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Copyright © 2022 Luiza Ranuzzi

ESCOLHIDA PELO DESTINO


1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser


reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou
mecânico sem consentimento e autorização por escrito do autor/editor.

Capa: Fernanda Fernandez


Revisão: Evelyn Fernandes
Leitura crítica: Heloísa Fachini
Leitura sensivel: Evelyn Fernandes
Diagramação: April Kroes

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
a realidade é mera coincidência. Nenhuma parte desse livro pode ser
utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes – tangíveis ou
intangíveis – sem prévia autorização da autora. A violação dos direitos
autorais é crime estabelecido na lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do
código penal.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA


LÍNGUA PORTUGUESA.
Sumário
Nota da autora
Prólogo
PARTE 1
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
PARTE 2
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
PARTE 3
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Epílogo
Capítulo extra
Agradecimentos
Olá, leitores! Me sinto bastante honrada em poder compartilhar essa
história com vocês e, antes de começar, gostaria de deixar alguns avisos.
Escolhida pelo Destino é uma Baixa Fantasia, recheada de romance
e uma jornada que acompanha uma jovem garota, ainda em processo de
autoconhecimento. O livro não possui muitos gatilhos, mas acho necessário
avisar sobre certos tópicos. Há muita violência sendo descrita ao longo da
história, inclusive assassinato. Há abuso físico de menor, citado por um dos
personagens, assim como questões relacionadas à depressão/solidão.
Em certa parte do livro, há menção sobre coma induzido, sendo este
um período prolongado de inconsciência causado intencionalmente. O
assunto acaba gerando reflexões na personagem que pode ser um gatilho
para alguém.
Sendo assim, prezando pelo bem estar de vocês, caso em algum
momento da leitura, por algum motivo, se sintam gatilhados com qualquer
aspecto da história, por favor, preze por sua saúde mental e deixe a leitura
para algum momento propício no futuro.

Com amor,

Luiza.
Para todos os leitores, que usam as
histórias para escapar da solidão.
Vida nasce.
Vida morre.
Quando o mal ascender
E a escuridão ganhar poder
Na luz existe a resposta
Da luz foi criada àquela que
Pura
Equilibrará bem e mal
Fará da escuridão
Casa
Fará da luz
Poder
E protegerá os mundos
Ela há de ser sua rainha
Porque ela será salvação
Ela estava correndo porque sua vida dependia disso. Seu coração
batendo na garganta. Seus músculos protestando, cada vez que seu pé
descalço tocava a terra molhada. O vestido de Francesca já estava
encharcado e destruído pela lama que cobria o solo. Seu corpo pedia um
tempo, mas ela era incapaz de desistir agora. Não queria morrer. Não hoje.
Ainda não. Não estava pronta.
Passou a vida toda na sarjeta. Como um rato no esgoto desta cidade
pútrida. A cidade que nunca lhe acolheu, que lhe acusou de bruxaria por
carregar uma marca na pele, com a qual já nascera e não tivera nenhum
poder de escolha sobre. Foi amaldiçoada pelos deuses, ou pelo deus daquela
cidadela, muito antes de ao menos saber falar. Em seu primeiro choro, sua
própria família lhe deixou no relento, ainda bebê.
Amaldiçoada pelo deus da fortuna.
Marcada para morrer.
A floresta começou a se abrir mais, as árvores ficando mais
espaçadas e o caminho mais largo. Ao longe, era possível escutar o rio Arno
correr com força, devido a tempestade que caía, como se para lavar seu
corpo para o momento final. Um trovão rugiu ao longe, mas Francesca
poderia jurar senti-lo sob os pés. Uma celebração da vitória do deus que a
marcou — sua sentença de morte.
De vez em quando, a menina se permitia olhar para trás, mesmo
consumida pelo medo, para se certificar de que ele ainda não a tinha
alcançado. Prometeram protegê-la, mas a verdade era que ninguém era
páreo para aquele homem. Por isso, agora estava sozinha, em meio a uma
tempestade, buscando refúgio na floresta amaldiçoada de Florença. As
árvores se movimentavam impetuosamente, as folhas pareciam sussurrar
seu nome, e todos os animais se esconderam para não verem o que
aconteceria em seguida.
Se Francesca tivesse ouvido mais a Guardiã, saberia que este não
era o melhor lugar para se esconder. Os espíritos do mal rondavam esta
floresta, desde quando perseguiram as primeiras bruxas e as queimaram
para extinguir o mal que, supostamente, espalhavam. E Freya bem que
tentou avisar que ele viria atrás dela. Ela falou que deveria escapar do
convento que lhe acolheu e continuar fugindo pelo resto da vida. Se tivesse
escutado a mulher de cabelos dourados e roupas pretas, que parecia estar
em um luto eterno, talvez as irmãs do convento que cuidaram dela estariam
vivas.
E se Francesca soubesse melhor, não estaria correndo em direção ao
rio, onde não haveria onde se esconder. Mas era jovem demais.
Despreparada demais. Apenas uma criança. Era como se tudo à sua volta
conspirasse a favor do homem que prometera caçá-la e matá-la.
A lama ficou mais espessa e logo a garota avistou as águas frias de
outono do rio Arno. No fundo, sabia que ali restava seu fim. Com uma
última olhada para trás, Francesca o viu. Glorioso. Intocado. Como se
pudesse ser imune à chuva e à lama. Era como um deus, só que a trabalho
do mal.
Lúcifer em pessoa.
A menina tropeçou nos próprios pés, assinando seu breve destino ao
cair na terra, cheia de pedrinhas, que levava à margem do rio. As pedras
cortaram suas mãos e pernas e ela grunhiu de dor.
Não importava se não estava pronta para morrer, porque era isto que
o destino havia escrito para aquela noite.
—Por favor, Francesca, fique sobre seus pés — a voz do homem era
fria, contida, e cheia de frivolidade. Ele era tão indiferente quanto alguém
poderia ser, porque a vida de Francesca, não significava absolutamente nada
para ele. — Não quero precisar me curvar para cortar sua garganta.
A menina tremeu. Seu coração parecia querer sair pela boca, e ela se
pegou implorando para que ele parasse de funcionar de vez, e a poupasse de
uma morte nas mãos do homem que, agora, estava parado à sua frente.
— Levante-se! — ele rugiu, quando a menina não se moveu e
continuou encolhida no chão.
Francesca tentou fazer suas pernas trêmulas funcionarem. Buscou
apoio no chão lamacento. E rezou. Rezou ao Deus que as freiras de seu
orfanato a ensinaram a acreditar, e pediu que um milagre a salvasse. Se não
houvesse milagre disponível, que pelo menos pudesse levá-la rapidamente.
Tinha medo do sofrimento e da dor que poderiam aguardá-la.
Ela era apenas uma criança. Era uma menina que não tinha vivido
nada ainda. Era uma casca, cheia de oportunidades, que nunca de fato
provaria.
Quando finalmente conseguiu ficar em pé, a menina deu um passo
incerto para longe do homem, que a observava parecendo estoicamente
intrigado. A cabeça dele pendeu para o lado e seus olhos de fumaça
piscaram por entre os pingos de chuva. Era um predador observando a
presa.
— Ainda não posso acreditar, que ele pensou que um ser como você,
poderia me destruir — sua voz era puro desgosto. Ele a rodeou como uma
serpente prestes a dar o bote. — Você não é nada. Fraca. Humana demais.
O coração da menina continuava a golpear seu peito sem pausa,
como se desesperado por continuar batendo. Seu corpo tremeu e não era
mais por conta do frio. Por um momento, pensou em pular no rio e deixar
que a correnteza a levasse. Estaria morta em pouco tempo, por causa das
baixas temperaturas da água. E não seria aquela morte, menos pior, do que a
que enfrentaria com aquele homem impiedoso?
— Estás com medo? — ele perguntou, se aproximando como um
felino.
Ele parecia apreciar o medo. O terror era a sua maior recompensa.
Era seu alimento predileto.
Francesca se recusou a responder.
O homem puxou uma adaga de dentro do casaco. O cabo era longo e
esculpido por ornamentos arcaicos, incrustados por pequenos rubis
vermelho-sangue. Uma pedra negra enfeitava o topo do seu pomo.
Francesca nem mesmo recuou com a vista da arma porque sua beleza
parecia fascina-la.
— Não pense que me deleito com a ideia de matá-la, jovem —
disse, aproximando-se da menina. A adaga firme nas mãos impiedosas. —
Mas não posso deixar que meu destino seja corrompido por uma criança.
— Se este fosse mesmo o vosso destino, ninguém seria capaz de
intervir — a menina sussurrou com bravura.
O homem sorriu.
— Percebe, então, que o seu destino é morrer em minhas mãos? —
Ele balançou as mãos enluvadas ao redor, com a graça de um príncipe,
como ele bem devia ser. — Ninguém irá me impedir.
Sim.
Por mais amedrontador que pudesse parecer, a menina agora parecia
perceber isso. O fato simplesmente tomou seu coração, o conhecimento de
que, assim como ela, muitas viverão e morrerão, até que pudesse nascer
aquela que, finalmente, seria capaz de completar seu destino, e concluir a
profecia.
Por isso, Francesca assentiu levemente para a pergunta do homem.
Ela sabia que tinha que morrer naquela noite. Suas decisões a levaram até
aquele momento. O destino colaborou um pouco também, ela sabia disso.
Mas, agora, pareceu entender que, apesar de não ser justo, era o que tinha
sido planejado.
Quando a lâmina da adaga rasgou a garganta da menina, sua alma já
se desprendia da dor do corpo e não sofreria a partir dali. Porque a verdade
era que Francesca era luz, e nem mesmo a grande escuridão que se
apossava do homem, que tirava sua vida, poderia apagá-la.
Outras viriam. E ele as temeria.
Aquela noite parecia insana.
A garotinha sonolenta estava adormecida no banco traseiro do carro,
quando ouviu os pais esbravejando. Ela bocejou, já irritada com aquele
passeio que ela não queria fazer e, agora, ainda mais, porque os pais não
ficavam quietos tempo suficiente para ela dormir.
Ela não queria estar ali e já sentia falta de casa. Era para estar
assando marshmallows em frente ao Lago, observando a lua e as estrelas
que eram sempre mais bonitas naquele período do ano, perto do seu
aniversário.
Logo, ela faria oito anos e estava animadíssima com isso. Até os
pais a importunarem com essa viagem. Ela não entendia o motivo e nem
tinha interesse em compreender.
Quando a mãe abriu a janela e o vento estapeou o rosto da menina,
ela enfim demonstrou sua irritação.
— Eu quero dormir!
Seu pai, do assento do motorista, virou-se apenas por um segundo
para fitá-la.
— Eu sei, pequena pássara, mas temos que seguir. Logo chegaremos
em casa.
— Minha casa está para trás — ela protestou, mas o pai não
respondeu.
Com um suspiro, a garotinha fechou os olhos com força e se ajeitou
no banco, para que pudesse tentar dormir de novo.
— Victor está se aproximando deles — ouviu a mãe sussurrar.
Quem era Victor?
— Talvez devêssemos voltar — o pai sussurrou de volta.
A menina abriu os grandes olhos negros, apenas para observar os
pais. Eles eram cheios de “assuntos de adulto”, dos quais ela nunca tinha
permissão de participar. Aquele — ela imaginou — devia ser um deles.
Ela não achava justo ser punida por sua curiosidade. Até achava que
ela contribuía para a perspicácia que o pai tanto elogiava nela.
—Não tem mais como voltar — a mãe disse baixinho, e virou-se
para encontrar a menina que, habilmente, voltou a fechar os olhos. — Eles
estão perto demais.
O pai soltou um suspiro tenso.
A garota não estava acostumada a vê-lo daquela forma. Tenso e
receoso. A mãe, por outro lado, sempre parecia estar preocupada, sempre
atenta a tudo, como uma ave de rapina. Ela adorava como parecia ter
herdado um pouquinho de cada lado.
De repente, o carro passou por uma curva sinuosa em alta
velocidade. Foi só então que ela percebeu o quanto estavam indo rápido. O
pai realmente devia estar ansioso para essa viagem!
Um estrondo soou alto, fazendo a garotinha tapar os ouvidos com as
mãozinhas, uma delas marcada. Ela se virou, assim como a mãe, buscando
a origem do barulho.
Ela gritou ao mesmo tempo que a mãe arfou alto.
—Mamãe! Papai! — ela gritou. — O que é aquilo?
Atrás deles, um carro pegava fogo depois de bater contra um
canteiro de obras no meio da estrada escura. O fogo já crepitava alto e
quente, que mesmo a quilômetros de distância, a menina parecia ser capaz
de sentir. Atrás deles, os carros continuavam o trajeto, parecendo temer
parar.
Os pais fizeram o mesmo.
— Um acidente, filha — a mãe disse, com pesar na voz. A garotinha
entendeu, que a pessoa naquele carro, devia ter se ferido bastante. — Não
olhe, tudo bem? Já estamos quase em casa.
Então, pelos próximos longos minutos, a menina forçou os olhos a
se fecharem. Temia que algum pesadelo a perseguisse, como sempre
acontecia quando fechava os olhos, mas ela não parecia capaz de limpar a
mente, por tempo o suficiente para cair no sono.
Mas manteve os olhos fechados, na tentativa falha.
— Era Victor? — ouviu o pai sussurrar.
A resposta da mãe pareceu doer dentro da garotinha.
— Sim.
“Não tenho medo”.
Foram essas as últimas palavras, da garota em meus sonhos, antes
de ter a garganta cortada.
Sempre o mesmo sonho, com garotas diferentes e cenários
diferentes, mas sempre a mesma história. O mesmo homem, coberto por
sombras, que não me permitiam ver seu rosto com clareza, perseguia e
então matava as garotas. Às vezes, elas eram tão novas, que mal pareciam
ter tido seu primeiro período menstrual. E ele sempre usava a mesma arma:
uma adaga com uma longa lâmina e um cabo incrustado por pedras. Em
meio ao breu da noite, eu mal conseguia distinguir seus rostos, tudo o que
conseguia ver eram suas silhuetas e o brilho das pedras. Mas sempre
conseguia identificar suas emoções. Medo e indiferença. Aceitação e
crueldade. Luz e escuridão.
Havia anos que eu era assombrada por pesadelos. “Terrores
noturnos” era como minha mãe gostava de chamá-los. Não queriam dizer
nada, era somente meu subconsciente transformando meus medos e
inseguranças em imagens durante meu sono.
Mas nem por isso, deixavam de ser extremamente inconvenientes.
Antes dos sonhos começarem, nunca nem havia pensado na morte o
suficiente para ter medo dela.
Eram quatro e meia da manhã e havia dias que eu não tinha uma
noite de sono ininterrupta. E depois de todo o sangue que vi esta noite, tive
absoluta certeza de que não conseguiria voltar a dormir. Com um suspiro
pesado, levantei-me e fui ao banheiro, desviando-me de todas as caixas pelo
meu quarto.
Mais caixas. Mais uma mudança. Tenho dezessete anos e nunca,
desde os meus sete anos, passei mais do que um ano em uma mesma
cidade. Há dezessete anos, venho aprendendo a não acumular muitas coisas.
Roupas e sapatos estavam sempre sendo doados. Móveis sempre
pertenciam a casa na qual estávamos vivendo no momento, nunca nossos de
verdade. A única coisa que eu insistia em guardar eram meus livros.
Orgulhava-me deles como uma mãe se orgulhava de um filho. Perdi a conta
de quantos livros tinha guardado nessas caixas, mas provavelmente mais de
duzentos. Por sorte, meu pai dividia a mesma paixão comigo, então não me
repreendia pelo meu gosto antiquado. Henry Monroe sempre me
presenteava com um novo livro ou me emprestava um de seu próprio
acervo. E era grata por isso porque, nesses dezessete anos, foram os livros,
meus únicos companheiros. Isso porque além do meu pai e da minha mãe,
não havia mais ninguém em minha vida. Sempre fui ensinada em casa,
longe das escolas e dos adolescentes comuns, então não tive muitas
oportunidades de me enturmar em nenhum lugar que morei. Nenhum
amigo. Nenhum namorado. Nada.
Era só eu e as palavras quase sempre.
Os livros impediram que eu me afundasse em completa solidão. E
talvez isso dissesse algo sobre o quão sozinha, eu de fato era.

— Está animada para voltar para casa? — meu pai perguntou do


banco do motorista à minha frente. Ao lado dele, minha mãe observava os
carros atrás de nós pelo retrovisor, como uma águia atenta.
Quando eu era pequena, meu pai me dizia que eu era especial e que
nossas mudanças constantes eram para que eu pudesse estar em contato
com outros lugares. E agora estávamos voltando para casa, o lugar onde
nasci e onde vivi até meus sete anos.
— Mal me lembro de como era, então não tenho muito pelo o que
ficar animada.
Minha mãe me olhou e abriu um pequeno sorriso, mas que não
chegava aos seus lindos olhos cor de mel.
— É um lugar incrível, filha.
— Eu não entendo porque continuamos nos mudando — murmurei.
— Vocês poderiam esperar eu ir para a faculdade para depois voltarem para
o Lago. Seria só alguns meses de espera.
Silêncio tomou conta do carro. Meu pai pareceu tenso em seu
assento e minha mãe parecia focada demais na rodovia, para se preocupar
em ouvir o que eu estava dizendo.
—Eu vou para a faculdade — declarei, tão firmemente quanto era
capaz. Não era um pedido. Era um fato. Eu vou para a faculdade.
— Ainda temos tempo para pensar sobre isso — minha mãe disse,
sem ao menos me encarar. — Você não gosta de poder conhecer tantos
lugares? Não precisa pensar em faculdade por enquanto, Alyssa.
Dei uma risada de puro escárnio.
— Acho que prefiro me abster dessa pergunta.
— Você se formou cedo, Aly. Pode ter o luxo de tirar alguns anos de
folga. A maioria das pessoas entram na faculdade depois dos dezoito anos,
de qualquer forma.
— A maioria das pessoas possuem vida social — retruquei e então
respirei fundo para me acalmar. Não queria ser grosseira, mas precisava
deixar as coisas claras. — Eu preciso conhecer pessoas, mãe. Preciso sair e
ir em festas e ser uma pessoa normal. Não posso viver a vida toda isolada
do mundo porque você e papai têm medo do que ele tem a oferecer.
Eu desconfiava que meus pais fossem agorafóbicos. Ou algo assim.
Toda a superproteção que tinham sobre mim só podia ser um transtorno
relacionado a pânico. Era como se eu tivesse o coração fora do corpo e o
simples ato de eu me jogar na cama antes de dormir pudesse esmagá-lo.
Eu não tinha dúvida de que me amavam. Sabia que me amavam com
tudo o que tinham, mas a minha vida era ditada por tantas regras, que era
como não ter permissão para viver.
Mas minha mãe não disse mais nada.
— Com o tempo, tudo irá se ajeitar — meu pai tentou me confortar,
mas falhou miseravelmente.
Henry era o mediador da nossa família, porque apesar de eu ter sua
boca e seu nariz, minha personalidade era muito mais parecida com a da
minha mãe. E Jasmine tinha uma personalidade um tanto quanto... forte.
Acho que por isso, eles davam tão certo. Um era calmaria e o outro era
tempestade.
Minha mãe levou a mão sobre a do meu pai, que estava apoiada na
perna, e enroscou seus dedos no dele. Percebi meu pai fazendo leves
carinhos em sua palma. Nas poucas vezes que tive contato com outras
pessoas, enquanto andava pela rua ou em um supermercado, vi inúmeros
casais que mal se tocavam. Mal sorriam um para o outro. Mas meus pais
não eram assim, era como se um fosse a extensão do outro. Meu pai sempre
percebia quando algo incomodava minha mãe e minha mãe sempre sabia
quando meu pai estava cansado demais, para até mesmo pensar. Era lindo
de ver, e parte de mim esperava que eu tivesse a chance de encontrar
alguém, como meus pais se encontraram. Mas dada a minha vida social, a
probabilidade era que eu morreria antes de ter a chance de passar trinta
minutos sozinha com um garoto.
Minha mãe sempre me disse que o destino nos levava até as coisas
que deveriam ser nossas. Lembrava que a primeira vez que me disse isso,
estava olhando meu pai com tanto amor que, a pequena eu, de seis anos de
idade, teve plena certeza de que o amor era real.
— Estamos fazendo isso por você — minha mãe finalmente disse,
baixinho.
Não entendia porque ela pensava que eu poderia querer aquilo.
Porque achava que eu precisava viver assim. Seus medos sempre foram
muito ocultos, como se ela não fosse capaz de explicá-los. Então, passei
meus dezessete anos indo de cidade em cidade, vivendo em inúmeras casas
diferentes, às vezes tão isoladas que era como viver em uma floresta. Se eu
fosse justa, o fato era que sempre tive uma vida boa. Nunca passamos por
dificuldades financeiras, mesmo meus pais não tendo trabalhos fixos. O
dinheiro que minha mãe herdou de sua família era o bastante para nos
manter bem, e meu pai sempre gostou de investir no mercado financeiro.
Minha vida era melhor do que a de muitos. Não podia reclamar
disso. Ela era fácil e descomplicada.
Mas completamente solitária.
Acordei com o carro sendo estacionado em um gramado verde, atrás
de uma casa de estilo vitoriano, mas com aspecto mais rústico com suas
paredes de pedras brancas e janelas amplas. Meus olhos vasculharam o
espaço e, em frente à casa, estendia-se o mais amplo azul claro. Atrás de
nós, em contramão, uma longa e espessa floresta se erguia sobre o solo
úmido.
Eu menti mais cedo. Eu nunca seria capaz de esquecer desse lugar.
Pelo menos não completamente.
Saí do carro e caminhei pelo gramado em direção ao lago.
Era como se o vento soprasse em meus cabelos e sussurrasse para
mim. Casa. Toquei o chão e respirei fundo. Eu poderia ficar mil anos longe
daqui e eu ainda me lembraria desse cheiro. O cheiro de quando a brisa do
lago toca a terra e sobe para os céus. A forma como o vento zumbia uma
canção esquecida. Ou como toda vez que a água recuava minimamente, ela
voltava a tocar a margem como se pudesse sentir saudade da terra fresca.
Quando toquei meus pés na água, ainda gelada de fim de março,
meu mau humor desapareceu de vez. Fazia dez anos que eu não vinha aqui,
mas a sensação continuava a mesma.
Havia algo naquele lugar. Algo que o tornava dez vezes melhor que
qualquer outro.
— Eu disse que iria te fazer bem.
Minha mãe parou ao meu lado, também colocando os pés na água.
— Esse lugar é...
— Mágico — minha mãe terminou por mim.
Concordei. Se havia algo que pudesse explicar este lugar, a forma
calmante como as pequenas ondas tocavam meus pés, com certeza seria
mágica.
— Há uma lenda antiga, que diz que há um tesouro guardado pelo
Lago e a magia desse tesouro torna este lugar diferente de qualquer outra
coisa que já existiu. Por isso a água é tão azul e brilhante. Por isso o verde
aqui parece mais verde e a terra é mais fértil. Por isso que, mesmo quando a
neve cai, ainda é o melhor lugar para se respirar.
— Talvez seja porque a cidade mais próxima fica a mais de uma
hora daqui.
Minha mãe sorriu.
— Acho que isso ajuda também.
Olhei para os lados procurando alguma movimentação. Mas além da
casa vizinha, toda fechada e com um lindo jardim de flores, não havia
ninguém por perto.
— Sempre foi assim tão vazio?
— As pessoas preferem ficar na parte sul do Lago porque tem mais
comércio.
Apontei para a casa à nossa direita.
— Pelo que eu me lembre havia uma família ali, não é?
— Pai e filho — foi tudo o que minha mãe disse.
Assenti.
Não me lembrava muito bem daqueles anos. Minha memória nunca
foi uma das melhores. Mal me recordava do que havia jantado na noite
passada, quem dirá o que havia feito quando ainda era uma criança.
Minha mãe não disse nada por um longo tempo. Apenas tomou mais
um segundo para respirar fundo e então tirou os pés da água e se agachou
para pegar as sapatilhas que deixou sobre a grama.
—Vamos ajudar seu pai a tirar as malas do carro.

Arrumar esta casa era, definitivamente, um trabalho muito mais


simples do que o que tivemos com as outras nas quais moramos. A casa
estava exatamente como havíamos deixado, dez anos atrás. Nossos porta-
retratos, apesar de desatualizados, estavam espalhados pelos cômodos. Meu
quarto ainda tinha minha cama e meus brinquedos de quando era criança,
além de ainda ser das cores branco e lilás. Nem parecia que tínhamos ido
embora dali há tanto tempo. Não precisávamos fazer nada demais para
tornar aquele lugar um lar.
Agora me lembrava que quando nos mudamos pela primeira vez,
mal tivemos tempo de levar alguns dos meus brinquedos. O Bichinho —
como chamava uma pelúcia em forma de cachorro surrada, que tenho desde
meus dois anos — foi esquecido em cima da minha cama. Meus pais
precisaram me aguentar chorando por semanas, por causa desse cachorro de
pelúcia.
Pulei na cama e agarrei Bichinho. Cheirava a mofo, mas continuava
macio como anos atrás.
— Se eu e sua mãe soubéssemos o quanto você iria chorar por causa
dessa coisa, teríamos voltado correndo para buscá-lo.
Sorri para meu pai parado no batente da porta, alto e forte, tão
estranho em meio ao mundo lilás, que era meu quarto. Seu olhar era calmo,
como sempre, coberto por seus óculos de grau, que o faria parecer um
grande nerd, se não fosse seu corpo malhado.
Meus pais sempre se preocuparam com a minha segurança, mas me
esconder não foi a única coisa que fizeram. Também me treinaram, para que
eu fosse capaz de me defender caso precisasse. Desde que posso me
lembrar, sou treinada em artes marciais. Por anos, minha mãe foi a minha
principal treinadora, mas meu pai também me ajudou bastante, apesar de ser
sempre mais tolerante — o que a irritava às vezes. E enquanto meu pai era
alto e musculoso como uma parede, mamãe era baixinha e cheia de curvas
e, mesmo assim, não havia dúvidas de que ela poderia acabar com papai a
qualquer momento, em nossos treinos. Talvez não levasse mais que dois
minutos para isso.
Agora, olhando para os cabelos escuros do meu pai — os quais
herdei — despenteados e os óculos meio tortos no rosto, as mangas do
suéter erguidas até o cotovelo, era difícil me lembrar deste lado dele. O
homem capaz de lutar se preciso. Diferente da minha mãe, papai se
encaixava muito mais como um acadêmico despojado. Mas não mamãe, ela
seria assustadora mesmo se usasse óculos e estivesse enfiada atrás de livros.
Ela era como um animal selvagem à espreita.
— Por que saímos tão apressados? — perguntei. —Minhas coisas
ficaram praticamente todas para trás.
Meu pai deu de ombros.
— Não me lembro bem. — Ele curvou a cabeça. Segui o seu olhar
para meus pés, pendendo para fora da cama. Era uma cama muito pequena.
— Acho que vamos ter que comprar uma cama nova para você.
Aparentemente, as meninas crescem. — Ele jogou as mãos para o alto,
fazendo uma careta confusa. — Eu não acredito que ninguém me avisou.
Mostrei minha língua para ele.
— Lembre-se que meninas crescidas amam camas bem grandes.
Ele riu com ternura nos olhos. Meus pais eram loucos em muitos
aspectos, como em sua obsessão por segurança, mas nunca me trataram
com nada menos que amor. E eu não podia ser mais grata por isso.
— Vou me lembrar disso.
Ergui um joinha com a mão, sorrindo.
Eu não esperava gostar deste lugar, não imaginava que respirar
aquele ar fosse diferente das dezenas de mudanças que fizemos. Mas a
verdade, era que ali parecia diferente e eu estava feliz por estar de volta.
Quando acordei suando e arfando, olhei no relógio ao lado da minha
cama e percebi que não se passaram nem três horas, desde que fui dormir às
onze da noite. Meu quarto lilás e infantil estava completamente escuro, mas
a nova cama me acomodava bem em seu centro, encolhida como um animal
em estresse.
Fazia uma semana e meia que nos mudamos e meus pesadelos só
tinham piorado. No início, eu acordava gritando e meus pais chegavam no
meu quarto, tão rápido, que pareciam nunca terem ido dormir em primeiro
lugar. Depois, minha mente pareceu se acostumar e me fez calar os gritos e,
desde então, só tenho acordado sem ar e paralisada pelo medo. Toda vez
que precisávamos mudar para uma nova casa, as primeiras noites eram as
mais intensas, como se meu cérebro ainda estivesse se ajustando ao novo
lugar. Mas já fazia algum tempo desde que os meus pesadelos tomaram
formas mais assustadoras e frequentes. Quando eu era mais nova, com sete
ou oito anos, talvez tivesse um pesadelo a cada mês. Com o passar dos
anos, esse número foi crescendo e, hoje, era raro uma noite em que não
tivesse que lidar com o terror.
Era como se eu sentisse a morte da garota no meu sonho, apesar de
hoje ter sido em um cenário diferente. Neste sonho, eu não estava presa em
uma Europa medieval, obrigada a assistir um homem matar uma garota de
não mais de 14 anos. Neste, eu observava o mesmo homem matando uma
pequena criança, sempre uma menina, em alguma aldeia angolana do século
XX.
Apesar dos sonhos estarem mais frequentes e piores do que nunca,
eu estava acostumada com eles desde pequena. Como minha mãe havia me
dito inúmeras vezes, era apenas o meu subconsciente me pregando peças.
Eu tentava acreditar nela, mesmo minha mente me atacando com imagens e
sensações muito reais.
Por isso, fiz o mesmo ritual que repeti por dezessete anos: respirei.
Imaginei a água límpida do lago. Respirei. Lembrei da sensação da brisa de
uma manhã de outono em meu rosto. Respirei. Certifiquei-me — se não
pela milionésima vez — que eu não era a garota sendo morta.
Saber disso, porém, não diminuía em nada meu desconforto com a
cena.
Não entendia porque estava sonhando com esse mesmo assassino
por anos. Não fazia ideia do porquê meu subconsciente sempre me
mandava meninas sendo mortas. Uma vez me arrisquei a pesquisar o
significado de sonhos, principalmente os que se repetiam, na internet, e me
deparei com a ideia de que talvez fossem remissões de outras vidas. Mas
não queria ter remissões de outras vidas. Não queria pensar que essas
mortes horríveis com as quais sonhava, poderiam ter sido a minha quando
eu não era eu, e tinha outro nome e outro rosto. Então parei de questionar
isso em voz alta há muito tempo.
Uma cadeira raspou no chão com força e eu quase pulei da cama
com o barulho.
— Eu não vou mais ter essa discussão!
Era a voz da minha mãe vociferando na sala.
Por um instante, imaginei que ela e meu pai estivessem brigando, o
que não acontecia com frequência. Porém, uma voz masculina, que eu não
reconhecia, emitiu uma resposta incompreensível, baixa e firme.
Meu corpo todo congelou. Tentei me lembrar, de que meu sonho não
tinha nada a ver com o que quer que estivesse acontecendo. Lembrei que o
desconhecido com meus pais, não era o assassino dos meus pesadelos. Ele
não estava aqui para cortar minha garganta ou enfiar a lâmina em meu
coração, como fez com todas as outras garotas. Não tínhamos relação
nenhuma fora daquele mundo abstrato.
E me lembrei, repetidas vezes, enquanto caminhava até a porta, de
que fui treinada exatamente para essas situações: quando houvesse qualquer
ameaça. Fui treinada para ser cautelosa, mas não para ter medo. Para agir
sem hesitação, se isso pudesse salvar a minha vida.
E havia a possibilidade de que eu estivesse exagerando.
Fiquei em posição de ataque, mas antes de abrir a porta, peguei algo
que pudesse ser usado como arma. Ao meu lado, um abajur rosa de
borboletas violetas pareceu pesar o suficiente.
Abri a porta silenciosamente e estava prestes a descobrir quem era o
invasor, que parecia perturbar tanto a minha mãe, quando as palavras
seguintes me atingiram:
— Você não pode escondê-la do mundo para sempre, Jasmine — a
voz do homem era calma e não parecia se alterar com a explosão da minha
mãe. Estava mais para um alerta do que uma ameaça.
Sinos soaram em minha mente. Escute. — minha mente pediu.
Fique quieta e tente escutar. Porque aquela era a única forma, de que eu
pudesse descobrir a verdade sobre o que estavam discutindo. E eu podia
estar muito errada, mas poderia apostar alto que era eu quem estava sendo
escondida do mundo, porque... bem, olhe para a minha vida.
Eu sabia que se interrompesse agora, não iria ouvir mais nada e
meus pais nunca me contariam o que estava acontecendo de verdade. Eu
amava eles, mas sabia que não eram completamente honestos comigo. Na
verdade, não eram nem um pouco honestos com nada. Para eles, eu era
apenas uma criança que precisava ser protegida, não importava quantos
anos eu tivesse ou quantos socos eu conseguisse acertar. E só de saber que
havia um estranho aqui, provavelmente capaz de responder muitos dos
questionamentos que nunca tive coragem de fazer em voz alta, meus
sentidos se aguçaram e me impediram de ir até a sala.
Por toda minha vida, fui mantida reclusa de tudo e todos. Foram
poucas as vezes que conheci alguém diferente. E a verdade, é que sempre
quis entender porque minha mãe se esforçava tanto para me esconder do
mundo, justamente como o estranho lhe acusou de fazer.
Queria entender porque pensavam que a solidão era algo aceitável
em um mundo tão grande como este.
— Ela é minha filha! — minha mãe berrou, e ouvi meu pai pedir
que ela se acalmasse. Um estalo ressoou pelo corredor, como se ela tivesse
batido as mãos na mesa. — Eu vou fazer o que for preciso para mantê-la
segura.
— Eu sei que vai — o estranho respondeu, baixo e muito mais
calmo. — Mas por quanto tempo acha que vai conseguir fazer isso? Alyssa
já tem quase dezoito anos. O quanto você se sente capaz de protegê-la da
verdade?
Que verdade?
Precisei me esticar para fora do quarto para escutar a resposta do
meu pai.
— Nós fomos capazes de mantê-la segura por dezessete anos. —
Nunca ouvi meu pai soar tão irritado. — Não se engane quanto a isso. Não
pense, por um segundo, que você e os outros tem algo a ver com o fato da
minha filha estar viva hoje. O fato de termos voltado ao Lago é apenas uma
precaução.
— Eu não estou duvidando, Henry, e nem pretendo afirmar que nós
somos os responsáveis por isso. Só estou tentando mostrar que nós
podemos garantir o nível de segurança necessário, para manter qualquer
ameaça longe, hoje mais do que nunca.
Ouvi o estalar da língua da minha mãe ao mesmo tempo que
percebia que suas próximas palavras seriam cobertas por veneno.
— Assim como foram capazes de proteger Diana?
O silêncio tomou a nossa casa. De repente, fiquei bastante
consciente do barulho que fazia para respirar. Meus pais não disseram
absolutamente nada no minuto seguinte. O estranho muito menos. Eu
poderia jurar que, agora, estavam todos se encarando com puro desprezo.
Ou vergonha. Ou mágoa. Ou uma mistura disso tudo.
Logo, o único barulho que preencheu o silêncio, foi o da porta
principal batendo com força contra seu portal. No próximo segundo, soube
que o estranho já tinha ido embora, porque o silêncio passou a ser
preenchido pelos soluços do choro engasgado da minha mãe, e a voz do
meu pai tentando acalmá-la.
Esperei por trinta minutos, para que minha mãe se acalmasse e que
seu choro cessasse. Depois esperei mais vinte. Ainda capaz de ouvir seus
soluços e lamúrias, acovardei-me de volta para a cama e tentei dormir.
Acordei na manhã seguinte ainda questionando a noite passada. Em
17 anos, podia contar em uma mão as vezes que recebemos visitas. Nunca
visitas noturnas, misteriosas e aparentemente secretas. Nunca onde
conversas pareciam claramente serem sobre mim. Pelo menos, nunca uma
que eu tivesse presenciado.
Quando cheguei à cozinha, logo cedo, o cheiro de café se misturava
ao de chá de camomila. Do outro lado das amplas janelas de vidro, o Lago
dançava com calmaria, tocando a terra na costa. Minha mãe, encostada no
batente da porta, estava de costas para mim, observando o movimento leve
do Lago.
Sentado na mesa, com um livro em uma mão e uma xícara de café
na outra, meu pai foi o primeiro a levantar os olhos e me ver.
— King está me matando aos poucos com esse livro, Aly — meu
pai ofereceu como saudação. — Simplesmente genial.
Minha mãe nem se mexeu de onde estava parada.
— O que aconteceu ontem à noite?
Havia decidido logo quando acordei, que dançar em volta do
assunto não iria me dar mais coragem para trazê-lo à tona, principalmente
quando peguei o olhar frio da minha mãe sobre mim. Ela parecia a perfeita
imagem da indiferença, contudo. Ao mesmo tempo, flagrei a sombra de
pânico no olhar do meu pai, antes que ele fosse capaz de disfarçá-lo.
— Nós fomos dormir logo depois de você, Alyssa. — Seus olhos se
estreitaram. — Ao que você se refere?
— Um homem esteve aqui durante a madrugada e te acusou de me
esconder do mundo — repeti o que ouvi. — Esse mesmo homem disse que
poderia me oferecer a segurança que vocês não podem. — Observei seu
rosto perder a cor, ao mesmo tempo que meu pai ajeitou a postura na
cadeira ao meu lado. — Você — apontei para minha mãe. — Ainda chegou
a citar uma mulher chamada Diana.
— Esses seus sonhos estão ficando cada vez mais vívidos, se pensa
que isso que diz, realmente aconteceu.
Meu sangue ferveu, meus punhos se fechando ao lado do meu
corpo.
— Eu não sou idiota, mãe. E apesar do que pensa, sou muito bem
capaz de diferenciar meus sonhos da realidade.
— Alyssa, por favor — meu pai me advertiu.
Virei-me para ele.
— Você também estava lá — acusei. —Por que não me diz a
verdade?
— Porque não há o que dizer — minha mãe cortou.
Bufei. Eu estava tão cansada das mentiras, das meias-verdades.
Passei dezessete anos ignorando os sinais de que algo não estava
certo. Preferi facilitar o trabalho dos meus pais e me esconder dentro da
minha bolha sem vida, mas segura. E agora eu estava cansada de fingir.
Estava cansada de me esconder. Havia vida lá fora, no mundo real, e eu
precisava entender porque não me permitiam vivê-la. Eu já tinha quase
dezoito anos, pelo amor de Deus!
Pela primeira vez, percebi que existia alguma grande razão para que
nossas vidas fossem daquele jeito. Não era só porque meus pais gostavam
de viajar, ou porque queriam que eu tivesse novas experiências, porque se
formos bem sinceros, minhas experiências eram as mesmas em cada
maldita cidade em que vivemos, o que mudava era apenas o cenário de
fundo e nada mais.
Joguei-me na cadeira em frente à mesa, exasperada por tudo isso.
— Por que estão mentindo? Por que simplesmente não me dizem a
verdade logo?
— Seu subconsciente está lhe pregando peças. Nada aconteceu
ontem à noite, Alyssa — a voz condescendente da minha mãe era como a
pólvora para a minha ira.
— Eu sei o que eu ouvi! — gritei. A mesa rangeu sob meus dedos.
— Vocês têm me mantido no escuro, sem saber de absolutamente nada, por
anos. Mas eu não sou mais uma criança. Não vou mais tolerar vocês me
arrastando de uma cidade para a outra, de uma casa para outra, por puro
capricho. Eu mereço saber o que está acontecendo. Se há uma razão pela
qual eu deva ter medo, preciso saber!
— Não há razão para você ter medo, Alyssa — minha mãe me
assegurou, mas notei sua mão trêmula. — Você não precisa se preocupar
com nada, a não ser talvez, tirar alguns dias para descansar e dormir um
pouco. Estes seus pesadelos estão desregulando seu sono e fazendo sua
mente criar acontecimentos infundados.
Quando levantei, bati com as mãos na mesa com tanta força que
temi que o vidro quebrasse.
— Eu não estou louca!
Meu pai colocou sua mão sobre meu ombro.
— Não estamos dizendo isso. Acalme-se.
Olhei para baixo, para minhas mãos, e vi o vidro da mesa rachado.
O vidro era grosso demais para que eu pudesse tê-lo quebrado, mas também
era tão velho que poderia já estar meio danificado. De qualquer forma, me
recusei a pedir desculpas pelo o estrago.
Recusei-me a dizer qualquer coisa além de repetir:
— Eu sei o que ouvi.
— Éramos só eu e seu pai ontem à noite. Além de você no seu
quarto — minha mãe insistiu.
Mas eu sabia o que tinha ouvido. Podia não ter visto o rosto do
estranho, mas sabia que havia mais alguém aqui além de nós três. E sabia
que, quem quer que fosse, deixou meus pais bastante irritados.
— Por que estão mentindo para mim? — minha voz quebrou, como
um pedaço de louça frágil.
Meu pai se aproximou para me tocar, mas me afastei antes que me
tocasse.
— Por que nos mudamos de novo? — questionei.
— Estava na hora de voltar para casa — minha mãe disse,
simplesmente.
— Por que nos mudamos da primeira vez?
— Eu precisava de um novo cenário, filha. Estive fazendo pesquisas
que necessitavam do meu deslocamento — meu pai explicou.
Sei que ele não estava mentindo. Mas como já disse, meus pais eram
incríveis em contar meias-verdades.
Meu pai de fato gostava de ciência e esteve pesquisando Deus sabe
lá o que, durante todos esses anos. Algo que o entreteve durante esse tempo,
mas eu nunca tive muito interesse para saber o que. Sempre fui uma
estudante de humanas e linguagens, nunca da ciência.
— Estou tão cansada de suas mentiras. — Olhei para os meus pais.
Observei quando Henry lançou um olhar inseguro para Jasmine. Percebi
quando ela o ignorou, e se manteve firme, olhando-me como se eu estivesse
falando coisas absurdas. — Não querem me contar? Tudo bem. Eu
descubro sozinha.
Escutei meu pai me chamar, enquanto eu dava as costas e voltava
para o meu quarto. Quando bati a porta com tanta força que um quadro na
parede do corredor caiu, ouvi minha mãe pedir para que ele me desse
tempo.
Mas eu não precisava de tempo.
Eu precisava da verdade.

Eu era uma grande caixa esquecida no canto da casa, sem uso


algum. Vazia.
Naquela manhã, peguei-me olhando pela janela, para a casa vizinha,
ao mesmo tempo que um Volvo saiu pelo gramado esverdeado. Demorei um
tempo para perceber, que seria muita coincidência a casa vizinha estar
ocupada, justo quando um desconhecido apareceu de madrugada na minha
casa. Ninguém nunca vinha para este lado do Lago. Não podia ser uma
simples coincidência.
E eu estava tão cansada de não ser nada mais que uma mobília nesta
casa silenciosa.
Por isso aproveitei que minha mãe não estava em casa e meu pai
estava entretido com o que quer que pesquisasse tanto, e pulei a janela do
meu quarto. Parte de mim sabia que o que eu estava fazendo era ilegal e
meio idiota, mas minha curiosidade foi maior que o meu bom senso.
Certifiquei-me de que meu pai não me visse sair de casa e percorri o
gramado até chegar à divisão com a casa vizinha. Atrás da casa azul clara,
havia um longo jardim com inúmeras rosas, tulipas, margaridas, peônias,
hortênsias e outras flores que não reconheci por nome. Era a única parte da
casa que parecia viva e a única da qual me lembrava vagamente.
Quando me aproximei de uma janela, vi o seu interior e era
exatamente como imaginava que fosse uma casa fantasma. Todos os móveis
estavam cobertos por lençóis brancos e os quadros foram colocados no
chão, virados para a parede de modo que eu não consegui enxergar suas
pinturas.
Primeiro, tentei entrar pela porta de trás. A da frente não era uma
alternativa, por causa das correntes e do cadeado enorme que exibia. Girei a
maçaneta e logo percebi que a porta de trás tão pouco era uma opção.
Sobrou as janelas. Por sorte, não eram tão altas. Do lado esquerdo da casa,
dando vista para um quarto azul marinho, finalmente encontrei uma janela
destrancada e relativamente fácil de abrir.
Pulei com facilidade para dentro do quarto. A cama estava feita, mas
todo o resto estava coberto por lençóis. Procurei qualquer coisa capaz de
indicar quem estava morando nesta casa nos últimos anos.
O quarto era uma suíte, então decidi revistar o banheiro. Havia itens
de higiene ali, então quem quer que fosse dono daquela casa, ainda a
visitava. Mas por que então a mantinham como se tivesse sido abandonada?
Abri as gavetas do armário embaixo da pia e um cheiro almiscarado
me atingiu. Havia um frasco de perfume esquecido ali. Cheiro de árvore e
chuva. Masculino.
Voltei ao quarto e puxei o lençol que cobria uma escrivaninha.
Havia duas gavetas, sendo uma com tranca. Como esperado, na primeira,
fácil de abrir, não encontrei nada. Na segunda, porém, eu não conseguia ver
o que tinha sem uma chave.
Merda. Não tentei estourar a tranca, porque... bem, eu já estava
invadindo esta casa, não tinha intenção de destruir nada que não fosse meu.
Abri o guarda-roupa buscando pela chave em algum esconderijo.
Encontrei algumas poucas camisetas penduradas. Calças jeans dobradas.
Nas gavetas, outras camisas. Na primeira, deparei-me com boxers e meias.
Por mais que eu não estivesse confortável com a ideia de revirar as roupas
íntimas de um estranho, imaginei que seria onde alguém poderia pensar em
esconder algo.
Mas não havia nada.
Seja quem fosse aquele homem, ele era bom em deixar suas coisas
bem guardadas.
Desisti do quarto e andei pela casa. Eu parecia uma barata tonta,
sem saber exatamente o que queria encontrar. Bem, eu sabia o que eu
queria. Queria respostas. Só não tinha certeza de que elas estavam ali.
Eram três quartos no total. O das boxers, outro que estava vazio, e
um último com apenas uma cama. Não havia roupas nem itens de higiene
neste último quarto. Mas a cama estava feita.
Na sala, os quadros virados para a parede eram quadros de
decoração. Alguns pareciam pinturas e outros desenhos retratando o Lago e
outros cenários meio abstratos. Belas pinturas, com traços finos e cores
fortes, algo feito por um verdadeiro artista. Era o tipo de pintura que
prendia sua atenção e te direcionava a uma memória antiga, intocada e,
mesmo que não fosse minha, tocante.
Dei um passo para trás quando percebi um rangido sob meus pés.
Sorrindo, triunfante, levantei o tapete empoeirado que cobria o chão de
carvalho e encontrei uma porta para o porão da casa. Destravei-a com
facilidade e abri. O fundo era escuro e não pude ver até onde a escada dava.
— Que merda de ideia — murmurei para mim mesma.
Incerta, comecei a descer o primeiro degrau. Cada passo que dei
para dentro do porão, me fez lembrar de alguma história de terror. Já estava
na metade da escada íngreme quando — rezando para que aquilo não me
levasse para a cova de algum assassino em série — encontrei um interruptor
para ligar a luz. O espaço se iluminou e fiquei aliviada por não encontrar
nenhum animal asqueroso. Diferente do que eu esperava, o lugar era todo
limpo e cheio de caixas. Algumas tinham as iniciais D. C. marcando o
papelão. As outras estavam espalhadas e não pareciam guardar nada de
muito importante.
Fui até as caixas marcadas e abri a primeira. Dentro, haviam roupas
e sapatos de mulher. Meu corpo se arrepiou quando toquei o tecido. Eu
esperava que a pessoa que guardava aquilo, não o fizesse por causa de
algum tipo de fetiche louco, logo após assassinar alguém. Esperava de
verdade. Já era ruim eu estar invadindo uma casa, agora invadir a casa de
um assassino em série era... Não seria nada bom.
Tentei me lembrar da família que vivia aqui quando eu era mais
nova, mas minhas lembranças eram nebulosas e incompletas. Eu era nova
demais, mas tinha quase certeza de que não havia nenhuma mulher.
Em uma segunda caixa, as coisas se tornaram mais interessantes:
haviam livros e cadernos de desenhos com as iniciais D. C. Ficava mais
claro agora, que talvez o dono desta casa, apenas guardasse as coisas de um
ente querido que já se foi. Peguei um caderno com a capa de couro preta e o
abri, mesmo que minha consciência me dissesse que era errado mexer nas
coisas de um falecido. Ignorei isso, no entanto. A primeira coisa que vi foi a
foto de uma linda mulher. Na verdade, era uma adolescente com um bebê
no colo e um garoto um pouco mais velho que ela segurando sua cintura.
Ela era completamente estonteante. Os olhos claros e o cabelo escuro,
faziam o tom da sua pele pálida se destacar. Ela parecia um anjo. O garoto,
por outro lado, também não deixava a desejar. Era alto e forte. Sua postura
ereta o fazia parecer um rei e seu rosto era esculpido, com o maxilar reto e
as sobrancelhas grossas. Nem parecia um garoto, apesar do rosto sem
quaisquer marcas de expressão. Ele poderia muito bem ser um homem feito.
Sua pele, que estava bronzeada, combinava com os olhos esverdeados e seu
cabelo castanho-escuro estava jogado para trás.
Pais jovens, percebi. Mas felizes. Pela foto, eu não seria capaz de
dizer que ela não queria ter o filho ou que o garoto estava prestes a fugir da
responsabilidade. Pareciam completamente satisfeitos com o bebê de
cabelos pretos e olhos azuis como os da mãe. A semelhança era tão
evidente entre mãe e filho, que me perguntei se ainda era assim hoje em dia.
E havia algo... algo nos olhos da garota que me intrigou. Não sei se
era a cor azul límpida, como o Lago. Ou se a intensidade deles. Era como se
ela já tivesse vivido mil anos dentro da sua curta vida.
Na primeira página de um dos cadernos estava a assinatura da
garota. Diana Prado-Cross, datado há quase vinte anos atrás. Diana. Como
o nome citado na discussão daquela madrugada.
Eu sabia que não podia ser uma coincidência aquele carro aparecer
no gramado vizinho, justo hoje.
De repente, tinha quase certeza que o jovem na foto era, atualmente,
o homem que discutiu com a minha mãe. E algo ruim o suficiente
aconteceu com Diana para que o assunto tivesse acabado logo depois de
minha mãe mencioná-la.
Folheei o caderno, mas me decepcionei em encontrar todas as
páginas em branco. Apenas na segunda página, porém, Diana falou sobre a
sua gravidez e como esta poderia ser o jeito mais inusitado do universo
surpreendê-la.
Amei este bebê desde o primeiro momento que senti sua presença.
Brian nem mesmo acreditou quando lhe disse que estava grávida. Acho que
estava apavorado com a ideia, principalmente dada às nossas
circunstâncias. Quis saber como eu podia ter tanta certeza. Bem, eu
simplesmente tinha. Mas Brian nunca me decepcionou. Desde o dia em que
descobri este presente, ele foi o mais atencioso possível, mesmo estando
apavorado. Acho que em meio a esse caos, este foi um dom que o Destino
me deu. E este bebê será meu pacotinho exclusivo de felicidade. Pelo tempo
que eu for capaz de estar por perto. Sei que sou nova demais e que este
definitivamente não é o melhor momento, mas vou dar um jeito de
continuar viva, nem que eu precise me trancafiar do Outro Lado. Apenas
para garantir que meu bebê viva — ela escreveu.
Não conseguia decidir entre as milhares de razões pelas quais ela
poderia estar preocupada em se manter viva. Uma garota na idade dela não
deveria ter problemas de saúde. Na foto ela parecia até mesmo mais jovem
que eu. Sua pele e olhos pareciam brilhantes e saudáveis, não havia nenhum
indício de doença. Mas então porque pareceu tão preocupada em se manter
viva? Ela estava em perigo? Talvez a própria gravidez fosse de risco.
Mas nada disso fazia sentido. Algo dentro de mim dizia que ela não
iria se trancafiar por motivos de saúde. Era preciso um perigo físico para
que alguém pensasse em se esconder.
E a pergunta mais importante: o que isto tinha a ver comigo?
Se o garoto da foto era o mesmo homem que apareceu nessa
madrugada, ele estaria preocupado com a minha segurança pelo mesmo
motivo pelo qual Diana se preocupava?
Encarei a foto com tanta força que poderia muito bem colocar o
papel em chamas. Tentei memorizar as faces ao mesmo tempo em que
tentava ligá-las a alguém que estava em minha vida. Mas a lista de pessoas
que eu conhecia se resumiam em duas: meu pai e minha mãe. Não conhecia
Diana. Será que ela estava morta, por isso todas as suas coisas estavam
encaixotadas? E o bebê? O que aconteceu com o seu bebê?
Continuei lendo a página, mas ela só falava sobre como sonhava
conhecer o filho. Como precisava de mais tempo. Como se tivesse alguma
doença terminal e soubesse que seu tempo era escasso.
Pelo menos sabia, pela foto em minhas mãos, que ela teve a chance
de conhecê-lo.
— Eu não acredito que você invadiu uma propriedade privada,
Alyssa!
A voz do meu pai, logo atrás de mim, era bem capaz de me causar
um infarto. Gritei tão alto que temi que, se minha mãe já tivesse voltado
para casa, iria me ouvir.
Abri a boca para falar, mas meu pai me interrompeu com um aceno.
— Não ouse se explicar, Alyssa Monroe. — Ele percorreu o espaço
com os olhos e focou no caderno em minhas mãos. — Eu quero que você
guarde isso onde encontrou. Agora.
Achava que meu pai nunca tinha sido tão ameaçador.
Não discuti. Coloquei o caderno de volta na caixa, mas por algum
motivo, levei a foto em minhas mãos até o bolso traseiro da minha calça.
— Eu precisava de respostas — sussurrei, envergonhada.
— Não quero escutar.
— Você sabe que falei a verdade. Sabe que não foi um sonho —
insisti. — Um homem veio a nossa casa de madrugada para discutir minha
segurança.
Meu pai apenas me encarou, sem expressão alguma. Acho que
nunca o vi assim antes. Normalmente, era minha mãe quem tinha a
habilidade de controlar suas expressões.
— Encontrou suas respostas, Alyssa? — sua voz foi baixa e firme.
— Eu... Eu não sei — suspirei. — Sei que o homem que esteve lá
em casa é, provavelmente, o dono desta casa e que tinha essa mulher...
Diana. Como ouvi minha mãe dizer. Ela também tinha medo pela própria
vida. E... acho que ela está morta.
O rosto do meu pai continuou fechado. Uma linha se formou em sua
testa e ameaçou marcá-lo para sempre.
— Eu não criei você para invadir casas.
— Por favor, pai. Me conte a verdade. Por favor. Preciso saber a
verdade.
Meu pai não se abalou. Seus olhos, mais frios do que jamais vi,
eram como facas nos meus.
— Quero que vá para casa e não saia do seu quarto até que eu dê
permissão para isso.
— Você vai me colocar de castigo agora, pai? — minha voz era um
esguicho.
— Para o seu quarto, Alyssa. Agora.
Não havia espaço para discussão.
Minha mãe não estava em casa quando voltei para o meu quarto,
mas meu pai se certificou de contar tudo a respeito da minha “invasão” logo
que ela chegou.
Ambos passaram horas falando o quanto estavam desapontados
comigo, pela minha "atitude criminosa". Mas nenhum deles respondeu às
minhas perguntas. Eles nem ao menos cederam frente as minhas alegações.
Eles eram rochas intocáveis e eu era apenas uma criança cercando-as.
No terceiro dia do meu castigo, pensei ouvir um barulho do lado de
fora do meu quarto. Levantei da minha cama — que já estava tomando o
formato do meu corpo — e abri a porta apenas para encontrar um livro
sobre o piso de madeira. Um presente do meu pai. Quase que um pedido de
trégua. Ele tem me dado livros, novos ou emprestados, por anos,
alimentando minha sede de conhecimento e minha imaginação. Até porque,
uma criança sem contato com o mundo acaba criando muitos dentro da sua
própria cabeça.
Inclusive, essa era uma das explicações da minha mãe para as
minhas alegações. Sempre que dizia que havia algo errado e que eles
estavam escondendo algo de mim, esta era a sua resposta. Eu era criativa
demais. Andei lendo demais. Estava confundindo minha cabeça. Realidade
e ficção estavam se tornando um borrão, de acordo com ela.
Encarei o livro irritada. Tinha me recusado a falar com eles por três
dias, fazendo até minhas refeições dentro do quarto, mas ao invés de
respostas, meu pai me ofereceu um livro de contos.
Se minha imaginação era o meu problema, ele não deveria parar de
tentar alimentá-la?
Bati a porta com força, o que não me impediu de ouvir o suspirar do
meu pai.

No sétimo dia, por algum milagre, tanto meu pai quanto minha mãe
alegaram precisar resolver negócios na cidade, o que me permitiu um
momento sozinha em casa. Coisa rara. Com sorte, ficariam fora por
algumas horas e me dariam liberdade para andar pela propriedade em paz.
Saí do meu quarto, assim que percebi que já tinham partido.
O sol hoje estava mais forte e nos últimos dias tentei me distrair
nadando no Lago, praticando stand-up ou usando o Jet-ski para percorrer o
perímetro. Não tive mais notícias do estranho e não ouvi mais nenhuma
conversa secreta dos meus pais. Nenhum carro apareceu no gramado
vizinho também. Eu estava tão ignorante a tudo quanto sempre estive. E,
assim como minha ignorância, meus pesadelos eram persistentes.
Por isso, a primeira coisa que fiz, sem meus pais para me vigiarem,
foi correr até a casa vizinha e tentar entrar pela mesma janela da última vez.
Mas minhas esperanças foram destruídas quando a janela nem se moveu.
Meus pais deram um jeito de trancar essa casa direito. Ou avisaram ao
estranho que eu estava invadindo.
Grande merda.
Cocei as costas da minha mão direita. Era um tique nervoso que eu
tinha desenvolvido. Toda vez que estava muito nervosa, meus dedos livres
corriam para a marca de nascença estampada na minha mão. Sempre fui
muito consciente dela, mesmo que não fosse nada demais, e como resultado
de um colapso nervoso, coçava a marca fervorosamente.
Olhei ao meu redor, querendo encontrar algo para fazer que não se
resumisse à minha bunda colada no colchão ou aos treinos físicos que,
mesmo sem conversar com meus pais, não haviam sido interrompidos. Em
alguns momentos, me perguntava se meus pais talvez não estivessem
querendo me transformar em algum tipo de soldado. Só isso poderia
explicar porque diabos me matavam com tanto treino, todo santo dia.
Meus pais não eram pessoas violentas apesar dos treinos. Na
verdade, nem eram violentos nos treinos. Meu pai era calmo e instrutivo e
minha mãe era exigente. A combinação de ambos resultava em horas de
exercícios repetitivos e complexos.
Falhando em encontrar um meio de entrar na casa, acabei decidindo
que a floresta parecia interessante. Certifico-me de prestar atenção no
caminho para não me perder, já que a floresta era bastante fechada. A cada
passo que eu dava para dentro dela, aquela dificuldade era compensada, o
verde estonteante e o ar úmido ali, trazia muita beleza para a trilha. As
árvores se encontravam no alto e suas flores e folhas se beijavam no topo.
Os pinheiros eram mais reclusos, mas inconfundíveis.
Minhas pernas queimavam pelo esforço quando cheguei a uma trilha
mais fechada e reclinada, principalmente depois de dias de treino árduo,
mas insisti em continuar.
Eu estava quase chegando à ponta da floresta que tocava no Lago,
quando escutei um farfalhar de folhas atrás de mim. Virei-me tão rápido em
busca de um animal selvagem que acabei tropeçando nos meus próprios
pés.
— Merda!
A terra estava meio úmida e sujou minhas mãos. Apoiei-me no chão
para levantar, observando as árvores à minha volta e limpei minhas palmas
sujas no short jeans. Por um instante, não houve barulho algum. Nem
mesmo o da água do rio ondulando levemente.
Mas então escutei.
À minha esquerda, outro barulho. Passos.
Fui puxada com tanta força para fora do caminho e para trás de uma
árvore gigantesca, que um grito saiu pelos meus lábios. Comecei a me
debater contra o corpo do estranho, mas sua mão direita prendeu meus
braços para trás e sua mão esquerda tapou minha boca.
Meu coração martelava contra meu peito e me obriguei a encarar o
estranho.
Ele era jovem. Talvez dois ou três anos mais velho que eu. Seu
cabelo castanho caía em ondas em cima de seu olho. Seus olhos cor de
chocolate estavam meio cerrados, uma sobrancelha longa e reta estava
curvada em uma expressão tensa.
— Fique quieta.
Sua voz me atingiu com força, como um sopro no rosto. Era firme e
sem abertura para debate.
Ele até podia ser grande e musculoso, mas fui treinada a vida inteira
e eu não estava prestes a ser sequestrada ou morta, ou sei lá o que, por um
garoto.
Tentei morder sua mão, mas, além de um olhar feio que me lançou
de resposta, ele nem se mexeu, os olhos presos além das árvores. E foi por
causa de um segundo de distração, que me permitiu erguer o joelho e o
acertar com força, bem no lugar onde sabia que todo homem odiaria ser
acertado. Podia até não ter tido muito contato humano, mas li o suficiente
sobre pessoas, e sabia de um fato incontestável sobre os homens: eles
adoravam o que tinham no meio das pernas. E odiavam quando estas
preciosidades eram maltratadas.
O estranho se curvou com um grunhido rouco de dor, e relaxou os
braços o suficiente para que eu me soltasse e corresse.
— Ei! — sua voz era quase um grito, mas percebi que ele tentava
falar baixo. — Volte aqui!
Eu estava mais alerta do que nunca. Durante os dez anos que fui
treinada pelos meus pais, nunca — nunca mesmo — me ocorreu o pânico
que eu sentia agora. Nunca tive o medo que eles tanto tinham. Nunca entrei
em pânico no meio de um trânsito parado ou em uma rua escura. Nunca tive
motivo para isso. Mas agora, meu corpo inteiro estava em alerta total,
gritando para que eu corresse.
Corra. Corra. Corra.
Eu tentei pegar o caminho de volta para minha casa quando escutei
um xingamento mais para frente. O estranho estava atrás de mim. Mas
quem diabos estava entre eu e o Lago?
Acabei demorando tempo demais pensando para onde ir. Logo senti
a mão do estranho se fechar no meu pulso e me puxar para trás.
— Me solta! — gritei, tentando puxar minha mão do seu aperto.
O estranho não cedeu.
— Eu preciso que pare de lutar contra mim, Alyssa — sua voz foi
firme como um soco no estômago.
O espanto facilitou o trabalho dele, porque ele conseguiu me levar
para longe dos passos que se aproximavam com maior facilidade.
Ele sabe meu nome.
Como diabos ele sabia meu nome? Nunca o vi na vida!
— Como sabe meu nome?
— Vem comigo — meio que me impressionava que ele pedisse, e
não ordenasse. — Precisamos sair daqui antes que nos alcancem.
— Quem?
Porém seus olhos já não estavam em mim.
Ele se moveu tão rápido que não consegui acompanhá-lo. O
estranho me puxou contra seu corpo ao mesmo tempo que pulava para o
lado, nos escondendo atrás de um pinheiro.
O estalo se seguiu tão forte que me curvei contra o corpo do garoto,
tentando proteger minha cabeça.
— Porcos malditos — ele grunhiu.
O pinheiro não era grande o bastante para esconder nosso corpo
completamente. E o corpo do estranho, apesar de magro, era largo demais e
seus braços fortes não estavam protegidos. Encarei o corte no seu braço, ao
mesmo tempo que percebi uma faca presa na casca da árvore atrás dele. Seu
rosto nem se contorceu quando deveria sentir dor.
Arremessaram uma faca em nós!
Quem quer que fosse as pessoas que agora nos perseguiam, percebi
que o estranho à minha frente era a minha melhor opção. Pelo que parecia,
ele não queria deixar que me matassem. E, bem, eu tão pouco queria
morrer. Decidi que aquela era uma aliança bastante conveniente dada as
circunstâncias.
E ele sabia meu nome. Talvez houvesse alguma explicação plausível
para toda essa grande merda.
“Nós podemos garantir o nível de segurança necessário para
manter qualquer ameaça longe, hoje mais do que nunca.” — o outro
desconhecido, o que confrontou meus pais naquela madrugada, disse. Eu
sabia que não eram a mesma pessoa só pela diferença em seus tons de voz.
Aquele, de noites atrás, havia dito que era preciso me proteger. Só não
acreditei que haveria assassinos atrás de mim. Parte de mim — aquela que
eu preferia escutar na maioria das ocasiões — pensou que ele estava
falando sobre um perigo menos palpável. Talvez uma doença. Assassinos,
no entanto, saía um pouco da minha linha de imaginação.
Estava meio que óbvio, agora, que meus pais tinham algum motivo
para me manter escondida.
O estranho à minha frente estava me bloqueando com seu corpo. Ele
me observou por um segundo. Um segundo longo que me peguei
observando-o de volta. Mas logo seus olhos focaram-se de volta na ameaça
além das árvores.
— Eu vou distraí-los — ele anunciou. — Preciso que corra de volta
para sua casa e fique lá dentro até eu aparecer e dizer que é seguro. — Seus
olhos me perfuraram. —Entendeu?
— Quem são essas pessoas?
Ele suspirou, frustrado.
— Agora não é uma boa hora para perguntas, Alyssa.
— Vamos lá, garotinho — uma voz feminina cortou pelas árvores.
— Me dê a Fidly e deixo que você viva mais um dia da sua vidinha infeliz.
Alguém riu.
Eram dois deles.
O estranho me sacudiu de leve.
— Você me entendeu?
Eu tinha duas opções aqui: fugir ou ser teimosa o bastante para ficar
e talvez ser morta.
Sabiamente, optei pela primeira.
Balancei a cabeça em confirmação para o estranho.
Ele me soltou tão rápido que precisei me apoiar contra a árvore.
Observei enquanto ele pulava para onde a mulher e o homem com a faca
podiam vê-lo. Pisquei uma vez e ele já não estava mais do meu lado.
Fiquei parecendo uma barata tonta procurando por ele em meio às
árvores. Acho que ele percebeu, porque quando o avistei, alguns metros à
frente, ele se virou para gritar que eu corresse, antes de pegar a cabeça do
homem que nos ameaçava e bater contra o tronco de uma árvore.
Ok. Talvez meus pais estivessem certos e eu estivesse tendo sonhos
sem ao menos perceber que estava em um. Porque não era minimamente
possível que isso estivesse mesmo acontecendo.
Não fui muito longe.
Ouvi algo se partir e um rugido. Meus pés travaram e parei de
correr, antes mesmo que meu cérebro assimilasse a ordem. Um homem
rugiu de dor. E meu corpo todo se tencionou ao perceber que era aquele que
estava tentando me salvar.
— Bastardos de merda! — a voz do estranho que me ajudou era um
urro.
Em todos os meus treinos minha mãe me dava ordens para pensar
em mim. “Se houver perigo, não seja leal, Alyssa. Fuja.” Sempre achei
estranho meus pais ensinarem isso. Não era a lealdade um dos atributos
mais importantes de uma boa pessoa? Não era a coragem que diferenciava
aqueles dignos de uma história e os indignos de memória?
Por que então aquele garoto não fazia isso? Por que ficar para me
proteger?
Se ele estava me ajudando, era apenas justo que eu fizesse o mesmo.
Então corri de volta para ele.
O garoto estava se levantando quando eu dei o primeiro soco no
agressor, depois outro. Foram socos dignos de quebrar seu nariz e deslocar
sua mandíbula. Eu sabia o que estava fazendo.
Mas o homem estranho riu com o barulho da sua mandíbula
estalando e seu nariz esmagado, como se fosse um prazer para ele ouví-lo.
Parecia um sádico. E então ele atacou. Suas mãos sujas me agarraram com
tanta força que tive certeza que marcaria minha pele. Eu gritei e tentei
chutá-lo, mas seu corpo era como chumbo.
Ele me jogou no chão como se eu fosse uma boneca de pano. Suas
mãos procuraram algo na parte de trás da calça e logo uma espada de
lâmina estranha foi erguida. Minhas mãos tatearam o chão cegamente.
Meus dedos tocaram uma pedra e eu a peguei. Mirei na cabeça do homem e
a lancei. Acertei em cheio e ele rosnou como um animal.
Levantei-me com dificuldade, grunhindo de raiva. Com um
movimento rápido, consegui chutar suas costelas e socar seu queixo,
esperando que ele caísse no chão. Mas não. O homem nem pareceu
perceber minha tentativa débil. Ele me encarou com ódio estampado em seu
olhar.
Eu estava pronta para levar um novo golpe quando senti algo molhar
meu rosto e peito. Abri os olhos. O garoto havia enfiado uma lâmina na
garganta do homem. Ele segurava uma espada que parecia feita de vidro,
um tipo que nunca vi nem em filmes de ficção. Sangue agora jorrava pelo
corte feito no homem de olhos negros. Minhas mãos trêmulas correram para
limpar o sangue em meu rosto, mas na verdade, acabei me ajoelhando no
chão e vomitando. Se minha mãe me visse, ela diria que este era um erro
que não poderia nunca cometer. Você luta. Só depois desmorona.
Nunca levei isso a sério porque nunca pensei que precisaria mesmo
lutar. Nem que veria tanto sangue na minha frente.
O garoto me puxou para cima e me colocou atrás de seu corpo. À
nossa frente, a mulher encarava o homem caído, os olhos negros ainda
abertos.
Só agora, quando a mulher me olhou, vi que seus olhos também
eram negros. Não eram só pretos como os meus. Não. Os dela eram
completamente negros. Não havia esclerótica branca. Eram como dois
buracos negros no rosto tenebroso dela. Estes mesmos olhos fincaram-se
em mim como duas adagas. Suas roupas pretas eram retalhos sujos, mas o
cinto de armas era reluzente. Havia algo de muito errado com estas pessoas.
Eles nem pareciam humanos.
— Outros como nós virão atrás de você, Fidly — disse para mim.
Então ela apontou a espada para mim, dando apenas uma olhadela para o
estranho ao meu lado. — Você não conseguirá se defender e nem mesmo
estas crianças serão capazes de salvá-la.
Constatei que ela estava prestes a fugir, mas o estranho a
interrompeu.
— Eu matei o seu amigo e você nem ao menos vai tentar vingá-lo?
— o garoto provocou, um sorriso sinistro nos lábios. — O seu tipo
realmente não tem um pingo de orgulho, não é?
A mulher nem se mexeu.
Percebi, então, que o estranho queria que ela atacasse. Apesar disso,
ele se manteve na minha frente, como um escudo, mesmo sem nem
demonstrar ter reparado na minha presença, desde que voltei para me
certificar que ainda estava vivo. Ele não queria que ela me machucasse. Ele
queria que ela atacasse para que ela não tivesse a chance de fugir e, quem
sabe, chamar outros.
Ela soltou uma risada seca.
— E você acha que me importo? — ela replicou, seus olhos negros
como dois buracos sem fundo. Então, ela focou em mim novamente. — Seu
tempo está se esgotando.
Com isso dito, ela pegou algo no bolso da sua calça, estendeu a mão
para cima e desapareceu como fumaça em meio ao vento.
—Alyssa.
A voz tentou chamar a minha atenção, mas eu ainda estava
paralisada e transtornada demais, sem saber se encarava o vazio onde a
mulher, cinco segundos atrás estava, ou o corpo sem vida há poucos metros
dos meus pés.
Senti o garoto se aproximar. Ele tocou meu ombro, mas ainda não
era capaz de encará-lo.
— Você está tremendo — ele percebeu.
Olhei minhas mãos. Não tinha reparado antes, mas eu estava
tremendo mesmo. Meu coração também batia descontroladamente no meu
peito. Acho que só agora estava caindo a ficha de que havia um assassino
ao meu lado e que havia acabado de fugir de um casal de olhos negros.
— Ele está morto.
O garoto tentou me tocar de novo, mas eu pulei para longe.
— Você matou ele — acusei.
Ele pareceu confuso.
— Para salvar você — ele rebateu.
— Mas ele... ele era humano... — era mesmo? — Você não pode
simplesmente matar as pessoas. Devíamos ter chamado a polícia!
Ele quase, quase mesmo, riu da minha cara, mas se conteve.
— Acredite em mim, não há nada humano naqueles malditos. E a
sua polícia faria pouco para nos ajudar.
Eu estava tremendo tanto que quando tentei caminhar para longe,
minhas pernas falharam. As mãos fortes do assassino/salvador me pegaram
antes que eu caísse no chão. Só agora vi que a sua espada tinha voltado a
ser embainhada em seu cinto.
Quem, em pleno século XXI, usava espadas?
— Hum… — meu corpo estava pressionado contra o dele e seus
olhos estavam buscando algo nos meus. — Acho que você está em choque.
— Você acha? — zombei. — Tem um homem morto a menos de
dois metros dos meus pés. Você o matou. E essa mulher... ela tinha olhos
estranhos, que não deveria me chocar tanto quanto o fato de ela querer me
matar. E ela simplesmente desapareceu no ar! E nada disso faz sentido! Por
que estavam atrás de mim? — Tentei sair do aperto dele. Ele me deixou ir,
mas me cercou como se tivesse medo que minhas pernas falhassem
novamente. — Por que ela me chamou de “Fidly”? Que merda é essa? E o
que diabos ela quis dizer quando me avisou que outros viriam atrás de
mim? Que outros?
— Alyssa, você precisa falar mais devagar. Parece que você está
surtando.
— Eu estou surtando! — gritei para ele. — Como sabe meu nome?
Aliás, qual é o seu nome?
— Venha. — Ele me estendeu a mão, ignorando minhas perguntas.
— Vamos andando para a sua casa. Aquela mulher pode acabar voltando
com outros para ajudá-la.
Meu corpo se contraiu em resposta.
Há mesmo outros?
Olhei para o corpo estendido no chão.
— Vamos deixá-lo aqui?
O olhar que ele lançou para o homem era de puro nojo.
— Eu é que não vou tirá-lo daqui. Os animais podem tomar conta
dele à noite. — Ele percebeu meu olhar chocado e acrescentou: — Confie
em mim quando digo que ele não merece nada melhor. — Ele pegou a
minha mão bruscamente. —Vamos. Precisamos sair daqui.
— Você vai responder às minhas perguntas?
— Todas que eu puder. — Ele pareceu sincero.
— Então me diz o seu nome.
Seus olhos brilharam enquanto encaravam os meus, como se
ninguém nunca tivesse realmente se importado com este detalhe.
— Meu nome é Roman.

Ele se recusou a conversar comigo durante o caminho, mas me


garantiu que assim que chegássemos ao Lago ele iria começar a falar.
Aparentemente, quem quer que estivesse nos caçando não podia se
aproximar da casa, o que não podia ser uma simples e bela coincidência.
Demorou menos tempo para alcançarmos a casa do que me
lembrava, muito provavelmente porque ele praticamente nos fez correr até
ela. O carro dos meus pais ainda não estava estacionado no gramado e eu
ainda não havia enviado nenhuma mensagem contando o ocorrido. Eu
queria que Roman respondesse minhas perguntas antes, porque tinha medo
que meus pais insistissem nas mentiras. Na verdade, tinha certeza de que ao
menos tentariam.
Observei os olhos de Roman demorarem na casa vizinha e, por um
segundo, me perguntei se era ele quem estava ficando lá. Mas não podia ser.
Ele não tinha a mesma voz que ouvi, do estranho naquela madrugada,
noites atrás. Eu ainda acreditava que tinha sido o homem da foto.
— Pronto. Já chegamos. — Parei na porta de casa. — Quero
respostas.
Ele tentou esconder um sorriso debochado, mas estava óbvio que ele
estava se divertindo com o meu desespero.
— Te dar respostas vai me trazer muitos problemas — ele
murmurou.
— Você acabou de matar uma pessoa e está preocupado com
algumas perguntas?
— Você ficaria impressionada — ele bufou, cruzou os braços e me
encarou. — Faça suas perguntas.
Eram tantas perguntas enchendo minha mente que precisei ranqueá-
las.
— Por que aquelas... pessoas estavam atrás de mim?
— Porque você é a Fidly — disse, parecendo entediado. — E pare
de chamá-los de pessoas. Não eram pessoas. Desertores são monstros. O
pior tipo que existe, traidores repugnantes.
Ele disse isso como se explicasse alguma coisa. Cada palavra me
atingia com uma nova onda de perguntas e um pouco de tontura.
— Eu deveria saber do que diabos você está falando?
— Olha, — Roman começou — não cabe a mim explicar isso a
você. Quando seus pais chegarem eles terão muito mais tempo.
Eu quase bufei com a ideia.
— Eles sabiam disso, não é? — Cerrei os punhos. — Todos esses
anos indo de um lugar para outro... Toda a superproteção... Eles sempre
souberam que havia algo errado e disseram que eu estava alucinando!
Roman soltou um suspiro que podia muito bem ser de tédio, e virou
para se sentar no balanço branco que ficava pendurado na nossa entrada.
Era uma imagem engraçada e me distraiu minimamente. Seu corpo alto e
forte, coberto por couros e aparatos que eu imaginava ser diferentes tipos de
armas, estendido sobre meu balanço de infância.
— Eu vou te dar o necessário para que seus pais sejam obrigados a
te explicar o restante, ok?
Assenti. Isso era melhor que nada.
— Eu sou um Protetor. Você é uma Fidly. Aqueles porcos eram
Desertores — ele me informou. — Você é importante para o destino da
humanidade, então pessoas como eu, precisam mantê-la viva, enquanto
Desertores te caçam como a porcaria de um animal. Mantê-la segura era
meu trabalho de hoje, e não deveria ter sido difícil se você fosse capaz de
seguir ordens e ficado dentro de casa.
Engoli em seco.
— Se eu soubesse que estava sendo perseguida por loucos, eu talvez
tivesse escolhido ficar dentro de casa!
Ele se esticou no balanço, parecendo irritado.
— Foi exatamente o que os Protetores têm dito aos seus pais por
anos. Que, talvez, se você soubesse a verdade, seria mais fácil proteger
você dela.
Aquele homem que veio até a minha casa conversar com meus pais,
no meio da madrugada, deve ser isso então... um Protetor. Ele estava
tentando alertá-los, provavelmente depois de ter tido a mesma discussão
outras vezes antes.
Nada disso fazia o menor sentido
— Por que eu sou tão importante?
Roman me olhou, pela primeira vez, realmente interessado em
minha presença. Seus olhos me examinaram como uma máquina,
procurando algo que eu não sabia identificar.
— Aparentemente, você é uma promessa.
Isso me deixou ainda mais atordoada.
Tentei ignorar todas as perguntas que confundiam minha cabeça e
focar em uma. Talvez uma mais simples do que: o que diabos era um
Protetor e um Desertor. O que eu era?
Talvez entender meu propósito fosse mais simples.
— Promessa do que?
— Algo sobre a salvação dos mundos.
Ah, Deus. Ele realmente falou “mundos”. No plural. E eu pensava
que aquela seria uma resposta mais simples.
Nunca estive tão enganada.
— Esses nomes que você fica falando — disse, engolindo sua
resposta anterior como se fosse vidro triturado em minha boca.
—“Desertores” e “Protetores” — fiz aspas no ar. — São algum tipo de
seita?
Ele fez uma careta.
— Não.
Pelo modo que disse isso, ficou bem claro, que aquele era
exatamente o ponto em que não iria se prolongar. Aquela era a explicação
que eu teria que exigir dos meus pais.
— Por que esses Desertores — a palavra soou ridícula na minha
boca — querem me matar?
Roman estalou a língua.
— Teoricamente, você é o que chamam de “salvadora dos mundos”
— disse. — Desertores vivem do caos, então você transformando as coisas,
seria um pequeno empecilho. Mas o que realmente pesa nesta guerra é o
líder deles, Vicenzo. Você é uma ameaça ao poder dele. A única que pode
realmente matá-lo.
Tentei manter a calma. Focar minha mente. Mas quanto mais ele
falava, mais confusa eu ficava. Mais estúpida eu me sentia. Eu não
pretendia matar ninguém. Talvez se soubessem disso, decidiriam me deixar
em paz.
Minha frustração era tão grande quanto a minha confusão.
Nada que ele me dizia fazia sentido. Eu não era especial. Eu não
tinha nenhum dom ou poder. Ainda sofria com meus treinos físicos
medíocres. Eu não podia ser essa tal de Fidly.
— Não sou especial — eu falei com firmeza. —Sou completamente
comum.
— Não é o que a profecia diz.
— Sua profecia está errada.
— Impossível — ele disse.
Seu estado de espírito era exatamente o oposto do meu. Roman
estava calmo como o Lago. Eu estava fervilhando como um vulcão em
erupção.
— Então vocês erraram de garota — eu disse, certa de que não
podia ser nada do que ele estava dizendo. — Não sou eu. Não tem como e
nem porquê.
Ele passou os longos dedos pelo cabelo sedoso, colocando uma
mecha atrás da orelha. Roman me olhou atentamente, como se esperasse
que eu começasse a gritar e correr como uma louca.
— Nós temos certeza — insistiu.
— Não — retruquei, mais firme dessa vez.
Roman se levantou e precisei dar um passo para trás porque o garoto
era grande demais. Em um passo, ficamos a poucos centímetros de distância
e ele pegou minha mão direita com um movimento rápido.
— Está vendo esta marca? — Ele apontou para minha própria marca
de nascença, estampada nas costas da minha mão direita. —Esta é a prova.
— Uma marca de nascença? — perguntei, indignada.
Ele sorriu. Um sorriso quase desgostoso.
— Sim. Esta marca estampada na sua mão — Ele acariciou o
desenho distorcido. — É o símbolo da Fidly.
Fidly. — A palavra ainda parecia estranha demais.
— Há outras?
Não sei porquê, mas minha voz saiu baixa, como um sussurro. Era
como se essa parte da conversa fosse confidencial. Parte de mim, já não
encontrava mais maneiras de negar tudo o que ele me dizia. Algo fazia
sentido nisso tudo. Explicava as mudanças, as regras... E agora, tudo o que
me restava era a esperança de que existiam mais pessoas como eu, para que
talvez, juntas, pudéssemos entender melhor o que diabos estava
acontecendo.
— Muitas outras. — Ele me soltou e voltou a se sentar. — Mas
nunca mais de uma. Quero dizer, só houve uma Fidly por vez. Nunca duas
ao mesmo tempo. Vocês são meio que raras. Nunca sabemos quando ou
onde irão aparecer. As Guardiãs costumam sentir sua presença, mas
encontrá-las já é outro assunto. Mas, às vezes, se houver algum tipo de elo
mais profundo, acaba sendo mais fácil.
— O que são Guardiãs?
— Outro tópico que deixarei para seus pais explicarem — disse,
simplesmente.
Revirei os olhos.
— E como acontece esse elo?
Ele pigarreou. Parecia meio incerto, meio constrangido.
— Todo ser vivo possui um caminho. Nossas escolhas podem
influenciar nossos futuros, mas as pessoas cruzam nosso caminho por uma
razão superior. Dizem que as Fidlys possuem o destino traçado antes de
terem nascido. Diferente da maioria dos humanos, quando vocês amam, é
um amor verdadeiro. E às vezes se constrói um elo tão profundo entre as
almas envolvidas, que é quase palpável. É como se o Destino te conectasse
a uma pessoa e, então, essa pessoa poderia sentir você. Ou ser atraída a
você. Da mesma forma que isso acontece, nós podemos sentir sua
existência porque somos destinados a te ajudar a cumprir seu papel. Então
basicamente, temos um tipo de elo com você, mas de uma forma diferente.
— Eu tenho esse elo com alguém específico? — o nervosismo
estava explícito em minha voz. Nunca nem estive perto de alguém por
tempo o suficiente para beijar, muito menos me apaixonar. A ideia de ter
alguém já esperando por mim, sem que eu tivesse qualquer escolha sobre
isso, era simplesmente ultrajante.
Ele pareceu ouvir algo que eu não era capaz, porque sua cabeça
tombou para o lado e seus olhos focaram em algo além de mim, como se
perdido na própria mente.
— Não. Pelo menos não que eu saiba. Posso sentir sua presença,
porque sou um Protetor. Mas com você foi diferente — disse, distraído. Ele
se levantou, ao mesmo tempo que fui capaz de ouvir o barulho de um carro
se aproximando. Percebi, perplexa, que ele pôde ouvir o carro se aproximar
muito antes de mim. — Os Protetores têm conhecimento de você desde o
seu nascimento.
— Como?
Eu estava desesperada por mais informações antes que meus pais
chegassem e tentassem retornar com as mentiras. Preciso saber mais.
Precisava entender o que tudo isso queria dizer.
— Com você, tínhamos uma linha direta de contato, porque sua mãe
é uma de nós.
Minha mãe é uma Protetora.
E eu nem sabia o que isso significava.
Minha mãe irrompeu na varanda no momento em que as palavras
saíram da boca de Roman. Meu pai apareceu um minuto mais tarde. Eles
correram até mim, segurando meus braços e meu rosto, parecendo se
certificar de que eu não estava ferida. Quando minha mãe se deu por
satisfeita com o que via, seus olhos se tornaram mais frios e ela se virou
para o garoto de braços cruzados nos observando.
— Eu pensei que podia confiar em você.
Roman não se abalou com a insinuação.
— E você pode, sra. Monroe. Alyssa está bem e intocada.
Minha mãe pareceu rosnar para ele, mas meu pai a interrompeu.
— Obrigado, Roman.
O garoto voltou-se para mim. Olhou-me e curvou-se um pouco.
— Foi uma honra conhecê-la, Fidly.
Eu não disse nada e Roman simplesmente saiu andando, como se
não houvesse mais nada a ser dito. Como se toda a situação estivesse
explicada e finalizada.
Ah, mas não mesmo.
— O que está acontecendo, mãe? — Puxei-a para me olhar. —
Alguém tentou me matar hoje e Roman me contou coisas que... que não
fazem sentido nenhum.
O rosto de minha mãe endureceu, mas seus olhos pareceram se
encher de lágrimas, que ela se recusaria a derramar. Notei, assim como meu
pai, que sua mão tremia e ele logo tratou de enroscar os dedos nos dela.
— Você não tinha o direito! — ela acusou Roman, que ainda estava
no meio do caminho para ir embora.
Ele parou, seus olhos indo da minha mãe para mim.
— Com todo respeito, senhora, não acho que mentir para a sua filha
irá mudar os fatos — sua voz era mais calma do que imaginei ser possível.
— Alyssa é a Fidly e isso não irá mudar. Ao invés de ignorar o fato, talvez
devesse dá-la a chance de lutar.
Com isso, ele saiu andando. Seus ombros largos estavam meio
curvados e, por mais que sua voz estivesse calma, eu podia perceber sua
tensão. Logo ele desapareceu do meu campo de visão.

