por que paramos?
Não havia nada. Nenhum prédio ou mansão que pudesse indicar ser
o lar dos Protetores, nem mesmo uma entrada subterrânea. Aliás, paramos
bem em frente à margem límpida e calma do Lago, a apenas alguns metros
de distância. Aqui, ele era como um espelho. Quieto e reluzente. Uma
elevação, que daria até uma montanha, rodeava a costa do Lago de um lado,
enquanto árvores o rodeavam por outro. Podia ver o céu a poucos metros
dos meus pés, como se eu estivesse olhando para cima de tão límpida e
estática que a água estava. Não havia nenhum mínimo distúrbio nela.
Estava mais quieta do que jamais imaginei ser possível.
Nem mesmo nosso barco parecia perturbar a calmaria do Lago.
— Chegamos — minha mãe anunciou.
Franzi a testa.
— Não há nada aqui.
Roman abriu um sorriso irônico.
— Não se você não for uma Protetora — disse.
Minha mãe foi a primeira a descer do barco, com algumas malas em
mãos. Depois, meu pai e Roman a seguiram, levando mais malas. Como eu
imaginei, a água não chegava a tocar suas coxas. Eu fui a próxima, pulando
do barco com destreza, minhas mochilas nas costas. Segui o grupo até a
margem arenosa, com pedrinhas brilhosas distribuídas pelo solo.
Andamos apenas alguns metros sobre as pedras, até todos pararem e
eu quase trombar com Roman.
O Protetor se virou e estendeu uma mão para mim. Eu a peguei sem
entender o motivo. Ele me puxou para mais perto da água e só paramos
quando meus pés, descalços desde que desci do barco, voltaram a se
molhar.
— O que você vê?
Encarei o Lago. Raios de luz prateados e dourados, se misturavam à
água de uma forma que jamais havia visto, em toda minha vida. A imagem
do céu se desfez aos poucos, dando espaço para uma mistura de cores
metálicas que tornavam a água ainda mais reluzente. A transformava em um
espelho. Vi meu relance ao mesmo tempo que vi algo vivo nas profundezas
da água.
— Essa água está estranha.
Meu pai riu.
— O estranho se tornou comum a este ponto — disse.
Os dedos de Roman se entrelaçam nos meus e ele apertou
suavemente minha mão. Ergui a cabeça e o peguei me olhando atento e
curioso. A sensação do seu dedo acariciando minha marca era diferente e...
boa. A proximidade que nunca tive pareceu excitante.
Ele soltou a minha mão e meneou a cabeça em direção a água.
— Toque a água.
Curiosa, ajoelhei-me e estiquei o braço para que minha mão direita
encontrasse a água. Meus dedos mergulharam e, então, minha palma, até
que todo meu pulso estivesse submerso. E não demorou nem três segundos
para eu perceber. Quem não perceberia? A água cantou para mim,
movimentando-se languidamente, como se estivesse adormecida, por um
longo tempo. As cores metálicas ficaram mais fortes e mais intensas. Eu
poderia jurar ver minha mão direita, submersa, brilhar bem onde minha pele
era marcada.
Soltei um pequeno grito quando a água começou a subir pelo meu
braço como uma serpente, enrolando-se na minha pele. Eu me tornei uma
extensão daquele Lago. Minha outra mão mergulhou instintivamente e a
água, mais uma vez, começou a me escalar. Seu toque era leve e morno, e
era engraçado porque não parecia molhado — não que isso fizesse sentido.
Era como um toque. Como se o Lago fosse um ser vivo e não uma
substância química.
Respirei fundo observando a movimentação.
Pisquei uma vez.
Senti um puxão.
Abri os olhos e me deparei com uma mulher de cabelos ruivos,
quase como fogo. Seus olhos verdes eram frios e sombrios apesar da cor
clara. Olhei para minhas próprias mãos, secas, e para o Lago ao meu lado.
Olhei em volta, procurando meus pais e Roman, mas só encontrei novos
rostos desconhecidos.
Ah, Deus.
O Lago me puxou.
No momento em que minhas mãos estavam submersas, tão rápido
quanto um piscar de olhos, eu estava aqui. Fui transportada para este lugar.
E estava assumindo que aqui fosse o Outro Lado.
Não sabia como diabos isso era possível, mas era como se ele
tivesse me puxado para dentro de si, e agora me encontrava em uma versão
mais brilhante de onde estava há um segundo atrás.
A mulher me olhou atentamente, como um gavião.
— Seja bem-vinda ao Outro Lado, Fidly — sua voz era fria, mas
não como a de Brian. Enquanto Brian parecia vazio, esta mulher parecia...
Irada. — Eu sou Ravenna.
Segundos mais tarde, meus pais apareceram ao meu lado, como num
passe de mágica, seguidos por Roman. Eu ainda estava completamente
paralisada, com os joelhos na grama úmida, tentando entender esse lugar
que se estendia por quilômetros e mais quilômetros e as pessoas que
preenchiam minha vista. Minha mãe tocou meu ombro e me estendeu uma
mão, para que eu ficasse em pé.
Saí do meu transe e fiquei de pé, tentando manter uma postura
adequada, em frente a todos esses guerreiros que pareciam ter uma coluna
de ferro.
— Meu nome é Alyssa — informei Ravenna.
Ela não poderia mostrar que se importava menos com minhas
palavras.
— Sei quem você é.
Agora eu entendia porque meus pais pareciam apreciar esta mulher
tanto quanto jogar pimenta nos olhos. Senti minha mãe se aproximar com
um grunhido, ao mesmo tempo que Brian se aproximou do grupo de
Protetores me encarando.
— Tenho certeza que Alyssa não precisa de todos vocês para
recebê-la em seu primeiro dia — o pai de Nathan disse. — Estão parecendo
um bando de abutres.
Brian e minha mãe trocaram um longo olhar e, apesar de não o
conhecer, eu soube que era sua forma de pedir que minha mãe tivesse
paciência. Minha mãe balançou a cabeça levemente, quase
imperceptivelmente. Eles pareciam se entender, como se fossem amigos de
longa data. Quem sabe realmente eram. Acho que terem sido encarregados
de proteger Diana anos atrás, tornaram-nos próximos.
— Agora que ela finalmente está aqui, terá que se acostumar com o
nosso povo, Brian — Ravenna retrucou.
Ela fez questão de enfatizar o “nosso”. E eu achando que iria
demorar mais do que três minutos para querer voltar para casa.
Eles esperavam que eu matasse por eles, e este era o único motivo
pelo qual me acolhiam agora. Se eu fosse totalmente humana, como meu
pai, eu não seria bem-vinda ali. Pelo menos era o que me pareceu, quando
olhei para Ravenna e seu olhar não podia significar nada mais que interesse
e triunfo. Interesse porque precisava de mim. Triunfo, entendi, porque eu
estava em suas mãos agora.
Atrás de Ravenna, mais algumas pessoas estavam reunidas, sendo
três homens e quatro mulheres. Além deles, uma linha espessa de árvores
contornava a costa do Lago. Era como um zoológico, onde eu era a atração
principal e havia acabado de chegar. Mais ao longe, tinha certeza de ter
visto Jasper observando-nos, encostado em uma árvore, enquanto afiava
uma adaga curta. Senti vontade de rir porque aquilo era exatamente como
eu imaginava Jasper, em seu tempo livre.
— Talvez seja melhor levar Alyssa para sua cabana, para que ela
possa se acomodar, antes de começarmos uma conversa — meu pai disse,
provavelmente tão esgotado por este encontro como eu já me sentia.
Talvez ele tivesse ainda mais motivos para se sentir exausto aqui, do
que eu poderia ter. A hostilidade com a qual Ravenna olhava para meu pai,
assim como os Protetores que a rodeavam, era a prova de que ele não era
respeitado por aquelas pessoas. Ficou bem claro, muito rapidamente, do
porquê minha mãe decidiu deixar este lugar.
A fúria prometeu queimar minha garganta, mas me forcei a não
dizer nada. Ainda não.
— Leve-a à cabana das Fidlys — Ravenna nos dispensou. —
Falaremos mais tarde.
Ela nos deu as costas sem ao menos cumprimentar qualquer um de
meus pais.
Fiquei parada, meio boquiaberta, com esta apresentação um tanto
quanto áspera, observando Ravenna ir embora. Seus couros avermelhados,
como seus cabelos, e sua postura rígida e alta, não me pareceu nem um
pouco amigável.
Eu não era especialista em interações humanas, mas tinha certeza
que um primeiro encontro poderia ser melhor que isto.
O silêncio se quebrou quando meu pai pigarreou.
— Bem, ela não mudou nada.
Sua intenção era aliviar o humor, mas estava claro que minha mãe
não se deixaria levar. Seus olhos eram pura fúria mal contida. Eu podia ver
que algo entre ela e Ravenna havia dado errado há muito tempo.
Aparentemente, as pessoas aqui tinham muitas questões mal
resolvidas.
Roman foi quem começou a andar primeiro, o que me deixou
agradecida, porque se fosse depender dos meus pais, ficaríamos parados
aqui por um bom tempo. Minha mãe perdida em sua fúria e meu pai
tentando acalmá-la. Ah, e os Protetores ainda me encarando.
Meus pais nos seguiram de perto, mas andei ao lado de Roman.
Quanto mais nos afastávamos da margem do Lago, melhor era minha visão
do que eles chamavam de o Outro Lado.
— Eu sempre ficava me perguntando porquê vocês chamavam este
lugar de Outro Lado — murmurei. — Faz bastante sentido agora.
Aquele lugar era exatamente como o Lago em minha casa. Mas, de
alguma forma, ainda era completamente diferente. Mais vivo.
Roman sorriu levemente.
— O que você está achando até agora?
— Parece que tudo aqui é mais... brilhante. Como se as cores
fossem mais vivas. O lago parece mesmo um espelho e aqui é como uma
versão mais estonteante de onde estávamos. — O ar fresco e totalmente
limpo entrou por meus pulmões e saiu como um suspiro. — Como isso é
possível? O Lago me puxou.
— Isto tudo é trabalho das Guardiãs. — Ele fez um movimento
abrangente com os braços. — Elas construíram este lugar e outros ao redor
do mundo, como um refúgio seguro para os Protetores. É como uma
subdimensão.
Eu o olhei, confusa.
— Subdimensão?
Ele assentiu.
— Pense em uma folha branca e lisa e então dobre-a em um dos
cantos. Você passa a ter duas áreas diferentes no mesmo papel, certo? Uma
subdimensão é mais ou menos isso. Como uma dobra da realidade. Não é
grande o suficiente para ser considerado uma dimensão inteira, mas é uma
parte subjacente de uma dimensão existente — explicou. — Aqui é como
uma réplica pequena do mundo humano. Tudo funciona da mesma forma
que na dimensão original, então há acesso à internet e sinal para televisão,
por exemplo. Nós nunca usamos, mas é possível se quisermos. A grande
diferença é que há magia pulsando aqui, tanto em nossas proteções quanto
no próprio ar.
Minha mãe havia falado sobre dimensões, mas essa coisa de
subdimensão era nova.
— Faz sentido que isso seja tão inacreditável que faça sentido? Eu
culpo os livros, por eu conseguir digerir tudo isso sem querer me internar
em um hospício. — As árvores que cercavam o Lago eram densas, e eu
seguia os Protetores para entrar no campo além delas. Passei por uma
árvore e resmunguei ao arranhar meu braço em um arbusto. — Dimensões
são meras especulações no mundo real. No mundo real, Lagos não engolem
pessoas e as levam para uma versão quase idêntica de onde estava.
— Se seguir este pensamento, no seu “mundo real” não há
Protetores. — Ele me olhou. — Muito menos Fidlys.
Revirei os olhos.
— Muito bem colocado, obrigada.
Meu pai riu atrás de nós e murmurou alguma coisa, mas não
consegui distinguir suas palavras. À minha frente, uma clareira enorme se
abriu em meio às árvores. Cabanas, uma grande praça, postes de luzes
ornamentados e tendas largas estavam dispostas pelo campo. Era como uma
minicidade. Ruelas de pedra perpassavam cabanas de diversos tamanhos
diferentes. Tinha um aspecto mais antigo, mas conservado.
Observei o espaço, o qual meus olhos mal podiam averiguar
completamente. Além do Lago, várias montanhas se alinhavam ao
horizonte e, deste lado, inúmeras cabanas se organizavam em longos
espaçamentos, que pareciam prever privacidade para seus ocupantes. No
centro, onde Ravenna agora andava com passos largos e rápidos, junto aos
demais Protetores, a praça circular se revelava deslumbrantemente. Uma
fonte de água cristalina ficava no centro da praça, rodeada por árvores e
flores e alguns bancos. Quanto mais nos aproximávamos, podia observar
melhor o desenho da fonte. Uma mulher se erguia sobre as águas, cabelo
longo e corpo esbelto, coberto por um vestido fluido. A mulher de pedra
estava com as mãos erguidas na altura dos ombros, como se rezasse, mas a
água escorria por suas palmas. Uma coroa adornada, como raízes
entrelaçadas, enfeitava o topo de sua cabeça.
A campina era tão longa que mal podia ver seu fim. Meus olhos
correram pela extensão e, por uma batida mísera do coração, finalmente
distingui todas as pessoas me observando. Protetores de todas as idades,
tamanhos e gêneros estavam parados do lado de fora das cabanas, ou no
meio das ruas, só para me observar.
Sangue ferveu em minhas bochechas.
E então, em um movimento lânguido, alguns Protetores, a maioria
mais velha que meus pais ou mais novos que eu, curvaram-se para mim.
Eles se curvaram. Para mim. Como se eu fosse uma rainha.
Eles se curvaram para a promessa. Uma promessa que o Destino
lhes concedeu há muito, muito tempo, e não viam a hora de ser cumprida.
Olhei para eles sem saber o que fazer, então olhei para meus pais em
busca de algum conselho. O que fazer quando alguém se curvava a você?
Minha mãe suspirou.
— Muito obrigada a todos por não tornar isso estranho — disse,
lançando um olhar cortante a todos.
Não era muito difícil perceber, os olhares descontentes que
lançavam a ela em resposta. Os mais jovens pareciam alheios àquele
sentimento, mas era algo presente sempre que os mais velhos se dirigiam à
minha mãe. E eu não podia dizer que ela não compartilhava do sentimento.
Os Protetores e Jasmine se encararam por alguns segundos tensos, em que
podíamos sentir desprezo de ambos os lados, o rancor os separando. Não
seria fácil uni-los. Minha mãe era uma guerreira como todos aqui, mas estes
não eram mais seus irmãos.
Não depois que a negaram o direito de amar.
Alguns dias depois que descobri quem eu era, descobri também
quem meus pais eram. Um humano e uma Protetora. E minha mãe não
parecia poder perdoá-los por quererem decidir quem ela devia ou não amar.
E, sinceramente, não podia afirmar que deveria. Qualquer um que via meu
pai como qualquer coisa menos do que o homem incrível que ele era, ou
não era capaz de enxergar o óbvio ou era egocêntrico demais para ver algo
além do próprio umbigo e, se, aquele fosse o caso, eu nem me preocuparia
em me aproximar daquelas pessoas.
Vi Jasper ao mesmo tempo que ele se aproximou de nós, os braços
como troncos de árvore, cruzados sobre o peito.
— Talvez seja bom que os conceda um “olá”, Fidly. — Ele parou ao
meu lado e meneou a cabeça. — São como criancinhas à espera de alguma
atenção.
Mordi o lábio, contendo um sorriso. Não achava que seria certo rir
dessas pessoas, mesmo que talvez essa tenha sido a intenção de Jasper.
— Olá.
Alguns abriram sorrisos largos para mim. Outros apenas balançaram
a cabeça em cumprimento silencioso. Uma garota loira alta e curvilínea,
toda vestida em couro, pareceu liderar um grupo mais novo que se
aproximava. Serena, que veio atrás deles correu para me abraçar e fiquei
feliz em tê-la por perto novamente, principalmente quando vi que ela não
parecia com raiva como imaginei que estaria.
— Senti sua falta, Aly.
— E eu senti a sua, S.
Ela sorriu, mas meus olhos estavam na loira cruzando os braços
sobre o peito e me lançando um olhar que só pode ser sinônimo de desdém.
— Bom, nós iremos apresentar Aly a seus aposentos — meu pai
disse, nem um pouco preocupado com certos olhares que lhe lançaram.
Dei um passo para frente, mas minha mãe me impediu de continuar.
Suas mãos se fecharam em meu braço e ela me puxou para trás. Fiquei sem
entender nada, e me virei para questioná-la, mas seus olhos estavam presos
em algo à frente. Segui seu olhar até uma mulher, que provavelmente devia
ser mais velha do que parecia. Seus cabelos eram raspados e castanhos, com
muitos fios grisalhos. Seu rosto era estranhamente familiar e seus olhos...
Seus olhos eram cor de mel.
A mulher abriu um amplo sorriso que exibiu todos os seus dentes
branquíssimos, mas não pareceu sincero. Não pareceu feliz. Aquele não era
um sorriso qualquer. Era o sorriso de um predador.
— Fico feliz de ver que finalmente retornou à sua casa, filha —
disse, a voz tão familiar quanto seus olhos. O seu sotaque profundo
denunciava que ela não era daqui. — Um pouco decepcionada em ver que
ainda não se livrou do humano. Mas feliz, porque finalmente trouxe minha
neta para onde ela deve estar.
Filha.
Neta.
Mas de que merda ela estava falando?
Minha mãe não se mexeu, mesmo que aquela mulher estivesse
falando diretamente com ela.
Percebi, então, que minha vida foi uma mentira em muitos quesitos.
Minha mãe me disse que seus pais haviam morrido há muito tempo,
como os do meu pai. Ela havia dito que sua única família era Henry e eu.
Não havia nada além. Nenhum parente vivo. Jasmine havia repetido, várias
vezes, que não gostava de falar sobre a família que perdeu. Era essa sua
desculpa. Doía demais. Era uma dor que ela preferia manter enterrada.
Mas eu estava muito certa que aquela mulher à minha frente, não
parecia tão familiar à toa. Seus olhos eram iguais aos da minha mãe. Até
seu sorriso era parecido. “Fico feliz de ver que finalmente retornou à sua
casa, filha.”
Esta mulher era mãe da minha mãe.
“Finalmente trouxe minha neta para onde ela deve estar.”
Esta mulher era minha avó.
Talvez eu devesse perguntar se havia mais alguma coisa em sua lista
de mentiras.
— Por que você está aqui? — minha mãe finalmente perguntou, a
voz mais fraca do que o normal.
— Ravenna me disse que você estava de volta, então eu vim o mais
rápido que pude. — De novo, esta mulher, minha avó, mostrou os dentes
como uma predadora prestes a dar o bote em sua presa. — Não poderia
perder este momento, não é?
Percebi um garoto de pele marrom, sair de trás da mulher que agora
me encarava com pura... fascinação. Tentei ignorar o escrutínio de seu olhar
e me foquei em minha mãe.
Nunca a vi tão desconcertada. Tão fora de prumo. Como se não
soubesse como agir em seguida. Mas logo, minha mãe ergueu os ombros e
os jogou para trás. Parecia determinada, em impedir que qualquer um aqui a
fizesse se sentir ou parecer fraca.
— Sempre enfiando o nariz onde não deve, não é mesmo Akantha?
— desta vez foi meu pai quem falou, e finalmente descobri o nome da
mulher que parecia prestes a pegar uma lupa, para observar se eu exibia
alguma imperfeição.
Meu pai não costumava ser hostil com ninguém, mesmo quando as
pessoas certamente mereciam. Mas, aparentemente, sua regra de
compostura não se aplicava à Akantha.
A mulher não parecia velha de forma alguma. Sua pele ainda era
jovem, apesar de seu olhar expor que ela fosse mais experiente do que
parecia. Eu sabia que ela devia ter por volta dos sessenta anos, mas tinha
um físico impecável e apenas algumas rugas embaixo de seus olhos. Seu
cabelo curto e a tatuagem ousada que despontava pelas laterais de seu
pescoço, faziam-na parecer ainda mais jovial.
— E você sempre sendo tão tediosamente humano — Akantha
retrucou, lançando um olhar frio para meu pai. Por puro instinto me
coloquei entre eles, pronta para protegê-lo de qualquer outro insulto e com a
intenção de deixar bem claro que, quem quer que o machucasse, também
me machucaria. Akantha observou meu movimento e abriu um sorriso que
não alcançou seus olhos. — Meu consolo é saber que não parece ter
passado suas características tediosas para minha neta. Você tem o fogo dos
Nephus.
Compreendi o porquê da hostilidade. Assim como tantos naquele
lugar, Akantha pensava que humanos eram menos importantes que
Protetores. Insignificantes. Indignos de qualquer relacionamento com um
dos seus. Ela devia ter ficado contra o relacionamento de meus pais quando
este veio à tona.
— Não coloque Alyssa no meio disso — minha mãe rosnou.
— Ela é minha família também. Tem o meu sangue — Akantha
respondeu com um aceno debochado para minha mãe. — Pensei que depois
de um tempo o humano a entediaria até a morte, mas agora sei que havia
algo interessante em que focar. — Seus olhos me examinaram de cima a
baixo, demorando um tempo na marca em minha mão. — Minha neta não
parece nem um pouco tediosa. Se não soubesse, nem assumiria que
houvesse qualquer traço humano em sua linhagem. Extraordinária.
Quando meu pai disse que eu era extraordinária, eu havia me
enchido de orgulho com sua declaração. Dessa vez, esta palavra não possuía
qualquer apelo emocional. Eu poderia muito bem ser uma bela égua pela
qual Akantha demonstrava encantamento.
— Eu precisaria saber quem você é para te considerar família,
Akantha — retruquei, a voz venenosa que nunca imaginei ser capaz de
reproduzir. Afinal, não tinha precisado usá-la até então.
Seu sorriso presunçoso apenas se ampliou.
— Podemos culpar sua mãe por isso, Alyssa. — Ela então se virou
para mamãe. — Não contou absolutamente nenhuma verdade à sua filha,
Jasmine?
Minha mãe inspirou.
— Não vou discutir qualquer coisa com você hoje, mãe — disse. —
Na verdade, acho que deixei bem claro, anos atrás, que minha vida não te
diz respeito. E isso, claro, inclui a vida da minha filha.
Minha mãe pegou minha mão e me puxou para sairmos dali, sem
dar mais nenhuma atenção à mulher. Estávamos prestes a passar por
Akantha quando ela agarrou meu braço com tanta força, que tropecei para
trás.
— Solte ela agora, Akantha — meu pai bradou.
Mas Akantha não deu a mínima para suas palavras. Nem ao menos
se dignou a lançar-lhe um olhar. Ela apenas me encarou, fogo nos olhos e...
não sei, talvez fosse alguma distorção do que deveria ser orgulho. E apesar
de seus olhos cor de mel serem exatamente como os da minha mãe, seu
olhar não desenrolava os mesmos tipos de emoções em mim.
— São muitas mentiras, não é mesmo? — sussurrou. — Talvez
deveria se perguntar, se ela ainda mente sobre alguma outra coisa tão
importante quanto a existência de um parente tão próximo, Alyssa.
Puxei meu braço com força e suas unhas acabaram arranhando
minha pele.
— Talvez eu não esteja tão brava por ela ter mentido sobre você.
Cuspi as palavras em sua direção e saí andando tão rápido que não
tive dificuldade em acompanhar mamãe.
Eu não disse nada, enquanto minha mãe me puxava por ruelas. Meu
pai, Roman e Serena nos seguindo de perto. Puxei minha mão de seu
aperto, furiosa por ela ter permitido, mais uma vez, que eu estivesse
ignorante frente a verdade. Mais uma vez, mais uma peça da minha vida me
acertou em cheio no meio da fuça.
Minha mãe parou em frente a uma cabana, com tamanho o
suficiente para caber uma família. Ela puxou algo do bolso e destrancou a
porta. Logo estávamos em um espaço amplo e aconchegante. Havia uma
cozinha e uma sala pequena e um corredor que imaginei terminar em um
banheiro e, então, em um quarto.
Todos nós jogamos as malas que carregávamos no chão. Ouvi meu
pai soltar um suspiro exasperado. Eu sabia que o encontro com Akantha
ainda o perturbava e uma veia insistente pulsava em sua têmpora. Já Roman
e Serena apenas deixaram as malas em um canto e rapidamente saíram, nos
deixando sozinhos.
Cruzei meus braços sobre o peito e esperei que minha mãe se
explicasse. Ou mesmo meu pai, que também omitiu todas essas
informações durante toda a minha vida. Mas ele apenas encarou o chão e
minha mãe se movimentou pela sala como se pudesse encontrar algo que a
tirasse da conversa iminente. Eu podia ver que ela não conseguia se manter
quieta de tanta ansiedade. Eu não estava certa se era apenas porque agora
teria que me contar a verdade, ou se finalmente estava caindo a ficha que
sua mãe, que havia me dito estar morta, estava bem ali, no Outro Lado.
— Mais uma vez — comecei, já que ninguém se dignava a fazer
isso, tentando segurar a fúria de explodir. Eu me sentia como uma grande
idiota, uma criança que não sabia de nada sobre a própria vida e família. —
Você me deixou às escuras. Mais uma vez, fiz papel de idiota porque não
teve a decência de me informar toda a verdade.
Jasmine parou.
— Minha mãe não é o tipo de pessoa que eu queria que você
conhecesse.
Bufei.
— Depois daquilo eu tão pouco quero conhecê-la, mas isso não quer
dizer que eu não devesse saber sobre sua existência. Você disse que seus
pais estavam mortos, mãe!
— Em todos os sentidos que importam, eles estão.
Joguei os braços para cima em um movimento exasperado.
— Isso quer dizer que há algum outro membro da família que possa
aparecer a qualquer momento? Um avô, talvez?
Mamãe me lançou um olhar ferido.
— Meu pai está morto. Foi assassinado por Desertores quando eu
tinha doze anos. Seu nome era Kalel. — Ela pareceu tão triste que tive
vontade de retirar minhas palavras. — Eu também tive um irmão, Hektor.