— Vou fazer um chá para você — meu pai anunciou.


— Eu não quero chá algum.
Fazia dez minutos que minha mãe estava tentando me enrolar.
Jasmine me encheu de perguntas sobre o ataque e, mesmo depois que dei
cada detalhe, ela criou algo novo para perguntar.
— Vocês sabem que não vão conseguir me distrair o suficiente para
que eu esqueça tudo o que ouvi hoje, não é?
Minha mãe respirou fundo e cruzou as mãos.
— Você é uma Protetora? — perguntei.
Ela desviou os olhos.
— Jas, não adianta mais fugir disso — meu pai disse, enquanto
colocava o chá na minha frente, mesmo depois de eu ter negado. Ele se
sentou ao lado da minha mãe e usou uma das mãos para acariciar o ombro
dela.
—Mãe? — insisti, mesmo que a resposta do meu pai fosse tudo o
que eu precisava.
Ela só assentiu.
Senti minha pressão baixar.
Oh, Deus.
Meus olhos pararam em meu pai.
— Você também?
Ele negou.
— Sou só humano.
Só humano. Como se fosse algo a se envergonhar. Como se não
fosse suficiente e ele desejasse ser algo além.
Uma vez perguntei a eles como tinham se conhecido e minha mãe
disse que havia sido o destino. Disse que, um dia, decidiu visitar um parque
na cidade, onde nunca tinha ido antes e viu meu pai sentado na grama lendo
um livro de ficção. Ela passou por ele e ele lhe citou uma parte do livro,
sem nem a conhecer. Ela achou que ele poderia ser louco, mas parou para
ouvir o que havia dito. Meu pai disse que era o jeito que encontrou de
chamar sua atenção, já que ela parecia completamente intocável. Naquele
mesmo dia, passaram horas conversando e estavam juntos desde então.
— O que isso quer dizer? — perguntei. — Eu sou uma Fidly porque
você é uma Protetora? O que isso significa?
— Eu ser uma Protetora não faz de você uma Fidly. O Destino
traçou esse caminho para você, não eu.
O destino. O destino. O destino.
Ela sempre explicava tudo baseado no destino. Algumas mães
acreditavam em Deus, Alá, Buda ou até em Zeus. Mas não minha mãe.
Quando chorei porque queria ter amigos como as garotas dos filmes, minha
mãe me disse que o destino havia planejado algo extraordinário para meu
futuro. Que, um dia, o destino me daria bons amigos, mas que eu não
precisava deles. Eu poderia ser feliz sozinha, se quisesse. Quando visitamos
Nova Iorque durante as férias e fomos surpreendidos com uma das piores
nevascas do ano, minha mãe disse que estava tudo bem, porque o destino
não colocava nada em nosso caminho sem uma boa razão. Ela só falava do
destino. Como se fosse um ente que nos guiasse.
Já havia me cansado do destino…
— Então o destino me fez assim para ser perseguida por assassinos?
— eu questionei, ríspida.
— É uma longa história.
— Então comece a me contar!
Até eu conseguia ver o quanto sua respiração estava trêmula quando
ela sugava o ar.
— Você é uma criação do próprio Destino.
Senti-me tonta.
— Você está falando como se isto... o destino — eu disse —fosse
algo vivo.
— E de fato é — minha mãe tentou parecer calma, mas seu olhar era
de puro pânico mal contido. Acho que a verdade não a acalentava também.
— Ele é quem coordena todo o universo.
— Mas não... — Encarei minha mãe. — O que?
— Aly...
Eu me levantei rapidamente e toda a sala rodou. Minha mão tocou o
vidro frio da mesa de jantar, buscando por apoio. O frio era como um
choque contra minha pele quente de adrenalina e suada pelo nervoso. Ergui
meus olhos a tempo de ver meu pai pular para frente para me pegar,
tentando me alcançar antes que eu caísse sobre a mesa. Um som oco
explodiu em meus ouvidos. Demorou alguns segundos para eu assimilar
que era minha cabeça batendo contra o vidro.
Mãos me puxaram, mas eu estava pesada.
Minha visão escureceu.
E tudo o que pensei antes de apagar completamente era que, talvez,
a ignorância tivesse sido uma benção.
A garota que vejo em meus sonhos se parece demais comigo. Tem
meus olhos. Meu cabelo. Minha pele castanho-claro.
Eu acho que podia estar enlouquecendo.
Enquanto observo, fora do meu próprio corpo, a garota morre. Eu
morro.
Sempre achei que aconteceria em algum momento.
Mas então renasço, como uma fênix que se recusa a cair por um
tempo definitivo.
Meus pais me avisaram que meus pesadelos poderiam me tirar da
realidade.
Observo eu mesma respirar mais uma vez antes de uma adaga
incrustada por joias ser enterrada em meu peito.
Eu não acreditei em meus pais. Dizia a mim mesma que meus
sonhos não me afetavam, mesmo quando acordava suada e sem fôlego no
meio da noite.
Vejo meu peito parar de subir e descer. Vejo minha alma, como luz,
deixar esse corpo ao qual não tenho controle algum.
Mas naquele momento, acreditei neles.
Quando, segundos depois, meu corpo volta a respirar, repetindo o
mesmo acontecimento vezes após vezes, quero gritar de pura agonia porque
ele está bem ali, pronto para enfiar a lâmina em meu peito novamente.
Acreditava em meus pais, que diziam que esses sonhos iam destruir
minha mente se eu permitisse. Achava que estar louca parecia uma
explicação mais plausível do que a história que me contaram.
Acordei assustada, quase pulando da cama.
Encontrei minha mãe com as mãos no colo, onde minha cabeça
estava há um segundo atrás, e meu pai sentado no final da cama,
observando-me atentamente.
— Volte a se deitar, Aly. Você ainda está em choque — meu pai
pediu.
Balancei a cabeça, em negação.
Eu queria, mas não podia. Não dava mais para fugir ou ignorar a
verdade, porque ela havia me encurralado na floresta hoje cedo e, se não
fosse por Roman, talvez eu tivesse sido morta. Se eu soubesse e entendesse
o que estava acontecendo, talvez poderia me tornar mais do que a presa.
Talvez poderia começar a usar meus treinos para algo além de chutar alguns
sacos de areia.
— Preciso saber tudo — falei, decidida.
Meus pais se olharam. Comunicaram-se em um silêncio
tempestuoso, mas eu estava determinada a descobrir tudo. Sei que precisava
da verdade como alguém à deriva precisa de um bote salva-vidas. Esta era a
minha chance de sobreviver, a única que podia me proteger de pessoas
como as que me atacaram hoje.
Meu pai finalmente incentivou minha mãe a começar com um
sorriso fraco e um meneio de cabeça.
— Preciso que ouça, Alyssa. Muita coisa não fará sentido agora,
mas o tempo irá auxiliá-la. — Mamãe me olhou e eu assenti
veementemente. — Há quase quinze mil anos atrás, a escuridão e a luz
travaram uma batalha.
— O que você quer dizer com escuridão e luz? Como bem e mal?
Minha mãe se contentou em negar.
— Bem e mal é um termo relativo. Não é possível perceber a luz se
não houver escuridão e vice-versa. O mundo foi feito por essa divergência e
é o equilíbrio disso que o mantém funcionando.
— Isso não faz o menor sentido — murmurei.
Meu pai esticou o braço para tocar minha mão.
— Gosto de dizer que o mundo não é só preto e branco — disse. —
Escute tudo com atenção. Tudo se encaixará.
Concordei com ele e fiz um gesto para que minha mãe continuasse.
— Luz e escuridão deram origem aos mundos. Mas com o tempo,
luz e escuridão entraram em conflito. Veja bem, Aly, é preciso equilíbrio
para que os mundos não entrem em colapso. — Seus dedos tamborilaram
nervosamente em sua coxa. Ela me olhou. Percebeu minha confusão
crescente. — Nosso mundo, esta Terra, este Sol, esta dimensão, não é a
única existente. Estes animais, estas pessoas, esta natureza que vemos
aqui... não é toda a vida existente. As coisas não se resumem apenas a isso
aqui.
— Você é de outro mundo?
— Nasci neste mundo. Fui criada neste mundo — disse. — Outras
dimensões, outros mundos, não devem se encontrar. Isto acaba com o
equilíbrio das coisas, e sem equilíbrio, não somos nada mais do que mero
caos. Um pandemônio. — Minha mãe estendeu sua mão direita, seus olhos
fixos em mim. Ela abriu os dedos, mostrando sua palma lisa. — O universo
é como um plano, mas as dimensões às vezes ficam sobrepostas. — Ela
fechou a mão, as unhas fincando na palma. — Suas arestas não devem se
encontrar.
— Mas quando outras dimensões começaram a colidir com a nossa,
o Destino precisou intervir, para que o futuro não fosse prejudicado —
minha mãe continuou. — Por isso, o Destino, selecionou uma mulher de
cada continente, todas com algum diferencial, e lhes deu poderes
correspondentes à suas personalidades, assim como imortalidade, força e
magia. Assim, elas iriam manter o equilíbrio deste mundo. Essas cinco
mulheres foram abençoadas pelo Destino, mas, como sempre, nada foi dado
de graça. Devido às suas imortalidades, nenhuma destas mulheres,
poderiam conceber vida em seus ventres, seriam mãe da Terra, mas nunca
de sua própria criança. E também porque viviam para sempre, seus
relacionamentos nunca perdurariam porque não deveria haver mais nenhum
imortal nesse mundo. Mesmo assim, elas aceitaram seus destinos e foram
abençoadas. Na África, Aisha foi a escolhida. Freya, foi abençoada na
Europa. Margot, foi encontrada na Oceania quando mal se passava de um
sonho. Naomi, foi consagrada na Ásia. E Cassandra, foi a última afortunada
pelo Destino, responsável pela América. Elas, então, se tornaram as cinco
Guardiãs e receberam, alguns anos mais tarde, depois que os Protetores
surgiram, algo que deveriam guardar pelo resto de suas vidas. Os Protetores
chamam esse presente de “tesouro”, mas apenas o Destino sabe o que de
fato isso é, apesar de desconfiarmos ser algo poderoso. Tudo o que sabemos
é que devemos mantê-lo quieto e seguro, para que o equilíbrio se
mantenha.
— Como a lenda que me contou? — pergunto. — Aquela do Lago?
— Sim. Até onde sabemos, as Guardiãs se reuniram e escolheram
guardar o Tesouro no Lago, enfeitiçado por Cassandra para que fosse
mantido escondido.
Minha cabeça doía. Fiquei olhando meus pais, esperando que eles
me dissessem que estavam apenas brincando comigo. Que tudo não se
passava de uma pegadinha, porque juro que se aquilo era real... então
achava não ser capaz de distinguir a realidade da imaginação mais.
— E o Destino é como um Deus?
Para minha surpresa, foi meu pai quem respondeu.
— Na verdade, o Destino é como um escritor. Os Protetores não
rezam para ele, como humanos tendem a rezar para seus deuses, eles apenas
o respeitam. Aceitam suas palavras. — Seus dedos agitados ajeitaram o
óculos em cima do nariz reto. — Veja o Destino como aquele que coordena
luz e escuridão e, para isso, escreveu os caminhos da vida.
Fiz uma careta.
— Isso não quer dizer que você está fadada à escrita dele — minha
mãe alertou, praticamente lendo meus pensamentos. — Suas escolhas
mudam seu futuro o tempo todo, então o Destino reescreve seu caminho.
Nesse caso, suas escolhas importam, Alyssa. O fato é apenas que: nada
acontece por acaso. Ninguém é colocado em seu caminho por puro
desleixo. Tudo o que acontece tem um porquê.
— Ou seja, minhas escolhas estão limitadas à imaginação do... — a
palavra relutou em sair. — Destino.
Minha mãe desviou o olhar.
Soltei um suspiro.
— Mas se essas Guardiãs são tão fortes, por que Roman disse que
eu seria a salvadora do mundo?
— Porque aconteceu muita coisa depois da criação delas. Os
mundos se colidiram — minha mãe explicou. — Humanos começaram a ser
atormentados por monstros, mesmo que elas guardassem as fronteiras. A
Idade das Trevas não é só um apelido, Aly. Foi real. Humanos eram
massacrados por seres que conseguiam uma fresta e entravam em nosso
mundo. E todos eles queriam mais do que só causar caos. Esses monstros
queriam expandir seus reinados, para que pudessem desfazer o equilíbrio do
mundo de vez e controlar as dimensões.
Ela dizia monstros com uma facilidade e normalidade tão grande,
que me obriguei a não questionar a existência deles. Se ela dizia serem
reais, dado as circunstâncias em que me encontrava, quem era eu para
duvidar?
— Se o Tesouro é tão importante, por que não usá-lo para manter o
equilíbrio?
— O Tesouro não é bem um presente do Destino, não podemos usá-
lo ou mesmo tomá-lo de onde ele foi guardado. É como uma âncora.
Ninguém pode tirá-la de onde está, a não ser que queira que as coisas
comecem a se mover. De qualquer forma, as Guardiãs receberam-no muito
depois dos problemas que levaram à criação dos Protetores — explicou. —
E Cassandra enfeitiçou todo o Lago e todo o território que o cerca, até a
margem da floresta para mantê-lo protegido de tudo, inclusive dos
Desertores.
—Por isso Roman me trouxe de volta para casa. — Lembro-me. —
Porque eles não poderiam me alcançar aqui. Os Desertores.
— Isso — ela concorda. — Os Desertores foram banidos deste
espaço.
— Ok. — Respiro fundo. — Mas onde os Protetores entram nisso?
— Você se lembra das histórias sobre a Idade Média? — meu pai
perguntou. — Perseguição de bruxas, mortes não explicadas, pestes
dizimando populações inteiras... Um pouco antes, ainda na era dos grandes
impérios, como o romano e o grego, cidades sendo construídas em meses,
coliseus para jogos mortais se tornando entretenimento. Mesmo hoje,
depois de duas Guerras Mundiais e nações morrendo de fome... Tudo isso, é
obra do caos, causado por espécies que destroem ou manipulam os
humanos para se autodestruirem.
— Então — interferi — você está me dizendo que todo problema
humano, tudo o que há de mais cruel na humanidade, não é de fato culpa
nossa? Como, sei lá, assassinos, corruptos, racistas, homofóbicos... só
existem por causa destes outros monstros?
— Seria bom poder justificar tudo isso com as Invasões. Mas não —
minha mãe disse. — Todos nós temos bem e mal dentro de nós e alguns
humanos só são fracos demais para suprimir o lado ruim. O que seu pai
quer dizer é que, mesmo com as Guardiãs, o mundo nunca esteve
completamente sob controle. Elas são poderosas, mas são só cinco e a
maioria dos seus continentes são gigantescos. E o homem é volátil demais.
Capaz de criar, na mesma intensidade, que tem de destruir. — Ela deu um
sorriso triste para meu pai, e quase pude ouvi-la tentando deixar claro que
não se referia a ele. Meu pai, por sua vez, apenas lhe deu um leve beijo na
bochecha. — Quando as Guardiãs perceberam que não eram capazes de
controlar tudo sozinhas, decidiram criar algo que pudessem ajudá-las. Foi aí
que selecionaram um grupo de humanos, em cada continente, para serem
modificados. Elas se reuniram, com cada grupo, aqui nesse Lago e os
abençoaram... Bem, nos abençoaram com poderes. Força, agilidade,
precisão e todo o resto que um guerreiro precisaria ter. Nós estaríamos
encarregados de proteger os humanos e impedir que o caos reinasse. Por
isso, fomos chamados de Protetores. Nosso trabalho seria proteger este
mundo. Ajudar as Guardiãs a manter o equilíbrio, e interferir quando fosse
necessário.
Examinei a minha mãe. Ela não era exatamente nova, mas também
não era velha. Procurei na minha mente imagens dela quando mais nova,
mas não consegui determinar se sua aparência se manteve a mesma ou não,
com o passar dos anos.
Olhei para meu pai. Mas será que meu pai estaria com uma mulher
que nunca envelheceria?
— Você... — os olhos cor de mel da minha mãe parecem atentos a
mim. — Você também é imortal?
Ela soltou uma risada fraca.
— Não. E temo que nem você seja — disse. — Mas confesso que
sua existência ainda é um enigma.
Não sei se a ideia de ser imortal me agradaria, enquanto todos ao
meu redor, uma hora ou outra, morreriam.
— Tudo bem. Isso não me conforta nenhum pouco. — Meus dedos
massagearam minhas têmporas. — Você ainda não me explicou como entro
nessa confusão.
— Sua mãe ainda não terminou de contar a história.
— Os primeiros Protetores não existem mais, porque não somos
imortais — ela continuou. — Se a luta não nos mata, a velhice matará. Por
isso, por muitos anos, as Guardiãs incentivaram os casamentos arranjados
entre Protetores. A ideia era que gerássemos novos Protetores sem que elas
precisassem usar mágica, e nossa linhagem se tornaria mais forte com o
tempo. — Minha mãe soltou um suspiro exasperado. — Aquele primeiro
grupo de Protetores não existe mais, com exceção de uma pessoa. Um
homem, chamado Vicenzo. Ele se rebelou contra a causa, depois de enganar
Freya, a Guardiã europeia. Freya se apaixonou por Vicenzo e acreditou que
ele retribuía o sentimento. — Minha mãe revirou os olhos. — Então,
quando ele pediu que ela o tornasse imortal para que, supostamente,
ficassem juntos para sempre, Freya acreditou no amor dele e, mesmo
sabendo que era errado, lhe concedeu a imortalidade, o que quase a matou.
— Deixa eu adivinhar — eu disse, prevendo o final da história. —
Ele não estava tão apaixonado assim.
— Não, não estava — minha mãe confirmou. Homens. — Vicenzo,
sempre foi um homem ambicioso e sempre disse que os Protetores
mereciam mais do que tinham. Mereciam ser mais poderosos, assim como
as Guardiãs eram. Mas ele nunca levou em consideração, os sacrifícios que
elas precisaram fazer. — Ficou bem claro, que contar esta história irritava
minha mãe quando ela praticamente rosnava a cada frase. — De qualquer
forma, ele se rebelou contra todos os seus irmãos Protetores, principalmente
quando eles não quiseram ficar ao seu lado. Nesse momento, Freya
percebeu as intenções de Vicenzo e o baniu. Foi assim que surgiu o
primeiro Desertor da história.
— Por que ela não o matou?
— Porque não é possível matar um imortal. Não um como ele, que
recebeu a essência de uma Guardiã. Freya não foi capaz de compartilhar
todos os seus poderes mágicos com ele, mas quase o transformou em um
Guardião. E isso destruiu o equilíbrio. Quando Vicenzo fugiu, ela o
encontrou e criou uma prisão em Florença para ele, pensando que
conseguiria mantê-lo recluso para sempre, mas Vicenzo se libertou um
século mais tarde e tomou a cidade para si. De toda a Europa, Florença é a
única cidade dominada por Desertores, e a única que Freya não possui
controle algum sobre.
“Ele passou anos isolado, enquanto as histórias a seu respeito só
aumentavam. Quando se libertou, Vicenzo encontrou e manipulou
Protetores suscetíveis às suas ideias, aumentando o número de Desertores.
Aos poucos, a luta dos Protetores se transformou em uma causa muito
maior. Estávamos indo a guerras pelos humanos ao mesmo tempo que
tentavamos derrotar Desertores por todo o globo. Como incentivo, Vicenzo
prometeu que encontraria uma forma de dar-lhes imortalidade, como havia
sido concedido a ele. Ainda não conseguiu encontrar um meio, mas acha
que o Tesouro, poderia ser a chave para isso.”
—Vicenzo conseguiu a imortalidade, por que não ficou satisfeito?
— O homem é escravo de sua ambição — meu pai disse. —Vicenzo
queria ser mais do que a mulher que o baniu por anos. Ele não quer só ser
poderoso, quer ser o mais poderoso de todos. E poder só é poder quando
você o exerce em alguém. Por isso, quanto mais Protetores deixavam a
causa e se tornavam Desertores ao seu lado, mais ele se sentia no direito de
tomar do mundo.
— Então ele decidiu que iria destruir o Destino usando o Tesouro —
minha mãe completa.
Minha cabeça deu um nó completo.
— Espere aí. Você está me dizendo que ele quer destruir o Destino?
O Destino é algo que pode ser tocado, algo que pode ser morto?
— O Destino é energia. Eu não tenho ideia de como ele pretende
fazer isso, como espera que funcione, mesmo se conseguir roubar o
Tesouro. Mas isso não vem ao caso agora. — Ela balançou a cabeça. — O
problema, então, era que não podíamos matá-lo. Por isso, as Guardiãs se
reuniram e imploraram para que o Destino as ajudassem a criar uma arma,
algo que pudesse matar Vicenzo de vez. O Destino, porém, estava irado
com Freya pela sua fraqueza, por ter sido tão facilmente manipulada, mas
aceitou ajudá-las. Afinal, a ameaça estava prejudicando-o também.
— Só que o Destino é um serzinho muito cruel — meu pai
comentou vagamente.
— Ele não deu uma arma às Guardiãs. — Os olhos da minha mãe
travaram nos meus. — Ele deu uma profecia. Essa profecia dizia que
haveria alguém capaz de usar escuridão e luz para controlar e governar os
mundos, controlando tanto poder quanto era possível e, assim, matar
Vicenzo. Alguém poderosa. O problema é que o Destino esqueceu de avisar
sobre quem a profecia se referia. Mas logo as Guardiãs descobriram um
bebê, uma menina, predestinada a cumprir a profecia.
Um bebê. Seria cômico, se não fosse completamente trágico.
— Então eu sou esse bebê? — pergunto, insegura.
— Não exatamente. Seu nome era Francesca, a primeira Fidly.
Outra coisa que o Destino só informou as Guardiãs mais tarde, é que a
criança da profecia, iria nascer como qualquer outro humano e só receberia
seus poderes ao completar dezoito anos.
— Por isso aquele homem apareceu na madrugada, noites atrás, e
disse que eu precisava de proteção mais do que nunca? Porque estou quase
atingindo a maioridade e isso significa que Vicenzo me quer morta mais do
que nunca — deduzi.
Eu tinha menos de seis meses. Era este o tempo que podia me restar,
caso eu não sobrevivesse para meu décimo oitavo aniversário.
Meus pais apenas balançaram a cabeça, em concordância.
— Ele matou todas as outras? — perguntei.
— Sim.
Ah, merda.
Acho que meu pai viu o pânico nos meus olhos, porque ele se
apressou em dizer:
— Mas nenhuma nunca chegou tão longe quanto você, filha. Faltam
poucos meses para seu aniversário de dezoito. As coisas ficarão bem.
— Você não é como as outras. Mesmo Diana viveu apenas até seus
dezesseis anos — minha mãe disse, a voz firme.
— Diana? A mulher que você citou na discussão? Ela era como eu?
— Diana era uma Fidly, sim, mas não teve as mesmas chances que
você.
Será que era a mesma Diana do caderno que encontrei no porão do
vizinho? Apostava que sim, mas não sabia se aguentava perguntar mais
sobre aquilo.
— O Destino planejou ferrar vocês? — Eu estava irritada, mas não
conseguia distinguir por qual razão específica. Eram muitas. — Por que ele
fez isso? Por que não me dar uma chance real? Na verdade, ele deveria ter
dado uma chance real para a primeira garota que acabou sendo fadada à
morte.
— Você não vai morrer — meu pai afirmou, firme e inabalável.
Eu não podia deixar de imaginar, como será sua vida depois que eu
me for. Como ele e mamãe continuariam? Depois de um tempo irão
simplesmente esquecer? Talvez tivessem tido tempo suficiente para se
preparar para o inevitável, mesmo que não admitissem. Eu não achava que
podia ser a exceção dentre milhares de outras garotas com o mesmo destino
que o meu.
Olhei para minha mãe, cabelos castanhos escuros, lisos, envolvendo
seu rosto comprido e com maçãs do rosto proeminentes. Então, olhei para
meu pai, a ansiedade que ele tanto tentava esconder escorrendo do seu olhar
perturbado.
— Então por que estão com tanto medo? — perguntei, enfim.
Passei tanto tempo sozinha que a solidão se tornou uma amiga
egoísta. Passava meus dias encolhida em um canto da casa, com algum
livro em mãos. Ou lá fora, deitada sobre o tablado, observando o céu azul e
a água mais azul ainda. Nunca perto demais da floresta — aquele lugar
parecia arruinado para mim agora. E mesmo que meus pais tentassem me
incluir em alguma atividade, mesmo que tentassem me distrair com livros e
filmes, ainda assim, eu era como uma mobília nessa grande casa. Esquecida
e vagamente utilizada. Era somente o eco de uma pessoa, só uma lembrança
do que a vida deveria ser.
Mesmo agora, depois de saber a verdade sobre o porquê de meus
pais terem me levado de um lugar para o outro durante dez anos, meu maior
medo, ainda não era a morte, mesmo que eu preferisse evitar aquela linha
de terra coberta de árvores. Meu maior medo, era não viver. Porque o que
eu fazia era apenas sobreviver, o que fazia ainda mais sentido agora que eu
sabia a verdade. E me peguei pensando, tentando me lembrar de alguma
ocasião, algum acontecimento que pudesse ter feito meu sangue borbulhar,
meu coração disparar de alegria, mas não conseguia me lembrar da última
vez que experimentei algo que pudesse me fazer sentir minimamente viva.
Com o coração batendo forte no peito, o sangue correndo quente nas veias,
a mente à mil... Não, não me lembrava.
Irônico o suficiente, o ataque na floresta foi o mais próximo de
sentir meu corpo alerta, e me lembrar que o sangue ainda corria em minhas
veias. Que meu coração ainda batia ruidosamente. Provavelmente porque
este mesmo coração estava sendo ameaçado, depois de tanto tempo presa
em meio ao silêncio e à segurança.
Pensamento perturbador.
Ontem meus pais passaram horas falando sobre os motivos de cada
mudança nossa, o que sempre estava relacionado à movimentação de
Desertores perto demais de onde estávamos. Quando perguntei por que
saímos daqui em primeiro lugar, já que a casa era protegida, minha mãe se
limitou a dizer que tinha medo que Vicenzo encontrasse uma maneira de
quebrar o feitiço que protegia esse território. Eles também me contaram que
a sede dos Protetores ficava há poucos minutos de distância da nossa casa e
que minha mãe deixou de viver com os guerreiros que uma vez foram
chamados de irmãos, depois de conhecer meu pai.
Aparentemente, os Protetores não ficaram muito felizes por ela ter
escolhido um humano para se casar ao invés de um Protetor. Mas minha
mãe não deu a mínima para isso.
Ela acabou não falando muito sobre Diana, não sei se porque eram
próximas e doía se lembrar dela ou se não queria me apavorar contando
sobre como a última Fidly foi morta. E àquela hora, eu também já estava
cansada demais para insistir no assunto, então acabei indo dormir antes das
dez da noite.
E agora eu estava fitando o teto do meu quarto, inerte demais para
me movimentar para fora desta cama. Meu pesadelo desta vez foi mais
sangrento e cruel do que os outros e não consegui me fazer acordar até que
estivesse acabado. Eu não tinha certeza, mas desconfiava que esses sonhos
estavam relacionados com a morte das outras Fidlys. Na verdade, mesmo
que eu não quisesse admitir em voz alta, estou muito certa de que eram isso
mesmo. Talvez até fosse o meu subconsciente querendo deixar claro que eu
não tinha chance alguma, usando qualquer que fosse a ligação sobrenatural
que eu compartilhava com aquelas outras garotas. Se todas antes de mim
morreram, por que eu seria exceção? O que fazia de mim tão especial a
ponto do Destino ter misericórdia?
E por que, se o Destino era tão poderoso e engenhoso como me
disseram, não orquestrava para que a Fidly fosse bem-sucedida? Por que
insistir nessa eterna repetição?
Fidly nasce. Fidly morre. — Tudo antes de conseguir matar
Vicenzo.
Ótimo.
Agora eu estava irritada porque iria morrer sem nunca ter feito um
bendito amigo ou ido a uma maldita festa. Sem nunca nem ter me
apaixonado.
Bem, eu tive uma amiga, Serena, quando eu vivia em Nova Orleans.
Ela até conseguiu convencer meus pais a deixar que eu fosse a um
restaurante com ela. E ela era uma boa amiga. Mas desde que vim para cá,
nunca mais trocamos mensagens. Seria perda de tempo tentar manter
contato com alguém que eu nunca mais veria.
Mas fora essa breve amizade, eu nunca nem tive a chance de
conhecer novas pessoas. Nunca tive a chance de me apaixonar. Nunca nem
mesmo beijei alguém.
Vou morrer triste, sozinha e virgem.
Horror tomou conta de mim. Tampei o rosto com as mãos, tentando
conter um grunhido.
Ah, Deus, eu vou morrer virgem.

Quando finalmente tomei coragem para sair da cama, já havia


passado da hora do almoço. Meu pai estava sentado em nossa varanda, de
frente para o Lago. Não soube dizer se estava olhando a paisagem ou se
estava perdido em pensamentos. Minha mãe, no entanto, estava na cozinha,
provavelmente me esperando. Pelo que entendi, ela podia ouvir melhor que
meu pai que era “só” humano.
— Bom dia.
Murmurei alguma coisa em resposta e comecei a fazer um
sanduíche para mim.
— Dormiu bem? — ela insistiu na conversa.
— Não.
— Pesadelo? — perguntou.
Apenas assenti.
— Aparentemente o Destino quer fazer das minhas noites uma
merda também.
— Você está brava — percebeu, os olhos cravados em mim,
esperando que eu surtasse novamente.
Virei-me para ela, com meio pão em uma das mãos.
— Não, mãe, não estou brava. Eu estou puta da vida.
— Comigo?
— Entre outras coisas, sim. — Dei uma mordida no pão, mas meu
apetite também estava horrível. Passar a noite vendo pessoas sendo mortas
fazia isso com meu estômago. — Você mentiu para mim a vida toda, ao
invés de tentar ser sincera e permitir que eu, pelo menos, vivesse um pouco
antes de ser assassinada. E eu não posso nem mesmo ter uma noite de paz,
porque fico tendo sonhos com garotas sendo mortas, o que estou bastante
certa de ter algo a ver com as outras Fidlys.
— Pare de falar assim — ela me repreendeu. — Você não vai ser
assassinada por ninguém.
— Eu só estou dizendo que eu queria ter tido algum tempo para
viver. O que eu estou fazendo? Não é vida. Estou isolada mãe. Sozinha.
Passei a vida toda sozinha. E não quero viver o resto dela assim também.
— Você não vai ser assassinada — ela repetiu, furiosa. — Fiz tudo
isso para te manter segura e funcionou. E pode ter certeza que, se for para
manter minha filha viva, faria novamente. Além do mais, você não está
sozinha. Tem a mim e a seu pai.
Me joguei no encosto da cadeira bufando.
— Eu sei — eu disse a contragosto. — Entendo sua intenção. Não
concordo, mas entendo. Sei que você quer que eu sobreviva.
Reparei na lágrima solitária que escorreu pelo rosto dela, antes que
ela se apressasse para limpá-la. Na soleira da porta, meu pai estava imóvel,
observando nossa conversa, como se soubesse que não deveria se
intrometer, que era necessário que eu e minha mãe conversássemos.
Eu entendia porque minha mãe era tão forte e firme em suas
atitudes. Ela era uma guerreira. Foi treinada para se manter forte, mesmo
frente às piores situações. Não demonstrar fraqueza. Mas, por mais que ela
se esforçasse, estava claro que eu era a exceção. Eu era sua fraqueza.
Devia ser uma merda saber que sua filha está sendo caçada.
Ela se levantou da mesa, colocou meus cabelos para trás do meu
ombro em um gesto carinhoso, e disse:
— Treino em 30 minutos.
Já não estávamos mais abrindo nossos corações e minha mãe não
estava mais mostrando seu lado emocional.
Muito pelo contrário. Ela era pura energia voltada para disparar
golpes precisos e nem um pouco descontraídos. Ela estava pegando pesado
hoje e sabia muito bem disso. Ela gritava ordens curtas e duras para que eu
atacasse, enquanto se mantinha na defensiva. Normalmente, ela fazia o
ataque e eu a defesa. Aparentemente, isso já não era mais suficiente.
— Mais rápido!
Para eu ir mais rápido eu precisaria do dom que ela possuía, mas ela
não parecia estar se lembrando que eu não era uma Protetora, enquanto
obviamente, usava de todo o seu potencial.
— Ataque, Alyssa! — ela gritou mais alto. — Quanto tempo você
pretende durar em uma luta em que só bloqueia os golpes?
Eu me lembrava muito bem de não ter feito quase nada no dia do
ataque. Se não fosse por Roman, eu provavelmente teria sido morta.
Finalmente havia percebido a grande diferença entre lutar com alguém que
conheço e que tenho certeza de que não me machucaria de verdade, e lutar
contra uma ameaça real.
— Você está esquecendo de proteger o rosto quando golpeia! — ela
informou. — Erga os ombros!
Eu já estava cansada. Meus músculos pareciam pesados e estavam
doloridos. Além disso, já estava chato ouvir o quanto eu falhava.
Minha mãe demonstrou um golpe, chamando minha atenção para a
posição das minhas pernas. Eu deveria imitá-la, então o fiz.
— Melhor, mas ainda não está perfeito.
Claro que não.
Nós dançamos pelo gramado. Meus pés ágeis e treinados não eram
nada comparados aos dela. Uma mão tentou me alcançar, mas eu desviei
para o lado. Um pé encontrou minhas costelas, mas eu recebi o golpe com o
corpo meio curvado e, por isso, não senti toda a dor que poderia me causar.
Mas minha mãe era uma guerreira. E, rápida como uma serpente, ela lançou
um gancho de direita que atingiu o meu queixo tão forte, que fui jogada
para trás.
— Jasmine! — meu pai rugiu, correndo pelo gramado até nós.
Ele me ajudou a ficar de pé.
Eu usei minha mão direita para segurar meu queixo que pulsava de
dor e logo ficaria inchado. Ergui meus olhos para minha mãe, tentando ver
que merda havia dado nela.
Jasmine, no entanto, parecia não entender a irritação toda. Suas
mãos estavam nos quadris, encarando meu pai, sem um pingo de remorso.
— O que?
— Você sabe muito bem “o que”! — meu pai rebateu. Ele era
sempre a calma da família e podia contar nos dedos quantas vezes ele
chegou a gritar com a minha mãe. Aquilo, bem ali, não seria mais do que o
quinto dedo erguido. — Esta não foi uma luta justa e você sabe. Poderia ter
machucado ela.
— Nenhuma luta é justa, Henry. Você já deveria saber disso. — Ela
apontou para mim. — Os Desertores não serão bondosos com ela. Em seus
piores dias, ainda não teriam dado todas as chances que dei a ela hoje. —
Seus olhos me examinaram de cima a baixo. — E ela ainda teria perdido.
Cerrei o punho.
— Bem, me desculpe por não ter super força. Ou super agilidade.
Minha mãe cerrou os olhos para mim então.
— Me desculpe por querer que você sobreviva.
Revirei os olhos.
— Como se essa vida fosse uma opção mil vezes melhor.
Os dois voltaram a me olhar, chocados com as palavras que saíram
pela minha boca.
Dei meia volta e bati os pés para longe deles.
Não sabia se realmente queria dizer aquilo, mas foi o que saiu na
hora da raiva. Eu tinha noção de que minha vida era boa. Pelo amor de
Deus, haviam crianças passando fome neste mundo! E eu estou aqui, um
teto sobre a minha cabeça e comida para me satisfazer, e mesmo assim
estava reclamando.
— Alyssa — a voz do meu pai me chamou, logo atrás de mim, mas
eu o ignorei e continuei andando.
Só parei quando cheguei no meu quarto e fui capaz de trancar a
porta.
Porque eu não iria me desculpar. Não vou pedir desculpas por
querer mais do que viver escondida. Não dessa vez.
Três dias inteiros se passaram desde o ataque. As coisas estavam tão
calmas que comecei a duvidar que toda essa história de ser a Fidly e ter
Desertores atrás de mim fosse verdade. Não vi mais nenhum Protetor além
da minha mãe e Roman (naquela única vez que apareceu).
Mas talvez algum desses Protetores dessem as caras hoje. Meus pais
acabaram de anunciar que precisarão ir à cidade pegar algumas coisas e
imagino que alguém fique por perto para bancar a babá. Eles não disseram
o que iriam fazer e eu não estava interessada o suficiente para perguntar. Na
verdade, desde o treino em que minha mãe surtou, não questionava muito
mais. Estava exausta de brigar.
Ainda não havia caído a ficha de que eu estava sendo perseguida por
um louco e sua horda.
Minha mãe pediu para que eu seguisse com a minha vida
normalmente, então era o que estava fazendo naquele exato momento.
Assim que eles deixaram a casa, eu me estiquei no sofá e escolhi um filme.
Comédia romântica. Minha vida já tinha drama demais por enquanto, e
romance de menos.
Já estava assistindo a parte onde os melhores amigos quase se
beijavam, quando um barulho me fez pular do sofá. Meu coração já estava
martelando contra meu peito, enquanto a adrenalina aquecia meu sangue, e
tudo o que conseguia pensar era que os Desertores não poderiam chegar
aqui. A porta da sala se abriu e eu já estava com o abajur nas mãos para
jogar no intruso, quando vi uma cabeça cheia de tranças. Gritei tão alto que
a intrusa colocou as mãos sobre os ouvidos para tapar o som.
— Ei! Você não era tão escandalosa antes!
Serena estava na minha frente, exatamente como me lembrava dela.
Os olhos castanhos combinando com a pele negra, e seus cabelos eram
simplesmente maravilhosos, indo até o final da sua cintura em tranças Box,
agora presas em um rabo de cavalo.
— Aly, você pode soltar o abajur agora.
Deixei o abajur na mesinha e corri para abraçá-la.
Minha amiga — a única que já tive — me envolveu em um abraço
caloroso.
— O que você está fazendo aqui?
Quando me afastei, tomei um tempo para observá-la e reparei suas
roupas. Roupas de couro. Cinto com coisas estranhas penduradas. Ela era a
própria encarnação de uma guerreira. As mãos envoltas por socos ingleses
negros reluzentes era uma grande indicação disso. O que aquilo significava
estava lentamente se estabilizando em meu cérebro.
Isso explicaria como ela me encontrou aqui, no meio do nada.
— Não — protestei. — Você é um deles?
Serena deu de ombros.
— Sou do time do bem, se isso te conforta.
Afastei-me dela.
Como fui ingênua!
— Você se aproximou de mim em Nova Orleans por que precisava
me proteger?
Tentei me lembrar da primeira vez que nos vimos. Meus pais tinham
me dito para ficar em casa e que logo estariam de volta, mas eu queria
comer alguma coisa, então decidi ir ao supermercado comprar algo. Eu vi
Serena pela primeira vez no corredor de frios, quando ela começou a puxar
assunto comigo, falando como minhas botas eram bonitas. Depois, me
acompanhou até em casa. Por um segundo, achei que estivesse dando em
cima de mim, mas ela logo deixou claro que tinha se mudado há pouco
tempo e só queria uma amiga.
Olhei para Serena. Ela parecia preocupada, mas não disse nada e
isso era resposta o suficiente.
— Você me seguiu aquele dia. Fez amizade comigo porque tornaria
seu trabalho mais fácil — deduzi.
Ela negou rapidamente.
— Fiz amizade com você porque achei você legal — disse. — Eu
poderia me encarregar de proteger você de longe, como todos os outros, se
você fosse insuportável.
Outros? Eu nunca vi mais ninguém. Mas, bem, também não tinha
visto Roman até ele precisar me salvar.
— Como você pode ficar encarregada de me proteger? — perguntei,
indignada. — Você tem a minha idade!
Ela contornou o sofá e se sentou com um aceno de cabeça. Pegou o
balde de pipoca que eu estava comendo há três minutos atrás e esticou as
pernas sobre a mesa de centro.
— Nós recebemos treinamento até os dezesseis anos, quando nos
tornamos — ela fez aspas no ar —“maiores de idade”. O que quer dizer que
tenho dois anos de experiência. — Ela deu um tapinha no espaço ao lado
dela no sofá. — Relaxe, se algum idiota aparecer aqui, sou completamente
capaz de chutar a bunda dele.
Continuei parada onde estava.
— Por que não me contou a verdade?
— Recebi ordens para não dizer nada. Sua mãe ameaçou cortar
contato com o Outro Lado se contássemos a você.
— Roman me contou a verdade — rebati. — Outro lado? —
acrescentei, um ponto de interrogação enorme em minha expressão.
— Outro Lado é como chamamos nossa casa. A casa dos Protetores.
— Ela sorriu. — E, bem, Roman é um cara diferente. — Ela deu de
ombros. — E não tinha muito mais como esconder, sendo que você tinha
visto com os próprios olhos.
Serena parecia tão calma que pensei em gritar com ela. Nem parecia
que eu estava descobrindo, aos poucos, que a minha vida toda foi uma
mentira.
Mesmo assim, ela parecia a mesma garota que conheci no
supermercado. Despojada, mas discreta. Minha única amiga. Por isso vou
até o sofá e me sento ao seu lado.
— Você disse que minha mãe ameaçou cortar contato com a Sede.
Ela vai muito lá?
Minha amiga negou, ainda observando o filme que se passava na
televisão.
— Não. Acho que desde que foi embora não voltou a pisar lá. —
Ela bateu o dedo indicador na têmpora. — Nós Protetores temos uma linha
de comunicação direta. Bem, se você manter essa linha aberta.
Eu estou de boca aberta. Como uma idiota.
— Você está me dizendo que vocês conseguem se falar pela mente?
— minha voz estava estridente, mas não consegui evitar.
Ela assentiu.
— Isso mesmo. Quando completamos o treinamento aos 16 anos,
aprendemos como utilizar a nossa mente para nos comunicar. E como
“abrir” e “fechar” a mente quando necessário.
— Você consegue ler a minha mente?
Ela riu.
— Claro que não. Eu posso me comunicar com outros Protetores, só
isso. E mesmo assim, preciso que eles estejam com a mente “aberta”. —
Ela fez aspas no ar. — Mas não posso ler mentes. Não sou telepata. Só
podemos nos comunicar assim porque é um dos nossos dons, mas não
funciona com quem não é Protetor.
Eu não tinha pensado a respeito, mas só podia ter sido assim que a
minha mãe soube sobre o ataque. Quando eu e Roman chegamos à casa, eu
não liguei para ela. E durante todo o caminho até aqui, ele ficou com um
olhar distante, como se estivesse perdido em pensamentos, inclusive insistiu
para que eu não falasse, como se precisasse se concentrar.
Perdido em uma conversa mental.
— Se continuar puxando seus cabelos assim, vai acabar careca. —
Serena zombou.
Mal tinha percebido que estava puxando meus cabelos. Bufei. O
mundo estava bagunçado demais.
— Ok, esse filme não presta. — Ela fez uma careta para a TV. —
Vamos fazer alguma coisa legal.
Ela se levantou em um pulo e andou até a porta.
— Achei que eu não pudesse sair de casa.
— Você não pode sair do território do Lago. — Ela deu de ombros.
— Ninguém especificou que deveria ficar trancafiada dentro desta casa.

À nossa frente, o Lago se estendia majestoso. Aquele era o lugar


mais lindo de todo o mundo. As grandes pedras distribuídas pelas áreas
mais rasas eram como pontos espalhados pelo azul límpido e claro. Sob
nossos pés, pequenas pedras se misturavam à areia, formando a costa.
Agachei-me ao lado de Serena e afundei minha mão direita na leve
correnteza.
— Os dias finalmente estão ficando mais quentes — Serena
murmurou, tocando a água com a ponta dos dedos.
Nadei algumas vezes desde que cheguei, mas dessa vez, quando
toquei a água, era como se ela cantasse para mim. Não sabia dizer se era por
causa de quem eu era e talvez algo que o Tesouro pudesse estar fazendo.
Quem sabe fosse apenas a minha cabeça inventando coisas, já que agora
havia mais informações para alimentar minha já existente imaginação.
Mas parecia diferente. Como se a verdade tivesse destrancado um
pedaço do mundo que até então estava oculto para mim.
— Acho que são suas roupas — eu disse. — Couro não deve ser
muito fresco.
Ela me deu um empurrão de brincadeira.
— Eu estou aqui a trabalho, ok? É meu uniforme.
— Você não usava essa coisa em Nova Orleans.
Serena riu.
— Eu estava disfarçada.
Revirei os olhos.
— Ótimo trabalho.
Mas Serena não ouviu o que eu disse. Seus olhos estavam fixos em
um ponto perto de uma das inúmeras trilhas que passavam pela floresta.
Não estávamos próximas da linha que dividia o território protegido, mas
havia algumas árvores que faziam um caminho para trilhas onde turistas
costumavam percorrer até encontrar uma cachoeira mais para o leste.
Ela colocou o dedo sobre os lábios, indicando que eu ficasse quieta.
Os Desertores não podiam chegar até aqui, podiam? Ainda era a
zona protegida. A não ser que tenham quebrado o feitiço, como minha mãe
temia.
Mas Serena bufou asperamente e relaxou os ombros.
— Você é um idiota espionando a vida alheia — ela gritou para as
árvores.
Fiquei um tempo sem entender, até que uma figura alta e vestida
com o mesmo tipo de couro da minha amiga saiu da trilha e apareceu perto
do Lago.
Hum, ele era bonito.
Não tinha reparado muito antes porque estava ocupada demais
surtando com todas as informações, mas ele era. Bem bonito. Alto e forte
com um olhar sério, quase triste.
— Acontece que espionar é o meu trabalho — Roman disse, se
aproximando com passos largos.
— Não hoje — Serena retrucou, cruzando os braços sobre o peito.
— Hoje eu estou encarregada de cuidar dela.
Suspirei.
— Eu estou bem aqui, sabia?
Roman me lançou um longo olhar.
— Bom te ver de novo, Alyssa.
Engoli em seco por causa dos seus olhos atentos sobre mim.
— Oi, Roman.
Ainda me lembrava de como observei o corpo do homem morto.
Um homem que ele matou. Mas também me lembrava que ele o havia
matado para me salvar. Era algo com que eu ainda estava tentando me
acostumar: aquela dualidade entre matar ou morrer.
Serena observou o intruso. Ela parecia bastante intimidadora.
— Ei, você pode ir andando. Não preciso de você me ajudando.
Estamos ótimas, obrigada.
Roman nem se preocupou com o pedido. Aliás, chamar aquilo de
pedido poderia ser um eufemismo muito grande, era mais uma ordem do
que qualquer outra coisa.
— Estou entediado e a sede está uma loucura. — Ele deu de ombros
e, apesar de suas palavras, seu rosto era pura seriedade. — Vocês vão ter
que me aguentar por um tempo.
— O que está acontecendo lá? — A curiosidade me venceu.
— Seus pais estão tendo uma bela de uma discussão com Ravenna,
o que, em geral, me entretería, mas aquela mulher está me dando nos nervos
hoje, mais do que o usual.
— Meus pais estão lá? Eles disseram que iam à cidade.
Roman mordeu o lábio, desviando o olhar para Serena.
— Boa, garotão. Você é ótimo em manter segredo. — Serena deu
um soco em seu estômago.
E não foi um soco leve.
— Ninguém me disse que ela não sabia! — Ele passou os dedos
pelo cabelo comprido e sedoso, endireitando o corpo, enquanto colocava
uma mecha marrom atrás da orelha. — Talvez devessem parar de mentir.
Ali estava algo em que concordávamos.
Peguei uma pedrinha e a lancei com toda a minha força no Lago.
Imaginei as cabeças dos meus pais como alvo.
— Quem é Ravenna? — perguntei, irritada.
— A líder dos Protetores daqui — Serena explicou.
— Um ser humano desprezível — Roman anunciou ao mesmo
tempo.
Minha amiga lançou um olhar de reprovação para ele.
— Achei que vocês eram os bonzinhos da história.
— Não é porque lutamos do lado certo que somos todos
maravilhosos — ele retrucou. — Não somos anjos, Alyssa. Quando
conhecer mais de nós, irá entender melhor o que quero dizer.
Serena tentou mudar de assunto observando a cor da água, mas nem
eu nem Roman prestamos atenção. De todos em minha vida, atualmente, ele
era o único que não mentia ou omitia coisas de mim. Nem mesmo Serena,
revelava tudo. Mas Roman sim. O garoto não parecia ter filtro e muito
menos se importar com isso. Por isso, aproveitei sua presença para me
informar melhor.
— É por isso que foram lá? Para discutir quando vou encontrá-la?
Ele assentiu, distraído com o Lago e as pedras que eu jogava.
— Ravenna quer que você fique com a gente no Outro Lado, mas
seus pais não querem ceder.
— Roman! —Serena tentou calá-lo.
Lancei um olhar frio e indignado a ela.
— Se você é mesmo minha amiga não deveria estar me escondendo
coisas — disse. — Já há pessoas o suficiente mentindo para mim.
Ela pareceu magoada.
— Só estou seguindo ordens.
— Algumas ordens são ridículas —Roman disse, e eu não poderia
concordar mais.
Isso tudo era muito ridículo. Se eu já sabia a verdade, por que não
compartilhar tudo de uma vez?
— Eu não sei se quero ir para a sede. Estou bem aqui. Se eles não
podem entrar no território da minha casa, por que eu deveria ir para outro
lugar?
— O feitiço sobre a sede é maior. Ninguém que não tem a marca ou
a tatuagem pode passar pelas barreiras sem ser convidado — Serena
explica. — Por isso que muitos acham melhor que você fique lá.
Tatuagem?
Minha mãe tem uma tatuagem. Na base das costas. Parecia chamas
tribais. Nunca tinha reparado muito, até porque ela não exibia as costas
nuas com muita frequência. Aquela devia ser a marca dos Protetores.
Enquanto eu havia nascido com a minha, eles precisavam tatuar a deles.
Observei o pulso esquerdo de Serena. Havia um pedaço de desenho
em tinta preta ali. Eu não podia ver melhor, por causa da blusa de manga
longa, mas já tinha reparado uma vez em Nova Orleans, só nunca associei a
dela com a da minha mãe. Apesar de reconhecer o formato das chamas, o
desenho era diferente e menor.
— Não quero ficar trancafiada naquele lugar — me peguei dizendo,
mas meus olhos estavam percorrendo a pele exposta de Roman para
encontrar alguma tatuagem. Mas a maior parte do seu corpo estava coberta
pelo uniforme de couro.
— Eu entendo.
Os olhos castanhos de Roman pareciam tristes. Todas as duas vezes
em que nos encontramos, era como se houvesse uma marca triste em sua
expressão. Aparentemente, a casa dos Protetores não era seu lugar favorito
também.
Minha amiga passou os braços por cima dos meus ombros.
— Vamos resolver isso. Não se preocupe.
Lutei contra a vontade de revirar os olhos, porque todo mundo
achava que podia me dizer como me sentir. Como reagir. Se eu pudesse
controlar minhas emoções, não sentiria metade das coisas que perturbavam
minha paz interior, incessantemente. Começando com as emoções trazidas
pelos pesadelos.
Então, passamos horas andando e conversando. Na verdade, eu e
Serena conversamos e Roman só comentava uma coisa aqui e outra ali. Ela
me contou sobre como foi designada para ir até Nova Orleans ser minha
Protetora e como isso foi uma honra. Não entendia o porquê, mas achei fofo
o fato dela se sentir honrada por algo assim. Roman, por outro lado,
explicou que só foi designado para a minha proteção quando cheguei ao
Lago e que nunca tinha me visto antes.
Eu notei que ele me olhava bastante e, talvez, se eu tivesse alguma
experiência com aspectos sociais, eu saberia dizer o porquê. Mas eu sou
burra como uma porta quando se tratava de pessoas.
Burra e incapaz de formular conversas que fizessem sentido. Antes
que eu pudesse me parar, olhei para ele e perguntei:
— Onde fica a sua tatuagem?
Não sei por que estou tão curiosa, mas queria muito saber onde ele
marcara a pele para sempre.
— No meu braço.
— Hum.
Serena puxou a manga da blusa dela e me mostrou as próprias
chamas que subiam pelo seu pulso até a metade do antebraço.
— Fazer as tatuagens é definitivamente o momento mais incrível da
nossa formatura. Temos todo um ritual e pelo menos uma das Guardiãs
costuma estar presente. — Ela olhou para Roman, sorrindo abertamente. —
Você lembra daquele garoto que chorou porque não queria pintar o corpo?
Roman assentiu com um sorriso contido.
— Benjamin — lembrou-se. — Acho que se mudou para a Ásia
depois, justamente por causa daquele vexame.
Serena gargalhou.
— Dizem que Ravenna cobriu toda a coxa direita com as chamas —
Serena contou. — Deve ter sido muito doloroso.
— Por que chamas? —perguntei, ignorando seu comentário sobre a
mulher que eu sabia estar debatendo sobre meu futuro, agora mesmo.
— Porque fomos forjados no fogo.
Meu corpo travou no meio do caminho. Virei para encarar Roman,
boquiaberta.
— O que?
— Os Protetores foram forjados em fogo — Serena explicou. —
Não necessariamente nós, porque somos apenas descendentes dos primeiros
Protetores, os quais realmente foram forjados.
— Pelo que nos contam, a energia das Guardiãs gerou o fogo
necessário para nos abençoar com poderes — Roman confirmou.
Engoli em seco.
— Fogo de verdade?
Serena deu de ombros e Roman voltou a andar, totalmente
desinteressado.
— É o que dizem as histórias.
Seguimos Roman em passos leves. Fiquei observando meus amigos.
Bem, acho que podia chamá-los assim. Isto que temos poderia muito bem
ser considerado um tipo de amizade, certo?
Escolhi pensar que sim.
Observei seus corpos reforçados por músculos. Fui treinada a minha
vida inteira e não tinha aquele tipo de corpo, o que me diz que o
treinamento deles era, provavelmente, dez vezes pior. Sua postura atenta,
ombros tensionados, mesmo estando em território neutro, era apenas o
indício de histórias que eu mal podia imaginar. Quantas vezes Roman
precisou matar? E Serena? Quantas vezes foram atacados? Quantas vezes
tiveram suas vidas ameaçadas por este mundo que ainda não entendia
direito? Quantas cicatrizes suas roupas cobriam? Teriam sido forjados por
um tipo diferente de fogo e nem se deram conta?
Eu iria ser forjada também?

Naquela mesma noite, tanto Roman quanto Serena foram embora


logo que meus pais chegaram. Nosso dia se resumiu em andar pelo Lago,
com eles me contando histórias sobre suas aventuras, até que começou a
chover e tivemos que vir para a casa, onde jogamos Monopoly. — Em que
eles eram completamente horríveis, mesmo depois de eu explicar duas
vezes as regras. Mais tarde, Jasmine e Henry entraram pela porta parecendo
dois fantasmas.
— Vocês mentiram de novo — disparei, assim que seus pés tocaram
a soleira.
Minha mãe tirou o casaco molhado com um suspiro profundo.
— Nós não sabíamos o que dizer, Aly — meu pai disse, enquanto
colocava água para ferver. Eu acho que ele realmente acreditava que os chás
que fazia eram capazes de acalmar os ânimos. Era como: “oh, o mundo está
sendo atacado por ETs, tome um chá e estaremos salvos!”.
— Bem, vocês poderiam ter simplesmente dito que iam discutir com
a líder dos Protetores sobre onde eu vou viver.
— Eu sabia que era melhor que um Protetor mais velho viesse. Eles
não falam tanto — minha mãe murmurou.
Franzi o cenho. Ela não podia estar falando sério.
— Nem me faça falar sobre Serena. Por quanto tempo espera que
isso funcione? — minha voz estava mais alta do que o normal, mas não
podia evitar a fúria que borbulhava dentro de mim. — Você quer me manter
no escuro até que Vicenzo consiga cortar a minha garganta? — rugi, meu
pesadelo vindo à tona. Tantas vezes assisti aquelas meninas terem suas
gargantas cortadas, ou coração perfurado... Jamais me preocupei em ser
uma delas. Até agora. — Quer me privar de coisas básicas até que eu esteja
morta demais para reclamar?
Eu não tinha ideia da raiva que estava guardando. Dizia a mim
mesma que estava lidando com tudo isso muito bem. Que a verdade não
havia me afetado de maneira alguma. Que não estava com medo. Que não
estava apavorada. Que a probabilidade de eu ter uma vida longa ser quase
inexistente, não me deixava puta da vida.
Mas eu estava furiosa. Estava com raiva, frustrada e com medo.
Porque ainda não vivi. Não vivi nada.
De repente percebi o quão hipócrita eu era. Meus pais não eram os
únicos mentirosos nesta sala. Eu estive mentindo para mim mesma há dias.
— Pare de falar assim agora mesmo, Alyssa! — minha mãe gritou
de volta.
— Pare de mentir! — Meu dedo indicador estava quase encostando
em seu rosto. Eu nunca tinha gritado com ela desse jeito, muito menos
apontado um dedo em sua cara, mas aparentemente havia uma primeira vez
para tudo. — Pare de mentir! É a minha vida. Eu devo ter algum controle
sobre ela!
Os olhos da minha mãe ferveram. Meu coração bateu
desesperadamente. Ela encarou meu dedo como se fosse amputá-lo. Minha
mãe nunca me bateu, mas acho que estava prestes a fazê-lo. Acho que iria
me dar um tapa bem no meio da minha cara e parte de mim acreditava que
talvez eu merecesse.
Pelo bem da nossa família, meu pai interferiu e se colocou entre nós
duas.
— Pelo amor de Deus! Vocês não podem ficar se atracando sempre
que se veem. — Ele me encarou. — Você precisa se controlar. Nós estamos
fazendo o nosso melhor para mantê-la segura — disse ele, firme. Então se
virou para minha mãe com o olhar tão duro quanto o que me dirigiu. — E
você precisa aceitar que está na hora de ela participar das decisões nessa
casa.
A chaleira apitou. Meu pai jogou os ombros para trás, respirou
fundo e ajeitou os óculos.
— Vou servir chá para as duas — ele anunciou.
Mas assim que ele se afastou da mesa, minha mãe se foi. A batida
da porta de seu quarto foi estrondosa e ecoou pela casa.
Me joguei na cadeira, exasperada.
Em dezessete anos, nunca imaginei chegar aqui. Na minha cabeça,
eu faria dezoito anos e convenceria meus pais a me deixarem ir para a
faculdade. Mostraria que era boa o suficiente para ser aceita e, por isso,
teriam que me deixar ir. Porque eu merecia. Porque, por anos, tudo o que
fiz foi estudar. Mas nem por um instante, imaginei que seria introduzida a
um mundo onde exista Protetores e Desertores, ou Guardiãs e um Tesouro.
Nunca compartilhei do medo aterrorizante dos meus pais e, por isso, nunca
me preocupei que poderia não viver o suficiente para chegar ao momento
em minha vida em que eu deveria me tornar livre.
Mas eu me preocupava agora.
— Não é gritando que você conseguirá convencê-la, Alyssa.
Meu pai colocou uma caneca cheia à minha frente.
— Não é argumentando também.
Ele se sentou à minha frente e bebeu o líquido de sua caneca.
— A intenção dela não é necessariamente mentir — ele defendeu.
— Ela só quer te proteger de algumas decisões que devem ser tomadas.
— Isso é ridículo, porque as decisões são sobre mim. Em algum
ponto elas irão me afetar.
Ele balançou a cabeça, em uma leve e silenciosa concordância.
— Não na cabeça de uma mãe — ele ponderou, por fim. — Na
cabeça de Jasmine, você está sendo protegida a qualquer custo.
Bufei. Levei o chá aos lábios e queimei a língua ao bebericar o
líquido.
— Você é muito diplomático para o seu próprio bem.
Meu pai riu. Uma gargalhada que o fez engasgar um pouco. Acabei
sorrindo um pouco com a imagem. Meu pai era um homem muito bom,
gentil, justo... Merecia mais do que uma filha que trazia tantos problemas.
Merecia ter uma vida pacífica ao lado da mulher que amava.
— E você é parecida demais com a sua mãe para seu próprio bem.
Revirei os olhos apenas porque não queria concordar, mas sabia
muito bem que era verdade. Dividíamos o mesmo temperamento. Quem me
dera ser um pouco mais diplomática como Henry Monroe.
— Eu não quero morar lá.
Eu nem sabia onde “lá” era, mas onde quer que fosse, parecia a
sentença final sobre a liberdade que eu temia que nunca tivesse.
Meu pai assentiu.
— Não será necessário. — Ele fez um gesto para que eu bebesse
meu chá, e eu obedeci, suficientemente feliz com suas palavras. — Não por
enquanto, pelo menos. Mas você provavelmente terá que ir lá, para alguns
treinamentos e reuniões.
— Reuniões?
— Imagino que Roman tenha falado sobre Ravenna, certo? —
assenti em resposta. — Bem, a mulher é uma bruxa e tem poder demais, o
que faz dela uma megera completa. Sua mãe ganhou a discussão quanto a
se mudar, mas ela quer se encontrar com você. E eu e Jasmine achamos que
talvez seja bom que você conheça uma das Guardiãs, pelo menos. Elas
podem explicar coisas que não somos capazes.
— Então vou ter que ir a este tal lugar. — Tento me lembrar do
nome que Serena usou. — Outro Lado?
Meu pai assentiu.
— Em algum momento, sim.
Suspirei.
Ouvir do meu pai, o homem mais cordial e gentil da Terra, dizer que
aquela tal mulher era uma megera, me garantia que ela realmente devia ser
uma. E isso não me deixava exatamente feliz de ter que me encontrar com
ela.
— Sabe, eu realmente só queria ir para a faculdade — murmurei. —
Ser normal.
Meu pai abriu um pequeno sorriso. Ele se levantou e veio até mim.
Seus grandes braços envolvendo meus ombros e a própria cadeira em que
eu estava sentada.
— Abrace seu destino ao invés de tentar negá-lo. Você não pode
querer ser normal se nasceu para fazer o mundo tremer.
Se hoje fosse meu último dia de vida, eu gostaria que não estivesse
chovendo.
Ou gostaria que chovesse mais ainda.
Caia o mundo.
Que as montanhas tremam. Que os mares se rebelem. Que o Lago
urre.
Não me importava. Minha janela molhada apenas me recordava que,
de vez em quando, o mundo também desabava.
Então, quando lágrimas molharam meu rosto, não me culpei por ser
uma criança mimada. Não ignorei meu medo. Não menosprezei minha
frustração. Aceitei que era completamente humano da minha parte me sentir
completamente desesperada. Aceitei que o futuro era assustador, mas não
tanto quanto a ideia de não ter um.
Não sabia quantas outras garotas morreram antes de mim nas mãos
de Vicenzo. Não tinha ideia de quantas delas mal viveram de verdade antes
de terem suas vidas arrancadas. Éramos todas uma cruel ironia do Destino.
Fadadas a salvar um mundo que nem conhecíamos direito. Mas nosso
destino era um jogo de tabuleiro e precisávamos contar com a sorte, porque
apesar de sermos, supostamente, a única esperança deste mundo, só
seríamos capazes de completar nossos destinos, depois que atingíssemos a
maioridade.
E nenhuma nunca chegou aos 18 anos para ao menos tentar.
E eu não tinha ideia porque meu destino seria diferente.
Então me encolhi na cama, observando a chuva bater contra minha
janela, na esperança de que ela limpasse a revolta da minha alma.

Encontre-o!
Acordei capaz de escutar a ordem como se ela estivesse marcada
nos meus ossos.
Esta noite o pesadelo havia sido diferente. Não assisti uma garota
morrer nas mãos de um homem — que agora sabia quem era — com uma
adaga incrustada por pedras. Não. Esta noite foi diferente de tudo. Não senti
medo. Ninguém morreu.
E pude ver, exatamente, quem era.
Diana. A garota da foto na casa vizinha. A foto que roubei e agora
se fazia ainda mais presente escondida no meio de um livro em minha
estante.
A garota que descobri ter sido como eu, pouco menos de duas
décadas atrás.
Ela segurava o bebê que vi em seus braços na foto que encontrei, e
andava pela margem do Lago. A cada passo que dava, a água parecia se
esforçar para tocá-la, como se fosse atraída pela garota. Mulher. Diana se
tornou mãe antes de ser morta e lutou pelo filho, o que imagino ser
suficiente para transformar uma menina em mulher.
Sei que lutou pelo seu filho, porque lembrava de suas palavras: Mas
vou dar um jeito de continuar viva, nem que eu precise me trancafiar no
outro lado. Apenas para garantir que meu bebê viva. Ela queria viver por
aquele bebê. Queria ser mãe, mesmo tão jovem.
Pensei que ela não pudesse me ver no sonho, que eu só estava ali
para observar. Ela parecia feliz, caminhando com o menino nos braços. Mas
logo antes de acordar, ela se virou para mim, os olhos cheios de água e
pediu, com uma intensidade que fez meus ossos tremerem: encontre-o.
Minutos se passaram, enquanto eu encarava o teto em meio a
escuridão do meu quarto. Longos minutos em que tentei pensar a respeito
do que Diana poderia estar falando. Se, talvez, esse sonho fosse mais do
que um sonho e estivesse tentando me dizer algo.
Será que ela queria que eu fosse atrás de Vicenzo? Estaria me
pedindo para vingá-la? Talvez pensasse que se fosse atrás dele, ao invés de
ficar esperando ele vir até mim, eu tivesse mais chances de pegá-lo
desprevenido.
O problema era que, aparentemente, era bem fácil me matar.
Saí da cama e caminhei até minha janela, que ainda estava molhada
pela chuva. Agora o céu estava claro e o sol se esforçava para sair de trás
das nuvens. Observei a casa vizinha, meus olhos se demorando no jardim
de flores na parte de trás do terreno. Tão rápido quanto o raio que vi cair
além do Lago, me veio um pensamento: o que aconteceu com o seu bebê?
— Aly?
Olhei para a porta ao ouvir a voz da minha mãe. Ela entrou no
quarto, me pegando sentada no pequeno espaço acolchoado sob a minha
janela. Seus olhos castanhos cor de mel pareciam preocupados. Havia dias
que parecíamos andar sobre uma corda bamba que nunca parecia ter fim.
Era triste, porque sentia falta dela, ao mesmo tempo que estava irada por ter
me mantido no escuro por tanto tempo. Por insistir em manter as coisas
assim.
— Teve um pesadelo? — ela perguntou.
Voltei a olhar para além da janela. Um pedaço do Lago, escuro e
onduloso pela chuva, parecia em revolta.
— Não exatamente.
Mas isso não sanou a curiosidade da minha mãe. Ela enrolou o
roupão de seda no corpo e andou até mim. Sentou-se à minha frente e me
observou, curiosa.
— O que isso quer dizer?
— Não tive um pesadelo. Mas não sei como exatamente me sinto
sobre meu sonho.
— Por que?
— Porque acho que, mesmo sem ser como os pesadelos com os
quais estou acostumada, sonhei com uma Fidly morta.
— Você pode ser mais específica, Alyssa? — minha mãe pareceu
impaciente.
Arqueei uma sobrancelha.
— Acho que sonhei com Diana.
Ela franziu o cenho. A informação pareceu deixá-la inquieta, como
se o simples nome da mulher a fizesse tremer. Não de medo, percebi.
Saudade, acho. Talvez culpa.
— Como você saberia que é ela?
Acenei com a cabeça para a casa vizinha.
— Encontrei uma foto dela quando invadi a casa — esperei que
minha mãe me repreendesse por isso, mas quando ela não o fez, eu
continuei: — Vi ela com uma criança no colo, e um garoto, um pouco mais
velho, ao seu lado.
— Sim, era Diana quem você viu. Ela se apaixonou por seu
Protetor, Brian. Eles acabaram se descuidando e ela engravidou quando
tinha quinze anos.
Observei minha mãe, atônita. Essa era, provavelmente, a primeira
vez que me dava alguma informação por livre e espontânea vontade.
— Não é tão difícil me contar as coisas, não é mesmo?
Ela suspirou.
— Não seja petulante.
Eu a ignorei.
— E o que aconteceu depois? Diana teve o filho e morreu? Eu li
algo em que ela dizia que iria tentar de tudo para ficar viva ao lado da
criança.
Observei o sorriso triste que repuxou os lábios da minha mãe.
— Diana era uma força da natureza. Corajosa. Bondosa. Bondosa
demais para esse mundo. Eu tinha vinte anos quando me colocaram para
protegê-la. Havia mais três Protetores encarregados, e dividíamos os
horários. Brian Cross era o garoto mais jovem da história a ser designado
para um papel tão importante. Ele tinha dezesseis anos quando o colocaram
no turno de proteção. Mas desde sempre se mostrou um prodígio. Era o
melhor. — Ela estalou a língua, um meio sorriso nos lábios. — Bem, depois
de mim, claro. Mas definitivamente diferenciado dado a idade dele.
Eu sorri.
Queria tanto isso. Desde que descobri a verdade, tudo o que queria
era que fosse sincera comigo. Mostrasse esse lado guerreira, de quem foi
nascida e criada para a guerra e deixasse que eu a conhecesse daquela
maneira. E agora podia entender um pouco mais da verdade. Podia juntar as
peças e torná-las mais claras. Minha mãe era uma guerreira. Havia fogo
dentro dela. Determinação e um tipo de força que, nem enquanto
treinávamos, pude imaginar servir para algo tão grande. Uma Protetora.
Fosse lá o que isso realmente implicava.
— Mas Brian fez o que ninguém jamais ousou antes: se apaixonou
pela garota que deveria proteger.
— Mas isso é ruim? — eu a interrompi. — Isso não quer dizer que
ele a protegeria ainda mais?
Minha mãe mordeu o lábio, parecendo buscar as palavras certas.
— Não é que ele não a protegeria com tudo o que tinha. Ele com
certeza teria morrido por ela e definitivamente matou muitos por ela
também. Mas quando nós amamos alguém, nem todos os nossos
movimentos são claros e racionais. Às vezes, fazemos escolhas que, mesmo
diante de boas intenções, não são nada mais que um erro.
Observei seu rosto atentamente. Podia vê-la tentando esconder suas
emoções. Minha mãe nunca foi um livro aberto, mas acho que agora eu
podia perceber que todas as vezes que me negou algo, era devido ao medo
de fazer uma dessas escolhas erradas. Porque ela viu, em primeira mão,
como o amor podia matar.
Eu não gostava disso. Não gostava da forma como ela lidava com a
verdade, mas talvez, se eu estivesse em seu lugar, tivesse feito o mesmo.
— Por isso, nunca me permiti tomar decisões baseadas
completamente na emoção quando se tratava de você. Porque não quero
cometer o mesmo erro.
Eu sabia que ela estava sendo sincera.
— Eu não entendo. O que Brian poderia ter feito que foi tão ruim?
— Brian não deveria ser visto ou ouvido. Era para ele ser um
fantasma — disse. — Mas ele não soube ficar longe dela. O elo era muito
forte, acho.
— Elo?
— Hum, há histórias que dizem que a Fidly possui um elo, uma
ligação de alma, como quer que queira chamar, com uma única pessoa —
explicou. — Como se o Destino tivesse ligado as almas destes dois
indivíduos e fossem, de alguma forma, atraídos um pelo outro.
Predestinados a ficarem juntos.
— Todas possuem isso?
Roman havia mencionado aquilo e eu tinha ficado curiosa porque
sempre imaginei o motivo pelo qual certas pessoas se encontravam nesta
vida. Porque meu pai tinha, dentre tantas pessoas, ficado fascinado com
minha mãe e como ela havia parado para ouvi-lo mesmo não tendo tempo.
Ou como alguns casais simplesmente pareciam certos, como se não fizesse
sentido não estarem juntos.
E eu não podia deixar de imaginar se o Destino me destruiria
daquela forma: dando-me algo que eu nunca poderia realmente ter, não se
morresse como todas as outras. Não queria imaginar que ele fosse cruel ao
ponto de unir duas pessoas de um modo tão profundo, mesmo sabendo que
nunca se conheceriam, ou poderiam de fato ficar juntas.
Mesmo assim, tinha sido exatamente isso que havia feito com Diana
e Brian.
—Teoricamente, todo ser vivo possui um elo com um outro ser, mas
com as Fidlys tudo é mais forte. O Destino as desenhou especialmente,
como se vocês fossem sua grande obra de arte. Pelo que sei, o elo que a
Fidly sente é mais intenso, mais palpável. Por isso que, enquanto o resto de
nós precisamos procurar ou esperar pela pessoa que divide esse elo
conosco, o elo da Fidly atrai a pessoa como um ímã. De alguma forma,
acabam se encontrando. Não foi por acaso que Brian foi escolhido para
protegê-la, e não foi por acaso que acabaram se esbarrando — ela parou,
tentando se lembrar de algo. — Se não me engano, a cultura japonesa criou
uma teoria, uma lenda, para o fato de uma pessoa pertencer e ser atraída por
outra. Para eles é como se houvesse um fio vermelho unindo essas duas
almas que, independente de tudo, de qualquer força externa ou
possibilidade, estavam irremediavelmente destinados a se encontrarem.
Unmei no akai ito. A lenda japonesa do fio vermelho. Já li sobre
isso, era um mito bonito. Que talvez não fosse nem um pouco mito.
O Destino parecia ter um grande apreço pelo controle e marcação.
Éramos suas marionetes, às vezes ligados por algo superior e mais forte, às
vezes marcados por profecias.
Meus olhos caíram para a marca em minha mão. A mesma marca
que esteve comigo a vida toda e nunca me pareceu grande coisa. Tudo por
causa desta marca. Ela era a prova de tudo o que eu devia representar. Uma
marca que o Destino insistiu em deixar, como se para me lembrar do que
meu caminho prometia.
— E Brian tinha esse elo com Diana — conclui, voltando meus
olhos para ela.
— Sim. Eles se amaram profundamente. Era como se... como se um
respirasse o ar do outro. Como se o mundo não pudesse existir sem a
presença da alma com quem dividia o elo. — Ela soltou um suspiro. — Mas
apesar do que muitos dizem, Brian foi um bom Protetor. Ele a salvou
sozinho quando sua casa foi atacada por Desertores. Ele a trouxe para o
Lago e a manteve segura o máximo que pôde.
— Então o que deu errado?
— Diana engravidou e ela deixou de se preocupar tanto consigo
mesma e passou a se preocupar com a nova vida que crescia dentro dela.
Não a culpo. Quando você for mãe, entenderá.
Ela dizia aquilo com tanta facilidade que queria acreditar que
haveria uma chance de, um dia no futuro, tornar-me mãe.
— Por um tempo, ela esteve segura. Quando o bebê nasceu, Brian já
não conseguia fingir que aquela vida não seria tão importante quanto a de
Diana. E um dia ele simplesmente escolheu errado. Ele deu a ela um
momento com a criança, que acabou lhe custando a vida. — A memória
parecia capaz de lhe causar dor física. — Diana queria passear no sol com o
seu bebê, e Brian permitiu que ela desse uma volta pelo Lago.
Um arrepio frio passou pela minha coluna.
— Vicenzo a matou na frente do bebê?
— Vicenzo não tem escrúpulos, Alyssa — sua voz era puro ódio ao
falar o nome do homem que prometia me matar. — Ele teria matado o bebê
também se Brian não tivesse levado a criança para longe.
Um arrepio percorreu meu corpo.
Um bebê. Mesmo que ele fosse jovem o suficiente para não se
lembrar do que havia acontecido, essas coisas simplesmente se agarravam
ao subconsciente da pessoa como um parasita. Meu coração se apertou pelo
garotinho — o bebê — que mesmo tão novo presenciou algo tão terrível.
— Espere. — Ergui meus olhos para ela. — Pensei que os
Desertores não podiam entrar no território do Lago.
— Eles ainda não podem — minha mãe confirmou. — Mas isso não
os impede de espreitar nossas florestas. Vicenzo a encontrou na margem da
floresta, mostrando algumas flores para o bebê. Ela estava só se divertindo
e Brian estava indo encontrá-la. Não sei bem como, Brian nunca nos contou
em detalhes. Pode ser que ela tenha se enganado com a fronteira, ou algo
assim. Mas quando ele a encontrou, Vicenzo a estava fazendo lutar.
— Mas ela não sabia sobre a regra da maioridade?
— Sabia, claro. — Seus olhos tristes partiram meu coração. Acho
que Diana era mais do que uma Fidly para minha mãe. Ela era uma amiga.
— Eu expliquei tudo que ela precisava saber. Quando ficou grávida,
implorei para que ela não saísse de casa. Eu sabia que a criança seria usada
para atingi-la.
— Ela decidiu lutar pelo bebê — percebi, triste.
— Sim. Vicenzo deve ter o ameaçado.
— E por que Brian não a salvou?
— Porque ela lhe implorou para salvar o filho. Ele não poderia
salvar os dois. Então teve que escolher. — Seus olhos se voltaram para a
chuva. Alguns raios de luz lutavam para sair pelas nuvens espessas. O dia
queria amanhecer. — E a verdade é que nenhum de nós venceria uma luta
contra Vicenzo. Nem mesmo uma Guardiã foi capaz. Se Brian tivesse
ficado para lutar com Vicenzo, com certeza teria morrido, e não havia
garantias que conseguiria salvar Diana.
— Por isso fomos criadas — observei.
Minha mãe desviou o olhar. Talvez ela não conseguisse suportar o
peso de suas palavras, o peso da verdade.
— Depois que Diana morreu... Foi como se Brian tivesse morrido
também. Ele é apenas a casca do que um dia foi, e acho que só se manteve
vivo, por todo esse tempo, por causa do filho.
— Ele era o homem que esteve aqui naquela madrugada, não é? O
que ouvi falar com você e papai.
Ela assentiu.
A imagem do garoto que conheci quando criança me veio à cabeça
como um chute no estômago. Era apenas ele e o pai.
Assim como Brian e o filho eram sozinhos.
— Mãe, o homem e o garoto que viviam aqui, antes de nos
mudarmos, eram Brian e o seu filho com Diana?
Minha mãe ficou tensa. Uma máscara de indiferença cobriu seu
rosto antes que eu pudesse ler as emoções escritas ali. Talvez ela fosse
incapaz de pensar neles e não se lembrar da amiga morta.
— Sim, mas eles não moram mais aqui.
Lembrei-me do quarto com roupas masculinas que encontrei quando
invadi a casa.
Talvez eles não vivessem aqui, mas com certeza visitavam.
Busquei as memórias daqueles anos, quando ainda era apenas uma
criança irritadiça.
— Acho que ele era meu amigo.
Ela não disse nada.
Os minutos se passaram e o silêncio preencheu meu quarto. Ela não
estava me contando alguma coisa. Mas decidi não pressionar, pelo menos
não hoje. Aquele dia havia sido a primeira vez que havia me contado tantas
coisas. Talvez fosse melhor esperar um pouco para descobrir mais. O tempo
poderia fazer com que se abrisse novamente.
— No sonho ela estava bem — eu sussurrei. Os olhos castanhos de
mamãe encontraram os meus, tantas emoções que me atingiram como uma
onda. — Ela parecia... sei lá. Acho que em paz. Todas as outras vezes que
imagino ter sonhado com as Fidlys, elas estavam sendo mortas. Foi uma
boa mudança — lembrei. — Ela tinha o bebê no colo e andava pelo Lago.
Parecia bem.
Não sei porque acabei não contando sobre o que Diana disse, mas
provavelmente porque não queria falar sobre o quanto ela parecia nervosa.
O fato de ela, provavelmente, estar se referindo a encontrar Vicenzo,
também não soava como algo que eu gostaria de discutir com a minha mãe.
Jasmine nem mesmo me deixava encontrar pessoas normais, duvidava que
gostaria da ideia de me deixar ir atrás de Vicenzo.
Nem eu mesmo gostava.
Pareceu ser o certo a se dizer, quando um sorriso sincero se abriu no
rosto da minha mãe.
— Eu só espero que ela esteja em paz.
Eu não conhecia Diana, mas aquilo era algo que eu me pegava
desejando também.
Uma semana se passou, desde minha primeira conversa
esclarecedora com a minha mãe. Serena começou a aparecer mais e passar
mais tempo comigo, e mesmo sabendo que era seu trabalho, fiquei feliz
com o tempo que tinha com ela. Nunca tive uma amiga antes, e agora,
finalmente, tinha tempo para conhecer alguém o suficiente para cultivar sua
amizade. Era bom poder falar sobre diferentes coisas e me divertir com
alguém além dos meus pais.
E era bom não precisar ficar sozinha.
Houve uma novidade essa semana, no entanto. Conheci outro
Protetor, dessa vez um homem mais velho que meu pai, por volta dos
cinquenta e poucos anos. Não que ele parecesse velho ou algo assim. Seu
corpo gigantesco fez meu pai parecer uma criança. Seus cabelos castanhos-
claro e cacheados, com alguns fios grisalhos, presos no topo de sua cabeça
em um nó, fazia-o parecer ainda mais mortal. Ele era exatamente o tipo de
guerreiro que víamos nos filmes, em alguma história viking. Talvez eu
tivesse demorado tempo demais olhando para a cicatriz em seu pescoço,
encoberta pela tatuagem dos Protetores, que se originava em sua clavícula
direita e subia por toda a extensão até o seu pomo de adão. Tudo nele fazia
com que eu quisesse sair correndo, em especial, o seu olhar de aço. Frio.
Inabalável. Criado para ser um guerreiro e nada mais, e, se aquela cicatriz
era algum indício, endurecido pelo que a vida havia lhe mostrado.
Suas primeiras palavras para mim foram firmes, apesar de terem
sido um cumprimento. “Prazer em conhecê-la, Fidly. Meu nome é Jasper.”
— as seguintes foram ainda mais frias. “Espero que esteja pronta para
treinar e espero que não me decepcione.”
Não deixei de reparar o olhar de respeito da minha mãe em sua
direção, ou a forma como aceitou que ele desse as ordens e tomasse a frente
do treino. O homem, apesar de parecer rígido, era respeitado, até mesmo
pela mulher que fugiu de pessoas como ele: Protetores.
Meus pais nos deixaram sozinhos logo em seguida.
Quando Jasper pediu que eu me posicionasse à sua frente, foi
quando percebi que ele era uma montanha e eu, um pedregulho minúsculo
em comparação. Estava tentada a dizer que precisava ir ao banheiro e correr
de volta para a floresta. Talvez eu tivesse uma melhor chance contra a
Desertora.
— Talvez você possa me ensinar alguns movimentos antes de...
Ele arremessou uma faca, antes que eu pudesse completar a frase.
Uma faca. Pulei para o lado a tempo de escapar da lâmina que, com certeza,
estaria presa no meu braço direito agora.
— Que merda é essa? — gritei e xinguei ao mesmo tempo. Minha
mãe nunca tinha usado armas em nossos treinos, e principalmente nunca
contra mim.
O olhar de Jasper, no entanto, foi de completa indiferença.
— Antes um braço do que o coração. Ou a cabeça.
Ele podia ser assustador, mas isso não me impediu de lançar um
olhar detestável em sua direção.
— Pelo menos me avise — rosnei.
Ele assentiu, circulando calmamente pelo gramado.
— Tudo bem. — Ele parou a poucos metros, os olhos fixos em mim.
— Vou arremessar uma faca na direção de seu estômago agora.
Aparentemente, um estômago não estava no mesmo nível de
importância que uma cabeça ou um coração. Perfeito.
Suas palavras levaram apenas um segundo para se assentarem em
meu cérebro. Um segundo que não eu não tinha para gastar, porque a faca já
estava voando, pronta para empalar meu estômago. Joguei-me no chão com
um grunhido de surpresa e rolei para a esquerda, parando sobre minha
barriga, ofegante e não acreditando naquele homem.
Mas que merda!
— Aparentemente, —murmurei, sem fôlego. — não preciso me
preocupar apenas com os Desertores querendo me matar.
Jasper andou até mim, e eu só queria me enterrar no chão quando
me encolhi com sua aproximação. Como a merda de uma covarde.
— Não quero nem ver quando se mijar ao encontrar um Desertor —
ele resmungou.
Impedi que um palavrão pulasse da minha língua. Um bem feio. E
recusei sua mão estendida para me levantar.
— Não se preocupe. Não foi tão ruim.
Ele me observou abanar a sujeira para fora da minha calça legging.
— Certo. Você os encontrou quando estava com Roman, não é?
Não respondi.
— Talvez um dia precise enfrentá-los sozinha — acrescentou.
— Então está atirando facas em mim na esperança de que eu
aprenda a fugir da deles.
— Exato.
— Muito boa tática de ensino — eu disse, exalando ironia.
Ele riu. Bem, pelo menos pareceu minimamente como uma risada.
— Meus alunos não reclamaram. — Ele estendeu a mão,
oferecendo-me espaço. — Quer tentar a ofensiva?
Eu o encarei. Ele estava blefando, eu tinha certeza disso.
Jasper estendeu uma de suas muitas facas presas em seu cinto.
— Mire no coração, Fidly.
Peguei uma das facas, e ele deu alguns passos para trás.
— Meu nome é Alyssa —disse, mesmo que ele não parecesse dar a
mínima para aquilo.
Pesei a faca em minhas mãos. Era leve e se encaixava bem na minha
palma. Seu cabo era de uma pedra branca e tinha um design tão bonito, que
fiquei tentada a roubá-la.
Olhei da faca para o peito de Jasper, onde devia mirar. Como diabos
devo jogar uma faca no peito de alguém? E se eu realmente acertar?
— Pare de ser medrosa, apenas mire e lance.
Eu o olhei, irritada.
— O que acontece se eu realmente acertar? Que eu saiba você pode
morrer como qualquer humano.
Jasper pareceu cético, prestes a rir novamente.
— Você não irá acertar, criança.
Criança. Quando eu não era a “Fidly” era “criança”. Ótimo.
Maravilhoso.
Esplêndido.
Ajeitei a faca na minha mão e, soltando minha respiração,
arremessei, mirando seu ombro — não o seu peito. Mas Jasper se movia
como água. Fluido, rápido e silencioso. Em um instante estava em minha
mira, no seguinte estava desviando e parando quase ao meu lado.
Sua expressão me dizia que não estava contente.
— Você não mirou corretamente.
Dei de ombros e fingi não entender do que ele estava falando. Não
importava que isso fosse um treino e ele fosse incrivelmente habilidoso, não
podia arriscar machucar ninguém. E se eu acertasse onde ele me pediu para
mirar... eu poderia matá-lo.
— Enquanto tiver mais medo do que pode fazer, do que o que
podem fazer a você, será sempre uma presa fácil.
Meu estômago se revirou.
— Agradeço a dica.
Então, passamos o resto do dia em discussões sobre minha ofensiva
ser fraca e hesitante. Por vezes, Jasper gritou ordens que me recusava a
atender, mesmo quando meu sangue fervia de raiva. Mesmo quando me
chamava de covarde. Não iria me tornar uma assassina, mesmo que por
acidente.
Nos dias seguintes, quando ele apareceu, seus treinos se tornaram
mais corporais. Como me recusava a mirar em locais mortais, ele entendeu
que talvez no combate corpo a corpo eu fosse melhor. E eu era. Um
pouquinho. Nada comparado a ele. Ou a minha mãe.
Ainda.
Talvez eu e meu pai estivéssemos começando a nos equiparar, visto
que ele não possuía as capacidades de um Protetor. Mas nem de longe era
boa o bastante, não como um Protetor. Então, quando Jasper se irritou,
exigiu que eu corresse quilômetros e mais quilômetros e nadasse milhas e
mais milhas.
Não me tornaria uma assassina, mesmo que por acidente.
Mas então me atingiu o que aquela marca em minha mão
significava. Matar ou morrer. Era para aquilo que eu havia nascido. Se a
perspectiva de tirar a vida de alguém me assustava tanto, como diabos eu
deveria tentar matar Vicenzo?

— Como foi seu dia com Jasper? — meu pai perguntou, durante o
jantar.
— Digamos que estou pronta para ter Serena de volta —
resmunguei. O lado direito do meu corpo doía como o inferno, mas eu
imaginava que deveria agradecer por não ter quebrado nenhuma costela.
Minha mãe balançou a cabeça, em discordância.
— Jasper é um guerreiro treinado e experiente. E sua exigência nos
treinos é esperada e necessária — disse. — Serena se tornou sua amiga
demais.
— E qual o problema de eu finalmente ter uma amiga?
— O problema é ela ser uma Protetora — retrucou, inabalável,
pegando mais comida do prato.
— Você é minha mãe e minha Protetora — rebati.
—Por isso, já temos inconvenientes o suficiente.
Inconvenientes.
— O que sua mãe quer dizer, Alyssa, é que já existem questões
emocionais o suficiente sendo envolvidas — meu pai disse, sempre o
apaziguador. — Quanto mais Protetores focados em seus trabalhos, melhor.
Minha mãe assentiu.
— Exato. — Ela limpou a boca com um guardanapo, o perfeito
exemplo de etiqueta. — E já temos problemas o suficiente com os
Protetores. Quanto mais afastada deles você estiver, melhor.
— Que tipo de problemas?
Minha mãe soltou um suspiro exasperado, então me virei para meu
pai, demandando uma resposta.
— Ravenna quer vê-la, antes do combinado, e espera que você passe
mais tempo no Outro Lado — ele contou.
— Por que?
— Porque ela gosta de exigir coisas. — Minha mãe se esticou na
cadeira, raiva brilhando em seus olhos cor de mel. — Só para mostrar que
pode.
Ah, existia uma história ali. Havia mais do que puro desgosto.
— E por que isso seria tão ruim? — perguntei. — Quero dizer, estou
bem vivendo aqui, mas qual o problema de eu ir lá conhecê-los?
— O problema é que não confio em Ravenna de jeito nenhum —
disse. —E para ser bem sincera, não confio em mais da metade deles.
— Por que? — Confusão sombreou minha mente. Achei que minha
mãe partilhava, de toda aquela coisa, de confiar e apoiar em seus irmãos
Protetores. Serena me disse o quanto era importante que fossem unidos.
— Porque a maioria são pessoas que se recusam a evoluir e viver
além de seus velhos hábitos.
Não deixei passar o olhar que minha mãe dirigiu ao meu pai. Havia
algo naquele olhar. Reconhecimento.
O casamento deles provavelmente foi mal visto pelos Protetores.
Pelo que me contaram, eles acreditavam que deviam continuar casando os
seus com os seus, assim não haveria perigo de extinção ou de diluição dos
seus poderes, e as novas gerações continuariam se tornando mais fortes.
— Eles foram muito ruins quando você contou sobre o papai?
Minha mãe terminou de comer e se encostou contra a cadeira. Ela
cruzou os braços e pareceu se aventurar nas lembranças daqueles anos,
antes de eu nascer.
— Por que acha que fui embora?
— Achei que fosse minha culpa.
Foi meu pai quem falou primeiro.
— Quando sua mãe ficou grávida, ela já tinha deixado os Protetores.
Não deixou a causa, claro, porque isso significaria desertar, então continuou
caçando Desertores pelo país — meu pai explicou, chegando mais perto da
minha mãe e passando um braço por seu ombro. Ela pareceu relaxar
imediatamente e fiquei me perguntando se talvez ela estivesse errada quanto
ao elo ser forte apenas para a Fidly. Parecia tão claro que havia algo mais
intenso do que apenas amor entre eles. Havia devoção, como se fossem a
extensão um do outro. — Mas Ravenna foi... especialmente desagradável. E
quando descobriram que você era a Fidly, pouco depois de seu nascimento,
Ravenna foi quem deu a ideia de levá-la para o Outro Lado.
— Ravenna queria ser responsável por você. Achou que, porque eu
era uma Protetora, deveria dar você como se fosse um objeto, para que eles
cuidassem como bem quisessem.
Eu odiava o modo como meus pais haviam escondido as coisas de
mim. Odiava como fui excluída da sociedade. Mas não deixava de ser um
fato que eu havia sido criada em uma gaiola de amor. Uma prisão, sim, mas
uma que me fez sentir querida, importante e, acima de tudo, amada. Meu
pai sempre teve a paciência de um santo para me ensinar as matérias da
escola. Minha mãe sempre me deu tudo o que podia e sempre fez questão
de me mostrar as belezas dos lugares para os quais nos mudávamos. Ambos
me amaram e amam sem restrições. Por isso, mesmo sentindo falta de tudo
o que não pude ter por causa de quem eu era, ainda era grata pela vida que
tive. Pelo amor que tive. Não podia me imaginar tendo tudo isso, sendo
criada pelos Protetores, como se eu fosse algum tipo de animal a ser
adestrado.
— Obrigada por terem escolhido ficar comigo. Mesmo que tenha
sido mil vezes mais difícil para vocês assim.
Até agora estive tanto tempo presa à minha mágoa, por causa da
mentira de dezessete anos, que acabei ignorando o fato de que, enquanto me
escondiam, Henry e Jasmine também se escondiam. Eles precisaram fugir
comigo toda vez que algo ou alguém me ameaçava. Por anos. Anos longe
da família e amigos que conheciam. Anos se esquivando do mundo. Viviam
nessa gaiola tanto quanto eu.
Minha mãe veio até mim com passos largos e me abraçou forte. Mal
pude levantar meus braços para abraçá-la de volta devido à força com que
me segurava. Protetora como apenas uma mãe podia ser.
— Você é minha filha, Alyssa. Não um fardo — ela disse isso
enquanto escovava meus cabelos com os dedos, como sempre fazia desde
que eu era criança. — Eu iria até o inferno por você. Não porque eu preciso.
Não porque é minha obrigação. Mas porque eu te amo.
Meu pai se juntou a nós no abraço, deixando um leve beijo em
minha testa.
— Você foi o melhor presente que nós poderíamos receber, filha —
sua voz era rouca e eu soube, sem olhá-lo, que ele lutava contra as lágrimas.
— Você é nosso próprio milagre. Extraordinária. Escolhida a dedo para ser
parte da nossa família.
Fiquei ali. Parada. No meio do abraço das duas pessoas mais
importantes da minha vida. E decidi que não podia mais culpá-los por me
manter isolada. A solidão era o motivo pelo qual eu estava viva. E foram
eles que se certificaram de que eu estivesse protegida. De tudo. Mesmo
daqueles que deveriam ser meus aliados.
— Eu só quero que você viva — minha mãe sussurrou em meus
cabelos.
Meu coração quebrou junto com a sua voz.
Não podia prometer que ficaria viva por muito mais tempo. Não
podia, porque desconfiava que o destino não estivesse a meu favor. Mas
estava determinada a viver. Mesmo que apenas um pouco.
Eu também quero viver, mãe.
Mesmo que só uma única vez.
Eram duas da manhã quando acordei de repente.
A chuva de verão, lá fora, anunciava a nova estação quente. Senti-
me abafada sob as cobertas e algo em meu corpo se inquietou. Não por um
pesadelo, porque pelo que pareceu um milagre, minha noite ainda não havia
sido aterrorizada por um.
Fiquei imóvel na cama, tentando entender porque diabos acordei em
uma noite tão maravilhosa para dormir. A desconfiança cresceu no fundo do
meu estômago, mas não escutei nada além da chuva.
Mesmo assim, o incômodo me fez sair da cama. Era como se meu
corpo não pudesse se aquietar. Estava prestes a chamar meus pais, quando
passei pela minha janela e vi duas figuras correndo no gramado da casa ao
lado, em meio a chuva.
Reparei na Land Rover preta parada próximo à casa, mas meus
olhos logo se focaram no cachorro e no homem alto debaixo da chuva. Eles
estavam a poucos metros de distância da minha janela e se não fosse pela
escuridão, poderia conseguir enxergá-los melhor.
O cachorro grande, de pêlo marrom e branco, corria pelo gramado
como se estivesse extasiado por estar de volta àquele lugar. O animal, que
parecia um lobo, percorreu todo o território, soltou alguns latidos e parou
eventualmente para farejar lugares específicos. Eu não tinha uma visão
clara, mas podia ver o quão feliz estava. O homem, vestido todo de preto,
correu atrás do lobinho, mas logo desistiu e apenas ficou ali, embaixo da
chuva, esperando que o animal se acalmasse.
Eu sabia que deveria estar preocupada por ter alguém novo por
perto. Sabia que talvez até devesse chamar meus pais para verem quem era
o homem lá fora. Mas tudo o que consegui fazer foi observá-los. Parte de
mim estava curiosa para descobrir se o homem lá fora era Brian ou o filho
dele com Diana.
Mas apesar da curiosidade, também não me movi.
A silhueta do homem não me dizia muito além de que ele era alto e
aparentemente forte. Minutos se passaram, enquanto a chuva o encharcava,
mas ele também não se moveu. Esperou pacientemente pelo seu cão, que
parecia mais do que feliz no meio de tanta natureza. Quando o animal se
aproximou mais da minha casa, o dono o seguiu de perto.
Observei, o que agora sabia ser um jovem, parar a pouco menos de
três metros da minha janela.
Seu rosto jovem estava molhado e os cabelos negros caíam pela sua
testa. Não podia ser Brian. Brian devia ter quase a idade de meus pais. O
homem a poucos metros de distância, parecia poucos anos mais velho que
eu. Aquele devia ser o filho de Diana. Tinha de ser.
Suas mãos estavam nos bolsos da calça e eu enxerguei a camiseta
preta se agarrando ao corpo musculoso. Procurei por alguma marca que me
dizia que ele também era um Protetor, como o pai, mas não encontrei a
tatuagem em lugar algum. Talvez Brian o tivesse mantido longe de tudo
isso depois que Diana foi morta. Isso explicaria porque minha mãe não fala
sobre ele.
O ar me escapou quando a cabeça do jovem se virou e seus olhos
me pegaram espionando-o. O sangue ardeu em minhas bochechas. Mas seus
olhos, inexplicavelmente azuis, eram a prova que eu precisava. Mesmo no
escuro e na distância conseguia distingui-los. Ele tinha os olhos dela, mas
de alguma forma, eram ainda mais incríveis. E não sabia porque diabos
ainda estava encarando, mesmo com seus olhos fixos nos meus.
Suas sobrancelhas grossas arquearam, enquanto ele me observava.
Ele ergueu a mão e, por um segundo achei que iria acenar para mim, mas
não. Sua mão foi direto para o cabelo molhado, tirando-o de sua testa.
Uma pessoa normal desviaria o olhar. Mas o modo como ele
absorveu cada respiração minha, me aterrorizou. E me intrigou. Ele parecia
um animal em exposição para mim e tudo nele me fez querer observá-lo
mais. Uma pessoa acostumada a lidar com outras pessoas, não ficaria
apenas encarando o desconhecido. Se apresentaria. Ou sairia de seu campo
de visão. Mas eu vivi isolada, então estava usando isso como justificativa
para minha notável falta de noção.
Então eu o observei. Analisei seu peito subir e descer lentamente.
Ele não estava com frio? Observei a sombra de seu maxilar se agitar. Notei
ele me olhar como se eu fosse tão interessante quanto ele me parecia.
Talvez eu também fosse um animal em exposição para ele.
Longos minutos se passaram. Ele não disse nada, não que eu fosse
ser capaz de ouvi-lo, mas tão pouco tentou se aproximar.
Seu cachorro, alheio à minha presença, trotou até o garoto e parou
ao seu lado, latindo para chamar sua atenção. Ele parecia finalmente pronto
para entrar na casa. O garoto também percebeu isso. Ele demorou exatos
trinta segundos — nos quais quase pude ouvir a contagem do relógio no
fundo da minha mente — para desviar os olhos dos meus e se virar em
direção à própria casa.
Observei suas costas se afastarem e o cachorro o seguir, até que ele
e o cão estivessem escondidos dentro da casa vizinha.
Demorei horas para pegar no sono novamente.
Dessa vez não sonhei com as garotas mortas. Nem com Diana.
Sonhei com uma cor. Azul. Azul claro, como o Lago.
Como os olhos do filho de Diana.

Horas depois, acordei com o sol quente entrando pela minha janela e
batendo bem no meu rosto. Uma mudança drástica para a noite chuvosa.
Espreguicei-me e tomei um minuto para me lembrar do que vi na
madrugada. Corri para janela, em busca de alguma movimentação na casa
vizinha. Mas não havia nada. Nem mesmo o carro estava estacionado onde
o havia visto horas atrás.
Precisei me esforçar para ter certeza que a noite de ontem não havia
sido um sonho. Minha mente lembrava do garoto de cabelos negros e olhos
azuis e do cachorro ao seu lado como se fosse um filme. Eu estava grogue
de sono e estava caindo os céus, mas eu sabia que havia sido real.
Não sabia porque estava tão interessada em vê-lo de novo, mas me
peguei torcendo para encontrá-lo do outro lado do gramado novamente.
Talvez fosse porque eu sabia quem era sua mãe. Mas aquela decepção
pesando em meu estômago era imprevista.
Um toque musical me tirou do transe. Voltei para minha cama e
peguei o celular que estava carregando em cima da mesinha de cabeceira.
— Feliz solstício de verão! — a voz animada de Serena me atingiu
como um raio. Já era verão. Cinco meses para meu aniversário. Bem, se eu
tivesse sorte.
Respirei fundo. Forcei um sorriso, mesmo que ela não pudesse me
ver.
— Você quer vir aqui e aproveitar o Lago? Mas deixe seus couros
para trás, já que a ideia é aproveitar o sol.
Ela riu.
— Chego em dez minutos — disse, antes de desligar.
E claro, dez minutos mais tarde, ela estava na porta do meu quarto.
Eu já estava pronta, usando um biquíni azul com um vestido leve por cima.
Serena optou por um maiô preto. Ela parecia não ter um único defeito. Seu
corpo magro era torneado, provavelmente pelos incansáveis treinos, sua
pele negra e seus cabelos eram vívidos.
Éramos opostos em muitos sentidos, mas parecíamos a dupla
perfeita. Eu mais baixa, ela com praticamente 1,75. Minha pele alguns tons
mais claros que a dela e meu corpo cheio em todos os lugares em que o dela
era esbelto.
Deixamos a casa para trás e aproveitamos o calor e a água morna.
Vez ou outra conseguia ouvir as vozes dos meus pais chegar até onde
estávamos no Lago, o que significava que eles estavam falando alto
demais.
— Você está muito pensativa hoje — Serena interrompeu meu
devaneio.
Parei de mexer os braços para formar pequenas ondas e ergui meus
olhos para ela.
Encolhi os ombros.
— Sou sempre pensativa.
Ela revirou os olhos, sorrindo.
— Como você é profunda, uma alma cheia de nuances! — Ela jogou
água na minha cara. — Posso saber o que essa cabecinha está pensando?
Meus olhos voaram para a casa vizinha automaticamente.
Serena cerrou os olhos para mim.
— Por que você fica olhando para lá? — quando não respondi de
imediato, minha amiga chegou mais perto. — Alyssa. — exigiu.
— Vi alguém ontem. Na casa vizinha.
Ela franziu o cenho.
— Quem? Você acha que era um Desertor? — Ela então estalou a
língua, repensando. — Saberíamos se fosse um Desertor. E ele teria tentado
matá-la, claro.
— Não acho que tenha sido um — concordei. — Na verdade, acho
que era o filho de Brian e Diana, a antiga Fidly.
Serena pareceu surpresa.
— Não pode ser.
— Por que não?
— Porque ele foi embora há muito tempo.
— Como assim? Você o conhece?
— O conheci no treinamento. Bem, mais ou menos. Ele era mais
velho, então não treinamos juntos, mas eu o via no Outro Lado. — Seus
olhos voaram para a casa vizinha, atrás de mim. — Seu nome é Nathan.
Nathan.
— Então ele é um Protetor também?
— Claro que é. Assim como o pai.
— Eu pensei que talvez Brian tivesse criado o filho longe de tudo
isso, como minha mãe tentou.
— Um Protetor não pode fugir de seu dever, ou nos tornaríamos
aqueles contra quem lutamos — explicou. —Mas Brian, realmente o criou
longe de nós, pela maior parte da vida dele. Na verdade, ele tem mais em
comum com você do que comigo, acho. Assim como você, ele cresceu
longe de todo o restante de nós Protetores, e só foi para o Outro Lado
porque precisava finalizar o treinamento e receber a tatuagem.
Eu observei o gramado da casa, que um dia havia sido de Diana.
— Ouvi dizer que depois que a Fidly morreu, Brian ficou destruído
— Serena continuou. — Literalmente. Como se fosse um fantasma. E ele
quis ir embora, deixar tudo isso para trás. Mas é claro que os Protetores não
iriam aceitar que ele simplesmente desse as costas a tudo, e deixasse essa
vida. Nós simplesmente não podíamos perder um dos nossos melhores
guerreiros. — Ela fez um meneio de cabeça em direção à minha casa. —
Seus pais o ajudaram. Para não ter que desertar, ele prometeu que ajudaria a
proteger você. E acho que sua mãe confiava nele. Por anos eles viveram
naquela casa. Brian treinava o filho, mas nunca deixou que nenhum
Protetor, que não fosse sua mãe, chegasse perto dele, até anos mais tarde,
quando Jasper passou a treiná-lo. Mas no final, ele foi para o Outro Lado de
qualquer forma.
Por que minha mãe não havia me contado isso quando falamos
sobre Diana?
Eu podia entender porque Brian não quis criar o filho perto dos
Protetores. Eles provavelmente eram uma constante lembrança da mulher
que amava e que não pôde salvar.
— Então vocês não têm escolha alguma sobre essa vida? Sobre ser
um Protetor?
Ela balançou a cabeça, negando.
— Somos o que somos, Aly. Nascemos para isso e ponto.
Era triste que todas essas pessoas não tivessem uma escolha.
Fadados a lutar uma guerra eterna, na esperança de que um dia o destino se
concretizasse. Esperando que, de repente, a balança daquele mundo não
precisasse mais de supervisores.
— Mas você disse que ele foi embora...
— Após o treinamento, depois que recebeu sua tatuagem, ele
simplesmente deixou tudo para trás e sumiu — ela contou. — No começo,
todos ficaram loucos, pensando que ele havia desertado, mas eu sempre
fiquei me perguntando, por que ele iria esperar até o último minuto para
isso? Não era como se ele precisasse do treinamento. Brian o tinha treinado
melhor do que ninguém, muito antes de ele pisar em nosso território.
— Então ele não desertou?
— Não. Brian o encontrou poucas semanas depois, mas nunca
trouxe o filho de volta. Dizem que pai e filho se encontraram, logo depois
de Nathan ter feito uma das maiores matanças já vistas pelos Protetores. As
histórias dizem que ele tinha emboscado e matado quinze Desertores
sozinho. E quando Brian voltou, apenas disse para Ravenna que Nathan
estaria caçando Desertores por conta própria e não voltaria tão cedo.
Eu sempre me esquecia que as pessoas que agora me protegiam
eram assassinos também. Que Serena era uma assassina. E não deveria, mas
me chocou um pouco saber que o garoto que vi ontem era um assassino tão
bom quanto Serena relatava.
— Isso não faz sentido algum — eu disse. —Por que ele deixaria o
Outro Lado? Você não vive dizendo que é um lugar incrível e que eu
amaria?
Ela realmente me disse isso milhões de vezes. Acho que para me
preparar para quando eu tivesse que me mudar para lá. Aparentemente,
meus pais não estavam muito confiantes de que conseguirão me proteger
fora da redoma dos Protetores e Ravenna não parecia prestes a mudar de
ideia em nenhum futuro próximo.
Serena balançou a cabeça.
— É um lugar incrível. Não tenho ideia do porquê ele quis ir
embora.
— Porque ele é um covarde.
Dei um pulo de susto, espirrando água para os lados. A voz
profunda e zangada veio de trás de mim. Encontrei Roman parado, de
braços cruzados, em seu couro avermelhado reluzente, na costa do Lago nos
observando com o rosto franzido. Como ele não estava suando como um
porco nestes trajes era um mistério para mim.
— Então você também conhece ele — presumi.
— Nós fizemos o treinamento juntos.
— Roman não gosta dele — Serena me informou, apesar de já
parecer óbvio. — Bem, ele não gosta agora, porque, se me lembro bem,
eles eram amigos antes.
Vi Roman revirar os olhos.
— Nunca fomos amigos de verdade.
Serena deu de ombros.
— Se você diz...
— Por que estão falando sobre ele? — Roman questionou.
— Porque Aly viu ele ontem.
— Eu acho que era ele.
— Se ele nos ensinou alguma coisa, é que não devemos esperar que
ele fique por muito tempo — Roman resmungou. Seus olhos varreram a
casa vizinha, acho que para se certificar que estava de fato vazia. —
Imagino que ele já tenha sumido de novo.
— Quando acordei, o carro dele já não estava mais aqui —
confirmei.
— Ele provavelmente veio para o festival de solstício — Serena
arriscou.
Roman bufou, cinicamente, como se aquele fosse o pensamento
mais improvável que alguém poderia ter.
Virei tão rápido para encará-la que meu cabelo jogou água direto em
seus olhos.
— Ei! — ela protestou.
— Há um festival?
— Sim, na cidade, alguns minutos daqui. Acho que os humanos
fazem para celebrar o início do verão — disse. — Por que você está com
esse olhar?
Abri um sorriso malicioso.
— Porque quero que você me leve.
Serena riu tão alto que o som deu eco, percorrendo o Lago até
encontrar a floresta.
— De jeito nenhum.
Fiz biquinho.
— Por favor, Serena! Eu nunca fui em uma festa na vida. Nunca
mesmo.
— Você está ficando louca? — ela esguichou. — Você tem noção do
que está pedindo? Alyssa, você tem a porcaria de um alvo nas costas. Fora
deste Lago, você é uma isca fácil.
— Eu não sou tão inútil assim! — me irritei. — Fui treinada
também. Sei me defender.
— Não contra Desertores.
— Você não sabe — rebati, cruzando os braços.
Ela nadou até a borda do Lago e se ergueu para sair da água. Serena
apontou para Roman, que parecia entretido com a discussão.
— Você acha que ela pode se defender contra um Desertor?
Roman estalou a língua.
— Nem se estivesse em um dia de sorte.
Bufei alto e segui Serena para fora do Lago.
— Vocês me subestimam. Poderiam descobrir que sou melhor do
que pareço.
— Hum, prefiro viver na dúvida. Pretendo deixar você bem longe
daqueles porcos malditos.
Olhei para Roman. Meu olhar pedia apoio. Talvez ele pudesse me
ajudar a convencer Serena. Mas ele parecia totalmente fora de alcance,
enquanto me observava caminhar para fora da água.
— Roman, me ajude aqui — pedi então, com o meu melhor olhar
inocente.
Ele piscou e então coçou a garganta. Seus olhos foram de mim para
Serena.
— Hum, não sei se é uma boa ideia.
— Vocês vão comigo. Vão me manter segura — insisti. Minha mãe
e Jasper têm me treinado todos os dias, eu estava cada vez melhor. Eu
realmente achava que podia me defender contra um Desertor, mas talvez
mais de um seria testar a sorte.
— Mesmo se aceitássemos levar você, seus pais nunca permitiriam
— Serena disse, exasperada.
Minha amiga se enxugou rapidamente e me jogou uma toalha.
— Nós poderíamos sair escondido. Ouvi dizer que eles vão em uma
reunião hoje à noite. Provavelmente vão ficar fora por horas.
— Alyssa... — Roman começou.
— Não — interrompi, antes que tentasse me fazer mudar de ideia.
— Eu sei que é um risco, ok? Eu sei. Mas olhe bem para o passado: Diana
foi morta, mesmo estando enclausurada aqui. Mesmo sem deixar o território
do Lago, eles a encontraram e Vicenzo a matou. — Era tão estranho falar o
nome dele, como se nos conhecêssemos quando nem sabia como ele se
parecia. Não tinha ideia de quem era o homem que queria tanto me matar, e
mesmo assim, um arrepio me percorria toda vez que falava dele. — Nós
não precisamos ficar muito tempo, eu só quero ver como é. Nunca fui em
uma festa. Nunca nem vi grandes interações humanas e quero ter essa
experiência.
— Você percebe que pode ter essa experiência depois que atingir a
maioridade, não é? — Roman expôs.
— Quem me garante que terei a oportunidade? — retruquei.
— Se ficar se mostrando pelas ruas humanas, suas chances caem
bastante! — Serena grunhiu.
— Ei, fale baixo! — bati em seu ombro. Ela me olhou feio. —
Minha mãe tem a mesma super audição que você, caso não se lembre.
— Não estamos perto o suficiente —disse, revirando os olhos para
mim.
Coloquei meu vestido sobre o biquíni ainda molhado e me virei para
Roman. Ele parecia ser minha melhor chance. Eu podia ver o tanto que a
vida que eu levava o perturbava, provavelmente porque ele mesmo se sentia
preso aos Protetores. Provavelmente porque não teve escolha alguma.
Nenhum deles tinha.
Não o conhecia o suficiente, mas podia ler isso em sua expressão,
toda vez que falava sobre os Protetores e o Outro Lado.
— Eu não vi nada — eu disse, tirando o cabelo molhado do rosto.
— Tudo o que conheço é fruto da minha imaginação, ou de livros ou da
televisão. Nunca fui em um parque. Nunca andei na roda gigante ou comi
algodão doce. — Olhei para Serena que me observava, triste. E por mais
que eu odiasse aquele olhar, decidi tentar usá-lo ao meu favor. — Sei que
isso não deveria ser minha maior preocupação agora, mas é. Não tenho
tanto medo da morte quanto tenho de não ter vivido quando ela me
alcançar. Então, por favor, me ajudem a ter pelo menos essa experiência.
Ouvi Roman suspirar.
— Talvez a gente consiga levá-la. — Ele não estava mais olhando
para mim. Seus olhos, cor de chocolate, estavam fixos em Serena. — Ela
pode tentar se disfarçar um pouco.
— Uma peruca, talvez? — sugeri, não tendo ideia onde conseguiria
uma.
— Não seja ingênuo, Roman, qualquer um pode ver a marca dela.
— Eu posso pôr uma luva — sugeri novamente, mesmo sabendo
que nenhum dos dois estavam prestando atenção em mim.
Usar uma luva no verão seria ridículo, mas eu tinha algumas que
não cobriam a mão inteira, que talvez funcionasse. Eu nunca entendi porque
minha mãe me fazia usá-las quando saíamos pela cidade, mas agora fazia
sentido.
— Mesmo assim, a esta altura eles conhecem o rosto dela.
— Nem todos — Roman argumentou.
— Por favor, Serena — implorei de novo, sem o mínimo de orgulho
mais.
— Por que você tem que estar tão interessada nisso? — Ela me
encarou por um tempo, como se tentasse me ler. — É por que acha que vai
encontrar Nathan? Porque, sinceramente, eu sei que disse que ele poderia ir,
mas era uma brincadeira.
A ideia de ver o garoto de olhos azuis não me parecia ruim,
principalmente sabendo que eu provavelmente o conheci quando era
criança. Mas não era por isso que queria ir ao festival. Prometi à minha mãe
que tentaria viver. Viver. E era o que eu estava tentando fazer agora.
Não me importava que fosse exatamente o que ela não queria.
— Não é por isso — neguei. — Só estou cansada de apenas
sobreviver.
Serena suspirou. Alto. Dramaticamente.
E assim eu soube que tinha conseguido convencê-la.
Meus pais já haviam saído para a reunião e deviam ficar lá por mais
ou menos três horas. De qualquer forma, Roman pediu que um Protetor o
informasse. Teoricamente, esta era a sua noite de me proteger, mas Serena
também estava ali para nos acompanhar.
Observei meus Protetores com diversão. Era a primeira vez que via
Roman com roupas normais, e ele ficava bem nelas. A calça jeans e a
camiseta branca, caíam bem, apesar de ele reclamar que era mais difícil
guardar suas armas. Serena, por sua vez, estava usando um vestido azul de
verão lindo. Mas vê-la tão... humana, não me deixava tão espantada, porque
já tinha visto antes em Nova Orleans. Eu decidi ir com uma pantalona jeans
e um cropped com mangas longas de cetim branco, que caiam sobre minhas
mãos.
Saímos de casa com o pôr do sol.
— Isso vai ser incrível — eu disse, confiante do banco de trás do
SUV de Roman.
Através do retrovisor eu vi Roman revirar os olhos e Serena soltar
um suspiro.
— Que bom que um de nós está positivo quanto a isso — minha
amiga retrucou. — Ignorando completamente o fato de ser uma missão
suicida.
Estalei a língua.
— Não, não — disse a ela, com um sorriso. — Isso não é uma
missão, Serena. É um passeio. Haja de acordo.
Não iria me permitir sentir medo. Não naquele dia. Hoje à noite, eu
seria qualquer coisa, menos a Fidly. Eu era só humana e não havia ninguém
me perseguindo.
Pensei ver um riso preso nos lábios de Roman, mas ele logo fechou
o semblante quando Serena o fuzilou com os olhos. Passamos o restante do
caminho em silêncio depois disso. Quase podia sentir a tensão no ar, mas
não permiti que me atingisse. Aquela era a primeira vez que iria participar
de algo tão mundano quanto um festival de solstício. Primeira vez que iria
poder ver as pessoas interagindo de verdade, em um ambiente feliz e
comemorativo.
Era a primeira vez que saía da minha gaiola, e não podia pensar em
nada além de voar.
Quando Roman estacionou o carro, pulei para fora com rapidez.
Meus olhos varreram a paisagem à minha frente. Em um terreno plano e
longo, barraquinhas se erguiam, junto a alguns restaurantes com mesas na
calçada e brinquedos de diversão espalhados. Uma roda gigante estava
posta no centro do festival, e em um canto à minha esquerda, havia uma
banda tocando uma música animada. Outros brinquedos estavam dispersos,
alguns radicais e outros nem tanto.
As pessoas enchiam o espaço. Crianças, jovens e adultos. Até um
grupo de idosos que pareciam em uma excursão me chamou atenção.
Só percebi que estava parada como uma estátua, observando ao meu
redor, porque Roman colocou sua mão na base da minha coluna. Ele me
guiou por um caminho alternativo, onde não esbarraríamos em tantas
pessoas. Seus olhos vasculharam a aglomeração, mas diferente dos meus,
ele não parecia fascinado. Na verdade, não poderia estar menos animado
com o que via. Entendi que seu objetivo era apenas um: encontrar possíveis
Desertores e me manter segura. Roman era um soldado e este era apenas
seu trabalho.
Do meu outro lado, olhei para Serena. Também focada e séria, mas
ao contrário de Roman, ela pelo menos, se permitia absorver alguns traços
do festival. Vi seus olhos subindo para a roda gigante e depois indo para
uma barraca de doces. Ela ergueu as sobrancelhas para mim, indicando a
barraca.
Sorri, satisfeita.
— Você tem mais ou menos duas horas — Roman me informou. —
Decida o que quer fazer e nos diga para acompanhá-la.
O que eu queria fazer?
Deus, queria fazer tudo. Queria andar na roda gigante, tentar o tiro
ao alvo e comer um algodão doce do tamanho da minha cabeça. E depois
queria repetir tudo isso.
— Acho que quero começar com o algodão doce — decidi depois
de um tempo, um sorriso machucando minhas bochechas.
Serena apontou para uma barraquinha, próxima a uma fonte, com o
formato de um anjo.
Enquanto caminhávamos até a barraca, não me preocupei em buscar
possíveis ameaças. Serena e Roman estavam ocupados o suficiente com
isso. Ao contrário deles, me distraí com a música e com as vozes ao meu
redor. Gritos vinham de um brinquedo que levava pessoas até o topo do que
parecia uma torre e depois despencava até quase atingir o chão. Meu corpo
se aqueceu com a adrenalina. A alegria e a normalidade que me envolviam
parecia contagiante.
Isso era vida. Pura. Cheia.
Normal.
Um grupo de crianças corria com brinquedos de pelúcia nas mãos e
um garotinho mais jovem e mais afastado do grupo trombou comigo.
Precisei segurar seus bracinhos para que ele não caísse de bunda no chão.
Seus grandes olhos castanhos encontraram os meus, envergonhados. Sorri
para ele e o soltei. O garotinho, que mal alcançava minha cintura, abriu um
sorriso agradecido e saiu correndo, tentando alcançar os amiguinhos.
Flagrei os olhos de Roman me avaliando atentamente. Arqueei uma
sobrancelha, querendo saber no que estava pensando, mas ele se virou sem
dizer nada, voltando a se concentrar na multidão.
— A moça bonita vai querer um algodão doce? — Uma senhora,
que parecia ter mais de sessenta anos, me ofereceu um sorriso caloroso
quando me aproximei. Ela tinha colares de cristais em seu pescoço e
grandes anéis de ametista por todos os dedos. Os longos cabelos brancos
estavam presos em uma trança simples e seu rosto guardava traços
indígenas.
Devolvi o sorriso.
— O maior que a senhora puder fazer — pedi com gentileza.
Ela assentiu e começou a trabalhar. O processo de fazer um algodão
doce me deixou boquiaberta. Ela rodava um espeto em volta de uma panela
com um furo no centro, onde ela colocou uma grande porção de açúcar.
Quando os fios começaram a se formar, como uma teia de aranha, soltei um
suspiro de apreciação.
— Você realmente nunca tinha visto um algodão doce? — Roman
perguntou, observando-me com os olhos absurdamente atentos.
— Eu já tinha visto um, por fotos. E uma vez meus pais compraram
aqueles que vem em um pote de plástico para mim. Mas nunca vi como
eram feitos.
Serena riu.
— É como se você fosse um filhotinho descobrindo que a coisa
verde no quintal é grama. — Ela apertou minha bochecha e eu dei um tapa
em sua mão. — É adorável.
Revirei os olhos.
— Pare de zombar.
— Não estou zombando — minha amiga respondeu. — Aliás,
queria ter podido te levar às ruas de Nova Orleans à noite. Você ficaria
ainda mais impressionada.
Eu tinha certeza que sim. Enquanto morava lá, mesmo da nossa
casa, mais afastada dos bairros movimentados, era possível ouvir o jazz
tomando a atmosfera, como se possuísse poder próprio. Acho que foi uma
das cidades mais cheias de vida e arte em que já morei.
Roman colocou o dinheiro em cima da mesinha da mulher antes que
eu pudesse negar. A senhora sorriu e estendeu o algodão doce, agora pronto,
para que eu pegasse. Estiquei minha mão em direção a sua e nossos dedos
se tocaram levemente quando tirei o doce de sua mão enrugada. Os lábios
da senhora se abriram, espanto tomando seus olhos escuros e levemente
puxados.
Serena me puxou para mais perto, mas não tirei os olhos da senhora
que ainda me encarava. Quando sua voz finalmente saiu de seus lábios
entreabertos, apenas uma palavra saiu:
— Morte.
A velha me olhou, como se enxergasse minha alma marcada.
— Cuidado, menina — sussurrou.
Sua fala mal chegou em meus ouvidos e já estava tropeçando para
trás. Serena e Roman não disseram nada, apesar dos olhares em seus rostos
me dizerem que também estavam surpresos, talvez até mesmo assustados.
Roman pegou meu braço e me puxou para longe.
— Como...?
Mas Roman não me deixou terminar.
— Alguns humanos tem certa... mediunidade. Alguns são capazes
de ver além da cortina que cobre nossos mundos. Alguns dizem que o
Destino escolheu Margot, já sabendo que ela tinha certo dom quando ainda
era humana.
Margot, a Guardiã da Oceania. Eu não me lembrava muito bem de
qual era o seu poder, mas sabia que ela tinha pertencido a uma tribo em uma
das pequenas ilhas do continente, antes de o Destino abençoá-la. Pelo
menos foi isso que me contaram.
— Então aquela mulher, simplesmente, previu meu futuro? —
minha voz estava tão baixa, que se eles não tivessem habilidades especiais e
eu não estivesse pressionada contra o lado esquerdo do corpo de Roman,
nem ele, nem Serena poderiam ter me ouvido.
— Não — Roman negou rápido. Rápido demais, percebi.
— Nem sempre é uma previsão, Aly — Serena disse. — Talvez ela
pôde sentir a morte das outras Fidlys em você, já que vocês estão
interligadas de alguma forma. Margot presenteou algumas mulheres
indígenas com uma semente do poder espiritual, para que pudessem se
proteger e serem respeitadas pelos homens. Apesar de ela ter feito isso mais
na Oceania, é possível que, ao longo dos milênios, a linhagem tenha se
espalhado.
— Eu deveria saber o que é poder espiritual?
— Entre muitas coisas, é o poder de sentir vida e morte. De ver
espíritos e talvez usá-los — Serena explica. — A Guardiã da Oceania
possui o poder de absorver energia, sentir vida e morte e, ainda, conseguir o
apoio de almas do plano espiritual.
Será que todas as Guardiãs tinham poderes tão estranhos?
— Hum, ok? — eu disse, incerta.
Roman parou de repente e se virou para mim. Suas mãos seguraram
meus ombros e seus olhos cor do chocolate se fixaram nos meus. Ele
pareceu tentar suavizar sua expressão, mas não funcionou tão bem, ainda
parecia tenso demais.
— Não deixe isso acabar com a sua noite, ok? Ela é só uma humana.
O que ela diz não significa nada e mesmo se significasse, nós já estamos
aqui. Nos arriscamos para você aproveitar esta noite, então me faça o favor
de aproveitar.
Sua expressão era determinada, mas não maldosa, apesar de suas
palavras firmes.
— Não iremos permitir que a ameaça a alcance. Juramos com
sangue e fogo — Serena recitou as palavras como se fosse uma oração.
Respirei fundo.
Os dois estavam certos. Não podia deixar todo o trabalho que
tivemos para vir aqui, ser destruído pelas palavras de uma senhora que nem
conhecia.
— Tudo bem.
Por isso, durante a próxima hora, nós brincamos em praticamente
todo brinquedo possível. Ganhei três bichinhos de pelúcia, mas os entreguei
para algumas crianças que estavam por perto, já que não podia haver nada
que me ligasse àquele lugar. Se meus pais descobrissem, eles mesmo me
matariam.
Quando nos cansamos dos brinquedos e jogos, nós nos juntamos às
pessoas na pista de dança sob as cordas de luz, que fazia com que o céu
parecesse iluminado por milhares de estrelas. Roman preferiu ficar mais
longe da dança, apenas observando a movimentação.
Eu e Serena dançamos com várias outras pessoas, enquanto a
música indie nos envolvia. Eu girava, girava e girava, como se fosse um
peão. Alguém me puxou para dançar, engatou os braços nos meus e
rodamos juntos. Era um estranho mais velho, que sorriu com bondade para
mim. Ele então me soltou e agarrei Serena em uma dança estranha e agitada
demais. Eu dei risada quando tropeçamos nos pés uma da outra. Nós
rodopiamos juntas até que estávamos suadas e com os pés cansados.
Eu me sentia livre. Sentia como se a tontura da dança fosse uma
prova de que podia sentir. Que minha vida era minha. Eu podia dançar ou
rodopiar até não conseguir andar em linha reta, e mesmo assim eram
minhas escolhas.
Por fim, deixamos as pessoas dançando e fomos procurar algo para
comer.
Comi mais do que realmente deveria, e quando estava prestes a
subir na roda gigante, meu estômago protestou, mas fingi que não percebi e
fui em direção aos bancos mesmo assim. Serena se juntou a mim, mas
Roman decidiu ficar de guarda em terra firme. Claro que Serena não deixou
aquilo passar e lançou comentários zombeteiros para ele. Como o bom
soldado que era, Roman apenas a ignorou, mantendo sua posição ereta e
vigilante.
Quanto mais alto subíamos, mais me segurava à grade que nos
prendia à cadeira. Minhas mãos ficaram frias, mas engoli o medo e observei
o céu, a cidade e as pessoas abaixo de mim. O brilho da cidade era um
contraste incrível para a escuridão do céu.
Uma brisa fresca balançou meus cabelos e eu sorri para a imensidão
negra.
Pela primeira vez na vida me senti livre. Por um segundo.
— Agora que estamos sozinhas, posso falar o que penso — Serena
disse, olhando para o chão. Segui seu olhar e encontrei a silhueta de Roman
ao longe. — Não sei bem o que aconteceu, mas ele não suporta nem mesmo
tocar no nome de Nathan. Por isso pareceu tão irritado quando tocamos no
assunto.
Franzi a testa.
— Eu não entendo, eles não deveriam ser amigos? — questionei. —
Aquela coisa de irmandade e tudo o mais.
Serena deu de ombros.
— Nathan pode não ter desertado, mas ninguém confia nele.
— Por que?
— Porque faz anos que ele não aparece nos nossos eventos
tradicionais. É como se ele não quisesse fazer parte do que somos. Fora o
fato de tomar certas atitudes... bem, atitudes estranhas.
— Que tipo de atitudes estranhas?
Serena tamborilou os dedos na grade.
— Além de se isolar de nós, ele sempre se mete em missões em que
não devia. Ele não segue as ordens de Ravenna. Todas as suas decisões são
pessoais. Da última vez que ouvimos falar sobre ele, Nathan estava caçando
os Desertores que tiveram envolvimento no ataque que matou seus avós, os
pais de Diana.
— É um problema que ele queira se vingar? Se a ideia é matar
aqueles que desertaram, então ele está se saindo bem.
— O problema é que ele não segue ordens — ela explicou. — Os
Protetores seguem hierarquias bem solidificadas e as defendem com afinco.
A insubordinação de Nathan ainda traz bastante burburinho entre os mais
velhos.
— Você acha que ele desertaria?
— Acho que se ele quisesse, já teria desertado — Serena respondeu.
— Mas isso não quer dizer que confio nele. Não tenho muito motivo para
isso também, a última vez que o vi foi um pouco depois de receber a
tatuagem.
Lembrei-me do jovem da noite passada, de olhos azuis límpidos.
Coberto pela escuridão da noite e a chuva, ele parecia mais como um
fantasma.
Um arrepio subiu pela minha espinha.
— Talvez ele tenha tido algum motivo para ir embora — Serena
disse, depois de um minuto inteiro de silêncio. — Mas não me sentiria
segura com ele. Nathan é, com certeza, um cara perturbado. Era engraçado
que Roman fosse seu amigo, quando eram completamente opostos. Nathan
encontrava um motivo para brigar todo santo dia no Outro Lado, era sempre
Roman ou Jasper que conseguiam acalmá-lo.
— E o pai dele? Brian não estava no Outro Lado também?
Serena observou as pessoas abaixo de nós. Agora que estávamos no
topo, todos pareciam pequenas formigas.
— Não acho que ele e Brian tenham um relacionamento muito
bom.
Por que? Eu queria continuar enchendo Serena de perguntas. Não
duvidava que ela saberia respondê-las.
Diana lutou tanto pelo bebê. Foi uma guerreira até o fim para manter
o filho e Brian a salvo. Parecia estranho que o mesmo homem que observei
abraçar a Fidly com o bebê no colo — naquela foto que encontrei —, não
fosse próximo do próprio filho. Eu me lembrava vagamente do vizinho que
Brian foi um dia, sempre calado, mas educado e gentil. O que havia
mudado? Como Nathan poderia ter se tornado algo além daquilo?
Eu não disse nada pelo resto da descida. Quando a roda gigante
finalmente parou, encontrei Roman no mesmo lugar que antes. Ele me
olhou, parecendo relutante, e então me entregou a bolsa que segurava para
mim.
— Sobre o que estavam falando? — ele perguntou.
— Serena estava me dizendo que não confia em Nathan — disse,
sem contar sobre termos discutido sua relação estranha com o Protetor.
— Bem, ela está certa. Nathan não é confiável. Ele é a porra de uma
bomba relógio — afirmou, amargura tomando sua voz. — Você faria bem
se ficasse o mais longe possível dele, se é que ele de fato está de volta à
cidade.
Ignorei a sensação estranha que me tomou, como se eu não pudesse
aceitar suas palavras. Parte de mim queria defender o jovem que eu nem
mesmo conhecia.
Eu havia sonhado com Diana e o bebê que se tornou Nathan, tão
pequeno e gorducho que parecia impossível que aquela mesma criança, a
qual a Fidly embalava com carinho e devoção, tinha se tornado alguém com
a descrição dada pelos meus amigos. Nathan era alguém que esperava seu
cachorro correr e vasculhar todo o gramado de casa, mesmo embaixo de
chuva, antes de chamá-lo para entrar em casa. Ele não reclamou ou se
irritou, mesmo enquanto a água encharcava suas roupas. Até mesmo
pareceu entretido observando o animal. Alguém que fazia isso poderia ser
tão mal assim?
Mas, se eu fosse sincera, sabia que muitas coisas podiam
transformar uma pessoa e um momento de ternura não definia caráter
algum.
Talvez o tempo ou as circunstâncias tivessem quebrado aquele bebê.

Minutos mais tarde, Serena, Roman e eu estávamos sentados em


uma mesa tomando milk-shakes. Já estava quase na hora de irmos embora,
quando senti um puxão, como se algo invisível assobiasse para mim. Meus
olhos varreram o festival e finalmente pararam onde uma segunda banda
tocava músicas indies. Meu sexto sentido gritou. Meus pelos se arrepiaram.
Olhei para Serena e Roman, procurando saber se eles sentiam o mesmo,
mas os dois estavam discutindo sobre o melhor caminho de volta para o
Lago.
Voltei a buscar aquela sensação... Aquele peso no fundo do
estômago, como se houvesse algo ali que eu devesse prestar mais atenção.
E foi aí que o vi, em meio às sombras, apenas os olhos claros
iluminando seu rosto.
Parte de mim queria ignorar sua presença, enquanto a outra parte se
sentia atraída ao garoto de cabelos negros e olhos azuis. Em meio ao breu,
eu facilmente poderia confundi-lo com um estranho qualquer. Mas seus
olhos eram azuis demais. E energia mal contida, emanava dele até minha
pele arrepiada, há tantos metros de distância.
Nathan estava observando a banda tocar, os braços cruzados sobre o
peito, o corpo apoiado à parede improvisada. As luzes do pequeno palco o
atingiram e então pude vê-lo melhor. Estava distante de todos, isolado em
um canto solitário e quieto, mas parecia entretido com a música, a
expressão séria, mas ao mesmo tempo suave. Ele parecia prestar bastante
atenção à melodia que embalava o festival.
Como se pudesse sentir que eu o estava observando, Nathan se virou
e seus olhos foram direto para onde eu estava. Seu semblante se fechou e
meu corpo protestou com sua profunda atenção. Mas não consegui deixar
de olhá-lo. Ele era como arte que demandava atenção. Era um gigantesco
meteorito no meio da terra seca. Não sabia como ninguém mais ali parecia
notá-lo, quando sua presença parecia gritar em umas dez línguas diferentes.
Talvez eu estivesse obcecada.
Ele logo afastou o olhar. De longe, era a máscara perfeita da frieza.
— Ei! — Serena chamou, estalando os dedos na frente do meu
rosto. — Estamos falando com você!
Desviei os olhos de Nathan rapidamente. Não sabia bem porquê,
mas não queria que Serena e Roman soubessem que ele estava ali. Aposto
que as coisas se tornariam desagradáveis tão rápido quando a notícia
tomasse forma.
— O que?
— É melhor irmos embora. Você ainda quer fazer mais alguma
coisa?
— Hum, — pensei. — preciso ir ao banheiro primeiro.
Os banheiros ficavam perto de onde Nathan estava.
— Ok. Serena vai com você — Roman disse.
Fiz uma careta. Olhei para minha amiga, ainda na metade de seu
milk-shake.
— Não precisa. Sério. É logo ali. Vocês podem ficar de olho em
mim de longe.
Eles não pareciam muito convencidos.
— Relaxem. Vocês não viram nenhum Desertor até agora, é quase
impossível que eu encontre um, nos dez metros que vou caminhar até o
banheiro. Vou ficar bem.
Por favor, me deixem ir.
— Tudo bem, mas ande logo — disse Serena, antes que Roman
pudesse interferir.
Pulei da minha cadeira e, com um olhar para onde Nathan estava
parado, há poucos segundos atrás, não encontrei nada além do vazio. Segui
em passos largos até o banheiro, mas assim que cheguei à porta, dei um
rápido olhar para trás, vendo Serena ocupada com seu milk-shake e os olhos
de Roman observando o lugar com calma. Corri até onde Nathan estava e
dei a volta na parede falsa, atrás do evento, onde havia outro
estacionamento.
Ele não podia ter ido muito longe se há dois minutos atrás estava
bem aqui.
Bem, ele poderia. Porque é mais rápido que um humano.
Eu não sabia porque queria encontrá-lo. Nem sabia o que diria
então. “Oi, você é meu vizinho e eu queria saber se você é mesmo tão ruim
quanto falam?" Eu com certeza não contaria que sonhava com sua mãe
morta.
Analisei o terreno à minha frente, vários carros estacionados e
algumas eventuais bicicletas infantis. É tristemente engraçado perceber que
crianças tinham mais liberdade que eu, e podiam andar sozinhas.
Observei o estacionamento improvisado com atenção, mas meus
olhos eram incapazes de discernir muita coisa em meio à noite pouco
estrelada.
— Por que está me seguindo? — a voz profunda atrás de mim fez
meu coração acelerar, quase chegando à garganta.
Tentei me acalmar antes de me virar em direção a voz. Nathan
estava parado bem atrás de mim, com as mãos nos bolsos da calça jeans
preta. Não entendia o porquê, mas vê-lo de perto era perturbador. Como se
meu corpo quisesse me dizer algo. Talvez fosse um estrondoso “corra”,
visto que me arrepiei toda quando ele se aproximou mais, com passos lentos
em minha direção. Seus olhos me observaram atentamente, absorvendo
cada traço meu e fiquei parada, como uma maldita estátua, incapaz de dizer
qualquer coisa.
— Por que está me seguindo? — disse, mais lentamente. — Foi
Ravenna que te mandou me seguir?
Devo ter parecido confusa, porque ele inclinou a cabeça um pouco,
como se tentasse ler minha mente.
Mesmo que ele pudesse, ele ficaria desapontado. Minha mente
parecia uma folha branca naquele momento.
— Você é muda? — ele perguntou, ríspido e irritado.
Respirei fundo, meus dedos tremiam levemente e a irritação
aqueceu minhas bochechas. Roman e Serena me disseram para não confiar
nele e talvez eles estivessem certos. Talvez ele fosse mesmo um babaca.
— Não estou te seguindo — finalmente encontrei minha voz. — E
nem conheço Ravenna.
— Acho isso difícil, visto que está acompanhada por Protetores. —
Nathan se aproximou ainda mais, me cercando como se eu fosse sua presa.
Dei um passo para trás, incerta. Amordacei e joguei para o fundo da minha
mente aquela vozinha que me dizia para correr. Se eu fizesse isso, ele
venceria com sua falta de educação e olhar frio. Eu ainda queria tentar
descobrir o que havia acontecido com o garotinho da foto.
— Eu vi você com Roman — ele insistiu.
— Eu não sou uma Protetora — informei.
Suas sobrancelhas franziram e percebi sua confusão. Era
compreensivo que ele não se lembrasse que era meu vizinho, eu também
não me lembrava de quando éramos crianças, apenas sabia que existia um
garotinho na casa ao lado. Mas na minha cabeça, Nathan sabia muito bem
quem eu era. Afinal, ele era um Protetor. Imaginava que todos eles
soubessem sobre minha existência.
Aparentemente não era bem assim.
— O que está fazendo então? — sua voz me atingiu como um sopro,
de tão perto que ele estava agora. Ele era bem mais alto, uma cabeça inteira
maior que eu, e quando me estiquei para encarar seus olhos, tentando
parecer minimamente intimidante como ele aparentava, por poucos
centímetros nossos narizes não se tocaram. — Posso sentir que você não é
humana.
Percebi, nervosa, que ele estava tentando me intimidar.
— Eu vi você ontem — minha voz era quase um sussurro. Tentei me
afastar dele, mas percebi, tarde demais, que estava presa contra seu corpo e
um carro. — Você estava no gramado da casa vizinha à minha — eu o
lembrei. — E vi você poucos minutos atrás, então... — Então o que,
Alyssa? Quis conhecê-lo? Quis saber se ele era uma ameaça? — fiquei
curiosa, porque não sabia se era a mesma pessoa — decidi dizer. Não era
bem uma mentira.
Ele estreitou os olhos.
— Bem, eu sou.
Mordi o lábio inferior. Ele não se afastou e senti minha mão suar
frio.
— Bom.
— Você sabe quem eu sou. Mas não é uma Protetora — constatou.
Nathan pareceu pensar um pouco, como se quisesse chegar à conclusão
sozinho. Pareceu frustrado quando não conseguiu. — Quem é você? —
perguntou.
— Meu nome é Alyssa.
Não sei porque não disse logo que eu era a Fidly. Talvez porque não
queria que ele se lembrasse da mãe morta, ou porque era estranhamente
satisfatório que ele não estivesse me olhando como algo que pudesse
quebrar a qualquer momento. E, se eu fosse sincera, era também porque não
confiava nele. Serena e Roman pareciam ter uma ideia forte sobre confiança
e Nathan em uma mesma frase.
Merda. Serena e Roman já deviam estar me procurando!
— Alyssa — ele repetiu, meu nome tendo um efeito estranho em
seus lábios.
Minhas mãos voaram até o bolso da minha calça, querendo meu
celular para avisar Serena e Roman que eu estava bem, mas não havia nada
ali. Merda dupla. Havia deixado meu celular na minha bolsa, em cima da
mesa.
— Você parece nervosa, Alyssa — Nathan disse, a voz baixa, mas
firme. Ele deu um pequeno passo para trás, como se quisesse me dar um
pouco mais de espaço. Mas não foi muito longe, ainda poderia tocá-lo
apenas se erguesse meu braço.
— Você me intimida — confessei, o nariz empinado para garantir
que essa informação não me fizesse parecer fraca. No entanto, um sorriso
travesso nasceu em seus lábios. — E aparentemente você gosta disso. —
Suspirei. — Deixei meu celular na mesa, então Roman e Serena devem
estar me procurando. Preciso ir.
Seu sorriso se transformou em gelo.
— Roman pode esperar.
Fiz uma careta.
— Pensei que você conhecesse Roman — respondi, irônica. Se tem
uma coisa que Roman não é, é paciente.
Dessa vez ele riu. Baixo e secamente. O som me atingiu até os
ossos.
— Então você me seguiu até um estacionamento escuro, só para ter
certeza de que eu era o garoto que estava no gramado ontem? — ele
pareceu achar divertido, mas estava claro que ele pensava haver mais do
que eu estava contando.
Dei de ombros.
— Sou naturalmente curiosa.
— Hum, acho que posso ver isso.
Desviei meu olhar, quando o seu pareceu me despir. Desci meus
olhos pelo seu torço, procurando pela tatuagem. Sua camiseta preta cobria
todo seu tronco, e não encontrei a tatuagem em seus braços. Por um
instante, temi que ele tivesse desertado.
— Onde fica...
Parei de falar quando ergui meus olhos para seu rosto. Suas feições
estavam congeladas, seus ombros tensos e os punhos cerrados ao lado do
corpo.
— Porra — xingou.
Ele pegou meu braço e me puxou para a parte de trás do carro.
Nathan ergueu um dedo e o pressionou contra os próprios lábios.
— O que...?
Ele colocou o dedo nos meus lábios dessa vez.
— Silêncio — exigiu, a voz menos que um sussurro.
Foi quando escutei passos. Tentei procurar o autor do barulho, mas
Nathan me prendeu contra o carro.
— Fique quieta — dessa vez sua voz pareceu mais como um pedido
do que uma exigência.
— Pode ser Roman e Serena — sussurrei de volta.
Ele balançou a cabeça.
— Não são — disse.
Os passos se aproximaram mais e alguém bateu no capô de um
carro, me fazendo pular com o barulho. Não sabia como o alarme do carro
não disparou com o baque.
— Vamos lá, Cross, sei que você está aqui — uma voz masculina
preencheu o estacionamento. — Posso sentir a porra do seu cheiro de
Protetor.
Eu tremi contra o corpo de Nathan.
Não pode ser. Não hoje.
As mãos de Nathan pegaram meu rosto tão rápido que mal tive
tempo de reagir. E então ele esfregou sua bochecha na minha, como um
cachorro que acariciava o dono. Soltei uma respiração abafada, assustada
com o contato. Ele desceu o rosto para meu pescoço e se esfregou ali
também, os lábios tocando minha garganta.
Eu era uma estátua pegando fogo.
Minhas mãos se fecharam em seu braço e eu apertei.
Nunca tive a boca de um homem em mim. Nunca nem mesmo estive
tão perto de um, e meu coração estava batendo tão forte contra meu peito,
que pareceu prestes a pular para fora. A pele dele colada à minha era o
mesmo que colocar o dedo na porcaria de uma tomada e não fazer ideia de
como parar de ser eletrocutada.
— O que você está fazendo? — minha voz era apenas o vestígio de
um sussurro. — Me largue.
Suas mãos subiram e desceram pelos meus braços semicobertos pelo
tecido fino do meu cropped, deixando-me ainda mais quente. Quando
Nathan afastou seu rosto do meu pescoço, fui vagamente capaz de respirar
novamente.
Seus olhos azuis brilharam na noite escura.
— Desculpe — ele pareceu sincero, mas suas mãos ainda subiam e
desciam pelo meu braço. Não era nada sexual, mas a fricção estava me
deixando com calor. — Ele pode sentir meu cheiro — murmurou. — Estou
dando um jeito para que não sinta o seu.
Ah.
Seus dedos envolveram meus pulsos, mas não apertaram minha
pele. Seu polegar acariciou minha pulsação esquerda e era como se eu
estivesse tendo um aneurisma. Quando fui atrás dele, não esperava que
fosse ser tocada por ele de forma alguma.
Parte de mim gostava, mesmo que a outra parte estivesse tendo um
pequeno curto-circuito. Eu estava entre o pânico, sabendo que o homem que
o chamou a pouco não era um homem bom, e a consciência de que Nathan
estava perto o bastante para que eu sentisse seu cheiro. O mesmo cheiro que
senti no banheiro de sua casa, quando a invadi.
Nathan se esticou, seus lábios tocando minha orelha.
— Acho que, se você sabe sobre Protetores — Nathan sussurrou em
meu ouvido, a voz sombria, — você sabe sobre quem está ali, Alyssa.
— Fique aqui e fique quieta —Nathan ordenou.
Ainda incapaz de formar alguma palavra que fizesse sentido, apenas
o encarei. Ele me lançou outro olhar antes de sair de trás do carro,
parecendo muito menos tenso. De repente, a máscara de frieza estava de
volta e ele parecia alguém que não poderia ser tocado por nada.
— Aí está você — a voz falou novamente.
Eu já não podia mais ver Nathan, mas escutei sua voz profunda
quando disse:
— E aí está você. Pensei que depois da última vez, o seu tipo se
esforçaria para ficar longe.
O homem desconhecido soltou uma risada amarga.
Lentamente me virei para conseguir enxergar os intrusos e Nathan,
tentando não fazer nenhum barulho, já que Desertores também possuíam a
audição amplificada. Através do vidro traseiro do carro, tive um vislumbre
de Nathan e um homem que mais parecia um urso de tão grande.
— Você sabe que Vicenzo quer vê-lo.
— Então talvez ele devesse vir me procurar, ao invés de mandar seu
rebanho. — Nathan retrucou, tão entediado quanto se podia parecer ser.
A tensão entre os dois, porém, era palpável, mas o que mais me
deixava nervosa era que nenhum estava atacando. Se fosse Roman ou
Serena, o Desertor com certeza já estaria em uma luta com eles. Não
haveria conversa alguma. O que me levou a pensar: e se a lealdade de
Nathan não estiver ao lado dos Protetores? E se eu tivesse me levado direto
para a cova do leão?
Mas isso faria ainda menos sentido. Nathan estava provocando o
Desertor como se não pudesse suportar sua presença. E ele me manteve
escondida, mesmo não sabendo quem eu era.
Mas quem sabe, havia sido exatamente por não saber que me
escondeu.
— Ele está ocupado no momento — o homem disse, sua voz
condescendente.
— Claro. — Nathan deu de ombros, limpando uma unha. — Eu
totalmente entendo — cinismo transbordava de sua voz.
O grandalhão se aproximou de Nathan e meu coração acelerou em
resposta.
— Você virá dessa vez?
Os olhos de Nathan vagaram pelo espaço, entediado. A máscara
perfeita de desinteresse. Se eu não tivesse visto como ficou tenso antes do
homem chegar, poderia dizer que ele não se importava nem um pouco com
a presença dele.
— Não está nos meus planos, não.
O grandão balançou a cabeça.
— Então teremos um problema, garoto.
— Hum, claro. Nesse caso, vou ter que fazer um novo show — a
voz de Nathan não era apenas fria... era cruel. — Talvez dessa vez envie
seus membros para Vicenzo como cortesia.
Enquanto as palavras de Nathan me deixavam enjoada, o grandalhão
nem pareceu notá-las.
Eles não eram aliados — a compreensão me encheu de esperança.
Nathan não era tão ruim, afinal. Sua lealdade não era uma questão em
debate.
— Acho que dessa vez você terá mais trabalho.
Duas mulheres e um outro homem saíram das sombras atrás do
grandalhão. Presa ao lado da minha costela, a adaga que Serena e Roman
me deram por precaução, queimou, como se pedisse para ser usada. Levei
minha mão até a pequena linha que a prendia ao meu corpo e a puxei.
Contornei o carro, tentando encontrar um bom ponto de visão. Eram quatro
contra um. Eu podia não ser a melhor lutando quando comparada a um
Protetor, mas eu podia ser de alguma ajuda. Se todos atacassem Nathan, eu
poderia tentar ajudar. Não podia deixá-lo lutar sozinho contra quatro
Desertores.
Roman e Serena também poderiam ajudar. Nathan teria apenas que
usar a mente para chamá-los e logo estariam aqui, independente do que
pensavam sobre o Protetor ou não. O problema era que, se tinha aprendido
alguma coisa em nosso curto encontro, era que ele levaria uma bela de uma
surra antes de pedir ajuda à Roman. Pelo que podia ver, o desprezo entre
eles era mútuo.
Nathan quase gargalhou com a visão dos outros Desertores, porém.
O Destino que nos proteja!
— Vocês realmente não têm o mínimo de orgulho — murmurou,
mais para si mesmo do que para seu público.
De onde eu estava, podia ver os Desertores mais claramente, com a
luz fraca de um poste iluminando-os. O grandalhão tinha o corpo todo
marcado por cicatrizes. Não. Não cicatrizes. Escamas. Era como se ele
fosse algum tipo de demônio, apesar do seu rosto humano. Horror me
tomou e quando observei os traços dos outros, pensei que vomitaria. Uma
das mulheres tinha olhos vermelhos e o homem tinha olhos negros, como a
outra Desertora que me atacou na floresta. Já a última mulher, um pouco
mais atrás, parecia ter a minha idade, e uma marca profunda cortava seu
rosto, desde a têmpora esquerda até o lado direito de seu queixo.
Ouvi Nathan suspirar, parecendo cansado. Ele parecia menosprezar
toda a agitação. Não sabia dizer se era uma máscara de indiferença ou se ele
simplesmente não se importava com a ameaça. Eu esperava que ele
soubesse com certeza que poderia acabar com a ameaça sozinho. De
qualquer forma, era convincente e assustadora.
— Ok — sua voz era a definição de tédio. Ele mostrou um dedo a
eles, como se listasse opções. — Se decidirem ir embora agora e avisar
Vicenzo que não estou interessado em suas propostas, mato três de vocês
rapidamente e deixo o quarto ir levar a minha mensagem. Vocês podem
decidir quem vai. — Ele ergueu um segundo dedo. — Ou podem tentar me
levar e vou fazer questão de matá-los dolorosamente. — Nathan abriu um
sorriso frio, por fim. — Vocês escolhem, por favor.
Eu mal vi Nathan puxar algo das costas, mas de repente ele tinha
uma espada curta em mãos. A mesma lâmina, que a da adaga que eu
segurava, reluziu quando ele pareceu pesar a arma nas mãos.
O grandalhão atacou. Nathan o acertou com um soco na garganta e
um chute nas costelas. Ele nem parecia estar se esforçando. O homem caiu
para frente, desestabilizado, mas a mulher de olhos vermelhos avançou ao
mesmo tempo. Nathan estava de costas e não viu que ela estava prestes a
enfiar uma faca em seu ombro. Eu pulei sobre o carro, e consegui chutar a
faca da sua mão. Seus olhos queimaram quando me encarou, sem entender
como eu havia chegado ali. Eu enfiei minha adaga em seu ombro e rasguei
sua carne, aproveitando sua distração. Ela rugiu.
Mal tive tempo de digerir o que tinha feito. Ela me empurrou para
trás com tanta força, que fui jogada contra o carro e bati meu corpo contra a
lataria. Maldita força sobrenatural. Os olhos de Nathan voaram até mim.
Quando ele se voltou para a Desertora, parecia a um segundo de arrancar
sua cabeça. Ele deu um passo na direção dela, mas parou. Voltou-se para o
grandalhão que se levantava. Com um ruído seco e alto, Nathan quebrou
seu pescoço, antes que ele tivesse a chance de ficar em pé.
Estava impressionada com o fato de eu não estar completamente
horrorizada. Depois de tantos treinos com Jasper narrando os possíveis
cenários, aquilo parecia bastante compreensível. Tentei me levantar, uma
mão na cabeça. Grunhi de dor ao ficar de pé. Minha cabeça latejava, mas
pelo menos não estava sangrando.
Eu havia rasgado o ombro de uma mulher, sem nem pensar duas
vezes. Jasper ficaria orgulhoso e talvez parasse de me chamar de covarde.
Minha mãe me falou sobre as coisas, que havia sido obrigada a
fazer, devido às circunstâncias. Como matar, com o tempo, tornava-se tão
simples quanto escovar os dentes pela manhã. Não sei como me sentiria
matando alguém, porque até agora não precisei fazê-lo. Há pouco, enquanto
rasgava o ombro da Desertora, não poderia ter me sentido menos
preocupada com a vida alheia.
E isso me assustou mais do que ver Nathan quebrando o pescoço de
alguém.
A mulher, que havia me jogado pelo ar até bater no carro, já estava
lutando contra Nathan. Ele havia enfiado a minha adaga, que há pouco
estava enfiada no ombro da Desertora, no estômago dela.
Só tirei meus olhos de Nathan quando a outra mulher, que tinha
ficado mais para trás do grupo, apareceu à minha frente do nada. Tentei
fugir dela, mas seu punho se fechou em meu cabelo. Tentei chutar suas
pernas, mas seu aperto no tufo de cabelo em suas mãos se intensificou e eu
grunhi.
Ela iria arrancar meu couro cabeludo!
Agarrei seu pescoço e apertei. Ela mal vacilou. Com a outra mão
fechada em punho, ela socou minhas costelas. Eu gritei. Alto. Dor irradiou
pelo meu corpo e eu inspirei profundamente, agarrando o ar como se fosse
meu medicamento.
Por sorte achava que não tinha quebrado nenhuma costela. Mas ela
conseguiria quebrar se fizesse aquilo de novo.
A Desertora começou a me puxar pelo estacionamento, como se eu
fosse uma boneca de pano, que ela agarrava pelos cabelos. Tentei me soltar
dela, mas ela acabou agarrando meu pulso e o segurando atrás das costas.
— Você é um lixo fraco — sua voz era jovem, assim como eu
desconfiava que ela era. Mas o ódio... A repulsa nela era palpável. Era algo
que nem um humano de cem anos deveria ter adquirido.
Ela parou de repente, um rosnado saindo de sua boca. Olhei. Em sua
perna direita, na panturrilha, havia uma pequena faca enfiada até o cabo. A
Desertora me puxou e agarrou meu pescoço. Ela o espremeria como um
limão murcho.
— Ah, não — ouvi Nathan cantarolar. — Nem pense nisso. — De
repente eu o encontrei atrás da mulher. Ele passou seu braço por volta do
seu pescoço e a enforcou. Havia tanta força no movimento, que a mulher
logo começou a ficar vermelha e seu aperto em meu próprio pescoço se
afrouxou. — Você não toca nela.
Caí no chão e tateei cegamente, até encontrar a faca presa em sua
panturrilha. Puxei a faca e sangue jorrou do corte. Com esforço, consegui
me colocar de pé, sentindo minhas costelas protestarem.
Por favor, não esteja quebrada. Por favor.
Seria um inferno curar uma costela quebrada. Isso, se conseguisse
sair dali ilesa.
O tempo que levei para me levantar, já tinha garantido uma
mudança na luta. A mulher havia conseguido se soltar e agora eles lutavam
avidamente. A Desertora tinha tirado uma foice de algum lugar,
provavelmente do colete em suas costas, e agora cortava o ar, tentando
acertar Nathan.
— É você — a voz do homem de olhos negros, me pegou
desprevenida. Ele estava perto demais. Com um passo longo, ele poderia
me agarrar. Apontei a pequena faca em minhas mãos para ele,
ameaçadoramente. Jasper teria gritado para que eu ficasse mais ereta e
curvasse mais o joelho, mas a dor em minha costela era latejante. O
Desertor sorriu, como um maníaco. — Ah, Vicenzo ficará tão satisfeito!
Dois problemas resolvidos de uma só vez.
Ele deu um passo. Eu firmei a faca. Ela era pequena demais, então
eu teria que usá-la com sabedoria, enfiando-a em sua jugular ou no meio
das costelas, onde poderia alcançar o coração. Tremi. Eu teria que matá-lo.
Uma muralha, então, foi de encontro ao Desertor. O homem, de
olhos negros, voou pelos ares, caindo no chão a alguns metros de distância.
Peguei o olhar raivoso de Roman ao mesmo tempo que soltei o ar
que estava prendendo. Ele agarrou meu pulso machucado e eu gritei,
assustando-o.
— Merda, Alyssa. — Seus olhos encontraram Nathan, um pouco
mais longe de nós, que se dividia entre lutar contra a mulher que havia
conseguido reforço, e fuzilar Roman. De onde estava saindo tantos
Desertores? — Mandei ficar longe dele — Roman rosnou.
— Onde está Serena? — perguntei, ignorando sua advertência.
— Está vindo — disse. — Ela foi te procurar pela cidade quando
não a encontramos no festival.
Roman vasculhou a área, pensando na melhor tática de ataque.
— Vamos embora.
— O que? — minha voz era um grito de pura indignação.
— Você precisa sair daqui. Há três Desertores prontos para te matar.
Ainda haviam três? De onde eles estavam vindo?
— A gente não pode deixar Nathan lutar contra todos sozinho.
Roman bufou, mas quando lhe lancei um olhar raivoso, não disse
nada.
Roman bloqueou uma adaga antes que ela acertasse seu torso. O
Desertor, antes jogado no chão, agora corria, tentando me alcançar, mas
Roman o impediu no meio do caminho e eles engataram em uma luta.
Dei um passo à frente, mas os olhos chocolates conhecidos, me
atingiram como um tapa.
— Fique longe — Roman grunhiu.
Fui puxada para trás antes que pudesse responder. Tentei enfiar
minha faca na coxa do agressor, mas ele desviou e prendeu meus braços ao
lado do corpo.
— Pare de tentar me bater — Nathan rosnou em meu ouvido.
Parei quando reconheci sua voz. Ele me puxou para trás de um
ônibus neon e me pressionou contra a lataria. Sua camiseta preta estava
meio rasgada no pescoço, e seus braços estavam manchados de sangue.
Respingos do mesmo vermelho cobriam seu rosto.
— Por que você sempre tem que me encurralar? — disparei,
irritada.
— Porque assim você não pode fugir — disse, simplesmente.
Revirei os olhos.
— Você tem que ajudar Roman.
— Ah, ele não vai ter muito trabalho — Nathan disse. — Só falta o
homem. Dei a luta pra ele de bandeja. Ele só precisa finalizá-la.
Ele era muito arrogante para o próprio bem.
— Mesmo assim...
— Roman sabe se virar — disse, frio como gelo. — Agora, quero
saber por que, de repente, os Desertores ficaram tão interessados em você.
— Seu olhar poderia ser capaz de cortar minha pele. — O que é você?
Mordi o lábio, nervosa. Seu olhar me queimava. Ergui minha mão
direita para ele ver a marca.
Os olhos de Nathan se arregalaram e ele expirou com um ruído
quase doloroso.
— Você é a Fidly.
Assenti.
— Ao seu dispor.
— Não me avisaram que havia uma. — Ele me encarou, como se
esperasse uma explicação.
Dei de ombros.
— Não faço ideia do porquê.
Ele esmurrou o ônibus atrás de mim e eu me encolhi.
— Desculpa — Nathan murmurou para mim, parecendo lutar para
se acalmar.
Suas mãos pegaram meu pulso direito com cuidado, sabendo que
estava dolorido, e o ergueu, para poder ver melhor minha marca.
— Nunca imaginei que viveria para encontrar uma de vocês.
Soltei uma risada sem graça.
— Sorte sua? — zombei, impaciente.
Podia ouvir Roman lutando com o Desertor.
Seu rosto se fechou em uma carranca.
— Se os Desertores sabiam, haverá outros em pouco tempo —
observou. — Preciso te tirar daqui.
— Roman pode me levar para casa.
Sua carranca se aprofundou.
— Eu sou seu Protetor também.
— Você nem sabia que eu existia!
Seus olhos brilharam, mesmo na escuridão. Havia irritação ali.
Ótimo. Eu também estava irritada.
— Bem, agora sei — ele rebateu.
Ele começou a me puxar e me levar em direção a um carro preto.
— Ei! — Tentei me soltar dele. — Eu não vou deixar Roman para
trás. Serena também logo irá chegar.
Nathan me lançou um olhar estranho.
— Eu posso te manter segura.
— Eu sei que pode — disse. — Mas não posso abandoná-los. Se
você acha que outros virão, todos nós precisamos sair daqui.
Ele parou na frente de uma Velar cor de petróleo, o mesmo da noite
passada, abriu a porta do passageiro e fez sinal para que eu entrasse.
Não me movi. Finquei meus pés no chão e cruzei os braços.
— Não vou deixá-los.
Nathan bufou.
— Você não tem absolutamente nenhum senso de autoproteção? —
Seus dedos pentearam os cabelos negros, puxando-os para trás, em um claro
sinal de frustração. — Primeiro você tenta salvar minha vida e é quase
morta. E agora não pode simplesmente fazer a escolha sensata?
— Eu não fui quase morta. Lutei muito bem.
Ele riu sombriamente.
— Claro, imagino como teria se saído bem, caso eu não tivesse
tirado as mãos daquela Desertora do seu lindo pescoço.
— Uma mão lava a outra, não é? — disparei.
Um sorriso torceu sua boca.
— Venha comigo. Prometo te manter segura.
— Não estou preocupada comigo.
— Esse é o problema, você deveria estar preocupada! — sua voz
profunda agora era um pedaço de frustração. — Confie em mim, fui
treinado com Roman e já ouvi falar muito bem de Serena. Mas temos um
problema aqui, porque uma Desertora apareceu do nada, uma que não
estava com o grupo que nos encontrou. Isso quer dizer que mais virão. De
alguma forma, eles estão simplesmente surgindo no ar. Roman e Serena
podem se proteger e, agora, nossa melhor chance é que eles distraiam
alguns Desertores, até que possamos sair. Assim que aqueles merdas
perceberem que você não está por perto, deixarão seus amigos e virão atrás
de nós. Por isso, preciso colocar alguns quilômetros de distância entre nós e
eles.
Olhei para Nathan e para o carro, incerta.
Serviríamos como isca, assim, Roman e Serena ficariam seguros.
— Você jura?
Ele assentiu.
— Com a minha vida.
Entrei no carro, relutantemente. Nathan fechou a porta e correu para
o banco do motorista. Ele acelerou para fora do estacionamento, sem mais
uma palavra, e eu me esforcei para manter minha cabeça longe de cenários
onde meus amigos eram mortos ou feridos por Desertores.
Era minha culpa que estávamos ali. Minha culpa, que fui parar no
meio de Desertores, depois de seguir Nathan.
Engoli em seco.
Passamos por prédios e casas, e só então percebi que não estávamos
indo a caminho da rodovia, que me levaria até o Lago.
— Por que não está me levando para o Lago? Lá é o único lugar
seguro.
— Isso é o que os Protetores querem que você pense — sua voz era
amarga. Algo em mim, dizia que ele se lembrou que a mãe foi morta nesse
mesmo Lago. — Se fôssemos para lá agora, estaríamos indo de encontro
aos Desertores. Eles sabem que você iria buscar refúgio lá, e por isso,
estariam esperando em cada canto da estrada e da floresta. Precisamos ir na
direção oposta.
— Puta merda, meus pais irão enlouquecer.
Eu estava quase arrancando meus cabelos. E meu couro cabeludo
ainda doía, pelo aperto da Desertora.
— Assim você estará viva — disse, certo de sua decisão. — Confie
em mim. Isso vai ser o bastante para acalmá-los. Agora pare de arrancar
seus cabelos.
— Não me diga o que fazer.
Ele bufou uma risada.
— Esse é basicamente meu trabalho. Reclame com o Destino.
Trinquei os dentes, nervosa.
— Confie em mim, estou fazendo isso agora mesmo.
Senti seus olhos em mim, então me virei para ver o que ele tanto
observava. Sua testa estava franzida e ele limpou um resquício de sangue de
sua têmpora.
— Roman e Serena ficarão bem — ele tentou me tranquilizar. — E
você ficará bem também. Confie em mim.
Ele continuava repetindo isso.
Observei o Protetor. As mãos segurando o volante com força. Os
cabelos bagunçados. Olhos azuis focados na rua à sua frente. Ele parecia
jovem demais para seu olhar sério e decidido. Jovem demais para o sangue
em suas roupas. Mas, ao mesmo tempo, velho demais com toda a tensão
sobre seus ombros.
De repente, percebi que eu não partilhava mais das mesmas dúvidas
que os outros Protetores tinham a respeito de Nathan. Eu não sentia nem
mesmo um pingo de medo dele. Ele me intimidava, sim. Era bonito e
intenso demais e acho que tinha o poder de intimidar, praticamente,
qualquer pessoa no planeta. Mas ele não me amedrontava. Talvez fosse
como um resquício de algum vínculo mágico que eu podia compartilhar
com sua mãe, ou eu simplesmente fosse sensitiva como Roman disse que
alguns humanos eram. Eu não fazia ideia. Mas, enquanto o observava,
atento ao caminho e com os olhos firmes e confiantes, decidi apostar
minhas cartas em Nathan. Apostar minha vida nele. A vida dos meus
amigos.
Ele não era meu inimigo.
Não era uma ameaça.
— Eu confio em você — eu disse a ele, sincera.
Não deixei de perceber o choque que passou por sua expressão, mas
que ele logo tratou de esconder. Ele voltou a focar no caminho. Seu rosto se
tornou uma máscara fria e indiferente em um piscar de olhos.
Talvez houvesse um tempo desde que alguém havia dito aquelas
palavras a ele.
Para minha surpresa, Nathan estacionou na frente de um prédio que
parecia abandonado. A fachada cinza estava descascando e havia uma placa
em cima de uma porta larga, escrito “Floricultura Prado”. Algumas janelas
estavam lacradas por madeiras, mas outras eram apenas vidro escuro.
De todos os lugares que imaginei Nathan me levando, uma
floricultura nunca nem passou pela minha cabeça.
— Uma floricultura?
— Era dos meus avós — Nathan disse, pegando um molho de
chaves no porta-luvas do carro. — Os pais da minha mãe — explicou. —
Nunca os conheci, morreram antes de eu nascer, mas pelo que sei, quando
deixaram o Brasil e vieram para cá, abriram essa floricultura. — Ele
apontou para a placa. — O sobrenome da minha mãe era Prado. Ela deixou
este lugar para mim, então quando preciso de um lugar para ficar, venho pra
cá.
Ele saiu do carro. Fiz menção de sair também, mas Nathan apareceu
para abrir minha porta. Era gentil demais e não fazia jus ao garoto que
acabou de matar três pessoas. Três Desertores, lembrei-me.
— Diana era brasileira? — perguntei, saindo do carro.
Nathan assentiu. Ele nem pareceu achar estranho que eu soubesse
quem era sua mãe, provavelmente, estava acostumado com a história dela
sendo contada para todos, no círculo dos Protetores.
— Ela nasceu no Brasil, mas veio para cá, ainda nova. — Ele abriu
a porta e entrou primeiro. Antes de entrar, deu uma olhada atrás de nós,
procurando qualquer ameaça. — Minha avó era apaixonada por flores.
Acho que minha mãe herdou isso dela.
— Por isso o jardim na sua casa do Lago?
Nathan se virou para me olhar. Seus olhos azuis brilharam.
Dei de ombros em resposta.
— É um jardim bonito. Chama atenção.
Sua boca se curvou em um meio sorriso fraco e triste.
— Brian fez para minha mãe quando se mudaram. Ele mantém
aquele jardim vivo até hoje, mesmo que ele nunca passe mais de uma noite
na casa.
Não perguntei o porquê. Lembro de mamãe falar o quanto a morte
de Diana destruiu Brian e entendia porque ele preferia não ficar na casa.
Memórias. Às vezes, poder se lembrar de certas coisas era um fardo tanto
quanto uma benção.
Nathan destrancou várias fechaduras antes de finalmente conseguir
abrir a porta, que dava para uma longa escada adjacente ao que parecia ter
sido uma loja um dia. Eu o segui e subi as escadas, sentindo o lado
esquerdo do meu corpo protestar. Tinha certeza de que teria um baita de um
hematoma depois de hoje, mas pelo menos não havia nada quebrado.
Latidos tomaram o espaço quando Nathan soltou um assovio de
longas notas. Então, o mesmo cachorro de ontem estava correndo e
trombando com o corpo de Nathan, enquanto balançava o rabo loucamente.
O animal chegou a soltar um choramingo. Observei Nathan se agachar e
distribuir carinhos no pequeno lobo.
Tomei alguns segundos para avaliar o local. Do lado direito da
escada, havia um sofá preto posto em frente a uma TV. Contei cinco livros
espalhados pelo braço do sofá e fiz uma anotação mental para me lembrar
de que, talvez, Nathan fosse mais que apenas um guerreiro/assassino,
extremamente habilidoso. Em um canto, uma manta e vasilhas para a
comida do cachorro estavam perfeitamente alinhadas. No lado oposto ao
sofá, havia uma pequena cozinha e uma bancada de mármore preto. Do
outro lado do espaço amplo, um pequeno armário dividia o local com uma
volumosa cama de casal, que estava perfeitamente arrumada. Em frente à
área da cama, uma porta que imaginei ser a entrada de um banheiro estava
fechada.
Aquele flat era bastante organizado. Atrás da cama, uma pequena
sacada estava com as portas de vidro abertas e era possível enxergar uma
escada de incêndio.
O cachorro latiu e eu percebi que me encarava, esperando que eu lhe
desse atenção. Ele trotou em minha direção e começou a me cheirar.
— Calma, Zeus. Você vai assustar a visita — Nathan disse para o
animal, fazendo carinho atrás de sua orelha.
Nunca tive medo de animais, especialmente cachorros. Por anos
implorei para que minha mãe me desse um, mas acho que não fazia muito
sentido quando estávamos sempre indo de um lugar para o outro.
Agora essa desculpa parecia idiota, já que Nathan provavelmente
também vivia viajando e encontrou uma forma de fazer dar certo.
Sorri para Zeus e me abaixei para afagar sua cabeça quando ele
finalmente se cansou de me cheirar e abanou o rabo para mim. Era um
aceno típico que me dizia que ele não me via como uma ameaça. Ele
pareceu satisfeito com o carinho e me senti relaxar um pouco.
— Ele gostou de você.
Levantei os olhos e encontrei Nathan me observando atentamente.
— Isso não é comum?
O Protetor balançou a cabeça.
— Ele é mais arredio.
Meu sorriso se ampliou para o lobinho.
— Bem, estou honrada. — Olhei para Nathan. — Você tem certeza
que posso ficar aqui? Não seria melhor pedir ajuda aos meus pais?
Nathan desviou o olhar e caminhou até o armário embutido, ao lado
de sua cama. Tirou armas presas a seu corpo, inclusive algumas que eu nem
havia notado antes, e as guardou lá dentro.
— É melhor esperar os Desertores desistirem. É melhor que fique
aqui esta noite.
Suspirei.
— Minha mãe vai surtar. — Sentei no sofá. Nathan fingiu não ouvir,
apesar de ter super audição. — Você não consegue descobrir se Roman e
Serena estão bem?
— Tenho certeza que estão — ele disse apenas, o que me irritou.
Com um gesto rápido, Nathan puxou a camiseta pela cabeça. Seu
olhar era assassino quando encarou o rasgo na gola.
— Espero que não seja sua camiseta favorita — zombei.
— Favorita, não. Mas aquele filho da puta não precisava ter
destruído ela.
Eu quase ri da sua fúria em direção a blusa rasgada.
Mas então ele se virou e jogou a camiseta no chão, próximo ao
banheiro e suas costas largas e fortes ficaram completamente expostas a
mim. Ele possuía muitas cicatrizes, em todos os lugares, mas como uma
grande estúpida, minha atenção não estava nelas. Nunca vi um homem sem
camisa que não fosse meu pai. E Nathan... Nem meus livros mais explícitos
ou os galãs dos filmes faziam jus a ele. Mesmo de costas, ele era de tirar o
fôlego. Covinhas na base das costas, músculos desenhando seu torso.
Ombros largos e musculosos. Não havia um resquício de gordura. Nenhum
maldito culote.
Meu Deus. Era como se ele tivesse sido esculpido.
Eu queria muito chutar sua bunda agora mesmo.
Ele se virou e me pegou encarando, mas não dei a mínima. Se este
era o primeiro corpo masculino que iria observar, então faria direito.
Minha atenção foi para o peito largo, mas logo desceu em direção
aos seis gominhos perfeitamente definidos de seu abdômen. E agora sabia
onde ficava sua tatuagem. Começava perto do lado direito do cós de sua
calça, sobre o V do fim de seu quadril. As chamas, então, subiam por sua
barriga e paravam na linha da sua cintura.
A ideia das chamas era sempre igual, mas a execução era diferente.
A da minha mãe era mais fina e próxima a linha da coluna dela, como um
córrego flamejante. A de Serena era pequena, mas espaçosa em seu pulso e
o contornava como um adorno. A de Nathan era como uma ramificação,
como raízes feitas de chamas cobrindo sua barriga e quadril.
Haviam cicatrizes por todo seu corpo, a maioria delas tão antigas,
que não se passavam de uma sombra. Em suas costas, três tiras compridas
cortavam suas omoplatas até o meio de sua cintura. Em seu peito, algumas
pequenas marcas e, perto de seu umbigo, um corte já desbotado tinha mais
ou menos dois centímetros de comprimento. Mas, mesmo as muitas
cicatrizes em seu corpo, não eram capazes de deixá-lo menos atrativo. Se eu
já me intimidava com o simples vislumbre de seu rosto, o resto de Nathan
levou isso a um outro nível.
Quando finalmente consegui tirar meus olhos de seu corpo, ele
estava me encarando intensamente.
Tossi, secamente.
— Preciso que você avise meus pais — dessa vez, falei firme, para
que ele não pudesse negar. — Deixei meu celular no festival.
Ele andou até mim, manchas de sangue espalhadas pelo torso.
Fiquei impressionada que, tirando um arranhão em seu pescoço até a
clavícula, e um corte no interior de seu braço, a maior parte do sangue que
tingia sua pele, não devia pertencer a ele.
Quando Nathan parou a pouco menos de um metro de distância, o
cheiro de ferro me atingiu com força.
Meu estômago se embrulhou.
— Como você espera que eu faça isso? — perguntou, a cabeça
inclinada, observando-me atentamente.
— Minha mãe é Jasmine Monroe. Ela é uma Protetora, então você
pode usar sua mente para se comunicar com ela — respondi, mas então
adicionei: — Por favor.
— Jasmine é sua mãe? — ele me olhou como se eu tivesse dito que
tinha um chifre na cabeça.
— Sim.
Ele hesitou.
— Jasmine Monroe? — perguntou novamente.
— Nunca conheci outra — resmunguei.
— Como... — ele parou, arrastou os dedos ensanguentados pelo
cabelo negro. — Quando vi você ontem, pensei que os Monroe tivessem
vendido a casa desde que se mudaram.
Balancei a cabeça.
— Ficamos fora por um tempo, mas minha mãe decidiu voltar.
— Quanto tempo?
— O que? — perguntei, confusa.
— Quanto tempo ficaram fora?
— Nos mudamos quando eu tinha sete anos. Não voltamos, até mais
ou menos, um mês atrás.
Ele pareceu completamente atônito.
— Alyssa Monroe — meu nome saiu de sua boca como se fosse
uma maldição. Eu cocei minha marca.
— É o meu nome.
Ele soltou uma risada assombrada.
— Puta merda.
Arqueei tanto a sobrancelha que ela quase alcançou meu couro
cabeludo.
— Qual o problema?
Ele balançou a cabeça e se afastou.
— Nada.
— Não parece nada.
Ele deu de ombros.
— Só estou confuso. Conheço sua mãe. — Nathan apontou para
mim. — E não sei como não sabia sobre você.
Mordi o lábio.
— Eu me lembro de você — eu disse. — Bem, me lembro que havia
um garoto na casa vizinha.
Nathan pareceu genuinamente confuso.
— Você não se lembra. Tudo bem. — Toquei minha têmpora e então
apontei para sua cabeça. — Pode, por favor, fazer o que quer que precise
fazer para avisar minha mãe telepaticamente?
— Não podemos só esperar amanhecer? — ele perguntou, depois de
um minuto calado, observando-me de perto.
— Não! — neguei rapidamente. — Você não entendeu a parte de
“minha mãe vai surtar”? Por favor, Nathan.
Ele soltou um suspiro.
— Isso vai ser uma merda de dor de cabeça.
Estava prestes a pedir de novo, mas ele abaixou a cabeça e pareceu
mais concentrado. Logo, Nathan estava fazendo uma careta e levando os
dedos à têmpora. Sua testa franziu. Parecia estar com dor de cabeça.
— Nathan...
Segundos se passaram sem ele se mexer. Fui até ele e toquei seu
braço, mas ele continuou quieto, a testa ainda franzida. E se eu tivesse
danificado seu cérebro, ao pedir que ele usasse a telepatia, depois de muito
tempo sem “abrir” as barreiras para se comunicar? Isso poderia acontecer?
Depois de um tempo, ele sacudiu a cabeça e olhou para mim.
Parecia estar melhor agora. Tirei minha mão de seu braço e dei um passo
para trás.
— E?
— Sua mãe sabe como gritar — disse, um meio sorriso na boca.
— Você avisou a ela?
— Sim. E praticamente todo Protetor desse país. — Ao perceber
minha confusão, ele tentou explicar: — Nós podemos nos comunicar pelas
nossas mentes ao deixar o caminho aberto. Assim que liberei minha mente,
algo que não costumo fazer com frequência, vários deles começaram a
gritar em minha cabeça. Então, sim, sua mãe sabe que você está a salvo,
assim como Ravenna, Roman, Serena e talvez todo o Outro Lado. — Ele
abriu um sorriso frio. — Só não estão muito satisfeitos de que está comigo.
Eu queria perguntar porque eles o tratavam daquela forma, porque
ele simplesmente não mostrava que aquelas concepções ao seu respeito
estavam erradas, mas não tive tempo. Nathan virou as costas para mim e
pegou uma toalha no caminho.
— Vou tomar um banho.