Ele também foi assassinado por Desertores quando tinha apenas vinte e dois
anos.
Desviei o olhar.
— Eu sinto muito — murmurei.
— Eu também, Alyssa.
Ela se sentou em uma poltrona e eu me joguei no sofá. Meu pai
permaneceu apenas encostado na parede. Ele parecia decidido a não se
intrometer até que a história o incluísse. Henry sabia que aquilo envolvia
apenas minha mãe. Era a história dela para contar.
— Eu nasci na Grécia, como você já sabe. Mas nunca contei nada
sobre minha família, porque... parecia complicado demais explicar —
contou. — Minha mãe nunca foi fácil. Ela exigia que fôssemos perfeitos,
acima de qualquer emoção humana. Devíamos ser guerreiros excepcionais,
capazes de trazer orgulho à sua linhagem. Meu sobrenome de nascimento é
Nephus, e esta é uma família de Protetores considerada elite dentro de nossa
sociedade. Minha mãe tem tanto orgulho desse nome que, quando se casou
com meu pai, pediu que ele adicionasse Nephus ao seu nome para que
fortalecesse a família. Meu pai também vinha de uma família influente, mas
nem de longe tão poderosa quanto a de Akantha. E ele também nunca foi
arrogante como ela. Para ser sincera, não sei nem como ele se apaixonou
por ela. Talvez nunca tivesse sido amor, apenas um contrato conveniente
aos dois.
— Talvez sua mãe tenha o obrigado a se casar. Parece algo que
aquela bruxa faria — meu pai atirou. Nós nos viramos para encará-lo e
então o assistimos corar. — Desculpe.
— Não posso dizer que é uma ideia absurda, amor. — Minha mãe
sorriu carinhosamente para ele.
— Como veio parar nos Estados Unidos, mãe?
Era irritante perceber que aquela pergunta nem tinha passado pela
minha cabeça. Ela uma vez disse que amou vir estudar no país, mas
desconfiava que aquele não fosse o real motivo.
— Depois de alguns anos após a morte do meu pai, meu irmão
decidiu vir para cá, ficar o mais longe possível da nossa mãe — explicou.
— Ela sempre foi mais cruel com ele, porque o achava emotivo demais. Eu
era diferente, mais séria e fria, quase perfeita para ela. Então quando ele
deixou a Grécia e a guarda de Akantha, ela pediu que eu me mudasse
também para ficar de olho nele e não deixá-lo envergonhar a família
Nephus.
— Então vim terminar meu treinamento aqui e pude conhecer meu
irmão melhor do que teria sido capaz com minha mãe por perto. Mas na
época, eu queria tanto impressioná-la, ser o que ela desejava, que acabei me
distanciando de Hektor. Pouco tempo depois, ele foi assassinado em uma
missão. Desertores o mandaram para nós tão destruído, como um aviso, que
demorei alguns minutos para confirmar que era realmente ele. Que haviam,
de fato, matado meu irmão.
Oh, Deus. Eles haviam usado seu irmão, meu tio, para lhe mandar
uma mensagem. Meu coração doeu pelo tio que nunca tive a chance de
conhecer, e eu pude ver nos olhos de minha mãe, que a dor para ela, ainda
era tão presente quanto devia ter sido anos atrás.
— Depois disso, comecei a questionar meu posicionamento.
Comecei a me perguntar se, caso eu não estivesse tão focada em ser perfeita
para minha mãe, Hektor teria confiado em mim para ajudá-lo naquela
missão e, quem sabe, ele não tivesse morrido tão jovem — ela continuou.
— Poucos anos depois conheci Diana e ela me mostrou que o mundo era
tão maior que aquilo que minha mãe tinha me mostrado. Que havia amizade
e amor entre pessoas diferentes e que tudo isso valia a pena. E ela tinha uma
alma humana, mesmo que não fosse completamente. Mais tarde, quando
conheci seu pai, percebi que poderia ser bom sentir todas aquelas emoções
humanas, que minha mãe passou anos tentando me fazer inibir.
— Acho que tenho que agradecer a Diana por isso também — meu
pai disse, com um leve sorriso no rosto.
Lembro-me de mamãe contar que Diana a encorajou a dar uma
chance para meu pai e, por isso, sorri com ele.
— Conheci seu pai e vi que os humanos não eram tão comuns como
imaginávamos. — Percebi o brilho de admiração nos olhos de mamãe. Ele,
por sua vez, retribuiu com um olhar completamente apaixonado. —
Akantha não ficou nenhum pouco feliz ao saber que eu tinha me
apaixonado por um humano. Para ela, eu “mancharia” a reputação da
família, principalmente se tivesse filhos. Ela acredita que misturar sangue
Protetor com humano, apenas dilui a força da linhagem protetora. — Minha
mãe soltou uma risada fria. — Ela logo mudou de ideia quanto a questão
dos filhos quando conheceu você. Quando viu que era uma Fidly, viu em
você a oportunidade perfeita para fazer a família Nephus ainda mais
notória. A primeira Fidly descendente de um Protetor e justo sua neta. Ela
ficou tão satisfeita com aquilo, não porque amasse o bebê, mas porque ela
nunca tinha entendido porque as Fidlys vinham de famílias humanas e não
dos Protetores. Para ela, era um absurdo que o Destino tivesse escolhido
humanos para carregar a profecia.
— Então eu era sua chance de ficar famosa — debochei.
Minha mãe assentiu.
— Basicamente isso.
— Talvez devêssemos contar os planos de alguns dos Protetores
para Alyssa, já que isso inclui sua mãe — meu pai sugeriu.
— Talvez? — perguntei, indignada. — Apenas me conte logo!
Minha mãe suspirou, mas concordou.
— Quando você nasceu, eu já tinha decidido que não viveria entre
os Protetores. Mas então, eu vi a marca e fiquei desesperada. Não sabia
como conseguiria mantê-la segura sem ajuda ou mesmo o que fazer. Você
era como um farol ambulante e os Desertores acabariam rastreando-a. —
Ela apertou os dedos, nervosa. — Eu estava com tanto medo que Vicenzo
descobrisse sobre você que, assim que me recuperei, vim aqui para pedir
ajuda. Ninguém podia acreditar no que via. Você era a primeira Fidly
descendente de um Protetor, a primeira nascida entre nós e parecia tão...
surreal. Uma das partes mais difíceis era encontrar as Fidlys, e ali estava
você: pequena e perfeita, com a marca dada pelo Destino. Depois de menos
de dois anos, o Destino nos tinha abençoado com mais uma Fidly, quando,
na realidade, costumava demorar décadas ou séculos até surgir uma após a
morte da anterior.
— Todos ficaram surpresos e encantados, felizes em ver que, talvez,
isso significasse que você seria mais forte. Por meses, fiquei nesta cabana
com você e seu pai, com medo de sair. Depois de um ano vivendo aqui, nós
decidimos nos mudar para a casa do Lago. Brian nos disse que seria uma
boa opção devido às proteções no território e, assim como ele, eu não queria
criá-la junto a certos Protetores. Depois de alguns anos, Ravenna quis
marcar uma reunião para fazer arranjos sobre sua proteção.
— Mas aquela mulher não queria discutir horários e Protetores a
serem designados — meu pai murmurou, o rancor ainda machucando seu
peito.
— Não, ela tinha outros planos — minha mãe afirmou, em
concordância. — Ela descobriu que Cassandra, nossa Guardiã, poderia
colocar um feitiço do sono em você. Ravenna, antes mesmo de me contar
sua ideia, já tinha formado seu grupo de apoiadores, o que incluía minha
própria mãe. Eles queriam colocar você para dormir, um sono profundo que
duraria anos, e só a acordaríamos quando completasse dezoito anos e
pudesse se defender sozinha.
Por um segundo, meu cérebro pareceu uma folha em branco e eu
não sabia o que dizer. No segundo seguinte, eu tive uma média de vinte e
cinco palavrões diferentes para usar de modo bem explícito.
Eles queriam me tornar a versão moderna da bela adormecida? Que
merda!
— Eles queriam me manter em coma por dezoito anos? — chiei.
— Claro que nunca permitiríamos isso, filha — meu pai disse. —
Apesar de tudo o que fizemos para mantê-la protegida, nunca teríamos
aceitado uma ideia dessas. Queríamos que você crescesse e vivesse o
máximo possível, mesmo que dentro de certos limites que reassegurariam
sua proteção.
— Eles achavam que, desta forma, você finalmente conseguiria
cumprir a profecia — minha mãe explicou. — Não que isso seja
justificativa. Mas eu logo percebi que Ravenna, minha mãe e seus
apoiadores, nunca a veriam como nada além de sua marca. Não é pessoal.
Só que era completamente pessoal. Eu não era uma pessoa, para
eles eu era uma profecia. Era o prolongamento de uma promessa que nunca
pôde ser cumprida antes. Não era Alyssa. Não era a filha de Jasmine e
Henry. Não era uma amiga. Pelo que entendi, nem mesmo era humana. Era
apenas parte de um jogo que o Destino nos instruiu a jogar. Não havia saída
para mim, além daquela que foi planejada. Ou morro, ou mato. Minha vida
podia ser resumida a opções tão simples que chegava a ser cruel.
Respirei fundo. Lá fora, podia ouvir passos leves que nunca
pareciam andar mais do que dois metros até fazer o caminho de volta.
Alguém estava esperando.
Olhei para meus pais.
— Acho que devo agradecer por não terem permitido, então.
Meu pai balançou a cabeça.
— Não precisa agradecer nada.
Olhei para minha mãe.
— Como será minha vida aqui? Imagino que me colocar para
dormir já não seja uma opção válida. — Em poucos meses completaria
dezoito anos, se desse sorte.
— Você irá ser treinada todos os dias com muito mais afinco do que
antes — ela respondeu. — Mas aqui, talvez, você possa encontrar certas
alegrias que não eram comuns antes. Você pode fazer novos amigos, pode
ser parte desta comunidade, se assim escolher.
Será que eu me encaixaria aqui? Nunca precisei aprender a me
envolver com pessoas, eu era sempre mantida distante. Será que eu queria
me encaixar? Com as pessoas que olhavam para meu pai como se ele fosse
defeituoso ou para mim como se eu fosse algum animal em exibição?
Meu pai percebeu minha relutância e disse:
— Nem todos aqui são ruins.
Pensei em Serena e Roman, até mesmo em Jasper, e concordei com
papai. Então, sem querer, pensei em Nathan e em como todos me alertaram
sobre um garoto perturbado e tudo o que encontrei foi alguém...
machucado.
— É, acho que não.
Lá fora, os passos pareceram cessar e em três segundos, Roman
estava entrando em nossa cabana depois de dar duas batidas leves na porta.
— Desculpe interromper — ele disse. — Mas pensei que talvez
fosse melhor ajudar Alyssa a se acomodar em sua própria cabana antes do
anoitecer.
Fiz uma careta, confusa.
— Eu tenho minha própria cabana?
Roman assentiu e minha mãe explicou:
— Os Protetores construíram uma cabana para a Fidly, mas você
pode ficar comigo e seu pai se preferir. — Mamãe parecia querer que eu
escolhesse a última opção.
Pensei em sua proposta e a descartei prontamente. Nunca tive
privacidade em minha vida. Nunca pude me sentir independente. E mesmo
sabendo que meus pais fizeram tudo o que precisavam para me manter
segura, eu estava segura aqui. Desertores não podiam entrar no Outro Lado,
o que significava que eu podia andar livremente. Podia ter meu próprio
espaço.
Sorri comigo mesma. Meus pais também mereciam uma folga da
minha presença. Por dezessete anos viveram incansavelmente por mim,
com certeza mereciam um tempo só para os dois, onde eu não era um
empecilho.
— Não, tudo bem. Vai ser legal ter minha própria cabana.
Seria bom ter um pouco de privacidade, de independência, mesmo
que supervisionada.
— Como você está? — Roman perguntou, enquanto caminhávamos
em direção à minha cabana.
Ele me disse que Serena tinha treinamento e não pôde esperar, então
éramos apenas nós dois. Meus pais preferiram ficar e arrumar o lugar que
chamariam de casa pelos próximos meses. Eu sabia que meu pai estava
desesperado para fazer sua cabana parecer um lar.
Dei de ombros.
— Estou me sentindo uma idiota. Mas a este ponto eu deveria ter
me acostumado.
Ele pareceu segurar uma risada e eu dei um soco em seu braço.
Roman me olhou feio e segurou o braço dramaticamente.
— Ei! Não fui eu quem menti.
— Isso não me deixa menos estressada.
Dessa vez ele riu de verdade e tentei lhe dar outro soco, mas ele
segurou minha mão antes de atingir seu corpo, mesmo segurando duas
malas e uma mochila nas costas. Quando tentei ajudar a carregar as coisas,
ele disse que podia muito bem carregar tudo. Acho que consegui ofender
sua grande força inumana e, claro, seu ego masculino frágil.
— Se serve para alguma coisa, acho que está bem melhor sem nunca
ter conhecido sua avó. A mulher consegue ser tão irritante quanto Ravenna.
Assenti.
Ele nunca parecia ter medo de falar o que achava. Era admirável.
— Podemos concordar nisso.
— Então qual o problema? — perguntou.
Passamos por uma roseira que me fez lembrar de Diana. Será que
ela também se sentia tão... incapaz? Apostava que não. Ela parecia ser tão
corajosa. Tudo o que me contavam sobre ela era tão completamente
incrível. Diana teve um filho quando era mais nova que eu e mesmo assim
encontrou um modo de ser uma boa mãe e se sacrificar por aqueles que
amava. Eu mal podia me imaginar estar pronta para qualquer uma daquelas
responsabilidades.
Mordi o lábio. Pensar em Diana sempre me fazia pensar em Nathan
e não queria pensar nele. Não entendia o porquê fiquei tão interessada pelo
garoto, mas sabia que era melhor se eu nunca mais me permitisse imaginar
em como ele estava. A verdade era que provavelmente não voltaria a vê-lo.
A ideia pareceu incomodar por algum motivo, como se eu pudesse mesmo
sentir sua falta, mesmo sem conhecê-lo direito.
— O problema — eu disse, finalmente. — É que não sou dona da
minha própria vida. Sou apenas um peão em toda essa história, esse jogo
que o Destino criou. — Roman me olhou, compreensivo. — Você sabia que
eles queriam me colocar em algum tipo de coma até que eu fizesse dezoito
anos?
Roman deu de ombros.
— Algumas pessoas já comentaram sobre.
— Percebe como é irritante que todo mundo saiba mais sobre minha
vida do que eu mesma?
— Acho levemente divertido.
Bufei.
— Idiota.
Ele riu alto.
Logo estávamos em frente a uma cabana pequena, mas
incrivelmente linda. A madeira era escura e a porta principal parecia de
carvalho. Na parte superior, próxima a ponta do triângulo que formava o
telhado, uma ampla janela de vidro estava virada em direção ao céu e às
montanhas a alguns metros de nós.
— É bonita — admirei.
Roman me estendeu uma chave.
— Faça as honras.
Peguei a chave e abri a porta rapidamente, pulando para dentro mais
rápido que um piscar de olhos.
Andei saltitando pela casa, feliz por ter um lugar só meu. Havia uma
cozinha à minha esquerda e uma sala à minha direita. Em um pequeno
corredor entre estes dois cômodos havia um banheiro espaçoso. Uma escada
estreita levava para um quarto na parte de cima, o único cômodo da parte
superior. Lá, uma cama de casal estava posta, além de uma escrivaninha e
um pequeno guarda-roupa. Do quarto, conseguia ver a sala, a porta e parte
da cozinha.
Voltei para o andar de baixo e encontrei Roman me observando
atentamente.
— Pelo menos estão te dando um lugar confortável, não é?
Eu o observei com cuidado.
— Por que nunca se inclui quando fala sobre os Protetores?
— Eu me incluo — ele replicou.
Estreitei os olhos.
— Em 99% das vezes é como se não se incluísse.
Roman me olhou.
— Tanto faz.
Encontrei uma pequena estante em frente ao sofá e logo peguei os
livros que trouxe para organizá-los ali. Comecei os distribuindo por gêneros
e, então, por autores.
— O que faria se tivesse acordado só aos dezoito anos?
A voz de Roman me assustou depois de um longo tempo em
silêncio. Soltei os exemplares em minhas mãos e me virei para encará-lo.
— Eu não acho que seria a mesma. Eu ao menos teria desenvolvido
minhas capacidades mentais? Eu saberia falar ou andar se nunca tivesse tido
tempo para aprender? — Balancei a cabeça, sentindo um arrepio sinistro
percorrer minha espinha. Quem eu seria se meus pais não tivessem ido
contra essa ideia? — Acho que, muito provavelmente, o tiro teria saído pela
culatra. Não acho que, o que quer que mude depois que eu faça dezoito
anos, ajudaria se eu tivesse dormido minha vida inteira.
“Dormir” era um eufemismo para o que de fato seria.
— Acho que teria sido um desperdício — Roman disse. Ele andou
até mim e posicionou o próximo livro na estante. Estávamos próximos o
bastante para que nossos braços se tocassem. — O que acha que teria feito
ou se tornado, caso não fosse a tão esperada Fidly?
Suas palavras foram zombeteiras, mas quando o encarei, ele estava
sério.
— Eu só queria ir para alguma faculdade. Qualquer uma. Quanto
mais longe melhor. — Soltei uma risada seca. — Eu nem tinha decidido
ainda o que queria estudar, apesar de estar bem certa que seria algo
relacionado à literatura ou escrita. Gostava de pensar que eu poderia
escolher qualquer coisa que eu quisesse. — Bati meu ombro em seu braço.
— E você? O que faria se não fosse um Protetor?
Ele deu um passo para trás, as mãos presas nos quadris. Seus olhos
vagaram pelo teto, como se pudesse imaginar muitas coisas.
— Não tenho absolutamente nenhuma ideia.
Cerrei meus olhos.
— Mentiroso.
Seu sorriso pareceu estranho.
— É sério, eu nunca tive muito contato com o mundo humano. Não
sei o que escolheria, nem mesmo o que iria gostar. — Roman me encarou.
— Você não é a única que cresceu em uma bolha sem muitas escolhas a
fazer.
Seus ombros tensos denunciam que suas palavras eram mais do que
podiam parecer de início.
— O que aconteceu com a sua família?
Ele deixou o livro na estante e se afastou um pouco.
— Basicamente, eu sou um bastardo. Minha mãe era uma Protetora,
mas meu pai era humano e ela deixou seu casamento infeliz com um
Protetor quando engravidou de mim. Meus pais, então, ficaram juntos por
um tempo, mas ambos morreram quando eu ainda era criança. Por isso, fui
criado aqui no Outro Lado, o que significa que tive treinadores como
tutores e não muito bem uma família — contou. — Como cresci aqui, só
tive a oportunidade de ver a dimensão original quando recebi a tatuagem.
Então eu nunca tive muita chance de escolha.
— Gostaria de poder escolher outra coisa? Ser outra coisa, quero
dizer.
Roman desviou o olhar.
— Nós nascemos e já somos introduzidos a este mundo, Alyssa.
Nossos pais, tios e amigos, vivem por isso. Eu não conheço nada além.
— Isso é triste — falei. — Não poder escolher. Precisar arriscar sua
vida por algo que talvez nem entenda ou se sentir incluído a um problema,
que não fez nada para gerar.
— Essa é a vida — Roman respondeu simplesmente.
— Não quero que se sinta obrigado a cuidar de mim. Ou a morrer
por mim, como todos dizem o tempo todo. Eu não o julgaria se não o
fizesse. Para ser sincera, espero que não o faça.
Roman abriu um pequeno sorriso.
— Por incrível que pareça, depois que finalmente pudemos
conversar, não me parece penoso fazer o que faço. — Seus olhos
encontraram os meus e ouvi seus pés baterem no assoalho, enquanto ele se
aproximava um pouquinho. De repente, ele parecia nervoso. — Você é
corajosa, talvez no limite de ser louca, como pudemos ver no festival. E não
é exatamente alguém difícil de conversar. — Seus olhos chocolate
encontraram os meus olhos negros. — Gosto de você.
Meu coração acelerou. Essas últimas palavras não pareciam ser
simples ou platônicas. Por um segundo, acreditei que houvesse mais nelas,
mas ignorei o pensamento tão rápido quanto um desviar de olhar.
— Fico feliz por não ser um fardo.
Roman piscou e deu um passo para trás. Ele colocou um último
livro na estante e começou a andar em direção a porta.
— Eu devo ir — disse.
— Você tem sua própria cabana também?
— É a cabana da família Scott, mas sou só eu agora.
De todas as coisas em minha vida, família nunca foi algo que senti
falta. Eu sempre tive meus pais comigo e eu sabia que nunca me deixariam.
Não podia nem ao menos me imaginar em um mundo sem eles. E mesmo
assim, conseguia imaginar a dor de viver uma vida sem qualquer um para te
apoiar, para estar presente nos jantares de domingo ou aniversários.
Entendia porque Roman sempre parecia meio triste. Ele também era
solitário. Era de um modo diferente de mim ou Nathan, mas ainda assim era
solidão.
Eu queria abraçá-lo, mas Roman já estava abrindo a porta para sair.
— Eu sinto muito — ofereci.
Não era o suficiente. Estas palavras não eram o suficiente. Perder
alguém devia ser algo excruciante, uma dor que nunca cessaria. Perder um
pai, então, devia ser um tipo de tragédia que não podia nem ao menos
imaginar, sem que meus olhos queimassem.
Roman me ofereceu uma última olhada. Seus cabelos castanhos que
combinavam com seus olhos estavam caindo em ondas até a altura do
queixo. Seus ombros pareciam pesados. Ele parecia triste. Incrivelmente
desolado. Imaginei que fossem as memórias de seus pais, mas quando parei
para pensar, não conseguia me lembrar de um único momento em que
Roman esteve genuinamente feliz, mesmo minutos atrás quando ria comigo.
Ele sempre pareceu tão... deprimido, como se houvesse uma sombra
pairando sobre seus ombros.
Ele e Nathan tinham muito em comum, afinal.
Mal tinha perdido a consciência quando fui tomada por um
pesadelo. Desta vez, apesar de ver sua morte, o sonho não terminava ali. Vi
Vicenzo matar uma Fidly, mas então o sonho mudou, como em um filme
que mudava de cena. Olhos azuis me observavam com atenção. Os cabelos
pretos de Diana estavam mais curtos do que na foto que peguei na casa de
Nathan.
“Não o deixe ir.”
Sua voz era como um sopro no vento. Leve, mas certa. Seus olhos
penetraram os meus como se quisessem enxergar minha alma. Tentei
compreender suas palavras. Tentei perguntar mais a ela, mas fui puxada da
inconsciência tão rápido quanto havia caído nela.
Acordei com um sobressalto, ouvindo um barulho afiado vindo de
baixo. Meu coração acelerou, mas me lembrei que estava no único lugar
onde os Desertores nunca conseguiriam me tocar. Mas aquela era a primeira
vez que dormia longe dos meus pais, e não sabia se eu deveria temer algo
além dos Desertores.
Peguei uma adaga na mesa de cabeceira ao lado da minha cama. Saí
de debaixo das cobertas e desci as escadas devagar. O barulho se tornou um
baque oco e estava preparada para encontrar quem quer que fosse, com
minha adaga bem afiada em sua garganta.
Em meio a escuridão, tudo o que eu enxergava era o vulto de
alguém. Alto. Forte. Pulei os últimos degraus e avancei no intruso.
— Este movimento é tão completamente inútil.
O som de sua voz chegou até mim com menos rapidez que seu
movimento. Ele desviou dos meus braços e pousou logo atrás de mim,
segurando meu pulso que estendia a adaga em sua antiga direção, agora
preso contra meu peito. Ele deu uma olhada na minha mão direita ainda
agarrada à adaga.
— Mas bela adaga — completou.
Eu sabia que podia relaxar, que este intruso não me faria qualquer
mal, mas saber que Nathan estava aqui não diminuía em nada meu
nervosismo. Por que ele estava em minha cabana, logo depois que sonhei
com sua mãe? Quão real tinha sido aquele sonho, aliás?
Soltei-me de seu aperto e fui em direção ao interruptor para ligar a
luz.
— Jasper me deu, dizendo que eu deveria ter algo que preste para
me defender — eu disse, tentando esquecer o pesadelo e me sentir menos
ansiosa com sua presença inesperada. — Mas ainda não entendo porque não
usam armas comuns, como revólveres. Parecem ser mais simples.
— As lâminas que usamos são feitas de pedra de fogo — Eu devia
estar com uma grande interrogação no rosto, porque ele balançou a cabeça e
continuou. — Eles não te explicaram nada? — Tão rápido quanto um raio,
Nathan parou a poucos centímetros de distância, e tocou a ponta afiada da
minha adaga. — Esta pedra é forjada pelas Guardiãs, acho que por
Cassandra mais especificamente. Elas impedem que o processo de cura
rápida dos Desertores seja eficiente. Além disso, um revólver não nos
proporcionaria uma boa luta.
Eu não deveria ficar impressionada, por ter tanta coisa sobre este
mundo que ainda não sabia, mas olhei para a lâmina da minha adaga com
certa curiosidade.
— Ela pode desacelerar a cura de um Protetor também?
Nathan assentiu.
— Protetores e Desertores tem praticamente os mesmos dons, a
diferença é que eles perderam o cérebro ao desertar e são movidos por sua
natureza animal ou por ordens de Vicenzo — disse, dando uma olhada em
volta da cabana. — Além de terem marcas não muito belas — ironizou.
Afastei-me dele, processando suas informações, tentando mantê-las
gravadas no meu cérebro para caso um dia eu precisasse. Deixei a adaga em
cima da mesinha de centro da sala e finalmente fiz a pergunta que martelava
em minha mente:
— O que está fazendo aqui?
Desta vez, quando me virei para encará-lo, fui capaz de enxergá-lo
completamente e, meu santo Deus, ele era perfeito mesmo. Imaginava ser
mais de duas horas da manhã, mas Nathan estava com o cabelo jogado para
trás em ondas negras que pareciam ter sido penteadas com seus dedos. Sua
calça preta e blusa preta pareciam bonitas demais em comparação ao meu
pijama surrado. Ainda não o vi usando o uniforme de couro dos Protetores,
mas só podia imaginar que ele ficaria tão bem nele quanto nestas roupas
comuns.
— Achei que talvez precisasse me certificar de que chegou até aqui
e sobreviveu — disse, um sorriso divertido em seus lábios grossos. —
Depois dessa sua emboscada vergonhosa, acredito que eu tenha motivos
para me preocupar.
— Achei que não pisaria mais aqui se pudesse evitar.
Nathan deu de ombros.
— Não deu pra evitar.
Tentei me concentrar em nossa conversa, ignorar como sua visão
fazia meu corpo formigar, mas Nathan desceu seus olhos por meu corpo
coberto por um pijama velho, e quis ter escolhido algo mais bonito para
usar. Mesmo assim, meu ego explodiu como um foguete com seu olhar tão
curioso quanto interessado.
Engoli um sorriso quando ele pigarreou e desviou o olhar do meu
corpo, focando-se em meus olhos.
— Sinto muito por acordar você — disse. — Mas queria vê-la
enquanto os outros dormem.
— Por que?
Nathan andou até minha estante, já completamente decorada pelos
meus livros, e analisou os títulos. Seus dedos percorreram a lombada dos
livros de ficção e depois desceram para os de romance.
— Porque não quero que saibam que estive aqui — disse, ainda
concentrado nos títulos.
Por que estava tão interessado no que eu lia? Não estava certa de
que queria emprestar algum dos meus lindos exemplares.
— Então não pretende ficar — deduzi.
— Não.
Não sabia porque me incomodava tanto ouvir isso, mas pensar que
não voltaria a vê-lo tão cedo, trazia um certo desconforto indesejado ao meu
peito. Mas também não esperava vê-lo esta noite, então talvez não
demorasse muito até ele voltar, não é?
Que merda era o meu problema?
Encontrei os olhos de Nathan me observando atentamente, como se
tentasse ler minha mente. Sentei-me no sofá, a mente ainda sombreada pelo
sono. Nathan se sentou na mesinha à minha frente e seus olhos azuis me
levaram direto ao meu sonho. Nathan se parecia muito com o pai, mas olhar
para ele era estranhamente como olhar para Diana.
— Eu estava pensando em você — ele disse, e meu coração
acelerou em resposta, como a grande idiota que eu era. Será que eu podia
ser tão facilmente iludida por um garoto com apenas uma noite, na qual,
aliás, não fizemos nada além de conversar? — Sua mãe te treinou antes de
vir para cá?
Assenti.
— Fui treinada desde pequena, minha mãe só nunca me contou o
porquê.
Nathan balançou a cabeça em concordância.
— Bom — disse. — Você já percebeu algo diferente? Quando
encontramos os Desertores, você tentou me ajudar, o que foi incrivelmente
idiota, mas corajoso. — Fiz uma careta pra ele, mas Nathan ignorou. —
Seus movimentos foram bons, mas fracos.
— Bem, desculpe por decepcioná-lo.
Ele revirou os olhos.
— Acredite em mim, nada daquilo foi decepcionante — afirmou. —
Só que você luta com força humana e assim nunca vai conseguir ganhar
uma luta contra um Desertor.
— Você sabe que só vou ficar mais forte, ou algo parecido, depois
dos meus dezoito anos, não é? — minha voz saiu irritada. Não era como se
eu escolhesse ser fraca. — Tecnicamente, até lá, sou completamente
humana. Por isso vou ficar presa aqui como uma inválida.
Seus olhos azuis me examinaram.
— Seu pai é humano, mas sua mãe é uma Protetora, Alyssa —
disse. — O que quer dizer, que você tem sangue Protetor como eu tenho
sangue Fidly. Nunca passou pela cabeça de nenhum de vocês que, talvez,
você tenha herdado mais do que meros traços físicos dela?
Sua menção à sua mãe, fez com que eu visse o rosto de Diana com
muito detalhamento. Ao mesmo tempo, o que Nathan sugeria parecia
impossível. Em dezessete anos, como eu não saberia que tinha algum
poder?
— Se eu tivesse a força de um Protetor, eu saberia, não acha?
Nathan, no entanto, pareceu ter pensado a fundo nessa possibilidade.
— Assim que começamos a falar, a primeira coisa que nos é
ensinado, é que somos Protetores e somos excepcionais.
— Uau — zombei.
Ele abriu um sorriso torto.
— Não estou tentando me gabar. O fato é que crescemos sabendo
que podemos correr mais rápido, ouvir melhor, ser mais fortes e sentir além
da capacidade humana. Sabemos disso. Acreditamos nisso. Somos forçados
e incumbidos a usar esse poder desde muito jovens.
— Está me dizendo que se eu começar a “acreditar”, vou ficar super
forte do dia para a noite? Só pela força do pensamento?
Nathan cerrou os olhos.
— Quando você diz assim, parece idiota. Tenha um pouco mais de
fé em mim — disse. — O que estou dizendo é que você tem sangue
Protetor. Isto é um fato. Você não é só a Fidly, é também uma de nós. A
diferença é que foi criada para acreditar que é humana, por isso,
provavelmente, nunca desenvolveu nenhum poder.
Isso... Isso fazia sentido. Bem, talvez eu estivesse sendo otimista em
acreditar no que dizia, mas se fosse verdade, isso me daria mais chances do
que antes. Seria uma justificativa mais plausível do porquê eu poderia
sobreviver quando todas as outras não conseguiram.
— Por que pensou nisso? — perguntei, curiosa para entender sua
linha de pensamento.
— Ravenna tinha uma teoria parecida por eu ser filho de uma Fidly.
Será que Nathan tinha algum poder extra que eu teria um dia?
— Ela estava certa?
Ele negou.
— Até onde sei, não. Ser a Fidly vai além de poder, eu imagino. É
uma essência, uma escolha feita pelo Destino. Compartilho do sangue da
minha mãe, claro, mas acho que só isso.
— Você também tem seus olhos — deixei escapar. Ele arqueou uma
sobrancelha, curioso e levemente surpreso. — Eu invadi sua casa, lembra?
Vi uma foto — expliquei.
Ele assentiu, em silêncio. Por longos segundos, ficamos nesta
inanição eterna. Sentia que tinha ultrapassado uma linha tênue com ele, ao
comentar sobre Diana. Não conhecia Nathan bem o suficiente para entender
suas motivações e seus sentimentos. Sabia que quando éramos crianças,
provavelmente nos conhecemos, mas a lembrança era tão vaga que não
gerou efeito em nenhum de nós. Se não soubéssemos que morávamos em
casas vizinhas, talvez nunca pensássemos em qualquer correlação.
— Era só isso que queria dizer? — perguntei, finalmente quebrando
o silêncio.
Ele piscou os olhos azuis turquesa e depois os focou em mim.
— Quero testá-la.
Dessa vez fui eu quem arqueou uma sobrancelha, sem entender o
que ele queria dizer.
— Quero ver se estou certo. — Ele pegou um enfeite na mesa de
centro, onde estava sentado. Ele parecia gigante naquela mesinha, com as
pernas dobradas quase na altura do peito. O objeto que escolheu parecia
uma escultura sem forma definida, de aço inoxidável. Sua espessura era
grossa. — Tente amassar isso.
— Não acho que devo destruir os objetos alheios, mesmo que eu
possa.
— Eu não conto, se você não contar.
Revirei os olhos.
— Você vai me arrumar problemas.
— Mas você já sabia disso, Alyssa. — Ele me deu uma piscadela.
Conseguia ser gracioso até fazendo aquilo. — Qualquer coisa coloque a
culpa em mim, eles não são grandes fãs meus mesmo.
Eu fui avisada sobre isso. Roman me alertou diversas vezes. Meus
pais e até Serena tentaram me avisar. Mas ainda assim, com este Nathan à
minha frente, mais descontraído, parecendo menos sombrio... Não
conseguia acreditar em tudo o que diziam.
— Você está muito engraçadinho hoje, sabia?
Nathan deu de ombros.
— Vamos lá, Aly. Me dê o seu melhor.
Era a primeira vez que ele me chamava de “Aly”, mas podia jurar
que já o ouvi dizer isso antes, meu apelido pareceu tão natural em seus
lábios que ele mesmo poderia tê-lo inventado. Peguei o enfeite com as mãos
firmes. Apesar de achar que esta ideia fosse idiota, seria bem melhor para
mim que fosse verdade.
Meus dedos se fecharam no material grosso, mas nada aconteceu.
Apertei. Nada. Ergui a mão esquerda para forçar mais o aperto, mas ainda
assim só consegui sentir meus dedos arderem.
— Pense em tudo o que você descobriu, o que você é — Nathan
disse, sua voz entrando em minha cabeça, ao mesmo tempo que aqueceu
uma parte perdida de mim mesma. — Você não é frágil. Não é um efeito
colateral ou uma garota para o abate. — Ergui meus olhos para os dele.
Preto contra azul. Escuridão da noite contra um céu azul da manhã. — Você
é a promessa pela qual muitos morreram. Você foi marcada, basta acreditar
que é porque deve ser lembrada, não por uma história triste e trágica, mas
porque mudou o jogo.
Meus dedos começaram a doer, mas não desisti de pressionar o aço.
— Você não é uma inválida. Não pode ser escondida — ele insistiu,
como se suas palavras pudessem ativar algo dentro de mim. Algum poder
antigo, carregado por uma linhagem poderosa de Protetores. — Você foi
escolhida pelo próprio Destino.
Estava prestes a soltar aquele maldito enfeite e dizer que aquilo não
daria certo, que não havia poder em mim, mas o enfeite soltou um rangido
baixo. As mãos de Nathan tocaram meu joelho, como se nem ele pudesse
acreditar, mas ainda assim querendo que eu continuasse. Seus dedos
quentes tocaram minha pele nua e eu perdi o fôlego. Em minha cabeça, era
como se um cadeado tentasse se abrir. Vi Nathan piscar depois de um longo
segundo e se afastar de mim tão rápido quanto era capaz. Acho que ele nem
ao menos pensou em me tocar antes de, de fato, fazê-lo.
Apertei ainda mais o objeto em minhas mãos, pensando em todos os
momentos que não tive. Todos os amigos que nunca pude fazer. Pensei no
fato de não me lembrar de alguém como Nathan, porque simplesmente não
tive a oportunidade de permanecer em sua vida. Pensei em Akantha e
Ravenna, que queriam me colocar para dormir por dezoito anos. Pensei no
que mais poderia ter perdido, caso tivessem conseguido o que queriam. A
fúria tomou meu peito, minha garganta parecia obstruída, meu sangue
ferveu. Lembrei do ataque e da minha impotência, do meu medo e da raiva
nos olhos dos Desertores. Então, pensei em Diana e como ela nunca pôde
ver o filho crescer e aquele sentimento que já me perturbava, pareceu
irradiar por minhas mãos.
Esmaguei o enfeite em meus dedos. Ele se transformou em nada
mais que uma linha mais fina e achatada do que era antes.
— Eu sabia — Nathan murmurou, os olhos perdidos em minhas
mãos e no enfeite destruído.
Naquele momento, muitas coisas tomaram novos sentidos. Eu me
lembrava de certos momentos, ao longo dos anos, em que corri rápido
demais, ou ouvi conversas distantes, ou mesmo senti o cheiro de comidas
que eu só encontraria depois de longas distâncias. Coisas que eu nunca teria
reparado antes, porque simplesmente não eram perceptíveis demais e uma
razão para que estivessem ocorrendo, nem passou pela minha cabeça, mas
agora, tudo isso fazia mais sentido. Porque eu não era apenas humana, ou
apenas uma Fidly. Eu era uma Protetora por sangue.
— Depois que vi seu pai na minha casa e confrontei meus pais,
tentando saber a verdade, eu bati as palmas na mesa de vidro e ele trincou
— disse, lembrando-me daquele momento com clareza. — Eu pensei que o
vidro era velho, apesar de grosso, e que talvez já houvesse algum defeito
nele. Mas talvez... talvez tenha sido eu.
Ele concordou.
— Muito provavelmente.
Agucei meus demais sentidos. Tentei ouvir além da cabana, mas
além de algumas cigarras e o balançar lento do Lago, não ouvi mais nada.
Respirei fundo e tentei sentir todos os cheiros, como um cachorro
colocando a cabeça para fora da janela de um carro.
O cheiro almiscarado de Nathan me atingiu em cheio, junto ao
cheiro de sabonete e algo mais que não era capaz de distinguir, que só podia
ser seu cheiro próprio. Era bom. Masculino e forte, mas em nada enjoativo.
— No que pensou? — ele perguntou, apontando para minha mão
que ainda segurava o enfeite arruinado.
— Pensei nos Desertores, e nas mentiras e em Akantha e Ravenna
— contei. — Pensei no que eu teria perdido se tivessem conseguido me
colocar para dormir, por todos esses anos.
Ele franziu o cenho.
— Como assim? Akantha é a mãe de Jasmine, não é? — Ele fez
uma careta. — Puta merda, só agora estou relacionando tudo. Ela é sua avó.
Assenti.
— Algo assim.
— O que quis dizer sobre te colocarem para dormir?
— Você não sabia? — perguntei. Até Roman havia ouvido falar
sobre isso. Nathan negou, balançando a cabeça. — Bem, Ravenna teve a
brilhante ideia de me colocar em um coma, com um feitiço da Guardiã
Cassandra, para que eu dormisse até os dezoito anos. Assim eu ficaria longe
de problemas e eles me trancafiariam em algum lugar aqui. Akantha, como
a ótima avó que é, defendeu a ideia ao lado de Ravenna.
A incredulidade pareceu tomar a expressão de Nathan.
— Eu nem sei porque ainda me surpreendo com as ideias de
Ravenna — murmurou. — E encontrei sua avó, duas ou três vezes nos
últimos anos, e posso imaginar como está se sentindo sobre ela.
— Sobre o fato de ela ser uma megera? — desdenhei. — Eu poderia
viver sem saber da existência dela. — Soltei o enfeite sobre a mesinha,
antes que ele virasse pó em minhas mãos. — Ela ficava me olhando como
se eu fosse um troféu — resmunguei.
Nathan assentiu, pensativo.
— Não duvido que ela ache mais ou menos isso mesmo. — Suas
mãos voltaram a tocar meu joelho, levemente, como se quisesse que eu
prestasse atenção em suas palavras seguintes. — Mas não importa o que ela
ache. Não importa o que Ravenna queira. Você está no controle.
Não era como eu me sentia, no entanto.
Ele percebeu a descrença em meu olhar.
— Olhe para o que fez, Alyssa. — Ele apontou para o enfeite
destruído. — Isso é bom. É muito bom. Nenhuma outra, antes de você, pôde
fazer isso. E herdar, mesmo que seja só um pouco, a força dos Protetores,
será uma grande arma contra Vicenzo. Quer dizer que você tem uma chance
contra os Desertores, só precisa aprender a controlar.
— Não pode ser assim tão fácil — murmurei. Mesmo assim, meu
peito se encheu de esperança.
— Por que acha que tem que ser difícil? — ele rebateu. Meus olhos
encontraram os dele e eu inspirei.
Porque estava fácil demais.
Mas eu havia sobrevivido por 17 anos. Fui mais longe do que
qualquer outra Fidly. Minha mãe era uma Protetora, o que me fazia uma
também. Meu pai era um humano, treinado por uma Protetora, e conseguiu
ajudar a me manter segura, por todo esse tempo. Se parar para pensar, tudo
até aqui, foi mais fácil do que deveria ter sido. Ou do que esperavam que
fosse.
Talvez o Destino estivesse apostando em mim.
— O quão bem consegue sentir os cheiros? — perguntei, mudando
de assunto.
— Bem o suficiente para saber quando há um Desertor a alguns
quilômetros de distância — Nathan respondeu.
— Por que não sentiu meu cheiro e logo deduziu que eu era a Fidly?
— perguntei.
— Porque seu cheiro não é nada como qualquer um que eu já tenha
sentido antes — disse. — Mesmo a vaga memória que tenho da minha mãe,
não é como o seu. Acho que isso a torna única. Não cheira a humana ou
Protetora. Você tem seu próprio e específico cheiro.
Enrijeci.
— Eu não cheiro mal, não é?
Ele riu, achando graça da minha muito provável careta.
— Com certeza não.
Suspirei aliviada.
— Mas mesmo sem saber quem eu era, você tentou disfarçar meu
cheiro, aquele dia. — Parece que aquilo tinha acontecido há séculos. — Foi
isso que tentou fazer, não foi? Quando esfregou sua pele em mim, lembro
de ouvir você dizer algo sobre disfarçar meu cheiro com o seu.
Nathan assentiu.
— Você nem ao menos sabia quem eu era. Por que não me usar
como distração?
Seu olhar se tornou sombrio.
— Você realmente acha que eu faria uma coisa dessas? — sua voz
pareceu mais firme agora. — Não sou a pessoa mais decente do universo,
mas nunca faria isso com um inocente. Já fui ferido por aqueles malditos,
enquanto tentava salvar humanos que mal conhecia. Eu com certeza, não
deixaria que tocassem em você. Sabendo ou não o que você era.
Queria saber porque foi tão incisivo em relação a minha proteção.
Queria ter a coragem de perguntar, se ele se sentia tão fora de prumo ao
meu lado, como eu parecia ao lado dele. Mas me acovardei, como uma
criancinha que não queria enfrentar seu colega grandão. Porque perguntar
isso a ele, só me faria esperar por algo que nem sei se poderia realmente
querer. Se deveria querer.
— Não acho que posso sentir cheiros tão bem quanto você —
escolhi dizer.
— Provavelmente vai melhorar. — Ele se levantou. — Está tarde, e
eu já tomei demais o seu tempo de descanso. Você deve dormir um pouco,
aposto que amanhã seu dia será infernal.
Fiz uma careta.
— Uau, obrigada. — Levantei-me com ele. — Já te disseram que
deveria fazer discursos motivacionais para vender?
Ele mordeu o lábio, segurando um sorriso.
— Eu preciso ir, mas volto outro dia para testarmos sua capacidade
de correr.
Fiquei surpresa com sua proposta. Ele disse que estava preocupado
comigo, mas não levei tão a sério. Principalmente, não ao ponto dele se
oferecer para me treinar.
— Então você vai ser tipo, meu treinador agora? — Segui Nathan
até a porta. — Tenho certeza de que outras pessoas podem fazer isso por
você.
Seus ombros ficaram tensos e ele se virou para me encarar. Trombei
em seu corpo e ele segurou meus braços para me manter no lugar.
— Não pode contar o que descobrimos hoje a ninguém. O que fez
hoje, será nosso segredo, tudo bem?
Fiquei confusa.
— Por que?
— Porque não confio em Ravenna e em muitos outros aqui,
incluindo sua avó. E tenho certeza que, de uma forma ou outra, se contar
para alguém, a informação chegará aos ouvidos de outra pessoa, que levará
a informação à Ravenna que, por sua vez, é bastante amiguinha de Akantha.
E não quero elas envolvidas nisso.
— Isso não é uma coisa boa? Eu poder ser mais forte do que
esperávamos.
Ele soltou meus ombros e enfiou as mãos nos bolsos.
— Ravenna tem a tendência de transformar boas notícias em
catástrofes. Ela irá dizer que você precisa aprender a controlar e que
sozinha não será capaz, e então te usará como um ratinho de laboratório. —
Com um olhar estranho, Nathan afastou uma mecha de cabelo de meus
ombros e logo desviou o olhar. — Pode apostar em mim, que ela já vê você
como um projeto científico. Está louca para entender o que a faz especial e
se você não se cuidar, ela irá estudá-la até saber seus mínimos pensamentos.
E Akantha, com certeza tentaria usar essa notícia para aumentar seu ego.
Ele falou com tamanha certeza, com tanta seriedade, que só podia
imaginar que ele entendia muito bem sobre o que estava falando. Eu
observei, sem reação, dividida pela raiva e surpresa, o horror e a vontade de
quebrar mais alguma coisa.
— Ela machucou você?
Minha voz quase não saiu.
Nathan não respondeu.
— Ravenna machucou você tentando saber se tinha herdado algum
poder da sua mãe? — insisti, minha voz saindo mais alta do que eu
pretendia.
— Esquece isso, Alyssa.
— Eu quero saber!
— Por que? — ele perguntou, exasperado. — Que diferença faria?
— Toda diferença! É por isso que não quer ficar aqui, mas todos
pensam que é porque não se importa — quase gritei. Não sei porque estava
tão furiosa, mas era como eu me sentia: irada. Eu pensei em dezenas de
cenários diferentes, onde um Nathan mais novo, era machucado repetidas
vezes por Ravenna, exatamente como o ratinho de laboratório que
mencionou e eu poderia quebrar o nariz daquela mulher com meu punho.
Todos ali pensavam que ele tinha algo a esconder, que sua lealdade não
podia ser confiada, mas eu via em seus olhos agora, que havia um motivo
pelo qual ele queria distância deste lugar. — Se ela machucou você, ela
precisa ser punida por isso.
Ele soltou uma risada seca.
— Eu não me importo com o que pensam, Alyssa. Deixe isso para lá
— disse. — Uma dose de preocupação consigo mesma, lhe faria muito
bem, ao invés de se preocupar tanto com a vida alheia — ele murmurou.
Suas palavras me atingiram em cheio. Ele não precisava confirmar
minhas suspeitas, mas eu ainda queria detalhes. Queria que ele me dissesse
que não tinha sido tão ruim quanto as imagens que minha mente produziu.
Não podia ter sido tão ruim. Ele era uma criança. E ele poderia me achar
uma enxerida, ou uma fofoqueira, mas eu ainda assim, me importava. Era
quem eu era e não mudaria.
— Isso não é justo — murmurei de volta.
— Poucas coisas são.
Eu não respondi, e ele fez menção de ir, dessa vez pela porta e não
pela janela por onde entrou.
— Espere — eu disse. Corri até um dos livros em minha estante e
abri em uma página marcada. — Preciso te entregar algo — falei por cima
do ombro, mesmo agora sabendo que ele podia me ouvir tão bem quanto se
estivesse sussurrando. Hábitos.
Nathan esperou, pacientemente — Um adjetivo que nunca pensei
que usaria para descrevê-lo.
Peguei a foto de dentro do livro, onde a guardei em uma noite. Isto
não era meu. Não me pertencia de modo nenhum e eu nunca deveria tê-lo
levado. Esta era uma memória para Nathan e Brian e eu não tinha nada com
isso, mesmo que minha curiosidade falasse mais alto.
Voltei para o lugar onde Nathan estava parado, as sobrancelhas
arqueadas e os olhos azuis refletindo a luz, que mal alcançava este lado da
casa.
— Peguei quando invadi sua casa e sinto muito. — Estendi-lhe a
foto. — Nunca deveria ter pego isso, assim como eu não tinha qualquer
direito de invadir sua casa. Sinto muito mesmo.
Ele pegou a foto e percorreu seus olhos pela imagem com tanta
emoção que podia senti-la em meu peito.
— Não se desculpe. Eu teria feito o mesmo no seu lugar e,
provavelmente, com menos graciosidade. — Nathan ergueu seus olhos da
foto para encontrar os meus. Ele, então, guardou a foto no bolso de trás da
calça. — Obrigado por me dar isso.
É seu — queria dizer. Mas apenas assenti.
— Talvez eu venha vê-la quando os outros estiverem dormindo,
como hoje — ele repetiu sua proposta, como se esperasse que eu a aceitasse
em voz alta.
Era estranho que precisássemos fazer isso em segredo, mas ao
mesmo tempo não podia impedir uma onda de alívio me atingir quando
entendi que ele queria me ajudar. Não ajudava em nada com minha
ansiedade que eu estivesse completamente encantada por Nathan Cross.
Nunca passei por isso. E esta verdade era assustadora. Com Nathan... era
como se eu precisasse conhecê-lo, então fiquei satisfeita com sua proposta,
mesmo que parte de mim tentasse me lembrar que eu não deveria entrar
nisso agora. Eu deveria focar no que aquele mundo queria de mim, não é?
Talvez eu pudesse fazer isso, enquanto ele me treinava.
— Seria bom ter alguém além dos meus pais, Roman e Serena, que
não me olhasse como se eu fosse uma aberração.
Nathan riu. O som foi leve, o que não condizia com sua postura,
mas era um som lindo.
— Aberração? — Seus olhos pareciam divertidos, encarando-me
com intensidade. — Não é porque eles não conseguem conter os olhares
que você seja uma aberração. Este é o preço de ser a prometida, uma deusa
aos olhos de todos aqui. — Ele me deu uma piscadela e eu perdi o fôlego.
— Mas se te faz sentir melhor, posso furar seus olhos.
Engasguei com uma risada perversa que logo contive.
— Acho que não será necessário, mas obrigada pela proposta.
Ele balançou a cabeça e abriu a porta, afastando-se ainda mais de
mim.
— À suas ordens, mademoiselle.
Sorri, mesmo que ele não pudesse me ver.
— Ei, onde está ficando? Na antiga floricultura? — perguntei. —
Zeus está bem? — adicionei.
Nathan se virou.
— Zeus está ótimo, aproveitando a água do Lago — disse. — Estou
ficando na casa ao lado da sua, caso precise de mim.
Queria dizer que não podia sair. Que provavelmente, nunca mais
teria permissão para deixar o Outro Lado, mesmo com poder, se aquilo
dependesse da minha mãe. Mas em um piscar de olhos, ele se foi, como
uma sombra no breu da noite estrelada. Fiquei parada, olhando o contorno
das montanhas e as pequenas e rítmicas ondas do Lago, como se pudesse
encontrá-lo, mas Nathan era rápido como uma flecha e silencioso como um
felino. Logo, ele não era mais do que uma lembrança que não tinha certeza
ser real.
Assim que constatei sua ausência, não pude me impedir de sentir
como se tivesse decepcionado Diana um pouco.
— Alyssa! — Jasper gritou. — Proteja seu lado esquerdo também!