Fiquei sentada no sofá de Nathan, com Zeus ao meu lado, enquanto


o Protetor tomava banho. Tomei meu tempo para observar os detalhes do
pequeno apartamento. Ainda havia um cheiro remanescente de flores,
provavelmente dos anos em que este lugar serviu como uma floricultura.
Também não conseguia parar de pensar que nós já nos conhecemos.
Ele podia não se lembrar e eu podia não saber os detalhes, mas mesmo que
eu tenha ido embora do Lago aos sete anos, ele esteve lá durante os anos em
que éramos crianças. Serena me disse que Brian criou Nathan fora do Outro
Lado, então ele devia ser a criança que me lembrava de morar na casa
vizinha à minha... Mas minhas memórias eram tão inúteis. Lembrava-me da
existência de um garoto, mas nada mais detalhado que isso. Talvez fosse
normal, já que eu era muito nova.
Encarei minhas mãos sujas e esfoladas de quando caí no chão do
estacionamento. Minha calça estava toda suja de terra e minha blusa estava
relaxada. Talvez eu devesse estar mais chocada com toda a morte e a luta,
mas era... era quase normal. Acho que parte de mim já estava preparada
para saber a verdade, muito antes de Roman ter aparecido na floresta aquele
dia. Inconscientemente, acho que eu sempre soube o que me aguardava.
Não era como se eu pudesse fingir que minha vida antes tinha sido normal.
Parte de mim estava satisfeita de estar aqui com Nathan ao invés de
ter voltado para a casa do Lago. Amanhã meu dia será infernal. Meus pais
nunca irão me deixar esquecer que minhas escolhas me colocaram em risco
hoje. Se eu me sentia presa antes, mal posso imaginar como me sentirei
quando eles aumentarem minha segurança. Porque irão aumentar. Tinha
certeza de que iriam me prender como uma criminosa, a partir de hoje.
Eu tinha planejado aquela noite como sendo a única noite em que eu
me permitiria ser normal. Aproveitar aquilo que as outras pessoas sempre
tomavam como certo em suas vidas. A normalidade de uma vida comum,
que não fosse completamente tediosa.
A porta se abriu e eu ergui meus olhos para encontrar um Nathan de
calça de moletom cinza e peito nu. Deus, ele era lindo de um jeito que eu
nem conseguia descrever e que me fazia querer dar um soco na cara dele,
por puro despeito.
Eu fiquei tristemente consciente do meu estado, toda descabelada e
suja.
— Posso te emprestar uma camiseta para dormir, se quiser tomar
banho — ele ofereceu, praticamente lendo meus pensamentos.
— Eu agradeceria.
Ele tirou uma blusa do armário, azul marinha, e me entregou.
Depois se abaixou e pegou uma toalha na gaveta inferior, entregando-me
em seguida. Levantei-me do sofá com ainda mais dificuldade do que
quando tive que me sentar. Talvez eu devesse ficar em pé por um tempo.
Comecei a ir em direção ao banheiro, mas ele me parou, segurando meu
pulso com cuidado. Deus do céu. A mão dele era quente. Não tinha ideia do
que estava acontecendo comigo, mas ele parecia enviar eletricidade pela
minha pele com um simples toque.
— Posso dar uma olhada na sua barriga? — Eu o olhei em choque,
mas ele nem piscou. — Acho que você deve estar machucada, quero ver o
quão grave é — explicou, parecendo levemente divertido com minha
expressão de horror.
Ah, claro.
Deixei a camiseta e a toalha limpa em cima de sua cama e subi um
pouco minha blusa. Seus olhos azuis me analisaram atentamente e quando
Nathan estendeu a mão para tocar minha pele, um pouco acima do umbigo
e próximo às costelas, pensei seriamente em enfiar minha cara em um
buraco porque me arrepiei inteira. Ele fingiu não perceber e correu os dedos
pela minha pele, procurando o local machucado. Soltei um grunhido
quando ele tocou uma parte, especialmente dolorida.
— Eu tenho uma pomada e alguns comprimidos que podem ajudar
com a dor, mas não há nada quebrado, o que é um bônus.
— Ok — foi tudo o que fui capaz de responder com suas mãos na
minha pele. Se ele me perguntasse porque estava agindo feito uma idiota,
culparia a reclusão que me foi imposta, durantes os últimos anos.
Era vergonhoso que eu nunca nem ao menos houvesse beijado
alguém, apesar de ter lido bastante a respeito em meus livros de romance.
E, como não era uma puritana nem nada, apreciava aqueles livros que
também iam além dos beijos. Era quase como uma forma de pesquisa.
Ele me soltou e me informou onde encontrar a pomada e os
comprimidos no banheiro. Com a deixa, apressei-me para me trancar em
seu banheiro, o qual era impressionantemente limpo. Eu tinha pavor de
banheiros nojentos e estava tão agradecida que Nathan possuía apreço pela
limpeza. Então tomei meu banho satisfeita, tentando assimilar os
acontecimentos de hoje e ignorar o fato de que meus pais me matariam no
dia seguinte.
Para quem nunca havia passado muito tempo com estranhos antes,
hoje eu tinha batido um recorde e tanto.
Saí do banheiro, depois de alguns minutos, enlambuzada de pomada
na barriga e vestindo a blusa que Nathan me emprestou e que, por sorte, ia
até o meio das minhas coxas. Minha calça estava esfolada em vários lugares
e suja demais para usar sobre lençóis limpos, mas tive que reutilizar a
calcinha. Eu não sabia onde dormiria, mas imaginei que ele fosse me dar
uma manta ou algo assim.
Vi primeiro Zeus deitado em um cobertor, perto das escadas. Só
depois meus olhos encontraram Nathan, que me olhava parecendo...
Curioso? Talvez fosse porque eu era a Fidly e só tenha descoberto a meu
respeito naquela noite.
Andei até ele, que estava encostado no parapeito da sacada.
Seus olhos me seguiram por todo o caminho. Isso me deixou
completamente alerta e totalmente consciente do meu corpo, meu rosto,
minha alma. Ele não tinha o menor pudor em tentar responder qualquer
pergunta que rondava sua mente, apenas me olhando.
Eu queria saber o que diabos fazer com as minhas mãos.
— Por que você fica aqui e não na sua casa no Lago? — perguntei,
tentando fazê-lo parar de me olhar com tanta intensidade.
Minha tática não funcionou. Ele apenas pareceu mais tenso e seus
olhos não desgrudaram dos meus.
— Prefiro não ficar tão perto do Outro Lado.
Não deixei passar o desgosto em sua voz ao mencionar a casa dos
Protetores. Nunca fui lá, mas Serena sempre dizia que era um lindo lugar
onde alguns dos Protetores viviam e onde o treinamento para que os jovens
recebessem a tatuagem era feito.
— É tão ruim assim?
— Você ainda não foi lá?
Balancei a cabeça, negando.
Nathan deu de ombros.
— Para mim era.
— Por isso foi embora? — deixei escapar. Não sei se queria entrar
naquele assunto com Nathan, talvez não fosse um tópico que ele estivesse
confortável em discutir.
— Entre outras razões — respondeu simplesmente, pela primeira
vez, desviando o olhar do meu.
Eu não insisti mais.
Enquanto ele encarava a rua deserta, além da janela, observei
escoriações em seu corpo que começavam a tingir sua pele, além das várias
cicatrizes já claras pelo tempo. Ser um guerreiro obviamente tinha seus
lados negativos. Provavelmente mais do que positivos. Minhas mãos se
coçaram para tocá-las e descobrir como era ao tato.
— Então você não pretende voltar — era mais uma afirmação do
que uma pergunta. A resposta estava estampada em seu rosto.
— Não se eu puder evitar. — Seus olhos se apertaram para enxergar
algo ao longe, pela janela. — Mas diferente do que Ravenna tenta fazer
parecer, minha aversão pelo lugar não tem nada a ver com a causa. Não vou
desertar. — Ele se virou para mim e me olhou com tanta intensidade que,
por um segundo, permiti-me pensar se ele se sentia tão fora do eixo quanto
eu. — Você não precisa se preocupar com minha lealdade. Assim como
qualquer outro Protetor, irei morrer antes de deixar qualquer um daqueles
merdas tocarem em você.
Minha pulsação acelerou.
— Você não precisa me prometer isso.
Ele deu de ombros, como se prometer que colocará sua vida depois
da minha, não fosse nada demais.
— É a verdade. É para isso que fui criado.
— Não quero que ninguém morra por mim — sussurrei. De repente,
a força do seu olhar fez com que eu perdesse minha voz.
Pensei ver os olhos de Nathan se fixarem em meus lábios por um
segundo, antes dele voltar a focar nos meus olhos. Engoli em seco.
— Não é uma escolha que cabe a você.
— Mas deveria — insisti. — Minha vida não vale mais do que a de
nenhum de vocês.
Ele pareceu levemente divertido, tombando a cabeça levemente para
o lado, enquanto me observava de perto. Agora, estávamos apenas a alguns
passos de distância.
— Muitos discordariam.
Bufei. Esta não parecia ser uma discussão que eu pudesse vencer.
Não quando eles se baseavam em uma profecia traiçoeira do Destino.
De canto de olho, consegui vê-lo abrir um sorriso hesitante. Então,
ele veio até mim com passos largos e firmes, fechando a distância segura
entre nós. Meu coração quase saiu pela boca quando ele tocou meu pulso
machucado. Nathan não apertou, apenas passou a ponta dos dedos sobre
minha pulsação.
— Ainda dói?
— Não muito.
— Bom. — Ele mordeu o lábio. Seus olhos pareceram procurar
algumas respostas nos meus, mas não tinha ideia de quais eram as
perguntas. — Você se lembra de mim?
— Já disse — minha voz saiu fraca. — Lembro-me vagamente.
— Hum.
Ergui uma sobrancelha.
— Por que?
— Porque se tivéssemos nos conhecido, eu deveria lembrar de
você.
Parte de mim queria se afastar, buscar por uma boa lufada de ar,
onde aqueles olhos azuis não podiam me observar. Mas não tive força para
isso. Eu estava cansada e ser tocada por ele, não era exatamente terrível.
— Foi há muito tempo.
— Mesmo assim — insistiu. — Eu me lembraria.
Eu não sabia como responder.
Eu tinha certeza que deveria me lembrar mais dele. Sentia que,
qualquer que tenha sido o tempo que passamos juntos quando crianças, eu
lembraria daqueles olhos azuis, com um pouco mais de precisão. Mas eu
duvidava que ele achasse o mesmo de mim. Nathan deveria se lembrar do
que eu era: a promessa, uma profecia a ser cumprida. Eu era a lenda que seu
povo lhe contou por toda sua vida, mas que esqueceram de informar que
existia.
Mais do que isso, eu poderia ser o que sua mãe não teve chance.
Por isso, disse as primeiras palavras que me vieram à mente. As
mesmas que vinham me atormentando desde que o vi no gramado vizinho.
— Roman disse que eu não deveria confiar em você.
Sua mão ainda estava no meu pulso. Calorosa. Cuidadosa.
Fiquei esperando que ele se defendesse ou que ao menos me
explicasse de onde vinha tanta aversão. Mas ele não me ofereceu nenhuma
das opções ao responder com uma pergunta.
— E você concorda com ele? — ele perguntou, sombras tomando a
luz dos seus olhos.
— Acho que não.
— Está com medo de mim?
Olhei para o garoto de olhos azuis como o Lago. Olhos
completamente fora do comum. Cabelos tão pretos quanto os meus, mas
enquanto minha pele era castanho-claro, a sua era branca. Sua mandíbula
era forte e reta, e todo o seu rosto, era provavelmente, a combinação mais
bonita que já vi na vida.
Nathan parecia um deus grego. E deuses gregos não eram
exatamente misericordiosos.
Nathan foi nascido e criado para ser um assassino. Um guerreiro
nato. Pelo que haviam contado, era extremamente bom nisso. Naquele
mundo, recém descoberto, eu havia aprendido que, para manter o equilíbrio,
era preciso exterminar. Mas ele não era o único com as mãos cobertas por
sangue. Roman, Serena e minha mãe também tinham as mãos manchadas
de vermelho. Em breve, se o Destino assim desejasse, as minhas também
logo estariam.
E eu não me importava com as histórias mal contadas, a
animosidade e o estranhamento, entre os Protetores que passei a chamar de
amigos e aquele bem na minha frente. Nathan havia me protegido hoje,
mesmo antes de saber quem eu era. Aquilo o tornava digno de minha
confiança, digno de meu respeito.
— Não — respondi, firme.
A mão em meu pulso se afrouxou. Seu dedo correu sobre uma linha,
na minha pele, sobre minha pulsação.
O sorriso que abriu para mim era tão perigoso quanto uma arma e
mesmo assim meu coração dizia que eu estava certa. Minhas palavras
estavam do lado certo.
— Roman ficaria desapontado.
Suspirei.
— Que merda aconteceu entre vocês? — Eu odiava não saber a
história completa.
Nathan não respondeu. Ele saiu de perto da janela e foi até seu
armário. Pegou outro travesseiro e jogou na cama.
— Esta é uma história longa demais para esta noite — disse. —
Você pode dormir na cama.
Eu balancei a cabeça, tentando pegar o travesseiro.
— Não, eu posso ficar no sofá. Não quero te tirar da sua cama.
Ele balançou a cabeça.
— Fique na cama — determinou. — Não vou dormir.
Franzi a testa para ele.
— Vou passar a noite de guarda — explicou.
Claro. Apesar de Nathan não agir como todos os outros Protetores,
ele ainda era um. Ele devia me proteger, acima de qualquer coisa. Devia
lutar quantas batalhas fossem necessárias. Devia me escolher acima de
qualquer outra pessoa. Devia dar sua vida pela minha. Foi isso que Serena
me disse que todos fariam. Foi disso que Nathan me lembrou agora a
pouco.
Só podia esperar que nunca chegasse àquele ponto. Não esperava
que nenhum deles morresse por mim. Não queria que morressem por mim.
Andei até sua cama e ajeitei os travesseiros. Estava prestes a me
deitar quando parei e me virei, para o garoto próximo à janela. Ele só
pareceu me notar quando já estava ao seu lado. Nathan se virou para me
olhar, a expressão meio confusa. Abri um pequeno sorriso.
Então, em um impulso de coragem, passei meus braços pelo seu
pescoço e o abracei. Não sei bem porque decidi fazer isso. Eu poderia lhe
dar um aperto de mão. Mesmo um tapinha nas costas poderia ser mais
apropriado. Talvez só dizer algumas palavras. Mas eu o abracei. Como se
nos conhecêssemos há anos. Como se fôssemos íntimos.
Eu o abracei porque, por algum motivo, pensei que ele merecia.
Engoli a vergonha e me afastei um pouco. Olhei em seus olhos e
disse, sincera:
— Obrigada por salvar minha vida hoje.
Mãos me seguraram. Não. Mãos me sacudiram.
— Alyssa, acorde — a voz exigiu, firme, irredutível.
Mas apesar das tentativas do mundo real, o sonho era intenso e me
prendia como uma corrente em volta da minha mente. Meu subconsciente
não me permitiu fugir. Não até que Vicenzo terminasse seu trabalho.
Precisei ficar ali, parada, apenas uma peça inútil nesse cenário sanguinário.
Apenas observando quando a garota, mais jovem que eu, deixou seu bebê
sentado na grama e andou até o homem, que eu não conseguia distinguir o
rosto. Eu gritei. Pedi que ela não fosse. Pedi que ficasse dentro do território,
onde aquele monstro não poderia machucá-la. Tentei correr até a criança,
mas o sonho também não me permitiu. Não podia me mover. Minha voz era
um grito no vácuo, ninguém ouvia. Ninguém me via. Eu não podia ajudar o
bebê, ou a mãe, nem mesmo podia impedir que o garoto que vinha correndo
pelas árvores visse a cena.
Não pude impedir que Vicenzo pegasse sua adaga incrustada por
joias e a cravasse no coração de Diana.
Acordei com um grito doloroso. Não era um grito que acordaria os
vizinhos. Nem um grito que declarava guerra. Foi abafado. Doído. Pesado.
Cheio de uma dor que não sabia que podia sentir. Uma dor que não queria
sentir.
Apertei a mão sobre o peito, sentindo meu coração bater acelerado,
por um instante apavorada com a ideia de ser esfaqueada como Diana foi.
Alívio me consumiu quando percebi que meu coração ainda batia e meu
peito ainda estava intacto.
Esse alívio, porém, sumiu com rapidez assim que meus olhos se
fixaram nos olhos azuis preocupados de Nathan. Apesar da voz firme que
escutei, seus olhos demonstravam tanta preocupação que um vinco se
formou entre suas sobrancelhas. Meus dedos se coçaram de vontade de
correr pelas linhas entre suas sobrancelhas grossas. E mesmo com seus
olhos azuis e pele clara, Nathan parecia... sombrio. Como se tivesse se
perdido em meio a escuridão há um bom tempo. Talvez eu pudesse ver
aquilo com mais clareza naquele momento, porque ainda estava imersa à
minha própria escuridão, que eu também temia que o assombrasse.
Ele correu suas mãos pelos meus braços e depois as subiu até meu
pescoço. A leve carícia me acalmou, mas meu coração não desacelerou.
— Eu tive um pesadelo — expliquei, em um sussurro fraco.
— Eu percebi — respondeu. — Tentei acordar você, mas nada
funcionava. Estava prestes a jogar água gelada na sua cara.
Soltei um riso fraco, mas sincero.
Não sabia quanto tempo se passou, enquanto nos olhávamos. Seus
dedos fizeram círculos na parte de trás do meu pescoço e meu corpo se
arrepiou e se acalmou ao mesmo tempo, já se esquecendo do terror do
pesadelo. Acho que ele nem percebeu o que estava fazendo. Seus olhos
pareciam desfocados, como se ele visse algo além de mim, completamente
perdido em sua própria mente.
Limpei a garganta.
Nathan piscou. Seus olhos focaram-se novamente. Sua boca se
abriu, mas ele não disse nada. Depois de um instante, suas mãos deixaram
minha pele e ele se afastou.
Eu me sentei na cama.
— Que horas são? — perguntei, quebrando o silêncio que consumiu
o pequeno loft.
— Cinco — disse. — Você devia voltar a dormir.
Balancei a cabeça.
— Não vou conseguir.
Ele assentiu e não perguntou sobre meu pesadelo, o que me deixou
aliviada. Não queria ter que contar que vi sua mãe sendo morta e eu
provavelmente não conseguiria formular uma mentira convincente.
Nathan saiu da cama e foi se sentar na sacada, os olhos se perdendo
no céu escuro. Levantei-me e caminhei até ele. Sentei ao seu lado. Abracei
meus joelhos e olhei para o céu também.
— Eu invadi sua casa — confessei, depois de um tempo em
silêncio.
Ele arqueou uma sobrancelha para mim, parecia quase divertido.
— Sério?
Assenti, envergonhada.
Não sabia porque estava confessando aquilo, mas foi a única coisa
que me veio à mente quando o silêncio não impediu que as imagens do
pesadelo me tomassem. Eu queria falar sobre qualquer outra coisa.
Qualquer coisa que me tirasse a morte de Diana da minha cabeça.
— Quando?
— Algumas semanas atrás, antes que eu soubesse a verdade sobre
quem eu sou e toda essa coisa sobre Protetores e Desertores — contei. —
Seu pai apareceu na minha casa durante a madrugada e eu o ouvi conversar
com meus pais. Mas na época eu não sabia quem ele era. Depois percebi
que ele tinha passado a noite na casa vizinha, então pareceu uma boa ideia
procurar respostas lá, já que meus pais se recusavam a me contar qualquer
coisa.
— Como assim, você não sabia? — ele perguntou, incrédulo. — Sua
mãe é uma Protetora, não faz sentido nenhum.
— Ninguém nunca me contou, nem sobre quem ela é ou quem sou.
Ela disse que queria me proteger. — Dei de ombros. — Acho que ela
esperava que o fato de eu não saber a verdade, fosse manter Vicenzo longe.
Ele revirou os olhos e eu ri. Apesar de qual fosse o problema de
Roman com Nathan, e vice-versa, eles compartilhavam opiniões bem
parecidas. Ambos não pareciam concordar com a mentira que minha mãe
escolheu defender, durante toda a minha vida. Porém, enquanto o Protetor
de olhos chocolates era sério e disciplinado, este ao meu lado parecia uma
força da natureza, instável e completamente incontrolável. Entendia um
pouco do motivo pelo qual os Protetores pareciam temê-lo: era porque eles
sabiam que não poderiam domá-lo.
— E você está bem com o que descobriu?
Mordi o lábio inferior, pensando sobre sua pergunta com cuidado.
Eu estava bem com tudo isso? Estava bem com a verdade?
Finalmente, dei de ombros.
— Estou feliz que minha vida não seja mais baseada em uma
mentira. — Meus dedos se enrolaram na barra da camiseta que Nathan me
emprestou. — Estou bem com saber a verdade, mas não exatamente com o
que ela implica. Isso faz sentido?
Seus olhos azuis impressionantes me encararam com uma
intensidade que nunca presenciei antes.
— É bom saber quem é, mas não tão bom saber que existem
assassinos atrás de você? — Ele abriu um sorriso torto, que não chegava
aos seus olhos. — É, faz sentido.
— Eu ainda me sinto uma idiota por não ter percebido antes —
murmurei, olhando o céu ficando cada vez menos escuro.
Percebi que ele estava me analisando, mas mantive meus olhos
longe dele. Eu achava que sempre seria meio intimidante conhecer pessoas
novas, conversar e manter contato visual com elas. Parecia tão diferente do
que minha vida tinha sido até então. Eu nunca falava com estranhos e,
apesar de Nathan não ser exatamente alguém novo, eu não me lembrava
dele. Éramos novos demais para termos tido qualquer contato profundo ou
que tornasse essa aproximação repentina, menos assustadora.
— E como foi que Jasmine manteve tudo isso escondido por tanto
tempo? — ele finalmente perguntou.
Essa era uma pergunta de mil respostas.
Minha mãe foi muito boa em me manter escondida do mundo. Eu
não tinha redes sociais, não tinha amigos e não andava em meio a
multidões. Fui ensinada em casa desde que me lembrava e meus pais eram
minhas únicas companhias. Mas eu tinha tornado aquilo fácil para eles. Eu
não questionei suas atitudes, até que os resultados delas, tivessem explodido
na minha cara.
Talvez minha mãe não tivesse conseguido me manter no escuro, se
eu tivesse mostrado mais determinação em sair na luz.
— Desde pequena vivíamos nos mudando de uma cidade para outra.
Acho que nunca passei mais de um ano em um único lugar, exceto o Lago,
antes de nos mudarmos pela primeira vez — expliquei vagamente. — E
minhas aulas sempre foram em casa. Nunca tive contato real com ninguém,
além dos meus pais.
— Espero que sua gaiola tenha sido confortável.
Eu olhei para ele e sorri com escárnio.
— De fato, eu não tinha do que reclamar.
Seu sorriso se igualou ao meu.
— Isso explica como ainda está viva.
Assenti.
— Acho que essa era a intenção.
Ele concordou, com os olhos agora na rua além da janela, onde o
céu começava a ser tomado pelo crepúsculo lentamente. Ficamos assim por
bons minutos, até que ele quebrou o silêncio.
— Conseguiu encontrar algo que te ajudasse?— Olhei para ele
confusa. — Quando invadiu a casa — completou.
Não me passou despercebido que ele não disse “minha casa”.
Será que quando abandonou o Outro Lado, sua ideia também era
abandonar a casa onde cresceu?
— Mais ou menos. — Meus dedos coçaram a marca em minha mão,
enquanto tentei não parecer nervosa. — Vocês têm muita pouca coisa em
uma casa tão grande.
— Faz um tempo desde que realmente moramos lá. — Eu poderia
ter imaginado a amargura em sua voz, mas não estava tão certa disso.
Nathan puxou as pernas para o peito, como eu. Seus braços
esticados sobre os joelhos estavam flexionados e suas mãos estavam tão
apertadas que veias cobriram seus punhos. Ele me olhou de canto de olho e
eu desviei o olhar, envergonhada por ter sido pega enquanto o observava.
— Acho que entrei no seu quarto primeiro. — Mordi o lábio. —
Desculpe. Tive que pular a janela porque as portas estavam trancadas, e seu
quarto era o mais próximo.
Ele riu.
— Pelo que vejo seus pais podem não ter te contado a verdade, mas
é mais esperta do que uma humana reclusa deveria ser.
— Eu fui treinada desde pequena. Minhas habilidades podem não
ser tão boas quando vocês claramente roubam com esses — faço uma careta
— superpoderes. Mas eu sei como invadir uma casa ou me soltar de cordas
ou correntes. — Arqueei a sobrancelha em sua direção. — Não sou
completamente inútil, sabia?
Nathan esticou os braços.
— Já que você é imprudente ao ponto de se enfiar em uma luta para
tentar salvar a minha bunda, eu diria que é bom saber que você ao menos
sabe tentar se defender.
“Sabe tentar.”
Talvez eu devesse chutar sua bunda, agora mesmo, para provar que
posso fazer mais do que tentar.
Mas, mais uma vez, a luta nunca era justa com pessoas como ele.
— Você é muito petulante.
Dessa vez ele riu.
— Como sabia que o quarto era o meu?
Dei de ombros.
— Estou deduzindo. O cheiro do seu sabonete lembra o cheiro que
senti lá. — ele pareceu surpreso com o meu método de dedução. Ele
realmente esperava que eu fosse completamente incapaz? — O que? Eu sou
bem observadora.
Nathan balançou a cabeça, um sorriso torto nos lábios.
— Percebi isso. — Agora ele estava me olhando descaradamente.
Olhos azuis curiosos, tentavam invadir minha mente, como se ele quisesse
respostas para perguntas que ainda não haviam sido feitas, ou não tivessem
ideia de quais seriam. — E então, encontrou algo interessante?
— Não no seu quarto. — Meu lábio já estava começando a arder de
tanto que eu o mordia. Por que eu estava nervosa? Não era como se ele
parecesse bravo com a invasão. Mas eu sentia, em meus ossos, que se eu
fosse honesta com ele, estaríamos entrando em território perigoso. Mesmo
assim, arrisquei: — Mas quando eu estava quase indo embora, encontrei o
porão. Havia algumas coisas da sua mãe.
Todo o rosto de Nathan mudou e então eu me arrependi. Seu
semblante ficou mais sério, ainda mais sombrio. Vi seu peito subir mais
quando inspirou longamente. Se eu tinha qualquer intenção de contar a
respeito dos sonhos, sua reação era a dica que eu precisava para não fazer
isso. Diana era definitivamente um assunto do qual ele não estava
confortável, como eu já imaginava que fosse o caso.
Decidi não contar sobre o que vi exatamente, e muito menos citar a
carta.
— Desculpe. Eu não sabia o que estava olhando.
— Não — sua voz era quase um suspiro. — Faz muito tempo desde
que tive coragem para olhar aquelas coisas.
— Por que?
— Porque, às vezes, prefiro não lembrar.
Nathan não disse mais nada e eu também não. Eu era capaz de
entender seus motivos, mesmo sem que ele os listasse. Nunca perdi
ninguém que amava em minha vida. Quando nasci, meus avós, dos dois
lados da família, já tinham falecido, então minha vida sempre foi resumida
aos meus pais. Nunca precisei lidar com a perda, mas entendia sua dor,
mesmo que nunca a vivenciei. Toda noite que tinha um dos meus pesadelos,
era como se eu pudesse sentir a dor. Não apenas a dor que vinha com a
morte, mas aquela que vinha depois, com a consciência de que uma vida
havia sido perdida, acabada. Tomada. Como se fosse um membro da minha
família morrendo. Como se nossas almas fossem conectadas de alguma
forma e a minha quebrasse um pouco, sempre que as assistia morrer.
Sempre achei que aquelas garotas eram alguma versão minha, feita pelo
meu subconsciente, com o objetivo de me aterrorizar. Agora que sabia que
os sonhos eram reais, acontecimentos de um passado distante, aquelas
mortes doíam ainda mais.
Raios de luz começaram a surgir no horizonte e ficamos assim,
calados, um ao lado do outro, até o céu estar completamente claro. Pouco
depois do azul claro tomar a imensidão à cima de nossas cabeças, Nathan se
levantou e foi ao banheiro, levando uma troca de roupas. Quando voltou,
estava completamente vestido, com calças jeans escuras e camiseta preta.
Tive um leve vislumbre de sua tatuagem, antes que ele descesse a roupa,
totalmente pelo seu corpo.
Ele não precisou dizer nada para que eu soubesse que estava na hora
de ir embora. Hora de voltar para casa e enfrentar a ira dos meus pais.
Provavelmente de Roman e Serena também.
Levantei-me e peguei as minhas próprias roupas, indo para o
banheiro me trocar também. Quando estava pronta e vestida com as roupas
sujas do dia anterior, Nathan estava dando comida para Zeus.
— Ele vai com a gente? — perguntei.
Nathan assentiu.
— Vou deixá-lo na casa do Lago até que eu decida o que fazer. —
Seus olhos azuis me fitaram. — Tenho certeza de que Ravenna e sua mãe
vão querer detalhes sobre ontem.
Claro.
— Sinto muito.
Ele abriu um sorriso quase divertido, que fez meu corpo se arrepiar.
Por alguma razão, aquilo pareceu familiar.
— É o meu trabalho, Alyssa. Pare de se desculpar.
— Você vai arrancar sangue das suas palmas se não relaxar um
pouco.
Estiquei meus dedos, antes fechados em um punho que fazia minhas
unhas cortar minha pele. Nathan estava certo. Eu precisava relaxar.
— Eu tenho bons motivos para estar nervosa.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Sua mãe vai entender.
Bufei.
— Ah, você não conhece minha mãe. Ela vai me trancafiar de vez
— eu retruquei. — Terei sorte se puder andar da soleira da minha casa até o
Lago.
Entender que eu queria me divertir? Entender que apesar de eu ter
tudo o que eu precisava, ainda assim, havia essa necessidade dentro de mim
de viver aquilo que não podia ser vivido, dentro das paredes da minha casa?
Minha mãe não iria compreender isso, porque era algo totalmente egoísta e
mesquinho. Porque, apesar de um pouco tarde demais, só agora descobri
que minha vida não era só minha.
Talvez ela estivesse certa em me prender desde o início. Depois que
provávamos a liberdade, era difícil aceitar o enclausuramento.
Ele me observava de canto de olho, mas não disse nada. Talvez ele
concordasse com minha mãe. Afinal, eu era aquela que deveria cumprir
uma profecia de milhares de anos, matando um homem mais velho do que
ao menos era capaz de imaginar. Era uma ideia sensata que eu pausasse
minha vida até que eu pudesse cumpri-la.
Eu poderia aceitar isso, não é? Faltava apenas alguns meses até eu
fazer dezoito anos. Eu poderia esperar. Poderia colocar minha vida em
pausa, contentar-me com os livros, os filmes e os treinos. Poderia aceitar
que ficar presa em casa, fosse apenas uma permuta para que eu pudesse
alcançar a maioridade.
Talvez eu pudesse.
Eu apenas precisava aceitar que viver trancafiada era a melhor
opção até que o destino se cumprisse. A minha vida não tinha sido muito
diferente até então. Eu só precisava ignorar aquela vozinha em minha mente
que me dizia que outras Fidlys tentaram o mesmo e, mesmo assim,
acabaram mortas de alguma forma.
Eu precisaria ignorar aquela vozinha insistente que me dizia que eu
não teria um futuro para aproveitar.

O caminho até o Lago foi silencioso. Não falamos nada quando


Nathan estacionou seu carro atrás de sua casa, próximo ao jardim dedicado
à sua mãe. Continuamos sentados e silenciosos, mesmo quando avistamos
meus pais, Roman, Serena e um homem muito parecido com Nathan,
através do para-brisa. Todos parados a poucos metros de onde estávamos.
Eu tentei usar a distância e a barreira que era o carro, para não fazer
contato visual com a minha mãe, mas estava difícil. Meu pai parecia sereno
como sempre, mas uma ruga persistente cruzava sua testa. Serena estava
aliviada. Roman parecia irritado, mas estava fuzilando Nathan, o que
poderia significar que a emoção não era direcionada a mim. O homem, que
eu imaginava ser Brian, pai de Nathan, estava... Bem, não havia nenhuma
emoção em seu rosto. Ele era a visão perfeita do desinteresse. Tão diferente
do filho, que mesmo quando possuía um olhar frio no rosto, parecia
queimar em todos os outros lugares.
Apesar da diferença em suas expressões, Brian era tão lindo quanto
o filho. Quanto mais me aproximava, mais podia ver a semelhança. Apesar
de Nathan ter os olhos e o cabelo da cor dos da mãe, o resto dele era
anguloso e imponente como o do pai, que nem mesmo aparentava ser seu
pai. Eu poderia facilmente tê-los confundido com irmãos. Acho que Brian
não deveria ter muito mais que dezesseis anos quando se relacionou com
Diana, resultando no nascimento de Nathan.
Só quando seus olhos cor de mel pareceram capazes de me queimar,
eu me permiti encarar minha mãe. Raiva. Medo. Frustração. Um turbilhão
de emoções passou pelo seu rosto, e meu coração doeu quando vi uma
lágrima solitária escorrer por seus olhos. Jasmine, como a guerreira que eu
sabia que era — talvez muito antes de descobrir a verdade —, estapeou a
lágrima para fora do seu rosto.
Minha mãe sempre foi muito contida a respeito de suas emoções.
Suas ordens sempre foram muito claras e ela sempre prezou pela
organização e obediência. Talvez, caso eu tivesse me permitido ver além da
fachada que meus pais criaram e além das minhas próprias concepções
humanas, onde o mundo para o qual fui apresentada, simplesmente não
existiria... quem sabe eu pudesse ter percebido o quão não humana ela era.
Minha mãe não falhava. Ela repudiava desordem. Estava sempre certa e
completamente sob controle de suas ações. Jasmine Monroe era a melhor
personificação de um soldado. E não havia nada de humano em sua
perfeição.
Mas agora ela parecia ter perdido toda sua compostura e lutava
bravamente para se controlar. Era a primeira vez que a vi em suas roupas de
couro, como a dos outros Protetores, e ela nem se assemelhava à mulher
que havia me criado. Seu cabelo estava desarrumado e seus olhos inchados.
Percebi que devia ter passado a noite me procurando, enquanto matava
Desertores, o que explicaria o sangue em suas roupas.
A mágoa em seu olhar me acertou em cheio. Ela me implorou para
viver há poucos dias atrás, e foi isso que tentei fazer, mas sabia bem que
nossas percepções quanto à vida eram completamente diferentes. Minha
mãe queria que eu sobrevivesse até eu fazer 18 anos e poder lutar. Mas eu
queria viver, porque não havia garantia nenhuma de que iria conseguir
atingir a maioridade. A história provou o quão fácil era matar uma Fidly e
eu não podia deixar de pensar, que talvez eu não devesse ter esperança de
ser a exceção àquela regra.
— Está pronta? — Nathan me olhou, sentindo a tensão irradiar de
mim. — Acho que devíamos ir. Eu odiaria ver sua mãe vindo até aqui e
danificando meu carro.
Suspirei, com um sorriso triste na boca.
Abri a porta e pulei para fora, antes que eu pudesse mudar de ideia e
correr para qualquer lugar longe dali.
Diferente de mim, Nathan saiu graciosamente, parecendo um
maldito rei. Suas roupas pretas deram espaço a uma camiseta cinza. Ele
ainda parecia ter sido esculpido por algum artista muito talentoso, e não
deixava ninguém quebrar sua postura intacta, enquanto eu me sentia
pequena e intimidada por tantos olhares em nossa direção. Ele não parecia
frio como o pai. Era mais como um fogo que permanecia sob controle.
Perigoso, mas controlado — pelo menos por enquanto. Como se não desse
a mínima para nada, muito menos para as caretas que nos direcionavam, ele
contornou o carro e abriu a porta para Zeus sair. O cachorro desceu, sem dar
a mínima para as pessoas reunidas, e saiu correndo pelo gramado depois de
uma ordem vinda de Nathan. O lobinho, sortudo, permaneceu alheio a toda
agitação que nos esperava.
Hesitei por um minuto, antes de ficar frente a frente com todos eles.
Nathan estava logo atrás de mim, passos firmes e certos. Suspirei e estiquei
minha coluna, tentando ao menos fingir que sabia o que estava fazendo.
Queria ter a compostura que todos os Protetores pareciam ter. Como se nada
os abalasse. Teria sido bom ser treinada como um deles, afinal.
Minha mãe cortou a distância entre nós. Por um momento, pensei
que fosse me bater, a fúria em seus olhos queimando os meus. Mas então
ela me puxou para um abraço apertado. Seus braços me apertaram tanto que
mal consegui respirar, e precisei engolir a dor aguda em minhas costelas
para não assustá-la ainda mais. Eu esperava que ela começasse a gritar
comigo primeiro, mas aproveitei para abraçá-la de volta. Apesar disso, eu
não estava muito errada em minha previsão. Assim que Jasmine me soltou,
começou a falar, tão irritada como jamais a vi:
— Eu não acredito no que você fez! Depois de tudo o que
conversamos, arriscar-se assim foi uma tremenda idiotice e você sabe! —
Seus olhos cor de mel até pareceram mais escuros. — Nunca imaginei que
você fosse tão ingênua ao ponto de achar que aquilo fosse uma boa ideia,
Alyssa.
— Jasmine, deixe que ela se explique primeiro — meu pai tentou se
intrometer, mesmo com seu olhar desapontado direcionado à mim. Mas,
como eu bem esperava, minha mãe não cederia. Não depois de ontem.
— Não há o que explicar — minha mãe retrucou, lançando um olhar
irritado para ele. Depois, voltou a focar em mim. — Você se colocou em
risco e ainda atraiu vários Desertores para a cidade, colocando em risco não
só a sua vida, mas a dos humanos também. — Seus olhos me fuzilaram. —
Você tem alguma ideia do que causou? Alguma ideia do que o seu egoísmo
nos custou? Há anos os Desertores não enchiam as cidades próximas ao
Lago. Anos, Alyssa. E agora que eles sabem que você está aqui e se
arriscando por aí, o preço pela sua cabeça acabou de se tornar mais atrativo.
Engoli em seco.
Não sabia o que responder. Não havia uma boa resposta. Minhas
razões eram egoístas demais para serem justificativas plausíveis. E, quando
olhei para Serena e Roman, soube que estavam tão desapontados quanto
minha mãe. Eles poderiam ser punidos pela minha escolha imprudente? Eu
não permitiria. Não deixaria que pagassem o preço pelo o que eu escolhi
fazer.
— Os Desertores não apareceram naquele festival por causa de
Alyssa — a voz profunda e meio rouca veio de trás de mim, onde Nathan
estava parado com as mãos no bolso. Seu rosto perfeito pareceu menos
indiferente agora e percebi, na fração de segundo em que ele lançou um
olhar para o pai, a raiva que tentava tanto conter. — Eles descobriram que
eu estava na cidade e me seguiram até lá. Alyssa foi pega no fogo cruzado,
mas ela não atraiu ninguém. Os Desertores só perceberam quem ela era
mais tarde. — Ele então passou os olhos por cada um dos Protetores ali. Até
mesmo meu pai foi alvo de sua atenção. — Aliás, obrigado por me
informarem sobre ela.
Por alguma razão, sua confissão não me trouxe mais paz. E nenhum
deles pareceu nem um pouco satisfeito com o que Nathan disse também.
O que aconteceu a seguir foi tão rápido que mal se passou de uma
mancha no meu campo de visão. Corpos se chocaram com tanta força que o
barulho chegou aos meus ouvidos. Virei-me em pânico para encontrar
Roman com as mãos em volta da garganta de Nathan.
— Seu idiota mesquinho! — a voz de Roman foi um rugido. —
Você a colocou no meio disso! Você não deveria tê-la levado quando eu
estava lá como responsável por ela!
A raiva entre eles era quase palpável. Os garotos se fuzilaram, mas
diferente de Roman, Nathan não ergueu a mão. Ainda. Eu podia ver que ele
tremia, as mãos fechadas em punhos. Mesmo assim, ele esperou, parado,
enquanto os dedos do outro Protetor marcavam sua pele.
— Tire suas mãos de mim, antes que eu quebre a porra dos seus
dedos — a voz de Nathan era baixa, mas eu a senti em meus ossos.
Roman não se mexeu.
— Roman, por favor, pare com isso — pedi baixinho. Parte de mim
tinha medo de gritar e piorar tudo.
Nathan estava começando a ficar vermelho, mas ainda não havia se
movido para atacar, mesmo que estivesse claro que ele poderia. Suas mãos
estavam livres, seria fácil para ele pelo menos empurrar Roman.
Serena se aproximou deles, mas não interferiu. Minha mãe e Brian
observaram, esperando que o senso recaísse sobre os garotos e eles se
recompusessem. Meu pai, por sua vez, colocou a mão sobre o ombro de
Roman, como se aquilo fosse aviso o suficiente.
Os segundos pareceram passar martelando na minha mente. 1. 2. 3.
4. 5. Roman não se moveu. 6. 7. 8. 9. 10. Nathan parecia estar prestes a
arrancar o coração de seu antigo colega.
Eu estava a um passo de tentar afastá-los, quando — finalmente —
alguém os interrompeu. Brian andou até os garotos com passos largos. Uma
mão pousou no ombro de Roman, do outro lado da do meu pai, e a outra se
firmou no peito de Nathan.
— Parem. Agora.
Foram apenas duas palavras, mas a ordem era inquestionável. A voz
fria e consistente de Brian fez meus ossos tremerem. E logo percebi que,
quem quer que ele tivesse se tornado após a morte de Diana, não era apenas
um Protetor qualquer.
Os garotos o olharam, como se incapazes de retrucar. A raiva de
Nathan persistiu, enquanto encarava o pai, mas Roman parecia respeitá-lo
demais para desobedecê-lo. Com um olhar tenso, suas mãos se afrouxam e
finalmente soltaram o pescoço de Nathan.
Roman deu um passo para trás, aproximando-se de mim, mais
protetor do que nunca, e não disse nada. No entanto, Nathan lhe lançou um
olhar frio.
— Da próxima vez que colocar as mãos em mim, vou cortá-las.
Eu estava completamente chocada com suas palavras quando me
virei para o Protetor de olhos azuis. Não foi uma ameaça vazia. Ele
realmente quis dizer isso.
Minha mãe andou até Nathan, com um olhar firme.
— Você desrespeitou minhas ordens diretas, Nathan. Eu ordenei que
a trouxesse de volta, mas você se recusou.
— Eu sabia o que estava fazendo — retrucou, irritado. — Se eu
tivesse vindo ao Lago com ela, os Desertores teriam nos encontrado no
meio do caminho.
— Nós estaríamos aqui para pará-los — Roman rebateu.
Nathan simplesmente deu de ombros.
— Eu fiz uma escolha. E era a certa.
A expressão no rosto de minha mãe se tornou obscura. Fria. Quase
cruel.
— Você não toma as decisões. Eu tomo as decisões.
— E foi você que tomou a decisão de manter a existência da Fidly
escondida de mim? — Recuei um passo, tentando não me sentir ofendida
por Nathan se referir a mim, como se eu fosse algum tipo de objeto do qual
deviam receber atualizações constantes. Tentei me lembrar, de que ele era
um Protetor como todos os outros e minha existência só era importante para
uma única coisa: matar Vicenzo.
Eu era uma barganha e deveria me tornar sua arma.
— Acho que podemos perceber que eu estava certa — minha mãe
cuspiu. — Não posso confiar minha filha a você.
Nathan abriu um sorriso frio.
— Não sei se percebeu, Jasmine, mas sua filha está bem por minha
causa. Eu a mantive salva.
Eu não via a hora de poder dizer isso sobre qualquer um deles.
Queria ver como se sentiriam quando eu me tornasse a salvadora do dia.
Seria uma mudança interessante para meu ego ferido.
— Isso não quer dizer que tomou as decisões certas — Brian disse
ao filho, o rosto passivo.
— Se os Desertores estão mesmo atrás dele, ele nem deveria estar
perto dela — Roman acusou.
— Talvez, se você fosse um Protetor melhor, eu não precisaria fazer
o seu trabalho — Nathan atirou de volta.
Eu era a Fidly.
Eu era um trabalho.
Era isso que havia me tornado. Não. Era isso que sempre havia sido,
mas só tinha descoberto agora.
— Chega — minha voz foi firme. Acho que a raiva me dava mais
controle do que qualquer outra emoção e fiquei grata por isso. — Nathan
me manteve segura, e me pareceu uma boa ideia não voltar para o Lago de
imediato. Roman e Serena não têm qualquer culpa sobre o que aconteceu,
eu os obriguei a me levarem ao festival. E nada disso irá acontecer
novamente, então podemos terminar esta conversa.
Minha mãe me olhou atentamente, avaliando-me de cima a baixo,
como se esperasse encontrar algo errado. Meu pai, contudo, pareceu
orgulhoso de alguma forma. Eu não devia estar surpresa que ele tentasse
enxergar o melhor de toda situação.
— Quero você longe da minha filha — minha mãe apontou para
Nathan.
— Mãe... não é culpa dele.
— É tudo culpa dele. A indecisão dele fica atraindo os Desertores o
tempo todo, o que o faz uma ameaça ambulante — Roman alegou.
— Não há indecisão, Roman. Não repita isso — Brian cortou, seu
olhar parecendo duas facas apontadas para o Protetor ao meu lado.
Meus olhos pularam para Nathan, que me encarava parecendo...
Confuso. Acho que parte dele talvez se questionasse. Questionasse sua
credibilidade. Tentei mostrar-lhe que não concordava com eles. Não era
justo que ele se sentisse uma falha, quando na verdade era muito bom no
que fazia.
Nathan, então, se virou para Roman e disse, entredentes:
— A minha única indecisão, Roman, é se deveria manter a porra dos
seus dentes na merda da sua boca.
Serena avançou um passo.
— Vocês dois deveriam parar com todo esse ataque. Nós já temos
inimigos o suficiente para termos que lidar com picuinhas internas.
Resolvam sua merda quando estiverem sozinhos.
Graças aos céus alguém sensata! Só não sabia se seria uma boa ideia
que eles se resolvessem sozinhos. Alguém provavelmente sairia morto, ou
no mínimo gravemente ferido.
— Se vocês tivessem me informado, poderia ter tomado o cuidado
de matar os desgraçados, antes que me cercassem na cidade. Por que eu não
fui notificado sobre isso? — Nathan perguntou, dividindo a atenção entre
minha mãe e seu pai.
— Nós falaremos sobre isso mais tarde, filho — Brian respondeu,
calmamente. — Você estava ocupado demais com o seu último trabalho.
Nathan me olhou de canto de olho, depois encarou o pai.
— Aparentemente, eu não posso confiar que você siga as ordens,
Nathan — minha mãe disse. Nathan quase pareceu machucado quando a
encarou. Por muito pouco, não ficou claro o quanto aquilo parecia afetá-lo.
Mas eu vi. Antes que ele cobrisse seus sentimentos com uma camada de
indiferença, eu vi. — Não posso confiar a vida da minha filha na sua
insubordinação.
— Jasmine... — Brian alertou.
— Não vamos nos precipitar com acusações — meu pai disse. —
Todos estamos cansados, vamos tomar um tempo antes de discutir sobre
como o que aconteceu, não poderá nunca mais se repetir.
— Eu não preciso de tempo para ver o problema aqui — minha mãe
despejou.
Eu abri a boca para interromper, para contradizê-la. Era injusto que
ela colocasse o peso do que aconteceu sobre os ombros do Protetor quando,
na verdade, fui eu que me coloquei naquela posição.
Os olhos azuis de Nathan pousaram em mim. Ele me observou
como se estivesse me vendo pela primeira vez. Como se só então tivesse
tomado consciência da minha existência. Então, ele se virou para minha
mãe, os olhos queimando aquele fogo trancafiado em sua alma.
— Acho que eu não sou o único que não pode ser confiado,
Jasmine.
Dito isso, ele se virou e saiu andando para a própria casa, deixando-
nos para trás sem mais nenhuma palavra.
Meus pés deram um passo antes que minha mente me fizesse ficar
quieta. Eu não o segui. Não impedi que se fosse, antes de conversar sobre
isso. Parecia injusto que ele alegasse que qualquer um ali não merecesse
confiança quando tudo o que fizeram desde que os conheci, foi me manter
segura. Mesmo Brian parecia ter um grande papel em minha segurança,
apesar que aquela foi a primeira vez que ficávamos cara a cara.
Não podia deixar de pensar nas palavras de Roman de um tempo
atrás, enquanto encarava as costas de Nathan. Parte de mim buscava
justificativas para negá-las ou pelo menos justificá-las. Mas a cada passo
que Nathan dava para se afastar, eu me perguntava se Roman estava certo
afinal.
Talvez Nathan fosse mesmo uma bomba relógio prestes a explodir.
— Roman e Serena — minha mãe chamou. — Vocês já podem ir.
Vou ajudar Alyssa a arrumar as coisas e iremos logo em seguida.
Virei-me para encarar minha mãe, sem entender do que ela estava
falando.
— Para onde estamos indo?
— Vamos para o Outro Lado ainda hoje, Alyssa. Pelos próximos
meses você viverá lá — disse, incapaz de me encarar. Seus olhos estavam
em meu pai, buscando apoio. — Este é o resultado da sua rebeldia.
Meus olhos correram pela minha casa e o Lago.
— Você está brincando.
— Não temos outra opção, filha — meu pai respondeu.
Ele me olhou preocupado. As linhas de expressão em sua testa
nunca foram tão profundas. Lembro da primeira que vi uma aparecer, bem
ali, acima da linha do nariz. Eu tinha doze anos e nós estávamos morando
no Alasca porque meu pai queria estudar algumas propriedades de algumas
pedras, que encontrou em suas pesquisas. Meu pai e suas pesquisas. Anos
de dedicação em descobrir algo que nunca entendi e que logo percebi que o
frustrava.
Nessa época, algo estava errado. Minha mãe vivia resolvendo
assuntos fora de casa e meu pai ficava para cuidar de mim. Acho que o que
eu pensava, na época, ser assuntos de trabalho, podem ter sido a ameaça dos
Desertores, ou algum papel como Protetora que Jasmine precisava cumprir.
Não deixava de ser engraçado como as coisas se encaixavam depois que a
verdade se estabeleceu. Como cada pequeno detalhe, que antes parecia algo
simples, encaixava-se perfeitamente dentro dessa nova realidade. Pequenas
coisas que antes nunca levei muito a sério e hoje faziam toda a diferença.
Tinha certeza de que aquela primeira ruga surgiu por minha culpa, assim
como agora outra ameaçava marcar seu lindo rosto para sempre.
— Depois de hoje, não posso mais confiar que você me obedecerá
— minha mãe disse. — Não sou capaz de convencer mais ninguém sobre
sua segurança aqui quando claramente me desrespeita, e faz com que seus
Protetores quebrem as regras.
Serena se encolheu e Roman desviou o olhar.
Engoli a raiva que ameaçou me tomar.
Eu nem mesmo podia me irritar. A culpa era minha. Eu sabia que eu
deveria ficar quieta em casa. Eu sabia que era um risco e mesmo assim
escolhi tomá-lo.
Eu peguei a mão de Serena e apertei, tentando lhe reconfortar. Nada
do que havia acontecido dizia qualquer coisa sobre sua competência. Ela
havia feito o que eu pedi, porque era minha amiga e eu nunca me esqueceria
disso. Nunca me esqueceria dessa prova de confiança e amizade. Talvez eu
não soubesse como era ter amigos antes, mas desconfiava que agora sabia.
Minha amiga me abraçou rapidamente e começou a andar em
direção ao Lago. Procurei Roman, precisava que ele soubesse que sentia o
mesmo em relação a ele. Assim como Serena, Roman não tinha culpa e,
quem sabe, seria um bom amigo também. Mas não pude fazer nada disso.
Roman já estava andando atrás de Serena, sem nem mesmo um olhar de
despedida.
Tudo bem. Eu merecia por tudo o que o havia feito passar.
Suspirei e voltei a enfrentar meus pais, muito menos determinada do
que pretendia.
— Não há nada que eu possa fazer para fazer vocês mudarem de
ideia, não é?
Meu pai pareceu triste.
— Vai ser mais seguro assim.
Mordi o lábio, coçando a marca em minha mão.
— O Outro Lado é um lugar agradável, Alyssa. Não deixe que meu
filho lhe influencie — a voz de Brian me surpreendeu. Mal me lembrava
que ainda estava ali.
Olhei para ele.
— Ele não tentou me convencer a respeito de nada. Tudo que me
disse sobre o Outro Lado é que não pretende voltar se puder evitar. — Dei
de ombros. — Em nenhum momento tentou me fazer pensar o mesmo. —
Eu voltei a olhar minha mãe. — Não entendo porquê o trataram daquela
forma. Nathan me manteve segura. Ele não me colocou em perigo, não fez
nada a não ser buscar ser um bom Protetor.
— Ele foi irresponsável — minha mãe argumentou.
— Por que? Porque estava no mesmo lugar que eu? — questionei.
— Fui eu que tomei a decisão, mãe. Fui eu que me coloquei em perigo.
Nathan apenas reagiu a situação.
Mamãe quase riu, debochada.
— Não estou tentando defender seu erro estúpido, Alyssa. Estou
apenas apontando a irresponsabilidade de um Protetor. O trabalho dele era
obedecer a minha ordem, não ignorá-la como fez ontem quando não a
trouxe de volta.
Olhei para suas roupas ensanguentadas.
— Ele parecia certo em prever um ataque no caminho de volta.
Minha mãe não cedeu.
— Existe uma hierarquia por uma razão, Alyssa. Nathan precisa
aprender a segui-la.
Brian se intrometeu:
— Eu vou conversar com Nathan, Jasmine. Não se preocupe.
Minha mãe pareceu mais satisfeita ao encarar Brian.
— Faça isso. Não quero ele perto de Alyssa.
Revirei os olhos.
— Isso é uma ordem de sua alta hierarquia também, mãe?
— Ele é imprevisível e incontrolável — ela continuou, inalterada.
— Não vou confiar nele perto de você.
— Jasmine, não seja tão irredutível. Vamos falar sobre isso depois
— meu pai disse, um olhar sério para a esposa.
Olhei para Brian, esperando que ele defendesse o filho, mas ele não
o fez. Seus olhos estavam perdidos, encarando meus pais com uma
indiferença que não sabia mais se era natural ou forçada. Por um segundo,
pensei que talvez ele se ressentisse dos dois, mas logo me atingiu que,
talvez, a questão ali fosse ver o relacionamento que ele nunca teve a chance
de ter. Devia ser difícil encarar o que ele podia ter tido com Diana, mas
perdeu. Sua indiferença parecia quase como um trabalho extra. Era como se
ele estivesse... vazio.
— Ele não é o inimigo — tentei lembrá-los.
— Claro que não — meu pai concordou.
Minha mãe não respondeu.
Ouvi Brian soltar um suspiro baixo e contido.
— Devo ir agora. — Ele se virou para mim e se aproximou, ficando
a pouco menos de dois metros de distância. Ele me observou atentamente,
os olhos parando por um longo segundo na marca em minha mão. A mesma
marca que Diana carregou um dia. Seus olhos encontraram os meus e ele
me deu um aceno contido com a cabeça. — Foi um prazer vê-la novamente,
Alyssa.
Queria perguntar quando foi a última vez que ele me viu, mas não
tive tempo. Assim como o filho, Brian se foi tão rápido quanto chegou.

Eu estava fazendo a minha mala como se estivesse prestes a encarar


a forca. Minha mãe me avisou para colocar roupa o suficiente para alguns
meses, então amassei meus pertences com raiva dentro do pequeno espaço.
Ela deixou bem claro que depois que eu estivesse do Outro Lado, eu não
sairia tão cedo.
— Não quero ouvir nenhuma palavra sua, Alyssa — foi o que minha
mãe disse, quando pedi que reconsiderasse.
Eu queria poder passar meu tempo em casa. Queria poder viver
aqui, até não ter mais a chance, mas sabia que era egoísmo meu. Devíamos
partir em algumas horas e, sinceramente, estava tentada a me trancar no
quarto e fazer birra. Não sabia o que me esperava do Outro Lado porque
nunca me deram muitos detalhes, mas algo me dizia que não seria nada
mais que uma prisão.
E este era o problema.
Estar presa aqui, em minha própria casa, era diferente de estar presa
em um lugar desconhecido. Aqui tinha certa liberdade, mesmo que restrita.
Tinha meu próprio quarto e banheiro. Tinha meus livros e minhas próprias
coisas. Ali, podia andar pela casa o quanto quisesse sem medo de atrapalhar
alguém. E também havia o Lago. Mas, para onde estava indo... Não sabia o
que esperar. E não saber me atormentava. O controle era o pouco que eu
ainda fazia questão de ao menos tentar ter.
Minha porta rangeu ao ser aberta devagar. Ergui a cabeça esperando
encontrar minha mãe furiosa, mas me deparei com papai.
Ele não disse muito desde que voltei para casa. Henry Monroe
nunca foi muito cheio de palavras a serem ditas, em geral, meu pai era bem
quieto. Mas hoje, seu silêncio era mais que resguardado... era angustiado.
Papai não impediu que mamãe gritasse e me dissesse o quão decepcionada
estava e isso era porque ele sentia o mesmo. Eu havia traído a confiança dos
dois, mesmo que ele não fosse tão enfático a respeito.
— Está pronta? — Ele apontou para minha mala.
Neguei, balançando a cabeça.
— Ainda não sei bem o que levar.
Ele suspirou e entrou no quarto de vez, encostando a porta atrás
dele.
— Tente levar tudo que possa te ajudar a se sentir em casa.
Olhei para Henry. Não somente o homem que era meu pai, mas o
homem que estava preso a esta vida, que nem ao menos lhe pertencia. O
homem que se apaixonou por uma Protetora, tendo sua vida invadida por
uma história tão inacreditável que parecia uma mentira. Uma vida que eu
nem ao menos sabia se entendia completamente. Reparei nos ombros tensos
e no aspecto cansado de quem poderia ter tido uma vida humana comum,
mas que ao invés disso, foi concedido a uma criança que deveria cumprir
um destino sobrenatural.
Agora, este mesmo homem iria precisar se mudar para um lugar
onde as pessoas não o compreendiam ou respeitavam. Minha mãe disse que
não me deixaria lá sozinha, o que quer dizer que meu pai não deixaria
minha mãe sozinha também. Onde um ia, o outro seguia. Sempre foi assim.
Mas ele ainda era humano. Para eles, os humanos eram um tipo inferior de
seres vivos, os quais eles precisavam proteger para que o mundo não saísse
dos trilhos. Mesmo assim, meu pai estava pronto para enfrentar Protetores
desconhecidos, por mim e pela minha mãe. Isso era amor, não é?
Cumplicidade. Lealdade. A certeza de que um faria tudo pelo outro.
Como será que ele se sentia sabendo que pensavam tão pouco dele?
Eu sabia que ele era muito mais do que qualquer um dos Protetores poderia
tentar ser, mas será que ele sabia? Será que tinha consciência do quão
especial era, mesmo que o dissessem o contrário?
O amor devia doer às vezes.
— Você vai fazer isso também? — perguntei, baixinho.
— O que?
— Tentar se sentir em casa.
Ele assentiu.
— É o que planejo, sim.
Desmoronei na cama, exasperada.
— Desculpa. — Encarei o teto, incapaz de encarar meu pai. — Sinto
muito que você tenha que fazer isso.
— Não se preocupe. Faz um tempo desde que precisei usar minhas
habilidades sociais e diplomáticas com aquelas pessoas. É sempre bom
manter a prática.
Sorri.
— Acho que vou pegar uma mala para os livros.
Ele assentiu.
— É uma boa ideia. — Ele analisou minha estante, ao lado da minha
escrivaninha cheia de cadernos. — Mas pelo que sua mãe disse, assim que
você se mudar para o Outro Lado, os Protetores irão desenvolver uma
tabela de horários mais restrita. Seus treinos serão triplicados, Aly. Eles
querem te preparar o máximo possível.
Ótimo.
Depois de ontem, eu confessava que talvez precisasse mesmo treinar
mais. Aquela Desertora tinha conseguido me derrubar muito facilmente,
como se eu fosse uma boneca de pano. Eu poderia não ter o mesmo poder
que eles, mas eu precisava ter mais controle na luta.
Não disse nada, mas peguei uma mochila para meus livros, mesmo
assim. Eu sempre achei que teria a vida toda para lê-los. Ao longo dos anos,
comprei e ganhei mais livros do que pude ler. Agora, sentia como se
precisasse ranqueá-los para conseguir ler pelo menos os mais interessantes.
Se as coisas dessem errado, eu não iria querer morrer sem ter
terminado uma história.
— Eu sou apenas humano — meu pai disse, quebrando o silêncio.
Ergui uma sobrancelha para ele, confusa.
— Apenas?
Ele deu de ombros.
— Não tenho superpoderes ou carrego o peso do destino da
humanidade em meus ombros. — Ele me lançou um olhar travesso. — Mas
porque sou apenas humano, entendo porque se arriscou. Não aprovo, claro,
mas entendo seus motivos. Você tem dezessete anos, Alyssa, e sei que
quando decidiu ir àquele festival, estava em busca daquilo que parece não
conseguir alcançar entre essas paredes. Excitação. Alegria. Diversão. Vida.
Um nó pareceu se formar em minha garganta. Meu pai sempre foi
muito perceptivo, sempre me olhou com o cuidado emocional que mamãe
não se permitia ter. Saber que os decepcionei me corroía por dentro, mas
ouví-lo dizer que entendia... isso parece tirar um pouco do peso do fundo do
meu estômago.
Meu pai era humano, mas isso não o fazia menos corajoso. Não o
fazia menos importante. E, talvez, ser humano era o que fazia ser tão
bondoso.
— Sei o que o Destino guardou para mim, e não quero perder meu
tempo não vivendo.
— E o que exatamente o Destino guardou para você, Alyssa?
Dei de ombros.
— Sei que sobrevivi mais tempo que qualquer outra — disse. — Sei
que minhas chances foram melhores do que a de muitas antes de mim.
Mas... eu não posso deixar de lado esse sentimento de que meu destino não
será diferente do delas.
Meu pai balançou a cabeça, em discordância.
— Talvez, filha, devesse se perguntar até onde suas ações são
motivadas pelo seu desejo de viver — falou, o olhar afetuoso. — Sabe, há
outra emoção que nós, humanos, entendemos bem. Uma emoção que talvez
tenha te guiado sem que nem ao menos percebesse. — Ele apontou para
meu peito e então para minha cabeça. — Esta emoção controla tanto seu
coração quanto sua cabeça. É implacável. Incessante. — Seu sorriso era
triste agora. — Medo.
— Por que o medo me levaria a correr risco?
— O medo faz coisas estranhas com as pessoas, filha. Em alguns, o
medo paralisa, em outros, enfurece. Mas há aqueles em que o medo lhes dá
coragem. Veja bem, não há coragem sem medo, senão seria apenas uma
reação simples e coordenada. Talvez, o seu medo não seja exatamente
direcionado à morte, mas à sua incapacidade de escolha diante dela. Talvez,
se colocar em uma posição que sabe ser perigosa, faça com que se sinta no
controle de seu destino. O medo te deu coragem o suficiente para escolher.
Olhei para ele, em choque.
— Eu não sou suicida, pai.
— Não estou dizendo isso — negou. — Mas quando procuramos
liberdade, não é só para ir e vir. O que mais queremos, Aly, é controle.
Controle sobre tudo e todos, mas principalmente sobre nós mesmos.
Queremos controlar nossas vidas, mas estamos infinitamente mais
preocupados em controlar a morte. Justamente porque não temos controle
algum sobre ela.
Respirei fundo.
— Eu... Eu não sei. — Eu era incapaz de encará-lo. — Eu
não quero morrer, pai.
— Claro que não quer. — Ele se sentou ao meu lado e apertou
minha mão. — Você é uma guerreira, Aly. Mesmo que não tenha percebido
ainda. É parte de quem você é, e o que compõe sua essência. Você não irá
ser derrubada sem uma luta. — Seus olhos escuros buscaram confortar os
meus. — Você precisa encontrar a guerreira em si e fazer as pazes com este
mundo, antes que ele a engula.
Só agora, com ele dizendo tão claramente, percebi o quanto tinha
me afastado da verdade. Sempre que eu estava com algum Protetor,
desviava a conversa para assuntos triviais. Nunca me permitia saber demais
sobre o mundo ao qual fui apresentada.
Estava tentando ignorar a verdade, como se isso me permitisse estar
mais segura.
— Foi fácil para você aceitar tudo isso?
— Este mundo me trouxe sua mãe — sua voz era tomada de amor.
— Este mundo me trouxe você. — Ele passou os dedos pelos meus cabelos,
que compartilhavam a cor dos seus. — Este mundo me deu mais do que eu
poderia esperar, então o aceitei por completo e sou grato a ele. Quando você
vê a beleza no que lhe foi dado, as partes difíceis perdem a importância.
Afinal, tudo tem um lado difícil, um lado tortuoso ou complicado.
Absorvi suas palavras. Talvez ele estivesse certo. Talvez eu poderia
encontrar algo bom dentro de tudo isso, se ao menos me permitisse ver.
Ir para o Outro Lado não precisaria ser minha sentença. Poderia ser
um novo começo.
— Obrigada, pai.
Ele apertou minha mão e se levantou, alongando os braços.
— Por essa bronca? — Ele me olhou, divertido. — Porque não se
esqueça que é isto que sua mãe vai pensar que vim fazer aqui, ok?
Sorri para ele.
— Por ser humano — esclareci.
Diferente da minha mãe, as emoções corriam livres pela expressão
de papai.
— Você tem um bom coração, filha. Você não foi escolhida à toa.
Há algo dentro de você. Algo que a faz implacável. Lembre-se disso. — Ele
respirou fundo. — Mas, às vezes, é melhor ignorar seu coração, caso isso a
mantenha viva. Sei que é egoísta lhe pedir isso, mas sou seu pai, então
tenho o direito de pedir coisas estúpidas. — Ele beijou minha testa. — Você
é meu bebê. Sempre. Mesmo quando tiver trinta anos. Por isso, mesmo
entendendo seus motivos, não permitirei que o que aconteceu ontem se
repita. Não, até que eu saiba que está segura. Me entendeu?
Assenti.
Eu entendia. Entendia mesmo.
Quando cheguei ao lago, depois de anos longe, imaginei que teria
mais tempo neste lugar. Pensei que poderia aproveitar mais o verde da
mata, o azul da água e o ar fresco que perfumava meu quarto todas as
manhãs.
Mas agora, Roman estava parado na soleira da minha casa e eu
escutava meus pais pegando as próprias malas.
O Protetor não sorriu para mim, mas me observava como um falcão.
Algo mudou desde a última noite e não sabia se pedir desculpas iria
resolver algo. O fato de Serena não estar aqui, talvez dizia também, que
minha única amiga já não queria se envolver comigo.
Respirei fundo.
— Oi.
— Oi — ele responde, sem muita energia.
Por pura curiosidade, meus olhos se prenderam na casa vizinha,
buscando por algum sinal de que Nathan ainda estava ali, mas estava quieta
como sempre, apesar dos carros estacionados no gramado. Não tive notícia
dele desde que saiu sem dizer uma única palavra depois da briga e,
sinceramente, não achava que teria. Serena e Roman me avisaram que ele
era instável e ele mesmo me disse que, caso pudesse evitar, nunca voltaria
para o Outro Lado. Então era isso. Acho que era um adeus. Mesmo que não
tivesse sido um de verdade.
Só não entendia porquê isso parecia me incomodar tanto.
— Você o viu novamente? — a acidez na voz de Roman, não me
passou despercebida.
Neguei, com um balanço de cabeça.
— O que aconteceu entre vocês dois?
Ele hesitou por um instante e lancei um olhar estranho para a casa
vizinha.
— Você, hum, era — eu o observei, receosa — apaixonado por ele?
— terminei.
Seus olhos se arregalaram e, depois de quase um minuto, ele
começou a rir.
— Meu Deus, Alyssa. — Ele balançou a cabeça, olhando-me como
se eu tivesse três olhos e dois narizes. — Se eu fosse gay, Nathan com
certeza não seria meu tipo.
Sangue aqueceu minhas bochechas. Roman nunca havia me dado
nenhuma indicação de que era gay, mas... A forma como olhou para a casa,
ou para Nathan mais cedo, como se estivesse legitimamente magoado,
parecia tão genuíno, que só poderia acontecer se Roman tivesse se
importado de verdade com ele um dia. Não acreditava que você pudesse ser
machucado por alguém desta forma, sem amá-lo. Talvez ele tenha o amado
como amigo, então.
E o mais ridículo era que, enquanto absorvia suas palavras, não
conseguia entender como Nathan poderia não ser o tipo de qualquer
pessoa.
Ergui os olhos e peguei Roman me encarando. Algo em sua
expressão me pareceu muito com confusão. Seus olhos cor de chocolate
aqueceram meu rosto, e queria poder maquiar minhas emoções tão bem
quanto Nathan ou Brian eram capazes. Ou mesmo minha mãe.
— Se tivesse prestado um pouco mais de atenção, teria percebido
que meu interesse não está em homens — ele murmurou.
Ah. Meu estômago revirou e senti como se pudesse correr dali como
um leopardo, só para escapar da atenção de Roman. Não que ele fosse
desagradável ou qualquer coisa remotamente semelhante, mas isso parecia
muito com uma área que não estava nem minimamente familiarizada. Se ele
estivesse dizendo aquilo porque, na verdade, estava interessado em mim, o
que eu faria? Eu não sabia se sentia o mesmo por ele. Quer dizer, Roman
era lindo e conseguia ser bastante divertido quando não estava emburrado
ou preocupado com minha proteção, mas eu não sabia dizer se estava
atraída por ele.
— Então, vai me contar o que aconteceu entre você e Nathan?
Roman bufou e se afastou um pouco.
— Eu pensei que éramos amigos e descobri que não podia confiar
nele. Foi isso.
Então, como eu desconfiava, eles tinham sido amigos. Percebi,
enfim, que estava certa sobre uma coisa: Roman se importou com Nathan
um dia. Por isso, que o que quer que tivesse acontecido entre os dois,
tornou-se algo muito pesado na relação deles. Você não permite que alguém
te irrite e machuque tanto, se você simplesmente não se importa.
Não tive a oportunidade de pedir por mais detalhes porque meus
pais apareceram atrás de nós, com as malas em mãos.
— Devemos ir — minha mãe disse.
Dessa vez, não discuti.