Bufei. Eu estava suando como uma porca, presa neste treino desde
as oito da manhã, e já eram mais de onze horas. Jasper não parava de gritar
para que eu melhorasse meus movimentos, e Serena soltava uma risada
divertida, sempre que eu era repreendida por algum movimento desleixado,
sobre o qual ela já havia me alertado.
Como Nathan pediu, mantive-me calada a respeito de nossa mais
recente descoberta. Quando meus pais apareceram na minha cabana, logo
cedo, para me trazer café, não comentei nada sobre minha nova força e
muito menos que Nathan me visitou — Tinha certeza, que minha mãe
transformaria sua visita em mais um motivo para brigar. Então, agi como se
nada tivesse acontecido. Fiz o mesmo quando Serena me buscou para o
treino.
Estávamos treinando próximo às montanhas. Um amplo espaço
verde e afastado o suficiente, para que o olhar dos Protetores não me
deixasse demasiadamente autoconsciente. O campo de treinamento dos
mais novos, ficava em uma espécie de ginásio, que ainda não conheci, do
outro lado de onde treinávamos agora. Jasper achou que minha presença
distrairia os mais jovens, o que provavelmente era verdade, já que quando
encontrei um grupo de garotos mais cedo, eles quase trombaram em dois
postes seguidos enquanto me encaravam.
Eu estava feliz com a escolha de Jasper. Assim, poucos me
assistiriam levar uma surra. Duvidava que ajudaria se vissem como eu era
completamente inútil. Mesmo agora, com um Jasper irritado e meu pai
assistindo, e Serena distribuindo golpes certeiros, já me parecia humilhação
o suficiente. Pelo menos, minha mãe teve que resolver outros problemas e
por isso não estava gritando comigo ao lado de Jasper. Eu até mesmo, tentei
puxar dentro de mim aquele fio de força que havia visto ontem, tentava
intensificá-lo o suficiente para que pudesse usar em uma luta, que eu me
tornasse páreo para os Protetores, mas não conseguia agarrar nada além de
vazio.
Em minha defesa, eu dormi muito mal. Foi só eu fechar meus olhos
que mais pesadelos aterrorizaram minha noite. Não dava para descansar
muito quando seu subconsciente te forçava a ver um bebê sendo
assassinado e tudo o que queria fazer era acordar para fugir daquela cena.
Um bebê. Que merda?!
Serena chutou minhas pernas e eu caí no chão, o que garantiu mais
uma leva de xingamentos de Jasper e um olhar triste de papai — Que ele,
claro, tentou disfarçar, mas com pouco sucesso. Eu lhe devia crédito por ao
menos tentar.
Eu estava feliz que não falei nada sobre a teoria de Nathan, porque
ela estava se provando um enorme delírio. Aparentemente, não tinha
mesmo muito o que contar. Acertei alguns golpes em Serena, mas eles eram
inúteis. Fosse lá como amassei aquele enfeite, hoje, o encanto parecia ter
passado.
Eu estava certa. Estava fácil demais para ser verdade.
— Merda! — grunhi, quando Serena fingiu me dar um soco que
significaria um nocaute vergonhoso.
— Desculpe — Serena disse, com um sorriso carinhoso.
Ela me estendeu a mão para me ajudar a levantar, mas eu dispensei.
Raiva fervia em meu sangue, mas dessa vez, ela não fez nada para atiçar
meu sangue protetor. Eu odiava perder. Não podia acreditar que era incapaz
de ganhar uma única luta. Se um Desertor aparecesse em minha porta agora
mesmo, eu seria sua vítima perfeita, e isso não fazia sentido porque eu era
boa treinando. Mas eu era boa treinando com meus pais, antes de saber que
havia forças sobrenaturais nesse mundo. E em outros também,
aparentemente.
A morte devia estar rindo da minha cara agora.
— Você não tinha sido treinada? — Jasper rosnou.
Olhei para ele, que se aproximava com passos largos.
— Não sei o que está acontecendo.
— Isso foi completamente vergonhoso. Se eu trouxesse uma das
crianças aqui, você ainda assim não teria chance.
Trinquei os dentes.
— Você está se sentindo bem, filha? — meu pai perguntou,
preocupado. Nem ele acreditava no quão ruim eu estava, porque já tinha
visto melhor.
Eu não sabia o que responder.
Aquele maldito pesadelo realmente mexeu comigo.
Sabia que, depois daquele vexame, Jasper estava certo. Eu parecia
completamente descoordenada. Nem o equilíbrio, que eu tinha tanto
orgulho de reter em meus movimentos, estava calhando naquele dia.
— Este foi o primeiro treino de verdade dela, Jasper. Pega leve.
Virei-me para encontrar a voz de Roman. O garoto, em seus couros
de costume, veio andando a passos largos até nós. Ele cumprimentou meu
pai e deu um aceno de cabeça para mim e Serena e logo voltou sua atenção
à Jasper.
— Este não foi o primeiro treino dela, Scott. — Os olhos de aço de
Jasper poderiam querer me fuzilar. — Ela apenas parece ter conseguido a
proeza de piorar.
Baixei os olhos porque simplesmente não havia justificativa para
meu desempenho hoje. Mesmo quando Jasper me treinou em minha casa no
Lago, não fui tão terrível.
Roman me olhou. No entanto, ele não falava comigo, ao dizer:
— Talvez ela esteja desconcentrada.
— Talvez “ela” — eu disse, apontando para mim mesma — esteja
bem aqui.
Serena riu e eu olhei feio para ela.
— Ei, estou do seu lado — ela disse, erguendo os braços em
rendição. — É o primeiro treino seu aqui, depois de tudo o que aconteceu, é
esperado que não se saia tão bem.
— Também é esperado que ela sobreviva — Jasper retrucou.
— E ela irá — meu pai interferiu.
— Vamos de novo — pedi. — Vou melhorar.
Jasper bufou, mas foi meu pai quem interrompeu.
— Estamos aqui há horas, filha. Você precisa de descanso — disse,
decidido. — Vamos comer algo e mais tarde treinamos mais.
Jasper pareceu concordar com meu pai, meio a contragosto, mas
apenas acenou com a mão esquerda, nos dispensando.
— Vá comer algo. E coloque sua cabeça de volta no jogo, Alyssa.
Jasper quase nunca me chamava pelo nome, e fiquei feliz que ele
pelo menos tivesse me permitido essa pequena alegria hoje. Odiava quando
me chamavam de Fidly. Quando isso acontecia, era como se eu deixasse de
ser uma pessoa e passasse a ser um projeto.
Sem mais uma palavra, Jasper saiu andando. Ele nem se deu ao
trabalho de se despedir, e talvez eu merecesse. Essas pessoas estavam
contando comigo e eu estava provando exatamente porque não deveriam.
Porque Nathan estava muito errado. Eu podia ser uma promessa, mas com
certeza estava longe de ser uma deusa.
O Destino obviamente tinha um humor perverso.
Por uma semana, Nathan não deixou de aparecer nem por uma única
noite. Nós treinávamos e conversávamos sobre todo tipo de coisa. O nosso
acordo parecia estar sendo cuidadosamente cumprido e eu adorava aquilo.
Ele chegava antes que eu fosse dormir e ia embora poucas horas antes do
sol nascer.
Descobri muito sobre ele nesses últimos dias. Sobre como se irritava
com o que eu contava a respeito de Ravenna ou Akantha, sempre tomando
minhas dores. Descobri que era completamente contra doces e avisei que
isso, provavelmente, influenciava em seu humor. Tinha certeza que um
chocolatinho o faria muito bem.
Descobri também que era cuidadoso. Sempre se preocupando com o
meu desenvolvimento e me dando dicas preciosas. Nós falávamos sobre
tudo e ele me ajudou a entender um pouco mais os Protetores. Quando
jovens, eles aprendiam sobre a hierarquia e organização dos guerreiros, que
apesar de bastante simples, era sempre muito respeitada.
Haviam três níveis: líderes das sedes, guerreiros e treinadores. Os
líderes normalmente vinham de famílias ricas e influentes dentro do círculo
dos Protetores, o que era ridículo, mas não surpreendente. Eu já havia
percebido que eles se organizavam de uma maneira quase arcaica e
nepotista. Eles eram responsáveis por organizar a sede e fazer o contato
externo dela com outras sedes. Já os guerreiros eram aqueles encarregados
de missões, enquanto os treinadores eram os Protetores que viviam nas
sedes, responsáveis por treinar os mais jovens.
Além disso, aprendi que gostava de estar com Nathan. Era fácil e
leve, como se fosse tão natural quanto acordar em uma manhã e levantar da
cama. Eu estava feliz que tivesse insistido naquela amizade.
A manhã seguinte foi quase uma guerra contra minha cama. Eu não
queria levantar. Não queria treinar, mas sabia que precisava. Precisei usar
toda minha força de vontade para me empurrar até a área de treino, onde
Jasper e Serena já me esperavam.
Agora, eu encarava o tatame suspenso no ar e me perguntava porque
diabos não tinha inventado uma cólica para me safar do treino.
Essa merda não poderia ficar no chão?
— Vamos. Suba.
Encarei Jasper abismada. Não havia escadas e aparentemente essa
coisa não descia.
— Como você espera que eu faça isso?
Jasper me encarou sem qualquer emoção.
— Escale, Fidly.
Trinquei os dentes.
Jasper me chamava de Fidly sempre que estava impaciente ou
queria estabelecer alguma distância entre nós. Era irritante para caramba.
Olhei para o tatame a mais de cinco metros do chão. As hastes que o
erguiam eram lisas com pequenos vincos em suas planícies. Eu nunca
escalei nada. Nunca. Tinha certeza de que iria cair se tentasse.
— Você só precisa colocar os pés nos lugares certos. — Serena
disse, em uma tentativa inútil de me ajudar.
Ah, é só isso mesmo?
— Se a Fidly precisa de ajuda, Jasper, seria um prazer demonstrar
como se faz.
A voz veio do meu lado direito, um pouco mais longe de onde
Jasper estava parado. A loira, Lirya, estava deslumbrante em seus couros,
mas seu olhar era ácido quando me encarou. Eu sabia que ela não gostava
de mim e aquilo me irritava profundamente, porque eu não havia feito nada
a ela. Era cansativo demais aquela animosidade, principalmente porque não
estava baseado em nada concreto.
— Vá em frente, por favor — eu disse, sincera. Se ela fazia questão
de se exibir, enquanto podia, de fato, dar alguma dica de como fazer aquilo,
eu é que não iria impedi-la.
Seu sorriso não poderia ser mais falso.
— Observe, Fidly.
Controlei minha vontade de revirar os olhos.
Engoli meu orgulho e observei Lirya agarrar a haste como em um
abraço, subir o pé direito até uma das pequenas fissuras e impulsionar o
corpo para cima. Com esse mísero impulso, ela foi muito mais para cima do
que o esperado, e percebi que, a força de um Protetor, ia muito além de sua
capacidade de esmagar coisas e dominar alguém em uma luta. Se
combinado à velocidade e aos sentidos mais aguçados, podia dar-lhes todo
tipo de privilégio. Ela repetiu o movimento, uma, duas, três, quatro vezes,
até estar no topo. Lirya tinha cuidado ao agarrar a haste firmemente com os
braços, para o caso de seus pés falharem. No topo, ela girou as pernas para
o lado e balançou para frente e para trás, então, dobrou os joelhos e soltou
os braços, impulsionando-se para cima. Lirya parou em pé no tatame, com
um sorriso envaidecido no rosto.
Jasper balançou a cabeça, feliz com o desempenho da Protetora.
Então, ele me olhou e indicou a haste com um aceno de cabeça.
Se eu quebrar todos os ossos do meu corpo, eles me deixariam em
paz?
— Você consegue, Aly — Serena me disse, em apoio.
Lembre-se de quem você é.
A voz em minha cabeça não era a minha, mas tão pouco era
desconhecida. Era quase como se ele estivesse bem aqui, ao meu lado,
lembrando-me que no meu sangue havia poder. Sua voz era amigável e
calma — algo que nunca pensei que Nathan seria. Era um sussurro, como
uma brisa de verão em minha nuca. Virei-me em busca da voz. Procurei
Nathan por cada canto daquele ginásio, por trás das grandes pilastras e em
cada rosto, mas em todo o lugar que eu olhava, tudo o que enxergava era a
sua ausência.
Respirei fundo. Sequei as mãos, suadas pelo nervosismo, na minha
calça legging e fui em frente, em direção à haste que me levaria ao tatame.
Isso, claro, se eu conseguisse escalá-la.
Tentei imitar os movimentos de Lirya. Meu corpo parecia pesado
demais para isso, como se a gravidade não pudesse me deixar ir. Mas eu me
esforcei. Eu fiz meu sangue borbulhar, ferver aquele poder que Nathan me
mostrou que eu possuía. Eu empurrei e empurrei até que eu estivesse
arfando, agarrando a haste em um abraço apertado e esmagando meus
dedos nos pequenos espaços onde era capaz de colocar meus pés. Quando
meus braços protestaram, eu apenas insisti mais, até que a dor do esforço
fosse apenas um sussurro e não mais um grito.
Não olhe para baixo.
Dessa vez a voz me impediu de mover meus olhos para o chão,
como eu pretendia fazer há um milésimo de segundo. Trinquei os dentes e
obedeci a voz. Se eu visse o quão alto eu já estava, iria poder fazer uma
contagem rápida de mais ou menos quantos ossos quebraria em uma queda
e toda minha determinação de subir aquela coisa iria por água abaixo.
— Só mais um pouco! — ouvi Serena gritar lá de baixo.
Certo. Só mais um pouco.
Subi mais e mais até que minha mão conseguiu alcançar a base do
tatame. Finquei meus dedos sobre o material estofado, enrolando minhas
pernas o mais alto possível, na haste ao mesmo tempo. Posicionei minhas
duas palmas na estrutura e flexionei meus braços. Desenrolei minhas pernas
e empurrei meu pé contra a haste, para que isso me permitisse balançar para
trás e ganhar impulso para pular no tatame. Foi preciso duas tentativas até
que eu conseguisse me jogar, totalmente desajeitada, sobre a armação de
treino.
— Bem, você demorou quase quinze minutos, mas poderia ter sido
pior — Lirya disse. Eu estava certa de que aquilo não havia sido bem um
elogio.
Fiquei em pé e saquei a adaga que eu guardava no cós da minha
calça. Jasper disse que hoje o treinamento seria feito com armas e que eu
deveria trazer a minha. A lâmina de pedra não era muito grande, apesar de
não ser exatamente pequena, e o cabo prateado era largo o suficiente para
que minha mão o contornasse com firmeza. Eu estava feliz que Nathan
tivesse me feito treinar com ela ontem novamente. Tinha diminuído um
pouco minha ansiedade.
— Bela adaga, Fidly. — Os olhos de Lirya comeram minha arma.
— Obrigada — murmurei.
Voltei meu olhar para baixo. Vertigem tomou posse de mim, mas fui
capaz de engolir a bile e observar Serena e Jasper. Minha amiga estava
prestes a subir no tatame, mas Jasper a impediu. Ela o olhou, confusa. Eu
estava tão confusa quanto. Serena não deveria treinar comigo?
— Deixe Lirya treiná-la desta vez — ouvi Jasper dizer.
Eu estava longe o bastante para que sua voz se tornasse quase
imperceptível. Fiquei feliz em saber que Nathan estava certo. Só precisava
aprender a controlar esses poderes para que não ficassem dormentes.
— Eu posso treiná-la, Jasper — Serena retrucou, parecendo
ofendida.
— Eu sei que pode — disse. Então, ele completou, um pouco mais
baixo: — Quero ver como ela se sai com alguém que não conhece e não
confia.
Serena bufou, mas voltou ao seu lugar, ao lado de Jasper. Com os
braços cruzados sob o peito, seus olhos encontraram os meus. Faça o seu
melhor — era o que ela queria dizer.
— Acho que somos só nós duas, Fidly.
A voz de Lirya era um canto suave, mas não me enganava. Ela
queria isso quando decidiu subir até aqui.
— Meu nome é Alyssa, Lirya.
Ela deu de ombros.
— Confie em mim, eu sei.
— O que isso quer dizer?
Ela deu de ombros, posicionando-se em combate. — As mãos para
frente, os pés afastados.
— Quer dizer que eu sei quem você é — disse. — Agora vamos.
Ataque.
Eu corri para ela e, apenas quando ela estava prestes a rebater um
possível golpe, joguei meu corpo para o lado e a contornei como um pião.
Dobrei minha perna direita e chutei os pés de Lirya do chão. Ela grunhiu,
mas conseguiu se esquivar, movimentando-se tão rápido, que acabou
virando um borrão em minha visão. Mal tive tempo de me virar para
encontrá-la, antes que Lirya sacasse a própria adaga e a descesse em minha
direção. Quando treinei com Nathan, apesar de eu usar minha adaga, ele
nunca usava a dele. Agora, precisei de todo meu autocontrole para não
correr como realmente era capaz. Nathan havia me alertado sobre eu expor
minhas habilidades, e como isso poderia chamar uma atenção indesejada.
Parte de mim acreditava que seria melhor mesmo manter aquele
conhecimento entre nós, porque assim como ele, eu não tinha motivos para
confiar em certos Protetores. Mas isso não queria dizer que permitiria que
Lirya me cortasse como um açougueiro.
Eu bloqueei sua arma com a minha, a poucos centímetros do meu
ombro. O golpe não me mataria, obviamente, mas machucaria. Bastante. Eu
segurei sua força com a minha própria, até que ela desistiu do golpe e pulou
para trás, pensando em seu próximo passo. Sua careta era a prova de que ela
não estava feliz com o meu desenvolvimento. Pelo menos não quando ele
era posto à prova contra ela. Isso apenas me deixava mais orgulhosa de mim
mesma.
— Eu não sei o que ele viu em você — ela disparou.
— Ele quem?
Ela me fuzilou de volta.
— Você sabe quem.
Não tive tempo de responder porque ela já estava atacando
novamente, dessa vez com o punho. Desviei a tempo para que o soco não
atingisse meu nariz e o quebrasse, mas o impacto contra minha mandíbula
foi inevitável. Eu rosnei com tanta força que parecia um animal. Lirya
recuou, deixando que eu me recuperasse do golpe e isso apenas serviu para
me irritar ainda mais.
Nathan teria que superar seu medo quanto as pessoas descobrindo
sobre o que eu podia fazer porque eu estava malditamente cansada de
apanhar! Se Ravenna tocasse em um único fio de cabelo meu por isso, eu
mesma a ensinaria como deveria se comportar. Aproveitaria para vingar a
criança que um dia Nathan foi.
Minha adaga queimou em minha mão, como se pedisse para ser
usada. Talvez até mesmo implorasse por isso. Deixei que ela me
coordenasse. Deixei meu braço se erguer, quase que por vida própria e
deferir golpe após golpe em Lirya. Eu fui treinada a vida toda. Minha mãe
nunca foi cruel em suas lições — pelo menos raramente era, mas isso não
queria dizer que eu não havia aprendido nada com suas ordens.
Eu flagrei a surpresa nos olhos de Lirya quando fechei a distância
entre nós em um milésimo de segundo. Vi a dúvida e... o terror. Como se eu
fosse algum animal selvagem. E quando ela tratou de esconder seu medo, já
era tarde demais, ele já havia me dado a coragem necessária para cortar o
seu casaco de couro pela metade.
Dessa vez foi ela quem rosnou em resposta.
— Não use meias palavras para falar comigo, Lirya. Se quiser dizer
algo, apenas diga.
Lirya terminou de rasgar a base de seu casaco e jogou o pano para
fora do tatame, que voou até atingir o chão.
— Estou falando de Nathan — ela grunhiu.
A surpresa foi capaz de me perturbar apenas por meio segundo. Ela
não podia saber que ele me via à noite, sempre fomos cuidadosos para que
ele não fosse visto. Bem, ele era cuidadoso, boa parte do tempo eu estava
distraída demais por seu estúpido rosto para prestar atenção em algo além.
Mas ele foi cuidadoso, não foi?
E mesmo que não tivesse sido, não via como aquilo seria um
problema dela.
— Você tem que ser mais específica do que isso.
Seu sorriso poderia muito bem ser um palavrão direcionado a mim.
— Não finja para mim — ela disse. — Ele parece um maldito
cachorrinho toda vez que você está na jogada.
Do que diabos ela estava falando? Eu nunca nem mesmo estive com
Nathan no mesmo espaço que Lirya.
— Chega de conversas! — Jasper gritou para nós. — Isso é um
treinamento, não um lanchinho da tarde.
Lirya atacou tão rapidamente, que dessa vez não tive nem tempo de
processar sua decisão. Ela me lançou pelo tatame até que eu estivesse certa
de que iria ser lançada para o chão. Agarrei-me à borda com toda a minha
força, para que eu não caísse. Ouvi Serena protestar lá embaixo, mas eu
estava concentrada demais em me içar para cima para prestar atenção em
suas palavras. Um segundo depois, quando finalmente consegui colocar
minhas pernas de volta na base do tatame, Lirya estava com os braços
prendendo minha garganta. Precisei forçar meus dedos em sua pele para que
ela não me sufocasse.
Ela me virou para que minhas costas ficassem contra seu peito. Todo
meu corpo estava sob seu controle dessa forma.
— Apenas se lembre, Alyssa — ela sussurrou no meu ouvido. Ao
longe, pensei ter visto uma cabeça de cabelos negros —, enquanto você
brincava de esconde-esconde, era a minha cama que ele aquecia.
Ela estava falando sério?
Um pouco de orgulho faria bem a ela.
Eu não iria ficar aqui, parada, deixando ela dizer o que bem
desejasse. Eu não era uma donzela e estava cansada dessa hostilidade idiota.
Eu era uma guerreira. Ao invés de puxar seu braço, finquei minhas mãos
neles. Dobrei meu corpo e a levei comigo, jogando-a no chão. O tatame
tremeu com o impacto. Rápida como um raio, puxei minha adaga e a
apontei para sua garganta exposta.
— Se está tão certa quanto a isso, Lirya — eu disse, minha voz se
tornando um rosnado. — Não deveria se preocupar comigo.
Ela fuzilou minha arma apontada para ela, mas continuou no chão.
Uma mão tocou meu ombro e eu recuei um pouco. Virei-me e
encontrei Serena, tensa e séria, segurando meu ombro com firmeza. Seus
olhos passaram por Lirya até se fixarem em mim.
— Deixe Lirya — ela disse para mim. — Agora seremos nós duas
treinando. — Eu me afastei da Protetora, abaixando minha adaga. Então,
Serena se virou para a colega com um olhar penetrante. — Vá.
Lirya não disse nada, enquanto se levantava e andava até a borda do
tatame. Um segundo antes de pular para um salto de mais de três metros,
ela apenas me lançou um olhar afiado.
— Então agora vocês estão disputando o mesmo homem?
Olhei para Serena indignada.
— Eu não estou disputando ninguém!
— Não foi o que pareceu — ela retrucou, um quase sorriso se
formando em seu rosto.
— Isso não é engraçado, Serena! — protestei. — Ela não tinha
motivo nenhum para me atacar por causa de Nathan!
Serena balançou a cabeça, concordando comigo.
— Bem, Lirya sempre foi meio... esquentadinha. Ela vai superar
isso.
Revirei os olhos.
— Não gosto dela. Eu tentei, ok? Mas não gosto mesmo e ponto.
— Isso é porque você gosta de Nathan e ela acabou de deixar bem
claro o tipo de coisa que os dois faziam juntos. — Bile tomou minha
garganta. — Isso e o fato de ela ser escrota com você — minha amiga
completou, levantando os ombros. — É compreensível que não goste dela,
afinal.
Queria não me importar. Queria poder dizer que a vida pessoal de
Nathan não me dizia respeito, mas tinha certeza de que iria soar falso
demais. Porque eu me importava. Depois de ontem à noite, pensei... pensei
que pudesse haver algo entre nós. Que Nathan me veria mais do que como
um serviço, mais até do que uma amiga. Mas era óbvio que ele já estava
com alguém, esse era bem o tipo de sorte que eu tinha.
— Cale a boca — rosnei para Serena.
Ela ergueu os braços, rendendo-se.
— Podemos falar sobre como você está melhor na luta — ofereceu,
e logo soube que isso não era tudo que ela tinha a dizer. — Como você está
inacreditavelmente melhor. Forte e rápida... quase como um Protetor. — Ela
me lançou um olhar curioso — Podemos falar sobre isso.
“Não pode contar o que descobrimos hoje a ninguém.”
Eu confiava em Serena sem sombra de dúvidas. Confiava em meus
pais com a minha vida. Confiava em Roman e até mesmo Jasper. Mas havia
uma razão pela qual Nathan não queria que outros soubessem sobre isso e a
verdade era que eu confiava nele o suficiente para entender que, talvez, isso
fosse o melhor. Isso não queria dizer, porém, que seria um segredo que
guardaria para sempre. Por enquanto, fazia sentido. Amanhã, talvez, não
fizesse mais.
Era melhor que pensassem que eu fosse uma pequena garota
indefesa.
— Eu estou treinando para isso, não é? — disfarcei.
Serena arqueou uma sobrancelha.
— Vamos ver.
Dessa vez, quando ela avançou em minha direção, tentei engolir
minha força recém-descoberta. Não era muito difícil, no entanto, e ela
pareceu desaparecer com facilidade. Apesar disso, fui capaz de receber os
golpes de Serena e contra-atacar com golpes bem executados.
Nós nos mantivemos nessa dança interminável por toda a manhã.
Após o almoço foi Jasper quem subiu no ringue, o que transformou o
treinamento em uma tortura. Mas eu me mantive em pé, firme, até que ele
dissesse que era o suficiente.
No fim, minha cabeça estava explodindo, meu corpo dolorido em
todos os lugares possíveis, e meu sangue ainda fervendo.
Andei até minha cabana com meus pais ao meu lado com o sangue
queimando. Eu insisti que não precisavam me acompanhar, que eu poderia
fazer a caminhada sozinha, mas eles fizeram questão. Quero respirar um
pouco de ar fresco — meu pai disse. E eu estava aterrorizada de que seria
pega em uma grande mentira. Minha mãe havia sido clara quanto a meu
envolvimento com Nathan, mesmo que este fosse completamente platônico.
E parte de mim estava aterrorizada de que nós pudéssemos pegá-lo se
escondendo em minha cabana, como tinha feito nas últimas noites. Ele tinha
o mau hábito de nunca bater antes de invadir o lugar.
Quando parei em frente à porta e meus pais ficaram esperando eu
usar minha chave para abri-la, toda minha esperança de que eles não
entrassem foi por água abaixo.
Fosse por causa do Destino ou o que quer que controlasse tudo isso,
Nathan não estava em lugar algum quando entrei na cabana, seguida pelos
meus pais. Isso, no entanto, não aliviou o incômodo em meu peito. Não
querer que meus pais o pegassem aqui, não significava que eu não queria
que ele estivesse aqui.
— Espere. — Minha mãe puxou meu braço e nós paramos a menos
de um metro da porta.
Ela andou até um papel dobrado como um convite, jogado no chão.
Mamãe pegou o papel e o abriu sem nem mesmo me oferecer a
chance de fazer isso primeiro. Estávamos em minha cabana, o que queria
dizer que aquele papel se direcionava a mim. Poderia muito bem ser um
lembrete de Nathan. Mas segurei minha língua, enquanto minha mãe lia o
conteúdo com uma expressão tão séria que rugas até então inexistentes,
aparecem em seu rosto. Meu pai foi até ela, parecendo nervoso, e leu o
papel por cima do ombro da esposa.
— O que foi? — perguntei, ansiosa.
— Isso só pode ser alguma brincadeira de mal gosto — meu pai
murmurou.
Caminhei até eles e peguei o papel das mãos da minha mãe, que
estava atônita demais para ao menos reagir. Com o coração acelerado, li o
bilhete:
Naquela noite, quando voltei para minha cabana, me sentia tão leve
quanto uma pluma. Esqueci-me completamente do meu encontro com
Ravenna ou tudo o que envolvesse esse mundo de Protetores e Desertores.
Peguei o livro que Nathan tinha começado a ler e folheei as páginas
procurando minhas partes favoritas. Apesar de não querer admitir que
estava ali, relendo um livro já lido, apenas para comentar com o garoto de
olhos azuis, que pareciam tatuados em minhas pálpebras, era exatamente o
que eu estava fazendo. O tempo passou rápido, no entanto. Logo meus
olhos ficaram pesados e o cansaço ameaçou me tirar a consciência.
Eu tentei ficar acordada, porque havia tantas coisas que queria
contar ao Nathan. Ele com certeza teria algum comentário engraçado que
pudesse aliviar as descobertas recentes. Era engraçado que ele houvesse se
tornado uma pessoa que eu aguardava ansiosamente para poder conversar e
eu sabia que não era apenas o fato de eu querer beijá-lo. Era mais.
Nathan era meu amigo.
Mas quando adormeci no sofá às 3:00 da manhã, ele ainda não havia
aparecido.
Ele tão pouco apareceu nas quatro noites seguintes.
— Talvez ele esteja em alguma missão — Serena me disse e bateu
em meu cotovelo para que eu o erguesse mais e posicionasse a espada de
forma correta. Espadas. Eu, definitivamente, odiava espadas. São pesadas e
arcaicas. E eu era péssima usando elas.
Encarei a garota do outro lado do ginásio de treinamento. Seus
cabelos loiros estavam presos em um coque que a fazia parecer ainda mais
raivosa.
— Aposto que Lirya sabe.
Serena arqueou uma sobrancelha para mim.
— Está com ciúme, Alyssa? Pensei que vocês eram apenas amigos.
Grunhi de raiva, jogando a espada para o lado.
— Não estou com ciúmes, estou com raiva.
Serena não respondeu, mas me lançou um olhar de conhecimento.
Como se soubesse que eu estava mentindo. Mas não era uma mentira. Eu
realmente estava com raiva. Ódio. Porque ele sumiu há cinco dias e nem
pensou em deixar um maldito recado. Até onde eu sabia, Nathan poderia
estar morto, já que todos nesse lugar se recusavam a reconhecer sua
existência.
Todos, menos Lirya.
— Eu ainda acho que ele pode ter ido em alguma missão — Serena
insistiu. — Use essa, será mais fácil. — Ela pegou outra espada, uma menor
e mais leve e me entregou. — Muitos Desertores estão chegando no
território para caçar você.
Que ótimo.
Isso queria dizer que mais humanos estavam sendo atacados por
sádicos sem alma, simplesmente porque estavam vivendo suas vidas onde
os Desertores procuravam por mim.
— E se algo tiver acontecido com ele?
Serena bufou uma risada.
— É o Nathan, Aly. É o melhor Protetor que já vi lutar. Uma vez ele
foi esfaqueado durante uma missão e, ainda assim, conseguiu matar seis
Desertores sozinhos. Existe um motivo pelo qual Ravenna permite que ele
viva, sem dar muitas explicações de suas ações. É porque ele é bom. Um
dos melhores.
Suspirei.
— Eu odeio que ele tenha simplesmente sumido.
Serena bateu sua espada contra a minha, com força.
— Isso é porque você gosta dele.
Revirei os olhos, mas não neguei.
Eu estava cansada de gostar de Nathan Cross.
Do outro lado do ginásio, Lirya dava uma risadinha, enquanto me
observava e, como resposta, levantei um dedo do meio para ela.
Era um fato. Eu tinha voltado a ser criança.
— Respire, filha!
A voz de meu pai era um eco distante.
Alguém pressionou meu peito e logo depois virou meu corpo de
lado.
— Vamos, Aly — agora era Roman quem falava, a voz próxima do
meu ouvido, saindo como um grunhido tenso. — Respire.
— Onde está Aisha? — alguém gritou. Acho que era minha mãe,
mas a voz parecia um tremor, difícil de identificar.
Não acaba aqui — ouvi o sussurro de Diana em meu ouvido.
Não. Não acabaria mesmo.
Eu lutei. Eu não permitiria que esse fosse meu fim. Forcei meus
pulmões a funcionarem, meu coração a bater.
Eu tossi. Meu pulmão ardendo como se consumido por brasas. Bela
ironia dado que, de fato, estava lotado de água. Minhas costelas protestaram
quando me mexi. Abri os olhos e encontrei Roman em cima de mim, me
segurando para que meu corpo ficasse de lado e eu pudesse jogar a água
para fora. Vomitei água e mais água, meu corpo sofrendo convulsões fortes.
O esforço era gigantesco e eu choraminguei de dor.
— Você vai ficar bem — Roman sussurrou, os olhos chocolates
nublados por angústia.
Eu não respondi. Não tinha força para isso.
Vi meu pai correr até mim, seus pés descalços batendo contra a areia
da costa do Lago. Ele se jogou no chão, ao meu lado, e me puxou para seu
colo, como se eu não passasse de um bebê. Ele repetia que eu ficaria bem,
que Aisha me ajudaria. Mas não conhecia Aisha e, apesar de ter vomitado a
água que estava em meus pulmões, tudo em mim doía, minhas pernas, meus
braços, minhas costelas... Não sabia como a Guardiã poderia me ajudar.
E dor era tudo o que eu sentia. Tudo doía. Respirar doía.
E então, com um gemido de pura agonia, eu apaguei e não escutei
mais nada.
Eu esperava que a morte fosse mais do que esse silêncio tortuoso.
Acordei com calor, o que era estranho, porque a última coisa de que
me lembrava era de estar encharcada pela chuva. Não. Encharcada pelo
Lago.
Meus olhos estavam pesados quando tentei abri-los.
— Não se mexa, querida.
Uma voz melódica e suave me surpreendeu e eu tentei focar minha
visão para encontrar sua dona, que parecia ostentar um brilho amarelado
nas palmas das mãos. A mulher à minha frente parecia um anjo. Seus
cabelos tinham cor de canela, eram crespos e volumosos descendo até sua
cintura. Seus olhos dourados, como nunca havia visto antes, me analisaram
atentamente. Seus lábios grossos se abriram em um sorriso carinhoso
quando nossos olhos se encontraram. Sua beleza me deixou desconcertada.
Sua pele tinha um tom de marrom profundo, seus cílios eram espessos e
suas sobrancelhas finas eram tão bem desenhadas, que a mulher poderia ser
qualquer coisa, menos humana. Era como se tivesse sido desenhada à mão
por algum artista e, então, recebido a dádiva da vida.
Meus olhos desceram pela extensão do meu corpo. Minhas roupas
eram tralhas. Minha calça havia sido cortada em shorts. Minha camiseta
estava destruída e mostrava metade do meu torso. Eu estava uma bagunça.
Observei as mãos de Aisha sobre minha perna, a luz saindo delas
como um farol. Era por causa daquilo que eu estava sentindo tanto calor.
Parecia que ela estava jogando raios de sol em meu corpo. Mas não era um
calor insuportável, chegava até mesmo a ser agradável. Como se banhar de
sol depois de ter entrado no mar, e a água salgada ainda estar impregnada à
pele.
— Estou feliz que esteja acordada. — Ela fechou as mãos e as tirou
de cima da minha perna. Ao se levantar, observei seu vestido branco de
tecido fino cobrir seu corpo cheio de curvas. Colares cheios de pedras
cobriam seu pescoço e peito. — É um prazer conhecê-la. Eu sou Aisha.
Aisha parecia um anjo. Como uma alucinação e, por um segundo,
temi estar sendo recebida naquilo que os humanos imaginavam ser o céu.
Respirei fundo, dessa vez minhas costelas não doeram.
— A Guardiã da África — deduzi.
Ela sorriu.
— Isso mesmo.
Aisha andou até uma mesa cheia de cristais e plantas. Percebi que
ela andava descalça, os dedos do pé e os tornozelos tão ornamentados
quanto seu pescoço e pulsos.
— Em minha cultura, — ela disse, ao perceber minha atenção em
seus pés. — Nós aprendemos que andar descalço é importante para
descarregar e renovar nossas energias.
Eu assenti. Talvez eu devesse tentar algum dia.
— O que você fez? Não sinto praticamente nenhuma dor mais.
— Cheguei aqui e a encontrei com duas costelas quebradas, uma
torção no pulso, uma perna quebrada e alguns cortes e escoriações.
Consegui curar tudo, mas ainda haverá certa dor residual por alguns dias. É
uma dor mais psíquica do que física, porque seu corpo passou por muito
ontem à noite e, apesar de eu ter feito tudo para curar os ossos, sua mente se
lembra do que o corpo deveria sentir. — Ela esmagou algumas folhas
amareladas em um pilão. Aisha colocou a planta amassada em uma colher,
já com uma consistência pastosa, e veio até mim. — Engula isso, vai te
ajudar no processo de cura. Logo estará perfeita novamente.
Peguei a colher e enfiei aquela coisa na boca. Mastigar se tornou
insuportável depois de dois segundos, então apenas engoli a pasta.
Eu me esforcei para me sentar na cama e logo percebi que não tinha
ideia de onde estava. Lembrava de ter conseguido atravessar para o Outro
Lado, mas aquela não era minha cabana.
— Onde estamos? — perguntei.
Aisha puxou uma cadeira à minha frente.
— Esta é a enfermaria do Outro Lado.
Para uma enfermaria, parecia meio defasada. Havia apenas a cama
onde eu estava sentada e uma mesa cheia de coisas que não fazia ideia da
serventia. Não parecia em nada com uma enfermaria comum.
—Todas as Guardiãs possuem poder de cura?
A porta se abriu naquele momento e uma mulher, de cabelos escuros
ondulados na altura dos ombros e olhos castanho-esverdeados ferozes,
entrou no quarto. Ela vestia roupas pretas, uma calça de cintura alta
esvoaçante, uma blusa simples e um kimono por cima. Parecia muito mais
urbana que Aisha, ao mesmo tempo que expunha uma animosidade que
logo preencheu a sala. O ar parecia pairar à sua volta, quase como se sua
presença fosse sinônimo de poder. Ao olhá-la, eu podia ver sua ascendência
indígena mesclada aos traços de seu belo rosto.
— Graças ao Destino, não! Imagina que chato seria passar horas
encarando estas pedras. — A mulher lançou um olhar para Aisha, que
apenas abriu um largo sorriso para ela. Então ela me olhou, parecendo
satisfeita com o que via. — Você parece melhor. Ótimo.
— Graças ao poder de cura de Aisha e as horas que deve passar
encarando as pedras — retruquei.
A mulher parou, com as mãos na cintura. Aisha apenas sorriu.
— É bom ver você novamente, Alyssa. — Eu devia parecer
completamente confusa, porque não tinha ideia de quem era aquela mulher
e estava certa de que não a conhecia. Por isso, ela logo completou: — Sou
Cassandra.
A Guardiã da América, recordei-me. Mas eu nunca a conheci. Ela
provavelmente me observou de longe, como outros Protetores fizeram por
anos.
— Um belo de um alvoroço você causou ontem. Pensei que estava
claro que devia ficar dentro de nosso território.
E foi apenas quando Cassandra disse isso que me lembrei do porquê
estive fora para começo de conversa. Nathan. Onde será que ele estava?
Será que Diana apareceria para me avisar se algo tivesse acontecido com
ele?
— Vocês têm notícia de Nathan?
Cassandra arqueou a sobrancelha para mim e Aisha apenas me
observou, quieta.
— Por que quer saber? — Cassandra rompeu.
— Porque não sei onde ele está e estou preocupada.
— Tenho certeza de que ele está bem, Alyssa — Aisha disse, ao
mesmo tempo que Cassandra murmurou algo como “algumas coisas nunca
mudam”.
— O que quer dizer com isso? — questionei Cassandra.
Ela deu de ombros.
— Nada. — Estalou a língua e cruzou os braços sobre o peito,
aproximando-se de mim. — Agora vamos focar no que realmente importa.
Primeiro: por que você deixou nosso território? Segundo: quem te atacou?
Bufei, impaciente. Eu odiava isso, quando ignoravam meus
questionamentos como se fossem menos importantes que os seus próprios.
Saber sobre o paradeiro de Nathan era importante, até onde eu sabia, ele
poderia estar correndo risco de vida. Eu precisava encontrar um jeito de
falar com Ravenna o quanto antes e forçá-la a me dizer onde ele estava,
assim como exigir que ele voltasse para casa. Talvez, esperar que Nathan
cumprisse alguma ordem de Ravenna fosse esperar por muito, mas eu iria
tentar.
— Saí para procurar por Nathan — contei, sabendo muito bem que a
este ponto, não havia mais como mentir. — E não, não vi quem me atacou.
Seu rosto estava coberto por um tecido, mas era uma mulher e não parecia...
Não parecia alguém que eu deveria imaginar como meu inimigo.
Bem, não antes de me atacar.
— Não parecia o que? — Cassandra insistiu e eu reparei quando
Aisha tocou sua mão, como se pedisse calma.
— Ela não parecia uma Desertora.
Aisha franziu o cenho, tão confusa quanto Cassandra parecia. A
última Guardiã, contudo, cerrou os olhos para mim.
— Está me dizendo que um humano te atacou? Assim, do nada?
Mordi o lábio, nervosa.
— Não disse que era humano.
— O que achou que era? — Aisha perguntou então.
— Eu não sei, ok? — Minha cabeça doía. — Mas eu não acho que
era um Desertor e um humano não podia fazer o que ela fez.
— Você está dizendo que acha que um Protetor te atacou? —
Cassandra arfou, incrédula. — Os Protetores juram com sangue e fogo que
a Fidly é sua primeira prioridade, caso tenham a chance de encontrarem
uma em suas curtas vidas. Impossível que tenham quebrado este juramento
e já não sejam Desertores.
Suspirei.
Eu sabia disso. Todos fizeram questão de me lembrar como aquele
lugar era seguro e protegido. Como nada poderia me atacar ali. Como
aquelas pessoas morreriam por mim. Mas e se houvesse alguém que
simplesmente não quisesse isso? Seria tão impossível que isso acontecesse
sem que Vicenzo estivesse diretamente envolvido? Não me parecia
impossível que algum deles simplesmente estivesse cansado daquela vida, e
talvez muito ressentido por ela.
O bilhete que recebi, que antes não parecia passar de uma
brincadeira de mal gosto, agora parecia real demais.
— Eu não sei. Tudo o que sei, é que preciso encontrar Nathan. Eu
acho que ele pode estar em perigo.
Cassandra avançou, sumindo em meio ao ar e então surgindo a
poucos centímetros do meu rosto. Poderosa. Eu estava em um quarto
pequeno com duas das mulheres mais poderosas do planeta. Imortais.
Abençoadas pelo próprio Destino com vida e poder. E Cassandra parecia,
no mínimo, selvagem. Como se sempre manuseasse seu poder à borda de
seu ser, sempre na palma de sua mão.
E mesmo que essas duas mulheres fossem ligadas por seus destinos
em comum, ambas eram tão diferentes quanto água e vinho. Enquanto
Aisha era amigável e cuidadosa, Cassandra era dura e introvertida.
Cassandra agarrou meu rosto, as mãos suaves, mas firmes, exigindo
que eu a encarasse. Tive que me forçar a não recuar.
— Cassandra, não — Aisha se intrometeu, agarrando o braço da
outra Guardiã. — Eu acabei de passar seis horas curando seus machucados
para que nada ficasse para trás. O corpo dela já lidou com muito.
— Eu preciso ver — Cassandra retrucou.
Eu encarei seus olhos esverdeados.
— O que vai fazer?
— Vou entrar em sua mente.
O que?
Aisha bateu na mão de Cassandra e a Guardiã me soltou, lançando-a
um olhar irritado.
— Hoje não, irmã.
Ela bufou. Seus belos olhos caíram sobre mim:
— Amanhã, Alyssa — com essas palavras ditas, ela se foi, saindo
do quarto como se não passasse de uma brisa.
Que merda tinha acontecido? Eu tinha tido uma vida completamente
tediosa por dezessete anos. Agora, havia uma imortal prometendo
esquadrinhar minha mente, como se este fosse algum tipo de site de fofoca
à sua disposição.
— Não se preocupe com minha irmã, Alyssa. Cassandra é uma
controladora nata. Ela precisa que tudo esteja perfeito e pensar que um de
seus Protetores possa ter feito algo contra você... — Aisha suspirou. —
Bem, é o oposto do que precisamos agora.
— Ela pode mesmo ler minha mente?
— A magia de Cassandra é diferente da minha. Ela é capaz de criar
e quebrar feitiços. Foi ela quem criou este lugar e protegeu o território
contra Desertores. Fez isso em todas as sedes de Protetores. Inclusive, está
aqui para reforçar as proteções. Mas ela também pode fazer mais. Pode
bloquear e desbloquear a mente de alguém, rever o que a pessoa viu ou
ocultar estas visões. — Aisha se aproximou, colocando dois dedos em meu
pulso, sentindo os batimentos ali. — Sua magia é mais crua do que a minha.
Eu posso curar corpos e, às vezes, a mente. Mas não posso usar minha
magia para nada muito além disso. Cassandra, no entanto, pode.
Engoli as informações com cuidado. Se Cassandra e Aisha podiam
fazer tudo isso, do que as outras três eram capazes? E por que diabos
precisam de mim para matar Vicenzo? O Destino realmente estava tentando
puni-las quando criou essa profecia.
— Tem certeza de que precisam de mim para matar Vicenzo?
Aisha sorriu.
— Eu gostaria de poder dizer que esse é um trabalho que podemos
fazer sozinhas. Gostaria muito que este não fosse seu fardo, querida. Mas
não foi assim que o Destino quis.
O Destino me parecia um idiota arrogante.
— Você já o viu pessoalmente?
— O Destino ou Vicenzo?
Dei de ombros.
— Ambos.
— Conheci Vicenzo quando ainda era humano e eu mesma o
abençoei como o primeiro Protetor. — Aisha apalpou meus braços e minhas
costelas. Quando tocou minha perna, eu me retraí. Luz caiu de suas mãos
até minha pele. — Quando ele traiu minha irmã e se tornou o primeiro
Desertor, foi Cassandra quem lançou o feitiço que lhe diferenciava dos
demais, garantindo que víssemos que havia sido marcado pela escuridão.
Mas foi Freya quem o baniu.
— Mas ele se soltou. Não está mais exilado em Florença.
Aisha concordou.
— Já faz algum tempo.
— Porque ele é forte demais — supus.
A luz se extinguiu e ela abriu um sorriso confiante ao me olhar.
— Assim como você também será.
Então ela se virou para a porta, dizendo que meus pais estavam
esperando. Pelo que ela me contou, minha mãe saiu para caçar minha
agressora e meu pai esteve do lado de fora, aguardando Aisha fazer seu
trabalho.
Fui surpreendida por um abraço da Guardiã.
— Quem quer que a ameaça seja, nós iremos resolver. — Suas mãos
eram quentes quando ela afastou o cabelo do meu rosto. Suas próximas
palavras foram mais baixas: — E não se preocupe. Nathan está bem.
Suas palavras eram o suficiente para me fazerem respirar com
alívio. Era como se houvessem tirado um peso de minhas costas, que já
estava me sufocando. Aisha sorriu, percebendo meu alívio e deu um
pequeno aceno, quase que se curvando para mim. A Guardiã deixou o
quarto logo em seguida, permitindo que minha família viesse ao meu
encontro.
Acabei me esquecendo de pedir as descrições físicas de Vicenzo. E
só depois notei, que Aisha não havia me dito nada sobre o Destino.
— Mãe, olha para mim — pedi.
Ela estava em um canto do quarto, quieta, a raiva pulsando dela
como um tsunami alcançando a costa. Meu pai, por outro lado, estava ao
meu lado, observando as marcas ainda rosadas das antigas feridas, onde
Aisha usou seu poder para me curar. Mas minha mãe nem mesmo ergueu o
rosto para mim. Pelo contrário, ela permaneceu parada como uma estátua.
O único momento em que se permitiu demonstrar que percebia minha
presença ali, foi quando deu uma olhada em meu corpo curado e minhas
roupas esfarrapadas, para então deixar uma nova troca de roupa limpa e sem
nenhum rasgo.
— Como está a dor? — meu pai perguntou.
— Não sinto nada — respondi, ainda encarando minha mãe,
esperando que ela ao menos me olhasse. — Mãe, apenas diga o que quer
dizer.
— Você não quer ouvir as coisas que quero dizer — ela retrucou,
carrancuda.
— Deixem disso — meu pai interferiu. Ele penteou meus cabelos
para trás, com carinho. — Se quem atacou você, foi mesmo um Protetor,
então isso quer dizer que aquele bilhete não era uma brincadeira de mau
gosto, mas sim, uma ameaça real. Precisamos pensar em como resolver
isso.
— Não tem como resolver isso porque Alyssa se recusa a agir
racionalmente — minha mãe esbravejou, ainda do outro lado do quarto. —
Passamos dezessete anos fazendo de tudo para mantê-la segura, apenas para
que ela se colocasse em risco por conta própria. — Finalmente ela me
encarou fazendo com que eu quisesse voltar no tempo, para o momento em
que ela se recusava a reconhecer minha presença ali. — Você não tem
qualquer respeito pela sua própria vida e, assim, vai acabar morta.
Independentemente do que eu ou seu pai, ou qualquer outro nesse lugar,
faça para protegê-la.
— Uma Protetora me atacou, mãe. Eu não estava segura aqui.
Jasmine explodiu. Veio até mim com tanta velocidade, que mais
pareceu um borrão. Eu me questionava como ela havia conseguido conter
aquela força dentro de si, por tantos anos.
— Se quem te atacou foi mesmo uma Protetora, ela só teve a chance
de fazer isso porque você saiu deste território protegido. Ela nunca
arriscaria atacar você aqui, não com tantos outros por perto. — Seus olhos
queimavam com a raiva que ela tentava conter em suas palavras. Porque eu
sabia que minha mãe poderia ser muito mais cruel se quisesse. — Se não
fosse Serena nos avisando, você poderia ter se afogado! Seu pai e Roman te
encontraram no meio do Lago, logo após a travessia. A queda foi tão alta e
forte que você estava cheia de escoriações e uma perna quebrada,
provavelmente porque bateu em alguma pedra! Você estava desacordada,
Alyssa, meio morta! E tudo por quê? Por que?
Tudo por Nathan. Porque Diana me pediu. Porque eu não podia
simplesmente ignorar o medo que cresceu em mim como uma maldita
praga. E, mesmo agora, meu único arrependimento era não ter conseguido
encontrá-lo. Tinha falhado com a única razão que havia me feito correr
aquele risco.
Pelo menos Aisha havia dito que ele estava bem, mas eu não tinha
notícia nenhuma além daquela. Será que a Guardiã mentiria?
— Vocês têm notícias de Nathan? — perguntei com os olhos fixos
em meu pai, não podendo encarar minha mãe agora.
— Nathan? — ela praticamente gritou. — Você foi atrás de
Nathan?
— Eu só queria saber se ele estava bem — me defendi, ainda
encarando meu pai, que tinha um olhar triste no rosto. — Ele iria para uma
missão e...
— Como você ao menos sabe disso? — dessa vez, a voz da minha
mãe era tão baixa, tão forçadamente controlada, que finalmente a encarei.
Ah, que merda.
— Mãe...
— Eu quero que me fale como sabe tanto sobre o que Nathan anda
fazendo — ela exigiu, os braços cruzados e os olhos flamejando.
Meu pai se virou para ela, pedindo calma, mas minha mãe nem
ergueu seu olhar para o marido.
— Ele tem me ajudado mãe — confessei.
Ela semicerrou os olhos para mim.
— Com o que? — rosnou. — E desde quando?
— Jasmine, isso não vem ao caso agora — meu pai a cortou. —
Precisamos encontrar quem atacou nossa filha e, então, podemos nos
preocupar com o restante.
— Isso se Alyssa fizer a gentileza de seguir as regras e não acabar
se matando no processo — ela rebateu.
— Ela irá seguir as regras — meu pai disse. Eu não poderia estar
mais errada ao pensar que talvez ele ainda confiasse em mim. Logo entendi
sua intenção quando continuou: — Porque a partir de agora, ela terá um
Protetor cuidando de sua segurança vinte e quatro horas por dia.