Dessa vez, nós pegamos o barco que há muito tempo estava parado
no galpão ao lado de nossa casa. Colocá-lo na água, por si só, foi um tanto
trabalhoso. Levamos as malas e logo embarcamos. Percorremos uma longa
área, sentindo a água bater contra o casco do barco.
Como sempre, as águas estavam calmas. Ninguém por perto, além
de nós. O vento ricocheteava meu rosto e eu inspirava fundo aquele cheiro.
Natureza. Liberdade. Até onde eu sabia, o Outro Lado podia ficar no
subterrâneo.
Nenhum de nós disse nada o caminho todo. O vento falava o
suficiente.
Por fim, minha mãe parou o barco na costa, em frente a floresta
densa que circulava o Lago. Ao fundo, era possível ver a silhueta de uma
montanha se erguendo. Minha mãe soltou a âncora na água, que se afundou
entre as pedras rapidamente. Não estávamos em uma área muito funda, a
água bateria em minhas coxas, provavelmente, e eu fiquei encarando o
lugar, esperando entender o que estávamos fazendo ali.
— Desculpe. — Olhei em volta. — Mas por que paramos?
Não havia nada. Nenhum prédio ou mansão que pudesse indicar ser
o lar dos Protetores, nem mesmo uma entrada subterrânea. Aliás, paramos
bem em frente à margem límpida e calma do Lago, a apenas alguns metros
de distância. Aqui, ele era como um espelho. Quieto e reluzente. Uma
elevação, que daria até uma montanha, rodeava a costa do Lago de um lado,
enquanto árvores o rodeavam por outro. Podia ver o céu a poucos metros
dos meus pés, como se eu estivesse olhando para cima de tão límpida e
estática que a água estava. Não havia nenhum mínimo distúrbio nela.
Estava mais quieta do que jamais imaginei ser possível.
Nem mesmo nosso barco parecia perturbar a calmaria do Lago.
— Chegamos — minha mãe anunciou.
Franzi a testa.
— Não há nada aqui.
Roman abriu um sorriso irônico.
— Não se você não for uma Protetora — disse.
Minha mãe foi a primeira a descer do barco, com algumas malas em
mãos. Depois, meu pai e Roman a seguiram, levando mais malas. Como eu
imaginei, a água não chegava a tocar suas coxas. Eu fui a próxima, pulando
do barco com destreza, minhas mochilas nas costas. Segui o grupo até a
margem arenosa, com pedrinhas brilhosas distribuídas pelo solo.
Andamos apenas alguns metros sobre as pedras, até todos pararem e
eu quase trombar com Roman.
O Protetor se virou e estendeu uma mão para mim. Eu a peguei sem
entender o motivo. Ele me puxou para mais perto da água e só paramos
quando meus pés, descalços desde que desci do barco, voltaram a se
molhar.
— O que você vê?
Encarei o Lago. Raios de luz prateados e dourados, se misturavam à
água de uma forma que jamais havia visto, em toda minha vida. A imagem
do céu se desfez aos poucos, dando espaço para uma mistura de cores
metálicas que tornavam a água ainda mais reluzente. A transformava em um
espelho. Vi meu relance ao mesmo tempo que vi algo vivo nas profundezas
da água.
— Essa água está estranha.
Meu pai riu.
— O estranho se tornou comum a este ponto — disse.
Os dedos de Roman se entrelaçam nos meus e ele apertou
suavemente minha mão. Ergui a cabeça e o peguei me olhando atento e
curioso. A sensação do seu dedo acariciando minha marca era diferente e...
boa. A proximidade que nunca tive pareceu excitante.
Ele soltou a minha mão e meneou a cabeça em direção a água.
— Toque a água.
Curiosa, ajoelhei-me e estiquei o braço para que minha mão direita
encontrasse a água. Meus dedos mergulharam e, então, minha palma, até
que todo meu pulso estivesse submerso. E não demorou nem três segundos
para eu perceber. Quem não perceberia? A água cantou para mim,
movimentando-se languidamente, como se estivesse adormecida, por um
longo tempo. As cores metálicas ficaram mais fortes e mais intensas. Eu
poderia jurar ver minha mão direita, submersa, brilhar bem onde minha pele
era marcada.
Soltei um pequeno grito quando a água começou a subir pelo meu
braço como uma serpente, enrolando-se na minha pele. Eu me tornei uma
extensão daquele Lago. Minha outra mão mergulhou instintivamente e a
água, mais uma vez, começou a me escalar. Seu toque era leve e morno, e
era engraçado porque não parecia molhado — não que isso fizesse sentido.
Era como um toque. Como se o Lago fosse um ser vivo e não uma
substância química.
Respirei fundo observando a movimentação.
Pisquei uma vez.
Senti um puxão.
Abri os olhos e me deparei com uma mulher de cabelos ruivos,
quase como fogo. Seus olhos verdes eram frios e sombrios apesar da cor
clara. Olhei para minhas próprias mãos, secas, e para o Lago ao meu lado.
Olhei em volta, procurando meus pais e Roman, mas só encontrei novos
rostos desconhecidos.
Ah, Deus.
O Lago me puxou.
No momento em que minhas mãos estavam submersas, tão rápido
quanto um piscar de olhos, eu estava aqui. Fui transportada para este lugar.
E estava assumindo que aqui fosse o Outro Lado.
Não sabia como diabos isso era possível, mas era como se ele
tivesse me puxado para dentro de si, e agora me encontrava em uma versão
mais brilhante de onde estava há um segundo atrás.
A mulher me olhou atentamente, como um gavião.
— Seja bem-vinda ao Outro Lado, Fidly — sua voz era fria, mas
não como a de Brian. Enquanto Brian parecia vazio, esta mulher parecia...
Irada. — Eu sou Ravenna.
Segundos mais tarde, meus pais apareceram ao meu lado, como num
passe de mágica, seguidos por Roman. Eu ainda estava completamente
paralisada, com os joelhos na grama úmida, tentando entender esse lugar
que se estendia por quilômetros e mais quilômetros e as pessoas que
preenchiam minha vista. Minha mãe tocou meu ombro e me estendeu uma
mão, para que eu ficasse em pé.
Saí do meu transe e fiquei de pé, tentando manter uma postura
adequada, em frente a todos esses guerreiros que pareciam ter uma coluna
de ferro.
— Meu nome é Alyssa — informei Ravenna.
Ela não poderia mostrar que se importava menos com minhas
palavras.
— Sei quem você é.
Agora eu entendia porque meus pais pareciam apreciar esta mulher
tanto quanto jogar pimenta nos olhos. Senti minha mãe se aproximar com
um grunhido, ao mesmo tempo que Brian se aproximou do grupo de
Protetores me encarando.
— Tenho certeza que Alyssa não precisa de todos vocês para
recebê-la em seu primeiro dia — o pai de Nathan disse. — Estão parecendo
um bando de abutres.
Brian e minha mãe trocaram um longo olhar e, apesar de não o
conhecer, eu soube que era sua forma de pedir que minha mãe tivesse
paciência. Minha mãe balançou a cabeça levemente, quase
imperceptivelmente. Eles pareciam se entender, como se fossem amigos de
longa data. Quem sabe realmente eram. Acho que terem sido encarregados
de proteger Diana anos atrás, tornaram-nos próximos.
— Agora que ela finalmente está aqui, terá que se acostumar com o
nosso povo, Brian — Ravenna retrucou.
Ela fez questão de enfatizar o “nosso”. E eu achando que iria
demorar mais do que três minutos para querer voltar para casa.
Eles esperavam que eu matasse por eles, e este era o único motivo
pelo qual me acolhiam agora. Se eu fosse totalmente humana, como meu
pai, eu não seria bem-vinda ali. Pelo menos era o que me pareceu, quando
olhei para Ravenna e seu olhar não podia significar nada mais que interesse
e triunfo. Interesse porque precisava de mim. Triunfo, entendi, porque eu
estava em suas mãos agora.
Atrás de Ravenna, mais algumas pessoas estavam reunidas, sendo
três homens e quatro mulheres. Além deles, uma linha espessa de árvores
contornava a costa do Lago. Era como um zoológico, onde eu era a atração
principal e havia acabado de chegar. Mais ao longe, tinha certeza de ter
visto Jasper observando-nos, encostado em uma árvore, enquanto afiava
uma adaga curta. Senti vontade de rir porque aquilo era exatamente como
eu imaginava Jasper, em seu tempo livre.
— Talvez seja melhor levar Alyssa para sua cabana, para que ela
possa se acomodar, antes de começarmos uma conversa — meu pai disse,
provavelmente tão esgotado por este encontro como eu já me sentia.
Talvez ele tivesse ainda mais motivos para se sentir exausto aqui, do
que eu poderia ter. A hostilidade com a qual Ravenna olhava para meu pai,
assim como os Protetores que a rodeavam, era a prova de que ele não era
respeitado por aquelas pessoas. Ficou bem claro, muito rapidamente, do
porquê minha mãe decidiu deixar este lugar.
A fúria prometeu queimar minha garganta, mas me forcei a não
dizer nada. Ainda não.
— Leve-a à cabana das Fidlys — Ravenna nos dispensou. —
Falaremos mais tarde.
Ela nos deu as costas sem ao menos cumprimentar qualquer um de
meus pais.
Fiquei parada, meio boquiaberta, com esta apresentação um tanto
quanto áspera, observando Ravenna ir embora. Seus couros avermelhados,
como seus cabelos, e sua postura rígida e alta, não me pareceu nem um
pouco amigável.
Eu não era especialista em interações humanas, mas tinha certeza
que um primeiro encontro poderia ser melhor que isto.
O silêncio se quebrou quando meu pai pigarreou.
— Bem, ela não mudou nada.
Sua intenção era aliviar o humor, mas estava claro que minha mãe
não se deixaria levar. Seus olhos eram pura fúria mal contida. Eu podia ver
que algo entre ela e Ravenna havia dado errado há muito tempo.
Aparentemente, as pessoas aqui tinham muitas questões mal
resolvidas.
Roman foi quem começou a andar primeiro, o que me deixou
agradecida, porque se fosse depender dos meus pais, ficaríamos parados
aqui por um bom tempo. Minha mãe perdida em sua fúria e meu pai
tentando acalmá-la. Ah, e os Protetores ainda me encarando.
Meus pais nos seguiram de perto, mas andei ao lado de Roman.
Quanto mais nos afastávamos da margem do Lago, melhor era minha visão
do que eles chamavam de o Outro Lado.
— Eu sempre ficava me perguntando porquê vocês chamavam este
lugar de Outro Lado — murmurei. — Faz bastante sentido agora.
Aquele lugar era exatamente como o Lago em minha casa. Mas, de
alguma forma, ainda era completamente diferente. Mais vivo.
Roman sorriu levemente.
— O que você está achando até agora?
— Parece que tudo aqui é mais... brilhante. Como se as cores
fossem mais vivas. O lago parece mesmo um espelho e aqui é como uma
versão mais estonteante de onde estávamos. — O ar fresco e totalmente
limpo entrou por meus pulmões e saiu como um suspiro. — Como isso é
possível? O Lago me puxou.
— Isto tudo é trabalho das Guardiãs. — Ele fez um movimento
abrangente com os braços. — Elas construíram este lugar e outros ao redor
do mundo, como um refúgio seguro para os Protetores. É como uma
subdimensão.
Eu o olhei, confusa.
— Subdimensão?
Ele assentiu.
— Pense em uma folha branca e lisa e então dobre-a em um dos
cantos. Você passa a ter duas áreas diferentes no mesmo papel, certo? Uma
subdimensão é mais ou menos isso. Como uma dobra da realidade. Não é
grande o suficiente para ser considerado uma dimensão inteira, mas é uma
parte subjacente de uma dimensão existente — explicou. — Aqui é como
uma réplica pequena do mundo humano. Tudo funciona da mesma forma
que na dimensão original, então há acesso à internet e sinal para televisão,
por exemplo. Nós nunca usamos, mas é possível se quisermos. A grande
diferença é que há magia pulsando aqui, tanto em nossas proteções quanto
no próprio ar.
Minha mãe havia falado sobre dimensões, mas essa coisa de
subdimensão era nova.
— Faz sentido que isso seja tão inacreditável que faça sentido? Eu
culpo os livros, por eu conseguir digerir tudo isso sem querer me internar
em um hospício. — As árvores que cercavam o Lago eram densas, e eu
seguia os Protetores para entrar no campo além delas. Passei por uma
árvore e resmunguei ao arranhar meu braço em um arbusto. — Dimensões
são meras especulações no mundo real. No mundo real, Lagos não engolem
pessoas e as levam para uma versão quase idêntica de onde estava.
— Se seguir este pensamento, no seu “mundo real” não há
Protetores. — Ele me olhou. — Muito menos Fidlys.
Revirei os olhos.
— Muito bem colocado, obrigada.
Meu pai riu atrás de nós e murmurou alguma coisa, mas não
consegui distinguir suas palavras. À minha frente, uma clareira enorme se
abriu em meio às árvores. Cabanas, uma grande praça, postes de luzes
ornamentados e tendas largas estavam dispostas pelo campo. Era como uma
minicidade. Ruelas de pedra perpassavam cabanas de diversos tamanhos
diferentes. Tinha um aspecto mais antigo, mas conservado.
Observei o espaço, o qual meus olhos mal podiam averiguar
completamente. Além do Lago, várias montanhas se alinhavam ao
horizonte e, deste lado, inúmeras cabanas se organizavam em longos
espaçamentos, que pareciam prever privacidade para seus ocupantes. No
centro, onde Ravenna agora andava com passos largos e rápidos, junto aos
demais Protetores, a praça circular se revelava deslumbrantemente. Uma
fonte de água cristalina ficava no centro da praça, rodeada por árvores e
flores e alguns bancos. Quanto mais nos aproximávamos, podia observar
melhor o desenho da fonte. Uma mulher se erguia sobre as águas, cabelo
longo e corpo esbelto, coberto por um vestido fluido. A mulher de pedra
estava com as mãos erguidas na altura dos ombros, como se rezasse, mas a
água escorria por suas palmas. Uma coroa adornada, como raízes
entrelaçadas, enfeitava o topo de sua cabeça.
A campina era tão longa que mal podia ver seu fim. Meus olhos
correram pela extensão e, por uma batida mísera do coração, finalmente
distingui todas as pessoas me observando. Protetores de todas as idades,
tamanhos e gêneros estavam parados do lado de fora das cabanas, ou no
meio das ruas, só para me observar.
Sangue ferveu em minhas bochechas.
E então, em um movimento lânguido, alguns Protetores, a maioria
mais velha que meus pais ou mais novos que eu, curvaram-se para mim.
Eles se curvaram. Para mim. Como se eu fosse uma rainha.
Eles se curvaram para a promessa. Uma promessa que o Destino
lhes concedeu há muito, muito tempo, e não viam a hora de ser cumprida.
Olhei para eles sem saber o que fazer, então olhei para meus pais em
busca de algum conselho. O que fazer quando alguém se curvava a você?
Minha mãe suspirou.
— Muito obrigada a todos por não tornar isso estranho — disse,
lançando um olhar cortante a todos.
Não era muito difícil perceber, os olhares descontentes que
lançavam a ela em resposta. Os mais jovens pareciam alheios àquele
sentimento, mas era algo presente sempre que os mais velhos se dirigiam à
minha mãe. E eu não podia dizer que ela não compartilhava do sentimento.
Os Protetores e Jasmine se encararam por alguns segundos tensos, em que
podíamos sentir desprezo de ambos os lados, o rancor os separando. Não
seria fácil uni-los. Minha mãe era uma guerreira como todos aqui, mas estes
não eram mais seus irmãos.
Não depois que a negaram o direito de amar.
Alguns dias depois que descobri quem eu era, descobri também
quem meus pais eram. Um humano e uma Protetora. E minha mãe não
parecia poder perdoá-los por quererem decidir quem ela devia ou não amar.
E, sinceramente, não podia afirmar que deveria. Qualquer um que via meu
pai como qualquer coisa menos do que o homem incrível que ele era, ou
não era capaz de enxergar o óbvio ou era egocêntrico demais para ver algo
além do próprio umbigo e, se, aquele fosse o caso, eu nem me preocuparia
em me aproximar daquelas pessoas.
Vi Jasper ao mesmo tempo que ele se aproximou de nós, os braços
como troncos de árvore, cruzados sobre o peito.
— Talvez seja bom que os conceda um “olá”, Fidly. — Ele parou ao
meu lado e meneou a cabeça. — São como criancinhas à espera de alguma
atenção.
Mordi o lábio, contendo um sorriso. Não achava que seria certo rir
dessas pessoas, mesmo que talvez essa tenha sido a intenção de Jasper.
— Olá.
Alguns abriram sorrisos largos para mim. Outros apenas balançaram
a cabeça em cumprimento silencioso. Uma garota loira alta e curvilínea,
toda vestida em couro, pareceu liderar um grupo mais novo que se
aproximava. Serena, que veio atrás deles correu para me abraçar e fiquei
feliz em tê-la por perto novamente, principalmente quando vi que ela não
parecia com raiva como imaginei que estaria.
— Senti sua falta, Aly.
— E eu senti a sua, S.
Ela sorriu, mas meus olhos estavam na loira cruzando os braços
sobre o peito e me lançando um olhar que só pode ser sinônimo de desdém.
— Bom, nós iremos apresentar Aly a seus aposentos — meu pai
disse, nem um pouco preocupado com certos olhares que lhe lançaram.
Dei um passo para frente, mas minha mãe me impediu de continuar.
Suas mãos se fecharam em meu braço e ela me puxou para trás. Fiquei sem
entender nada, e me virei para questioná-la, mas seus olhos estavam presos
em algo à frente. Segui seu olhar até uma mulher, que provavelmente devia
ser mais velha do que parecia. Seus cabelos eram raspados e castanhos, com
muitos fios grisalhos. Seu rosto era estranhamente familiar e seus olhos...
Seus olhos eram cor de mel.
A mulher abriu um amplo sorriso que exibiu todos os seus dentes
branquíssimos, mas não pareceu sincero. Não pareceu feliz. Aquele não era
um sorriso qualquer. Era o sorriso de um predador.
— Fico feliz de ver que finalmente retornou à sua casa, filha —
disse, a voz tão familiar quanto seus olhos. O seu sotaque profundo
denunciava que ela não era daqui. — Um pouco decepcionada em ver que
ainda não se livrou do humano. Mas feliz, porque finalmente trouxe minha
neta para onde ela deve estar.
Filha.
Neta.
Mas de que merda ela estava falando?
Minha mãe não se mexeu, mesmo que aquela mulher estivesse
falando diretamente com ela.
Percebi, então, que minha vida foi uma mentira em muitos quesitos.
Minha mãe me disse que seus pais haviam morrido há muito tempo,
como os do meu pai. Ela havia dito que sua única família era Henry e eu.
Não havia nada além. Nenhum parente vivo. Jasmine havia repetido, várias
vezes, que não gostava de falar sobre a família que perdeu. Era essa sua
desculpa. Doía demais. Era uma dor que ela preferia manter enterrada.
Mas eu estava muito certa que aquela mulher à minha frente, não
parecia tão familiar à toa. Seus olhos eram iguais aos da minha mãe. Até
seu sorriso era parecido. “Fico feliz de ver que finalmente retornou à sua
casa, filha.”
Esta mulher era mãe da minha mãe.
“Finalmente trouxe minha neta para onde ela deve estar.”
Esta mulher era minha avó.
Talvez eu devesse perguntar se havia mais alguma coisa em sua lista
de mentiras.
— Por que você está aqui? — minha mãe finalmente perguntou, a
voz mais fraca do que o normal.
— Ravenna me disse que você estava de volta, então eu vim o mais
rápido que pude. — De novo, esta mulher, minha avó, mostrou os dentes
como uma predadora prestes a dar o bote em sua presa. — Não poderia
perder este momento, não é?
Percebi um garoto de pele marrom, sair de trás da mulher que agora
me encarava com pura... fascinação. Tentei ignorar o escrutínio de seu olhar
e me foquei em minha mãe.
Nunca a vi tão desconcertada. Tão fora de prumo. Como se não
soubesse como agir em seguida. Mas logo, minha mãe ergueu os ombros e
os jogou para trás. Parecia determinada, em impedir que qualquer um aqui a
fizesse se sentir ou parecer fraca.
— Sempre enfiando o nariz onde não deve, não é mesmo Akantha?
— desta vez foi meu pai quem falou, e finalmente descobri o nome da
mulher que parecia prestes a pegar uma lupa, para observar se eu exibia
alguma imperfeição.
Meu pai não costumava ser hostil com ninguém, mesmo quando as
pessoas certamente mereciam. Mas, aparentemente, sua regra de
compostura não se aplicava à Akantha.
A mulher não parecia velha de forma alguma. Sua pele ainda era
jovem, apesar de seu olhar expor que ela fosse mais experiente do que
parecia. Eu sabia que ela devia ter por volta dos sessenta anos, mas tinha
um físico impecável e apenas algumas rugas embaixo de seus olhos. Seu
cabelo curto e a tatuagem ousada que despontava pelas laterais de seu
pescoço, faziam-na parecer ainda mais jovial.
— E você sempre sendo tão tediosamente humano — Akantha
retrucou, lançando um olhar frio para meu pai. Por puro instinto me
coloquei entre eles, pronta para protegê-lo de qualquer outro insulto e com a
intenção de deixar bem claro que, quem quer que o machucasse, também
me machucaria. Akantha observou meu movimento e abriu um sorriso que
não alcançou seus olhos. — Meu consolo é saber que não parece ter
passado suas características tediosas para minha neta. Você tem o fogo dos
Nephus.
Compreendi o porquê da hostilidade. Assim como tantos naquele
lugar, Akantha pensava que humanos eram menos importantes que
Protetores. Insignificantes. Indignos de qualquer relacionamento com um
dos seus. Ela devia ter ficado contra o relacionamento de meus pais quando
este veio à tona.
— Não coloque Alyssa no meio disso — minha mãe rosnou.
— Ela é minha família também. Tem o meu sangue — Akantha
respondeu com um aceno debochado para minha mãe. — Pensei que depois
de um tempo o humano a entediaria até a morte, mas agora sei que havia
algo interessante em que focar. — Seus olhos me examinaram de cima a
baixo, demorando um tempo na marca em minha mão. — Minha neta não
parece nem um pouco tediosa. Se não soubesse, nem assumiria que
houvesse qualquer traço humano em sua linhagem. Extraordinária.
Quando meu pai disse que eu era extraordinária, eu havia me
enchido de orgulho com sua declaração. Dessa vez, esta palavra não possuía
qualquer apelo emocional. Eu poderia muito bem ser uma bela égua pela
qual Akantha demonstrava encantamento.
— Eu precisaria saber quem você é para te considerar família,
Akantha — retruquei, a voz venenosa que nunca imaginei ser capaz de
reproduzir. Afinal, não tinha precisado usá-la até então.
Seu sorriso presunçoso apenas se ampliou.
— Podemos culpar sua mãe por isso, Alyssa. — Ela então se virou
para mamãe. — Não contou absolutamente nenhuma verdade à sua filha,
Jasmine?
Minha mãe inspirou.
— Não vou discutir qualquer coisa com você hoje, mãe — disse. —
Na verdade, acho que deixei bem claro, anos atrás, que minha vida não te
diz respeito. E isso, claro, inclui a vida da minha filha.
Minha mãe pegou minha mão e me puxou para sairmos dali, sem
dar mais nenhuma atenção à mulher. Estávamos prestes a passar por
Akantha quando ela agarrou meu braço com tanta força, que tropecei para
trás.
— Solte ela agora, Akantha — meu pai bradou.
Mas Akantha não deu a mínima para suas palavras. Nem ao menos
se dignou a lançar-lhe um olhar. Ela apenas me encarou, fogo nos olhos e...
não sei, talvez fosse alguma distorção do que deveria ser orgulho. E apesar
de seus olhos cor de mel serem exatamente como os da minha mãe, seu
olhar não desenrolava os mesmos tipos de emoções em mim.
— São muitas mentiras, não é mesmo? — sussurrou. — Talvez
deveria se perguntar, se ela ainda mente sobre alguma outra coisa tão
importante quanto a existência de um parente tão próximo, Alyssa.
Puxei meu braço com força e suas unhas acabaram arranhando
minha pele.
— Talvez eu não esteja tão brava por ela ter mentido sobre você.
Cuspi as palavras em sua direção e saí andando tão rápido que não
tive dificuldade em acompanhar mamãe.

Eu não disse nada, enquanto minha mãe me puxava por ruelas. Meu
pai, Roman e Serena nos seguindo de perto. Puxei minha mão de seu
aperto, furiosa por ela ter permitido, mais uma vez, que eu estivesse
ignorante frente a verdade. Mais uma vez, mais uma peça da minha vida me
acertou em cheio no meio da fuça.
Minha mãe parou em frente a uma cabana, com tamanho o
suficiente para caber uma família. Ela puxou algo do bolso e destrancou a
porta. Logo estávamos em um espaço amplo e aconchegante. Havia uma
cozinha e uma sala pequena e um corredor que imaginei terminar em um
banheiro e, então, em um quarto.
Todos nós jogamos as malas que carregávamos no chão. Ouvi meu
pai soltar um suspiro exasperado. Eu sabia que o encontro com Akantha
ainda o perturbava e uma veia insistente pulsava em sua têmpora. Já Roman
e Serena apenas deixaram as malas em um canto e rapidamente saíram, nos
deixando sozinhos.
Cruzei meus braços sobre o peito e esperei que minha mãe se
explicasse. Ou mesmo meu pai, que também omitiu todas essas
informações durante toda a minha vida. Mas ele apenas encarou o chão e
minha mãe se movimentou pela sala como se pudesse encontrar algo que a
tirasse da conversa iminente. Eu podia ver que ela não conseguia se manter
quieta de tanta ansiedade. Eu não estava certa se era apenas porque agora
teria que me contar a verdade, ou se finalmente estava caindo a ficha que
sua mãe, que havia me dito estar morta, estava bem ali, no Outro Lado.
— Mais uma vez — comecei, já que ninguém se dignava a fazer
isso, tentando segurar a fúria de explodir. Eu me sentia como uma grande
idiota, uma criança que não sabia de nada sobre a própria vida e família. —
Você me deixou às escuras. Mais uma vez, fiz papel de idiota porque não
teve a decência de me informar toda a verdade.
Jasmine parou.
— Minha mãe não é o tipo de pessoa que eu queria que você
conhecesse.
Bufei.
— Depois daquilo eu tão pouco quero conhecê-la, mas isso não quer
dizer que eu não devesse saber sobre sua existência. Você disse que seus
pais estavam mortos, mãe!
— Em todos os sentidos que importam, eles estão.
Joguei os braços para cima em um movimento exasperado.
— Isso quer dizer que há algum outro membro da família que possa
aparecer a qualquer momento? Um avô, talvez?
Mamãe me lançou um olhar ferido.
— Meu pai está morto. Foi assassinado por Desertores quando eu
tinha doze anos. Seu nome era Kalel. — Ela pareceu tão triste que tive
vontade de retirar minhas palavras. — Eu também tive um irmão, Hektor.
Ele também foi assassinado por Desertores quando tinha apenas vinte e dois
anos.
Desviei o olhar.
— Eu sinto muito — murmurei.
— Eu também, Alyssa.
Ela se sentou em uma poltrona e eu me joguei no sofá. Meu pai
permaneceu apenas encostado na parede. Ele parecia decidido a não se
intrometer até que a história o incluísse. Henry sabia que aquilo envolvia
apenas minha mãe. Era a história dela para contar.
— Eu nasci na Grécia, como você já sabe. Mas nunca contei nada
sobre minha família, porque... parecia complicado demais explicar —
contou. — Minha mãe nunca foi fácil. Ela exigia que fôssemos perfeitos,
acima de qualquer emoção humana. Devíamos ser guerreiros excepcionais,
capazes de trazer orgulho à sua linhagem. Meu sobrenome de nascimento é
Nephus, e esta é uma família de Protetores considerada elite dentro de nossa
sociedade. Minha mãe tem tanto orgulho desse nome que, quando se casou
com meu pai, pediu que ele adicionasse Nephus ao seu nome para que
fortalecesse a família. Meu pai também vinha de uma família influente, mas
nem de longe tão poderosa quanto a de Akantha. E ele também nunca foi
arrogante como ela. Para ser sincera, não sei nem como ele se apaixonou
por ela. Talvez nunca tivesse sido amor, apenas um contrato conveniente
aos dois.
— Talvez sua mãe tenha o obrigado a se casar. Parece algo que
aquela bruxa faria — meu pai atirou. Nós nos viramos para encará-lo e
então o assistimos corar. — Desculpe.
— Não posso dizer que é uma ideia absurda, amor. — Minha mãe
sorriu carinhosamente para ele.
— Como veio parar nos Estados Unidos, mãe?
Era irritante perceber que aquela pergunta nem tinha passado pela
minha cabeça. Ela uma vez disse que amou vir estudar no país, mas
desconfiava que aquele não fosse o real motivo.
— Depois de alguns anos após a morte do meu pai, meu irmão
decidiu vir para cá, ficar o mais longe possível da nossa mãe — explicou.
— Ela sempre foi mais cruel com ele, porque o achava emotivo demais. Eu
era diferente, mais séria e fria, quase perfeita para ela. Então quando ele
deixou a Grécia e a guarda de Akantha, ela pediu que eu me mudasse
também para ficar de olho nele e não deixá-lo envergonhar a família
Nephus.
— Então vim terminar meu treinamento aqui e pude conhecer meu
irmão melhor do que teria sido capaz com minha mãe por perto. Mas na
época, eu queria tanto impressioná-la, ser o que ela desejava, que acabei me
distanciando de Hektor. Pouco tempo depois, ele foi assassinado em uma
missão. Desertores o mandaram para nós tão destruído, como um aviso, que
demorei alguns minutos para confirmar que era realmente ele. Que haviam,
de fato, matado meu irmão.
Oh, Deus. Eles haviam usado seu irmão, meu tio, para lhe mandar
uma mensagem. Meu coração doeu pelo tio que nunca tive a chance de
conhecer, e eu pude ver nos olhos de minha mãe, que a dor para ela, ainda
era tão presente quanto devia ter sido anos atrás.
— Depois disso, comecei a questionar meu posicionamento.
Comecei a me perguntar se, caso eu não estivesse tão focada em ser perfeita
para minha mãe, Hektor teria confiado em mim para ajudá-lo naquela
missão e, quem sabe, ele não tivesse morrido tão jovem — ela continuou.
— Poucos anos depois conheci Diana e ela me mostrou que o mundo era
tão maior que aquilo que minha mãe tinha me mostrado. Que havia amizade
e amor entre pessoas diferentes e que tudo isso valia a pena. E ela tinha uma
alma humana, mesmo que não fosse completamente. Mais tarde, quando
conheci seu pai, percebi que poderia ser bom sentir todas aquelas emoções
humanas, que minha mãe passou anos tentando me fazer inibir.
— Acho que tenho que agradecer a Diana por isso também — meu
pai disse, com um leve sorriso no rosto.
Lembro-me de mamãe contar que Diana a encorajou a dar uma
chance para meu pai e, por isso, sorri com ele.
— Conheci seu pai e vi que os humanos não eram tão comuns como
imaginávamos. — Percebi o brilho de admiração nos olhos de mamãe. Ele,
por sua vez, retribuiu com um olhar completamente apaixonado. —
Akantha não ficou nenhum pouco feliz ao saber que eu tinha me
apaixonado por um humano. Para ela, eu “mancharia” a reputação da
família, principalmente se tivesse filhos. Ela acredita que misturar sangue
Protetor com humano, apenas dilui a força da linhagem protetora. — Minha
mãe soltou uma risada fria. — Ela logo mudou de ideia quanto a questão
dos filhos quando conheceu você. Quando viu que era uma Fidly, viu em
você a oportunidade perfeita para fazer a família Nephus ainda mais
notória. A primeira Fidly descendente de um Protetor e justo sua neta. Ela
ficou tão satisfeita com aquilo, não porque amasse o bebê, mas porque ela
nunca tinha entendido porque as Fidlys vinham de famílias humanas e não
dos Protetores. Para ela, era um absurdo que o Destino tivesse escolhido
humanos para carregar a profecia.
— Então eu era sua chance de ficar famosa — debochei.
Minha mãe assentiu.
— Basicamente isso.
— Talvez devêssemos contar os planos de alguns dos Protetores
para Alyssa, já que isso inclui sua mãe — meu pai sugeriu.
— Talvez? — perguntei, indignada. — Apenas me conte logo!
Minha mãe suspirou, mas concordou.
— Quando você nasceu, eu já tinha decidido que não viveria entre
os Protetores. Mas então, eu vi a marca e fiquei desesperada. Não sabia
como conseguiria mantê-la segura sem ajuda ou mesmo o que fazer. Você
era como um farol ambulante e os Desertores acabariam rastreando-a. —
Ela apertou os dedos, nervosa. — Eu estava com tanto medo que Vicenzo
descobrisse sobre você que, assim que me recuperei, vim aqui para pedir
ajuda. Ninguém podia acreditar no que via. Você era a primeira Fidly
descendente de um Protetor, a primeira nascida entre nós e parecia tão...
surreal. Uma das partes mais difíceis era encontrar as Fidlys, e ali estava
você: pequena e perfeita, com a marca dada pelo Destino. Depois de menos
de dois anos, o Destino nos tinha abençoado com mais uma Fidly, quando,
na realidade, costumava demorar décadas ou séculos até surgir uma após a
morte da anterior.
— Todos ficaram surpresos e encantados, felizes em ver que, talvez,
isso significasse que você seria mais forte. Por meses, fiquei nesta cabana
com você e seu pai, com medo de sair. Depois de um ano vivendo aqui, nós
decidimos nos mudar para a casa do Lago. Brian nos disse que seria uma
boa opção devido às proteções no território e, assim como ele, eu não queria
criá-la junto a certos Protetores. Depois de alguns anos, Ravenna quis
marcar uma reunião para fazer arranjos sobre sua proteção.
— Mas aquela mulher não queria discutir horários e Protetores a
serem designados — meu pai murmurou, o rancor ainda machucando seu
peito.
— Não, ela tinha outros planos — minha mãe afirmou, em
concordância. — Ela descobriu que Cassandra, nossa Guardiã, poderia
colocar um feitiço do sono em você. Ravenna, antes mesmo de me contar
sua ideia, já tinha formado seu grupo de apoiadores, o que incluía minha
própria mãe. Eles queriam colocar você para dormir, um sono profundo que
duraria anos, e só a acordaríamos quando completasse dezoito anos e
pudesse se defender sozinha.
Por um segundo, meu cérebro pareceu uma folha em branco e eu
não sabia o que dizer. No segundo seguinte, eu tive uma média de vinte e
cinco palavrões diferentes para usar de modo bem explícito.
Eles queriam me tornar a versão moderna da bela adormecida? Que
merda!
— Eles queriam me manter em coma por dezoito anos? — chiei.
— Claro que nunca permitiríamos isso, filha — meu pai disse. —
Apesar de tudo o que fizemos para mantê-la protegida, nunca teríamos
aceitado uma ideia dessas. Queríamos que você crescesse e vivesse o
máximo possível, mesmo que dentro de certos limites que reassegurariam
sua proteção.
— Eles achavam que, desta forma, você finalmente conseguiria
cumprir a profecia — minha mãe explicou. — Não que isso seja
justificativa. Mas eu logo percebi que Ravenna, minha mãe e seus
apoiadores, nunca a veriam como nada além de sua marca. Não é pessoal.
Só que era completamente pessoal. Eu não era uma pessoa, para
eles eu era uma profecia. Era o prolongamento de uma promessa que nunca
pôde ser cumprida antes. Não era Alyssa. Não era a filha de Jasmine e
Henry. Não era uma amiga. Pelo que entendi, nem mesmo era humana. Era
apenas parte de um jogo que o Destino nos instruiu a jogar. Não havia saída
para mim, além daquela que foi planejada. Ou morro, ou mato. Minha vida
podia ser resumida a opções tão simples que chegava a ser cruel.
Respirei fundo. Lá fora, podia ouvir passos leves que nunca
pareciam andar mais do que dois metros até fazer o caminho de volta.
Alguém estava esperando.
Olhei para meus pais.
— Acho que devo agradecer por não terem permitido, então.
Meu pai balançou a cabeça.
— Não precisa agradecer nada.
Olhei para minha mãe.
— Como será minha vida aqui? Imagino que me colocar para
dormir já não seja uma opção válida. — Em poucos meses completaria
dezoito anos, se desse sorte.
— Você irá ser treinada todos os dias com muito mais afinco do que
antes — ela respondeu. — Mas aqui, talvez, você possa encontrar certas
alegrias que não eram comuns antes. Você pode fazer novos amigos, pode
ser parte desta comunidade, se assim escolher.
Será que eu me encaixaria aqui? Nunca precisei aprender a me
envolver com pessoas, eu era sempre mantida distante. Será que eu queria
me encaixar? Com as pessoas que olhavam para meu pai como se ele fosse
defeituoso ou para mim como se eu fosse algum animal em exibição?
Meu pai percebeu minha relutância e disse:
— Nem todos aqui são ruins.
Pensei em Serena e Roman, até mesmo em Jasper, e concordei com
papai. Então, sem querer, pensei em Nathan e em como todos me alertaram
sobre um garoto perturbado e tudo o que encontrei foi alguém...
machucado.
— É, acho que não.
Lá fora, os passos pareceram cessar e em três segundos, Roman
estava entrando em nossa cabana depois de dar duas batidas leves na porta.
— Desculpe interromper — ele disse. — Mas pensei que talvez
fosse melhor ajudar Alyssa a se acomodar em sua própria cabana antes do
anoitecer.
Fiz uma careta, confusa.
— Eu tenho minha própria cabana?
Roman assentiu e minha mãe explicou:
— Os Protetores construíram uma cabana para a Fidly, mas você
pode ficar comigo e seu pai se preferir. — Mamãe parecia querer que eu
escolhesse a última opção.
Pensei em sua proposta e a descartei prontamente. Nunca tive
privacidade em minha vida. Nunca pude me sentir independente. E mesmo
sabendo que meus pais fizeram tudo o que precisavam para me manter
segura, eu estava segura aqui. Desertores não podiam entrar no Outro Lado,
o que significava que eu podia andar livremente. Podia ter meu próprio
espaço.
Sorri comigo mesma. Meus pais também mereciam uma folga da
minha presença. Por dezessete anos viveram incansavelmente por mim,
com certeza mereciam um tempo só para os dois, onde eu não era um
empecilho.
— Não, tudo bem. Vai ser legal ter minha própria cabana.
Seria bom ter um pouco de privacidade, de independência, mesmo
que supervisionada.
— Como você está? — Roman perguntou, enquanto caminhávamos
em direção à minha cabana.
Ele me disse que Serena tinha treinamento e não pôde esperar, então
éramos apenas nós dois. Meus pais preferiram ficar e arrumar o lugar que
chamariam de casa pelos próximos meses. Eu sabia que meu pai estava
desesperado para fazer sua cabana parecer um lar.
Dei de ombros.
— Estou me sentindo uma idiota. Mas a este ponto eu deveria ter
me acostumado.
Ele pareceu segurar uma risada e eu dei um soco em seu braço.
Roman me olhou feio e segurou o braço dramaticamente.
— Ei! Não fui eu quem menti.
— Isso não me deixa menos estressada.
Dessa vez ele riu de verdade e tentei lhe dar outro soco, mas ele
segurou minha mão antes de atingir seu corpo, mesmo segurando duas
malas e uma mochila nas costas. Quando tentei ajudar a carregar as coisas,
ele disse que podia muito bem carregar tudo. Acho que consegui ofender
sua grande força inumana e, claro, seu ego masculino frágil.
— Se serve para alguma coisa, acho que está bem melhor sem nunca
ter conhecido sua avó. A mulher consegue ser tão irritante quanto Ravenna.
Assenti.
Ele nunca parecia ter medo de falar o que achava. Era admirável.
— Podemos concordar nisso.
— Então qual o problema? — perguntou.
Passamos por uma roseira que me fez lembrar de Diana. Será que
ela também se sentia tão... incapaz? Apostava que não. Ela parecia ser tão
corajosa. Tudo o que me contavam sobre ela era tão completamente
incrível. Diana teve um filho quando era mais nova que eu e mesmo assim
encontrou um modo de ser uma boa mãe e se sacrificar por aqueles que
amava. Eu mal podia me imaginar estar pronta para qualquer uma daquelas
responsabilidades.
Mordi o lábio. Pensar em Diana sempre me fazia pensar em Nathan
e não queria pensar nele. Não entendia o porquê fiquei tão interessada pelo
garoto, mas sabia que era melhor se eu nunca mais me permitisse imaginar
em como ele estava. A verdade era que provavelmente não voltaria a vê-lo.
A ideia pareceu incomodar por algum motivo, como se eu pudesse mesmo
sentir sua falta, mesmo sem conhecê-lo direito.
— O problema — eu disse, finalmente. — É que não sou dona da
minha própria vida. Sou apenas um peão em toda essa história, esse jogo
que o Destino criou. — Roman me olhou, compreensivo. — Você sabia que
eles queriam me colocar em algum tipo de coma até que eu fizesse dezoito
anos?
Roman deu de ombros.
— Algumas pessoas já comentaram sobre.
— Percebe como é irritante que todo mundo saiba mais sobre minha
vida do que eu mesma?
— Acho levemente divertido.
Bufei.
— Idiota.
Ele riu alto.
Logo estávamos em frente a uma cabana pequena, mas
incrivelmente linda. A madeira era escura e a porta principal parecia de
carvalho. Na parte superior, próxima a ponta do triângulo que formava o
telhado, uma ampla janela de vidro estava virada em direção ao céu e às
montanhas a alguns metros de nós.
— É bonita — admirei.
Roman me estendeu uma chave.
— Faça as honras.
Peguei a chave e abri a porta rapidamente, pulando para dentro mais
rápido que um piscar de olhos.
Andei saltitando pela casa, feliz por ter um lugar só meu. Havia uma
cozinha à minha esquerda e uma sala à minha direita. Em um pequeno
corredor entre estes dois cômodos havia um banheiro espaçoso. Uma escada
estreita levava para um quarto na parte de cima, o único cômodo da parte
superior. Lá, uma cama de casal estava posta, além de uma escrivaninha e
um pequeno guarda-roupa. Do quarto, conseguia ver a sala, a porta e parte
da cozinha.
Voltei para o andar de baixo e encontrei Roman me observando
atentamente.
— Pelo menos estão te dando um lugar confortável, não é?
Eu o observei com cuidado.
— Por que nunca se inclui quando fala sobre os Protetores?
— Eu me incluo — ele replicou.
Estreitei os olhos.
— Em 99% das vezes é como se não se incluísse.
Roman me olhou.
— Tanto faz.
Encontrei uma pequena estante em frente ao sofá e logo peguei os
livros que trouxe para organizá-los ali. Comecei os distribuindo por gêneros
e, então, por autores.
— O que faria se tivesse acordado só aos dezoito anos?
A voz de Roman me assustou depois de um longo tempo em
silêncio. Soltei os exemplares em minhas mãos e me virei para encará-lo.
— Eu não acho que seria a mesma. Eu ao menos teria desenvolvido
minhas capacidades mentais? Eu saberia falar ou andar se nunca tivesse tido
tempo para aprender? — Balancei a cabeça, sentindo um arrepio sinistro
percorrer minha espinha. Quem eu seria se meus pais não tivessem ido
contra essa ideia? — Acho que, muito provavelmente, o tiro teria saído pela
culatra. Não acho que, o que quer que mude depois que eu faça dezoito
anos, ajudaria se eu tivesse dormido minha vida inteira.
“Dormir” era um eufemismo para o que de fato seria.
— Acho que teria sido um desperdício — Roman disse. Ele andou
até mim e posicionou o próximo livro na estante. Estávamos próximos o
bastante para que nossos braços se tocassem. — O que acha que teria feito
ou se tornado, caso não fosse a tão esperada Fidly?
Suas palavras foram zombeteiras, mas quando o encarei, ele estava
sério.
— Eu só queria ir para alguma faculdade. Qualquer uma. Quanto
mais longe melhor. — Soltei uma risada seca. — Eu nem tinha decidido
ainda o que queria estudar, apesar de estar bem certa que seria algo
relacionado à literatura ou escrita. Gostava de pensar que eu poderia
escolher qualquer coisa que eu quisesse. — Bati meu ombro em seu braço.
— E você? O que faria se não fosse um Protetor?
Ele deu um passo para trás, as mãos presas nos quadris. Seus olhos
vagaram pelo teto, como se pudesse imaginar muitas coisas.
— Não tenho absolutamente nenhuma ideia.
Cerrei meus olhos.
— Mentiroso.
Seu sorriso pareceu estranho.
— É sério, eu nunca tive muito contato com o mundo humano. Não
sei o que escolheria, nem mesmo o que iria gostar. — Roman me encarou.
— Você não é a única que cresceu em uma bolha sem muitas escolhas a
fazer.
Seus ombros tensos denunciam que suas palavras eram mais do que
podiam parecer de início.
— O que aconteceu com a sua família?
Ele deixou o livro na estante e se afastou um pouco.
— Basicamente, eu sou um bastardo. Minha mãe era uma Protetora,
mas meu pai era humano e ela deixou seu casamento infeliz com um
Protetor quando engravidou de mim. Meus pais, então, ficaram juntos por
um tempo, mas ambos morreram quando eu ainda era criança. Por isso, fui
criado aqui no Outro Lado, o que significa que tive treinadores como
tutores e não muito bem uma família — contou. — Como cresci aqui, só
tive a oportunidade de ver a dimensão original quando recebi a tatuagem.
Então eu nunca tive muita chance de escolha.
— Gostaria de poder escolher outra coisa? Ser outra coisa, quero
dizer.
Roman desviou o olhar.
— Nós nascemos e já somos introduzidos a este mundo, Alyssa.
Nossos pais, tios e amigos, vivem por isso. Eu não conheço nada além.
— Isso é triste — falei. — Não poder escolher. Precisar arriscar sua
vida por algo que talvez nem entenda ou se sentir incluído a um problema,
que não fez nada para gerar.
— Essa é a vida — Roman respondeu simplesmente.
— Não quero que se sinta obrigado a cuidar de mim. Ou a morrer
por mim, como todos dizem o tempo todo. Eu não o julgaria se não o
fizesse. Para ser sincera, espero que não o faça.
Roman abriu um pequeno sorriso.
— Por incrível que pareça, depois que finalmente pudemos
conversar, não me parece penoso fazer o que faço. — Seus olhos
encontraram os meus e ouvi seus pés baterem no assoalho, enquanto ele se
aproximava um pouquinho. De repente, ele parecia nervoso. — Você é
corajosa, talvez no limite de ser louca, como pudemos ver no festival. E não
é exatamente alguém difícil de conversar. — Seus olhos chocolate
encontraram os meus olhos negros. — Gosto de você.
Meu coração acelerou. Essas últimas palavras não pareciam ser
simples ou platônicas. Por um segundo, acreditei que houvesse mais nelas,
mas ignorei o pensamento tão rápido quanto um desviar de olhar.
— Fico feliz por não ser um fardo.
Roman piscou e deu um passo para trás. Ele colocou um último
livro na estante e começou a andar em direção a porta.
— Eu devo ir — disse.
— Você tem sua própria cabana também?
— É a cabana da família Scott, mas sou só eu agora.
De todas as coisas em minha vida, família nunca foi algo que senti
falta. Eu sempre tive meus pais comigo e eu sabia que nunca me deixariam.
Não podia nem ao menos me imaginar em um mundo sem eles. E mesmo
assim, conseguia imaginar a dor de viver uma vida sem qualquer um para te
apoiar, para estar presente nos jantares de domingo ou aniversários.
Entendia porque Roman sempre parecia meio triste. Ele também era
solitário. Era de um modo diferente de mim ou Nathan, mas ainda assim era
solidão.
Eu queria abraçá-lo, mas Roman já estava abrindo a porta para sair.
— Eu sinto muito — ofereci.
Não era o suficiente. Estas palavras não eram o suficiente. Perder
alguém devia ser algo excruciante, uma dor que nunca cessaria. Perder um
pai, então, devia ser um tipo de tragédia que não podia nem ao menos
imaginar, sem que meus olhos queimassem.
Roman me ofereceu uma última olhada. Seus cabelos castanhos que
combinavam com seus olhos estavam caindo em ondas até a altura do
queixo. Seus ombros pareciam pesados. Ele parecia triste. Incrivelmente
desolado. Imaginei que fossem as memórias de seus pais, mas quando parei
para pensar, não conseguia me lembrar de um único momento em que
Roman esteve genuinamente feliz, mesmo minutos atrás quando ria comigo.
Ele sempre pareceu tão... deprimido, como se houvesse uma sombra
pairando sobre seus ombros.
Ele e Nathan tinham muito em comum, afinal.
Mal tinha perdido a consciência quando fui tomada por um
pesadelo. Desta vez, apesar de ver sua morte, o sonho não terminava ali. Vi
Vicenzo matar uma Fidly, mas então o sonho mudou, como em um filme
que mudava de cena. Olhos azuis me observavam com atenção. Os cabelos
pretos de Diana estavam mais curtos do que na foto que peguei na casa de
Nathan.
“Não o deixe ir.”
Sua voz era como um sopro no vento. Leve, mas certa. Seus olhos
penetraram os meus como se quisessem enxergar minha alma. Tentei
compreender suas palavras. Tentei perguntar mais a ela, mas fui puxada da
inconsciência tão rápido quanto havia caído nela.
Acordei com um sobressalto, ouvindo um barulho afiado vindo de
baixo. Meu coração acelerou, mas me lembrei que estava no único lugar
onde os Desertores nunca conseguiriam me tocar. Mas aquela era a primeira
vez que dormia longe dos meus pais, e não sabia se eu deveria temer algo
além dos Desertores.
Peguei uma adaga na mesa de cabeceira ao lado da minha cama. Saí
de debaixo das cobertas e desci as escadas devagar. O barulho se tornou um
baque oco e estava preparada para encontrar quem quer que fosse, com
minha adaga bem afiada em sua garganta.
Em meio a escuridão, tudo o que eu enxergava era o vulto de
alguém. Alto. Forte. Pulei os últimos degraus e avancei no intruso.
— Este movimento é tão completamente inútil.
O som de sua voz chegou até mim com menos rapidez que seu
movimento. Ele desviou dos meus braços e pousou logo atrás de mim,
segurando meu pulso que estendia a adaga em sua antiga direção, agora
preso contra meu peito. Ele deu uma olhada na minha mão direita ainda
agarrada à adaga.
— Mas bela adaga — completou.
Eu sabia que podia relaxar, que este intruso não me faria qualquer
mal, mas saber que Nathan estava aqui não diminuía em nada meu
nervosismo. Por que ele estava em minha cabana, logo depois que sonhei
com sua mãe? Quão real tinha sido aquele sonho, aliás?
Soltei-me de seu aperto e fui em direção ao interruptor para ligar a
luz.
— Jasper me deu, dizendo que eu deveria ter algo que preste para
me defender — eu disse, tentando esquecer o pesadelo e me sentir menos
ansiosa com sua presença inesperada. — Mas ainda não entendo porque não
usam armas comuns, como revólveres. Parecem ser mais simples.
— As lâminas que usamos são feitas de pedra de fogo — Eu devia
estar com uma grande interrogação no rosto, porque ele balançou a cabeça e
continuou. — Eles não te explicaram nada? — Tão rápido quanto um raio,
Nathan parou a poucos centímetros de distância, e tocou a ponta afiada da
minha adaga. — Esta pedra é forjada pelas Guardiãs, acho que por
Cassandra mais especificamente. Elas impedem que o processo de cura
rápida dos Desertores seja eficiente. Além disso, um revólver não nos
proporcionaria uma boa luta.
Eu não deveria ficar impressionada, por ter tanta coisa sobre este
mundo que ainda não sabia, mas olhei para a lâmina da minha adaga com
certa curiosidade.
— Ela pode desacelerar a cura de um Protetor também?
Nathan assentiu.
— Protetores e Desertores tem praticamente os mesmos dons, a
diferença é que eles perderam o cérebro ao desertar e são movidos por sua
natureza animal ou por ordens de Vicenzo — disse, dando uma olhada em
volta da cabana. — Além de terem marcas não muito belas — ironizou.
Afastei-me dele, processando suas informações, tentando mantê-las
gravadas no meu cérebro para caso um dia eu precisasse. Deixei a adaga em
cima da mesinha de centro da sala e finalmente fiz a pergunta que martelava
em minha mente:
— O que está fazendo aqui?
Desta vez, quando me virei para encará-lo, fui capaz de enxergá-lo
completamente e, meu santo Deus, ele era perfeito mesmo. Imaginava ser
mais de duas horas da manhã, mas Nathan estava com o cabelo jogado para
trás em ondas negras que pareciam ter sido penteadas com seus dedos. Sua
calça preta e blusa preta pareciam bonitas demais em comparação ao meu
pijama surrado. Ainda não o vi usando o uniforme de couro dos Protetores,
mas só podia imaginar que ele ficaria tão bem nele quanto nestas roupas
comuns.
— Achei que talvez precisasse me certificar de que chegou até aqui
e sobreviveu — disse, um sorriso divertido em seus lábios grossos. —
Depois dessa sua emboscada vergonhosa, acredito que eu tenha motivos
para me preocupar.
— Achei que não pisaria mais aqui se pudesse evitar.
Nathan deu de ombros.
— Não deu pra evitar.
Tentei me concentrar em nossa conversa, ignorar como sua visão
fazia meu corpo formigar, mas Nathan desceu seus olhos por meu corpo
coberto por um pijama velho, e quis ter escolhido algo mais bonito para
usar. Mesmo assim, meu ego explodiu como um foguete com seu olhar tão
curioso quanto interessado.
Engoli um sorriso quando ele pigarreou e desviou o olhar do meu
corpo, focando-se em meus olhos.
— Sinto muito por acordar você — disse. — Mas queria vê-la
enquanto os outros dormem.
— Por que?
Nathan andou até minha estante, já completamente decorada pelos
meus livros, e analisou os títulos. Seus dedos percorreram a lombada dos
livros de ficção e depois desceram para os de romance.
— Porque não quero que saibam que estive aqui — disse, ainda
concentrado nos títulos.
Por que estava tão interessado no que eu lia? Não estava certa de
que queria emprestar algum dos meus lindos exemplares.
— Então não pretende ficar — deduzi.
— Não.
Não sabia porque me incomodava tanto ouvir isso, mas pensar que
não voltaria a vê-lo tão cedo, trazia um certo desconforto indesejado ao meu
peito. Mas também não esperava vê-lo esta noite, então talvez não
demorasse muito até ele voltar, não é?
Que merda era o meu problema?
Encontrei os olhos de Nathan me observando atentamente, como se
tentasse ler minha mente. Sentei-me no sofá, a mente ainda sombreada pelo
sono. Nathan se sentou na mesinha à minha frente e seus olhos azuis me
levaram direto ao meu sonho. Nathan se parecia muito com o pai, mas olhar
para ele era estranhamente como olhar para Diana.
— Eu estava pensando em você — ele disse, e meu coração
acelerou em resposta, como a grande idiota que eu era. Será que eu podia
ser tão facilmente iludida por um garoto com apenas uma noite, na qual,
aliás, não fizemos nada além de conversar? — Sua mãe te treinou antes de
vir para cá?
Assenti.
— Fui treinada desde pequena, minha mãe só nunca me contou o
porquê.
Nathan balançou a cabeça em concordância.
— Bom — disse. — Você já percebeu algo diferente? Quando
encontramos os Desertores, você tentou me ajudar, o que foi incrivelmente
idiota, mas corajoso. — Fiz uma careta pra ele, mas Nathan ignorou. —
Seus movimentos foram bons, mas fracos.
— Bem, desculpe por decepcioná-lo.
Ele revirou os olhos.
— Acredite em mim, nada daquilo foi decepcionante — afirmou. —
Só que você luta com força humana e assim nunca vai conseguir ganhar
uma luta contra um Desertor.
— Você sabe que só vou ficar mais forte, ou algo parecido, depois
dos meus dezoito anos, não é? — minha voz saiu irritada. Não era como se
eu escolhesse ser fraca. — Tecnicamente, até lá, sou completamente
humana. Por isso vou ficar presa aqui como uma inválida.
Seus olhos azuis me examinaram.
— Seu pai é humano, mas sua mãe é uma Protetora, Alyssa —
disse. — O que quer dizer, que você tem sangue Protetor como eu tenho
sangue Fidly. Nunca passou pela cabeça de nenhum de vocês que, talvez,
você tenha herdado mais do que meros traços físicos dela?
Sua menção à sua mãe, fez com que eu visse o rosto de Diana com
muito detalhamento. Ao mesmo tempo, o que Nathan sugeria parecia
impossível. Em dezessete anos, como eu não saberia que tinha algum
poder?
— Se eu tivesse a força de um Protetor, eu saberia, não acha?
Nathan, no entanto, pareceu ter pensado a fundo nessa possibilidade.
— Assim que começamos a falar, a primeira coisa que nos é
ensinado, é que somos Protetores e somos excepcionais.
— Uau — zombei.
Ele abriu um sorriso torto.
— Não estou tentando me gabar. O fato é que crescemos sabendo
que podemos correr mais rápido, ouvir melhor, ser mais fortes e sentir além
da capacidade humana. Sabemos disso. Acreditamos nisso. Somos forçados
e incumbidos a usar esse poder desde muito jovens.
— Está me dizendo que se eu começar a “acreditar”, vou ficar super
forte do dia para a noite? Só pela força do pensamento?
Nathan cerrou os olhos.
— Quando você diz assim, parece idiota. Tenha um pouco mais de
fé em mim — disse. — O que estou dizendo é que você tem sangue
Protetor. Isto é um fato. Você não é só a Fidly, é também uma de nós. A
diferença é que foi criada para acreditar que é humana, por isso,
provavelmente, nunca desenvolveu nenhum poder.
Isso... Isso fazia sentido. Bem, talvez eu estivesse sendo otimista em
acreditar no que dizia, mas se fosse verdade, isso me daria mais chances do
que antes. Seria uma justificativa mais plausível do porquê eu poderia
sobreviver quando todas as outras não conseguiram.
— Por que pensou nisso? — perguntei, curiosa para entender sua
linha de pensamento.
— Ravenna tinha uma teoria parecida por eu ser filho de uma Fidly.
Será que Nathan tinha algum poder extra que eu teria um dia?
— Ela estava certa?
Ele negou.
— Até onde sei, não. Ser a Fidly vai além de poder, eu imagino. É
uma essência, uma escolha feita pelo Destino. Compartilho do sangue da
minha mãe, claro, mas acho que só isso.
— Você também tem seus olhos — deixei escapar. Ele arqueou uma
sobrancelha, curioso e levemente surpreso. — Eu invadi sua casa, lembra?
Vi uma foto — expliquei.
Ele assentiu, em silêncio. Por longos segundos, ficamos nesta
inanição eterna. Sentia que tinha ultrapassado uma linha tênue com ele, ao
comentar sobre Diana. Não conhecia Nathan bem o suficiente para entender
suas motivações e seus sentimentos. Sabia que quando éramos crianças,
provavelmente nos conhecemos, mas a lembrança era tão vaga que não
gerou efeito em nenhum de nós. Se não soubéssemos que morávamos em
casas vizinhas, talvez nunca pensássemos em qualquer correlação.
— Era só isso que queria dizer? — perguntei, finalmente quebrando
o silêncio.
Ele piscou os olhos azuis turquesa e depois os focou em mim.
— Quero testá-la.
Dessa vez fui eu quem arqueou uma sobrancelha, sem entender o
que ele queria dizer.
— Quero ver se estou certo. — Ele pegou um enfeite na mesa de
centro, onde estava sentado. Ele parecia gigante naquela mesinha, com as
pernas dobradas quase na altura do peito. O objeto que escolheu parecia
uma escultura sem forma definida, de aço inoxidável. Sua espessura era
grossa. — Tente amassar isso.
— Não acho que devo destruir os objetos alheios, mesmo que eu
possa.
— Eu não conto, se você não contar.
Revirei os olhos.
— Você vai me arrumar problemas.
— Mas você já sabia disso, Alyssa. — Ele me deu uma piscadela.
Conseguia ser gracioso até fazendo aquilo. — Qualquer coisa coloque a
culpa em mim, eles não são grandes fãs meus mesmo.
Eu fui avisada sobre isso. Roman me alertou diversas vezes. Meus
pais e até Serena tentaram me avisar. Mas ainda assim, com este Nathan à
minha frente, mais descontraído, parecendo menos sombrio... Não
conseguia acreditar em tudo o que diziam.
— Você está muito engraçadinho hoje, sabia?
Nathan deu de ombros.
— Vamos lá, Aly. Me dê o seu melhor.
Era a primeira vez que ele me chamava de “Aly”, mas podia jurar
que já o ouvi dizer isso antes, meu apelido pareceu tão natural em seus
lábios que ele mesmo poderia tê-lo inventado. Peguei o enfeite com as mãos
firmes. Apesar de achar que esta ideia fosse idiota, seria bem melhor para
mim que fosse verdade.
Meus dedos se fecharam no material grosso, mas nada aconteceu.
Apertei. Nada. Ergui a mão esquerda para forçar mais o aperto, mas ainda
assim só consegui sentir meus dedos arderem.
— Pense em tudo o que você descobriu, o que você é — Nathan
disse, sua voz entrando em minha cabeça, ao mesmo tempo que aqueceu
uma parte perdida de mim mesma. — Você não é frágil. Não é um efeito
colateral ou uma garota para o abate. — Ergui meus olhos para os dele.
Preto contra azul. Escuridão da noite contra um céu azul da manhã. — Você
é a promessa pela qual muitos morreram. Você foi marcada, basta acreditar
que é porque deve ser lembrada, não por uma história triste e trágica, mas
porque mudou o jogo.
Meus dedos começaram a doer, mas não desisti de pressionar o aço.
— Você não é uma inválida. Não pode ser escondida — ele insistiu,
como se suas palavras pudessem ativar algo dentro de mim. Algum poder
antigo, carregado por uma linhagem poderosa de Protetores. — Você foi
escolhida pelo próprio Destino.
Estava prestes a soltar aquele maldito enfeite e dizer que aquilo não
daria certo, que não havia poder em mim, mas o enfeite soltou um rangido
baixo. As mãos de Nathan tocaram meu joelho, como se nem ele pudesse
acreditar, mas ainda assim querendo que eu continuasse. Seus dedos
quentes tocaram minha pele nua e eu perdi o fôlego. Em minha cabeça, era
como se um cadeado tentasse se abrir. Vi Nathan piscar depois de um longo
segundo e se afastar de mim tão rápido quanto era capaz. Acho que ele nem
ao menos pensou em me tocar antes de, de fato, fazê-lo.
Apertei ainda mais o objeto em minhas mãos, pensando em todos os
momentos que não tive. Todos os amigos que nunca pude fazer. Pensei no
fato de não me lembrar de alguém como Nathan, porque simplesmente não
tive a oportunidade de permanecer em sua vida. Pensei em Akantha e
Ravenna, que queriam me colocar para dormir por dezoito anos. Pensei no
que mais poderia ter perdido, caso tivessem conseguido o que queriam. A
fúria tomou meu peito, minha garganta parecia obstruída, meu sangue
ferveu. Lembrei do ataque e da minha impotência, do meu medo e da raiva
nos olhos dos Desertores. Então, pensei em Diana e como ela nunca pôde
ver o filho crescer e aquele sentimento que já me perturbava, pareceu
irradiar por minhas mãos.
Esmaguei o enfeite em meus dedos. Ele se transformou em nada
mais que uma linha mais fina e achatada do que era antes.
— Eu sabia — Nathan murmurou, os olhos perdidos em minhas
mãos e no enfeite destruído.
Naquele momento, muitas coisas tomaram novos sentidos. Eu me
lembrava de certos momentos, ao longo dos anos, em que corri rápido
demais, ou ouvi conversas distantes, ou mesmo senti o cheiro de comidas
que eu só encontraria depois de longas distâncias. Coisas que eu nunca teria
reparado antes, porque simplesmente não eram perceptíveis demais e uma
razão para que estivessem ocorrendo, nem passou pela minha cabeça, mas
agora, tudo isso fazia mais sentido. Porque eu não era apenas humana, ou
apenas uma Fidly. Eu era uma Protetora por sangue.
— Depois que vi seu pai na minha casa e confrontei meus pais,
tentando saber a verdade, eu bati as palmas na mesa de vidro e ele trincou
— disse, lembrando-me daquele momento com clareza. — Eu pensei que o
vidro era velho, apesar de grosso, e que talvez já houvesse algum defeito
nele. Mas talvez... talvez tenha sido eu.
Ele concordou.
— Muito provavelmente.
Agucei meus demais sentidos. Tentei ouvir além da cabana, mas
além de algumas cigarras e o balançar lento do Lago, não ouvi mais nada.
Respirei fundo e tentei sentir todos os cheiros, como um cachorro
colocando a cabeça para fora da janela de um carro.
O cheiro almiscarado de Nathan me atingiu em cheio, junto ao
cheiro de sabonete e algo mais que não era capaz de distinguir, que só podia
ser seu cheiro próprio. Era bom. Masculino e forte, mas em nada enjoativo.
— No que pensou? — ele perguntou, apontando para minha mão
que ainda segurava o enfeite arruinado.
— Pensei nos Desertores, e nas mentiras e em Akantha e Ravenna
— contei. — Pensei no que eu teria perdido se tivessem conseguido me
colocar para dormir, por todos esses anos.
Ele franziu o cenho.
— Como assim? Akantha é a mãe de Jasmine, não é? — Ele fez
uma careta. — Puta merda, só agora estou relacionando tudo. Ela é sua avó.
Assenti.
— Algo assim.
— O que quis dizer sobre te colocarem para dormir?
— Você não sabia? — perguntei. Até Roman havia ouvido falar
sobre isso. Nathan negou, balançando a cabeça. — Bem, Ravenna teve a
brilhante ideia de me colocar em um coma, com um feitiço da Guardiã
Cassandra, para que eu dormisse até os dezoito anos. Assim eu ficaria longe
de problemas e eles me trancafiariam em algum lugar aqui. Akantha, como
a ótima avó que é, defendeu a ideia ao lado de Ravenna.
A incredulidade pareceu tomar a expressão de Nathan.
— Eu nem sei porque ainda me surpreendo com as ideias de
Ravenna — murmurou. — E encontrei sua avó, duas ou três vezes nos
últimos anos, e posso imaginar como está se sentindo sobre ela.
— Sobre o fato de ela ser uma megera? — desdenhei. — Eu poderia
viver sem saber da existência dela. — Soltei o enfeite sobre a mesinha,
antes que ele virasse pó em minhas mãos. — Ela ficava me olhando como
se eu fosse um troféu — resmunguei.
Nathan assentiu, pensativo.
— Não duvido que ela ache mais ou menos isso mesmo. — Suas
mãos voltaram a tocar meu joelho, levemente, como se quisesse que eu
prestasse atenção em suas palavras seguintes. — Mas não importa o que ela
ache. Não importa o que Ravenna queira. Você está no controle.
Não era como eu me sentia, no entanto.
Ele percebeu a descrença em meu olhar.
— Olhe para o que fez, Alyssa. — Ele apontou para o enfeite
destruído. — Isso é bom. É muito bom. Nenhuma outra, antes de você, pôde
fazer isso. E herdar, mesmo que seja só um pouco, a força dos Protetores,
será uma grande arma contra Vicenzo. Quer dizer que você tem uma chance
contra os Desertores, só precisa aprender a controlar.
— Não pode ser assim tão fácil — murmurei. Mesmo assim, meu
peito se encheu de esperança.
— Por que acha que tem que ser difícil? — ele rebateu. Meus olhos
encontraram os dele e eu inspirei.
Porque estava fácil demais.
Mas eu havia sobrevivido por 17 anos. Fui mais longe do que
qualquer outra Fidly. Minha mãe era uma Protetora, o que me fazia uma
também. Meu pai era um humano, treinado por uma Protetora, e conseguiu
ajudar a me manter segura, por todo esse tempo. Se parar para pensar, tudo
até aqui, foi mais fácil do que deveria ter sido. Ou do que esperavam que
fosse.
Talvez o Destino estivesse apostando em mim.
— O quão bem consegue sentir os cheiros? — perguntei, mudando
de assunto.
— Bem o suficiente para saber quando há um Desertor a alguns
quilômetros de distância — Nathan respondeu.
— Por que não sentiu meu cheiro e logo deduziu que eu era a Fidly?
— perguntei.
— Porque seu cheiro não é nada como qualquer um que eu já tenha
sentido antes — disse. — Mesmo a vaga memória que tenho da minha mãe,
não é como o seu. Acho que isso a torna única. Não cheira a humana ou
Protetora. Você tem seu próprio e específico cheiro.
Enrijeci.
— Eu não cheiro mal, não é?
Ele riu, achando graça da minha muito provável careta.
— Com certeza não.
Suspirei aliviada.
— Mas mesmo sem saber quem eu era, você tentou disfarçar meu
cheiro, aquele dia. — Parece que aquilo tinha acontecido há séculos. — Foi
isso que tentou fazer, não foi? Quando esfregou sua pele em mim, lembro
de ouvir você dizer algo sobre disfarçar meu cheiro com o seu.
Nathan assentiu.
— Você nem ao menos sabia quem eu era. Por que não me usar
como distração?
Seu olhar se tornou sombrio.
— Você realmente acha que eu faria uma coisa dessas? — sua voz
pareceu mais firme agora. — Não sou a pessoa mais decente do universo,
mas nunca faria isso com um inocente. Já fui ferido por aqueles malditos,
enquanto tentava salvar humanos que mal conhecia. Eu com certeza, não
deixaria que tocassem em você. Sabendo ou não o que você era.
Queria saber porque foi tão incisivo em relação a minha proteção.
Queria ter a coragem de perguntar, se ele se sentia tão fora de prumo ao
meu lado, como eu parecia ao lado dele. Mas me acovardei, como uma
criancinha que não queria enfrentar seu colega grandão. Porque perguntar
isso a ele, só me faria esperar por algo que nem sei se poderia realmente
querer. Se deveria querer.
— Não acho que posso sentir cheiros tão bem quanto você —
escolhi dizer.
— Provavelmente vai melhorar. — Ele se levantou. — Está tarde, e
eu já tomei demais o seu tempo de descanso. Você deve dormir um pouco,
aposto que amanhã seu dia será infernal.
Fiz uma careta.
— Uau, obrigada. — Levantei-me com ele. — Já te disseram que
deveria fazer discursos motivacionais para vender?
Ele mordeu o lábio, segurando um sorriso.
— Eu preciso ir, mas volto outro dia para testarmos sua capacidade
de correr.
Fiquei surpresa com sua proposta. Ele disse que estava preocupado
comigo, mas não levei tão a sério. Principalmente, não ao ponto dele se
oferecer para me treinar.
— Então você vai ser tipo, meu treinador agora? — Segui Nathan
até a porta. — Tenho certeza de que outras pessoas podem fazer isso por
você.
Seus ombros ficaram tensos e ele se virou para me encarar. Trombei
em seu corpo e ele segurou meus braços para me manter no lugar.
— Não pode contar o que descobrimos hoje a ninguém. O que fez
hoje, será nosso segredo, tudo bem?
Fiquei confusa.
— Por que?
— Porque não confio em Ravenna e em muitos outros aqui,
incluindo sua avó. E tenho certeza que, de uma forma ou outra, se contar
para alguém, a informação chegará aos ouvidos de outra pessoa, que levará
a informação à Ravenna que, por sua vez, é bastante amiguinha de Akantha.
E não quero elas envolvidas nisso.
— Isso não é uma coisa boa? Eu poder ser mais forte do que
esperávamos.
Ele soltou meus ombros e enfiou as mãos nos bolsos.
— Ravenna tem a tendência de transformar boas notícias em
catástrofes. Ela irá dizer que você precisa aprender a controlar e que
sozinha não será capaz, e então te usará como um ratinho de laboratório. —
Com um olhar estranho, Nathan afastou uma mecha de cabelo de meus
ombros e logo desviou o olhar. — Pode apostar em mim, que ela já vê você
como um projeto científico. Está louca para entender o que a faz especial e
se você não se cuidar, ela irá estudá-la até saber seus mínimos pensamentos.
E Akantha, com certeza tentaria usar essa notícia para aumentar seu ego.
Ele falou com tamanha certeza, com tanta seriedade, que só podia
imaginar que ele entendia muito bem sobre o que estava falando. Eu
observei, sem reação, dividida pela raiva e surpresa, o horror e a vontade de
quebrar mais alguma coisa.
— Ela machucou você?
Minha voz quase não saiu.
Nathan não respondeu.
— Ravenna machucou você tentando saber se tinha herdado algum
poder da sua mãe? — insisti, minha voz saindo mais alta do que eu
pretendia.
— Esquece isso, Alyssa.
— Eu quero saber!
— Por que? — ele perguntou, exasperado. — Que diferença faria?
— Toda diferença! É por isso que não quer ficar aqui, mas todos
pensam que é porque não se importa — quase gritei. Não sei porque estava
tão furiosa, mas era como eu me sentia: irada. Eu pensei em dezenas de
cenários diferentes, onde um Nathan mais novo, era machucado repetidas
vezes por Ravenna, exatamente como o ratinho de laboratório que
mencionou e eu poderia quebrar o nariz daquela mulher com meu punho.
Todos ali pensavam que ele tinha algo a esconder, que sua lealdade não
podia ser confiada, mas eu via em seus olhos agora, que havia um motivo
pelo qual ele queria distância deste lugar. — Se ela machucou você, ela
precisa ser punida por isso.
Ele soltou uma risada seca.
— Eu não me importo com o que pensam, Alyssa. Deixe isso para lá
— disse. — Uma dose de preocupação consigo mesma, lhe faria muito
bem, ao invés de se preocupar tanto com a vida alheia — ele murmurou.
Suas palavras me atingiram em cheio. Ele não precisava confirmar
minhas suspeitas, mas eu ainda queria detalhes. Queria que ele me dissesse
que não tinha sido tão ruim quanto as imagens que minha mente produziu.
Não podia ter sido tão ruim. Ele era uma criança. E ele poderia me achar
uma enxerida, ou uma fofoqueira, mas eu ainda assim, me importava. Era
quem eu era e não mudaria.
— Isso não é justo — murmurei de volta.
— Poucas coisas são.
Eu não respondi, e ele fez menção de ir, dessa vez pela porta e não
pela janela por onde entrou.
— Espere — eu disse. Corri até um dos livros em minha estante e
abri em uma página marcada. — Preciso te entregar algo — falei por cima
do ombro, mesmo agora sabendo que ele podia me ouvir tão bem quanto se
estivesse sussurrando. Hábitos.
Nathan esperou, pacientemente — Um adjetivo que nunca pensei
que usaria para descrevê-lo.
Peguei a foto de dentro do livro, onde a guardei em uma noite. Isto
não era meu. Não me pertencia de modo nenhum e eu nunca deveria tê-lo
levado. Esta era uma memória para Nathan e Brian e eu não tinha nada com
isso, mesmo que minha curiosidade falasse mais alto.
Voltei para o lugar onde Nathan estava parado, as sobrancelhas
arqueadas e os olhos azuis refletindo a luz, que mal alcançava este lado da
casa.
— Peguei quando invadi sua casa e sinto muito. — Estendi-lhe a
foto. — Nunca deveria ter pego isso, assim como eu não tinha qualquer
direito de invadir sua casa. Sinto muito mesmo.
Ele pegou a foto e percorreu seus olhos pela imagem com tanta
emoção que podia senti-la em meu peito.
— Não se desculpe. Eu teria feito o mesmo no seu lugar e,
provavelmente, com menos graciosidade. — Nathan ergueu seus olhos da
foto para encontrar os meus. Ele, então, guardou a foto no bolso de trás da
calça. — Obrigado por me dar isso.
É seu — queria dizer. Mas apenas assenti.
— Talvez eu venha vê-la quando os outros estiverem dormindo,
como hoje — ele repetiu sua proposta, como se esperasse que eu a aceitasse
em voz alta.
Era estranho que precisássemos fazer isso em segredo, mas ao
mesmo tempo não podia impedir uma onda de alívio me atingir quando
entendi que ele queria me ajudar. Não ajudava em nada com minha
ansiedade que eu estivesse completamente encantada por Nathan Cross.
Nunca passei por isso. E esta verdade era assustadora. Com Nathan... era
como se eu precisasse conhecê-lo, então fiquei satisfeita com sua proposta,
mesmo que parte de mim tentasse me lembrar que eu não deveria entrar
nisso agora. Eu deveria focar no que aquele mundo queria de mim, não é?
Talvez eu pudesse fazer isso, enquanto ele me treinava.
— Seria bom ter alguém além dos meus pais, Roman e Serena, que
não me olhasse como se eu fosse uma aberração.
Nathan riu. O som foi leve, o que não condizia com sua postura,
mas era um som lindo.
— Aberração? — Seus olhos pareciam divertidos, encarando-me
com intensidade. — Não é porque eles não conseguem conter os olhares
que você seja uma aberração. Este é o preço de ser a prometida, uma deusa
aos olhos de todos aqui. — Ele me deu uma piscadela e eu perdi o fôlego.
— Mas se te faz sentir melhor, posso furar seus olhos.
Engasguei com uma risada perversa que logo contive.
— Acho que não será necessário, mas obrigada pela proposta.
Ele balançou a cabeça e abriu a porta, afastando-se ainda mais de
mim.
— À suas ordens, mademoiselle.
Sorri, mesmo que ele não pudesse me ver.
— Ei, onde está ficando? Na antiga floricultura? — perguntei. —
Zeus está bem? — adicionei.
Nathan se virou.
— Zeus está ótimo, aproveitando a água do Lago — disse. — Estou
ficando na casa ao lado da sua, caso precise de mim.
Queria dizer que não podia sair. Que provavelmente, nunca mais
teria permissão para deixar o Outro Lado, mesmo com poder, se aquilo
dependesse da minha mãe. Mas em um piscar de olhos, ele se foi, como
uma sombra no breu da noite estrelada. Fiquei parada, olhando o contorno
das montanhas e as pequenas e rítmicas ondas do Lago, como se pudesse
encontrá-lo, mas Nathan era rápido como uma flecha e silencioso como um
felino. Logo, ele não era mais do que uma lembrança que não tinha certeza
ser real.
Assim que constatei sua ausência, não pude me impedir de sentir
como se tivesse decepcionado Diana um pouco.
— Alyssa! — Jasper gritou. — Proteja seu lado esquerdo também!
Bufei. Eu estava suando como uma porca, presa neste treino desde
as oito da manhã, e já eram mais de onze horas. Jasper não parava de gritar
para que eu melhorasse meus movimentos, e Serena soltava uma risada
divertida, sempre que eu era repreendida por algum movimento desleixado,
sobre o qual ela já havia me alertado.
Como Nathan pediu, mantive-me calada a respeito de nossa mais
recente descoberta. Quando meus pais apareceram na minha cabana, logo
cedo, para me trazer café, não comentei nada sobre minha nova força e
muito menos que Nathan me visitou — Tinha certeza, que minha mãe
transformaria sua visita em mais um motivo para brigar. Então, agi como se
nada tivesse acontecido. Fiz o mesmo quando Serena me buscou para o
treino.
Estávamos treinando próximo às montanhas. Um amplo espaço
verde e afastado o suficiente, para que o olhar dos Protetores não me
deixasse demasiadamente autoconsciente. O campo de treinamento dos
mais novos, ficava em uma espécie de ginásio, que ainda não conheci, do
outro lado de onde treinávamos agora. Jasper achou que minha presença
distrairia os mais jovens, o que provavelmente era verdade, já que quando
encontrei um grupo de garotos mais cedo, eles quase trombaram em dois
postes seguidos enquanto me encaravam.
Eu estava feliz com a escolha de Jasper. Assim, poucos me
assistiriam levar uma surra. Duvidava que ajudaria se vissem como eu era
completamente inútil. Mesmo agora, com um Jasper irritado e meu pai
assistindo, e Serena distribuindo golpes certeiros, já me parecia humilhação
o suficiente. Pelo menos, minha mãe teve que resolver outros problemas e
por isso não estava gritando comigo ao lado de Jasper. Eu até mesmo, tentei
puxar dentro de mim aquele fio de força que havia visto ontem, tentava
intensificá-lo o suficiente para que pudesse usar em uma luta, que eu me
tornasse páreo para os Protetores, mas não conseguia agarrar nada além de
vazio.
Em minha defesa, eu dormi muito mal. Foi só eu fechar meus olhos
que mais pesadelos aterrorizaram minha noite. Não dava para descansar
muito quando seu subconsciente te forçava a ver um bebê sendo
assassinado e tudo o que queria fazer era acordar para fugir daquela cena.
Um bebê. Que merda?!
Serena chutou minhas pernas e eu caí no chão, o que garantiu mais
uma leva de xingamentos de Jasper e um olhar triste de papai — Que ele,
claro, tentou disfarçar, mas com pouco sucesso. Eu lhe devia crédito por ao
menos tentar.
Eu estava feliz que não falei nada sobre a teoria de Nathan, porque
ela estava se provando um enorme delírio. Aparentemente, não tinha
mesmo muito o que contar. Acertei alguns golpes em Serena, mas eles eram
inúteis. Fosse lá como amassei aquele enfeite, hoje, o encanto parecia ter
passado.
Eu estava certa. Estava fácil demais para ser verdade.
— Merda! — grunhi, quando Serena fingiu me dar um soco que
significaria um nocaute vergonhoso.
— Desculpe — Serena disse, com um sorriso carinhoso.
Ela me estendeu a mão para me ajudar a levantar, mas eu dispensei.
Raiva fervia em meu sangue, mas dessa vez, ela não fez nada para atiçar
meu sangue protetor. Eu odiava perder. Não podia acreditar que era incapaz
de ganhar uma única luta. Se um Desertor aparecesse em minha porta agora
mesmo, eu seria sua vítima perfeita, e isso não fazia sentido porque eu era
boa treinando. Mas eu era boa treinando com meus pais, antes de saber que
havia forças sobrenaturais nesse mundo. E em outros também,
aparentemente.
A morte devia estar rindo da minha cara agora.
— Você não tinha sido treinada? — Jasper rosnou.
Olhei para ele, que se aproximava com passos largos.
— Não sei o que está acontecendo.
— Isso foi completamente vergonhoso. Se eu trouxesse uma das
crianças aqui, você ainda assim não teria chance.
Trinquei os dentes.
— Você está se sentindo bem, filha? — meu pai perguntou,
preocupado. Nem ele acreditava no quão ruim eu estava, porque já tinha
visto melhor.
Eu não sabia o que responder.
Aquele maldito pesadelo realmente mexeu comigo.
Sabia que, depois daquele vexame, Jasper estava certo. Eu parecia
completamente descoordenada. Nem o equilíbrio, que eu tinha tanto
orgulho de reter em meus movimentos, estava calhando naquele dia.
— Este foi o primeiro treino de verdade dela, Jasper. Pega leve.
Virei-me para encontrar a voz de Roman. O garoto, em seus couros
de costume, veio andando a passos largos até nós. Ele cumprimentou meu
pai e deu um aceno de cabeça para mim e Serena e logo voltou sua atenção
à Jasper.
— Este não foi o primeiro treino dela, Scott. — Os olhos de aço de
Jasper poderiam querer me fuzilar. — Ela apenas parece ter conseguido a
proeza de piorar.
Baixei os olhos porque simplesmente não havia justificativa para
meu desempenho hoje. Mesmo quando Jasper me treinou em minha casa no
Lago, não fui tão terrível.
Roman me olhou. No entanto, ele não falava comigo, ao dizer:
— Talvez ela esteja desconcentrada.
— Talvez “ela” — eu disse, apontando para mim mesma — esteja
bem aqui.
Serena riu e eu olhei feio para ela.
— Ei, estou do seu lado — ela disse, erguendo os braços em
rendição. — É o primeiro treino seu aqui, depois de tudo o que aconteceu, é
esperado que não se saia tão bem.
— Também é esperado que ela sobreviva — Jasper retrucou.
— E ela irá — meu pai interferiu.
— Vamos de novo — pedi. — Vou melhorar.
Jasper bufou, mas foi meu pai quem interrompeu.
— Estamos aqui há horas, filha. Você precisa de descanso — disse,
decidido. — Vamos comer algo e mais tarde treinamos mais.
Jasper pareceu concordar com meu pai, meio a contragosto, mas
apenas acenou com a mão esquerda, nos dispensando.
— Vá comer algo. E coloque sua cabeça de volta no jogo, Alyssa.
Jasper quase nunca me chamava pelo nome, e fiquei feliz que ele
pelo menos tivesse me permitido essa pequena alegria hoje. Odiava quando
me chamavam de Fidly. Quando isso acontecia, era como se eu deixasse de
ser uma pessoa e passasse a ser um projeto.
Sem mais uma palavra, Jasper saiu andando. Ele nem se deu ao
trabalho de se despedir, e talvez eu merecesse. Essas pessoas estavam
contando comigo e eu estava provando exatamente porque não deveriam.
Porque Nathan estava muito errado. Eu podia ser uma promessa, mas com
certeza estava longe de ser uma deusa.
O Destino obviamente tinha um humor perverso.