Eu arquejei em puro horror. Meu pai sempre foi o mais sensato,
aquele que tentava me dar o máximo de liberdade possível.
O que eu tinha feito?
Apesar de eu estar me sentindo bem, sabia que era graças aos
poderes de Aisha. Eu havia sentido a queda, tinha sentido meus ossos
quebrarem e a água infiltrar meus pulmões. Não tinha nem ideia de como
havia conseguido atravessar para o Outro Lado. Lembrava bem do
desespero, enquanto eu implorava para que o Lago me ajudasse. Seria
possível que ele tivesse, de fato, me ajudado a atravessar?
Eu sabia que era um milagre que eu estivesse viva, mas pensava que
essa dádiva, por si só, compensava a parte de quase morrer, enquanto
quebrava as regras.
Aparentemente, não era bem assim que funcionava.
— Então vou ter carcereiros agora?
Minha mãe quase me bateu, mas foi meu pai quem respondeu.
— Não estou mais feliz que você quanto a isso, Alyssa. Mas se você
não tem qualquer resguardo quanto a sua segurança, eu não medirei
esforços para cobrir sua falta de prudência.
Fiquei sem reação com suas palavras.
Eu tenho resguardo quanto a minha segurança. Pouco tempo atrás,
quando fui àquele festival na cidade, meu pai havia conversado comigo,
questionado se, talvez, minhas ações não eram motivadas por um desejo de
ser capaz de controlar meu próprio destino. Minha própria morte. Mas eu
não queria morrer. O problema era que também me importava com a vida
de outras pessoas e, agora, tinha tendência a escutar fantasmas em meu
quarto. Se minha mãe estivesse em meu lugar, ouvindo o apelo e o medo de
Diana, ela teria ido atrás de Nathan também. O problema era que não podia
confiar nela quando o assunto era ele, porque ela agia como se Nathan fosse
um pária e eu fosse sua próxima vítima. Se Diana confiasse em qualquer
outra pessoa para ajudá-la, ela não teria me pedido ajuda.
— Acho ótimo que estejam me punindo por ter quebrado uma regra
que deveria me proteger contra Desertores, quando, na verdade, quem me
atacou foi uma Protetora.
A porta se abriu, batendo contra a parede, e eu soltei um palavrão
com o susto. Ravenna invadiu a enfermaria com seu ar de superioridade
quase não cabendo dentro das quatro paredes. Seu cabelo parecia fogo e
suas roupas de couro provavelmente faziam coro à sua personalidade de
víbora.
— Você não sabe se foi uma Protetora — ela vociferou.
Ravenna parou a menos de um metro de distância, ignorando a
presença dos meus pais. Observei seus olhos, por um instante imaginando
se ela poderia ter sido minha agressora. Mas seus olhos eram claros e
esverdeados. Quem quer que tivesse me esboçado na trilha, tinha olhos
castanhos.
— Eu sei o que vi.
Lembrei de pensar que talvez o bilhete tivesse sido enviado por
Lirya, por conta de qualquer rixa que ela nutrisse por mim. Mas Lirya tinha
olhos claros e não era tão alta quanto a agressora. Agora me sentia uma
idiota mesquinha por ter cogitado nada além disso.
— Seu discernimento é questionável, Fidly — ela desdenhou.
Meu pai cruzou os braços na frente do corpo e a encarou, não dando
a mínima para como Ravenna insistia em fingir que ele não existia. Naquela
noite, ela não poderia ter escolhido momento pior para enfrentá-lo.
— Podemos te ajudar, Ravenna? — ele a fuzilou. — Porque caso
contrário, saia. Você não dá ordens à Alyssa.
Seu sorriso para meu pai foi felino e, como sempre, não alcançou
seus olhos.
— Você, humano, não deveria se meter em assuntos de Protetores.
— Ela se virou para minha mãe. — E se Jasmine é incapaz de fazer com
que a própria filha obedeça algumas ordens simples, então eu preciso
resolver a sua bagunça.
Trinquei os dentes. Eu odiava que meus erros fossem colocados na
conta dos meus pais, principalmente quando minha mãe nem mesmo
retrucava Ravenna.
— Você tem notícias de Nathan? — questionei Ravenna, decidida a
ignorar seus ataques.
Minha mãe praticamente revirou os olhos. Meu pai coçou a testa,
frustrado. Ravenna por sua vez pareceu surpresa.
— Nathan?
Assenti.
Ela soltou uma risada.
— Ah, Jasmine. — Ela bateu no ombro da minha mãe, como se
fossem camaradas. Minha mãe quase estapeou sua mão para longe. — Acho
que você tem problemas.
— Saia — minha mãe ordenou.
Alguém pode responder uma pergunta simples ou era algo
impossível nesse lugar?
Ravenna me lançou um olhar por cima do ombro, jogando os
cabelos para trás, enquanto ia em direção à porta.
— Agora que sei que está respirando, quero você em minha sala
amanhã, assim que o sol nascer. Entendido?
Engoli em seco. O que esta mulher queria comigo? Mas ela não me
deu tempo de responder ou negar sua ordem. Tão rápida quanto invadiu o
quarto, Ravenna desapareceu.
Infelizmente, depois que minha mãe dispara a falar, ela não para.
Por uns trinta minutos, eu fiquei escutando ela falar que eu era uma
irresponsável que além de não ter respeito por ela e meu pai, não tinha
respeito algum por mim mesma. Pela minha vida. Eu engoli suas palavras
calada. Meu pai apenas assentia em alguns momentos em concordância com
Jasmine, mas não chegou a acrescentar nada. Ele já parecia exausto e eu o
entendia, porque me sentia da mesma forma.
Minha mãe tinha feito questão de contar cada segundo que se passou
entre a ligação de Serena — que entrou em contato com meus pais,
preocupada porque eu não tinha ligado, depois que falei que estava
voltando para o Outro Lado — e o momento em que meus pulmões
voltaram a funcionar. Meu pai e Roman tinham me encontrado na água do
Lago, desacordada. Bem, me encontrado morta. Henry precisou fazer
massagem cardíaca por uns bons três minutos, até que Roman precisou
tomar seu lugar, porque meu pai não conseguia fazer as mãos pararem de
tremer. Roman, então, tinha tentado fazer meu coração voltar a bater pelos
próximos cinco minutos.
Eu voltei a respirar, mas desmaiei devido a dor. Uma perna
quebrada. Duas costelas quebradas e uma lesionada. Meu rosto já inchado
pelos golpes. Eu não podia estar mais grata por Aisha ter vindo me curar.
Por isso, eu me calei. Porque, mesmo que eu tivesse tido uma razão
para fazer o que fiz, minha mãe tinha motivos plausíveis para sua ira. Eu
poderia ter morrido e a profecia não teria sido finalizada. Outra pobre
menina, em alguns anos, teria nascido para carregar o fardo que eu falhei
em carregar.
Finalmente, depois de quarenta minutos escutando minha mãe
praguejar e dizer como minha ação foi idiota, e meu pai parecer
decepcionado e triste, Aisha apareceu e pediu que eles me deixassem
descansar um pouco. De fato, a dor que antes parecia dormente, voltou a me
perturbar, mas não era nada comparado ao que eu deveria estar sentindo.
Aisha me fez deitar na cama e tomar uma mistura que ela insistiu
em dizer ser um chá, mas mais parecia com água de esgoto.
— Descanse — ela ordenou com um sorriso antes de sair.
Não tive muita chance para cumprir sua ordem antes de encontrar
Diana me encarando de um canto do quarto.
— Eu sinto muito.
— Eu que deveria pedir desculpas — falei, o coração apertado em
meu peito. — Não consegui encontrá-lo e ninguém aqui quer me dar
informações sobre ele. Não sei onde Nathan está, mas Aisha disse que ele
está bem.
Diana se aproximou, os olhos cheios de lágrimas e meu estômago
afundou ao vê-la. Oh, Deus. Alguma coisa tinha acontecido com Nathan?
Será que Aisha tinha mentido?
— Eu sei onde ele está — ela disse.
— Ele está...
— Meu filho está bem, Alyssa. — Ela abriu um sorriso triste. —
Graças a você.
— Mas eu não o encontrei — falei confusa, o alívio tomando meu
peito, enquanto imaginava Nathan seguro. O peso em meu estômago cessou
de vez, e meu coração bateu mais calmo.
Sua mão fantasma agarrou a minha, sem realmente conseguir me
tocar. Diana suspirou.
— Eu não queria fazer isso, mas precisei. — Ela não me olhava nos
olhos. — Eu precisava que ele voltasse antes que fosse tarde demais.
Suas palavras demoraram para fazer sentido, mas quando finalmente
entendi, parte de mim se sentiu traída.
— Você sabia que ele não estava em casa.
— Sim. — Ela parecia envergonhada.
— Sabia que alguém viria atrás de mim?
Ela assentiu, ainda sem me olhar nos olhos.
— Eu poderia ter morrido — disparei, ainda sem acreditar.
Uma lágrima solitária escorreu pelos olhos da Fidly morta. Eu
queria saber por que a morte não livrava as pessoas dessa parte também. Se
tirava a vida, por que também não tirar a dor? Só me parecia justo estar
morto se a vida já não pudesse te abalar mais. Mas talvez não houvesse
nada de justo na morte.
— Eu tentei te ajudar. Tentei te guiar para longe dela — ela se
defendeu. — Nunca quis que fosse machucada.
— Mas me enviou sabendo que alguém estaria pronto para me
atacar?
— Eu sinto muito — ela repetiu. — Mas Nathan não teria voltado
por qualquer outra razão. Só por você. Só se você estivesse em perigo. —
Suas mãos tentaram me tocar novamente, mas não senti nada mais que um
sopro. — Alyssa, você precisa entender. Ele é meu filho e iria morrer.
Morreria amanhã quando a luta fosse demais para ele e escolhesse a
morte. Eu sei disso, vi o próprio Destino traçando o final. Então fiz o que
precisava fazer para mantê-lo vivo.
O Destino estava tramando a morte de Nathan? Eu nem queria saber
o que teria acontecido a ele. Ou o que aconteceria comigo.
Como poderia julgar Diana quando eu mesmo tinha feito o que
precisava para tentar salvar seu filho? Eu não tinha saído da minha bolha de
proteção para tentar mantê-lo a salvo? Não tinha ido contra tudo o que
esperavam de mim para isso, tudo o que eu sabia que era certo?
E apesar de parte de mim se sentir traída, a outra se sentia grata.
Porque se ele fosse mesmo morrer, então o que passei valeu a pena para que
ele ainda respirasse. Essa certeza era tão clara quanto as batidas do meu
coração.
Mesmo que não fôssemos amigos. Mesmo que ele não me quisesse
por perto porque era difícil demais. Mesmo assim faria de novo.
Nathan merecia viver. Tudo o que eu esperava era que um dia
pudesse aproveitar a vida que tinha e se deixar esquecer um pouco daquele
lado sombrio que havia marcado sua existência desde muito novo.
— Acho que você subestimou os sentimentos do seu filho, Diana —
falei, e finalmente consigo olhar em seus olhos azuis tão semelhantes aos de
seu filho. Mas os de Nathan eram duros e sombrios, como fogo que
queimava no lugar mais improvável. O de Diana, por outro lado, era pura
calmaria, mesmo frente à dor. — Mas estou feliz que ele esteja bem.
Dessa vez, ela sorriu para mim. Levemente. Quase que
imperceptivelmente.
— Não, eu não subestimei nada.
Absorvi suas palavras e escutei um burburinho vindo de fora do
quarto. Uma gritaria que eu não conseguia distinguir pareceu tomar o
corredor.
— Não conte a ele que me viu, Alyssa. — Diana pediu e logo
desapareceu, deixando-me sozinha novamente.
Ele está aqui — percebi. O que eu deveria fazer, depois que ele
havia dito tão claramente que não queria me ver? Por que ele veio, então?
Grunhi, saindo da cama e colocando o peso sobre minha perna
recém-curada para andar até a porta do quarto. Tentei ignorar a dor residual
quando abri a porta e me deparei com Roman agarrando Nathan pela
garganta.
Aquilo já parecia um hábito entre os dois.
— Tire as mãos de mim, Scott — Nathan rosnou.
Serena, ao lado dos dois, tentou puxar Roman, mas o Protetor não
cedeu. No fim do corredor, Brian e meus pais se aproximavam rapidamente.
— Você fez isso com ela — meu amigo rosnou para Nathan.
Dei um passo à frente, minha cabeça já estava doendo horrores.
— Ninguém fez nada comigo — interferi.
Os olhos de Nathan encontraram os meus. Um misto de sentimentos
passou por seus lagos azuis tão rápido, que o único que consegui distinguir
foi alívio. Como se não esperasse que eu realmente estivesse bem e ainda
houvesse um coração batendo dentro do meu peito.
— Alyssa.
Meu nome em sua boca era quase uma melodia. Precisei falar para o
meu coração idiota parar de acelerar, toda vez que seus olhos passavam por
mim.
Serena correu e me abraçou tão apertado que minhas costelas
protestaram.
— Eu sinto muito, Aly — ela disse e chorou. — Eu devia ter ido te
encontrar. Quando você não ligou, precisei avisar a Roman e seus pais.
Abracei minha amiga de volta, sabendo que ela havia feito o que
pôde.
— Você fez o que eu pedi, S. Não se culpe por isso. Eu estou bem.
Ela se afastou e limpou as lágrimas. Nós duas reparamos em
Nathan. Em como ele não parecia nem mesmo notar o Protetor o sufocando,
tendo os olhos presos em mim.
— Solte ele, Roman — pedi, firmemente.
Os ombros tensos de Roman me diziam o quanto aquilo o
perturbava. Mas ele soltou Nathan ao mesmo tempo que Brian parou ao seu
lado.
Roman deixou Nathan e andou até o meu lado. Parte de mim sabia
que ele queria gritar comigo, mas também queria ter certeza de que eu
estava bem. Apertei sua mão, mostrando-lhe que eu não poderia estar
melhor. Dada as circunstâncias, eu não mentia.
Só então encarei Nathan. Seus olhos me consumindo como se
fôssemos fogo e brasa. Ele pareceu receoso de se aproximar, como se eu
fosse enxotá-lo para longe. E talvez eu devesse, talvez eu não devesse
querer tanto falar com ele. Mas eu queria. Queria que me dissesse onde
estava indo e por que voltou por mim. Queria que pudéssemos voltar a ser
como éramos antes, mesmo que isso significasse engolir tudo o que eu
sentia. Queria tanto, que parecia difícil respirar. Alguns dias atrás, vê-lo e
falar com ele seria fácil, simples e certo. Agora, parecia que havia uma
muralha entre nós e nenhum dos dois tinha ideia de como quebrá-la. Nem
sabia se ele queria quebrá-la.
— Nathan, você precisa ir — minha mãe disse e a pura ordem vindo
dela me fez querer gritar. Ela precisava parar com essa merda.
— Você está bem? — Nathan finalmente perguntou, ignorando
minha mãe completamente.
Assenti.
— Nathan, talvez devêssemos... — Brian começou, colocando a
mão no ombro do filho.
— Não — Nathan o cortou, afastando-se do pai, como se seu toque
fosse afiado como um corte. — Estou cansado dessa merda. — Ele encarou
minha mãe. — Você disse que ela estaria segura. Disse que não tinha
porquê eu ficar.
Minha mãe desviou o olhar.
Ela sabia. O modo como se encararam agora mesmo... Ela sabia que
ele estava vindo ao Outro Lado me ver e, poucas horas atrás, fingiu que isso
era uma grande surpresa. Jasmine sabia e havia dito a ele que ficasse longe.
— Você não tem porquê estar aqui — ela insistiu. — Você tem seus
compromissos como Protetor e Alyssa não é um deles.
— Parem de falar como se eu não estivesse bem aqui — me
intrometi naquela guerra de olhares entre eles. — Eu estou bem aqui.
— O que diabos aconteceu, Aly?
Quando ele me chamou pelo meu apelido, parte de mim quis sentar
e chorar. Se ele não queria ser meu amigo, por que fazia isso? Por que agia
como se ainda fôssemos algo mais do que meros estranhos? Ele determinou
o limite, não eu.
— O que aconteceu foi ela se pondo em risco por você — minha
mãe retrucou, mas Nathan não tirou os olhos de mim. Seus olhos
percorreram meu corpo, como se estivesse se certificando de que eu
realmente estivesse bem. — Eu te disse para ficar longe, Nathan.
— Ah, você fez mais do que apenas me dizer para ficar longe, não é
Jasmine? — ele rebateu, voltando um olhar furioso para minha mãe.
— O que isso quer dizer? — perguntei, mas eles fingiram não me
notar.
— Chega, Nathan — Brian pediu.
Mas minha mãe tinha o queixo erguido ao responder:
— Eu fiz o que precisou ser feito.
Tinha algo que não estavam me contando. Eu era parte de algum
segredo entre eles e estava parada como uma idiota tentando entender.
— Só eu que estou perdida nessa troca de farpas? — Serena
murmurou.
Eu dei um passo à frente em direção a Nathan. Roman agarrou
minha mão, querendo que eu parasse, mas eu me desvencilhei dele
gentilmente. Parei cara a cara com o Protetor de olhos azuis e o vi inspirar
profundamente.
— O que precisou ser feito? — perguntei para ele, porque sabia que
minha mãe apenas mentiria ou omitira qualquer que fosse a verdade.
— Nathan... — minha mãe tentou pará-lo, mas os olhos dele
estavam conectados aos meus, como se nada mais no mundo importasse.
— Você realmente não se lembra?
Ele falou tão baixo que mal consegui ouvi-lo.
— Lembrar do que?
Meu pai se aproximou, segurando minha mãe que parecia prestes a
me arrastar dali. Os olhos de Nathan se distraíram com algo atrás de mim.
Virei-me e encontrei Cassandra e Aisha nos observando atentamente. A
primeira Guardiã o encarava sem muita emoção, mas Aisha lhe deu um leve
aceno de cabeça.
— A Fidly precisa descansar — Cassandra disse com sua expressão
séria e calculista.
Eu olhei para todos eles. Encarei cada um de meus amigos, meus
pais, Brian e as Guardiãs e, por fim, Nathan.
— Não preciso que me digam o que fazer — falei em alto e bom
som. — Não preciso que me tratem como uma incapaz. Eu sei que o que fiz
foi irresponsável, mas em minha cabeça, era o que precisava ser feito. —
Minha mãe pareceu prestes a me interromper, mas eu logo continuei, não
lhe dando a chance. — Estou cansada de suas meias verdades e cansada de
tratar Nathan como se fosse o inimigo. Ele não é. — Balancei os braços,
mostrando a cena que se desenrolava. — E isso não é um show.
Agarrei o braço de Nathan e o puxei para dentro do quarto da
enfermaria, fechando a porta na cara da minha mãe que estava a um passo
de impedir.
Tranquei a porta e me virei para Nathan, que me olhava com
diversão.
— Isso não é hora de rir da minha cara.
Ele apontou para a fechadura.
— Isso não resolveria muito, caso ela quisesse invadir.
— Ela não vai — disse alto, para que ela e os outros escutassem. —
Porque eu não sou uma maldita criança.
Nathan lutou contra um outro sorriso.
— Pare de me olhar assim.
— Assim como?
— Como se você se importasse.
Ele cruzou os braços, o meio sorriso desaparecendo de vez.
— Eu estou aqui, não estou?
— Está, o que não faz sentido, porque, da última vez que o vi, você
estava dizendo que não suportava ficar perto de mim — retruquei, irritada.
O alívio já não era o único sentimento que sobressaía, enquanto eu encarava
Nathan. Eu estava com raiva e machucada. — Então, o que quer?
— Quero saber o que aconteceu — ele disparou.
Nathan me encarou com tanta intensidade, que senti a necessidade
de me sentar. Talvez fosse a dor em minha cabeça esgotada.
— Eu fui atacada.
— Eu sei essa parte. — Ele fez uma careta, como se aquilo fosse
demais para ele imaginar. — Quero saber o porquê saiu daqui em primeiro
lugar.
Suspirei, cansada de ter que explicar a mesma coisa, vez após vez.
— Eu fui até sua casa. — Lancei um olhar duro. — E não fale
comigo como se fosse meu chefe.
Ele soltou os braços ao lado do corpo e andou pelo quarto,
murmurando um palavrão. Quando se deu por satisfeito — ou seus pés se
cansaram de percorrer círculos — ele se aproximou, os cabelos escuros
bagunçados e os olhos azuis frustrados.
— Por que fez isso? — ele perguntou.
Desviei o olhar. Diana não queria que eu contasse sobre sua
aparição e, para ser sincera, nem eu. Era loucura demais para fazer sentido.
— Eu tive um mau pressentimento sobre você. Sobre sua missão.
Queria saber se estava bem.
Seu rosto ficou sombrio. Seus olhos perderam qualquer brilho.
Fiquei esperando que brigasse comigo, que me dissesse o quão idiota eu
tinha sido, em como eu poderia ter morrido e todas as coisas que todos os
outros fizeram questão de me lembrar. Mas ele não fez isso. Ele não gritou
ou me recriminou. Na verdade, Nathan pareceu se sentir mais culpado do
que qualquer outra coisa.
— Talvez eles estivessem certos, afinal — ele sussurrou.
— Sobre o que?
Ele olhou para longe de mim.
— Sobre eu e você. Eles estão certos em me querer longe.
— O que está acontecendo, Nathan? — perguntei, cansada de todos
esses códigos que eu nunca era capaz de decifrar.
— O que está acontecendo é que me lembro. Me lembro de tudo. —
Seus dedos afundaram sobre as mechas negras do cabelo, puxando os fios
em frustração.
Ele se lembrava. Mas o que isso queria dizer?
Desde o primeiro dia que o vi, pela minha janela em uma
madrugada chuvosa, eu não conseguia tirar os olhos dele. Não conseguia
parar de pensar no garoto de olhos azuis como o Lago. Quando o encontrei
no festival, eu não pude evitar segui-lo, como se ele fosse um ímã
ambulante. E todo esse tempo que passamos juntos, mesmo que não tenha
sido muito, parecia tão familiar... Como se um resquício de alguma
memória perdida.
Era como se eu o conhecesse antes mesmo de nos encontrarmos.
Ergui-me da cama e andei até ele, parando à sua frente, tão perto
que podia sentir sua respiração em meu rosto. Ele piscou e fez menção de se
afastar, mas eu agarrei seu braço e o forcei a ficar. Forcei ele a me encarar.
Exigi que lidasse com qualquer que fosse a merda que eles não estavam me
contando e fosse honesto comigo.
— Eu continuo pensando — eu disse. — Que há algo. Algo que me
ajudaria a entender, por que você é essa saudade que dói tanto, sem nem ter
motivo? Por que quando você me afastou doeu mais do que devia? —
Minha mão em seu braço era um lembrete de que ele era real. Eu estava tão
assustada, com medo de como ele poderia me rejeitar dessa vez, que
precisei me forçar a continuar. — Você se lembra de tudo — repeti suas
palavras. — Eu deveria também?
Seus lindos olhos azuis estavam fixos nos meus olhos negros
quando tirou algo do bolso interno de sua jaqueta.
— Eu me lembro que éramos amigos quando criança — disse, quase
em um sussurro. — Não só conhecidos. Não colegas. Amigos. Inseparáveis.
Lembro de proteger você das crianças da cidade que iam ao Lago. Lembro
de te ajudar a perder o medo da água. Lembro de comer um pedaço de
cheesecake pela primeira vez na vida, que você me deu, porque eu nunca
comia nada do tipo, já que meu pai não sabia fazer nada que não fossem
sanduíches e omeletes. — Meu coração bateu acelerado em meu peito
quando suas palavras não pareceram fazer sentido. — Lembro de você se
esconder comigo no porão, para que eu pudesse ver as coisas da minha mãe.
Você se sentava comigo e parecia pronta para me proteger de qualquer
coisa. E então lembro de quando você foi embora, eu mal dormi por um
mês.
Eu não me lembrava dessas coisas. Mal me lembrava de vê-lo
quando éramos crianças. Mas isso também nunca fez muito sentido porque
éramos vizinhos, então devíamos nos ver com certa frequência,
principalmente sendo duas crianças de quase a mesma idade. Tudo estava
confuso. O que eu sabia não parecia fazer sentido e o que ele me contava
também não.
Ele pegou minha mão e colocou algo nela. Baixei meus olhos e
encontrei uma foto repousando em minha palma. Éramos eu e ele. Mas não
éramos crianças ali. Eu provavelmente tinha 15 anos quando a foto tinha
sido tirada, porque eu estava usando um anel que havia perdido mais ou
menos naquela época. Nathan parecia mais novo, mas ainda completamente
lindo e muito mais alto que eu. Ele estava atrás de mim, abraçando-me
como se eu fosse uma boneca de porcelana. Seu rosto enfiado na curva do
meu pescoço, com um sorriso tímido, mas largo. Mas não mais largo que o
meu. Na verdade, eu gargalhava na foto. A boca aberta e os dentes todos
expostos. Eu parecia tão feliz que, mesmo não me lembrando do
acontecimento, ao olhar a imagem de nós dois daquele jeito, eu era capaz de
me lembrar daquele sentimento que parecia me consumir. Da sensação de
estar ali, em seus braços como se nos conhecêssemos a vida toda e
soubéssemos de tudo um do outro. Confiávamos um no outro. Não era
possível sorrir daquela forma com alguém em quem não se tinha confiança,
ou intimidade.
— Eu não...
— Você não se lembra — ele falou por mim. — Eu sei. Eu também
não me lembrava até uma semana atrás, quando comecei a desconfiar que
havia algo em você que não me parecia estranho. Para ser sincero, pensei
nisso quando a vi atrás da sua janela e tentava adivinhar seu nome em
minha cabeça. — Ele afastou uma mecha do meu cabelo do rosto. —
Alyssa. Eu sabia seu nome antes mesmo de você dizê-lo e confirmar minha
suposição quando a encontrei novamente, naquele estacionamento do
festival.
— Como? — perguntei.
Como eu me esqueceria dele?