— Ok, acho que mudei de ideia sobre o almoço.


Serena tossiu uma risada e Roman apenas arqueou a sobrancelha
para todos que passavam por nós, encarando a grande novidade que eu
parecia ser.
Talvez eles quisessem malditos autógrafos.
— A melhor forma de lidar com isso, é enfrentar — meu pai me
disse. — Erga sua cabeça e lide com isso. Quanto mais rápido você
conseguir encarar todas essas pessoas, mais rápido elas deixarão de ser tão
óbvias.
— Seu pai está certo, Aly — Serena concordou. — Além disso, a
comida vai valer a pena.
Uma Protetora de olhos castanhos estreitos, que me lembravam a
curva de uma lágrima, até tentou não me encarar, mas a curiosidade pareceu
vencer quando seu olhar percorreu meu corpo até encontrar a marca em
minhas mãos. Ela logo desviou o olhar, sem nem mesmo um aceno ou
sorriso, voltando sua atenção para o hambúrguer em seu prato. Ela pegou
sua bandeja e andou em direção a uma mesa, do lado oposto de onde eu
estava.
O refeitório era bem grande. Uma tenda enorme se estendia por
vários metros quadrados, e tínhamos parte do Lago e da praça como vista.
No centro, havia uma grande porção de comida, a qual as pessoas podiam
escolher o que quisessem, assim como bebidas também. Mesas e cadeiras se
estendiam pelo resto do espaço, dispostas em perfeita sincronia, mantendo
os espaçamentos iguais.
Serena me disse que muitos Protetores que viviam aqui, preferiam
comer em suas próprias cabanas e que eu não deveria me preocupar com
uma grande aglomeração. Acho que ela mentiu. Havia muitos Protetores
adultos, como a mulher que me encarou agora há pouco e outros até mais
velhos. Mas o que realmente tornava o lugar sufocantemente cheio, era a
quantidade de jovens e crianças, provavelmente aqueles em treinamento,
dispersos entre as mesas, com suas roupas de couro e rostos suados. Minha
mãe me contou que eles passavam o dia entre diferentes tipos de
treinamento, tendo pausas apenas para algumas refeições. Vi uma garotinha,
de não mais que oito anos, correr para pegar uma maçã da mesa central. Ela
andava com destreza e rapidez, uma velocidade inumana. Não parecia ter
pai ou mãe por perto. Aqui, eu logo entendi, eles não eram mais crianças,
eram guerreiros em treinamento. Era bem provável que muitos ali fossem
órfãos, como Roman.
Percorri os olhos pela tenda, até que encontrei minha mãe, do outro
lado da mesa central. Seu olhar irritado se justificou facilmente quando
encontrei as outras duas mulheres ao seu lado. Akantha e Ravenna não eram
as pessoas mais agradáveis ou mesmo minimamente amigáveis com minha
mãe. Meu pai também sabia disso, porque logo começou a caminhar em sua
direção, provavelmente na intenção de livrar minha mãe da conversa.
— Hum, eu e Roman vamos encontrar uma mesa vazia — Serena
disse, puxando Roman. Não a julgava por não querer passar mais tempo do
que estritamente necessário, na presença daquelas duas mulheres.
Segui meu pai com os dentes trincados. Odiava aquelas mulheres.
Odiava como conversavam comigo. Como me olhavam. Odiava como
falavam com meus pais. Odiava minha própria avó. E eu nunca tinha
odiado antes. Desde que descobri sobre Protetores, Desertores e Fidlys, esse
sentimento começou a se tornar bastante recorrente e não era algo que eu
gostasse.
E odiava ainda mais saber que Ravenna havia machucado Nathan e
se safado disso.
Minha mãe encontrou meu pai primeiro, andando em sua direção, os
ombros e cabeça erguidos. Meu pai poderia ser apenas humano para estas
pessoas, mas ele tinha a alma de um guerreiro. Era por isso que mamãe se
apaixonou por ele, porque apesar de suas diferenças, suas almas eram
semelhantes. Jasmine olhou Henry como se ele fosse algum tipo de barco
salva-vidas e ela estivesse afundando, e ver aquilo aqueceu meu coração.
— Boa tarde, Ravenna. — Meu pai, então, encarou minha avó. —
Akantha. — Elas acenaram para ele, quase imperceptivelmente. —
Acredito que minha esposa deseja almoçar com a família. Caso não tenham
terminado por hoje, deviam fazer uma pausa.
O sorriso de Akantha foi cruel e eu parei ao lado do meu pai.
— Você não nos dá ordens — ela sibilou.
— Ele não precisa — minha mãe respondeu. — Me deem licença
agora. Mais tarde voltamos a discutir as questões inacabadas.
Ravenna assentiu, apesar de não parecer mais agradável que minha
avó. Seus olhos, então, caíram sobre mim.
— Espero que seus treinos estejam sendo promissores, Fidly.
Contive um suspiro exasperado.
— É claro que está sendo — Akantha disse. — Ela é uma Nephus.
Nossa família não aceita nada menos que excelência.
Minha mãe trincou os dentes, mas não disse nada.
— Espero que esteja certa — Ravenna murmurou. — Porque, se
queremos ter um futuro, ela precisa ser bem-sucedida com seu destino.
Meu pai pegou minha mão e começou a me puxar para longe, minha
mãe agarrada ao seu braço direito.
— Na verdade, Akantha, — eu falei, antes de ir. — Eu sou uma
Monroe.

Felizmente, o restante do almoço foi mais calmo do que eu


imaginava. Eu ainda podia ver algumas pessoas nos encarando e até mesmo
ouvir alguns de seus sussurros, grande parte direcionados ao meu pai.
Aquilo me enfurecia. Era como uma chama que me queimava por dentro.
Na segunda vez que eu fuzilei um Protetor mais velho com meu olhar,
mamãe precisou me pedir para não ligar para o que diziam. Mas eu não
sabia se era capaz, por isso, tentei fazer a próxima melhor coisa: ignorei
todos eles.
A minha carranca deve ter sido boa o bastante para mantê-los longe,
porque ninguém mais apareceu para beijar minha mão (onde a marca
ficava) ou se ajoelhar à minha frente.
Ainda assim, um ou outro ainda tentava me tocar, enquanto passava
por mim. Como se eu fosse algum tipo de objeto da sorte que eles
precisavam ter algum contato. As crianças não me perturbavam muito, mas
quando um homem, tão velho quanto Jasper, passou os dedos pela minha
coluna sem que eu ao menos percebesse sua presença, enquanto eu pegava
mais comida, eu quase esmurrei seus dentes. Roman, que estava comigo,
prometeu ao homem que ele perderia um dedo na próxima vez que fizesse
aquilo. Mas, se acontecesse novamente, Roman seria o menor de seus
problemas.
Minha mãe disse que estava resolvendo algumas coisas com
Ravenna e Akantha, mas passou a maior parte do almoço calada e distante.
Então, como sempre, Serena e eu éramos quem mais falava. Ela tentou me
explicar meus erros no treinamento e como melhorar minha performance,
enquanto meu pai atualizava minha mãe sobre meu péssimo treino do dia.
Quando Jasmine Monroe não comentou nada a respeito, tive a certeza de
que algo estava errado. Mas o tempo passou depressa e logo Serena e
Roman estavam me levando para outra sessão de treinamento. Dessa vez,
meu pai ficou para trás com minha mãe.
— O que vamos fazer agora? — perguntei.
— Vamos correr — Roman respondeu. — E nadar. E então correr
novamente, fazer alguns exercícios aeróbicos e, então, correr mais um
pouco.
Ótimo.
— Só para constar — Serena disse, me dando um sorriso. — A
intenção não é te matar.
Bom saber.
Roman e Serena conseguiram tornar o treino pior do que eu
imaginava. Eles nem ao menos fingiam tentar me acompanhar, usando sua
velocidade supernatural. As corridas eram excruciantes. Na primeira volta,
de uma ponta do Lago até a outra, cerca de dez quilômetros de distância,
pude sentir meu coração batendo na garganta. Depois de duas voltas, não
sabia se queria vomitar ou desmaiar. Então, quando me joguei na água fria
do Lago, eu senti meus músculos tensionados relaxarem um pouco. Mal
tive tempo de acalmar meu coração e Serena já estava ao meu lado,
ordenando que eu afundasse e nadasse. Por um instante, imaginei algum
ataque ou algo do tipo devido à sua urgência, mas eu repeti a mim mesma
que aquele lugar era seguro. Fiz o que Serena me disse e nadamos por cerca
de uma hora sem pausa. Na água, meus músculos que antes estavam
doloridos, mal pareciam fazer grande esforço. Eu finalmente pude me sentir
bem com algo que fazia, porque eu nadava com precisão. Não me lembrava
ao certo quando aprendi a nadar, mas ainda era uma criança, e eu era ótima
nisso.
Um ponto para mim, depois de um dia de merda.
— Você é boa — Serena me disse. — Crescer no Lago teve seu lado
bom.
Dei de ombros.
— No início eu tinha medo. Não exatamente da água, mas do que
podia ter nela. Acho que depois de um tempo superei isso.
— Nathan também é muito bom nadando — minha amiga contou. O
nome do garoto me pegou desprevenida e eu engoli a vontade de falar sobre
ele. — Deve ser por causa do Lago, bem na porta de casa.
— Você também tem — comentei, engolindo uma respiração, antes
de afundar para molhar mais os cabelos.
— Eu não morava aqui antes — Serena contou, quando voltou à
superfície. — Minha família vive em Nova Orleans. Eu vim para cá para
fazer meu treinamento porque minha mãe queria que eu tivesse contato com
a sede mais famosa dos Protetores.
— Como assim “famosa”?
— Só há um Tesouro e este está enterrado no Lago. Por isso, o
Outro Lado sempre recebe mais atenção do que qualquer outra sede.
Nenhuma outra dimensão voltada para os Protetores, recebe tantas visitas
das Guardiãs quanto essa — ela explicou. — Isso ocorre desde muito antes
de Diana ou você. É o Lago. Afinal, antes de Vicenzo se tornar um
Desertor, a maior preocupação das Guardiãs era manter o que quer que
esteja naquela água, seguro.
— Ninguém sabe o que é essa coisa? De verdade mesmo?
Serena deu de ombros.
— Se algum Protetor soubesse, meus pais teriam dado um jeito de
descobrir. Às vezes, achamos que nem mesmo as Guardiãs sabem ao certo o
que é. Não é como se elas fossem questionar o Destino.
Estávamos mais no fundo a alguns metros de distância da margem,
onde Roman esperava pacientemente. Aposto que não iria demorar até que
começasse a gritar novas ordens.
— Como vocês não se irritam com isso? — perguntei. — O Destino
usa vocês para o trabalho sujo dele e, mesmo assim, vocês não têm direito a
nenhuma resposta?
Serena fez uma careta.
— Duvido que ele discutiria os termos do nosso trabalho.
— Talvez as Guardiãs deveriam.
— As Guardiãs são bem diferentes entre si, mas cada uma é especial
de alguma forma. Eu não conheço todas, apenas Cassandra, mas Brian, o
pai de Nathan, chegou até mesmo a conhecer Naomi, a Guardiã da Ásia e
quase ninguém a vê.
— Por que?
Serena bateu os braços, fazendo a água serpentear até mim.
— Quem sabe? Até onde comentam, depois da morte de Diana,
Brian desenvolveu um plano para infiltrar Florença. Acho que não deu
certo, mas provavelmente ainda está em andamento. Por isso ele quase
nunca é visto por aqui.
— Quem cuidava de Nathan quando era mais novo, se Brian nunca
estava por perto?
Ela me observou, uma sobrancelha arqueada.
— Costumava ser a sua mãe, acho. Mas então ela foi embora e
Nathan já devia ter nove anos, então ele se virou bem sozinho. Jasper o
treinava a pedido de Brian, enquanto ele não estava presente, mas quando
Nathan estava prestes a fazer dezesseis anos, ele veio finalizar o
treinamento aqui. Acho que ele deve ter passado mais tempo sozinho do
que acompanhado, no final das contas.
Nathan realmente parecia alguém sozinho. Talvez nem sempre
solitário, porque acho que depois de um tempo, a solidão se transformava
em uma amiga íntima. Pelo menos, eu havia me sentido assim em certos
momentos.
— Você nunca se perguntou como não parecem se lembrar um do
outro? — Serena refletiu. — Você e ele tinham que ter se encontrado
quando crianças.
Dei de ombros mais uma vez.
— Provavelmente não éramos amigos — disse. — Se minha mãe
cuidava dele quando era criança, por que o trata assim agora? Não entendo
porque não me quer perto dele. Provavelmente nunca tivemos uma chance
de realmente nos conhecer, por causa disso — pensei a respeito. — Ok, isso
é meio estranho.
— Você nem lembra dele por perto?
— Lembro que havia um garotinho e um homem, que era seu pai, e
que eles moravam na casa ao lado. Fora isso, não me lembro de nada
específico.
O rosto de Serena se transformou em um grande ponto de
interrogação.
— Isso é estranho para caramba.
Será mesmo? Quantas pessoas não se lembravam de tudo o que
havia acontecido em suas infâncias?
— E ele também não se lembra de nada? — ela perguntou.
— Ei! Vão tirar uma soneca aí? Por que diabos pararam? — Roman
gritou.
— Não que eu saiba — respondi a Serena e então me virei para
Roman e ergui um dedo do meio. — Se quer dar ordens, precisa se molhar,
seu preguiçoso!
Mesmo com a distância, eu pude ver quando ele me lançou um olhar
irritado. Talvez isso fosse parte da minha herança protetora, porque jurava
ser capaz de vê-lo tentar conter um sorriso.
— Qual seria a graça de dar ordens se eu precisasse segui-las? —
ele gritou de volta.
— Este garoto é um pé no saco — murmurei, com um meio sorriso.
Eu gostava dele. Roman foi meu primeiro aliado nisso tudo, o único que me
contou a verdade quando meus pais preferiam me manter no escuro.
— Um pé no saco bastante gostoso.
Soltei uma gargalhada alta, olhando para Serena horrorizada.
— Ele não pode te ouvir?
Minha amiga deu de ombros.
— Não precisa fingir que não percebeu — disse. —Não é um
segredo. Aliás, ele e Nathan são facilmente os mais gostosos que já vi. Ah,
e aquele garoto que estava com Akantha.
Engasguei com uma risada.
Eu me lembrava do homem ao lado de Akantha quando chegamos.
Ele não devia ter mais de vinte e poucos anos e era mesmo lindo.
Ok. Talvez eu realmente não pudesse negar nenhuma dessas
afirmações.
— E você tem algum interesse em Nathan? — soltei. Parte de mim
não queria saber.
Ela soltou uma risada seca, mas seus olhos estavam em Roman.
— Não nele.
Ah.
Eu sabia que havia algo.
— Você gosta de...
— Sch — ela me interrompeu, apontando para a própria orelha.
Roman pode ouvir. Era o que ela queria dizer.
— Ei, não me façam entrar nessa merda de água fria! — Roman
gritou. — Ainda temos coisas a fazer.
— Não é sobre gostar — Serena disse, baixinho. — Apenas tenho
certa preferência.
Hum, ok. Talvez fosse mais que isso e ela só não queria admitir.
Bufei quando Roman gritou de novo. Não sabia se conseguiria
correr nem mais trinta centímetros.
Eu e Serena começamos a nadar de volta para a costa. Apesar de eu
ser uma boa nadadora, Serena tinha sua super velocidade, então ela chegou
primeiro. Era irritante para caramba essa merda de velocidade. Quando
finalmente me ergui da água, a garota loira que vi ontem estava parada me
encarando, ao lado de Serena e Roman.
— Espero que o dom que você receberá após a mudança seja
velocidade — ela disse para mim.
Não sabia se essas pessoas percebiam o quanto suas saudações eram
medíocres. O que aconteceu com o “olá, tudo bem?”, ou “prazer em
conhecer você”. Essas coisas só funcionavam no mundo humano? Eu que
não havia tido muitas oportunidades, sabia como cumprimentar alguém
melhor do que muitos ali.
— Eu culpo Roman, nadar de roupa é uma merda. — Minha calça
legging estava encharcada e pesada, mas era minha camiseta branca com
alguns botões que realmente parecia pesar demais, junto ao bojo do meu
top. Ele disse que em uma situação de perigo, eu provavelmente não teria
tempo de colocar um biquíni antes de ser atacada, o que não me dava muito
espaço para discussão. — Mas ganhar velocidade seria interessante.
Eu vou bater com a cabeça em uma parede, antes de deixar qualquer
um ali sentir como se pudesse me atingir com suas palavras. Especialmente
aqueles que pareciam mais como um bloco de rocha, como esta garota.
Eu queria muito não me sentir ofendida pela forma como me olhava.
— Esta é Lirya, da família Sorenew — Serena apresentou a loira.
De perto, podia ver os olhos esverdeados, o nariz e a boca fina, em
um rosto arredondado. Seus cabelos dourados desciam até seus ombros,
repicados em camadas. Sua postura era ereta, completamente
imperturbável. Ela, assim como Serena, parecia uma modelo, alta e esbelta.
Eu estava grata por não ser tão baixinha, porque ela empinou o nariz
de uma forma que, se eu não tivesse meu um metro e sessenta e seis
centímetros, teria parecido uma criança ao seu lado.
— Prazer em conhecê-la — eu disse, porque não precisava ser tão
mal educada quanto ela. Seria bom ter mais alguns amigos. — Sou Alyssa,
da família Monroe — brinquei.
— Alguns diriam da família Nephus — ela rebateu.
Ok, talvez ela não merecesse tanta educação.
— Alguns também dizem Fidly.
Isso a fez calar. Não sabia como estas pessoas eram criadas, que
histórias eram contadas a respeito de quem eu era, mas aparentemente, elas
deviam me respeitar — ou pelo menos respeitar a ideia do que eu
representava —, então decidi usar aquilo ao meu favor. Minha mãe já tinha
me avisado para usar minha posição quando eu me sentisse atacada. Talvez
eu não estivesse de fato sendo atacada, mas era bem satisfatório fazer Lirya
se calar.
— Sim — Lirya concordou. — A Fidly. — Ela pareceu pensar, os
dedos correndo pelo queixo. — Você morava no Lago, não é? Perto da casa
dos Cross.
Assenti.
— Lirya treinou na mesma turma que eu e Cross — Roman
informou.
Balancei a cabeça, tentando entender onde isso ia dar.
— É tão estranho que você não soubesse de nada, sendo que ele era
seu vizinho — ela comentou.
Por que todos pareciam tão preocupados com eu ter conhecido ou
não Nathan? Ela achava que estava mentindo sobre não ter tido
conhecimento da verdade até então?
— Eu nem me lembro muito dele.
Sua sobrancelha pulou, surpresa.
— Não?
Dei de ombros.
— Eu era muito nova quando deixei o Lago.
Lirya não pareceu convencida. Seus olhos continuaram a me
encarar, como se pudesse encontrar a mentira neles, mas tudo o que eu disse
era verdade. Se eu me lembrasse de Nathan, não mentiria sobre. Não havia
razão para isso.
— Você não tinha que ir à dimensão humana hoje? — Roman
perguntou, interrompendo a análise dela.
— Daqui a pouco — ela respondeu, mas logo voltou sua atenção
para mim. A garota era meio intimidante em seus couros de guerreira, mas
pelo que eu via, os Protetores quase nunca ficavam sem eles. — Então você
nunca viu Nathan?
— Eu o vi recentemente. — Arqueei minha sobrancelha. — Por que
está tão interessada?
Lirya deu de ombros.
— Só estou tentando entender seu relacionamento com ele.
— Não há um relacionamento — Roman retrucou, de prontidão.
Eu precisava concordar. Eu e Nathan mal éramos amigos. Ele só
estava tentando me ajudar. Quem sabe podíamos acabar nos tornando
colegas no final.
Eu estar bastante interessada nele, não se classificava como um
relacionamento.
— Achei que você já tinha superado — Serena disse, um meio
sorriso nos lábios. — Já faz o que? Dois ou três anos?
— Superado o que? — perguntei.
— Digamos apenas que eu conheço Nathan muito bem — a garota
respondeu, um sorriso afiado em seu rosto pálido. — E nós ainda não
acabamos, Serena.
Ah. Ela conhecia ele daquele jeito. Ok. Ótimo. Isso era bom o
suficiente para me fazer parar de fantasiar com Nathan. Perfeito.
Mas por que parecia que eu engolia ácido?
— Deixe ele saber disso então — Roman retrucou, o olhar divertido.
Apesar dele não gostar de Nathan, isso parecia divertir o Protetor e eu
queria saber o porquê.
O sol estava começando a se pôr no horizonte, lançando raios
alaranjados pelo céu e deixando o campo aberto menos quente.
— Vamos terminar logo com esse treino — murmurei.
— Ah, sim. Termine isso. — Lirya disse. — Pelo que eu ouvi, você
ainda precisa melhorar muito para ter uma chance de cumprir a profecia.
Pessoinha desagradável. Por todo o caminho, até que ela estivesse
fora da minha vista, atravessando o Lago para chegar à dimensão humana,
eu a fuzilei. Era uma boa coisa que não tivesse poderes. Eu poderia muito
bem ter usado-os contra ela.
Cheguei em casa com minhas roupas encharcadas. Quando estava
prestes a ficar completamente seca, Serena teve a belíssima ideia de voltar
para nadar no Lago, dessa vez por diversão. Eu jantei com meus pais, logo
após o treino — minha mãe ainda quieta e mais calada que o normal, tão
calada que forçava meu pai a ser o falante da vez. Então, Serena bateu na
porta da cabana, com cinco Protetores atrás, chamando-me para um passeio
que acabou no Lago. Quando vi os Protetores desconhecidos, fiquei tentada
a recusar, mas meu pai me fez lembrar que eu sempre quis ter amigos, e
aquela era a forma de fazê-los.
Fiquei feliz que meu pai tivesse me impulsionado a aceitar o
convite. Conheci cinco novas pessoas incrivelmente gentis. Eles encararam
por um tempo, claro, até que finalmente me aceitaram como alguém normal
e não a promessa de uma história antiga e mal contada. Os garotos pareciam
meio tímidos perto de mim, mas as meninas faziam inúmeras perguntas.
Quantos lugares eu conheci? Como nunca descobri a verdade? Eu era amiga
de Nathan? — estas últimas eram perguntas insistentes, como percebi serem
muitas relacionadas à Nathan Cross. Eles eram extremamente curiosos a
respeito do garoto que morou na casa ao lado da minha e eu não tinha
nenhuma boa resposta sobre isso. E eu me sentia uma idiota sempre que
questionavam o fato de eu nunca ter percebido a verdade antes.
Já eram mais de onze horas da noite quando finalmente entrei em
minha cabana, ainda escura, e caminhei até o banheiro, tirando as roupas
molhadas pelo caminho. Fechei a porta e liguei a água quente, logo me
jogando embaixo do jato. Apesar da noite calorosa, estava ventando
bastante, o que congelou meus ossos após sair do Lago.
Minutos mais tarde, saí do box e enrolei a toalha no corpo. Torci
meu cabelo para tirar o excesso de água e saí do banheiro com o celular em
mãos.
Obrigada por me apresentar a eles hoje. Eu me diverti bastante. —
Enviei a curta mensagem para Serena.
— Sabe, se você vai desfilar por aí, deveria ao menos usar roupas
decentes. — Eu quase taquei meu celular no teto quando uma voz profunda
me atingiu. — Isto é muito distrativo. Já basta o seu strip-tease mais cedo,
mais um pouco e eu teria visto demais.
Enquanto mexia no celular, acabei não percebendo a luz do quarto
acesa, iluminando quase toda a cabana. Olhei para cima e encontrei Nathan
encostado sobre o guarda corpo de vidro que contornava o quarto acima das
escadas, os braços cruzados e a mão sustentando o queixo.
Esta era a segunda noite que Nathan aparecia inesperadamente.
Desta vez eu estava pelada. Bem, eu tinha uma toalha tampando meu corpo,
mas não resolvia muito a nudez ou minha agitação interna.
— Você quase me deu um ataque cardíaco!
Seu sorriso era tão perigoso quanto uma adaga de pedra de fogo.
— Eu poderia dizer o mesmo.
— Você invadiu minha cabana — apontei, como algo óbvio. — De
novo. Eu estar na minha cabana não deveria te assustar.
Seus olhos percorreram meu corpo.
— Eu não estava falando sobre você estar aqui — disse. — Quando
entrou aqui tirando a roupa, eu ia dizer algo, mas você logo entrou no
banheiro, então pensei em esperar. Sou um cavalheiro, sabe?
Ele estava flertando comigo?
Puta merda.
Eu queria que ele flertasse comigo?
Deus, sim.
Mordi o lábio e tentei me concentrar. Nada de bom poderia vir
disso. Não era como se ele realmente tivesse algum interesse em mim. Ele
era um Protetor. Estava aqui para me ajudar. Só isso. Até onde sabíamos, eu
poderia muito bem ser morta amanhã por algum acidente do destino.
Literalmente.
— Por que está aqui dessa vez? — perguntei.
Subi as escadas agarrando forte o topo da minha toalha para que ela
não caísse.
— Fiquei sabendo que seu treino foi — ele fez aspas no ar —
“vergonhosamente estúpido como o inferno”.
Sangue queimou em minhas bochechas.
Ótimo, minha incompetência parecia ter se tornado pública agora.
— Como você sabe?
Nathan deu de ombros, o olhar divertido.
— Eu tenho meus contatos.
Semicerrei os olhos.
— Achei que você não gostasse das pessoas daqui.
— Eu nunca disse isso. Tudo que disse é que não confio na maioria.
Ótimo.
Bufei.
— Se vamos falar da minha incompetência, posso, pelo menos,
vestir algo?
Dessa vez ele pareceu ficar envergonhado, corando levemente.
Ponto para mim!
— Hum, claro. — Ele passou por mim, esbarrando em meu braço,
sem querer. Suas mãos agarraram meus ombros para eu não tropeçar para
trás. Por um segundo, ele parecia estar tocando uma bomba. — Desculpe.
Eu avisei que a toalha tirava o foco.
— Nathan, as pessoas usam toalhas depois do banho.
Ele riu, e pulou sobre o guarda corpo do quarto. Por um segundo, o
pânico me atingiu, porque apesar de não ser muito alto, o quarto ficava a
pelo menos três metros do chão. Um humano teria quebrado uma perna pelo
menos. Mas aí lembrei que ele era praticamente indestrutível.
— Exibido — murmurei.
— Um exibido que ouve muito bem — ele cantou lá de baixo.
Revirei os olhos.
— Só para eu saber — disse —, eu deveria usar algo específico?
— Esta é uma pergunta de muitas respostas — eu o ouvi murmurar.
A voz grossa reverberando pelo meu corpo. — Mas talvez legging e uma
blusa de algodão seja bom. Talvez você precise de outro banho quando
terminarmos.
Isso soou tão sujo que meu sangue ferveu com o simples
pensamento.
Se controle, Alyssa.
A culpa era dos meus hormônios. Com certeza. Não tinha nada a ver
com o fato de ele ser ridiculamente bonito.
— Eu lavei meu cabelo — choraminguei por fim.
— Bem, aparentemente alguém precisa de ajuda para ficar decente
nos treinos, então sinto muito pelo seu cabelo recém-lavado.
Peguei uma legging do armário e a vesti, depois puxei uma camiseta
preta pela cabeça.
— Eu espero muito que, depois dos dezoito, eu me transforme em
um monstro superpoderoso para eu chutar a sua bunda.
Dessa vez ele não tentou reprimir a risada. Era um som tão bom que
me fez sorrir um pouco. Eu sentia que ele não fazia aquilo com frequência.
— Eu adoraria vê-la tentar.
Eu demorei menos de três minutos para ficar pronta. Trancei meu
cabelo que ainda estava úmido e coloquei meu tênis já sujo dos outros
treinos. Estava prestes a descer as escadas quando Nathan estalou a língua.
— Pegue sua adaga.
— Eu ainda não treino com minha adaga.
— Hoje você irá.
Ok. Dei meia volta e peguei minha adaga onde a escondia embaixo
do meu travesseiro. Eu estava ciente que nenhuma ameaça poderia me
atacar aqui, mas era reconfortante ter uma arma próxima, especialmente
depois de um pesadelo.
Eu segui Nathan para fora da cabana em silêncio. Era estranho que
não fosse em nada estranho tê-lo por perto, ao mesmo tempo que parecia
certo. Pela primeira vez, reparei que Nathan usava seus couros de guerreiro.
Eles eram de um tom mais escuro que o de Roman, quase preto. Mas, ao
contrário de Roman, ele usava sua jaqueta desabotoada, parecendo menos
requintado que os demais Protetores.
— Acho que esta é a primeira vez que vejo você usando o uniforme.
— Eu estava em uma missão antes de vir para cá. — Eu arqueei
uma sobrancelha para ele, questionando-o. — Nada com o que se
preocupar. Havia alguns Desertores na área e eu fui averiguar.
— O que eles estavam fazendo?
— Eles estavam perturbando os humanos, enquanto procuravam
uma forma de encontrar você — disse. — Mas eu cuidei disso, não se
preocupe.
Esta era a maneira dele me dizer educadamente que os havia
matado.
— É fácil para você? — perguntei. — Matá-los?
— Tão fácil quanto respirar. Não sinto remorso por eles. Até onde
sei, estou lhes fazendo um favor em acabar com suas existências miseráveis
— sua voz ficou mais profunda, mais obscura. — Eles não são mais o que
eram, Alyssa. São como uma carcaça, infestada por algo podre.
— Mas eles não poderiam ser salvos? Se é Vicenzo quem os
controla, não há nada a ser feito por eles?
— Não é só Vicenzo — disse. — Eles escolheram isso. Seu egoísmo
os levou àquele ponto. — Não sabia o que Nathan viu em meus olhos,
porque ele parou de repente. — Sabe o que estão fazendo? Quer saber o que
fazem quando não estão procurando por você ou matando um de nós? —
Seus olhos azuis perderam o brilho com alguma lembrança amarga. — Eles
caçam humanos para seus rituais. Vicenzo demanda vida humana para fazer
sabe o Destino lá o que. Diversas vezes vimos humanos mortos como se
tivessem sido usados para algo sombrio. Além de todas as vezes que eles
foram os responsáveis por alguma catástrofe. Eles gostam do caos. Gostam
do desespero. Vicenzo apenas os permite fazer o que tanto querem.
— Eles usam humanos em rituais? — perguntei, incredulidade
tomando minha voz. Talvez repulsa também.
Nathan assentiu.
— Não sei o porquê. Talvez seja só porque podem. Não sei. Mas
eles fazem. — Nathan voltou a andar. Nós tomamos uma trilha próxima à
montanha que rodeava o Lago. — Alguns Protetores acham que isso
fortalece Vicenzo de alguma forma, mas não temos certeza.
Balancei a cabeça. Talvez eu não queira saber tanto. Não agora.
— Você não está preocupado que alguém te veja? — perguntei,
mudando de assunto. — Ainda está cedo.
Não era como se ele fosse banido do Outro Lado, mas o próprio
Nathan preferia se manter escondido.
— Poucas pessoas vêm aqui, muito menos a noite. E acho que
ninguém conhece o lugar onde vamos.
Nathan contornou o Lago e ficamos lado a lado com a montanha de
milhares de metros de altura.
— Olha, eu realmente não acho que vou ser uma boa aluna hoje.
— Já me contaram sobre seu desempenho, lembra?
Revirei os olhos.
— Só estou dizendo que passei quase seis horas treinando, estou
toda dolorida e cansada. Além de levemente humilhada — disparei. — Ah,
e aquela coisa de super força, ou velocidade... Não está rolando mais.
— Você não conseguiu usar nenhuma força extra?
Eu neguei.
— Nadinha.
Ele semicerrou os olhos. Na escuridão, as sombras pareciam deixá-
lo bastante perigoso. Como algum animal selvagem. Ou um anjo vingador.
— Nós vamos resolver isso.
— Hum. — Ele voltou a andar, ignorando o início do meu protesto.
— Ei, isso não me deixa menos cansada.
— Supere seu cansaço.
Claro. Por que não pensei nisso? Era bem fácil.
Em um segundo estava observando as ondas calmas do Lago e, no
outro, quando voltei meus olhos para Nathan, ele estava se enfiando em
uma pequena abertura na montanha.
Mas que merda?
— Eu sou meio claustrofóbica — avisei.
Ele me ignorou, se enfiando entre as pedras. Onde diabos isso ia
parar?
— Supere isso também.
Eu pensei seriamente em usar minha adaga em suas costas.
Cheguei à fissura da pedra, que tinha pouco menos de dois metros
de altura e muito menos de largura. Espalmei minhas mãos na pedra fria,
coberta por musgo e plantinhas minúsculas. A escuridão não permitia que
eu visse nada dentro da abertura e eu não entraria ali nem obrigada. Nathan
enfiou a cabeça para fora, e fiquei satisfeita ao ver que, pelo menos, o lugar
parecia poder acomodá-lo, bem mais alto do que eu era.
— Eu não imaginava que você seria uma medrosa, Alyssa.
— Medo de entrar em um lugar completamente escuro, sem saber se
eu vou caber aí dentro sem bater a testa na pedra? Ah, e sem contar nos
possíveis insetos estranhos que podem ter aí. — Lancei-lhe um olhar frio e
cortante. — Desculpe por desapontar.
Ele abriu um sorriso.
— Por que eu a traria em um local que não tem espaço para treinar?
Dei de ombros.
— Talvez queira que eu sofra um pouquinho.
Ele pegou minha mão de repente e me puxou para dentro. Meu
corpo bateu contra o de Nathan com um baque suave, mas eu tinha que
admitir que era melhor do que bater contra a pedra dura. Era vergonhoso o
quanto suas mãos em meu quadril fizeram meu coração acelerar. Não sei
por que, dentre tantas pessoas, era ele quem me fazia sentir assim: como se
meu corpo respondesse a cada pequeno estímulo dele.
— Para sua sorte, não quero te ver sofrendo. Nem mesmo um
pouquinho — zombou. — Relaxe — ele ordenou com a voz suave.
Respirei fundo, ajustando meus olhos à escuridão. Não era um breu
completo, como eu imaginava. Eu conseguia forçar meus olhos para ver
além da escuridão e distinguir as sombras. Nathan estava perto o bastante
para que, mesmo o seu rosto sombreado, parecesse perfeitamente
reconhecível.
Eu o senti respirar fundo. Seu peito roçou no meu. Seu hálito tocou
meu nariz.
— Estou tentando — sussurrei.
Nathan se afastou um pouco, mas manteve as mãos na minha
cintura, e as usou para me puxar para frente.
— Ter medo do que não pode ver é um desperdício de tempo.
— Longe dos olhos, longe do coração, certo? — brinquei.
— Mais ou menos isso.
A mão dele em minha cintura me guiou pelo caminho sinuoso.
Fiquei com medo de esbarrar em algo, mas no fim percebi que o espaço era
bem amplo. Entendi porque ele disse que nunca ninguém vinha até aqui:
pelo que era visto do lado de fora, não parecia haver nada mais do que um
pequeno buraco escuro.
Mas, santo Deus, aquilo era bem mais.
Conseguia ver a silhueta das rochas se afastarem, dando espaço a
uma parede rochosa larga e saliente. Ao lado a água tão azul que chegava a
brilhar, preenchia um círculo amplo com uma grande parede rochosa na
parte de trás.
— Como... Como isso é possível?
Senti Nathan dar de ombros. Voltando meus olhos para ele, fui pega
desprevenida pela intensidade de seu olhar.
Queria muito perguntar a ele se era minimamente perturbado pela
minha presença quanto eu era pela presença dele, mas eu era covarde
demais para isso. Ao mesmo tempo que Nathan me instigava, ele também
me apavorava.
— Não tenho ideia. Acho que a natureza é de fato um mistério —
disse. — Eu era criança quando encontrei este lugar. Nove ou dez anos.
Meu pai tinha me trazido aqui pela primeira vez e eu estava irritado com ele
por alguma coisa e corri para as montanhas tentando me esconder — ele
contou. — Mas aí eu tropecei em uma pedra e caí direto naquela abertura.
Isto nunca teria chamado minha atenção de outra forma.
Parecia tanta coincidência que não podia ser coincidência.
— É quase como se ela tivesse te puxado para dentro.
— Talvez. Suponho que o Destino faria algo assim, não é?
— Eu diria que o Destino faria praticamente qualquer coisa, pelo
pouco que sei sobre — murmurei.
Nathan riu. Sua mão me soltou e ele se afastou para se esticar sobre
uma das rochas mais altas. Ele pareceu encontrar algo que procurava e uma
luz fraca foi ligada. Ao olhar para cima, encontrei o pequeno refletor preso
entre as rochas.
Então ele usava aquele lugar com certa frequência, afinal.
— Vamos lá — ele chamou. Nathan esfregou as mãos juntas, e se
posicionou à minha frente. Então, deu um sinal para que eu avançasse. —
Ataque — ordenou.
Mesmo com a luz adicional, eu ainda estava seriamente preocupada
em tropeçar no chão, que apesar de plano, possuía irregularidades, então
andei até ele com cuidado, mas rapidamente. Quando estava à sua frente,
posicionei meu corpo, os pés levemente afastados, um mais à frente que o
outro, e os braços levemente esticados, com punhos fechando minhas mãos.
Não sabia como eu deveria atacá-lo, então tentei acertar seu pescoço,
pensando na forma mais rápida de controlar alguém em uma luta.
Nathan, no entanto, desviou e me empurrou para o lado como se eu
fosse uma boneca de pano.
Tentei mais uma vez. Direcionei um soco nas costelas dele, e me
abaixei para chutar seus pés do chão. Acertei o soco com destreza, mas ele
conseguiu me alcançar antes que o tirasse do chão. Nathan girou e me
derrubou. Por um segundo, seu corpo cobriu o meu, mas logo ele pulou
para se levantar, puxando-me para cima novamente como se eu não pesasse
nada.
Nathan sorriu como um tigre se preparando para atacar.
Desta vez, quando ele me deu as costas, todo arrogante e confiante
em si mesmo, eu pulei em sua direção, tentando prender seu pescoço em um
aperto. Não funcionou. Ele pegou meu braço e me puxou para frente com
força. Fui jogada por cima de seu ombro, mas ele me pegou antes que eu
batesse contra o chão. Nathan prensou minhas costas contra si e eu inspirei
fundo, tentando fazer meus pulmões trabalharem.
— Eu esperava mais.
— Pensei que tinham te avisado que eu estava uma merda.
— Sim, mas eu sei que você sabe mais que isso. Você foi treinada,
Alyssa. Você não é uma donzela indefesa — disse. — Não me faça tratá-la
como uma.
Eu o empurrei para longe. Raiva transbordava de mim como uma
onda grande demais para ser contida, mesmo por barreiras de pedra. A
represa dentro de mim se partiu como uma porcelana ao tocar o chão.
— Você acha que eu quero ser uma donzela? — rosnei. — Eu estou
tentando. Não é tão fácil quanto parece. Posso muito bem derrubar um
humano se preciso, mas eu não posso lutar com vocês em tom de igualdade.
Eu não quero ser nenhuma donzela, Nathan. Para ser bem sincera, não
queria nada disso!
— Nós já discutimos sobre isso. Você não é tão diferente de mim.
Só precisa aprender a controlar a força que existe em seu sangue.
— Eu já te disse: não está funcionando.
— Então vamos fazer funcionar, porra — ele rosnou de volta.
Eu bati meus punhos em seu peito.
— Por que insiste tanto nisso? Por que só não deixa quieto? Se eu
fosse forte como vocês, eu não precisaria me esconder como uma fugitiva.
Eu não teria que ter medo de não chegar ao meu próximo aniversário. Você
acha que eu não usaria isso se pudesse? É assim que as coisas são, Nathan.
— Eu insisto porque sei que estou certo. Só preciso que você
entenda isso tanto quanto eu.
— Eu sou a presa, Nathan, pelo menos até o que quer que o Destino
tenha planejado para mim depois. E olhe bem para o passado, não é como
se eu fosse ter alguma chance mesmo.
Não demorou muito para eu perceber o quão errado foi o que eu
disse.
— Eu não preciso que você me lembre do passado, Alyssa — sua
voz foi firme, mas nem um pouco tão cruel quanto eu merecia. — Eu
preciso que confie em mim e pare de ser a maldita vítima nisso tudo. Eles
estão te caçando? Tudo bem, então vamos matá-los, um por um, até que
eles não sejam um problema.
— Desculpa, eu não quis...
— Não, escute — interrompeu. Nathan se aproximou o suficiente
para que eu tivesse que erguer meus olhos para encará-lo. — Eu vou insistir
nisso até meu último suspiro, porque eu não vou deixar que aqueles
malditos façam com você o que fizeram com minha mãe e com outras antes
dela. Estou insistindo porque não posso aceitar outra opção. Se eu precisar
matar um por um para te manter segura, eu irei. Isso, porém, não quer dizer
que você não possa ser sua própria defesa, caso um de nós falhe.
Engoli em seco. Envergonhada demais, encarar Nathan era como
encarar um espelho não muito gentil.
— Desculpe.
— Não se desculpe — ele rebateu. — Lute. Não deixe que a
derrubem antes mesmo da luta começar. Você age como se isso já fosse um
caso perdido e sua cova estivesse feita. Não está, Alyssa. Não mesmo.
Ele estava certo. Tenho agido como se meus últimos dias se
aproximassem. Deixei meus pais de lado porque não podia encará-los com
a guilhotina sobre meu pescoço. Permiti que Serena me ajudasse a caminhar
porque eu não sabia se conseguiria sozinha. Permiti que Roman me
defendesse porque eu não podia encontrar motivo para isso. Deixei Nathan
se aproximar porque queria aquele aquecimento em meu peito, antes do
fim. Porque pior do que morrer sozinho, era não ter uma boa razão para
morrer. E era só disso que eu precisava. De uma boa razão para aceitar o
fim, caso este me reivindicasse.
— Eu preciso que você acredite que pode vencer isso.
Seus olhos azuis me fitaram com intensidade. Minha garganta
secou. O que há de diferente nesse garoto? O que é que minha mente se
recusava a lembrar?
— Tudo bem — sussurrei.
— Então ataque. Use sua adaga desta vez.
Eu peguei a adaga presa na minha calça, em um aperto firme de
determinação.
Eu me tornaria a ameaça.
— E lembre-se da força em seu sangue — disse.
— Estou tentando.
Nathan pareceu uma estátua, as mãos paradas ao lado do corpo
ereto. Ele não se movimentou. Não avançou ou se posicionou em defesa.
Apenas ficou ali, pacientemente, esperando enquanto eu respirava fundo e
pensava no melhor ataque. Um ataque que não fosse completamente óbvio.
Um. Eu não era fraca.
Dois. Eu não seria uma vítima.
Três. Eu me tornaria a ameaça.
Corri em sua direção, tentando imaginar como seria se eu pudesse
me mover como ele. Eu fingi estar prestes a me jogar sobre ele, com a
adaga firme nas mãos. Mas então, no último segundo, me joguei no chão e
rolei meu corpo para o lado, dessa vez conseguindo chutar seus pés. Ele
caiu, com uma careta de espanto. Não lhe dei tempo de pensar no que fazer,
dobrei minhas pernas sobre seu tronco e o forcei a ficar no chão. Lembrei
que ele era forte, mas eu também podia ser. Impulsionei meu corpo para
cima e parei com cada perna de um lado de suas costelas. A ponta da adaga
em minhas mãos pressionou o couro sobre o peito de Nathan.
Um olhar de admiração se sobrepôs à confusão de Nathan.
— Eu poderia me sentir envergonhado, mas estou orgulhoso demais
para isso.
Eu abri um largo sorriso.
— Fui bem?
Nathan assentiu, ainda parecendo admirado.
— Você correu mais rápido que o normal, mas não tão rápido
quanto um Protetor ou um Desertor. Mas bom o bastante — analisou. — E
quando chutou meus pés, foi com força o suficiente para me desestabilizar.
Além disso, você é inteligente. Isso é o que mais te ajudará em uma luta de
verdade.
— Isso diminui bastante minha humilhação de hoje — disse,
sorrindo satisfeita comigo mesma.
Ele sorriu também. Embaixo de mim, o senti respirar fundo e
expirar lentamente. Suas mãos subiram pela minha perna até minha coxa e
eu fiquei paralisada com seu toque. Eu queimava em todo lugar que ele
tocava, mesmo com a cobertura das roupas, mesmo sendo um toque
singelo.
Seus olhos azuis estavam fixos nos meus.
— Seus olhos parecem a noite — sua voz era um sussurro que
reverberou pelo seu peito até meu corpo. — Como a escuridão completa.
Eu o encarei.
— Os seus são como o Lago — sussurrei de volta.
Guardei a adaga na parte de trás da minha calça. Eu apoiei minhas
mãos em seu peito para me ajudar a levantar, mas Nathan apertou minha
coxa como se quisesse me parar.
— Eu acho que me lembro de você — disse, baixo. — Lembro de
olhar para você, pela janela do meu quarto quando era criança.
Aquilo pareceu tomar minha alma, como se suas palavras fossem
um grande manto sobre mim. Faria mais sentido se nós tivéssemos sido
amigos quando crianças, explicaria porque eu estava tão obcecada por ele.
— Nós éramos amigos? — perguntei.
— Acho que sim.
Como eu poderia não me lembrar? Nathan era como uma
tempestade, como eu teria me esquecido dele?
— Lembra-se de mais alguma coisa? — perguntei, na esperança de
que ele pudesse preencher as lacunas vazias em minha mente.
— Lembro que gostava de você. Gostava de brincar com você —
disse, seus dedos ainda presos em minha coxa agora fazendo leves carinhos
que ele nem parecia perceber. A posição pareceu incrivelmente íntima, mas
eu não estava em nada incomodada. — E acho que você quebrou meu dedo
uma vez.
— Eu não faria isso!
Ele riu, fazendo meu corpo tremer em cima do dele.
— Tenho quase certeza que quebrou sim — disse. — Mas eu te
perdoei.
Tentei me lembrar do garotinho que Nathan foi um dia. Fleches dele
brincando no Lago e correndo pelo gramado surgiu pela minha mente
embaçada pelo tempo. Acho que quebrei seu dedo quando tentava subir em
uma árvore e caí sobre ele quando escorreguei de um dos galhos. Pelo
menos eu esperava que fosse minha memória, e não minha cabeça tentando
inventar cenários possíveis.
— A culpa foi provavelmente sua mesmo — eu retruquei,
lembrando-me vagamente dele insistir para que eu tentasse subir a maldita
árvore cheia de musgo.
— Provavelmente — ele concordou, com um sorriso nos lábios.
De alguma forma, suas mãos foram parar em meu quadril. Com um
movimento rápido e hábil, Nathan nos fez trocar de lugar. Agora, minhas
costas estavam coladas ao chão rochoso, enquanto ele estava por cima de
mim. Um braço em minha cintura e outro ao lado do meu rosto, prendendo-
me ao chão. Um de seus joelhos estava entre minhas pernas e a outra perna
prendia minha coxa pelo lado de fora.
— Nunca baixe sua guarda — ele ordenou, mas pareceu muito com
um pedido.
Essa posição, com ele no controle de como nossos corpos se
tocavam, deixou-me sem fôlego. Demorou um tempo para que eu
encontrasse minha voz.
— Pensei que eu poderia confiar em você — as palavras rasparam
para fora da minha garganta.
— Você pode.
Seu rosto estava tão próximo do meu que, por um segundo, tinha
certeza de que iria me beijar. Queria que me beijasse, mas continuei parada
como uma maldita estátua.
— Mas isso é um treino e, tecnicamente, sou seu inimigo —
completou. — Vamos garantir que Vicenzo mije nas calças ao nos ver
juntos.
Era para ser uma brincadeira. Parte de uma promessa velada de que
ele estaria ao meu lado quando o dia viesse e eu tivesse que lutar contra o
homem que queria me matar. Era uma brincadeira na intenção de selar um
pacto de vida. Um segundo depois, Nathan estava se levantando e me
puxando para cima para ficar em pé.
— Vamos mais uma vez — ele exigiu.
Não o questionei, apenas desembainhei minha adaga e me joguei
contra ele. Dessa vez, ele pegou meu golpe ainda no ar, batendo a própria
adaga — que eu nem tinha percebido a existência antes — contra a minha.
A cada investida, eu era pressionada a recuar.
— Lembre-se de quem é, Alyssa! — Nathan gritou para mim. —
Você não é a presa. Não será a vítima.
Eu me lembrei. Eu era Alyssa Monroe. Era humana. Era uma
Protetora. Era a Fidly. Era a filha de uma guerreira e do humano mais
corajoso que já existiu. Era uma profecia inacabada. Era sangue e alma. E
não era a presa, nem seria a vítima.
Dessa vez, quando bati minha adaga contra a dele, a montanha
ecoou o golpe. A adaga de fogo chorou com o golpe. Meu braço se
tencionou com a força imposta sobre o movimento, mas continuei. Uma.
Duas. Três vezes. Desviei das tentativas de Nathan com destreza, uma
velocidade que não podia ser considerada humana. Eu era pura energia
contida, finalmente se libertando. O sorriso largo de Nathan, enquanto
recebia golpe após golpe, parecia apenas me impulsionar ainda mais.
Uma e outra vez nós nos movimentamos pelo solo rochoso. Eu não
parei e nem ele, pelo que pareceram horas. Dias. Semanas.
Finalmente, Nathan pulou para trás e ergueu os braços. Minha adaga
erguida no ar apontava para sua garganta. O sorriso insistente dele deixava a
marca de uma covinha em sua bochecha esquerda.
— Acho que isso foi bom o bastante por hoje — disse.
Abaixei a adaga e lutei para manter a respiração constante.
— Tudo bem.
Orgulho dançava em seus olhos.
— Eu sabia que você não era uma donzela.

— Qual foi o melhor lugar em que morou?


Desde que saímos da caverna, Nathan me encheu de perguntas
pessoais, sobre como era minha vida antes de saber a verdade, os lugares
em que vivi, as pessoas que conheci. Esta última era bem fácil de responder,
visto que devo ter conhecido umas sete pessoas diferentes durante minha
vida. Uma vida muito agitada, claramente.
— Eu nunca pude realmente ver os lugares em que morei. Pelo
menos não a parte muito cheia de gente, o que significa nada de pontos
turísticos — disse, dando de ombros. — Mas gostei muito de Nova
Orleans.
— Foi lá que conheceu Serena, certo?
Concordei com um meneio leve de cabeça.
Já devia ser quase duas ou três da manhã, mas o cansaço que sentia
antes de Nathan aparecer havia sumido.
— Mas acho que, no fundo, sempre senti muita saudade de casa —
falei. — Do Lago, quero dizer.
— Por que?
— Não sei. — Ele arqueou a sobrancelha e uma risada escapou de
mim. — Honestamente, não sei. Fui embora tão nova que nem me lembrava
muito deste lugar, mas quando voltei foi como se nunca tivesse partido de
verdade.
— Acho que entendo — disse ele, com um olhar distante.
Nathan fez muitas perguntas, mas nunca contou nada de verdade
sobre ele. Pretendia mudar isso o mais rápido possível. Se eu confiava nele,
por que ele não poderia confiar em mim?
— Se sente falta de casa, por que simplesmente não fica na casa do
Lago?
Ele não me olhou ao responder:
— É complicado.
— Acho que sou capaz de entender se me disser.
Ele balançou a cabeça.
— Não, não seria. Porque nem mesmo eu entendo direito.
Eu sentia por ele. Não pelo guerreiro, o Protetor ou mesmo o
homem. Meu coração doía pelo menino. O garotinho assustado que ele
tanto tentava domar, o que perdeu a mãe. O que provavelmente foi abusado
fisicamente por quem deveria protegê-lo. Meu coração doeu porque, apesar
do quanto ele tentava esconder, uma coisa estava bem clara: Nathan estava
perdido, sozinho de um modo que eu nunca realmente estive, e não tinha
ideia de como mudar isso.
— Às vezes fica mais fácil quando há duas pessoas pensando a
respeito.
Fiquei com medo de que insistir nisso fosse a gota d’água para ele,
mas apesar da tensão em seus ombros, Nathan não pareceu prestes a correr
para a floresta para ficar o mais longe possível de mim.
— Aquela casa era tudo o que minha mãe queria — disse, a voz tão
baixa que precisei me esforçar para ouvi-lo. — Meu pai não fala muito
sobre ela, mas Jasmine falava bastante quando eu era mais novo.
Não era uma surpresa que ele se lembrasse da minha mãe, hoje
mesmo Serena havia me contado que ela tinha ajudado a treiná-lo quando
era um menino. Só não conseguia entender porque minha mãe parecia ter
tanto medo da presença de Nathan, hoje em dia. Será que as pessoas não
viam a verdade? Será que eram tão cegos para o que ele realmente era?
Nathan não era uma ameaça.
Àquele ponto, havíamos chegado à minha cabana. Abri a porta e,
quando Nathan ficou parado do lado de fora, como se não fosse entrar,
peguei sua mão e o puxei para dentro.
— Eu quero ouvir. Me deixe ouvir.
Seus dedos apertaram minha mão e ele aceitou que eu o guiasse até
a cozinha. Eu me encostei contra o balcão e ele se sentou em uma das
cadeiras da mesa. Pela primeira vez, desde que o conheci, Nathan não
parecia algum tipo de animal selvagem enclausurado prestes a se libertar.
Ele parecia tão humano quanto qualquer outro.
— É estranho estar lá quando nem mesmo meu pai parece suportar
aquelas paredes. Acho que a única razão pela qual ficou lá, por boa parte da
minha infância, era porque minha mãe não queria que eu fosse criado pelos
Protetores, então ele só me trouxe aqui para ser treinado depois que eu fiz
15 anos. Até então, eu apenas visitava o Outro Lado — contou. — Daí para
frente, Brian passou a sair ainda mais em missões pelo mundo, sendo a mão
direita de Ravenna em tudo o que podia. Eu sei que ele estava fugindo das
memórias, mas eu era seu filho. Eu devia ser sua prioridade.
— E Ravenna te machucava, enquanto ele estava fora.
Nathan não me olhou.
— Você realmente não vai deixar isso de lado, não é? — Balancei a
cabeça em negativa firmemente. Ele estalou a língua em resposta. — Ela
achou que eu era a cobaia perfeita, só isso.
— Cobaia perfeita para o que? — minha voz era um rosnado.
— Para tentar construir um Protetor, muito mais letal, e resistente do
que qualquer outro. A coisa do sangue da Fidly e tal.
— Todo mundo fala que você é um dos melhores guerreiros.
E falavam mesmo. Serena, outros Protetores, Jasper e até mesmo
Roman já falaram algo como isso. Todos pareciam saber o quanto Nathan
podia ser mortal. O problema é que também o viam como uma bomba
prestes a explodir.
— Isso é porque eu me empenhei para ser o melhor — disse. —
Para que quando eu encontrasse um Desertor, eu o matasse sem pensar duas
vezes. Sem nem mesmo suar. E quando eu encontrar Vicenzo e pôr minhas
mãos nele, o filho da puta vai se arrepender do dia que tirou a vida da
minha mãe.
Respirei fundo.
— Tenho certeza de que vai. E vou ajudá-lo o quanto puder.
Prometo.
Seus olhos azuis encontraram os meus com intensidade.
— Eu sei que vai.
Meus dedos coçaram minha marca.
— Eu não acho que você deva fugir das memórias como seu pai faz
— opinei, mesmo que talvez não devesse. — Eu não sei como é para você,
Nathan. Não sei mesmo. Mas se você ama algo ou alguém tão
profundamente assim, não pode permitir que as lembranças ruins se
sobreponham às boas. Não pode se deixar esquecer.
— O problema é que não tenho lembranças boas. Vicenzo me tirou
isso. Ele acabou com as minhas chances de ter uma mãe, e ainda destruiu
qualquer potencial em Brian para que ele fosse um bom pai — a amargura
tomou sua voz. — É por isso que não suporto aquela casa mais. Porque hoje
eu sei o quanto eu podia ter tido e o quanto foi tirado de mim no processo.
Aquela casa é apenas uma carcaça do que deveria ter sido e isso dói.
Meus olhos arderam com lágrimas não derramadas, mas eu as
segurei. Eu estava tão feliz que Nathan estava se abrindo comigo, de
alguma forma me sentia especial por isso, e não queria arruinar tudo
deixando minhas emoções tomarem o controle. Mas tudo o que ele dizia
machucava. Era como se eu pudesse sentir todo seu luto, toda sua dor.
— Eu sinto muito, Nate.
Não sei porque o chamei assim, bem agora, mas saiu tão rápido e
tão sem pensar que não tive tempo de consertar. “Nate” parecia íntimo
demais, como quando ele me chamou de “Aly”.
Nathan se levantou e veio até mim. Ombros largos, naquela jaqueta
de couro quase preta tampando toda minha visão. Ele voltou a colocar a
máscara de guerreiro selvagem e em um piscar de olhos, deixou de ser o
garotinho desolado de segundos atrás.
Seus dedos tocaram minha bochecha e capturaram uma lágrima, que
eu não sabia que tinha deixado cair. Seus olhos azuis pareciam ondas
prestes a me afogar e eu deixaria. Deixaria que a água me levasse se ele
continuasse me olhando assim. Porque isso era perigoso. Isso, bem aqui, era
perigoso demais. Perigoso porque meu coração acabou de entrar em um
jogo que eu nunca joguei antes e eu não sabia se o coração dele iria
acompanhar o meu.
E estava sendo tão malditamente rápido, como se eu já tivesse
percorrido meio caminho, antes mesmo de vê-lo naquela noite chuvosa.
— Não chore por mim — ele sussurrou.
Eu poderia facilmente inclinar meu corpo para cima e beijar sua
boca. Seus lábios estavam bem ali, parados e lindos como ele todo era. Mas
eu nem sei se saberia fazer direito, então fiquei parada em meu lugar,
medrosa e covarde. E, por mais que eu quisesse beijá-lo, uma certeza em
meu coração era ainda maior: eu queria que Nathan fosse meu amigo. Eu
queria ser sua amiga. Queria que ele parasse de se sentir tão sozinho ao
mesmo tempo que ele acalmava a própria solidão dentro de mim.
— É permitido que amigos sofram um pelos outros.
Ele sorriu levemente.
— Você é minha amiga, Alyssa?
Assenti com firmeza.
— Você é meu amigo, Nathan? — perguntei a ele.
Ele lambeu os lábios e afastou meu cabelo do rosto, antes de se
afastar apenas o suficiente para eu não sentir sua respiração em meu nariz.
— Estou tentando — Nathan concordou. — Se você quiser que eu
seja, temos um acordo.
Eu sorri para ele.
— Sim, nós temos.

Por uma semana, Nathan não deixou de aparecer nem por uma única
noite. Nós treinávamos e conversávamos sobre todo tipo de coisa. O nosso
acordo parecia estar sendo cuidadosamente cumprido e eu adorava aquilo.
Ele chegava antes que eu fosse dormir e ia embora poucas horas antes do
sol nascer.
Descobri muito sobre ele nesses últimos dias. Sobre como se irritava
com o que eu contava a respeito de Ravenna ou Akantha, sempre tomando
minhas dores. Descobri que era completamente contra doces e avisei que
isso, provavelmente, influenciava em seu humor. Tinha certeza que um
chocolatinho o faria muito bem.
Descobri também que era cuidadoso. Sempre se preocupando com o
meu desenvolvimento e me dando dicas preciosas. Nós falávamos sobre
tudo e ele me ajudou a entender um pouco mais os Protetores. Quando
jovens, eles aprendiam sobre a hierarquia e organização dos guerreiros, que
apesar de bastante simples, era sempre muito respeitada.
Haviam três níveis: líderes das sedes, guerreiros e treinadores. Os
líderes normalmente vinham de famílias ricas e influentes dentro do círculo
dos Protetores, o que era ridículo, mas não surpreendente. Eu já havia
percebido que eles se organizavam de uma maneira quase arcaica e
nepotista. Eles eram responsáveis por organizar a sede e fazer o contato
externo dela com outras sedes. Já os guerreiros eram aqueles encarregados
de missões, enquanto os treinadores eram os Protetores que viviam nas
sedes, responsáveis por treinar os mais jovens.
Além disso, aprendi que gostava de estar com Nathan. Era fácil e
leve, como se fosse tão natural quanto acordar em uma manhã e levantar da
cama. Eu estava feliz que tivesse insistido naquela amizade.
A manhã seguinte foi quase uma guerra contra minha cama. Eu não
queria levantar. Não queria treinar, mas sabia que precisava. Precisei usar
toda minha força de vontade para me empurrar até a área de treino, onde
Jasper e Serena já me esperavam.
Agora, eu encarava o tatame suspenso no ar e me perguntava porque
diabos não tinha inventado uma cólica para me safar do treino.
Essa merda não poderia ficar no chão?
— Vamos. Suba.
Encarei Jasper abismada. Não havia escadas e aparentemente essa
coisa não descia.
— Como você espera que eu faça isso?
Jasper me encarou sem qualquer emoção.
— Escale, Fidly.
Trinquei os dentes.
Jasper me chamava de Fidly sempre que estava impaciente ou
queria estabelecer alguma distância entre nós. Era irritante para caramba.
Olhei para o tatame a mais de cinco metros do chão. As hastes que o
erguiam eram lisas com pequenos vincos em suas planícies. Eu nunca
escalei nada. Nunca. Tinha certeza de que iria cair se tentasse.
— Você só precisa colocar os pés nos lugares certos. — Serena
disse, em uma tentativa inútil de me ajudar.
Ah, é só isso mesmo?
— Se a Fidly precisa de ajuda, Jasper, seria um prazer demonstrar
como se faz.
A voz veio do meu lado direito, um pouco mais longe de onde
Jasper estava parado. A loira, Lirya, estava deslumbrante em seus couros,
mas seu olhar era ácido quando me encarou. Eu sabia que ela não gostava
de mim e aquilo me irritava profundamente, porque eu não havia feito nada
a ela. Era cansativo demais aquela animosidade, principalmente porque não
estava baseado em nada concreto.
— Vá em frente, por favor — eu disse, sincera. Se ela fazia questão
de se exibir, enquanto podia, de fato, dar alguma dica de como fazer aquilo,
eu é que não iria impedi-la.
Seu sorriso não poderia ser mais falso.
— Observe, Fidly.
Controlei minha vontade de revirar os olhos.
Engoli meu orgulho e observei Lirya agarrar a haste como em um
abraço, subir o pé direito até uma das pequenas fissuras e impulsionar o
corpo para cima. Com esse mísero impulso, ela foi muito mais para cima do
que o esperado, e percebi que, a força de um Protetor, ia muito além de sua
capacidade de esmagar coisas e dominar alguém em uma luta. Se
combinado à velocidade e aos sentidos mais aguçados, podia dar-lhes todo
tipo de privilégio. Ela repetiu o movimento, uma, duas, três, quatro vezes,
até estar no topo. Lirya tinha cuidado ao agarrar a haste firmemente com os
braços, para o caso de seus pés falharem. No topo, ela girou as pernas para
o lado e balançou para frente e para trás, então, dobrou os joelhos e soltou
os braços, impulsionando-se para cima. Lirya parou em pé no tatame, com
um sorriso envaidecido no rosto.
Jasper balançou a cabeça, feliz com o desempenho da Protetora.
Então, ele me olhou e indicou a haste com um aceno de cabeça.
Se eu quebrar todos os ossos do meu corpo, eles me deixariam em
paz?
— Você consegue, Aly — Serena me disse, em apoio.
Lembre-se de quem você é.
A voz em minha cabeça não era a minha, mas tão pouco era
desconhecida. Era quase como se ele estivesse bem aqui, ao meu lado,
lembrando-me que no meu sangue havia poder. Sua voz era amigável e
calma — algo que nunca pensei que Nathan seria. Era um sussurro, como
uma brisa de verão em minha nuca. Virei-me em busca da voz. Procurei
Nathan por cada canto daquele ginásio, por trás das grandes pilastras e em
cada rosto, mas em todo o lugar que eu olhava, tudo o que enxergava era a
sua ausência.
Respirei fundo. Sequei as mãos, suadas pelo nervosismo, na minha
calça legging e fui em frente, em direção à haste que me levaria ao tatame.
Isso, claro, se eu conseguisse escalá-la.
Tentei imitar os movimentos de Lirya. Meu corpo parecia pesado
demais para isso, como se a gravidade não pudesse me deixar ir. Mas eu me
esforcei. Eu fiz meu sangue borbulhar, ferver aquele poder que Nathan me
mostrou que eu possuía. Eu empurrei e empurrei até que eu estivesse
arfando, agarrando a haste em um abraço apertado e esmagando meus
dedos nos pequenos espaços onde era capaz de colocar meus pés. Quando
meus braços protestaram, eu apenas insisti mais, até que a dor do esforço
fosse apenas um sussurro e não mais um grito.
Não olhe para baixo.
Dessa vez a voz me impediu de mover meus olhos para o chão,
como eu pretendia fazer há um milésimo de segundo. Trinquei os dentes e
obedeci a voz. Se eu visse o quão alto eu já estava, iria poder fazer uma
contagem rápida de mais ou menos quantos ossos quebraria em uma queda
e toda minha determinação de subir aquela coisa iria por água abaixo.
— Só mais um pouco! — ouvi Serena gritar lá de baixo.
Certo. Só mais um pouco.
Subi mais e mais até que minha mão conseguiu alcançar a base do
tatame. Finquei meus dedos sobre o material estofado, enrolando minhas
pernas o mais alto possível, na haste ao mesmo tempo. Posicionei minhas
duas palmas na estrutura e flexionei meus braços. Desenrolei minhas pernas
e empurrei meu pé contra a haste, para que isso me permitisse balançar para
trás e ganhar impulso para pular no tatame. Foi preciso duas tentativas até
que eu conseguisse me jogar, totalmente desajeitada, sobre a armação de
treino.
— Bem, você demorou quase quinze minutos, mas poderia ter sido
pior — Lirya disse. Eu estava certa de que aquilo não havia sido bem um
elogio.
Fiquei em pé e saquei a adaga que eu guardava no cós da minha
calça. Jasper disse que hoje o treinamento seria feito com armas e que eu
deveria trazer a minha. A lâmina de pedra não era muito grande, apesar de
não ser exatamente pequena, e o cabo prateado era largo o suficiente para
que minha mão o contornasse com firmeza. Eu estava feliz que Nathan
tivesse me feito treinar com ela ontem novamente. Tinha diminuído um
pouco minha ansiedade.
— Bela adaga, Fidly. — Os olhos de Lirya comeram minha arma.
— Obrigada — murmurei.
Voltei meu olhar para baixo. Vertigem tomou posse de mim, mas fui
capaz de engolir a bile e observar Serena e Jasper. Minha amiga estava
prestes a subir no tatame, mas Jasper a impediu. Ela o olhou, confusa. Eu
estava tão confusa quanto. Serena não deveria treinar comigo?
— Deixe Lirya treiná-la desta vez — ouvi Jasper dizer.
Eu estava longe o bastante para que sua voz se tornasse quase
imperceptível. Fiquei feliz em saber que Nathan estava certo. Só precisava
aprender a controlar esses poderes para que não ficassem dormentes.
— Eu posso treiná-la, Jasper — Serena retrucou, parecendo
ofendida.
— Eu sei que pode — disse. Então, ele completou, um pouco mais
baixo: — Quero ver como ela se sai com alguém que não conhece e não
confia.
Serena bufou, mas voltou ao seu lugar, ao lado de Jasper. Com os
braços cruzados sob o peito, seus olhos encontraram os meus. Faça o seu
melhor — era o que ela queria dizer.
— Acho que somos só nós duas, Fidly.
A voz de Lirya era um canto suave, mas não me enganava. Ela
queria isso quando decidiu subir até aqui.
— Meu nome é Alyssa, Lirya.
Ela deu de ombros.
— Confie em mim, eu sei.
— O que isso quer dizer?
Ela deu de ombros, posicionando-se em combate. — As mãos para
frente, os pés afastados.
— Quer dizer que eu sei quem você é — disse. — Agora vamos.
Ataque.
Eu corri para ela e, apenas quando ela estava prestes a rebater um
possível golpe, joguei meu corpo para o lado e a contornei como um pião.
Dobrei minha perna direita e chutei os pés de Lirya do chão. Ela grunhiu,
mas conseguiu se esquivar, movimentando-se tão rápido, que acabou
virando um borrão em minha visão. Mal tive tempo de me virar para
encontrá-la, antes que Lirya sacasse a própria adaga e a descesse em minha
direção. Quando treinei com Nathan, apesar de eu usar minha adaga, ele
nunca usava a dele. Agora, precisei de todo meu autocontrole para não
correr como realmente era capaz. Nathan havia me alertado sobre eu expor
minhas habilidades, e como isso poderia chamar uma atenção indesejada.
Parte de mim acreditava que seria melhor mesmo manter aquele
conhecimento entre nós, porque assim como ele, eu não tinha motivos para
confiar em certos Protetores. Mas isso não queria dizer que permitiria que
Lirya me cortasse como um açougueiro.
Eu bloqueei sua arma com a minha, a poucos centímetros do meu
ombro. O golpe não me mataria, obviamente, mas machucaria. Bastante. Eu
segurei sua força com a minha própria, até que ela desistiu do golpe e pulou
para trás, pensando em seu próximo passo. Sua careta era a prova de que ela
não estava feliz com o meu desenvolvimento. Pelo menos não quando ele
era posto à prova contra ela. Isso apenas me deixava mais orgulhosa de mim
mesma.
— Eu não sei o que ele viu em você — ela disparou.
— Ele quem?
Ela me fuzilou de volta.
— Você sabe quem.
Não tive tempo de responder porque ela já estava atacando
novamente, dessa vez com o punho. Desviei a tempo para que o soco não
atingisse meu nariz e o quebrasse, mas o impacto contra minha mandíbula
foi inevitável. Eu rosnei com tanta força que parecia um animal. Lirya
recuou, deixando que eu me recuperasse do golpe e isso apenas serviu para
me irritar ainda mais.
Nathan teria que superar seu medo quanto as pessoas descobrindo
sobre o que eu podia fazer porque eu estava malditamente cansada de
apanhar! Se Ravenna tocasse em um único fio de cabelo meu por isso, eu
mesma a ensinaria como deveria se comportar. Aproveitaria para vingar a
criança que um dia Nathan foi.
Minha adaga queimou em minha mão, como se pedisse para ser
usada. Talvez até mesmo implorasse por isso. Deixei que ela me
coordenasse. Deixei meu braço se erguer, quase que por vida própria e
deferir golpe após golpe em Lirya. Eu fui treinada a vida toda. Minha mãe
nunca foi cruel em suas lições — pelo menos raramente era, mas isso não
queria dizer que eu não havia aprendido nada com suas ordens.
Eu flagrei a surpresa nos olhos de Lirya quando fechei a distância
entre nós em um milésimo de segundo. Vi a dúvida e... o terror. Como se eu
fosse algum animal selvagem. E quando ela tratou de esconder seu medo, já
era tarde demais, ele já havia me dado a coragem necessária para cortar o
seu casaco de couro pela metade.
Dessa vez foi ela quem rosnou em resposta.
— Não use meias palavras para falar comigo, Lirya. Se quiser dizer
algo, apenas diga.
Lirya terminou de rasgar a base de seu casaco e jogou o pano para
fora do tatame, que voou até atingir o chão.
— Estou falando de Nathan — ela grunhiu.
A surpresa foi capaz de me perturbar apenas por meio segundo. Ela
não podia saber que ele me via à noite, sempre fomos cuidadosos para que
ele não fosse visto. Bem, ele era cuidadoso, boa parte do tempo eu estava
distraída demais por seu estúpido rosto para prestar atenção em algo além.
Mas ele foi cuidadoso, não foi?
E mesmo que não tivesse sido, não via como aquilo seria um
problema dela.
— Você tem que ser mais específica do que isso.
Seu sorriso poderia muito bem ser um palavrão direcionado a mim.
— Não finja para mim — ela disse. — Ele parece um maldito
cachorrinho toda vez que você está na jogada.
Do que diabos ela estava falando? Eu nunca nem mesmo estive com
Nathan no mesmo espaço que Lirya.
— Chega de conversas! — Jasper gritou para nós. — Isso é um
treinamento, não um lanchinho da tarde.
Lirya atacou tão rapidamente, que dessa vez não tive nem tempo de
processar sua decisão. Ela me lançou pelo tatame até que eu estivesse certa
de que iria ser lançada para o chão. Agarrei-me à borda com toda a minha
força, para que eu não caísse. Ouvi Serena protestar lá embaixo, mas eu
estava concentrada demais em me içar para cima para prestar atenção em
suas palavras. Um segundo depois, quando finalmente consegui colocar
minhas pernas de volta na base do tatame, Lirya estava com os braços
prendendo minha garganta. Precisei forçar meus dedos em sua pele para que
ela não me sufocasse.
Ela me virou para que minhas costas ficassem contra seu peito. Todo
meu corpo estava sob seu controle dessa forma.
— Apenas se lembre, Alyssa — ela sussurrou no meu ouvido. Ao
longe, pensei ter visto uma cabeça de cabelos negros —, enquanto você
brincava de esconde-esconde, era a minha cama que ele aquecia.
Ela estava falando sério?
Um pouco de orgulho faria bem a ela.
Eu não iria ficar aqui, parada, deixando ela dizer o que bem
desejasse. Eu não era uma donzela e estava cansada dessa hostilidade idiota.
Eu era uma guerreira. Ao invés de puxar seu braço, finquei minhas mãos
neles. Dobrei meu corpo e a levei comigo, jogando-a no chão. O tatame
tremeu com o impacto. Rápida como um raio, puxei minha adaga e a
apontei para sua garganta exposta.
— Se está tão certa quanto a isso, Lirya — eu disse, minha voz se
tornando um rosnado. — Não deveria se preocupar comigo.
Ela fuzilou minha arma apontada para ela, mas continuou no chão.
Uma mão tocou meu ombro e eu recuei um pouco. Virei-me e
encontrei Serena, tensa e séria, segurando meu ombro com firmeza. Seus
olhos passaram por Lirya até se fixarem em mim.
— Deixe Lirya — ela disse para mim. — Agora seremos nós duas
treinando. — Eu me afastei da Protetora, abaixando minha adaga. Então,
Serena se virou para a colega com um olhar penetrante. — Vá.
Lirya não disse nada, enquanto se levantava e andava até a borda do
tatame. Um segundo antes de pular para um salto de mais de três metros,
ela apenas me lançou um olhar afiado.
— Então agora vocês estão disputando o mesmo homem?
Olhei para Serena indignada.
— Eu não estou disputando ninguém!
— Não foi o que pareceu — ela retrucou, um quase sorriso se
formando em seu rosto.
— Isso não é engraçado, Serena! — protestei. — Ela não tinha
motivo nenhum para me atacar por causa de Nathan!
Serena balançou a cabeça, concordando comigo.
— Bem, Lirya sempre foi meio... esquentadinha. Ela vai superar
isso.
Revirei os olhos.
— Não gosto dela. Eu tentei, ok? Mas não gosto mesmo e ponto.
— Isso é porque você gosta de Nathan e ela acabou de deixar bem
claro o tipo de coisa que os dois faziam juntos. — Bile tomou minha
garganta. — Isso e o fato de ela ser escrota com você — minha amiga
completou, levantando os ombros. — É compreensível que não goste dela,
afinal.
Queria não me importar. Queria poder dizer que a vida pessoal de
Nathan não me dizia respeito, mas tinha certeza de que iria soar falso
demais. Porque eu me importava. Depois de ontem à noite, pensei... pensei
que pudesse haver algo entre nós. Que Nathan me veria mais do que como
um serviço, mais até do que uma amiga. Mas era óbvio que ele já estava
com alguém, esse era bem o tipo de sorte que eu tinha.
— Cale a boca — rosnei para Serena.
Ela ergueu os braços, rendendo-se.
— Podemos falar sobre como você está melhor na luta — ofereceu,
e logo soube que isso não era tudo que ela tinha a dizer. — Como você está
inacreditavelmente melhor. Forte e rápida... quase como um Protetor. — Ela
me lançou um olhar curioso — Podemos falar sobre isso.
“Não pode contar o que descobrimos hoje a ninguém.”
Eu confiava em Serena sem sombra de dúvidas. Confiava em meus
pais com a minha vida. Confiava em Roman e até mesmo Jasper. Mas havia
uma razão pela qual Nathan não queria que outros soubessem sobre isso e a
verdade era que eu confiava nele o suficiente para entender que, talvez, isso
fosse o melhor. Isso não queria dizer, porém, que seria um segredo que
guardaria para sempre. Por enquanto, fazia sentido. Amanhã, talvez, não
fizesse mais.
Era melhor que pensassem que eu fosse uma pequena garota
indefesa.
— Eu estou treinando para isso, não é? — disfarcei.
Serena arqueou uma sobrancelha.
— Vamos ver.
Dessa vez, quando ela avançou em minha direção, tentei engolir
minha força recém-descoberta. Não era muito difícil, no entanto, e ela
pareceu desaparecer com facilidade. Apesar disso, fui capaz de receber os
golpes de Serena e contra-atacar com golpes bem executados.
Nós nos mantivemos nessa dança interminável por toda a manhã.
Após o almoço foi Jasper quem subiu no ringue, o que transformou o
treinamento em uma tortura. Mas eu me mantive em pé, firme, até que ele
dissesse que era o suficiente.
No fim, minha cabeça estava explodindo, meu corpo dolorido em
todos os lugares possíveis, e meu sangue ainda fervendo.

— Você está bem, mãe?


Jasmine Monroe estava quieta demais. Havia duas olheiras
arroxeadas embaixo de seus olhos, que apenas me forneciam a informação
necessária para me certificar do que eu já imaginava: minha mãe não estava
dormindo.
Meu pai estava com um braço em volta de sua cintura, guiando-a
pelo caminho quase como se ela precisasse de todo o suporte oferecido. Ele
também estava preocupado, as duas linhas entre suas sobrancelhas pareciam
se aprofundar mais a cada dia.
— Eu estou bem, filha — ela respondeu. O esforço em suas palavras
para parecer minimamente energética era notável. — Acho que um jantar
em família, hoje, seria bom para nós.
Assenti.
Chegamos à porta da cabana dos meus pais e Henry logo a
destrancou, para que pudéssemos entrar.
O espaço era familiar. Com três quartos ao invés de um, esta cabana
era significantemente maior que a minha. Esta foi feita para uma família,
enquanto a minha foi feita para uma única alma. Tecnicamente, Akantha
teria o direito de se hospedar aqui também, visto que esta era a cabana dos
Nephus, mas minha mãe disse que ela estava em uma cabana nova, ao lado
da de Ravenna, até que finalmente voltasse para a Grécia, seja lá quando
planejava fazer isso. Aliás, toda a razão pela qual esta mulher ainda estava
no Outro Lado, era um mistério para mim, mas pelo menos não precisei vê-
la muito nos últimos dias.
— Eu fiz horiatiki salata e lasanha. — Minha mãe colocou as
comidas na mesa, enquanto meu pai ajudava com os pratos e talheres.
Poucas vezes em minha vida, minha mãe me fez lembrar de onde ela tinha
nascido. Ela quase nunca falava em grego em casa ou comentava algo sobre
o país em que nasceu, achava que por isso também nunca tive muito
interesse em saber mais sobre suas origens. Alguns dias, eu até esquecia
daquele pequeno fato. — Pegue o suco na geladeira, Aly.
Fui até a geladeira e peguei a jarra. Ao voltar para a mesa, meus pais
já estavam sentados e se servindo. Observei minha mãe, ainda me
preocupando que não estivesse me contando tudo o que poderia estar
acontecendo. Ela não era exatamente uma pessoa muito aberta.
— Como está indo nos treinos? — ela perguntou.
— Bem — eu disse, mas então decidi ser um pouco mais verdadeira
em minha resposta, mesmo que não contando sobre meu real
desenvolvimento recém-descoberto com Nathan. — Na verdade, muito
melhor. Estou me sentindo menos inútil.
— Isso é ótimo — meu pai disse, com um sorriso. — Jasper disse
que o treino de hoje foi muito bom.
Assenti, apesar de ter certeza de que “muito bom” não sairia da boca
de Jasper para descrever meu desenvolvimento. Ele preferia adjetivos
como: “não tão ruim”, “menos terrível”, ou “você finalmente está
melhorando essa merda”.
— Eu também conheci outros Protetores — contei. — A maioria me
tratou muito bem — Lirya com certeza não se encaixava naquele grupo. —
Aqui é quase como se eu tivesse uma vida normal. Bem, tirando o fato de
eu não poder ir a lugar algum no mundo humano.
— Tecnicamente, esta dimensão faz parte do mundo humano —
minha mãe comentou, vagamente.
Revirei os olhos.
— Tanto faz.
Meu pai riu.
— Fico feliz de que está fazendo amigos, filha.
Assenti com um leve sorriso.
Comi um pouco e finalmente tomei coragem para perguntar:
— Serena comentou que você cuidava de Nathan quando Brian não
estava por perto — falei. — Antes de irmos embora do Lago. — Minha
mãe ergueu os olhos de seu prato e me observou, analisando onde eu iria
com aquilo. — O que aconteceu para você começar a tratá-lo com tanta
rispidez?
— Ele era uma criança, agora é um adulto. Não sei muito sobre o
adulto que se tornou e não quero que ele atrapalhe você.
Ela não poderia estar mais errada sobre isso. Nathan estava apenas
me apoiando e me ajudando a me tornar uma guerreira melhor do que eu
imaginava ser possível.
— E como estão as coisas com Akantha, mãe?
Meus pais trocaram um olhar de fidelidade e logo soube que uma
mentira estava prestes a ser dita. Era assim como sempre se olhavam
durante todos esses anos de mentiras. Quando questionei porque estávamos
voltando para o Lago, meu pai tinha olhado daquele jeito para minha mãe,
como se certificassem de que estavam na mesma página e suas histórias não
fossem se contradizer.
— O que? — exigi.
— Nada demais. Eu só quero que ela vá embora logo — minha mãe
disse.
— Mas ela fez algo — deduzi.
— O mesmo de sempre — meu pai interferiu. — Akantha não tem
respeito por nada além de si mesma.
Bem, isso era esperado de alguém que aceitava tornar a neta a
próxima Bela Adormecida.
— Se algo estiver acontecendo, não escondam de mim — pedi, com
firmeza.
Minha mãe pegou minha mão por cima da mesa e a apertou.
— Se algo acontecer, assim que soubermos, a informaremos.
Queria muito acreditar que ela realmente faria isso, mas seu
histórico de mentiras não ajudava muito. Porém, ao longo do jantar, desisti
de tentar descobrir qualquer coisa que não fosse pequenas fofocas
engraçadas que rolavam pelo Outro Lado, como Protetores sussurrando que
não sabiam se podiam falar comigo por causa do Destino. Aparentemente, o
Destino não gostava de interferências e muitos temiam que eles pudessem
ser uma e acabar influenciando meu futuro.
— Eles consideraram o relacionamento de Brian e Diana como uma
interferência? — perguntei.
Minha mãe respirou fundo, deixando os talheres de lado ao terminar
seu prato.
— Um Protetor nunca deveria se relacionar profundamente com
uma Fidly. Nosso trabalho é protegê-las, não nos apegar a elas — ela
explicou.
— Isso é meio que pedir demais para vocês. Talvez o Destino ache
essa regra uma grande bobeira.
— O que o Destino pensa é uma grande incógnita — meu pai
murmurou.
— Isso é ridículo — protestei. — Gostar de alguém só te faz querer
protegê-lo com mais vigor.
— Isso não quer dizer que as decisões serão tomadas com
inteligência, Aly — meu pai disse. — Muitas vezes são as pessoas que mais
amamos que nos colocam em perigo, justamente por amá-las.
— Está me dizendo que o amor então é o problema? — desafiei. —
Depois de todos esses anos, você vem me dizer, agora, que amar alguém é
o problema? — apontei para meu pai e então para minha mãe. — Vocês
dois se amam e, mesmo assim, protegem um ao outro. Vocês me amam e
me protegeram a vida toda.
— Não estou dizendo que o amor é o problema. Óbvio que não é. O
problema é o ódio e a cobiça. Mas o amor é uma variável difícil demais de
controlar — meu pai tentou explicar, calmo como sempre. — Para proteger
você, eu e sua mãe precisamos nos esforçar o dobro. Sermos mais duros e
inflexíveis. Não era prazeroso impedi-la de ter o que queria, Alyssa, mas
fazíamos porque não podíamos correr o risco da alternativa.
— O amor é vulnerabilidade — minha mãe comentou, um olhar
distante. — E é instinto, quase tão primitivo quanto a ânsia de sobreviver.
Eu não me importo que os outros sintam amor por você, porque isso apenas
os farão colocar suas vidas antes da sua. — Seus olhos encontraram os
meus. Dourados como mel derretido. Destemida. Implacável. Selvagem. —
Mas eu me recuso a permitir que você coloque alguém à frente da sua vida.
Será que minha mãe pensava tão pouco de mim? Será que ela não
via que eu amava ela e papai com a mesma ferocidade? Eu daria minha vida
pela deles. Daria minha vida pelos amigos que pude conquistar aqui, como
Serena e Roman. E Nathan. E Jasper. Daria minha vida pelas pessoas que
eram leais a mim, mesmo que apenas por um serviço.
— Então acho que acabou me criando muito errado, mãe.
O sorriso em seu rosto pareceu uma máscara.
— Não, eu fiz o que foi preciso.

Andei até minha cabana com meus pais ao meu lado com o sangue
queimando. Eu insisti que não precisavam me acompanhar, que eu poderia
fazer a caminhada sozinha, mas eles fizeram questão. Quero respirar um
pouco de ar fresco — meu pai disse. E eu estava aterrorizada de que seria
pega em uma grande mentira. Minha mãe havia sido clara quanto a meu
envolvimento com Nathan, mesmo que este fosse completamente platônico.
E parte de mim estava aterrorizada de que nós pudéssemos pegá-lo se
escondendo em minha cabana, como tinha feito nas últimas noites. Ele tinha
o mau hábito de nunca bater antes de invadir o lugar.
Quando parei em frente à porta e meus pais ficaram esperando eu
usar minha chave para abri-la, toda minha esperança de que eles não
entrassem foi por água abaixo.
Fosse por causa do Destino ou o que quer que controlasse tudo isso,
Nathan não estava em lugar algum quando entrei na cabana, seguida pelos
meus pais. Isso, no entanto, não aliviou o incômodo em meu peito. Não
querer que meus pais o pegassem aqui, não significava que eu não queria
que ele estivesse aqui.
— Espere. — Minha mãe puxou meu braço e nós paramos a menos
de um metro da porta.
Ela andou até um papel dobrado como um convite, jogado no chão.
Mamãe pegou o papel e o abriu sem nem mesmo me oferecer a
chance de fazer isso primeiro. Estávamos em minha cabana, o que queria
dizer que aquele papel se direcionava a mim. Poderia muito bem ser um
lembrete de Nathan. Mas segurei minha língua, enquanto minha mãe lia o
conteúdo com uma expressão tão séria que rugas até então inexistentes,
aparecem em seu rosto. Meu pai foi até ela, parecendo nervoso, e leu o
papel por cima do ombro da esposa.
— O que foi? — perguntei, ansiosa.
— Isso só pode ser alguma brincadeira de mal gosto — meu pai
murmurou.
Caminhei até eles e peguei o papel das mãos da minha mãe, que
estava atônita demais para ao menos reagir. Com o coração acelerado, li o
bilhete:

Você deveria ter continuado se escondendo, Fidly.


— Isso tem que ser alguma piada — eu disse, sem acreditar nas
palavras que lia repetidamente. Amassei o papel com mais raiva ainda,
sabendo que a frase digitada e impressa não nos levaria a nenhum culpado.
Minha mãe pareceu atônita, entendendo tudo tão pouco quanto eu.
— Isso é uma brincadeira, não é? — insisti, frustrada. — Uma
brincadeira de mau gosto. Desertores não podem entrar no Outro Lado.
Vocês disseram que existe um feitiço ou sei lá o que.
— O território é guardado por um feitiço de Cassandra há centenas
de anos — minha mãe confirmou.
— Certo — concordei. — Então alguém está brincando comigo.
Meu pai foi quem se pronunciou em seguida.
— Ninguém faria algo tão idiota assim.
— Alguém aqui poderia — eu insisti.
Pensei em Lirya e em suas palavras de mais cedo: “enquanto você
brincava de esconde-esconde, era a minha cama que ele aquecia”. Apesar
de não ser exatamente uma ameaça, ela parecia ter bastante animosidade
dentro de si para me atacar dessa forma, e provou isso mais de uma vez. Ela
poderia ter mandado essa mensagem, certo? Qualquer um podia ter
mandado essa mensagem, menos um Desertor. Um Desertor não teria
conseguido entrar. Não é?
Aquilo era uma brincadeira estúpida. Só isso.
— Eu posso sentir a barreira — minha mãe murmurou, os olhos
fechados e uma ruga entre as sobrancelhas. Ela parecia se concentrar em
algo que os olhos não eram capazes de ver. — Um Desertor não teria
conseguido entrar — disse, com firmeza.
— Um Protetor faria isso? — meu pai perguntou, completamente
indignado.
Então os olhos cor de mel de Jasmine engoliram os meus.
— O que aconteceu que não nos contou?
Dessa vez, devo ter parecido genuinamente ofendida porque meu
pai começou a balbuciar algo sobre nos focarmos na mensagem.
— Estou me focando na mensagem, Henry! E se não foi um
Desertor, algo deve ter acontecido para que esta mensagem chegasse a
Alyssa e ela simplesmente não nos contou!
Eu quase gargalhei com a minha tamanha incredulidade.
— Você está falando sobre não contar coisas? — Minha mãe me
fuzilou, mas eu não parei: — Se você não tivesse mentido sobre tudo isso,
talvez tivesse sido muito mais fácil lidar com o que está acontecendo agora!
E não, mãe, nada aconteceu.
— Alyssa, não recite velhos ressentimentos — meu pai me
repreendeu.
— Ela começou — rebati, apontando para minha mãe.
Jasmine respirou fundo e pareceu funcionar um pouco para se
acalmar.
— Tudo bem. Vamos pensar — ela disse. — Isso não pode ter sido
um Desertor, o que nos resta Protetores. Posso pensar em uma ou duas
pessoas que fariam isso, apenas para te assustar e, quem sabe, alguns mais
jovens, apenas por buscar diversão. No fim, nenhum Protetor te
machucaria.
— Tem certeza disso? — meu pai perguntou.
Minha mãe assentiu.
— Absoluta.
Joguei o bilhete no lixo e guardei na geladeira a sobremesa que
sobrou do jantar.
— Ótimo. Então posso, muito alegremente, ignorar essa merda,
certo?
— Olhe o palavreado, Alyssa — meu pai advertiu.
— Isso não será um problema — minha mãe confirmou. — Vou
averiguar minhas suspeitas e repreender esta brincadeira idiota. E, caso não
tenha sido uma brincadeira, se isto foi uma forma de aterrorizar você... Vou
lembrá-los como o acordo funciona.
Franzi o cenho.
— Acordo?
— Quando os Protetores finalizam seu treinamento e recebem a
tatuagem, eles fazem uma promessa: lutar e proteger, com sangue e fogo —
meu pai explicou.
— Lutar por você — minha mãe completou. — Proteger você. Para
que os Desertores não tomem mais do que já tomaram.
Isso parecia completamente insustentável. E as outras pessoas? E os
humanos?
— Isso não pode ser tudo.
— Neste momento é — minha mãe suspirou. — Durma bem,
Alyssa. E não se preocupe com nada além do seu treinamento.
Eu poderia concordar com mamãe e aceitar suas ordens como fiz
por todos esses anos, mas a cada dia que passava, era mais difícil aceitar
que todas estas pessoas, estes guerreiros, precisassem viver suas vidas
baseadas no meu bem-estar. E eu não conseguia deixar de pensar que,
talvez, essa não tivesse sido a escolha que fariam caso tivessem a
oportunidade de escolher.

Chequei as horas no meu celular, 1:15 am. Já era madrugada e eu


ainda estava devorando o livro como se eu precisasse das palavras para me
nutrir. Ou fingir que as coisas estavam bem. Ajudava a esquecer o bilhete
anônimo. Ou os meses que me separavam do meu décimo oitavo
aniversário. Tanto faz. De um jeito ou de outro, esta história estava fazendo
o serviço corretamente. A genialidade com que a autora construiu a trama
sem qualquer falha era absurdamente impressionante. Como se aquele
mundo criado, realmente fosse real. Bem, dada as minhas circunstâncias
atuais, eu não ficaria assustada se fosse. A realidade era uma obsessão
efêmera para conseguir controlar a imaginação. Não era definitiva. Deus
bem sabia que eu nunca imaginei ver tudo o que vi em apenas um mês e
meio.
Fora que o romance em minhas mãos me dava tanta inveja que uma
lágrima escapou dos meus olhos. Eu poderia chorar de verdade se parasse
para pensar que provavelmente, nunca viveria algo como aquilo.
Idiota romântica. Eu culpava os livros por isso. Apesar de que ter
pais que se amavam com tanta devoção como os meus, pode ter
influenciado bastante também.
— Acho que vamos ter que dar uma pausa nos livros por um tempo
— a voz atrás de mim, me fez saltar do sofá. — Sério, isso não é bom para
sua segurança. Estou aqui há quinze minutos e nem percebeu.
Joguei uma almofada diretamente na cabeça de Nathan e, para meu
prazer, ele não desviou.
— Você não sabe bater na porta?
Ele balançou a cabeça e andou até mim. Seus olhos percorreram
meu livro, provavelmente tentando ver do que se tratava. Nathan parou à
minha frente e, em um gesto inesperado, prendeu uma mecha de cabelo que
se soltou do meu coque atrás da minha orelha. Fiquei de boca aberta,
observando-o então se mover e se sentar do meu lado no sofá, como se
fosse algo tão natural quanto respirar.
— Eu prefiro fazer entradas dramáticas. Seriam melhores se você
estivesse alerta.
Engasguei com uma risada e dei um tapa de brincadeira em seu
braço.
— Você é um comediante.
— Obrigado — disse, lisonjeiro. — Sabe como é, se a vida de
assassino não der certo, preciso ter um plano B.
Observei Nathan em seus couros quase negros e estalei a língua em
resposta.
— Outra missão?
Ele assentiu.
— Sempre.
— Se estiver pensando em treinar hoje, minha resposta é um
gigantesco não — disse. — Meu dia foi infernal e estou cansada demais
para isso.
Ele arqueou uma sobrancelha e lançou um olhar curioso para o
livro.
— Por que não está dormindo então?
Suspirei. Eu teria mil respostas possíveis para essa pergunta.
— Porque estou com a cabeça cheia.
— E? — insistiu.
Eu não estava prestes a contar sobre o bilhete idiota, mesmo que ele
desconfiasse de que houvesse algo mais. Aquilo foi uma brincadeira sem
graça, provavelmente arquitetada pela namorada ou ex-namorada dele. Seja
lá o que Lirya fosse para Nathan.
Por isso, contei-lhe um outro motivo pelo qual eu não estava muito
animada para dormir.
— E não quero ter outro pesadelo.
Os últimos dias foram calmos se comparado a última década de
pesadelos. Mas eu tinha certeza de que, assim que fechasse meus olhos, um
novo pesadelo iria atacar. Minha cabeça estava cheia demais, pensando em
milhares de coisas diferentes e possibilidades distintas. O bilhete, mesmo
que não fosse sério, trouxe de volta velhas preocupações que me deixei
ignorar na última semana.
— Sobre o que você tem pesadelos?
Desviei meu olhar.
— Você não quer saber.
E eu não quero contar sobre meus pesadelos com sua mãe morta.
— Eu não teria perguntado se não quisesse.
Meus dentes afundaram sobre meu lábio inferior. Meus dedos
tamborilaram levemente pela página do livro e Nathan pegou minha mão
com um movimento rápido, parando meus dedos.
— Vai me deixar louco com isso.
Bati em sua mão.
— Eu tenho pesadelos com a morte — revelei com um suspiro. Seu
polegar acariciou a marca em minha mão direita, quase que
inconscientemente. Seus olhos azuis se mantiveram presos nos meus,
esperando que eu explicasse melhor. — Consigo ver como as outras Fidlys
foram mortas. Eu não sabia que eram elas, antes de tudo isso acontecer —
balancei minha mão mostrando a cabana —, pensava que eram apenas
terrores noturnos comuns. Algo que meu subconsciente usava para me
atacar a noite. Mas então tudo começou a fazer sentido. O homem com a
adaga incrustada por pedras, as garotas sendo assassinadas... Acho que
talvez, não seja meu subconsciente me atacando, mas me preparando.
Sua mão apertou mais a minha, mas seu olhar continuava o mais
calmo possível.
— Como ele as matou?
— Nathan...
— Apenas me diga.
— Um único golpe — minha voz pareceu se perder no meio da
frase. Tão baixa que, caso Nathan não fosse um Protetor, teria dificuldade
em entender minhas palavras. — Normalmente no coração.
Observei seu peito subir em uma respiração profunda. Ele assentiu
em silêncio, os olhos focados em nada específico. Suas costas tocaram o
sofá e Nathan puxou os cabelos para trás. Sua mão esquerda, ainda
segurando a minha, parecia a âncora que o mantinha preso.
— Minha mãe? — ele perguntou em um sussurro.
Vendo ele assim, nunca quis tanto poder confortar alguém em minha
vida.
— Meus sonhos com ela costumam ser diferentes — eu disse,
sincera. — Ela costuma aparecer em paz, sempre me dizendo algo sem
muito sentido.
— Não minta para mim — ele pediu, dor estampando seu rosto.
— Não estou mentindo. — Dessa vez, fui eu que acariciei sua mão.
Ignorei como tocá-lo parecia aquecer meu corpo como uma fornalha
crepitante. — A última vez que sonhei com sua mãe, estávamos em um
campo verde, próximo ao Lago.
Não sabia se meus sonhos eram reais o suficiente para acreditar que
Diana, de fato, estava falando comigo, mas nunca descartei essa ideia.
Principalmente porque ela era a única que falava. E eu esperava que, talvez,
saber que Diana parecia tão linda e radiante quanto quando ainda estava
viva, poderia confortar Nathan um pouco.
Ele precisava de paz, e isso era tudo o que eu gostaria de poder
oferecer.
— O que ela disse?
—“Não o deixe ir” — sussurrei a frase para Nathan, quase contra
minha vontade, como se contar a ele fosse algum tipo de traição à Diana.
Eu não tinha certeza se ela falava sobre Nathan. Não havia nenhuma
indicação lógica de que estaria, a não ser o fato de que, coincidentemente,
ele ter aparecido naquela noite. Mas ele não me perguntou sobre o que ela
estava falando. Na verdade, pelos próximos longos minutos, ele não disse
nada. Silêncio nos envolveu como uma manta quente e aconchegante.
Nossas mãos ainda unidas pareciam se comunicar pele a pele. Por um longo
tempo, nós apenas ficamos assim, calados, perto um do outro como dois
pólos opostos que dependiam da proximidade. Talvez fôssemos mesmo
muito parecidos. Dois lados de uma mesma moeda: a garota escolhida pelo
Destino e o garoto transformado por ele. Duas pessoas que conheciam
intimamente a solidão.
— Nossa amizade é meio estranha — eu sussurrei, quando o
silêncio deixou de ser confortável e passou a me deixar ansiosa. — E não
sei se é porque nunca tive um amigo antes.
A risada de Nathan foi uma boa resposta à interrupção do silêncio.
Eu puxei minha mão da dele, precisando de um pouco de espaço para voltar
a pensar.
— Eu não estou acostumado a ter uma amiga também — ele disse.
— Bem, aparentemente Lirya é mais que isso, então acredito que ela
não conte — deixei escapar, quase rancorosa.
Nathan arqueou as sobrancelhas para mim.
— Do que está falando?
Dei de ombros.
— Sua amiga parece não gostar muito de mim — falei. — Você
contou a ela que costuma me encontrar?
Para ser justa, Nathan pareceu genuinamente surpreso com minhas
palavras.
— Eu não falo com Lirya há meses.
— Bem, esse deve ser um dos motivos da raiva dela.
A expressão de Nathan ficou sombria.
— O que ela fez? — Seus olhos vasculharam cada parte exposta do
meu corpo. — Machucou você?
Revirei os olhos teatralmente.
— Vou fingir que você se esqueceu que eu sei me defender e não
que pensa que não posso me defender — disse. — Aliás, fiz isso
graciosamente.
Levantei-me do sofá e me afastei de Nathan para poder pensar com
mais clareza, sem que ele me distraísse. Sua proximidade, seus toques, até
mesmo seu cheiro, parecia demais. Era vergonhoso como eu podia ser
afetada por esse garoto.
— Me diga o que aconteceu — ele pediu.
— Desde que a vi pela primeira vez, Lirya ficou me perguntando
sobre você. Sobre como o conheci e como era possível que eu não me
lembrasse de você, mesmo que tenhamos sido vizinhos. Depois disso —
apontei para ele — basicamente, me avisou que você gostava bastante da
cama dela. — Não permiti que meu sangue aquecesse minhas bochechas.
Eu podia não ter tido muitas experiências em minha vida, o que incluía
sexo, e até mesmo beijos, mas eu não era uma puritana que não entendia
como as coisas funcionavam. — Acho que as palavras dela foram:
“enquanto você brincava de esconde-esconde, era a minha cama que ele
aquecia.”
Seu rosto todo pareceu ficar mais sombrio. Eu sabia que estava
errada, mas achei ter visto até mesmo um pouco de vergonha.
— Por que diabos ela foi falar isso para você?
Dei de ombros, achando graça da careta de Nathan.
— Acho que você devia deixar claro para ela que nós não... — seus
olhos azuis estavam focados em mim, uma sobrancelha levemente
arqueada. — Que nós não temos nada. — As palavras pareceram sair
enroladas, então tento consertá-las. — Quero dizer, que nossa relação não é
romântica ou nada do tipo.
— Eu não devo explicação alguma a ela.
— Hum, então talvez você devesse dizer isso a ela.
— Eu irei.
Assenti, pouco interessada no que ele diria à Protetora, e caminhei
até a cozinha. Eu nem deveria ter comentado sobre Lirya.
Abri a geladeira e peguei a vasilha com o cheesecake. A cobertura
de frutas vermelhas parecia ainda mais deliciosa agora, e pela expressão no
rosto de Nathan, eu tinha acertado ao pensar que talvez ele fosse gostar que
eu separasse um pedaço para ele. Eu sabia que ele não comia doces com
frequência, mas ele devia, pelo menos um pouco.
— O que é isso? — Nathan perguntou, tentando espiar por cima do
meu ombro.
— Cheesecake. — disse. — Jantei com meus pais hoje e trouxe as
sobras. Achei que talvez você pudesse aparecer e querer um pouco.
Coloquei o doce em cima do balcão de mármore da pequena cozinha
e peguei duas colheres na gaveta.
— Você guardou para mim?
Ofereci uma colher a ele. Nathan pareceu surpreso e levemente
confuso com o gesto. Como se ninguém nunca tivesse guardado sobremesa
para ele, apenas porque podia.
— Sim — reafirmei, um leve sorriso em meus lábios. — Não gosta
de cheesecake?
— É minha sobremesa preferida — respondeu, com um olhar
pensativo estampado em seu rosto bonito.
Eu imaginei que seria e era a minha também. Afinal, quem não
gostava de cheesecake?
Sentei no banco e apoiei meus cotovelos no mármore cinzento. Abri
a tampa da vasilha e logo me esbaldei com uma colherada do doce,
levando-o à boca. Nada melhor que se entupir de açúcar depois de receber
um bilhete ameaçador, o qual devia tentar ignorar.
— Vai ficar só olhando ou pretende comer também?
Nathan balançou a cabeça, um sorriso nos lábios.
— Deveríamos estar treinando e não nos empanturrando de doce —
ele murmurou.
— Isso não seria tão divertido, mas vá em frente — falei. — Sobra
mais para mim.
Ele estendeu a mão direita e, ao invés de se servir do doce, ele
beliscou meu nariz. Eu arregalei os olhos em surpresa para ele.
— Pare de ser gulosa.
— Pare de reclamar e coma — retruquei.
Ele me olhou de canto de olho, enquanto enchia sua colher com
cheesecake, e ainda roubava parte da calda de frutas da porção que sobrou.
— Ei! — protestei, batendo em sua mão.
— Você me disse para comer! — ele retrucou, um sorriso travesso
nos lábios. Ele enfiou toda a colher na boca, degustando o doce. Por fim,
lambeu os lábios e me lançou uma piscadela. — Delicioso.
Deus do céu.
Eu queria que ele me lambesse.
Qual era o meu problema?
Será que estar a poucos meses de me transformar na Fidly com
poderes (seja lá quais fossem) atiçava meus hormônios? Porque não era
possível que era apenas Nathan. Eu tinha mais controle que isso.
Ignorei o formigamento em meu corpo. Disse a mim mesma que era
porque ele era o primeiro garoto com quem tive algum contato mais
prolongado. — Mesmo que eu também tenha ficado sozinha com Roman,
algumas vezes, desde que o conheci.
Balancei a cabeça, focando-me na sobremesa. Peguei mais uma
colherada e esperei que o açúcar me distraísse da língua de Nathan.
— Como foi o treino hoje? — ele perguntou.
Abri um sorriso orgulhoso.
— Bom o suficiente para tirar Lirya dele — contei, então pensei que
talvez insultar a garota que Nathan teve ou tem um relacionamento, não
fosse muito legal. — Quero dizer, sem querer ofender sua amiga, mas ela
meio que mereceu.
— Pare de chamá-la de minha amiga como se isso fosse um código.
— E não é?
— Nós tivemos… — os olhos azuis de Nathan encontram os meus e
ele colocou a colher de lado — algo depois do treinamento. Nada sério e
que acabou logo — ele contou. — Nunca fomos namorados ou algo do tipo.
Nem mesmo éramos amigos.
Assenti. Meus dentes afundaram em meu lábio inferior e me lembrei
de que não podia parecer sentir nada com seu depoimento. Isso não mudava
nada entre nós. Ele costumava fazer sexo com Lirya e não fazia mais,
ótimo. Eu não tinha nada com isso mesmo.
— Aposto que ela está decepcionada — murmurei.
— Não deveria — ele disse. — Eu não seria bom para ela. — Ergui
os olhos e o encontrei me encarando. — Nem para ninguém, se for sincero.
Meu celular tocou, antes que eu pudesse pensar em uma resposta. O
nome de minha mãe estava estampado na tela.
Atendi antes do segundo toque, sabendo que, caso não o fizesse, ela
logo apareceria na minha porta.
— Você está bem? — ela perguntou, a voz séria.
— Estou bem, mãe.
— Nada de estranho acontecendo?
Revirei os olhos.
— Pensei que eu não deveria me preocupar.
Nathan me observou com atenção e então decidi tomar cuidado com
minhas palavras, rezando para que minha mãe fizesse o mesmo, já que ele
provavelmente podia ouví-la. Não queria contar sobre o bilhete,
principalmente sabendo que provavelmente tinha sido algo que sua ex-
amiga tinha feito.
— Não deve, mas quero saber de todos os detalhes para que eu me
mantenha alerta — ela disse. Ouvi meu pai dizer algo no fundo que não
consegui distinguir. — Eu deveria tê-la feito dormir aqui.
Tentei não pensar demais nas palavras de mamãe, ignorando o fato
de que ela pensava que ainda estava tudo bem me obrigar a qualquer coisa.
Ela te ama e está preocupada — a vozinha em minha cabeça me lembrou.
— Mãe, estou ótima. Logo vou dormir — menti. — Na verdade,
está bem tarde para você me ligar.
Silêncio na outra linha.
— Tudo bem — ela finalmente disse. — Te vejo amanhã.
— Te vejo amanhã, mãe.
Desliguei antes que ela pudesse inventar mais coisas para discutir.
— Ela pareceu preocupada — Nathan comentou.
— Minha mãe está sempre preocupada.
E, mesmo depois de toda serotonina liberada pelo açúcar, todo o
rosto de Nathan se transformou em pura raiva. Não direcionada a mim ou à
minha mãe, mas àquele grande ponto de angústia em nossa história, criado
pelo próprio Destino e fadado a nos tirar a paz. E mesmo sem nunca ter
visto uma foto de Vicenzo, eu era capaz de vê-lo em minha mente. Não seus
traços, formas e rosto. Não a cor de seus olhos ou cabelo. Mas podia ver o
terror, a raiva e a maldade de um homem que eu nem sabia quantos anos de
fato tinha.
— É compreensível — Nathan finalmente disse.
Nós nos encaramos por um longo tempo até que eu me afastasse
com um suspiro, levando a vasilha, agora vazia, à pia para lavá-la. Nathan
se levantou, dizendo que podia fazer o serviço, mas eu o dispensei.
Ainda de costas para ele, tomei coragem para perguntar:
— Você já o viu? Sabe como se parece?
Mesmo sem poder vê-lo, pude sentir sua tensão.
— Não — sua voz já não tinha mais nada da diversão de alguns
minutos atrás. — Ele sempre manda alguns Desertores atrás de mim,
tentando me levar para o seu lado. Idiota arrogante. Como se algum dia eu
escolheria ficar ao lado do homem que assassinou minha mãe. Acho que, no
fundo, ele deve saber. Por isso nunca veio me ver pessoalmente.
Vicenzo querer Nathan ao seu lado era, no mínimo, ultrajante. Mas
não era isso que mais me perturbava, não era o fato de que esse homem era
completamente insensível e deplorável a ponto de achar que tudo bem
querer manipular o filho da mulher que matou, sem qualquer consideração.
Na verdade, o que pareceu ecoar em minha mente era o fato de que Vicenzo
queria Nathan ao seu lado.
— Eu fico tentando imaginar como ele se parece — confessei.
Virei-me para Nathan e ele estava a apenas um metro de distância,
encostado no mármore, as mãos nos bolsos da calça.
— Não posso te ajudar — disse. — Nunca o vi e, até onde sei,
ninguém aqui possui uma foto que seja dele. Talvez as Guardiãs tenham
algo, mas não tenho certeza.
— A Guardiã que ele enganou... — tentei me lembrar de seu nome.
— Freya? — Nathan assentiu, em confirmação. — Ela deve se sentir
péssima com tudo o que aconteceu, mesmo depois de todos esses anos.
— Ela deveria — Nathan disparou, e eu não precisava conhecê-lo
muito profundamente para sentir o rancor em sua voz. — Se não fosse por
ela, nada disso estaria acontecendo.
Apesar do que Nathan falou ser verdade, parte de mim ainda sentia
pena da mulher. E nós não poderíamos ter certeza de que, caso não tivesse
acontecido dessa forma, Vicenzo teria encontrado outra forma.
— Ela estava apaixonada, Nathan — falei, tentando encontrar
alguma brecha em seu olhar azul frio que o fizesse ter alguma compaixão
pela mulher. — Vicenzo foi mais do que cruel com ela.
Nathan apenas balançou os ombros.
— Ela deveria saber.
— O que? Que ele a trairia?
Nathan me observou por alguns instantes antes de dizer:
— Que o amor é um risco para tolos.
Talvez eu não pudesse mesmo discutir com isso. O que diabos eu
sabia sobre amor? Principalmente do tipo que Freya poderia ter sentido por
Vicenzo? O amor que conhecia, era o amor de família, o mesmo que fez
meus pais viverem fugindo por dez anos para me manter segura.
Mas seria melhor viver em solidão do que ser um tolo?
Talvez, o problema era que Freya amava demais, enquanto Vicenzo
amava de menos. E, por isso, não era amor. Era uma ilusão. Certo?
Porque se amor era mesmo tão irrefreavelmente inútil, perigoso e
estúpido, por que diabos insistíamos nele?
Eu não disse nada disso à Nathan. Eu não era a melhor pessoa para
fazê-lo acreditar em um sentimento que nunca pude vivenciar.
Com o passar dos minutos, esperei que ele fosse embora, como
sempre fazia, especialmente porque não iríamos treinar. Mas Nathan ficou.
Ele se sentou comigo no sofá e perguntou sobre o livro que eu estava lendo.
Eu contei a ele a história e ele riu quando disse que era a terceira vez que
lia, questionando o sentido de ler a mesma história várias vezes. Então
expliquei que, às vezes, eu via coisas que não havia visto na primeira vez,
que focava mais nos detalhes e na escrita, outras vezes focava mais nas
descrições ou conversas. Nathan, então, perguntou se eu escrevia e eu
respondi que estava esperando que as palavras me chamassem. Eu gostaria
muito de poder escrever, mas diferente do que muitos professores insistiam
em ensinar, eu acreditava que a escrita fosse um dom. Era como o sussurro
de um espírito que lhe contava detalhes de algo real, que não conseguia ser
encarado. Era um impulso, mais do que disciplina. Era inspiração, e eu
falhava excepcionalmente nisso.
Mas, um dia, talvez. Foi o que eu disse a ele.
Um dia, no futuro, caso eu tivesse tempo. Caso eu fosse a exceção à
regra.
Nathan se levantou e observou minha estante, até que escolheu um
livro para si. Um livro de memórias. Ele se sentou ao meu lado e eu o
questionei com um olhar.
— Você disse que não queria dormir e nem treinar, então também
vou ler um pouco.
Mordi um sorriso.
— Tudo bem. — Olhei para o livro em suas mãos. — Mas não ouse
amassar meu livro.
Ele riu e assentiu veementemente.
Então foi o que fizemos pelo que pareceu horas, dias, semanas. Não
importava, porque a história me envolveu o suficiente para que eu perdesse
a noção do tempo.
Nathan tirou os sapatos e colocou os pés no sofá, como eu. Em cima
do estofado cinza, nossos pés se tocaram e ele soltou um resmungo.
— Seu pé está congelando!
— Eu tenho pés frios — retruquei, os olhos ainda no livro. — Lide
com isso.
— Vou lidar, um segundo.
Nathan colocou seus pés sobre os meus e eu ergui meu olhar,
surpresa, para pegá-lo olhando para nossos pés com uma careta. Ele
esfregou seu pé sobre o meu, buscando aquecê-los e, como resultado, ele
aqueceu um pouco meu coração também.
Mas ignorei este último.
Andava ignorando tantas coisas que estava me tornando uma
profissional.
Voltei minha atenção para o livro. Logo, porém, meus olhos
começaram a pesar e o sono tentou me tirar a consciência. Bocejei e pisquei
várias vezes tentando esquecer o cansaço. Mas já estava apenas meio
consciente quando o livro caiu em meu peito e minhas mãos ficaram leves.
No fundo de minha mente, ouvi Nathan se levantar e colocar o
próprio livro de lado.
Minha mente era fumaça cinza quando seus braços me puxaram
para cima, em seu colo. Ele me levantou em seus braços. Minha cabeça caiu
em seu ombro e eu tentei forçar meus olhos a se abrirem em vão. Com as
duas mãos ocupadas, uma em minhas costas e outra na parte de trás dos
meus joelhos. Senti Nathan roçar seu nariz em minha bochecha, pouco
abaixo de meus olhos, tirando uma mecha de cabelo dali.
O toque foi leve, mas eu o senti em meus ossos.
Deus, por que ele me fazia sentir assim? Ou eu deveria perguntar ao
Destino?
Com um impulso do chão para cima, ele aterrissou no pequeno
quarto no andar superior.
Quando ele me colocou na cama, eu me aninhei nos lençóis e fui
tomada pela inconsciência em meio a uma respiração.

Eu acordei com um grito preso em minha garganta que soou como


um rosnado. Lágrimas escorreram pelos meus olhos e eu busquei por ar
como alguém que havia passado os últimos minutos afogando. Eu estava
completamente acordada quando soltei o segundo grito, de pura frustração.
Braços fortes me puxaram para perto, em um abraço. Eu não
precisei olhar para saber quem era. Nathan não tinha ido embora. Por algum
motivo, ele ainda estava aqui.
Ele me puxou para seu colo como se eu fosse uma criança e me
aninhou em seus braços. Eu agarrei seu braço como se ele fosse a sanidade
personificada.
— Você está bem, Aly — ele sussurrou em meu ouvido. — Eu estou
aqui com você. Foi apenas um pesadelo.
Ele me embalou nos braços e eu tentei respirar fundo. Suas mãos
fizeram carinho pelos meus braços. Um vai e vem reconfortante. Mas
mesmo assim, imagens do sonho ainda me assombravam, como se
estivessem gravadas em minhas pálpebras.
Dessa vez, vi Diana morrer. Ouvi a barganha que Vicenzo tanto
queria fazer. Lute comigo e permitirei que seu filho viva. Lute comigo e
deixarei que ele vire um homem. Vi o desespero da Fidly ao deixar Nathan,
um bebê, na grama úmida para enfrentar o homem coberto por sombras. Eu
nunca conseguia enxergar seu rosto. Nunca era capaz de olhá-lo nos olhos.
Mas eu via suas vítimas. Enxergava o assombro em seus olhos. Via o medo
e, às vezes, a aceitação.
Dessa vez, pude sentir o golpe.
Diana não se foi sem uma briga. Diferente das outras, ela lutou.
Brian deve tê-la treinado, mas mesmo assim foi inútil. Vicenzo pareceu ter
gostado de vê-la lutar. Ele aproveitou para prolongar sua morte.
Agora entendia porque Brian nunca mais havia sido o mesmo.
— Respire, Aly.
A voz de Nathan era como uma ponte que tentava me trazer para o
lado real da vida. O lado presente, afastado das sombras do assassino.
Mas quando encarei os olhos azuis de Nathan, tudo o que via era
ela. Tudo o que via era Diana sendo esfaqueada e jogada no chão como uma
boneca de pano, enquanto Nathan chorava a alguns metros de distância,
protegido pela barreira. Eu a vi tentando lutar contra Vicenzo como um gato
lutaria contra um tigre. Não havia nenhuma chance.
Também vi Brian encontrá-la, ensanguentada e a um suspiro da
morte. A morte parecia brincar com ela tanto quanto Vicenzo brincou.
Pude sentir a adaga perfurar seu coração como se fosse o meu
próprio.
— Eu... — tentei falar. A voz parecendo perdida.
Nathan correu os dedos pelo meu cabelo e então me apertou mais
forte em seus braços.
— Está tudo bem.
Mas não estava. Não estava nada bem. Porque Diana estava morta.
Foi cruelmente assassinada pelo homem que estava me caçando neste exato
minuto e, por mais covarde que fosse, eu estava com medo. Estava com
tanto medo que meu corpo parecia paralisado. E estava com tanta raiva.
E tão triste.
— Eu sinto muito, Nathan — sussurrei em seus braços.
Ele ficou tenso e soube que havia entendido aquilo que eu não era
capaz de pronunciar completamente, agora. Sinto muito pela sua mãe. Sinto
muito pelo o que ele fez.
Sentia muito por ser a próxima.
Porque se eu não completar meus dezoito anos e conseguir qualquer
que fosse o poder que permitiria que eu vencesse Vicenzo, eu não teria
chance alguma. Eu estava certa que esta era a mensagem deste sonho, e
nem super força ou velocidade, iria ser páreo para aquele homem.
— Eu sinto muito — repeti em um outro sussurro.
Rezei para que eu pudesse ter a coragem para enfrentá-lo quando o
momento chegasse. Para que o medo não me paralisasse. Para que eu
pudesse vingar as que não sobreviveram.
E então eu chorei. Chorei pela mulher em meus sonhos. Chorei pelo
futuro que ela não pôde ter. Pela mãe que Nathan não pôde conhecer. Pela
mulher corajosa morta como tantas outras foram.
E chorei por mim.

Devo ter pegado no sono, enquanto Nathan me abrigava em seu


colo. Quando a luz do sol atravessou as janelas da minha cabana, ele já
tinha ido embora e não havia nenhum traço de que havia estado ali, se não
seu cheiro em minhas roupas.
— Eu sinto muito — Serena me disse. Ela levou a caneca cheia de
café aos lábios e tomou um longo gole, como se ansiasse pela cafeína. —
Eu tinha ouvido falar sobre como a morte de Diana foi... brutal. Na verdade,
as pessoas aqui tentam não comentar sobre isso, por respeito a Brian e
Nathan.
As imagens ainda estavam tão vivas em minha mente, que fui
incapaz de comer qualquer coisa. Nenhum dos outros sonhos foi tão...
doentio.
— Foi Brian quem a encontrou?
Serena assentiu.
— Sua mãe chegou em seguida. Pelo que dizem, Brian ainda
segurava Nathan nos braços quando encontrou Diana morta — contou. Seus
longos dedos tamborilaram na caneca. — Sua mãe cuidou de Nathan,
enquanto Brian estava... perturbado. Mas dizem que ela também sofreu
muito com a perda. Elas eram amigas.
Assenti, levemente.
— Ela me disse que eram, mas fora isso, foram poucas vezes que a
citou.
Serena suspirou.
— Deve ser difícil. — Os olhos delineados e escuros de Serena me
encararam com força e determinação. — Mas eu nunca vou saber o que sua
mãe sentiu, porque você não vai morrer, está me ouvindo?
Às vezes, ficava me perguntando como fui capaz de fazer com que
ela se importasse tanto. De qualquer forma, era grata por isso. Era grata
pela minha amiga.
— Alto e claro — respondi.
Ela sorriu e pareceu uma tigresa vitoriosa ao fazer isso.
— Ótimo.
Nós tomamos nossos cafés em silêncio. O tempo inteiro, Nathan
parecia carimbado no fundo de minha mente. O conforto de seus braços
ainda era como um aperto fantasma, mas a tensão de seu corpo quando
percebeu sobre o que o pesadelo se tratava, estava me deixando inquieta. Eu
falei algo, enquanto sonhava? Ele ouviu eu implorar por sua mãe?
— No que está pensando que está deixando essa ruga horrorosa em
sua testa?
Imediatamente, meus dedos percorreram a marca em minha testa.
Olhei para minha amiga, aquela que escolheu ser minha amiga
mesmo quando não tinha permissão de ser quem era de verdade. A que me
protegeu e fez questão de contribuir para que eu vivesse o máximo possível.
Que me levou para o Lago para que eu fizesse mais amigos. A garota que
encarava feio qualquer um que sussurrasse meu nome pelas minhas costas.
Serena era minha amiga.
Ela era confiável. Sabia que era.
Então por que eu estava mentindo?
— Você não pode contar a ninguém. — Uma de suas sobrancelhas
se arquearam em resposta, mas ela assentiu. — Eu tenho visto Nathan.
— Isso explica muita coisa.
— Tipo o que? — perguntei, curiosa.
— Tipo seus suspiros apaixonados quando ninguém está
olhando.
— Eu não faço isso!
Serena deu de ombros.
— Eu sei que não devo contar a ninguém — disse —, mas tenho
permissão para comentar? — Balancei a cabeça, fazendo que sim. Ela
colocou o café sobre a mesa e respirou fundo. — Acho que isso é um jogo
perigoso, Alyssa. Então, vou perguntar e quero uma resposta sincera. Que
merda você está fazendo?
— Por que é uma coisa tão grande eu e ele sermos amigos?
— Porque ele é imprevisível e irresponsável — Serena respondeu de
prontidão. — Eu sei que ele não deve ser uma pessoa ruim, Alyssa, mas ele
é problema. Começando pelo fato de haver Desertores caindo de árvores
atrás dele.
— Há Desertores caindo de árvores atrás de mim também —
retruquei, irritada.
— Eles querem te matar, mas querem Nathan ao lado deles. É
diferente.
— Nathan nunca desertaria.
Serena pareceu pensar sobre isso. Por fim, ela apenas deu de
ombros.
— Digamos que isso não seja idiotice — ela se rendeu. — O que
vocês são? Amigos?
Meus dedos tamborilaram pelo mármore em um tique nervoso.
— Acho que sim — falei. — E ele também me treina.
— Por isso você esteve tão melhor nos últimos dias.
E porque, já que eu estava abrindo minha boca e contando sobre
Nathan, decidi abrir minha boca de vez. Porque eu precisava que alguém,
além de Nathan, me ouvisse e me ajudasse a entender tudo, então contei
toda a verdade à Serena. Contei sobre a força extra e a relativa agilidade.
Não era como se eu fosse tão boa quanto um Protetor ou Desertor, mas
também não era tão insignificante em uma luta contra eles. Não mais.
Quando terminei, Serena estava encostada em sua cadeira, mãos
atrás da cabeça. Ela abriu e fechou a boca algumas vezes antes de
finalmente ter certeza do que dizer.
— Eu estou muito feliz por você ser mais forte do que pensávamos.
Muito mesmo. Só estou tentando entender porque ele não quer que os
outros saibam sobre isso.
— Ele não me contou detalhes, mas acho que Ravenna o machucou
de alguma forma, tentando descobrir se ele tinha herdado alguma habilidade
de Diana. Acho que queria impedir que o mesmo acontecesse comigo.
— Ravenna não faria isso.
Soltei uma risada seca.
— Eu mal conheço a mulher, mas tenho certeza de que faria sim —
disse. —Pelo que soube, ela não é uma pessoa com muitos escrúpulos.
A lembrança de que ela queria me colocar para dormir por dezoito
anos, fez meu sangue ferver de raiva. Quem ela pensava que era para
decidir algo assim?
— Só, tome cuidado, tudo bem? — ela disse. — Com Nathan.
A porta da minha cabana se abriu, sem que ninguém batesse antes.
Minha mãe entrou e encarou eu e Serena tomando café juntas. Por sorte,
Serena parou de falar assim que a viu. Hoje, minha mãe não estava usando
os couros de guerreira, o que significava que o que quer que tivesse que
fazer, não era algo relacionado aos afazeres dos Protetores. Com calças
jeans e uma blusa de tecido azul leve, ela estava linda e continuava
intimidadora.
Parte de mim queria ganhar um daqueles couros, como os que
Serena vestia. Eram bem bonitos. E talvez eu pudesse me sentir mais como
parte daquele povo.
— Bom dia, Serena. — Minha mãe deu um sorriso à minha amiga e,
então, veio até mim e me deu um beijo no rosto. — Bom dia, filha.
Serena cumprimentou minha mãe com um sorriso largo e sincero.
Minha mãe apertou meu ombro, chamando minha atenção.
— Nós precisamos conversar.

— Alyssa? — meu pai me chamou, parecendo preocupado. Acho


que meu silêncio profundo, pelos últimos dez minutos, tinha algo a ver com
isso.
Ergui meus olhos para encontrá-lo sentado, as mãos sob o queixo, os
cotovelos apoiados nas coxas e minha mãe em pé, em um canto da cabana,
parecendo tão desolada quanto, enquanto me contava a história de como seu
irmão tinha tido um filho com uma humana antes de morrer.
Um irmão que eu não sabia nada sobre, a não ser que estava morto.
Um primo que aparentemente existia, mas a quem eu nunca fui
apresentada, porque Akantha fez questão de escondê-lo sob seu manto,
como um animal indesejado.
— Como descobriu? — perguntei à minha mãe.
— Quando vi o garoto ao lado dela, sabia que havia algo que ela
estava escondendo. Ele não tem sangue puro, como Akantha preza.
Precisaria haver uma boa razão para que ela tivesse o mantido ao seu lado.
— E o meu tio, — eu a encarei — seu irmão?
— Você sabe o que aconteceu. — Dessa vez, seus olhos
encontraram os meus, e eu podia sentir a dor, o ressentimento como se
fossem parte de mim mesma. — Meu irmão, Hektor, morreu aos 22 anos.
Eu nunca soube que ele tinha um relacionamento com uma humana.
— Ele não contou a você?
— Ele não confiava em mim, Alyssa — sua voz parecia ácido.
Neste momento, vi o quanto minha mãe sentia falta da família sobre a qual
ela nunca falava. E como se ressentia por não ter feito melhor por eles. —
Aos 17 anos, eu era apenas uma arma a ser manejada por Akantha, e eu
permitia que fosse assim. Ele sabia disso. Provavelmente não queria nossa
mãe envolvida em seu relacionamento e na vida da humana.
— Então, aquele garoto — falei — que estava ao lado de Akantha
quando chegamos, ele é meu primo?
Minha mãe assentiu.
— Nós não sabemos tudo ainda, filha, mas iremos descobrir — meu
pai disse. — Apenas imaginamos que contar a você, seria uma prova de
como apreciamos que esteja envolvida na vida desta família.
Eu sorri para meu pai.
— Obrigada por isso. Por escolher me dizer a verdade.
Minha mãe deixou seu canto da cabana e veio até nós, parecendo tão
triste quanto quando fui atacada poucas semanas atrás.
— Pretendo fazer algo sobre isso. Sobre Jonnah.
Jonnah. Meu primo.
— Ele sabe a verdade? — perguntei.
Minha mãe ponderou, sentando-se ao lado do meu pai.
— Provavelmente, mas não sei qual versão da verdade, Akantha
pode ter contado a ele.
Bem, isso fazia sentido. Pelo pouco que vi da mulher, minha vó, era
que ela não parecia jogar limpo. Honestidade não devia ser seu forte, assim
como compaixão não era.
— Mas você irá conversar com ele, Jas — meu pai disse, pegando a
mão da minha mãe em um gesto de conforto. — Você irá dizer a ele o que
precisa ser dito.
Minha mãe pareceu indecifrável ao dizer:
— Não a entendo. Não consigo encontrar um motivo pelo qual ela
possa ter acolhido um filho meio-sangue do meu irmão. — Ela suspirou e
olhou para meu pai; — Quando decidi ficar com você, sabe o que me disse?
Que eu e meu irmão decepcionamos ela, por ter escolhido humanos como
parceiros e, assim, “manchar” nossa linhagem. Ela disse que iríamos diluir
o sangue da próxima geração, tornaríamos os próximos Nephus mais fracos
e, por isso, ela tinha vergonha. Disse que estava feliz que um de nós já não
éramos um problema para ela. — Minha mãe parou, respirou fundo, como
se para conter as lágrimas ou a raiva. — Ela estava feliz que meu irmão
havia morrido e não poderia fazer as mesmas escolhas que eu. Feliz com o
filho morto.
Mais uma vez, eu estava feliz por não ter crescido perto desta
mulher. Mas pensei em Jonnah e cheguei à conclusão de que não queria
nem imaginar pelo que ele devia ter tido que suportar.
— Eu nunca soube que meu irmão tinha se relacionado com uma
humana até então — minha mãe se lamentou.
— Nós vamos falar com Jonnah então?
Meu pai assentiu, mas minha mãe disse:
— Eu vou falar com ele. Quero entender sua situação, descobrir o
que sabe sobre sua própria origem. — Eu abri a boca para interferir, mas
minha mãe apenas continuou. — Eu lhe apresentarei a Jonnah, Alyssa. Mas
primeiro quero conversar com ele sozinha, para que as coisas pareçam
menos... confusas.
Suspirei.
Fazia sentido minha mãe querer isso. Jonnah era seu sobrinho e meu
primo, mas não o conhecíamos. Não sabíamos que tipo de pessoa Akantha
criou e, apesar de esperar o melhor, as esperanças não eram suficientes.
Precisávamos de certezas. Por isso, deixei que meus pais decidissem o que
fazer.
Meu trabalho aqui era um só: treinar o suficiente para sobreviver e,
então, estar pronta para matar o inimigo. Eu era uma arma para eles
empunharem e isso já era trabalho o suficiente.
Então, quando a conversa foi finalizada entre meus pais, saí para
meu treino diário. Meus músculos protestaram a cada passo, mas já me
sentia mais forte do que antes, como se o poder em meu sangue fosse uma
canção baixa, mas clara. Faltava menos de cinco meses para meu
aniversário de 18 anos, talvez esse fosse o motivo. O que quer que
acontecesse após isso, poderia estar começando a se manifestar aos poucos.
Quem saberia, afinal? Ninguém parecia ter respostas do que me tornaria e,
às vezes, temia que fosse algo muito diferente que eu não poderia me
reconhecer mais. O preço de sobreviver poderia ser caro.
Mas eu logo dispensei esses pensamentos. Eu deveria me preocupar
mais com o fato de não me tornar coisa alguma, do que com as
possibilidades esperançosas do que poderia me tornar. Eu precisava treinar.
Precisava ser a arma mais afiada que já existiu se queria sobreviver. E era
isso que pretendia fazer.
— Eu estava pensando em começar a rastrear você para poder vê-la,
Fidly.
A voz atrás de mim foi quase que um mau presságio.
— Sua mãe tem feito um bom trabalho a mantendo longe de mim.
— Virei-me para encontrar a ruiva em couros claros, quase cor caramelo.
Eu não gostava dessa mulher. Não gostava nem um pouco dela e não
estava nem aí se mal a conhecia. Sempre que olhava para ela, tudo o que via
era a pessoa que se recusava a me chamar pelo nome, ou alguém que
pensou ser uma boa ideia me colocar em um coma por 18 anos. E pior: a
pessoa que havia machucado Nathan a ponto de ele não querer estar ali.
Então não fui nada agradável ao dizer:
— Eu não culparia minha mãe por isso.
Ela me analisou atentamente, dos pés à cabeça.
— Como estão indo os treinos?
— Bem.
Ela assentiu com preguiça.
— Espero que esteja sendo de alguma serventia.
— Claro — forcei-me a dizer.
Comecei a voltar a andar, ignorando sua análise estreita.
— Seria interessante — ela disse e eu parei a contragosto. — Se
houvesse algo em você que a fizesse excepcional.
Dessa vez, quando me virei para encará-la, minha análise sobre
Ravenna foi tão fria quanto a que ela me direcionou.
— Ser a Fidly não me faz excepcional o suficiente? — retruquei.
— As demais Fidlys seriam prova o suficiente que não — ela
rebateu. — Todas tiveram mortes terríveis.
Eu engoli em seco, mas não a deixei perceber meu desconforto. Meu
medo.
— Bem, então eu deveria concordar com você que ser excepcional
seria, de fato, muito interessante.
Ravenna assentiu, passando as longas unhas pelo couro de seu
casaco, próximo à garganta.
— Acredito que mais alguns treinos confirmariam a teoria. Ou não.
Teoria. Ela tinha uma teoria sobre mim.
Ah, merda. Ela sabia. Ou desconfiava.
Nathan me disse para ser discreta e não deixar que ela soubesse. Eu
nem ao menos contei aos meus pais. As únicas pessoas que sabiam eram eu,
Serena e Nathan. Mas talvez... talvez meu treino com Lirya tenha levantado
perguntas. Eu pude ver nos olhos da loira que ela tinha percebido algo
diferente.
Respirei fundo. Ela não me machucaria. Não poderia.
Eu precisava ser uma arma. Eles queriam que eu fosse uma arma,
não é? Então ser excepcional apenas contribuiria para isso. Ravenna não me
faria ter medo de ser meu melhor possível.
— Quem sabe — falei. — Preciso ir para o treino agora, Jasper não
gosta de esperar. — Dei uma última olhada nela. — Talvez eu me torne
excepcional, afinal.

Naquela noite, quando encontrei meus pais para jantar, Jonnah


estava sentado à mesa, parecendo deslocado dentro da pequena cabana. O
corpo do garoto mal cabia na cadeira, imenso e cheio de músculos. Fechei a
porta e me aproximei da mesa. Seus olhos cor de mel, como os da minha
mãe, encontram os meus com certa surpresa.
— Olá — cumprimentei.
Observei meu primo, enquanto ele se levantava da mesa e pegava
minha mão em um ato inesperado. Sua pele era negra, um marrom escuro, e
sem seu casaco, pude ver a tatuagem dos Protetores em seu bíceps
esquerdo. Seu cabelo era raspado rente à cabeça, deixando seus traços
definidos e retos mais evidentes. Com o maxilar marcado, o nariz reto e
largo e os lábios grossos, Jonnah não poderia ser considerado menos do que
esplêndido. E alto. Muito alto. Minha cabeça mal tocava seu ombro.
Eu apertei sua mão.
— É um prazer conhecê-la formalmente — ele disse. — Irei lutar e
proteger, com sangue e fogo — ele citou as palavras honrosamente, os
olhos fixos nos meus.
Abri um sorriso gentil para ele.
— Espero que não chegue a tanto e possamos ser família em
primeiro lugar.
De longe, pude ver meu pai assentir, parecendo orgulhoso e feliz
com nosso encontro, mas minha mãe era uma estátua, que apenas nos
observava atentamente.
Jonnah também sorriu.
— Sim, isso também.
Nós andamos até a mesa e ele puxou uma cadeira para que eu
sentasse. Cavalheiro. Não esperava isso de alguém criado por Akantha.
— Então, do que estavam falando? — perguntei, enchendo meu
prato de comida.
Jasper tinha sido, incrivelmente exigente hoje, e os hematomas
novos em minhas costelas e pernas eram provas disso. E agora eu estava
morrendo de fome. Literalmente morrendo. Treinar o dia todo,
especialmente com espadas de madeira, era uma substância poderosa para
meu estômago que agora roncava pedindo comida. Lutar com a adaga era
algo completamente diferente de lutar com o peso de uma espada.
— Jonnah estava nos contando um pouco sobre sua infância — meu
pai respondeu.
— E como foi? — perguntei. — Crescer com Akantha deve ter sido
no mínimo desafiador.
Meu primo assentiu, sério.
— Quando era apenas uma criança, eu mal a via. Eu era treinado por
Protetores.
— Você se lembra da sua mãe? — minha mãe perguntou.
Ele negou, balançando a cabeça.
— Eu estive sob os cuidados de Akantha desde que posso me
lembrar — disse. Ele bebeu um pouco do vinho. — Até hoje o nome do seu
irmão, nunca tinha nem ao menos sido citado.
— Você não sabia quem era seu pai? — ele negou, com um balanço
simples de cabeça. — E o que Akantha dizia sobre o parentesco de vocês?
— Não falava sobre parentesco. Apenas disse que eu era um
Protetor que precisava de apoio e ela me daria isso — respondeu. — Na
época soava como se nenhum dos meus pais me quisessem, como se ela
tivesse se dado ao trabalho de cuidar de mim porque ninguém mais faria.
Mas ela nunca foi nem um pouco carinhosa comigo. Definitivamente,
nunca fui tratado como parte da família.
— Akantha não é carinhosa — minha mãe disse. — E eu não
acredito que sua mãe tenha apenas dado você a ela. Pelos meus cálculos,
Hektor já estava morto quando ela te encontrou, mas meu irmão não teria
escondido seu relacionamento com alguém que, simplesmente, entregaria o
próprio filho.
Jonnah parou de comer e se encostou na cadeira. Calmo e... feroz.
— O que quer dizer, Jasmine?
Minha mãe tomou um longo gole de vinho.
— Quero dizer que Akantha gosta de criar os seus, porque não quer
que eles sejam nada menos do que perfeitos para os propósitos dela. Você,
sendo criado como humano, nunca poderia cumprir nenhum propósito que
ela poderia ter em mente. — Minha mãe fez uma pausa, pensando um
pouco sobre o que diria em seguida. — Akantha não permitiria que nada
ficasse em seu caminho quando levasse você para a Grécia.
— Está dizendo que ela matou minha mãe para ficar comigo? — sua
voz era baixa e calma, mas pude sentir que em seu interior, Jonnah estava
tudo, menos calmo.
Engoli em seco. Akantha teria matado uma humana inocente?
Percebi que, assim como minha mãe, Jonnah foi criado para ser um
guerreiro perfeito. Poucas emoções. Sua reação era para o campo de
batalha, contra o inimigo, nunca por questões pessoais. Ele devia ser uma
rocha, como Akantha desejava.
E foi provavelmente por isso que minha mãe o observou de perto,
com atenção. Porque apesar de se preocupar com o garoto que descobriu ser
seu sobrinho e querer ajudá-lo por respeito ao seu irmão, Jonnah ainda era
um estranho treinado por Akantha.
— Nós não sabemos de nada ao certo, Jonnah — meu pai disse. —
Você viu como Akantha reagiu hoje, não será fácil conseguir maiores
informações dela.
Então eles haviam a confrontado. Eu gostaria de ter visto isso.
— Ela nunca me tratou como neto dela. Não que eu devesse ficar
impressionado por isso. Meu sangue não é puro, afinal.
Ergui minha taça de vinho para ele.
— Aos impuros. — Ele se virou para me encarar e um leve sorriso
cresceu em seus lábios. Ele tocou sua taça na minha. — Porque é melhor ter
sangue humano do que ser uma megera.
Ele soltou uma risada baixa. Por fim, decidimos deixar o assunto
pesado para depois. Eu queria conhecê-lo. Saber como tinha sido sua vida e
como ele era, quem tinha se tornado. Quais eram seus gostos e ideais.
Nós conversamos por horas e, com o tempo, Jonnah começou a
parecer menos... formal. Sua postura, apesar de impecável, tornava-se mais
aberta e percebi que, assim como nós, ele também queria nos conhecer.
Talvez estivesse feliz com a possibilidade de ter uma família.
— Eu sei que todos falam com você sobre as responsabilidades e o
que você deve fazer, mas eu acho que nada disso realmente importa — ele
me disse mais tarde quando estávamos sentados no sofá e meus pais
estavam terminando de lavar a louça.
Eu o encarei, curiosa.
— E o que importa?
— O que importa é que você viva, do jeito que melhor te satisfazer.
Ele abriu um pequeno sorriso e eu sorri de volta. Talvez ele tenha
sido o primeiro Protetor que não me disse o quanto sobreviver era
importante para que eu pudesse cumprir meu destino. Ou que eu precisava
me esforçar para conseguir chegar até lá. Não. Jonnah teve o cuidado de me
ver como uma pessoa, e não uma promessa.
— Obrigada — disse, com toda a sinceridade do meu coração.
Ele apertou minha mão.
— Obrigado por me acolher — ele acrescentou. — Eu nunca tive
uma família antes. É bom ver que talvez eu possa ter isso aqui.
Eu encarei seus olhos cor de mel, como os da minha mãe. Como os
do pai que ele nunca conheceu.
— Você já tem.

Naquela noite, quando voltei para minha cabana, me sentia tão leve
quanto uma pluma. Esqueci-me completamente do meu encontro com
Ravenna ou tudo o que envolvesse esse mundo de Protetores e Desertores.
Peguei o livro que Nathan tinha começado a ler e folheei as páginas
procurando minhas partes favoritas. Apesar de não querer admitir que
estava ali, relendo um livro já lido, apenas para comentar com o garoto de
olhos azuis, que pareciam tatuados em minhas pálpebras, era exatamente o
que eu estava fazendo. O tempo passou rápido, no entanto. Logo meus
olhos ficaram pesados e o cansaço ameaçou me tirar a consciência.
Eu tentei ficar acordada, porque havia tantas coisas que queria
contar ao Nathan. Ele com certeza teria algum comentário engraçado que
pudesse aliviar as descobertas recentes. Era engraçado que ele houvesse se
tornado uma pessoa que eu aguardava ansiosamente para poder conversar e
eu sabia que não era apenas o fato de eu querer beijá-lo. Era mais.
Nathan era meu amigo.
Mas quando adormeci no sofá às 3:00 da manhã, ele ainda não havia
aparecido.
Ele tão pouco apareceu nas quatro noites seguintes.
— Talvez ele esteja em alguma missão — Serena me disse e bateu
em meu cotovelo para que eu o erguesse mais e posicionasse a espada de
forma correta. Espadas. Eu, definitivamente, odiava espadas. São pesadas e
arcaicas. E eu era péssima usando elas.
Encarei a garota do outro lado do ginásio de treinamento. Seus
cabelos loiros estavam presos em um coque que a fazia parecer ainda mais
raivosa.
— Aposto que Lirya sabe.
Serena arqueou uma sobrancelha para mim.
— Está com ciúme, Alyssa? Pensei que vocês eram apenas amigos.
Grunhi de raiva, jogando a espada para o lado.
— Não estou com ciúmes, estou com raiva.
Serena não respondeu, mas me lançou um olhar de conhecimento.
Como se soubesse que eu estava mentindo. Mas não era uma mentira. Eu
realmente estava com raiva. Ódio. Porque ele sumiu há cinco dias e nem
pensou em deixar um maldito recado. Até onde eu sabia, Nathan poderia
estar morto, já que todos nesse lugar se recusavam a reconhecer sua
existência.
Todos, menos Lirya.
— Eu ainda acho que ele pode ter ido em alguma missão — Serena
insistiu. — Use essa, será mais fácil. — Ela pegou outra espada, uma menor
e mais leve e me entregou. — Muitos Desertores estão chegando no
território para caçar você.
Que ótimo.
Isso queria dizer que mais humanos estavam sendo atacados por
sádicos sem alma, simplesmente porque estavam vivendo suas vidas onde
os Desertores procuravam por mim.
— E se algo tiver acontecido com ele?
Serena bufou uma risada.
— É o Nathan, Aly. É o melhor Protetor que já vi lutar. Uma vez ele
foi esfaqueado durante uma missão e, ainda assim, conseguiu matar seis
Desertores sozinhos. Existe um motivo pelo qual Ravenna permite que ele
viva, sem dar muitas explicações de suas ações. É porque ele é bom. Um
dos melhores.
Suspirei.
— Eu odeio que ele tenha simplesmente sumido.
Serena bateu sua espada contra a minha, com força.
— Isso é porque você gosta dele.
Revirei os olhos, mas não neguei.
Eu estava cansada de gostar de Nathan Cross.
Do outro lado do ginásio, Lirya dava uma risadinha, enquanto me
observava e, como resposta, levantei um dedo do meio para ela.
Era um fato. Eu tinha voltado a ser criança.

Depois do treinamento mais exaustivo que já tive desde que


cheguei, meus braços estavam dormentes e meus ombros estavam
doloridos, mas no final, fui capaz de empunhar uma espada corretamente.
Pelo menos uma vitória.
Caminhei pela margem do lago sozinha, ignorando o jantar. Eu não
estava com fome, o que era inédito. Os boatos de hoje eram que mais
Desertores chegaram à cidade e agora rondavam a floresta. Roman me disse
que eu não deveria me preocupar porque eu estava segura, mas e quanto a
todos os outros lá fora? E os humanos que não tinham absolutamente nada a
ver com esta guerra? Eles nem ao menos sabiam que havia algo
sobrenatural para se temer. Ainda assim, eram vítimas deles diariamente.
Porque os Desertores se favoreciam do caos. Da dor. Do medo. Era
parte do que eram e do que precisavam. E os humanos... bem, os humanos
eram um alvo fácil.
Mais e mais Protetores deixavam o Outro Lado, indo em missões de
ataque para recuperar a paz na cidade. Ao fim do dia, os Protetores mais
jovens eram maioria aqui, enquanto os mais velhos deixavam a segurança
desta dimensão para lutar por pessoas, que nem ao menos sabiam de suas
existências.
E quando me refiro a “mais velhos”, quero dizer Protetores com
idades próximas a da minha mãe. Era raro se encontrar um Protetor com
mais de cinquenta ou sessenta anos. Roman me disse que este era um estilo
de vida perigoso e não muito estável. Muitos morriam cedo.
A água do Lago tocou meus pés descalços e eu suspirei
pesadamente. Tanto mudou em tão poucos meses, e ser a razão pela qual,
tantas pessoas estavam em perigo lá fora, era perturbador. Como se fosse a
coisa mais egoísta que já fiz, porque eu estava aqui dentro. Estava segura,
enquanto humanos eram atacados e Protetores eram feridos.
A borda do Lago se tornou mais estreita, quase adentrando a
floresta. Ali, perto das árvores, estava o local por onde cheguei. Onde a
água mais parecia um espelho e podia te levar de volta à dimensão humana.
Girei sobre os calcanhares, assistindo a água do Lago ir e vir com
leveza. O azul tão familiar se mesclar com a borda da floresta de um lado, e
com a rocha da montanha do outro.
Então, eu o senti antes de vê-lo.
Nathan estava saindo da floresta e indo em direção ao Lago, onde
poderia fazer a passagem de volta para a dimensão original. Seu cabelo
estava todo despenteado, como se ele tivesse passado as últimas duas horas
o puxando. Suas roupas de couro escuras o faziam parecer sombrio. E lindo.
Ele era tão malditamente lindo. Por longos segundos, precisei lembrar
porque estava com tanta raiva dele.
— Nathan! — gritei.
Ele se virou no mesmo segundo. Seus olhos pareceram assustados
ao me ver. Então, ele olhou para trás, entre as árvores, e pude ver os cabelos
loiros refletirem o luar.
Ah. Ele estava com Lirya.
Minha raiva se intensificou, mesmo que eu não tivesse nenhum
direito de ficar brava com o que Nathan fazia em suas horas livres. Ou
melhor, com quem ele passava suas horas livres. Mas era uma raiva
irracional, então eu não liguei ao fuzilar ambos.
A loira descarada lançou uma piscadela para mim e sumiu em meio
às árvores.
Eu voltei a olhar o garoto de olhos azuis. Ele me fitava, os olhos
vazios. Depois de um segundo, enquanto tentava me aproximar mais para
podermos conversar, ele se virou e começou a ir em direção à água, como
se eu não passasse de um obstáculo que ele ignorou com sucesso.
— Ei! — gritei, andando mais rápido.
Nathan parou como se eu tivesse puxado uma corda que o prendia.
Seu corpo todo ficou tenso quando me aproximei.
Ele me encarou.
— Volte para sua cabana, Alyssa.
Uma brisa leve balançou meus cabelos soltos, enquanto suas
palavras cortaram pela noite.
— Você sumiu — minha voz era quase um sussurro, seu olhar
pesado tirando toda minha força de vontade.
Ele me olhava como se eu fosse uma mentira. Como se mal pudesse
me encarar. Meu estômago protestou em resposta, ficando enjoado. O que
diabos mudou em menos de cinco noites?
— Volte para a sua cabana — foi tudo o que ele disse, antes de
mergulhar na água e sumir.
Ah, não mesmo!
Se ele iria me tratar como merda, então pelo menos teria que me dar
um bom motivo para isso. Há apenas quatro dias, ele estava me abraçando,
enquanto eu dormia para que um pesadelo não me assombrasse e agora...
Agora isso?
Pulei na água atrás dele, sem me preocupar com a regra que estava
quebrando. Nem pensei direito. Fique dentro do território, minha mãe
disse. Saí da água com uma respiração aguda e logo que meus olhos se
abriram, não existia mais o brilho sobrenatural de magia do Outro Lado.
Aqui, o mundo parecia mais fosco do que eu me lembrava e a noite mais
escura.
Caminhei rapidamente para fora da água, quase completamente
seca, e corri em direção às árvores. Aqui, o território não era protegido. A
casa no Lago, sim, mas entre as árvores densas da floresta, qualquer
Desertor poderia me encontrar.
Ok. Talvez isso tenha sido estúpido. Mas eu estava tão irritada, que
enfiaria a cara de um Desertor na lama, antes que me tocasse.
Eu estava correndo pelas árvores quando vi Nathan, alguns passos à
frente se virar para me encarar, completamente horrorizado ao me ver.
— Que merda você está fazendo, Alyssa? Aqui não é seguro!
— Eu não me importo! — gritei de volta. — Você não pode agir
como um idiota e virar as costas para mim!
Ele pareceu incrédulo. Sua cabeça tombou para trás e ele praguejou
olhando para o céu.
Ele estava bravo? Tudo bem, eu estava furiosa.
— Você não pode falar comigo mais? Não sou digna da sua preciosa
atenção, agora que voltou a transar com Lirya? — cuspi as palavras. A raiva
queimou minhas bochechas e, talvez, Serena estivesse certa. Talvez eu
estivesse com ciúmes.
Ele estalou a língua, puxando os cabelos para trás.
— Você é impossível! — ele rosnou. Nathan andou até mim,
procurando entre as árvores qualquer possível ameaça. — E eu não estou
transando com ninguém. Agora, volte para o Outro Lado, Alyssa.
Se o problema não era Lirya, então o que era?
— Se vai fingir que não me conhece, Nathan, tenha a decência de
me dizer o porquê.
Suas mãos agarraram meus braços e me fizeram virar de volta para
o Lago.
— Volte. Para. O. Outro. Lado — ele rosnou novamente, agora mais
perto. — Agora.
Eu afastei suas mãos de mim com um tapa.
— Pare de me dar ordens!
— Pare de ser estúpida!
Eu cerrei meus olhos.
— Você que é um estúpido egoísta e idiota! — eu gritei. — Você
sumiu por cinco noites, Nathan! Cinco noites. Não me deu notícias e
ninguém naquele lugar parecia ter alguma informação sobre você. Bem,
ninguém além de Lirya, aparentemente.
— O que isso quer dizer?
Revirei os olhos.
— Não importa. Eu não dou a mínima — retruquei. — A questão é
que você sumiu e, até onde eu sabia, poderia muito bem estar morto.
— Como pode ver, eu não estou. Agora volte para o Outro Lado.
— Este não é o ponto.
Seus olhos azuis estavam mais escuros do que nunca. A pupila
dilatada. As sobrancelhas franzidas. Eu não ficaria impressionada se ele
fosse capaz de conjurar asas e sair por aí voando como um maldito anjo
vingador. Era isso o que ele parecia. Perfeito demais para ser humano ou
mesmo um Protetor.
— Minha vida não é da sua conta.
Suas palavras me atingiram com força. Eu me amaldiçoei por me
importar tanto. Por sentir tanto. Eu não conseguia explicar, porque eu
conhecia Nathan há pouco tempo, mas era como se eu estivesse perdendo
um amigo de anos. Porque eu sabia que era isso que estava prestes a
acontecer. Ele estava me afastando. Sabia disso, como sabia que um tapa na
cara doía. Nathan me olhou como se eu fosse algum animal perigoso ou
indesejado, mas mesmo assim, observou a floresta em busca de qualquer
ameaça.
— Eu — tentei controlar minha voz. Ele não precisava saber que
isso doía mais do que deveria. — Eu achei que éramos amigos.
Ele balançou a cabeça, firmemente.
— Não vai dar certo.
Eu cruzei meus braços sobre o peito, como se eu pudesse proteger
meu coração dele.
— Por que não? — minha voz foi quase um sussurro e quis me
xingar por isso.
— Porque eu não quero.
Uau. Ok.
Dei um passo para trás, e virei meu rosto para que ele não visse
meus olhos se encherem d’água.
Eu não me importo — falei para mim mesma.
Eu nem o conheço.
— Eu fiz alguma coisa? — perguntei mesmo assim, como uma
idiota.
Ele negou, balançando a cabeça.
— Então — eu disse. — Você apenas acordou um dia e decidiu que
não me queria como amiga? E quanto ao meu treinamento?
Nathan mordeu os lábios, recusando-se a responder.
— Achei que você, pelo menos, teria a decência de me dar um
maldito motivo! — Dei mais um passo para longe dele porque eu estava
prestes a esmurrar sua cara. — Você disse que me ajudaria. Disse que me
treinaria e me ajudaria a controlar o poder que eu nem sabia que tinha. Foi
você quem apareceu e propôs isso. Foi você quem veio até mim, noite após
noite. Então que merda está acontecendo?
— Eu não posso mais! — ele rebateu, furioso. — Eu mal consigo
encarar você! Eu não suporto ser seu amigo. É demais. Tudo isso é demais.
É difícil demais, Alyssa.
As lágrimas ameaçaram deixar meus olhos, mas eu as forcei a ficar
onde estavam.
— Isso é por causa dos pesadelos?
Era o único motivo em que eu conseguia pensar. Até aquela noite,
tudo estava bem, mas então o pesadelo me tomou. Um pesadelo sobre a
mãe morta de Nathan. Ele podia ter ouvido eu dizer algo e percebido que
era sobre sua mãe. Eu costumava conversar em meus sonhos. Ou ele
poderia ter apenas pensado a respeito. Nathan sabia sobre os pesadelos,
seria fácil assumir que as coisas que me aterrorizavam poderiam ter alguma
relação com Diana.
Pelo menos ele pareceu triste quando seus olhos fincaram nos
meus.
— É por causa de tudo.
Respirei fundo e assenti levemente. Era por tudo. Pelos pesadelos,
pelos Desertores e Vicenzo na minha cola, por quem eu era e o que
precisava fazer... Era tudo.
Eu não podia pedir para ele ficar. Para ele ir contra o que desejava e
ser meu amigo mesmo assim. Nós não pedimos esse tipo de coisa. Não era
como pedir uma carona ou um presente. Afeto não se exige. Afeto se
conquista.
— Ok — foi tudo o que eu fui capaz de responder, porque, de
alguma forma, Nathan conseguiu quebrar algo que eu nem ao menos sabia
que existia. Ou me negava a aceitar que existisse.
Eu estava me apaixonando por ele. Estúpida idiota. A vida não era
um livro, mesmo que as partes ruins se parecessem bastante com um.
Talvez fosse bom que estivesse acabando, antes mesmo de começar.
Mais tarde doeria mais.
Eu me virei para ir em direção ao Lago, mas ouvi os passos de
Nathan me seguindo e eu me virei abruptamente para encontrá-lo, logo
atrás de mim.
— Por que está me seguindo?
— Vou te levar até a passagem.
Eu pensei em me permitir o prazer de socar sua cara.
— Minha vida não é da sua conta — eu repeti suas palavras.
Nathan não pareceu nem um pouco atingido por elas.
— Só que é. Mantê-la viva é parte do meu trabalho e esta floresta é
perigosa.
Trabalho. Era isso que eu era para ele.
Eu não respondi. Voltei a andar, com passos mais rápidos. O silêncio
tomou todo o caminho, mas eu não fui muito longe para encontrá-lo, então
logo cheguei à beira do Lago.
Dei um passo em direção à água. Nathan segurou meu braço,
impedindo-me de ir além. Eu não queria encará-lo. Não queria olhar em
seus olhos azuis porque sabia que isso só iria piorar as coisas. Só iria fazer
sua rejeição doer mais profundamente.
Eu gostava demais dos seus olhos.
— Eu estou indo para uma missão longe daqui — ele disse para as
minhas costas, a voz estranha. Eu puxei meu braço do seu aperto e me virei
para encarar suas botas. — Eu não posso te ajudar mais, mas você já sabe o
suficiente para se aprimorar nos treinos. Jasper vai te ajudar também, confie
nele.
— Não finja que se importa — eu disparei, venenosa.
Nathan me ignorou.
— Melhore seu ataque com o lado esquerdo do corpo — exigiu. —
E não deixe que Ravenna perceba as mudanças em suas habilidades. — Eu
quase murmurei um “tarde demais”, mas o que acontecia em minha vida,
não era mais da sua conta. Ele deixou isso bem claro. Se eu era apenas
trabalho para ele, não iria torná-lo mais difícil. — Não a verei novamente
tão cedo.
— Bem, isso deve ser um alívio, então. Vê se não morre, enquanto
está longe.
Afastei-me dele e o deixei à beira do rio, enquanto tocava minha
mão direita sobre a água.
— Se cuide — ele disse, mas eu não o deixei perceber que ouvi.
Afundei na água fria, sendo transportada para o Outro Lado, como
se meu corpo fosse vento e a terra fosse apenas uma memória distante.
Eu não o olhei antes de ir.
Eu não disse adeus.
E quando meus pés tocaram as pedrinhas e meus olhos encaram o
céu brilhante e o ar mais leve, permiti que as lágrimas caíssem.

— Você não deveria ter atravessado, Alyssa.