— Eu não conseguia tirar você da minha cabeça. Mesmo naquele
primeiro dia, passei a noite tentando me lembrar de você, porque parecia
que havia algo a ser lembrado. — Ele sorriu, dessa vez com tristeza. —
Então você apareceu no festival e me seguiu e eu só queria agradecer ao
Destino por isso, porque assim eu saberia quem você era. E saber seu nome
apenas... Apenas dificultou as coisas. Quando os Desertores nos atacaram,
eu não conseguia deixar você ir, então a levei comigo, esperando que as
coisas passassem a fazer mais sentido. Esperando que talvez você se
lembrasse de algo que eu não conseguia.
Mas eu não me lembrei. Eu me senti tão atraída por ele desde o
primeiro dia, como se houvesse um enigma nele que eu precisava
desvendar, mas não sabia explicar por quê. Ainda não sabia.
— Então você não se lembrou e pensei que eu estava inventando
coisas em minha cabeça. Me convenci de que você não era ninguém além
de uma estranha com um destino fodido. — Ele suspirou. — Mas eu não
conseguia ignorar a sua existência. Então eu vim para cá ajudar você a lutar.
E quanto mais tempo eu passava com você, mais confuso eu ficava.
Confuso com o fato de que conhecer você nem parecia algo novo. Como o
fato de eu saber como você se sentia antes mesmo de me dizer. Como você
sabia sobre a sobremesa que eu gostava. Uma sobremesa, que logo eu
lembraria, que você havia me ensinado a gostar.
Eu soltei seu braço e dei um passo para trás. Afastando-me dele
porque Nathan era um precipício e eu estava prestes a desmoronar. Eu ia
cair por ele, por causa dele. E nada do que ele dizia fazia sentido. Nada.
Porque eu não podia simplesmente ter esquecido que ele existia. Não podia
ter esquecido daquela foto ou de qualquer coisa relacionada a ela. Ou me
esquecido daqueles anos de nossa infância. Eu nem me lembrava de ter
vindo para o Lago quando eu era mais jovem. Até onde eu sabia, desde que
deixamos a nossa casa quando eu tinha sete anos, nem eu nem meus pais
jamais voltamos. Até poucos meses atrás.
Eu não deletaria tanta informação do meu cérebro. Isto seria
loucura.
Mas o que, até agora, não foi uma loucura?
E Nathan tinha uma foto nossa, de um período do qual eu não me
lembrava, em um lugar que eu não deveria estar.
— Está me dizendo que eu tenho amnésia e ninguém nunca me
informou? — incredulidade perpassava minha voz. — Aliás, que tivemos
amnésia juntos?
— Estou dizendo que nos fizeram esquecer um do outro de
propósito.
Uma risada nervosa rasgou minha garganta e tapei minha boca
imediatamente, forçando o pânico de volta para dentro, sob controle e
enclausurado. Eu não perderia a cabeça agora.
— Não.
— Eles pediram para Cassandra fazer isso — Nathan acrescentou.
— Não — não sei se gritei ou implorei.
Não podia ser verdade. De toda a liberdade que me foi tirada, de
todo o futuro incerto que eu enfrentava, minha mente era a única coisa
realmente minha. A única coisa sobre a qual eu tinha controle, que era
minha e de mais ninguém. Nossas lembranças eram partes de quem éramos
assim como um braço ou uma perna. Elas nos construíam. Nos
modificavam e nos faziam evoluir.
Eles não me tirariam isso. Eu não queria acreditar que meus pais
fariam isso comigo.
Nathan se aproximou e eu me apoiei na cama. De repente, meu
corpo pareceu falhar, assim como minha mente, que tinha se tornado um nó
bagunçado e confuso.
— Cassandra trancou nossas memórias um do outro, em algum
espaço escondido em nossa mente. Como se fossem objetos guardados em
uma caixa no porão — ele disse, rondando-me como se tivesse medo que eu
caísse. — Por isso, demorou para que eu me lembrasse. Quando me contou
o que Lirya havia dito a você, comecei a pensar que ela soubesse de algo,
então fui atrás dela para saber. Acontece que ela nos viu, na época em que
tiramos essa foto. — Ele apontou para a imagem ainda em minhas mãos. —
Foi por isso que ela te provocou, porque achou que estava mentindo quando
disse que não se lembrava de mim, antes de chegar aqui. Ela sabia sobre
nosso passado mais do que nós dois.
Aisha havia dito algo sobre a capacidade de Cassandra de usar os
poderes para modificar a mente, como se pudesse criar um feitiço que
bloqueasse as memórias.
— E você se lembra de tudo?
Nathan assentiu.
— E por que você se lembra e eu não? — sussurrei, temendo a
resposta.
— Não sei. — Ele pegou meus braços, ancorando-me como se
temesse que eu caísse. — Sente-se.
— Não me diga o que fazer.
— Você está cansada — ele respondeu com uma bufada. — Sente-se
antes que caia no chão.
Sentei-me na cama, apenas porque sabia que minhas pernas
estavam, de fato, falhando. Olhei para ele irritada.
— A quanto tempo sabe?
Eu soube a resposta, no segundo em que Nathan preferiu desviar os
olhos do que responder. Já havia um tempo. E ele não havia me contado.
Provavelmente, assim como meus pais, não pensava em me contar a
verdade.
— Desde quando foi embora e praticamente me disse para esquecer
que você existia? — explodi, a traição se irradiando como uma dor em meu
peito.
— Sim — assumiu. — Eu questionei meu pai uns dois dias antes,
depois que me ofereceu aquele cheesecake. Ele me disse para ficar longe de
você porque eu não podia me desconcentrar do meu trabalho. — Ele nem
pareceu perceber seu dedo percorrer uma marca rosada em meu pescoço,
provavelmente onde a mulher havia fechado as mãos para me sufocar.
Aisha a tornou bem mais clara do que deveria estar, mas ainda era um
pouco visível. — Então fui até Lirya e ela me contou que alguns anos atrás
passamos algumas semanas juntos, enquanto seus pais estavam na cidade.
Agora eu me lembro daquele encontro. Depois de todos os anos que
passamos separados, você apareceu no Lago de surpresa e nós voltamos a
nos ver, a sermos amigos, como se nada tivesse mudado. Como se nenhum
tempo tivesse passado.
Ele abaixou a mão.
— Então nós nos conhecíamos.
Ele assentiu.
— Nós fomos amigos — concluí.
— Você é minha melhor amiga — ele disse. Não “era”, “é”. —
Mesmo que tenhamos passado a maior parte de nossas vidas separados,
quando você voltou, três anos atrás, você ainda era a amiga de quem eu me
lembrava.
— Por que eles fizeram isso? — perguntei.
Nathan se sentou ao meu lado.
— Porque somos uma variável.
Fiz uma careta para sua resposta vaga.
— Seja mais específico que isso, Nathan.
De canto de olho pude ver o meio sorriso triste que ele abriu.
— Depois que você foi embora, eu passei duas semanas fugindo de
casa para procurar você. Eu tinha quase dez anos e já era um pentelho que
não seguia as regras porque não podia aceitar que nunca a veria novamente.
Então eu saía e buscava por você. Todas as noites por catorze dias, até meu
pai descobrir e passar a me trancar no quarto até o sol voltar a nascer.
Eu o olhei, tão surpresa que não sabia o que dizer. Ele me procurou.
Procurou por mim por catorze dias, porque éramos tão importantes um para
o outro, que ele não podia aceitar que eu havia ido embora e não voltaria.
Éramos, de alguma forma, tão importantes um para o outro e, mesmo assim,
eu não me lembrava.
Eu tinha alguém. Tinha um amigo. Tinha um melhor amigo que
lutaria por mim, que me queria por perto. Mas, porque tomaram todas as
decisões por nós, eu tinha passado a maior parte da minha vida sozinha, e
nem me lembrava da época em que ser sozinha não era um fato
irremediável.
Uma lágrima solitária escapou e molhou meu rosto.
— Somos uma variável — ele continuou — porque somos eu e
você. Olhe o que fez, Aly. Mesmo sem se lembrar de tudo, você se colocou
em risco por mim. Por que? Por causa de um pressentimento?
— Não fale comigo como se eu fosse idiota — retruquei.
Ele bufou.
— Você é provavelmente a pessoa mais inteligente que conheço.
Mas é irracional para caralho quando suas emoções estão em jogo. Você age
sem pensar. É impulsiva ao extremo. — Ele me encarou, mas eu apenas
enrolei meus dedos no suéter que estava usando. — Você entende que
poderia ter morrido? O que acha que aconteceria depois? Como acha que eu
sobreviveria sabendo que matei você?
Dessa vez, fui eu que bufei.
— Você não é responsável pelo que faço, Nathan. Eu fiz o que
precisava fazer. O que achei necessário. E faria novamente, porque por mais
que não queira ser meu amigo, eu ainda sou sua — eu disse. — Eu faria
novamente porque é quem sou. Teria feito por Serena ou Roman também.
E eu teria. Apesar de Nathan mexer comigo de uma forma que os
outros não faziam — e agora parecia fazer um pouco mais de sentido — ele
não era o único com quem me preocupava. E não era o único por quem eu
me sacrificaria.
— Isso não me deixa mais aliviado — ele resmungou.
— Sinto informar, Nathan, mas esse não é meu objetivo de vida.
— Isso explica muito.
Nós caímos em um silêncio profundo e cheio de significado,
enquanto forçava minha mente a se lembrar. Vasculhei todos os seus cantos
escuros e arestas afiadas, mas não encontrei nada. Procurei por Nathan em
cada pedaço sombrio dela. A raiva encheu meu peito tão forte, que eu
gostaria de poder quebrar algo. Gostaria de poder tirar algo dos meus pais e
Cassandra, como tiraram de mim e Nathan. Era um pensamento do qual eu
não me orgulhava, mas tão pouco era capaz de ofuscar.
Observei a foto em minhas mãos. Absorvi cada detalhe dela,
pensando que assim minha memória fosse ativada.
Mas nada aconteceu.
— No que você está pensando?
— Eu estou com tanta raiva que nem consigo pensar com clareza.
Talvez isso seja bom, porque tenho certeza que não seria algo bonito —
murmurei depois de um tempo que pareceu longo demais.
— Tudo bem estar com raiva.
— Como faço para me lembrar? — questionei.
Ele deu de ombros.
— Não tenho ideia. Eu apenas me lembrei.
Bufei.
— Ótimo. Você é muito útil. — Eu suspirei. — Por que não me
contou?
Ele mordeu o lábio.
— Meu pai e seus pais me pediram para não contar. — Deu de
ombros. — Parte de mim acredita que, talvez, eles estivessem certos.
Franzi o cenho.
— Não queria se lembrar de mim?
— Queria, mas seria mais fácil se você só fosse a Fidly.
Eu entendia. Seu trabalho seria mais simples se não tornasse as
coisas pessoais. Mesmo assim, doía ouvi-lo dizer isso.
— Ainda assim, não é justo que você tenha mentido para mim.
Ele fez uma careta.
— Tecnicamente, eu não menti. Você nunca perguntou, então só não
comentei sobre nossas memórias terem sido bloqueadas por uma Guardiã
poderosa, a mando dos nossos pais. Se parar para pensar, não é um assunto
que surge a toda hora.
Eu bati meu ombro no seu, perdida entre irritação e divertimento
com sua expressão.
— Então, vai me contar o que aconteceu quando nos
reencontramos? — Mostrei a foto em minhas mãos.
Nathan desviou o olhar rapidamente.
— Éramos amigos e nos encontramos depois de anos separados —
contou Nathan. — Na verdade, quando nos vimos, nem parecia que havia
passado tanto tempo. Você me viu primeiro, perto do tablado com Zeus.
Gritou meu nome tão alto que achei que as pessoas aqui do Outro Lado
poderiam escutar. Então, você me abraçou tão forte que eu pude sentir seu
coração batendo. Seus pais haviam te deixado em casa para resolver alguma
coisa e meu pai nunca estava por perto, então eles não me impediram
quando contei a você tudo o que tinha acontecido nos últimos seis anos. E
então, eu reparei na marca em sua mão que, quando éramos apenas
crianças, nunca tinha parecido nada demais. Mas naquela época, eu havia
sido ensinado sobre aquela marca. A marca da Fidly. Não te contei de
imediato porque queria ter certeza. E estava com medo. Estava morrendo de
medo do que aquilo significava, se sua vida seria tomada como a da minha
mãe foi. — Seus olhos fitaram o chão, como se um filme do que aconteceu
se passasse ali, sob seus pés. — Então eu aproveitei os dias que tinha com
você e fui procurar informações sobre a marca. Você mal acreditava no que
eu havia contado sobre mim, então era difícil pensar em como você reagiria
à ideia de ser a Fidly.
— Mas você me contou? — perguntei. Porque se ele havia me
contado, então Nathan era ainda mais leal do que eu imaginava. Enquanto
todos à minha volta mentiam para mim, ele escolheu me dar a verdade sem
pestanejar, mesmo que tivesse falhado com isso agora.
Mas, então, haviam tirado a verdade de nós dois.
— Falei com Brian sobre você e ele me disse que eu deveria ir para
o Outro Lado e não sair de lá até que você tivesse ido embora. — Ele
relembrou. — Foi quando percebi que havia algo errado e tive a certeza de
que você era a Fidly. Meu pai não estava na cidade, então foi fácil mentir
para ele. Foi quando nós começamos a nos esconder de seus pais. Eu fingi
que havia voltado para o Outro Lado e você fingia que não me via,
enquanto na verdade, estávamos nos encontrando escondidos. Então em
uma noite que estávamos sozinhos no Lago, eu te contei.
— E como eu reagi?
Ele sorriu.
— Você disse: “agora posso lutar ao seu lado”. — Eu e ele rimos. —
Aí depois me encheu de perguntas a noite toda. Foi irritante pra cacete.
Meu sorriso se igualou ao dele.
— Parece algo que eu faria.
Ele bateu seu ombro contra o meu e apontou para nossos sorrisos na
foto.
— Então você decidiu que íamos fazer uma fogueira e comer
marshmallows.
Eu arqueei uma sobrancelha.
— Parece que era mais fácil te convencer a comer doces naquela
época.
Ele deu de ombros, sorrindo.
— Eu nunca soube como dizer não a você. — Seus olhos caíram
para as próprias mãos, sobre o colo. — Você tinha ganhado uma câmera
nova, então nós a testamos quando ficamos empanturrados demais de doce.
A imagem de nós dois sobre a grama, em frente a uma fogueira,
enquanto assávamos marshmallows e conversávamos, apareceu viva em
minha mente. Na foto, ele me envolvia, o corpo atrás de mim e os braços à
minha volta. Uma das mãos provavelmente segurava a câmera e, ali, com
Nathan ao meu redor, eu parecia pequena e segura.
Parecia algo bom para se lembrar.
— Você devia descansar — ele disse, quebrando o silêncio.
Revirei os olhos.
— Eu não sei se consigo ignorar tudo o que descobri hoje por tempo
suficiente para dormir — falei, apesar dos olhos pesados. — E não posso
encarar meus pais porque vou dizer coisas terríveis que eu, talvez, me
arrependa. — Fiz uma careta só de pensar neles. — Mas só talvez. Acho
que eu deveria estar acostumada com as mentiras.
— Talvez seja mais difícil se acostumar às verdades.
— Touché.
— Para ser sincero, você sempre foi meio esquecida. Uma vez
simplesmente esqueceu que estávamos brincando de esconde-esconde e me
deixou esperando dentro de um baú por duas horas, enquanto fazia um
lanchinho da tarde.
Eu o olhei, chocada e gargalhando.
— Eu não acredito que fiz isso!
Nathan riu junto, o som mais lindo que eu já havia escutado.
— Fez. Eu fiquei preocupado e saí do esconderijo apenas para te
encontrar comendo um super hambúrguer — contou. — E eu estava com
fome!
Eu gargalhei mais ainda, mas a risada logo morreu. Queria poder me
lembrar daquilo. Queria poder passar horas e horas ouvindo-o contar sobre
nosso tempo juntos. Mas eu estava tão cansada e ferida pela mentira que me
fizeram engolir por todos esses anos. Eu me sentia violada. Como se aquela
vida, aquela mente, não me pertencesse. Havia sido arrancada de mim, do
meu controle.
Eu inspirei, sentindo minha cabeça latejar e me recostei contra a
parede em que a cama era prensada contra.
Nathan balançou a cabeça. Ele se levantou da cama e se virou para
me encarar.
— O processo de cura parece fácil, mas é exaustivo. — Tentei não
pensar em como ele sabia disso. — Deite-se e relaxe. Durma um pouco.
— Fácil falar para quem tem todas as memórias — resmunguei.
Ele riu, dando de ombros.
— Eu sou mesmo incrível.
Semicerrei os olhos.
— Não foi isso que eu disse.
—Não? — Suas sobrancelhas franziram em uma careta exagerada.
— Eu jurava que era isso que eu tinha ouvido.
Bufei.
— Eu poderia gostar de você quando tinha minhas memórias, mas
agora não entendo o porquê.
Ele puxou minhas pernas para cima da cama, como se eu fosse uma
criança que precisava ser colocada para dormir.
— Você fugiu para tentar me encontrar porque estava com medo que
eu me ferisse, Alyssa — ele apontou o óbvio. — Você gosta de mim.
Estalei a língua.
— É algo que vai e vem.
Ele puxou um cobertor para cobrir meu corpo.
— Não faça isso novamente, ouviu? — Ele já não sorria mais. —
Nunca mais se coloque em perigo por mim.
— Eu não sou uma donzela indefesa — repeti as palavras que, um
tempo atrás, ele havia me dito. — Não me trate como uma.
Nathan mordeu o lábio para não sorrir. Ele me encarou por um
tempo, antes de puxar uma cadeira para o canto da minha cama, perto dos
meus pés. Ele se sentou, tirou os coturnos e se ajeitou em uma posição
confortável, com os pés sobre a cama.
— Você vai ficar? — perguntei.
— Se eu sair agora, sua mãe vai entrar — ele murmurou, os olhos já
fechados, a cabeça jogada para trás. De fato, era possível ouvir alguém do
outro lado da porta bufar. — Estou te fazendo um favor.
Justo.
— Então me conte mais — pedi. — Conte sobre as coisas que eu
deveria me lembrar.
Ele hesitou, mas então assentiu.
Nathan passou a próxima hora me contando sobre a época em que
éramos crianças. Contou sobre como o chutei por ter rido do meu cabelo,
depois que eu mesma usei uma tesoura de cozinha para cortar uma franja.
Ele também disse que eu era uma pirralha e eu retruquei que apenas um
pirralho poderia reconhecer outro pirralho. Nate falou sobre como me
ajudou a perder o medo do Lago e isso me pareceu levemente familiar. Eu
sempre tive medo, não exatamente da água, mas dos animais que o Lago
poderia hospedar, e sabia que alguém havia me ajudado a superar aquilo, só
nunca assimilei que havia sido Nathan. Ele disse que tínhamos ficado três
horas dentro da água, sem nos mexer muito, apenas para que eu me
acostumasse com aquilo, com a calmaria da água, e finalmente perdesse o
medo dos animais que moravam nela. Eu já sabia nadar, claro, mas nunca
ficava muito tempo no Lago por medo. Eu tinha sete anos quando Nathan
fez isso, pouco antes de eu ir embora.
Também descobri que sou o motivo pelo qual ele lê. Aparentemente,
eu enchi seu saco, listando todas as maravilhas da leitura até que
estivéssemos lendo juntos e comentando sobre as histórias. Ele contou
também que, um dia, algumas crianças humanas mais velhas adentraram o
território de nossas casas, depois de sair de uma trilha. Elas nos
encontraram lendo sobre o tablado e um dos meninos começou a fazer
piada com Nathan por ser um menino que lia. Como resposta, eu soquei a
cara dele e gritei que soltaria nosso cachorro sobre eles, se não saíssem
dali.
O cachorro em questão era Zeus. Com sete meses de vida. Pequeno
e estabanado.
Meu amigo esquecido me contou vários pequenos detalhes que
aqueceram meu coração, mas quando perguntei sobre a primeira vez que
nos reencontramos quando eu tinha quinze anos, Nathan desconversou. Ele
disse estar cansado e que eu também deveria estar e pediu para que eu
dormisse.
Resmunguei algo sobre não conseguir dormir, mas Nathan já estava
respirando profundamente, imerso no sono. Então eu fechei meus olhos e
me obriguei a tentar dormir.
Acho que horas se passaram, enquanto me esforçava para isso,
escutando a respiração leve de Nathan para tentar igualar a minha. Em
algum momento, a tranca da porta fez um tic e apertei meus olhos,
esperando que minha mãe me encontrasse dormindo e fosse embora.
Mas foi a voz sussurrada de Aisha que ouvi:
— Vou apenas checar como ela está e então podemos deixá-los.
— Talvez devêssemos pedir que Nathan nos acompanhe — foi
Cassandra quem respondeu.
Eu trinquei os dentes, não queria que ele fosse a lugar algum. Era
reconfortante tê-lo no quarto. Mas não falei nada.
— Deixe-os, irmã — Aisha disse para meu alívio, mais firmemente
do que pensei que ela era capaz. — Não há mais razão para esconder a
verdade.
Suas mãos tocaram a pele da minha testa e bochecha. Uma leve
quentura passou de sua mão para meu rosto e me senti relaxar
instantaneamente, pronta para dormir.
Ouvi seus passos contornar a cama, indo para perto de Nathan.
— O que é para ser, não pode ser combatido — ela sussurrou. —
Você já deveria saber disso, irmã. Aqueles destinados a se encontrar,
sempre se encontrarão.
Cassandra bufou. Ouvi passos caminhar em direção a porta, até que
essa se fechou, deixando o quarto quieto novamente, com apenas eu e
Nathan nele.
Então, eu finalmente dormi.
Eu acordei com um rompante, encontrando Nathan a meio caminho
da porta.
— Onde vai? — perguntei, a voz rouca de sono. Não sabia que
horas eram, mas o que quer que Aisha tenha feito, foi melhor do que um
remédio tarja preta para dormir.
De costas para mim, pude ver a tensão nos ombros de Nathan. Ele
enfiou as mãos nos bolsos, antes de se virar para mim.
— Tenho coisas para fazer.
Ansiedade me sufocou. Será que agora ele já não corria mais
perigo? Será que seu destino já havia mudado? Eu não sabia como as coisas
funcionavam, quais regras seguiam. Esperava que Diana se intrometesse,
pedisse para me fazê-lo ficar, mas ela não apareceu. O silêncio era a minha
resposta e parte de mim ficou decepcionada, querendo qualquer desculpa
para fazê-lo ficar mais.
Eu tinha medo que se ele me deixasse, a verdade também o faria.
— Quando volta?
Mesmo cansado, ele ainda era o homem mais lindo que eu já tinha
visto. Só agora percebi que ele devia ter passado a noite em claro, já que
conseguiu chegar aqui tão rápido depois do ataque. Queria que ele ficasse e
me contasse mais sobre as coisas das quais não me lembrava, mas seu olhar
distante me impediu.
— Nada mudou, Alyssa.
Respirei fundo.
— O que?
— Você se machucou por minha causa e faria isso de novo — ele
usou minhas palavras contra mim. — Nossos pais estavam certos quanto a
isso. Não posso ser seu amigo e seu Protetor.
Eu me sentei, muito próxima de xingá-lo.
— Serena é minha amiga e minha Protetora.
Ele assentiu.
— E ela sabia que você estava fora do Outro Lado e não fez nada.
— Porque eu pedi! — rebati.
Mais uma vez ele apenas assentiu.
— Exato, Alyssa. Ela respeitou seu pedido porque é sua amiga.
Qualquer outro Protetor teria ido buscá-la ou mandado alguém para fazer
isso.
O palavrão estava na ponta da minha língua agora.
— Roman é meu amigo e meu Protetor. — Optei por deixar o
palavrão para depois. Em breve, eu provavelmente sentiria ainda mais
vontade de usá-lo.
Nathan revirou os olhos como uma criança mimada.
— Roman é um idiota, mas ele colocaria sua vida na frente de
qualquer lealdade estúpida. — Seus olhos perfuraram os meus. — O
problema é que ele está apaixonado por você, o que o faz ainda mais idiota.
Dessa vez o palavrão saiu da minha boca, antes que eu tentasse
impedir.
Apaixonar-se por mim era um ato idiota?
Eu me levantei da cama com tanta raiva que praticamente esmurrei
o cobertor para fora.
— Talvez ele esteja mesmo apaixonado por mim, já que ele me
beijou — atirei em sua cara as palavras como se fossem uma bomba, mas
ele nem demonstrou reação. A atitude infantil não me envergonhou tanto
quanto deveria, no entanto. Sua reação apenas me enfureceu ainda mais.
Por que ele não se importava quando eu me importava tanto? O quão idiota
eu era? — Pelo menos ele não acha que gostar de mim é algo idiota.
Ele estalou a língua. Nós estávamos tão próximos que esperei que
ele se afastasse, mas Nathan se manteve parado como uma estátua. Alto e
largo e ridiculamente lindo. E eu odiava que sua beleza me chamasse
atenção, mesmo quando eu queria arrancar seus belos olhos. Talvez eu
arrancá-los resolvesse um pouco o problema.
— Você é a Fidly. Ele é o Protetor — Nathan expôs, como se fosse
óbvio. — Não seja estúpida, Alyssa. A história já nos mostrou como um
relacionamento assim, pode ser desastroso.
Então era disso que se tratava?
Esperei sentir raiva por suas palavras. Esperei sentir como se ele
estivesse pisando no coração que não pertencia à Fidly, mas à Alyssa. Mas
eu entendi. Entendi aquilo que ele não era capaz de dizer: que sua mãe
morreu porque seu pai fez as escolhas erradas. Porque Brian agiu como um
marido e não um Protetor, no dia fatídico que tirou a vida de Diana.
Ele não disse, mas eu sabia que ele não conseguia parar de pensar
que eu e ele poderíamos repetir a história.
Porque, enquanto encarava os olhos falsamente frios de Nathan,
enxerguei o garoto que perdeu a mãe e passou sua vida inteira sozinho. Pelo
menos quando eu não estava nela, acho. Ele parecia ser bom em fingir.
Fingir que nada o atingia, que o mundo não era nada mais do que escravo
de seus desejos. Ele usava essa camada imperturbada para que as pessoas
não vissem o quanto ele estava machucado, o quanto estava sozinho. Porque
uma vida solitária é doída demais. Eu sabia disso.
Nathan poderia ser bom em fingir, mas naquele momento eu vi tudo.
Vi a verdade que ele tanto temia expor. Vi o garotinho que fugiu de casa
para me encontrar. O garoto que me abraçou e me fez rir como se o mundo
fosse perfeito. O homem, Protetor, que me salvou e me ajudou a ser uma
ameaça para meus inimigos e não mais a presa.
Ele estava aqui agora. Havia corrido para me encontrar e se
certificar de que eu estava viva. Diana parecia saber disso, que ele não
mediria esforços para ter certeza de que eu estava bem. Meus pais sabiam
que aquele sentimento que nos unia, nunca se perderia, a ponto que optaram
por tomar nossas memórias.
Ele estava aqui.
Ele se importava.
Por isso, eu escutei o que meu coração tem tentado me dizer por
todo esse tempo. Eu finalmente escutei o apelo que eu tentava ignorar
desde que o conheci. Ou desde que o encontrei novamente. Porque, Deus do
céu, era a coisa mais estúpida, mas meu coração gritava por ele.
Era como se ele fosse o final de uma canção que não deixava minha
mente, mesmo que eu não recordasse a letra por completo. Minha alma
cantarolava com aquela melodia. Meu coração disparava com a letra
cantada. Meu corpo todo tentava responder a ela.
Então, eu fiquei nas pontas dos pés e puxei seu rosto para mim. Me
movi tão rápido que me peguei de surpresa. Se eu me permitisse pensar
demais, acabaria desistindo.
Nossos lábios se tocaram e eu inspirei, nervosa. Nathan não se
afastou. Tomou apenas um segundo para absorver o que acontecia antes de
seus braços envolverem minha cintura e ele me puxar para mais perto.
Nossos peitos se fundiram um no outro e ele chupou meu lábio.
— Porra — ele soltou sobre sua respiração.
Eu puxei seus cabelos, fazendo com que ele calasse a boca e
continuasse a usando na minha. E ele fez isso perfeitamente. Enquanto o
beijo de Roman foi como um toque suave, o de Nathan parecia queimar.
Sua língua invadiu a minha e a tomou como queria. Era profundo e tão
desesperado que logo eu estava sendo prensada contra a parede.
Era como entrar em casa depois de um longo tempo fora.
E, mesmo que Roman fosse uma pessoa incrível e por mais terrível
que pudesse ser pensar isso, era este o beijo que eu queria que tivesse sido o
meu primeiro.
Nathan me beijava com paixão. Como se eu fosse água em meio ao
deserto, ou ar, enquanto ele se afogava. E eu respondia na mesma
intensidade. Eu o respirei. Quando sua língua tocou a minha, dessa vez com
adoração e timidez, juro que minhas pernas falharam e só suas mãos em
minha cintura foram capazes de me manter em pé.
Eu podia sentir minha alma saudando a dele. Como velhas amigas
que se reencontravam. Meu coração batia tão forte que apenas o coração
dele, batendo no mesmo desespero, acalmava meu orgulho.
Mas então eu toquei seu rosto, traçando a curva de seu maxilar com
a ponta do dedo, e ele tirou a boca da minha. O azul de seus olhos pareceu
preencher todo o espaço, as pupilas dilatadas. Eu não via mais nada. Suas
mãos em minha cintura me apertaram levemente, antes de me soltar de vez.
Eu podia vê-lo erguer suas barreiras, criar as muralhas em volta do
próprio coração. Pude vê-lo se afastar daquilo como um cordeiro assustado
se afastava de um caçador.
— Eu não posso, Alyssa.
Respirei fundo, tentando diminuir a dor que suas palavras
provocavam.
Talvez eu devesse ter criado minhas próprias muralhas.
— Nós não somos eles, Nathan.
— Ainda não — ele sussurrou, encarando-me como se tentasse me
marcar em sua mente. — E não vou permitir que sejamos.
Ele se afastou de mim e eu tentei manter a calma, porque ele parecia
estar se despedindo e aquilo não era algo que eu estava pronta para aceitar.
— Nathan, você não precisa ir embora.
Ele soltou uma risada amarga.
— Eu claramente preciso.
— Por que gostar de mim é estúpido? — não ousei usar a palavra
amor, mesmo que talvez eu a sentisse no fundo do meu estômago agora.
Nathan me olhou.
— Porque é tão estúpido que não consigo respirar — confessou, em
um sussurro. — Desde que me lembrei de você, isso só piorou. Você não sai
da minha maldita cabeça. Eu não tenho paz, Alyssa. Você é como uma
droga em que eu estou viciado. E eu não consigo respirar. — Seus olhos me
diziam tudo e nada ao mesmo tempo. Ele era uma alma atordoada e,
também, vazia. Estava se afastando tão rápido que parecia areia escorrendo
pelos meus dedos. — Passo todo maldito momento do meu dia miserável
tentando não pensar em você, tentando não sentir sua falta, e eu falho toda
vez. Sempre foi assim, como se você fosse uma extensão de mim, mesmo
quando ainda éramos crianças. Você sempre foi meu porto seguro, o lugar
que me fazia sentir em casa. Minha melhor amiga, a pessoa com quem eu
podia contar e confessar todos os meus segredos mais obscuros, minhas
dores mais profundas. Você é como o ar, Alyssa, muito antes de eu começar
a afogar. E eu não vou deixar que um erro meu a mate. Se meu pai me
ensinou algo, é que amar é um erro para tolos. E eu não vou te condenar a
isso.
Amar é um erro para tolos.
Meu peito subiu e desceu, enquanto eu lutava contra as lágrimas.
Porque ele estava indo e eu nem me lembrava dele ainda. De nós. Ele
estava indo e eu tinha quase certeza de que estava apaixonada.
Nathan estava me deixando, nos condenando à solidão que nenhum
de nós suportava mais. Eu era sua amiga, sua melhor amiga, e ele também
era o meu. Mesmo que eu não me lembrasse, eu sentia. Era por isso que
tinha sido tão fácil confiar nele. Por isso eu nunca conseguia aceitar o que
diziam sobre ele: porque eu o conhecia, melhor que ninguém. Só não me
lembrava.
E me doía ver tanta dor naquele lago azul que eram seus olhos. Eu a
sentia como se fosse minha. A mágoa. A culpa. O ódio. E o amor.
— Não faz isso — implorei, todo meu orgulho se contorcendo sob
seus pés.
— Você vai ficar bem, Alyssa. Vou me certificar disso. — Ele
acariciou minha bochecha pelo que parecia ser a última vez. E então, ele
beijou minha boca novamente. Apenas um toque de seus lábios nos meus,
como uma leve carícia, mas que me deixou completamente desconcertada.
Era seu adeus. Era sua forma de ter aquilo, uma última vez. — Só não faça
nada idiota, Aly.
Ele se afastou tão rápido que precisei usar a parede para não cair ali
mesmo. Ele já estava saindo pela porta quando eu disparei, trêmula:
— Você é um covarde.
Nathan não se virou para mim.
— Sim, eu sou.
Então ele me deixou sozinha. De novo.
Meus pais deixaram minha cabana logo após o almoço. Minha mãe,
pelo que parecia, tinha uma reunião com Ravenna. Sobre o que? Eu não
tinha ideia e também não sabia se queria saber.
Aproveitei para limpar meu quarto, enquanto esperava Jasper chegar
para meu treino com ele, já que todos os meus amigos estavam ocupados
com alguma tarefa durante a tarde. Eu estava guardando algumas roupas
limpas nas gavetas do meu armário quando Zeus latiu. Eu me virei e
caminhei até o parapeito que contornava meu quarto, que ficava no andar
superior. Alívio e saudade apertaram minha garganta como se eu não o
visse há dias.
Nathan estava parado em frente à porta, agachado sobre o joelho e
fazendo carinho em Zeus, que balançava o rabo euforicamente, lambendo o
rosto do dono.
— Sinto que você está a um passo de roubar o meu cachorro — ele
disse para mim, enquanto sorria para o animal.
Eu desci as escadas, ajeitando minha trança como uma idiota.
— Não é minha culpa que ele me ama.
Nathan ficou de pé, observando enquanto eu me aproximava.
— Realmente — disse baixinho, os olhos presos em mim.
Não tive que pensar muito na situação constrangedora que poderia
recair sobre nós. Nem deu tempo de pensar se eu deveria cumprimentá-lo
com um beijo ou um abraço. Assim que me aproximei o suficiente, ele deu
um passo à frente, fechando a distância entre nós, e passou o braço pela
minha cintura. Nathan me puxou para si e, com um sorriso nos lábios, colou
a boca na minha.
Apesar da intensidade do beijo, não durou muito. Logo ele se
afastou, passando os dedos pelo cabelo e inspirando, como se por um
segundo tivesse esquecido sua missão ali.
— O que foi?
Suas mãos ainda estavam em minha cintura quando disse:
— Jasper vai chutar minha bunda se souber que fiquei enrolando ao
invés de treinar você — murmurou, coçando o pescoço. Ao fazer isso, pude
ver seu bíceps flexionar e... meu santo Deus. Ele não estava usando o
casaco de couro, apenas uma camiseta preta e as calças do uniforme, além
do coturno usual. — Ele está ocupado então me mandou no lugar dele —
explicou, por fim.
Mordi o lábio.
— Então sem beijos.
Ele encarou minha boca por longos segundos.
— Sem beijos — disse, quase a contragosto.
Eu bufei uma risada.
— Certo, certo. E onde vamos treinar?
— No meu lugar favorito nesse manicômio que chamamos de Outro
Lado.
Dessa vez eu ri.
Eu sabia sobre qual lugar ele estava falando.
As risadas dos mais novos Protetores oficiais eram tão altas que eu
podia escutá-las por todo o caminho até a montanha. Eu imaginava que
Nathan pudesse estar lá. As ruelas estavam vazias, já que os poucos
Protetores que ainda estavam do Outro Lado se reuniram na praça para a
iniciação.
Mãos agarraram meu braço e me puxaram para um canto escuro.
Engoli o grito quando vi quem era.
Nathan estava me encarando, seu rosto iluminado apenas pelos raios
que ainda cobriam o céu e as luzes fracas da rua de paralelepípedos. Suas
mãos soltaram meus braços e ele me encarou.
— Eu estava procurando por você — eu disse.
— Imaginei.
Estava claro que ele ainda estava magoado e eu entendia. Eu havia
mentido e ignorado como a minha morte afetaria ele. Se eu fosse sincera e a
situação fosse inversa, eu estaria gritando com ele agora mesmo.
— Me desculpe por não ter contado antes. Eu não queria lidar com a
verdade.
Nathan balançou a cabeça.
— Eu estou... Estou com tanta raiva que mal consigo pensar —
disse, e eu me encolhi.
Será que era assim que acabariam as coisas entre nós? Eu dizia “eu
te amo” e ele fugia para as montanhas? Literalmente.
— Eu sinto muito.
Quando seus olhos se ergueram para encontrar os meus, Nathan
tentou suavizar sua expressão.
— Eu odeio que você tenha mentido para mim, mas o pior é essa
situação. O fato de que o Destino esteja nos passando para trás mais uma
vez. — Ele inspirou. — Mas eu não devia ter saído daquele jeito da sua
cabana. Eu fui um idiota. Não quero que pense que irei fugir sempre que as
coisas ficarem ruins. — Ele segurou minha mão e subiu a outra para tocar
meu rosto. — Eu não me importo com a profecia. Não me importo com o
que o Destino quer. Você não vai morrer.
Eu suspirei.
— Eu não vou fugir disso, Nathan.
Ele assentiu, desgostoso.
— Então temos que encontrar uma saída. Ainda temos tempo. —
Seus dedos traçaram a linha do meu maxilar. Nathan deu um passo à frente,
os olhos me queimando com a intensidade contida neles. Ele afundou a
outra mão em meu pescoço, agarrando a base dos meus cabelos. — Prometa
que irá esperar até que tenhamos uma saída. Só estou pedindo isso, Aly. Só
isso. Faça por mim. Melhor ainda: faça por você. Faça porque você merece
uma chance de viver.
Respirei fundo e assenti levemente.
— Prometo esperar, enquanto houver a possibilidade de
encontrarmos uma saída. Mas se não encontrarmos nada...
— Nós iremos encontrar algo.
Mordi o lábio e seus olhos flagraram o movimento.
— Tudo bem.
Eu queria que houvesse uma maneira de sobreviver tanto quanto ele.
Só não tinha muitas esperanças. Não me permitia ter esperança. Eu havia
pensado uma vez que tudo o que eu precisava fazer era sobreviver até meus
dezoito anos e tinha quebrado a cara. Não estava muito a fim de passar por
isso novamente.
Mas Nathan me fez esquecer tudo isso quando grudou os lábios nos
meus. O beijo foi carinhoso, mas profundo e eu o senti em cada nervo do
meu corpo. Suas mãos estavam firmes em meu rosto, os dedos submersos
em meu cabelo. Eu passei minhas mãos pelas suas costas, até as omoplatas
e o puxei para mais perto.
— Eu sei que não respondi quando me disse o que sentia — ele
sussurrou contra a minha boca. Abri meus olhos e aquela imensidão azul
quase me derrubou. —, mas eu...
— Não precisa dizer só porque eu disse.
Ele negou.
— Tem hora que me pergunto se você está tão alheia à verdade
assim, porque não é possível que eu seja tão bom em esconder meus
sentimentos — ele murmurou e beijou minha boca mais uma vez, por
apenas um segundo antes de voltar a me encarar. — Eu amo você. Amo
você há um bom tempo. E estou disposto a ir até o inferno e voltar por
você.
Eu apostava que ele podia ouvir meu coração bater mesmo se
estivesse a metros de distância.
Apesar de parte de mim estar em êxtase com suas palavras, a outra
estava entrando em pânico. E se não houvesse saída para mim? E se eu o
estivesse condenando a uma vida vazia como a de Brian?
Havia apenas uma coisa que eu sabia com total certeza. Era
inegável. Imutável. Nem o tempo, nem as memórias poderiam impedir o
que eu sentia. E eu amava ele. Amava cada pedacinho dele. Amava a forma
como me olhava, como me tocava, como falava comigo — quando não
parecia haver nada mais importante do que o que eu tinha a dizer.
Amar ele tinha sido tão fácil e ao mesmo tempo eu sabia que
poderia se tornar a coisa mais difícil que já fiz.
— Eu amo você — sussurrei de volta.
Seu sorriso, como sempre, era a coisa mais linda que eu já tinha
visto, mesmo que ainda houvesse traços assombrados em seus olhos.
Nathan me deu mais um beijo rápido antes de se afastar, de repente
parecendo tímido, relutante. Ele coçou a cabeça, encarando o chão como se
não soubesse o que fazer em seguida.
— O que foi?
— Eu... — ele coçou a garganta e pegou algo do bolso da calça. —
Eu trouxe algo para você.
Eu sorri.
— Um presente?
Ele assentiu.
Nathan já havia me presenteado com uma adaga há poucos dias e eu
ainda não tinha dado nada a ele.
— Está tímido porque vai me dar um presente? Eu não vou te bater
por isso. A não ser que seja algo péssimo, tipo... — o que ele poderia me
dar que não seria simplesmente maravilhoso, apenas por vir dele? — hum,
uma garrafinha de sangue? — aquilo seria estranho.
Nathan me olhou com uma careta e revirou os olhos.
— Engraçadinha.
Aproximei-me dele, esticando as mãos, um sorriso largo estampado
em meu rosto. Ele havia pensado em mim o suficiente para encontrar um
presente que quisesse me dar.
Ele abriu a mão que segurava meu presente e eu me estiquei para
ver. Era uma pulseira de ouro branco, com uma pedra azul escura em seu
centro. Parecia um topázio e era lindo. Nathan pegou minha mão e colocou
o presente sobre minha palma, observando minha reação de perto.
— Nathan, isso é... Isso é lindo demais. — Eu ergui meus olhos para
ele. — Eu não tenho nada para dar para você.
Ele deu de ombros, um sorriso torto nos lábios.
— Não dou presentes pensando em ganhar algo em troca, Alyssa —
disse e pediu permissão para colocar a pulseira em meu pulso direito. —
Todos recebem uma tatuagem quando chega a hora de se tornarem
guerreiros, e é como um presente para muitos. Apenas pensei que você
merecia ganhar algo também.
Olhei para ele, ainda concentrado em fechar o fecho da pulseira.
Aquele garoto à minha frente tinha perdido muito. A mãe, de certa forma o
pai, o amigo e eu. Havia se isolado em sua dor, em seu rancor, e fugido de
tudo e todos apenas porque achava que a solidão facilitaria sentir aquele
vazio no peito. E mesmo assim, ele podia ser tudo, menos vazio.
— Era da minha mãe. E, antes disso, tinha sido da mãe dela — ele
contou e eu o encarei, surpresa. — Eu encontrei na casa do Lago hoje,
quando fui lá esta manhã com Zeus. — Ele sorriu, timidamente. — Acho
que ela gostaria que eu desse para alguém importante para mim. Alguém
que pudesse usá-la.
Isso era... demais. Não tinha como desacreditar quando dizia que me
amava, quando me olhava daquela forma, ou quando me presenteava com
algo que era importante para sua mãe.
Aquilo, percebi, era sua forma de deixar claro o quanto eu
significava para ele e eu não podia estar mais feliz.
Quando Nathan finalmente conseguiu fechar a pulseira, saltei em
seus braços, mergulhando meu rosto em seu pescoço e inspirando seu
cheiro. Ele me agarrou contra si, meus pés nem tocavam o chão a esse
ponto. Ele deu risada quando agradeci beijando um ponto em seu pescoço
que eu sabia que o fazia sentir cosquinha.
Nathan me colocou no chão, mas não tirou as mãos de mim.
— Obrigada.
Ele sorriu.
— Por nada, linda.
Linda. Ainda sentia borboletas no estômago quando ele me chamava
assim.
Alyssa!
A voz veio intensa, como se fosse um grande esforço conseguir ser
ouvida. Virei para o meu lado direito, procurando a voz, e encontrei Diana
me olhando aflita.
— Precisa sair daqui — ela disse, com urgência.
Franzi o cenho, confusa. Eu não sorria mais, toda a euforia anterior
havia passado. A expressão de Diana parecia me dizer que não era o
momento. Peguei Nathan me olhando sem entender o que estava
acontecendo.
— O que foi? — perguntei à mulher, relutantemente.
— Precisa sair daqui logo. Leve meu filho.
— Com quem está falando, Aly? — Nathan buscava o invisível a
seus olhos. Só eu podia ver a Fidly morta. Sua mãe.
O olhar de Diana se encheu de amor quando observou Nathan. Seus
olhos azuis, como os do filho, encheram-se de lágrimas.
— Meu menino... — sussurrou, passando os dedos fantasmas pelo
rosto de Nathan, ainda estampado pela confusão. — Eles estão aqui, Alyssa.
Precisa fugir. Leve meu filho com você. Por favor.
Quem está aqui? Os Desertores não podiam entrar no Outro Lado.
Ali era o lugar mais seguro para se estar.
— Eu não estou entendendo — protestei. — O que está
acontecendo?
Nathan pegou minha mão.
— Aly?
— Eu não sabia quem havia te atacado na floresta. Mas hoje eu
descobri. A mulher de descendência asiática, de olhos castanhos. Ela fez
um acordo — sua voz parecia falhar, como se a bateria que a permitisse ser
visível estivesse prestes a acabar. — A Protetora está deixando que ele
entre aqui.
O que?!
Mulher asiática. Olhos castanhos.
Os mesmos olhos que me atacaram naquela noite na floresta.
Gaia.
— Isso é impossível — murmurei.
Como eu não tinha percebido antes?
Era a única mulher asiática que encontrei aqui. Gaia estava na
cerimônia mais cedo e me olhava... Olhava para mim como se tivesse algo a
dizer. Algo a confessar. Mas por que ela faria algo assim?
— Ela está fazendo isso agora mesmo, Alyssa. Precisa confiar em
mim.
Nathan pulou na minha frente e balançou meus ombros.
— Aly, o que está acontecendo?
Encarei Diana.
Se Gaia permitisse, os Desertores conseguiriam entrar no Outro
Lado. Vicenzo conseguiria entrar. E estaríamos perdidos.
— Sua mãe — sussurrei. — Sua mãe está me dizendo que uma
Protetora nos traiu e irá permitir que Vicenzo entre no Outro Lado.
Nathan parecia ainda mais confuso.
— Minha mãe?
Assenti, apontando para o ponto onde Diana ainda estava parada,
quase se misturando ao ar.
— Ela está aqui agora e está dizendo que precisamos sair do Outro
Lado imediatamente, porque há uma Protetora permitindo que os
Desertores entrem aqui. Não sei porque posso vê-la, mas não é a primeira
vez. — Ergui meus olhos para ele. — Quando fui à dimensão original
buscar por você, foi porque ela havia me pedido, dizendo que você estaria
em perigo se não voltasse para cá — confessei. — Eu não contei antes
porque não queria chatear você. Ou fazê-lo pensar que estou louca.
Seu peito subia e descia, provavelmente enquanto ele tentava se
acalmar e assimilar as informações que joguei em sua cara como uma
bomba.
— Eu não entendo — ele sussurrou, buscando por Diana no ponto
onde eu havia apontado, segundos atrás. Mesmo que Nathan não a visse, ela
o observava, lágrimas manchando o belo rosto. — Por que não posso ver
você? — ele perguntou à mãe, ainda invisível para ele.
Diana balançou a cabeça, limpou as lágrimas e falou, com ainda
mais urgência:
— Não há tempo, Alyssa. Diga a ele. Diga que o amo e que eu
tenho muito orgulho do homem maravilhoso que está se tornando — pediu.
— E então saiam daqui. Avisem aos outros. Mas precisam ser rápidos.
Agarrei o braço de Nathan. Ele se virou para me olhar.
— Ela disse que precisamos ser rápidos — falei. — E me pediu para
dizer que ama você e que está orgulhosa pelo homem maravilhoso em que
está se tornando — repeti suas palavras.
Um lampejo de dor percorreu o rosto de Nathan, mas então ele
trincou os dentes e cerrou o punho.
— Que Protetora está fazendo isso?
— Gaia — falei. — Acho que é Gaia. Pela descrição que Diana me
deu, só pode ser ela. E ela deve ser a pessoa que me atacou na noite que saí
para buscar por você.
— Eu não tenho mais tempo aqui — Diana disse, chamando minha
atenção. — Tome cuidado, Aly. Sejam rápidos. E, por favor — implorou.
—, não deixe que Vicenzo toque em meu filho.
Eu acreditei, pela urgência e terror em sua voz, que Vicenzo estaria
no Outro Lado naquela noite.
Eu balancei a cabeça, assegurando-lhe que faria de tudo para manter
Nathan a salvo.
— Eu prometo.
Nathan encarou o local, onde Diana deveria estar, mas ela já havia
sumido, desaparecido no ar como fumaça.
— Mãe? — ele chamou, e a dor em sua voz me quebrou.
— Ela já se foi, Nate.
Eu explicaria tudo mais tarde. Contaria como vi sua mãe pela
primeira vez e tudo sobre o que falamos. Mas não tínhamos tempo agora.
Ele encarou o vazio por um tempo, mas então assentiu e disse:
— Precisamos avisar aos outros.
Eu e Nathan corremos em direção à praça, mas acabamos
encontrando meus amigos no meio do caminho. Serena e Roman estavam
rindo de alguma coisa, e Jonnah foi o primeiro a ver nossos rostos aflitos.
— O que foi?
— Vocês viram a Gaia? — disparei.
Serena franziu o cenho.
— Ela estava indo para o Lago agora há pouco. Acho que ia para a
dimensão original.
Olhei para Nathan. Ele xingou. Aquilo não era uma boa notícia.
— O que está acontecendo? — Roman perguntou.
Eu não tirei os olhos de Serena.
— Quando liguei para você na noite que saí para encontrar Nathan,
tinha alguém por perto?
Ela me olhou confusa, sem entender o sentido da pergunta justo
agora, mas respondeu:
— Eu estava em uma missão com outros Protetores, mas quando vi
que era você, me afastei deles para atender o telefone.
— Quem eram os outros Protetores?
Ela deu de ombros.
— Leona e Gaia. Por quê? Vocês estão parecendo dois loucos. O
que está acontecendo?
— Foi Gaia quem atacou Alyssa naquela noite — Nathan informou,
com certeza. Tudo se encaixava. Fui atacada por uma Protetora logo depois
de falar com Serena sobre onde eu estava, e Gaia estava com a minha amiga
naquele momento. Ela deve ter ouvido a conversa. — E aparentemente, ela
fez um acordo com Vicenzo.
— Isso é loucura — Serena protestou. — Gaia é uma boa Protetora.
— Gaia é uma Protetora amarga — Roman contradisse. — E
durante todo esse tempo, ela sempre saía de perto quando Alyssa se
aproximava.
Jonnah assentiu.
— Ela trombou com a gente um dia e foi estranho.
— Mas por que ela faria isso? — perguntei. — O que eu fiz?
Nathan balançou a cabeça.
— Nós precisamos nos preocupar em encontrá-la, Aly — disse. —
Talvez ainda possamos pará-la.
Pela primeira vez desde que o conheci, Roman pareceu concordar
com Nathan.
— Se ela deixar que entrem, nós estamos perdidos.
Então nós corremos.
Decidimos que Jonnah continuaria em direção à praça e explicaria o
que estava acontecendo aos outros, enquanto tentávamos impedir Gaia. No
segundo em que chegamos àquela conclusão, um deles já estava se
comunicando mentalmente com o restante. Serena disse que não fazia mais
de um minuto que deixou a cerimônia, então podíamos ter tempo antes de
ela permitir a entrada dos Desertores.
Talvez nem precisássemos causar alarde.
Se tivéssemos muita, muita, muita sorte.