A voz profunda me pegou de surpresa e eu dei um pulo, saindo da
água e enxugando minhas lágrimas. Então, encarei o homem que, em
muitos aspectos, parecia uma versão mais velha de Nathan.
— Eu — minha voz falhou e eu recomecei: — Eu precisava fazer
uma coisa.
— Precisava encontrar meu filho — ele disse, como se já soubesse.
Respirei fundo, a dor em meu peito dificultava meu raciocínio.
Deveria doer tanto assim? Pelo amor de Deus, ninguém morreu.
Nathan apenas decidiu me deixar fora de sua vida. Tudo bem. Eu podia
viver com isso.
Eu mal o conheço — repeti para mim mesma.
— Ele vai em uma missão — falei, como se esse fosse o motivo.
Brian assentiu. O homem parecia tão sombrio quanto o filho, mas
enquanto Nathan era sombrio e raivoso, Brian era sombrio e triste. Como se
respirar fosse um trabalho grande demais para valer a pena.
— Não saia novamente, Alyssa. Não é seguro.
Assenti.
— Vai contar aos meus pais?
Ele abriu um pequeno sorriso que deveria me fazer sentir melhor,
mas não fez.
— Acho que isso não se repetirá, certo?
Assenti novamente.
— Ótimo. — Ele começou a se virar para seguir seu caminho, mas
parou no meio do caminho e voltou a me olhar. — Deixe Nathan ir, Alyssa.
Será melhor assim.
De repente, senti tanta raiva que explodi.
— Por que você fala como se ele fosse o inimigo?
Brian parou e se virou para mim.
— O que disse?
Este homem não parecia do tipo que recebia muitas críticas. Ou
mesmo alguém que tinha muitas pessoas questionando suas atitudes. E eu
sabia que talvez eu deveria ficar quieta, mas eu estava cansada de todos
aqui tratando Nathan como se ele fosse uma bomba relógio, principalmente
o próprio pai.
— Eu disse que você trata Nathan como se ele fosse o inimigo,
como se de repente ele pudesse trocar de lado. Ele é seu filho! Eu não
entendo os outros o tratando dessa forma, mas eles não o conhecem. Mas
você? Você é o pai dele!
— Eu nunca disse que meu filho poderia desertar. Isso nunca nem
foi uma opção.
— Então por que diabos acha que é melhor que ele esteja longe?
— É o trabalho dele, Alyssa. Ele está fazendo o que deve.
Bufei uma risada.
— Ele está fugindo, Brian. Como você.
Dei as costas para o homem, tão cansada que minha cabeça doía.
Doía tanto quanto meu coração. Uma dor que talvez não fizesse sentido
sentir. Não havia razão. Eu não tinha motivo para sentir saudade de algo
que eu nunca tive. Nathan foi meu amigo por algumas semanas e nada
mais.
— E do que estamos fugindo, Alyssa?
Eu parei. Virei-me para encarar seus olhos esverdeados, nublados
por sombras. Sombras do que perdeu. Daquilo que nunca mais poderá
recuperar.
— Você e ele são iguais. Eu não te conheço, mas conheço Nathan,
mesmo que por pouco tempo — disse baixo, mas claro. — Vocês não
querem sentir. E tudo bem. Mas Nathan precisa de alguém que confie nele,
alguém que veja o que ele é e não só a casca que ele apresenta a todos. Você
é o pai dele, Brian, então dê um jeito de engolir seu medo e sua dor e o
ajude, porque ele está sozinho e odeia isso.
Dessa vez, não voltei a olhar para trás.
— Você está péssima — Jonnah disparou quando me encontrou na
entrada do refeitório. — Ao menos dormiu esta noite?
Bufei em resposta. Encarei a mesa onde meus pais estavam sentados
e, como sempre, ignorei o burburinho que me atingiu quando cheguei à
tenda. Pelo menos dessa vez, havia poucos adultos e a maioria eram
crianças curiosas e não exatamente maldosas. Aquela era a beleza das
crianças, certo? Não eram uns cuzões até que lhes ensinassem a ser.
Eu sorria para uma garotinha quando fui jogada para o lado, quase
caindo no chão, antes de Jonnah me segurar para minha bunda não
encontrar o chão. Olhei para cima e olhos castanhos puxados nos cantos me
analisaram de cima a baixo. Eu já a havia visto antes. A mulher era
estonteante e fria como a morte. Seu cabelo escuro e curto, era
completamente liso e brilhante, com uma franja que cobria toda sua testa.
— Está com pressa hoje, Gaia? — Jonnah disse, com um tom
zombeteiro.
Gaia não tirou os olhos dos meus e eu não sentia que era porque
estava impressionada. O rosto dela era completamente desprovido de
emoção.
— Desculpe, Fidly.
Abri um pequeno sorriso, esperando uma boa reação da mulher.
Nada. Ela poderia ser um robô.
Que merda acontecia com os Protetores que a maioria se tornava um
cubo de gelo?
— Me chame de Alyssa, por favor.
A mulher apenas assentiu rapidamente e saiu andando. Eu
acompanhei seus movimentos, até que ela chegasse a uma mesa com alguns
outros jovens. Entre eles, Lirya. Desviei o olhar imediatamente. Não
precisava sentir aquela raiva agora. Não quando percebi Akantha, indo em
direção aos meus pais, com um olhar assassino.
— Ah, merda — Jonnah murmurou, e eu podia apostar que ele
nunca havia usado aquela palavra antes.
Nós nos apressamos para chegar à mesa.
Os olhos de Akantha voaram imediatamente para Jonnah ao meu
lado.
— Pegue suas coisas e vamos embora — Ela ordenou. Jonnah não
se mexeu.
— Ele não vai com você, Akantha.
A mulher fuzilou minha mãe.
— E por que não, Jasmine? — ela rosnou.
— Porque você é uma mentirosa — eu disparei, sem conseguir me
conter. — E não é exatamente a melhor avó do mundo. Nem de longe.
Seu olhar raivoso era direcionado a mim, dessa vez. Eu podia sentir
em meus ossos que, caso não estivéssemos rodeadas de pessoas, ela teria
me batido. Ao meu lado, Jonnah ficou ainda mais tenso.
— Posso ver que Jasmine falhou em te educar como uma Protetora.
— A mulher que também era minha avó, estalou a língua. — Mas eu
poderia corrigir isso em alguns meses.
— Ela não é uma Protetora, é a Fidly.
O dono da voz foi silencioso ao se aproximar e não percebi quando
se acomodou atrás de mim, como um guarda-costas. Jasper teria ficado
decepcionado por eu ter sido pega desprevenida. Eu deveria estar atenta a
tudo à minha volta, mas Roman era muito bom em ser silencioso. Apesar
disso, não havia nada de calmo em sua postura. Apenas com um olhar
rápido para ele, podia vê-lo tenso, os ombros largos me cobrindo como uma
parede. Ele era menos musculoso que Nathan, mas deviam ter a mesma
altura. Alto e largo, Roman poderia assustar qualquer humano com a
seriedade em seus olhos chocolate.
Tecnicamente, a partir do que eu e Nathan descobrimos, eu era uma
Protetora. Apenas tinha o sangue mais fracionado.
Tão rápido quanto Nathan adentrou minha mente, eu o expulsei.
Não precisava me lembrar do garoto que fugiu de mim como se eu tivesse
alguma doença contagiosa. A dor que ele causou estava pronta para se
transformar em raiva e eu não podia enfiar meu punho em seu rostinho
bonito, então iria fingir que nada aconteceu.
— Eu sabia que você era dura com seus filhos — minha mãe disse.
— Sabia que nunca aceitaria, que eu e Hektor escolhêssemos viver de
qualquer forma que a contrariasse, por isso, não fiquei tão assustada quando
decidiu fingir que eu não era família mais, só porque me apaixonei por um
humano. Mas eu nunca, em toda a minha vida, pensei que você poderia
roubar o filho de alguém.
— Hektor está morto. Não roubei Jonnah dele.
Jonnah cerrou o punho, com a confirmação tão escancarada em
nossas caras. Até então, o que ele tinha era a palavra dos meus pais. Agora,
Akantha confirmou toda a história, como se não fosse nada demais. Ela
criou o neto, sem que ele nunca soubesse de onde veio, sem que nunca
soubesse quem era seu pai ou sua mãe, e agora lidava com essa informação,
como se estivesse debatendo sobre o que comer no jantar.
— E a minha mãe, Akantha? — Jonnah pronunciou as palavras com
dificuldade, mas sua postura era firme. Ele não recuaria. Não mais.
Akantha não poderia parecer mais entediada.
— Eu te livrei do fardo de ser criado por uma humana. Crescer
como um rapaz completamente comum. Deveria me agradecer por isso.
Meu primo tremeu ao meu lado, quase incapaz de se controlar.
— Se você a matou...
— Eu nunca disse isso — Akantha rebateu.
— Claro que não disse. Afinal, há uma lei quanto a isso, certo? —
meu pai interferiu. — Eu posso não ser um Protetor, mas estou
familiarizado com a lei de que, caso um Protetor fira, intencionalmente, um
humano inocente, há uma pena a ser paga.
Akantha exibiu os dentes.
— Humanos morrem o tempo todo. Não é minha culpa.
Jonnah rosnou. Aparentemente, sua mãe estava morta e Akantha
agia como se não fosse nada demais.
Eu estava me tornando uma pessoa terrível, porque de fato esperava
que a pena fosse algo bastante sério, como morte talvez. Eu poderia
facilmente me assustar com meus próprios pensamentos, se a mulher à
minha frente não parecesse tão desinteressada quanto possível.
Akantha sorriu para meu pai, exatamente como uma víbora faria se
pudesse.
— Pelo menos você aprendeu algo durante estes anos.
— Eu não irei com você. A partir de agora, não sou mais um
membro da família Nephus — Jonnah disse, os dentes trincados.
Akantha andou até ele, ficando cara a cara com o neto. Jonnah era
uns bons trinta centímetros mais alto que Akantha e, fisicamente, muito
maior que ela, mas a mulher poderia ser a rainha de todo o mundo se sua
postura fosse alguma indicação. Ela era arrogante, soberba e completamente
odiosa, mas sabia se posicionar de modo que ficasse difícil questionar seu
poder.
— Você não pode ser um Nephus de qualquer forma, Jonnah. Eu até
tentei, mas o sangue é poluído demais. Eu bem deveria saber. — Ela o
analisou de cima a baixo. — Sinto que perdi meu precioso tempo.
Eu trinquei os dentes observando Jonnah se encolher. Anos de sua
vida desperdiçados, tentando buscar a aprovação de alguém que nunca lhe
daria isso.
— Já chega, mãe — minha mãe ordenou se levantando e se
colocando entre os dois.
Akantha nem ao menos direcionou um olhar a ela.
— Ele não precisa ser um Nephus, porque é um Monroe — eu me
intrometi, olhando nos olhos de Jonnah. Olhos como os da minha mãe. Não
eram como os meus, mas eram os olhos da minha família. E Jonnah era
minha família também.
Minha avó escondeu bem a fúria com sua arrogância quando se
aproximou de mim lentamente. Roman me puxou para mais perto, mas eu
ergui o queixo quando Akantha chegou tão perto, que pude sentir sua
respiração em meu rosto. Parte de mim quis se encolher, mas eu não
sucumbiria.
Meu pai já estava ao meu lado também quando ela anunciou:
— Já que Jonnah não virá comigo, talvez eu devesse ficar mais um
tempo, para me certificar de que a minha outra neta mestiça seja capaz de
finalizar seu serviço. — Seus olhos, brevemente, encontraram Roman atrás
de mim. Como se só agora o enxergasse ali. — Será interessante quando
todas as cartas forem postas à mesa. E isso não vai demorar muito, certo,
Jasmine?
— Vá embora. Volte para a Grécia e nos deixe em paz — minha
mãe falou tão firme, que todas as mesas poderiam ouvi-la com clareza. Não
que houvesse muita dificuldade dada a boa audição dos Protetores, que
também já estavam interessados na discussão desde seu início.
— Em alguns meses, Jasmine. — Seus olhos estavam fixos em
mim, como duas adagas perfurando a pele e me mantendo no lugar. —
Quando tudo isso acabar, de um jeito ou de outro.
Akantha saiu batendo os pés, mas com a pose de uma rainha. Ela
nem ao menos pareceu perceber que Jonnah ainda estava ali quando passou
por ele, com a cabeça erguida e olhos flamejantes.
O ar de todo o refeitório pareceu ficar rarefeito nos últimos
segundos. Quando ela deixou o local de vez, finalmente parecemos capazes
de voltar ao normal. Minha mãe parecia prestes a arrancar sua adaga e ir
atrás de Akantha, mas meu pai colocou sua mão sobre seu ombro e a guiou
de volta para a mesa, chamando eu, Jonnah e Roman para acompanhá-los.
O resto do café da manhã foi, no mínimo, uma merda.

Quando cheguei ao treino com Roman, Jasper estava me esperando


com bastões de madeira e ordens firmes e claras. Eu estava mais do que
feliz com a mudança de cenário. As palavras de Akantha, não eram apenas
mais de sua ladainha. Eram uma promessa, talvez um lembrete do que
estava prestes a acontecer. Eu sabia o risco que corria se colocasse os pés
para fora da redoma, que era aquela dimensão. Sabia que o número de
Desertores só aumentava em volta do Lago.
Mas eu também sabia que se me permitisse sentir todo o medo
envolvendo os piores cenários possíveis, não sobraria nada de mim para
lutar. O medo me paralisaria e eu não teria utilidade alguma.
Por isso, engoli o nó em minha garganta. Eu não temeria a morte até
que ela me reivindicasse. Se me reivindicasse. Eu iria tentar vencer
Vicenzo.
— Pronta? — Roman perguntou, o bastão nas mãos.
Jasper queria saber quanto tempo eu poderia durar em uma luta em
que eu não tinha qualquer arma, além de mim mesma. Quanto poderia usar
do espaço ao meu redor para sobreviver. Por isso, estávamos treinando em
uma das clareiras próximas à montanha. Aqui, nós tínhamos o cenário para
uma luta e fuga e, como Jasper queria, eu não tinha arma.
Assenti para Roman e ele atacou de imediato.
Pulei para trás e chutei seu bastão, mas não consegui desestabilizá-
lo o suficiente para que Roman o soltasse. Então ele investiu contra mim
novamente e eu corri. Esmaguei a grama verde, enquanto corria e
amaldiçoei o sol por deixar tantos pontos cegos em minha visão.
A clareira era completamente limpa, com exceção de algumas
árvores ao redor e uma ou outra pedra no meio do caminho. Vi Roman
prestes a me alcançar e me joguei em uma árvore, escalando-a o mais
rápido possível. O que era bem rápido, porque, com a adrenalina do
treinamento tomando conta de mim, quase não conseguia conter meu
sangue Protetor de se sobressair ao sangue humano. Cada dia que passava,
aquele poder parecia se tornar mais meu e menos como uma herança
diluída. Eu estava cada vez mais perto de controlá-lo, mesmo sem a ajuda
de Nathan. Eu ainda passava a madrugada treinando escondida, repetindo
movimentos e tentando controlar aquela coisa dentro de mim, que me
tornava mais mortal.
Escutei Roman arfar e, por um segundo, pensei em deixá-lo me
alcançar, só para manter as aparências. Mas então me lembrei que não devia
nada a Nathan. Ele podia achar que esconder isso era uma boa opção, que
eu deveria temer as pessoas aqui, mas eu não queria. Não queria ser um
fracasso nos treinos. Não queria ser fraca ou insignificante, uma vergonha
para todos eles, que precisavam tão desesperadamente, que eu me tornasse a
melhor.
Os Protetores estavam cansados de lutar essa guerra sem sentido.
Essa guerra sem fim. E eu não podia culpá-los por isso.
— O que diabos... — Roman murmurou quando me encontrou no
topo da árvore.
Sorri da sua expressão embasbacada.
— Vai ficar aí para sempre, Alyssa? — Jasper gritou, do outro lado
da clareira. — Um Desertor a teria alcançado e este não seria o melhor
lugar para uma luta.
Bufei.
Nada nunca estava bom o bastante para Jasper. E era irritante que
ele sempre tinha justificativas plausíveis para isso.
Será que, nessa distância, ele conseguia ver meus movimentos?
Percebia a destreza com que me movia? A velocidade? Ou porque não
chegava à mesma velocidade dos Protetores, ele não via como algo
significante?
Roman pareceu superar sua confusão e começou a escalar a árvore
ao mesmo tempo que pulei sobre ele, derrubando nós dois no chão. Era para
eu receber o impacto da queda, caindo sobre o chão, enquanto eu o puxava
comigo, mas Roman conseguiu se segurar em mim e nos moveu para que
eu ficasse em cima dele, antes que encontrássemos o chão.
— Ai! — Roman resmungou, embaixo de mim.
Rolei meu corpo para o lado, saindo de cima dele.
— Desculpe. Mas a culpa é meio que sua — disse, dando de
ombros. Ao seu lado, o bastão estava jogado e esquecido. Corri para pegá-
lo e encontrei Roman bloqueando o caminho.
Eu arfei. Um segundo atrás, ele estava esparramado no chão.
— Você é rápida. E forte — ele reparou, como se estivesse me
contando que eu tinha duas cabeças e três olhos.
— Surpresa! — brinquei.
— Há quanto tempo?
Avancei em direção ao bastão, mas Roman me bloqueou novamente.
Tentei socar suas costelas quando ele agarrou meu braço direito, mas como
Nathan disse, eu precisava treinar mais o lado esquerdo do meu corpo.
Saber que ele estava certo, me deixou irada. Eu era quase incapaz de fechar
meu punho bem o suficiente para desferir um soco. Odiava que ele estivesse
certo quase tanto quanto odiava que ele tivesse partido.
Grunhi em frustração.
— Quanto tempo? — ele insistiu. Eu o empurrei para longe de mim.
— Algum tempo.
Ele quase pareceu não acreditar.
— Isso é incrível.
Dei de ombros.
— Menos conversa e mais ação, Roman! — Jasper gritou.
Roman avançou ao mesmo tempo que eu desviei. Mas então uma
ideia me atingiu. Parei de fugir. Quando ele pulou para me pegar, eu permiti
que suas mãos me puxassem e ele envolvesse seu braço em minha garganta.
Fingi estar desesperada para sair de seus braços. Caímos no chão, eu me
debatendo embaixo dele.
Lembrei-me das palavras de Nathan: “Você pode ser a menor nesta
luta, mas também pode ser a mais esperta.”. Permiti que Roman se sentisse
no controle, como se esta luta já estivesse acabada. Com um impulso do
meu quadril, dobrei minha perna e atingi o músculo de sua perna direita
com toda a força que tinha. O corpo de Roman ficou tenso e ele protestou
de dor. Nathan me disse que, se atingido corretamente, eu poderia causar
uma dor aguda e, talvez, até mesmo uma cãibra que deixaria o oponente
imobilizado, por alguns segundos. O aperto de Roman cedeu um pouco e
consegui dobrar minha perna para acertá-lo no estômago. Suas mãos
soltaram as minhas e eu soquei seu queixo, jogando-o para o lado e
correndo para o bastão.
Em um piscar de olhos, eu estava com o pedaço de madeira em
mãos.
Adrenalina consumia meus movimentos e minha respiração. Voltei
até Roman, apenas para lhe mostrar a arma.
— A arma é minha — inspirei, erguendo a pseudo-arma. — O que
quer dizer que, caso isso fosse real, eu já teria terminado isso. Eu ganhei.
— Percebi — ele murmurou, esfregando seu queixo avermelhado.
— Seu soco foi bem real, obrigado.
— Não seja um bebê chorão, Roman.
Ele me olhou feio, levantando-se do chão. Avançou sobre mim tão
rápido, que mal tive tempo de gritar. Ele me jogou sobre os ombros e
gargalhou quando gritei, agarrando-me às suas costas.
— Você imita um bebê chorão ainda melhor — ele murmurou.
— Me coloque no chão, Roman!
— Eu acabei de levar um soco no queixo. Meu orgulho está ferido.
Então não, obrigado.
Ele caminhou até Jasper, comigo pendurada em seu ombro,
enquanto eu o xingava de todo nome sujo que me lembrava.
Jasper apareceu ao meu lado, os braços cruzados sobre o peito,
observando minha cabeça pendurada próxima à bunda do Protetor. Era uma
bela bunda, mas a situação era vergonhosa.
— Você está dispensado, Roman — disse, tentando esconder um
sorriso sob a mão.
Roman me colocou no chão, rindo da língua que mostrei para ele, e
logo se retirou, esticando as pernas antes de sair, bagunçando meus
cabelos.
Sorri comigo mesma, satisfeita. Ele podia ter me jogado contra seu
ombro como se eu fosse uma boneca de pano, mas eu venci esse treino. Eu
malditamente, venci um Protetor treinado.
Meu sorriso morreu ao encontrar a seriedade dos olhos de Jasper.
— Eu já desconfiava — ele falou, vagamente. — Mas ainda assim,
estou impressionado.
Não sabia o que dizer, então apenas assenti.
— Mesmo assim, você não é tão forte quanto um Protetor,
provavelmente porque acabou de descobrir o que pode fazer, mas é rápida o
suficiente e esperta. — Jasper pareceu refletir, enquanto palavras
escapuliam por sua boca. — Estou curioso para saber quanto disso veio da
ajuda de Nathan. O garoto acabou provando que sabe mais do que apenas
matar, não é?
Pisquei, surpresa.
Como ele sabia?
— Eu...
— Não precisa mentir para mim, menina. Nathan não faz muita
coisa que eu eventualmente não descubra. Quando comentei com ele sobre
seu péssimo treino, vi em seus olhos que ele interferiria.
— Foi você quem contou?
Foi Jasper que disse que meu treino foi “vergonhosamente estúpido
como o inferno”. Ok, parecia algo que ele falaria mesmo.
— O garoto perguntou — ele respondeu, dando de ombros.
Mordi o lábio, irritada.
Eu nem sabia que Nathan mantinha contato com qualquer Protetor
além de, talvez, seu pai. Essas pessoas o tratavam como um pária, então
qual era a diferença de Jasper? Eu sabia que ele havia treinado o mais
jovem, mas eram próximos? E por que Nathan não me contou que mantinha
contato com o homem que estava me treinando? Bem, essa última era fácil.
Nunca fomos amigos de verdade, então ele provavelmente pensou que não
era da minha conta.
Mesmo assim, a curiosidade falou mais alto.
— Então você e Nathan mantêm contato? Sabe para que missão ele
foi?
Jasper me observou, atentamente, e eu tentei parecer o mais
entediada possível, frente às palavras. Eu não me importava. Estava apenas
curiosa.
— Os Protetores podem ser incrivelmente ignorantes quando
querem. Nathan foi um bom aluno e é um Protetor excepcional. Com sua
idade, eu não tinha matado metade de Desertores que ele matou. — Os
olhos castanhos de aço de Jasper, pareceram perder um pouco a frieza.
Apenas um pouquinho. Ele parecia quase... orgulhoso. — Nathan não é o
inimigo, mesmo que Ravenna o pinte como um. Ele é um garoto bom e
apenas quer ser livre.
— Livre desse mundo? — perguntei. — De ser um Protetor?
A cicatriz de Jasper, que um dia foi uma ferida provavelmente
mortal em sua garganta, foi iluminada pela luz solar quando ele inclinou a
cabeça para mim. Nesse ângulo e com essa luz, pude ver que mesmo a
tatuagem de chamas, que encobria o corte, não era capaz de ocultar sua
forma. Eu não sabia como Jasper havia sobrevivido àquilo, mas imaginava
que, se alguém conseguiria, com certeza seria o homem controlador e
mandão à minha frente.
— Por que se importa, menina?
Não quero me importar — queria lhe dizer.
Como faço para não me importar?
— Porque eu sou amiga dele — eu disse. Era a verdade. Eu era
amiga de Nathan, mesmo que ele não fosse o meu. — E não quero que ele
passe a vida sendo obrigado a fazer algo que não queira.
Assim como Roman, que se pudesse escolher, talvez não estivesse
aqui. Assim como Nathan, Roman possuía muitas resguardas quanto aos
Protetores e Ravenna em especial, mas mesmo assim, ele ficava. Roman
ficava porque era seu dever e, fugir disso, seria desertar e ser caçado como
o inimigo. Ele não tinha a regalia de fugir como Nathan, porque não havia
ninguém para defendê-lo, como Brian fazia pelo filho.
Pela primeira vez desde que conheci Jasper, vi a sombra de um
sorriso nascer em seus lábios pálidos. Quase imperceptível.
— Interessante — ele pensou, avaliando-me. — Nathan nasceu para
isso, para matar. Ele é terrivelmente bom nisso e cresceu para vingar a mãe.
Nathan nunca irá fugir disso, não até que Vicenzo esteja morto e enterrado a
dez palmos do chão. É o que ele é, mais do que o que ele quer ser.
Liberdade, para ele, é terminar essa vingança. Duvido que o garoto
descanse antes disso.
— E para onde ele foi? — questionei.
— Provavelmente para longe de distrações.
O que diabos isso queria dizer?
— Vicenzo está em Florença, certo? — perguntei, lembrando de
quando minha mãe contou que o primeiro Desertor foi preso em Florença
pela Guardiã que havia traído, mas depois de um tempo, conseguiu se livrar
e tomar a cidade, tornando-a sua própria casa. Jasper assentiu brevemente,
provavelmente se perguntando o porquê daquela pergunta. Eu logo matei
sua curiosidade: — Nathan poderia ter ido para uma missão lá?
— É improvável — ele disse. — Não enquanto você está aqui, há
poucos meses de seu aniversário de 18 anos. Mesmo Nathan, não faria algo
tão idiota.
— Você não sabe para onde ele foi? — perguntei, exasperada.
Apenas me fale logo.
— Somente Ravenna sabe das missões de cada Protetor. Mas duvido
que Nathan saia do continente. Pelo menos por enquanto.
Suspirei. Isso era melhor. Melhor do que ele ir para Itália.
Jasper se abaixou para pegar o bastão que deixei na grama.
— A dinâmica entre vocês é um tanto quanto interessante.
Eu o olhei, confusa.
— Que dinâmica?
— Essa preocupação um com o outro. — Ele colocou o bastão no
cinto, onde outras armas estavam embainhadas. — Nathan me encheu o
saco para saber como tinha sido seu treinamento quando chegou aqui. O
garoto sabe ser insuportável quando quer.
— Bem, pelo que vi ontem, ele já não está mais interessado em
saber.
Jasper arqueou a sobrancelha para mim.
— Não se deixe enganar pelas muralhas que Nathan ergue, sempre
que coloca algo naquela cabeça dura dele. Ele gosta de fingir que nada o
toca quando na verdade quase tudo o faz. E por algum motivo, Alyssa, ele
se importa com você. Não vejo outro motivo pelo qual insistiu tanto em te
ajudar.
Bem, pena parecia ser um motivo bom o bastante.
Eu não queria pensar em Nathan mais. Eu estava cansada de sentir
aquele aperto estranho e incômodo no peito sempre que ele era
mencionado.
— Estou dispensada? — perguntei.
Ele assentiu, dispensando-me com um aceno.
Dei meia volta e comecei a andar em direção às árvores, ignorando a
montanha que apenas me fazia lembrar de Nathan.
— Alyssa — ele me chamou novamente e me virei para encará-lo.
— Controle sua força. Se pensarem que é uma presa fácil, a surpresa virá a
calhar em uma luta de verdade.
Balancei a cabeça em concordância.
— Nathan me disse algo parecido.
Jasper me lançou um olhar, que parecia dizer que sabia muito bem o
que Nathan havia dito.
— Então, faça o favor de nos ouvir.

Caminhei para minha cabana aproveitando o ar limpo em meio às


grandes árvores, que devoravam o campo em volta de todo o território do
Outro Lado. Já era noite quando terminei de treinar com minha mãe usando
as adagas, espadas e pequenos objetos cortantes que não tinha ideia de
como se chamavam. Treinei por horas e mais horas. Serena me encontrou e
disse que ia à cidade averiguar algumas situações, mas logo estaria de volta.
Pânico me atingiu em cheio, mas ela disse que estava tudo certo e que, caso
encontrasse um Desertor, ela o esfolaria vivo. E eu confiava que ela faria
isso mesmo.
Meu pai e Jonnah também me encontraram eventualmente. Fiquei
orgulhosa de ver meu pai ignorando todos ao seu redor que ainda
sussurravam sobre o fato de haver um humano em seu “território sagrado”.
Mesmo assim, a vontade de pedir para que ele me levasse de volta para
casa, para que ficássemos em nosso próprio canto, longe dessas pessoas que
o olhavam como se ele fosse algum tipo de inseto, me tomou com força.
Pelo menos os Protetores mais jovens, aqueles que ainda estavam fazendo
seu treinamento e ainda não tinham recebido a tatuagem, eram mais
bondosos e menos ignorantes. Isso me dava esperança. Não precisava haver
esse muro entre Protetores e humanos. Pelo menos, não humanos como meu
pai.
— Você parece pensativa para alguém que deveria estar cansada
demais para pensar. — Virei-me para encontrar Roman saindo de trás de
uma árvore, levemente retorcida. — Essa sua nova força deve ser realmente
interessante.
— Também é um segredo — avisei.
Ele arqueou a sobrancelha.
— Lembre-me de nunca te contar um segredo, então — ele zombou.
Revirei os olhos.
— Muito engraçado.
Ele veio até mim, caminhando ao meu lado, em direção à costa do
Lago.
— Por que é segredo?
— Jasper acha que pode ser uma boa vantagem em uma luta, se
ninguém souber o que posso fazer.
Ele ponderou a informação.
— Faz sentido.
Assenti.
— E como você está? — ele perguntou. — Sobre Akantha.
Dei de ombros.
— Não há muito o que pensar sobre isso. Ela não é uma pessoa que
eu gostaria de ter conhecido, pelo menos nisso, meus pais acertaram em
tentar esconder de mim.
Roman bufou uma risada.
— Bem, a mulher é mesmo uma bruxa. Acho que não há nada de
errado em você não querer conhecê-la, mas isso não quer dizer que ela vai
sumir.
— Ei! — protestei, batendo em seu braço. — Me deixe sonhar, seu
babaca.
Ele riu, mas balançou a cabeça em concordância.
— E sobre Jonnah?
Eu sorri.
— É bom ter um primo, mais alguém em nossa pequena família. E
ele parece ser uma pessoa muito boa.
Roman assentiu.
— Pelo que vi, ele realmente é.
Por um tempo, apenas andamos, um ao lado do outro, respirando o
ar úmido de fim de tarde. O verão estava ficando cada vez mais quente e eu
não sabia como tantos Protetores aguentavam ficar com aquelas roupas de
couro. De longe, observei uma Protetora bastante bonita caminhando na
direção das cabanas ao leste. Demorei um segundo para me lembrar, que eu
já a tinha visto uma vez, no refeitório. Gaia. Seus olhos castanhos e
puxados não demonstraram reação ao encontrar eu e Roman. Acenei
mesmo assim, com um pequeno sorriso. Seria bom fazer mais amigos, mas
ela não parecia nem um pouco afim disso. Muitos Protetores me tratavam
como uma dádiva que não possuía intuito algum, além de sobreviver o
suficiente para cumprir a profecia. Outros até conversavam comigo. Mas
ela parecia simplesmente não se importar.
Bem, nenhuma atenção era melhor do que atenção ruim.
Subimos pela leve colina, próxima à montanha em que eu e Nathan
treinamos um dia, indo em direção à minha cabana. Roman me
acompanhou em silêncio.
— Você também vai em uma missão? — perguntei. —
Aparentemente, todos estão indo em uma ultimamente. Serena saiu mais
cedo para ir à cidade.
Ele me olhou de canto de olho, chutando uma pedrinha para fora do
caminho.
— Serena está fora, então eu sou sua babá principal. Vai ter que me
aguentar por alguns dias.
Dessa vez, eu soquei seu braço. Com força.
— Eu não preciso de uma babá.
— Sua opinião no assunto é um tanto quanto irrelevante. Você não
escolheria ter uma babá.
Suspirei. A palavra “escolheria” em minha cabeça. Escolhas. O que
realmente podíamos escolher nessa vida? O que de fato tínhamos o
controle, a ponto de determinar o que queríamos ou não? Nossa predileção,
como um todo, era irrelevante. Principalmente quando era o Destino
ditando as regras. Pelo que entendia do trabalho dele, escolha era algo um
tanto quanto redundante nesse mundo.
— Eu sei que você não escolheria isso — disse a ele. — Acho que,
se fosse humano, seria um daqueles garotos populares só porque tem essa
aparência ridícula. — Balancei o braço em sua direção. Não era um segredo
que Roman era lindo e essa beleza chamaria atenção de qualquer um, a
ponto que não precisasse fazer nada para ser inserido em um grupo. —
Beleza ajuda a vida de muitos, caso não saiba. De qualquer forma, você
escolheria alguma faculdade bem difícil e, deixa eu pensar... Relacionada a
números?
Ele revirou os olhos.
— Eu odeio matemática. — Eu fiz uma careta, tentando reconstruir
minha história. — Mas gosto de física.
— Qual o sentido disso? — perguntei, confusa.
— Como você sabe disso tudo, se nunca nem estudou em uma
escola comum? — Ele me cutucou.
Mostrei a língua para ele.
— Você fala como se tivesse estudado em uma.
Ele riu.
— Bem, ponto para você — resmungou. — Mas mesmo os
Protetores, passam pela educação convencional. Porém, imagino que não
deva chegar perto da forma educacional dos humanos.
— Existem coisas muito incríveis e super úteis chamadas: séries,
filmes e livros. É assim que sei tanto. — Finalmente chegamos à trilha que
nos levaria à minha cabana. — Você deveria tentar. Iria te colocar mais a
par das coisas.
— Quem sabe um dia. — Nós paramos em frente à minha cabana,
mas, por algum motivo, eu não dei um passo para entrar e ele também não
pareceu prestes a ir embora. — Vou ter mais tempo quando eu não for mais
sua babá.
Eu sabia que ele estava brincando, mas a culpa cresceu dentro de
mim. Nunca quis ser o fardo de ninguém, muito menos que as pessoas
precisassem moldar suas vidas à minha.
Roman percebeu isso estampado em meu rosto.
— Ei! Estou brincando. — Ele avançou e colocou as mãos sobre
meu ombro, mas meus olhos estavam colados em seus sapatos. Talvez fosse
por isso que Nathan tinha decidido se afastar: porque eu era um trabalho e
talvez nunca deixasse de sê-lo. — Alyssa, olhe para mim. — Ele puxou
meu rosto para si. — Mesmo que eu pudesse escolher. Mesmo que ser sua
babá fosse apenas uma opção em minha grande lista de opções, eu ainda
escolheria isso. Não porque é um serviço cheio de adrenalina — ele
brincou, gesticulando para nosso redor vazio e silencioso. —, mas porque
eu conheço você e sei que pode ser tudo, menos uma companhia
entediante.
— Você está falando isso porque estou bem aqui — resmunguei.
Um sorriso bonito contornou seus lábios cheios e fizeram seus olhos
chocolate brilharem.
— Estou dizendo isso porque quero — ele rebateu. — Você tem
noção do que faz? Das coisas que prova sem mesmo pensar a respeito. Você
se colocou entre Jonnah e Akantha hoje, porque não queria ver seu primo
ser humilhado. Você se levantou contra Ravenna para proteger seu pai. Você
vive defendendo Nathan porque acredita que talvez exista algo nele que
valha a pena defender. Está sempre ao lado de Serena, tentando ser a melhor
amiga possível, mesmo quando ela te arrasta para conhecer pessoas
desprezíveis. — Ele riu baixinho. — Eu digo que escolheria isso porque eu
acredito em você. Acredito que você é quem irá, finalmente, cumprir essa
profecia, mas também é quem irá fazer as coisas mudarem. As hierarquias
estúpidas, a ideia de família e de amigos. A própria ideia de lealdade. —
Seu dedo acariciou minha bochecha e as palavras, que já pareciam
impossíveis, sumiram de vez da minha boca. Ele enfim desceu sua mão,
deixando-a quieta ao lado de seu corpo. — Eu escolheria isso porque você
irá mudar tudo e quero estar ao seu lado quando isso acontecer. Quando o
céu queimar e Protetores como Ravenna e Akantha tiverem que implorar
por suas vidas tanto quanto os Desertores. Eu sei disso porque vejo justiça
em você.
Em meio ao meu estupor, à minha completa falta de reação, da
minha confusão e alegria por suas palavras... Forcei as minhas próprias a
saírem:
— Eu não fiz nada.
Ele negou, balançando a cabeça levemente.
— Você só não se deu conta ainda.
Eu abri um sorriso tímido para ele.
— Cuidado para não colocar grandes expectativas em uma garota
que não experimentou nada da vida ainda — murmurei. — O que eu sei
sobre justiça, Roman? O que eu vivi que me deixa consciente disso?
— Certas coisas a gente não aprende — ele respondeu,
simplesmente. — Certas coisas nascem com a gente. É tanto parte inerente
de nós quanto a cor dos olhos ou do cabelo.
Eu desisti de contradizê-lo e, por fim, aceitei suas palavras. Aceitei
sua fé em uma pessoa que não estava certa de que era eu.
Mas se Roman confiava, talvez eu devesse também.
— Tudo bem, mas se eu decepcionar, não diga que não avisei.
Ele deu de ombros.
E, por um tempo, nós ficamos assim, um olhando para o outro.
Talvez tivesse sido apenas um segundo, mas reparei em tudo nele. Na sua
altura — bem mais alto que eu, mas não mais alto que Nathan ou Jonnah.
Em seus cabelos, na altura do queixo, levemente ondulado e com mechas
caindo em seu rosto.
Então, com um sorriso hesitante, ele se virou e saiu em direção à
trilha, para voltar para sua própria cabana, onde quer que ficasse.
Estava prestes a gritar um adeus só para irritá-lo, mas ele parou no
meio do caminho. Pareceu pensar bastante sobre o que iria fazer. Vi seus
ombros subirem e descerem em uma respiração profunda. Roman, por fim,
virou-se e olhou para mim. Com passos largos, ele parou à minha frente.
Queria perguntar o que estava acontecendo, mas suas mãos pegaram meu
rosto. Mal tive tempo de reagir aos seus lábios tocando os meus.
A boca de Roman cobriu a minha com delicadeza e tentei me
manter calma e não sair correndo porque aquele era meu primeiro beijo. Eu
era uma garota de dezessete anos e nunca fui beijada. Não tinha ideia do
que estava fazendo, mas não parecia um problema porque Roman me
guiava com destreza. Seus lábios acariciavam os meus e eu abri a boca para
ele, quase que por instinto.
Deus, o que estou fazendo?
Agarrei seus ombros quando suas mãos puxaram meu rosto para
mais perto e uma delas se afundou em meu cabelo. Seu cheiro se infiltrou
em minhas narinas e eu acabei descobrindo que gostava disso. Gostava
dessa proximidade com Roman, de seu cheiro e da sua boca. E gostava de
beijá-lo.
O beijo foi suave, não como aqueles que eu li várias vezes em
livros, que pareciam arder dentro da pessoa. Não foi um beijo de amantes
que passavam semanas, meses, anos ou uma vida longe um do outro. Era
um beijo que dizia: “oi, é bom conhecer você”. Mas mesmo assim, era um
beijo que fez parecer que meu estômago estava infestado por borboletas.
E também era um beijo breve.
Roman se afastou, mas suas mãos continuaram em volta do meu
cabelo. Ele sorriu para mim, parecendo ainda mais tímido. Eu devolvi um
sorriso confuso. Quando será que isso tinha acontecido? Quando ele decidiu
que gostaria de me beijar?
— Eu queria que você experimentasse isso — ele sussurrou, o vento
morno de verão roçando nossos rostos. — Queria que tivesse essa
experiência.
Suas palavras poderiam soar como uma despedida, talvez como um
mal presságio. Mas elas eram apenas uma promessa, daquilo que eu poderia
ter tido em uma vida normal e do que eu ainda poderia ter, mesmo nessa
vida.
Meu sorriso se alargou para ele. Minhas bochechas queimaram e
meu coração disparou com seu toque suave em meu rosto.
E mesmo assim, mesmo feliz pelo beijo, um pensamento
incrivelmente irritante e desconcertante me atingiu como uma tijolada na
cabeça: ele não deveria ser meu primeiro beijo.
Roman não deveria ser meu primeiro beijo, porque parte de mim,
queria que isso fosse de Nathan. E eu queria, mais do que qualquer outra
coisa, me esmurrar por pensar isso.
Acordei com a chuva batendo forte contra a minha janela. O
pesadelo era apenas um borrão em minha memória. Pela primeira vez, havia
conseguido controlar o caminho pelo qual o pesadelo me levava, lutei
contra ele, até que eu estivesse pronta para acordar.
Ainda meio grogue de sono, olhei em volta do meu quarto e gritei
ao ver o vulto parado, ao lado da minha janela.
Precisei tapar minha boca com a mão para que eu me lembrasse de
parar de gritar. O vulto deu um passo em minha direção, mas parou,
sabendo que isso apenas me deixaria ainda mais em pânico. Eu estava
paralisada em minha cama quando a luz da lua iluminou seu belo rosto e eu
arfei em completa descrença.
— Não fique com medo — sussurrou.
Eu não sabia se o que estava sentindo era de fato medo, mas com
certeza era alguma coisa inquietante. Sentei-me na cama, abraçando os
lençóis, e encarei seu rosto. Era ela. Eu a reconheceria em qualquer lugar
por conta de seus olhos. Olhos idênticos aos de Nathan.
À minha frente, Diana sorriu levemente. Ela se parecia exatamente
com o que vi na foto que peguei em sua casa, apenas seu cabelo parecia
mais curto. Linda e jovem, intocada pelo tempo. Imaginei que a morte te
mantivesse intacta daquela forma. Minha mente era uma artista árdua e a
reproduziu com primor. Porque aquilo só poderia ser um surto psicótico,
certo? Eu estava sonhando com ela alguns segundos atrás e agora ela estava
na minha frente.
— Você não está ficando louca, Alyssa.
Bem, obrigada por me avisar.
Eu observei seu vestido branco de verão balançar com o vento vindo
da janela. Sua pele era branca como a face da lua, um grande contraste com
seus cabelos. Procurei a mesma marca que estampava minha mão, mas não
a encontrei em lugar algum.
— Onde está sua marca? — sussurrei. Eu precisava de uma prova
para acreditar em meus olhos.
Diana arqueou a sobrancelha para mim.
— Em minhas costelas — respondeu. — Mas não estou aqui para
falar de mim. Preciso de sua ajuda, Alyssa. Imediatamente.
Balancei a cabeça, tentando me concentrar no som da chuva. Os
pingos furiosos molhavam meu quarto através da fresta da janela, que
deixei aberta à noite, mas não me levantei para fechá-la. Não com alguém
que deveria estar morta bem ao seu lado.
— Isso não pode ser real. Você está morta — minha voz foi baixa,
eu tinha medo de acordar outros mortos. — Como posso vê-la?
Ah, Deus, será que tenho um tumor no cérebro? Um tumor poderia
me fazer ver coisas. Ninguém me disse que ser a Fidly me prevenia de
doenças humanas e mortais.
— Eu estou morta, mas não fui extinguida. Nenhuma de nós está —
ela se referia às Fidlys? Quando elas morreram não puderam... sei lá,
encontrar a paz ou qualquer coisa parecida? — Mas posso me comunicar
mais facilmente com você porque possuímos algo em comum.
— O que? — perguntei, com medo.
Não diga morte. Não diga morte. Não diga morte.
— Nathan.
Meu coração estava martelando em meu peito, desacreditado com o
que se desenrolava à minha frente, mas sua última palavra parecia ainda
mais surreal.
— Eu não tenho nada com Nathan.
Ela se aproximou de mim. Suas mãos delicadas, com um belo anel
de noivado no dedo anelar esquerdo. Pensar em Brian agora, apenas me fez
querer desmoronar, enquanto encarava o rosto límpido de Diana. Brian, o
homem que mais parecia um fantasma porque perdeu o amor de sua vida, o
homem que há pouco tempo eu tinha enfrentado. E Nathan... oh Deus,
Nathan que nunca superou a perda da mãe que mal pôde conhecer.
— Não se engane, Alyssa — ela disse. Sua mão parecia prestes a me
tocar, suspensa no ar, mas ela a afastou com um sorriso tímido. — Acho que
tocá-la não funcionará, certo? — ela suspirou. — Ainda não sei como as
regras funcionam. Mas sei que pode me ver, o que quer dizer que não
preciso mais infiltrar seu subconsciente. Posso falar com você diretamente.
— Foi você que me enviou os pesadelos?
Ela negou rapidamente.
— Claro que não. Nunca faria isso com alguém, principalmente não
com você que já tem coisas o suficiente com o que se preocupar. — Seus
olhos azuis encararam os meus. — Mas as outras vezes em que sonhou
comigo... — ela pareceu envergonhada. — Eu apenas queria conversar.
Saber sobre o meu menino. Saber como você está também.
— Isso é...
— Loucura?
— Claramente.
Ela abriu um pequeno sorriso. Um sorriso triste.
— Lembro-me de descobrir que a loucura é apenas um ponto de
vista nesse mundo. De qualquer forma, eu sinto muito. Eu preciso da sua
ajuda e não tenho tempo para tentar lhe mandar mensagens por sonhos. —
Ela se virou para olhar a lua brevemente. Quando voltou a me encarar,
estava mais séria. — Não sei quanto tempo tenho aqui, nem ao menos sei
como o Destino está permitindo isso.
— O Destino? Ele realmente é de carne e osso?
Ela estalou a língua, um pouco impaciente.
— Isso não vem ao caso agora — disse. — Preciso que o encontre.
— Quem? O Destino?
— Não. Nathan. Preciso que encontre meu filho, imediatamente.
— Ele foi a uma missão — eu a informei.
Onde quer que isso fosse. Diana não tinha acesso a essas
informações? Não conseguia saber o que acontecia por aqui? Ser um
fantasma não deveria lhe permitir saber de coisas aleatórias sobre a vida dos
outros?
— Não, não. — Ela andou pelo quarto, o rosto franzido, como se
pensasse em algo. — Ainda estou em tempo. — Diana me olhou. — Ele não
pode ter ido, Alyssa. Você precisa pará-lo.
Encarei o medo em seus olhos e ele me tomou com intensidade,
como se dividíssemos a mesma emoção.
— Por que está preocupada com Nathan?
— Porque ele está indo em uma direção perigosa, e não me importo
com o que o Destino queira, não permitirei que meu filho seja uma vítima
dessa guerra. Pessoas demais morreram por isso, e eu não irei deixar que
ele seja o próximo.
Vítima? O que ela sabia para que sentisse como se Nathan estivesse
em perigo? Saí da cama e me aproximei de Diana. Ela precisava me dizer
mais, precisava de mais do que isso. Precisava de alguma informação, que
de fato me ajudasse a entender o que estava acontecendo!
— Do que está falando, Diana?
— Nathan está perdido, Alyssa. Meu menino está caminhando em
uma direção perigosa que não terminará bem.
— E que direção é essa?
Ela me olhou com pena, como se meu coração estivesse na reta
tanto quanto o dela. E eu gostaria de poder negar. Gostaria de fingir que o
que quer que acontecesse com Nathan, não me afetaria, mas só de imaginar
que ele poderia se ferir, era como se o ar fosse tomado dos meus pulmões e
eu perdesse o controle das batidas do meu coração.
— Nathan não está pensando — ela disse. — Sua raiva, seu
desespero está lhe tornando um perigo a si mesmo. A dor... — uma lágrima
solitária molhou sua bochecha e eu senti sua voz tremer. — A dor que ele
sente vai destruí-lo.
— Eu não sei onde ele foi, Diana. Precisa me dizer — eu
praticamente implorei. Como eu poderia ajudar se não soubesse pelo menos
isso?
Sua mão tocou meu cabelo, mas não senti nada além do vazio.
— Ouça seu coração, Alyssa. — Seus olhos brilharam na escuridão,
com confiança. Confiança em mim. — Não lute contra ele. Aceite o que ele
tem a dizer e ele te levará à Nathan.
Balancei a cabeça e tentei agarrá-la quando se afastou, mas minhas
mãos se fecharam em volta do vento.
— Você precisa me dizer onde encontrá-lo!
— Esse é o problema, Alyssa — ela disse. — Eu não sei. Não sei.
Mas Vicenzo sabe. Você precisa trazer meu filho de volta para casa, antes
que aquele homem o encontre.
Jasper me disse que Nathan não iria à Itália. Que seria idiotice, e
Ravenna não permitiria, não por enquanto. Então o que isso queria dizer?
Que a ameaça que Diana pensava vir de Vicenzo não podia ser verdade? Ou
queria dizer que Vicenzo, na verdade, estava aqui?
De qualquer forma, o medo se tornou uma terceira pessoa no quarto
escuro. Consciente e pulsante.
— Como?
— Traga-o de volta, Alyssa. Preciso que o traga de volta. Por favor
— ela pediu e ordenou ao mesmo tempo. — Não o deixe ir.
Encarei seus olhos cheios de lágrimas desaparecerem como fumaça
sendo levada pelo vento e a chuva.

Eu demorei dois minutos para colocar uma calça jeans e um


moletom com capuz, que pudesse cobrir minha cabeça e rosto. E mais um
minuto para colocar meus tênis surrados pelo treino. Quando saí pela porta
da minha cabana, três minutos se passaram e eu tinha medo de que tivesse
sido mais tempo do que eu poderia me dar ao luxo de ter.
Aquelas palavras, aquela última ordem, parecia muito como algo
que Diana havia dito em um dos meus sonhos. Por todo esse tempo, ela
queria que eu mantivesse Nathan por perto. Mas como eu faria isso quando
era ele quem não queria ficar?
Pensei em ligar para meus pais, mas minha mãe surtaria assim que
eu dissesse o nome de Nathan. Eu não sabia se acreditaria em mim quando
eu dissesse que conversei com sua amiga morta. De qualquer forma, levaria
tempo demais para convencê-los. Roman não era uma opção porque ele não
suportava Nathan e duvidava que o ajudaria, principalmente baseado em um
medo, com tão pouco embasamento, e bem possível de ser fruto de algum
surto psicótico meu.
Ir à Jasper também seria inútil porque o Protetor me disse que não
sabia para onde Nathan tinha sido enviado e não éramos próximos o
suficiente para ele fazer qualquer coisa por mim, só porque eu,
aparentemente, tinha conversado com um fantasma. Brian estava fora da
cidade desde ontem e, infelizmente, eu não podia me comunicar
mentalmente com ele como os Protetores eram capazes. E Serena, a única
que poderia me ajudar por já saber de tudo que havia acontecido entre eu e
Nathan no último mês, estava em uma missão e ela havia me avisado que
seria difícil manter contato, enquanto estivesse fora.
Eu estava sozinha. Sozinha com a merda de uma missão impossível
em mãos.
Então eu corri até o limite do Lago, onde poderia fazer a travessia
para a dimensão original. Mergulhei na água fria com minha roupa já úmida
pela chuva, mas assim que emergi do outro lado, eu já estava
completamente seca. Eu adorava aquela mágica, mesmo que não fizesse
muita diferença naquela noite, quando uma chuva pesada caía sobre mim
incessantemente.
Comecei a correr logo que alcancei a floresta, tentando fazer o
mínimo de barulho possível. Até eu chegar ao território de casa, não
poderei baixar a guarda. A cidade estava infestada de Desertores, o que
quer dizer que eu era uma idiota por estar ali, mas tentei não pensar nisso,
enquanto forçava meus pulmões a respirarem por mais alguns quilômetros.
Não tinha orgulho algum em admitir que eu implorava ao Destino
para não escolher aquele momento para me deixar morrer.
Tentei invocar Diana. Gritei seu nome em minha mente repetidas
vezes, mas nada. Ela me jogou essa bomba e nem pensou em me
acompanhar? Ou me dar alguma informação realmente útil?
Diana!
Fosse sorte ou o Destino agindo, cheguei até o território protegido e
continuei correndo até encontrar a casa de Nathan, ao lado da minha. Não
me permiti observar a minha casa — agora abandonada — por muito
tempo. Eu não tinha disposição para lidar com aquilo agora. Ou tempo.
— Nathan! — gritei, em meio a chuva.
Meu moletom molhado, grudou contra minha pele, e meus tênis
estavam completamente encharcados e insuportáveis em meus pés.
A única resposta que recebi vindo da casa foi Zeus correndo em
minha direção, abanando o rabo e latindo para mim. Zeus pulou em meu
colo e precisei me esforçar para não cair de bunda no chão. Acariciei sua
cabeça e o empurrei de cima de mim, para que pudesse buscar por qualquer
pista de onde Nathan poderia estar.
— Onde está Nathan, Zeus?
O cachorro latiu em resposta, o que infelizmente não foi muito útil.
Subi as escadas até a porta de entrada principal. A porta estava destrancada,
então entrei sem problemas.
A casa por dentro continuava praticamente igual à que encontrei
quando invadi algum tempo atrás. Lençóis brancos cobriam a maior parte
dos móveis, mas o sofá parecia ter sido usado recentemente. Em um canto,
as telas, que eu imaginava serem de Diana, continuavam viradas para a
parede.
Diana, por favor! — implorei que aparecesse para me ajudar.
— Nathan! — chamei.
Andei pela casa, procurando por ele ou qualquer evidência de onde
ele poderia estar. Zeus me seguia de perto. Encontrei comida e água
deixadas para o cão na cozinha, e reparei no quanto Zeus devia ter sido bem
treinado, se ele ainda não havia destruído nada do lugar e nem comido toda
a comida deixada de uma só vez. Comida que, pelos meus cálculos, daria
para uma semana.
Entrei no quarto que imaginava ser de Nathan e encontrei roupas
jogadas no armário, sua cama perfeitamente feita e uma bagunça em sua
escrivaninha. A gaveta que, no dia que invadi estava trancada, agora estava
arreganhada, com nada dentro.
Nathan não estava aqui e duvidava que estivesse na floricultura em
que me levou quando me salvou dos Desertores. Se Nathan já não tivesse
partido para sua missão, ele teria levado Zeus consigo.
Peguei meu celular e disquei o número, desesperada.
Atenda. Atenda, por favor.
— Você está bem, Alyssa? — a voz perguntou do outro lado da
linha. Soltei um suspiro trêmulo.
— Preciso de ajuda, Serena.
Ela pareceu tensa ao dizer:
— O que aconteceu?
— Nada aconteceu comigo — apressei-me em dizer. — Eu estou
bem, mas... — afastei meu cabelo molhado do rosto, mordendo os lábios
para não me desesperar ainda mais. Falar sobre Diana agora, apenas faria as
coisas tomarem o tempo que eu não tinha. — Preciso encontrar Nathan.
— Por que?
— Porque sim. Porque ele foi em uma missão e não sei onde é esta
missão. E estou preocupada.
Se Serena estivesse ao meu lado, eu poderia vê-la balançar a cabeça
em descrença.
— Eu te avisei, Aly, para não se apegar.
— Isso não tem nada a ver comigo, Serena. Estou preocupada.
— É o nosso trabalho, Aly. Eu também estou em uma missão.
Eu era uma idiota por fazê-la pensar como se sua vida não valesse
minha preocupação também.
— Eu sei, S — falei. — Me desculpe. Eu... eu apenas tive um
pesadelo — menti. — E estou em pânico porque não sei como entrar em
contato com ele. Eu me preocupo com você também. É claro que me
preocupo. Mas o pesadelo que tive...
— Você acha que pode ser alguma mensagem.
Respirei fundo.
— Eu sinto que é. — Olhei em volta do quarto. — Eu vim até a casa
dele no Lago, mas ele não está aqui. E não tenho seu número de celular.
— Você está onde? — ela gritou em meu ouvido. — Aly, por favor,
me diz que não saiu do Outro Lado. Me diz que está segura e quentinha em
sua cabana!
Merda.
Bati em minha própria testa, amaldiçoando minha boca grande.
Por que eu sempre falo demais?
— Eu estou bem, S. Mas preciso encontrar Nathan.
— Alyssa! É por isso que sua mãe foi tão ignorante quanto a você e
Nathan se verem, provavelmente porque previu sua enorme burrice.
— Serena, me ajuda! Você pode me passar o sermão mais tarde.
— Eu com certeza, irei! — ela rosnou, borbulhando de raiva. — E
eu não tenho o número de Nathan — ela respondeu, a contragosto.
— Mas você pode se comunicar com ele pela mente.
Serena bufou.
— Nathan nunca mantém a ligação aberta, Aly.
Maldição. Eu nunca quis tanto gritar com Nathan em toda a minha
vida.
— Tente — insisti.
Minha amiga ficou calada por um longo tempo e percebi que não
estava pensando em formas de me arrastar de volta para o Outro Lado, sem
deixar seu posto na missão. Ela estava tentando falar com ele.
Esperança cresceu em meu peito, de que talvez a demora para uma
resposta de Serena fosse porque estivesse funcionando.
Mas então ela voltou a falar:
— Nada. Não há nada quando tento me comunicar com ele. Ele
ainda nos bloqueia.
Soltei um belo palavrão.
— Alyssa — ela disse, a voz tão séria quanto imaginava ser sua
expressão. — Espere aí e vou mandar alguém te buscar.
— Não! — neguei rapidamente. — Se fizer isso, minha mãe irá
surtar. Ela não sabe que saí. Ninguém sabe. Vou voltar para o Outro Lado
sozinha.
— Aly, não é seguro.
— Eu cheguei até aqui, Serena. Cheguei sem qualquer problema e
vou conseguir voltar sem qualquer problema. Prometo.
— Não posso arriscar.
— Serena, estou te pedindo. Não conte a ninguém. Já estou
voltando.
Saí do quarto de Nathan e corri até a cozinha para pegar alguns
biscoitos, que vi no balcão para dar para Zeus. Entreguei dois para ele e
deixei mais dois pela casa, para quando ele tivesse vontade.
— Aly...
— Serena, estou pedindo como minha amiga. Por só um minuto,
esqueça que sou a Fidly e que precisa me proteger, ok? — pedi, irritada. Eu
não havia conseguido fazer o que precisava e agora ainda tinha que me
preocupar com minha mãe descobrindo a minha fuga. Mais alguma coisa
pode dar errado, Destino? — Se ligar para qualquer um, minha mãe irá
descobrir e eu nunca mais terei um minuto de paz.
— Talvez você não devesse ter paz mesmo.
— Serena! — implorei, com frustração.
Ela pensou.
— Posso pedir a Roman. Ele não contará.
Não.
— Roman irá questionar porque estou aqui e vou ter que falar sobre
Nathan, que ele odeia. — Lembrei-me de nosso beijo e sabia que falar sobre
como estive encontrando o garoto que ele não suportava, faria com que tudo
se transformasse em um caos. — Roman me beijou, S. Ele não vai querer
saber sobre como estive encontrando Nathan.
— Ele te beijou? — a pergunta saiu entrecortada e me arrependi de
minhas palavras imediatamente.
Serena sempre elogiava algo em Roman. Disse o quanto ele era
lindo e talentoso diversas vezes. E se qualquer uma de suas brincadeiras e
elogios fossem além disso e significasse que ela sentia algo por ele, mesmo
que ela não tivesse admitido quando perguntei?
Que merda de amiga eu era, por não ter pensado nisso antes de
deixá-lo me beijar?
— Serena... Foi um beijo rápido e só porque ele deve ter visto que
nunca fui beijada antes e...
— Tudo bem, Aly — ela disse. — Está tudo bem. Volte para o
Outro Lado imediatamente. E não se preocupe com Nathan, ele ficará bem.
Assenti, com um suspiro.
— Tudo bem.
— Me ligue assim que atravessar — ela exigiu. — Ok?
— Ok.
Desliguei o telefone e o guardei no bolso traseiro da minha calça.
Fiz um último carinho em Zeus e saí da casa, fechando a porta atrás de
mim. Zeus poderia sair pela porta da cozinha que dava ao lindo jardim de
Diana se quisesse.
Diana, se tem alguma ideia de onde ele pode estar, esta é a hora de
aparecer e me dizer.
Nenhuma resposta. Diana não aparecia.
Por favor — acrescentei, o coração batendo com força.
Nada ainda.
Eu não sei o que fazer.
Olhei para trás. Nathan não estava na casa e provavelmente não
estava em nenhum lugar por perto. Ele já saiu para sua missão e a única
pessoa que sabia para onde ele havia ido era Ravenna.
Por falta de melhor ajuda, Ravenna teria que servir.
Pelo menos a chuva cessou um pouco e agora caía apenas pequenos
pingos. Voltei pelo caminho que vim, passando pelas árvores com atenção,
para que eu estivesse pronta para qualquer ameaça, escondida na escuridão.
Precisei forçar meus olhos a colaborar e quanto mais me aproximava do
meio da floresta, mais minha adaga, presa em minha calça, parecia implorar
para que eu a tocasse.
Cuidado.
Sua voz chegou a mim tão rápido quanto um sopro da brisa.
Olhei para os lados, procurando por Diana, mas não a encontrei em
lugar algum. Meu olhar parou em um ponto em meio às árvores. Com a
noite em seu ápice, a escuridão tomou toda a floresta e eu mal conseguia
enxergar meu caminho para o Lago, onde eu encontraria a passagem de
volta para o Outro Lado.
Em meio às árvores, na direção oeste, oposta ao Lago, a noite se
fazia intensa. Mas encarando aquele ponto escuro, pude sentir que havia
alguma coisa errada. A escuridão parecia me encarar de volta. Cerrei os
olhos, esperando ver o que espreitava ali, mas não consegui enxergar nada
além de um brilho pálido e frio de pedras vermelhas. Pedras vermelhas,
pensei, incrustadas em uma adaga. Uma arma. A mesma arma dos meus
pesadelos.
Então eu corri.
Com o coração batendo na garganta, a mente gritando, corri pelo
solo úmido desviando-me de pedras e galhos caídos. Meus pés
escorregaram no solo lamacento, mas me mantive em pé. Eu não morreria
pela minha idiotice. Não mesmo. Se o Destino queria me ver morta para
manter a merda do seu equilíbrio, ele teria que fazer melhor que isso. Por
isso, mesmo com o pânico agarrado em minhas entranhas, um nó na
garganta e minha respiração entrecortada, eu corri.
Eu estava quase chegando ao Lago, ofegante e encharcada pela
chuva quando parei um pouco e percebi que, o que quer que estivesse
escondido na floresta, não estava me perseguindo. O silêncio vazio vindo
das árvores atrás de mim, apenas me confirmava isso.
Virei-me e encarei a trilha escura e vazia.
Cuidado.
Mal tive tempo de assimilar a voz em minha cabeça, porque fui
empurrada para a lama. Estiquei minhas mãos para tentar amortecer a
queda, mas isso só piorou tudo e senti meu pulso ranger, quase se
quebrando.
Engoli a dor, puxei minha adaga e rolei no chão, para encarar meu
agressor.
Apesar da escuridão, eu podia ver seu corpo esguio e magro. Seu
rosto estava quase todo coberto por um pano preto e seus olhos eram quase
imperceptíveis devido à falta de luz. Mesmo assim, sabia que meu agressor
era, na verdade, uma mulher.
Pelo menos, não havia uma adaga incrustada por pedras em suas
mãos. Talvez isso fosse um bom presságio.
Em suas mãos havia duas pequenas facas, cada uma presa a um soco
inglês. Eu a encarei, arrastando-me para mais perto das árvores, procurando
o que havia nela que me parecia tão diferente do que eu esperaria de um
agressor. Obviamente, não era por ser uma mulher, eu havia visto minha
mãe e outras Protetoras causarem um grande estrago nos treinos ou em lutas
para saber que muitas eram até melhores que boa parte dos homens.
Também não eram suas roupas comuns, e seu rosto coberto por um tecido
não me deixava analisar nenhum traço de sua face, que não fosse os olhos.
Mas havia algo estranho. Algo que não se encaixava.
Ela aproveitou minha confusão para atacar, e eu precisei rolar para o
lado. As facas foram cravadas no chão, onde meu peito e meu pescoço
estavam há poucos segundos. Agarrei seus braços, ainda tensionados por
estarem presos ao chão e enrolei meu corpo até que meu joelho estivesse se
chocando contra as suas costelas. A mulher rosnou alto de dor e arrancou as
facas do chão com um puxão firme.
Levantei com um impulso, apenas para ela me derrubar novamente.
Nós rolamos, desferindo socos e chutes. Eu acertei alguns, mas infelizmente
ela também. Eu bloqueei seus socos, mas ela acabou atingindo meu
estômago com joelhadas.
O ar sumiu de meus pulmões e mal tive tempo de tentar bloquear
outro soco, porque de alguma forma, sua faca avançou em direção ao meu
rosto. Eu a empurrei, jogando minha cabeça para trás, mas a faca acabou
raspando no canto do meu lábio inferior.
Durante a briga, minha adaga foi jogada para longe, e agora estava
enlameada a poucos metros de distância. Agarrei uma pedra, com tamanho
o suficiente para encher minha mão, e a bati contra seu rosto. A mulher
rosnou de raiva, mas aparentemente, eu não havia batido com força o
suficiente para apagá-la.
Inferno!
Use sua força. Lembre-se que ela está aí, dentro de você, esperando
ser usada — era o que Nathan sempre me dizia. Ele insistia que, quando eu
ignorava essa parte de mim, a força simplesmente se escondia e ficava
difícil acessá-la.
Encarei os olhos da agressora e mais uma vez uma sensação
estranha me atingiu. Como se ela não me fosse estranha.
Por que um Desertor iria cobrir seu rosto dessa forma? Desertores
não possuíam religião ou crença além do próprio Vicenzo. E não havia
nenhuma marca visível na mulher, nenhuma podridão que poderia me dizer
que era um deles. Claro que a maior parte do seu corpo estava coberta, mas
mesmo assim... Havia algo errado.
Ela me pegou observando e pulou para trás, colocando distância
entre nós.
Ela recuou.
Meu corpo todo protestou, mas me arrastei e por fim fiquei de pé,
correndo até minha adaga. Ela veio em minha direção, mais atordoada do
que antes, com movimentos imprecisos. Estava nervosa. Ansiosa. Como se
não pudesse se controlar direito, ou repensasse seus movimentos. Eu cortei
a pele de seu braço e seu grunhido encheu meus ouvidos. Sangue vívido e
carmesim escorreu pelo corte. Eu avancei novamente, mas ela se moveu tão
rápido, que mal vi o borrão em que ela se transformou, até que parou a
poucos passos atrás de mim e agarrou meu pescoço.
Não consigo respirar.
Agarrei seu braço, tentando aliviar a pressão e fazer o oxigênio
chegar aos meus pulmões, mas ela era como uma estátua feita de mármore.
Chutei seus pés e me debati contra seu corpo, mas o efeito foi mínimo.
Não consigo respirar.
— Pare — consegui ofegar, as palavras rasgando pela minha
garganta seca.
Seu corpo ficou tenso e, por um minuto, pensei que ela pararia.
Pensei que me deixaria ir.
O bilhete. Oh, Deus, o bilhete não era uma brincadeira.
Porque ela não era uma Desertora. Não podia ser. Não quando ela
ainda parecia tão humana, mesmo com o rosto escondido. Não quando,
quase que inconscientemente, parecia lutar contra o ímpeto de me deixar
fugir. Aquela mulher era uma Protetora.
Tudo o que precisei foi de um segundo. Apenas um segundo de
dúvida, foi suficiente para eu conseguir dar uma cotovelada em seu rosto.
Ela me soltou e eu corri. A dúvida que parecia batalhar dentro dela, não
seria de grande ajuda por muito tempo quando ela conseguisse ignorá-la de
vez. Eu precisava chegar ao Lago e atravessar.
Mais rápido — dessa vez eu estava certa de ser a voz de Diana, que
gritava em minha cabeça.
Como diabos ela fazia isso? Por que não apareceu quando pedi
ajuda para encontrar Nathan?
Pulei no chão, no momento em que uma faca passou raspando pela
minha cabeça. Se eu saísse da trilha e entrasse na floresta densa, talvez eu
tivesse uma chance de escapar. As montanhas ao fundo podiam ser meu
guia para encontrar a passagem para o Outro Lado.
Enfiei-me entre as árvores e corri até a montanha. Aqui, o chão
começava a se inclinar, subindo como a montanha à frente se erguia. O
relevo atrapalhava minha corrida, mas me esforcei para manter o ritmo.
Podia sentir a mulher me seguindo, então não permiti que minhas pernas
descansassem. Eu não podia morrer ali. Não podia mesmo. Minha mãe
encontraria um jeito de me ressuscitar só para me matar por isso.
O celular em meu bolso traseiro da calça começou a vibrar e não
sabia como ele não foi perdido, enquanto eu rolava no chão. E por mais que
eu quisesse atender e pedir ajuda, isso significaria diminuir meu ritmo o
suficiente para que eu pudesse falar. E eu estava sangrando, machucada e
com dor em cada parte do meu corpo. Parar significaria desistir.
Finalmente cheguei à margem do Lago, mas ela estava a vários
metros abaixo de onde eu pisava, devido ao relevo. Eu teria que contornar a
montanha para chegar até ela em segurança. E mesmo se fosse louca o
suficiente para pular, eu teria que ter muita sorte para cair bem no ponto da
passagem, e não nas pedras que circulavam a base da montanha.
Merda.
Se essa mulher fosse uma Protetora, se realmente era quem havia
me mandado aquele bilhete, então eu precisava atravessar muito antes que
ela tivesse a chance, porque ela poderia me matar do Outro Lado. Diferente
dos Desertores, ela tinha passe livre para entrar e sair.
E foi então que percebi: mesmo que eu escapasse hoje, quem me
garantia que ela não atacaria novamente? Nem mesmo o Outro Lado seria
seguro mais. E mais, por que diabos ela queria me matar? Protetores não
deveriam ser leais às Fidlys?
Encarei a queda de pelo menos cinco metros até o Lago.
De canto de olho, eu a vi se aproximar. Com o coração martelando
em meu peito, desviei de seu golpe e tentei acertá-la com minha adaga. Mas
ela pareceu prever o movimento e chutou minha mão com tanta força, que
minha adaga foi jogada para o Lago. Observei minha única arma afundar
tão logo tocou a água.
A mulher agarrou meu braço e avançou com sua faca na outra mão,
bem em direção ao meu coração. A luz da lua iluminou seu rosto um pouco
mais, mas não consegui identificar seus olhos castanhos. Ela passou muito
delineador em seus olhos, provavelmente para disfarçá-los. Com minha
mão livre, consegui interceptar o golpe, mas ela era forte demais e a cada
segundo, sua lâmina se aproximava do meu peito.
Ela soltou meu braço e socou meu rosto com tanta força, que fui
jogada no chão. Eu encarei o Lago novamente e depois a mulher. Raiva me
consumiu porque eu era uma idiota e queria amaldiçoar o Destino por toda
essa desgraça. A desgraça em minha vida, e na de todas as outras garotas
fadadas àquele mesmo Destino. Porque por todo este tempo estive com
medo de Desertores, buscando me proteger contra eles e me mantendo
enclausurada no Outro Lado para que nenhum pudesse me encontrar. Mas
agora aqui estava eu, longe do Outro Lado e encarando uma ameaça que
veio lá de dentro. O quão fodido era este mundo? Que merda de senso de
humor era esse do Destino?
Ao invés dela me esfaquear de vez, ela chutou minhas costelas.
Doeu como o inferno. Lancei um olhar assassino para ela. E então me
decidi. Empurrei meu corpo mais para perto do precipício. Ela devia ter
quebrado uma de minhas costelas, porque quando inspirei fundo, algo
pareceu cutucar meu pulmão.
A mulher me observou de perto e pisou em meu estômago para que
eu parasse.
Mas eu não pararia. Havia decidido há muito tempo, que eu
controlaria minha morte, mesmo se não pudesse evitá-la. Eu não morreria
em suas mãos. Não deixaria meu corpo largado para seu desprezo.
Então, dei meu último golpe, socando o ponto em sua panturrilha
que Nathan me ensinou que doeria bastante e poderia causar cãibra. E
quando ela se afastou, encolhendo-se sobre a perna, eu me virei para o
Lago.
Joguei meu corpo do precipício esperando atingir a água.
Eu bati contra uma pedra, rasgando o lado direito do meu corpo e
quebrando alguma coisa. A dor rasgou pelo meu peito como uma adaga
rasgava a carne. Quando meu corpo finalmente se afundou na água que se
misturava à chuva, como se os céus chorassem comigo, tudo o que fui
capaz de fazer, foi pedir para que o Lago me levasse para casa. Quando
minhas lágrimas caíram e fui incapaz de respirar, eu me senti como uma
grande falha. Havia falhado em ser a promessa daquele mundo estranho ao
qual fui apresentada. Havia falhado em lutar e sobreviver. Havia falhado
com meus pais e meus amigos.
Eu não havia encontrado Nathan. Havia falhado nisso também.
Sabe quando a chuva toca o solo quente e aquele cheiro excepcional
nos carrega para lembranças de outros dias chuvosos? Ou como quando
você acorda e encontra o tempo ensolarado que parece bastante com um dia
feliz? E, de repente, as lembranças são demais. São uma dor que não acaba
em um suspiro e nem em um grito. Não é uma dor prática, porque a
lembrança te consome e te paralisa. É como tentar engolir pregos.
Eu nunca senti isso.
Nunca tive memórias importantes de um lugar ou de alguém. Minha
vida foi resumida em meus pais e em livros. Afoguei-me na vida inventada
dos personagens. Consumi suas ideias e seus amores. Memorizei suas dores
como se fossem minhas porque, assim como eu não tinha memória de nada
excepcionalmente feliz, também não tinha memória de nada
excepcionalmente triste. Talvez eu devesse ser grata a isso. Nenhum grande
amor talvez fosse um preço justo por nenhuma grande dor.
Eu era um pedaço de móvel que decorava minha casa.
Eu costumava respirar. E só.
Agora, nem isso fazia mais.

— Respire, filha!
A voz de meu pai era um eco distante.
Alguém pressionou meu peito e logo depois virou meu corpo de
lado.
— Vamos, Aly — agora era Roman quem falava, a voz próxima do
meu ouvido, saindo como um grunhido tenso. — Respire.
— Onde está Aisha? — alguém gritou. Acho que era minha mãe,
mas a voz parecia um tremor, difícil de identificar.
Não acaba aqui — ouvi o sussurro de Diana em meu ouvido.
Não. Não acabaria mesmo.
Eu lutei. Eu não permitiria que esse fosse meu fim. Forcei meus
pulmões a funcionarem, meu coração a bater.
Eu tossi. Meu pulmão ardendo como se consumido por brasas. Bela
ironia dado que, de fato, estava lotado de água. Minhas costelas protestaram
quando me mexi. Abri os olhos e encontrei Roman em cima de mim, me
segurando para que meu corpo ficasse de lado e eu pudesse jogar a água
para fora. Vomitei água e mais água, meu corpo sofrendo convulsões fortes.
O esforço era gigantesco e eu choraminguei de dor.
— Você vai ficar bem — Roman sussurrou, os olhos chocolates
nublados por angústia.
Eu não respondi. Não tinha força para isso.
Vi meu pai correr até mim, seus pés descalços batendo contra a areia
da costa do Lago. Ele se jogou no chão, ao meu lado, e me puxou para seu
colo, como se eu não passasse de um bebê. Ele repetia que eu ficaria bem,
que Aisha me ajudaria. Mas não conhecia Aisha e, apesar de ter vomitado a
água que estava em meus pulmões, tudo em mim doía, minhas pernas, meus
braços, minhas costelas... Não sabia como a Guardiã poderia me ajudar.
E dor era tudo o que eu sentia. Tudo doía. Respirar doía.
E então, com um gemido de pura agonia, eu apaguei e não escutei
mais nada.
Eu esperava que a morte fosse mais do que esse silêncio tortuoso.

Acordei com calor, o que era estranho, porque a última coisa de que
me lembrava era de estar encharcada pela chuva. Não. Encharcada pelo
Lago.
Meus olhos estavam pesados quando tentei abri-los.
— Não se mexa, querida.
Uma voz melódica e suave me surpreendeu e eu tentei focar minha
visão para encontrar sua dona, que parecia ostentar um brilho amarelado
nas palmas das mãos. A mulher à minha frente parecia um anjo. Seus
cabelos tinham cor de canela, eram crespos e volumosos descendo até sua
cintura. Seus olhos dourados, como nunca havia visto antes, me analisaram
atentamente. Seus lábios grossos se abriram em um sorriso carinhoso
quando nossos olhos se encontraram. Sua beleza me deixou desconcertada.
Sua pele tinha um tom de marrom profundo, seus cílios eram espessos e
suas sobrancelhas finas eram tão bem desenhadas, que a mulher poderia ser
qualquer coisa, menos humana. Era como se tivesse sido desenhada à mão
por algum artista e, então, recebido a dádiva da vida.
Meus olhos desceram pela extensão do meu corpo. Minhas roupas
eram tralhas. Minha calça havia sido cortada em shorts. Minha camiseta
estava destruída e mostrava metade do meu torso. Eu estava uma bagunça.
Observei as mãos de Aisha sobre minha perna, a luz saindo delas
como um farol. Era por causa daquilo que eu estava sentindo tanto calor.
Parecia que ela estava jogando raios de sol em meu corpo. Mas não era um
calor insuportável, chegava até mesmo a ser agradável. Como se banhar de
sol depois de ter entrado no mar, e a água salgada ainda estar impregnada à
pele.
— Estou feliz que esteja acordada. — Ela fechou as mãos e as tirou
de cima da minha perna. Ao se levantar, observei seu vestido branco de
tecido fino cobrir seu corpo cheio de curvas. Colares cheios de pedras
cobriam seu pescoço e peito. — É um prazer conhecê-la. Eu sou Aisha.
Aisha parecia um anjo. Como uma alucinação e, por um segundo,
temi estar sendo recebida naquilo que os humanos imaginavam ser o céu.
Respirei fundo, dessa vez minhas costelas não doeram.
— A Guardiã da África — deduzi.
Ela sorriu.
— Isso mesmo.
Aisha andou até uma mesa cheia de cristais e plantas. Percebi que
ela andava descalça, os dedos do pé e os tornozelos tão ornamentados
quanto seu pescoço e pulsos.
— Em minha cultura, — ela disse, ao perceber minha atenção em
seus pés. — Nós aprendemos que andar descalço é importante para
descarregar e renovar nossas energias.
Eu assenti. Talvez eu devesse tentar algum dia.
— O que você fez? Não sinto praticamente nenhuma dor mais.
— Cheguei aqui e a encontrei com duas costelas quebradas, uma
torção no pulso, uma perna quebrada e alguns cortes e escoriações.
Consegui curar tudo, mas ainda haverá certa dor residual por alguns dias. É
uma dor mais psíquica do que física, porque seu corpo passou por muito
ontem à noite e, apesar de eu ter feito tudo para curar os ossos, sua mente se
lembra do que o corpo deveria sentir. — Ela esmagou algumas folhas
amareladas em um pilão. Aisha colocou a planta amassada em uma colher,
já com uma consistência pastosa, e veio até mim. — Engula isso, vai te
ajudar no processo de cura. Logo estará perfeita novamente.
Peguei a colher e enfiei aquela coisa na boca. Mastigar se tornou
insuportável depois de dois segundos, então apenas engoli a pasta.
Eu me esforcei para me sentar na cama e logo percebi que não tinha
ideia de onde estava. Lembrava de ter conseguido atravessar para o Outro
Lado, mas aquela não era minha cabana.
— Onde estamos? — perguntei.
Aisha puxou uma cadeira à minha frente.
— Esta é a enfermaria do Outro Lado.
Para uma enfermaria, parecia meio defasada. Havia apenas a cama
onde eu estava sentada e uma mesa cheia de coisas que não fazia ideia da
serventia. Não parecia em nada com uma enfermaria comum.
—Todas as Guardiãs possuem poder de cura?
A porta se abriu naquele momento e uma mulher, de cabelos escuros
ondulados na altura dos ombros e olhos castanho-esverdeados ferozes,
entrou no quarto. Ela vestia roupas pretas, uma calça de cintura alta
esvoaçante, uma blusa simples e um kimono por cima. Parecia muito mais
urbana que Aisha, ao mesmo tempo que expunha uma animosidade que
logo preencheu a sala. O ar parecia pairar à sua volta, quase como se sua
presença fosse sinônimo de poder. Ao olhá-la, eu podia ver sua ascendência
indígena mesclada aos traços de seu belo rosto.
— Graças ao Destino, não! Imagina que chato seria passar horas
encarando estas pedras. — A mulher lançou um olhar para Aisha, que
apenas abriu um largo sorriso para ela. Então ela me olhou, parecendo
satisfeita com o que via. — Você parece melhor. Ótimo.
— Graças ao poder de cura de Aisha e as horas que deve passar
encarando as pedras — retruquei.
A mulher parou, com as mãos na cintura. Aisha apenas sorriu.
— É bom ver você novamente, Alyssa. — Eu devia parecer
completamente confusa, porque não tinha ideia de quem era aquela mulher
e estava certa de que não a conhecia. Por isso, ela logo completou: — Sou
Cassandra.
A Guardiã da América, recordei-me. Mas eu nunca a conheci. Ela
provavelmente me observou de longe, como outros Protetores fizeram por
anos.
— Um belo de um alvoroço você causou ontem. Pensei que estava
claro que devia ficar dentro de nosso território.
E foi apenas quando Cassandra disse isso que me lembrei do porquê
estive fora para começo de conversa. Nathan. Onde será que ele estava?
Será que Diana apareceria para me avisar se algo tivesse acontecido com
ele?
— Vocês têm notícia de Nathan?
Cassandra arqueou a sobrancelha para mim e Aisha apenas me
observou, quieta.
— Por que quer saber? — Cassandra rompeu.
— Porque não sei onde ele está e estou preocupada.
— Tenho certeza de que ele está bem, Alyssa — Aisha disse, ao
mesmo tempo que Cassandra murmurou algo como “algumas coisas nunca
mudam”.
— O que quer dizer com isso? — questionei Cassandra.
Ela deu de ombros.
— Nada. — Estalou a língua e cruzou os braços sobre o peito,
aproximando-se de mim. — Agora vamos focar no que realmente importa.
Primeiro: por que você deixou nosso território? Segundo: quem te atacou?
Bufei, impaciente. Eu odiava isso, quando ignoravam meus
questionamentos como se fossem menos importantes que os seus próprios.
Saber sobre o paradeiro de Nathan era importante, até onde eu sabia, ele
poderia estar correndo risco de vida. Eu precisava encontrar um jeito de
falar com Ravenna o quanto antes e forçá-la a me dizer onde ele estava,
assim como exigir que ele voltasse para casa. Talvez, esperar que Nathan
cumprisse alguma ordem de Ravenna fosse esperar por muito, mas eu iria
tentar.
— Saí para procurar por Nathan — contei, sabendo muito bem que a
este ponto, não havia mais como mentir. — E não, não vi quem me atacou.
Seu rosto estava coberto por um tecido, mas era uma mulher e não parecia...
Não parecia alguém que eu deveria imaginar como meu inimigo.
Bem, não antes de me atacar.
— Não parecia o que? — Cassandra insistiu e eu reparei quando
Aisha tocou sua mão, como se pedisse calma.
— Ela não parecia uma Desertora.
Aisha franziu o cenho, tão confusa quanto Cassandra parecia. A
última Guardiã, contudo, cerrou os olhos para mim.
— Está me dizendo que um humano te atacou? Assim, do nada?
Mordi o lábio, nervosa.
— Não disse que era humano.
— O que achou que era? — Aisha perguntou então.
— Eu não sei, ok? — Minha cabeça doía. — Mas eu não acho que
era um Desertor e um humano não podia fazer o que ela fez.
— Você está dizendo que acha que um Protetor te atacou? —
Cassandra arfou, incrédula. — Os Protetores juram com sangue e fogo que
a Fidly é sua primeira prioridade, caso tenham a chance de encontrarem
uma em suas curtas vidas. Impossível que tenham quebrado este juramento
e já não sejam Desertores.
Suspirei.
Eu sabia disso. Todos fizeram questão de me lembrar como aquele
lugar era seguro e protegido. Como nada poderia me atacar ali. Como
aquelas pessoas morreriam por mim. Mas e se houvesse alguém que
simplesmente não quisesse isso? Seria tão impossível que isso acontecesse
sem que Vicenzo estivesse diretamente envolvido? Não me parecia
impossível que algum deles simplesmente estivesse cansado daquela vida, e
talvez muito ressentido por ela.
O bilhete que recebi, que antes não parecia passar de uma
brincadeira de mal gosto, agora parecia real demais.
— Eu não sei. Tudo o que sei, é que preciso encontrar Nathan. Eu
acho que ele pode estar em perigo.
Cassandra avançou, sumindo em meio ao ar e então surgindo a
poucos centímetros do meu rosto. Poderosa. Eu estava em um quarto
pequeno com duas das mulheres mais poderosas do planeta. Imortais.
Abençoadas pelo próprio Destino com vida e poder. E Cassandra parecia,
no mínimo, selvagem. Como se sempre manuseasse seu poder à borda de
seu ser, sempre na palma de sua mão.
E mesmo que essas duas mulheres fossem ligadas por seus destinos
em comum, ambas eram tão diferentes quanto água e vinho. Enquanto
Aisha era amigável e cuidadosa, Cassandra era dura e introvertida.
Cassandra agarrou meu rosto, as mãos suaves, mas firmes, exigindo
que eu a encarasse. Tive que me forçar a não recuar.
— Cassandra, não — Aisha se intrometeu, agarrando o braço da
outra Guardiã. — Eu acabei de passar seis horas curando seus machucados
para que nada ficasse para trás. O corpo dela já lidou com muito.
— Eu preciso ver — Cassandra retrucou.
Eu encarei seus olhos esverdeados.
— O que vai fazer?
— Vou entrar em sua mente.
O que?
Aisha bateu na mão de Cassandra e a Guardiã me soltou, lançando-a
um olhar irritado.
— Hoje não, irmã.
Ela bufou. Seus belos olhos caíram sobre mim:
— Amanhã, Alyssa — com essas palavras ditas, ela se foi, saindo
do quarto como se não passasse de uma brisa.
Que merda tinha acontecido? Eu tinha tido uma vida completamente
tediosa por dezessete anos. Agora, havia uma imortal prometendo
esquadrinhar minha mente, como se este fosse algum tipo de site de fofoca
à sua disposição.
— Não se preocupe com minha irmã, Alyssa. Cassandra é uma
controladora nata. Ela precisa que tudo esteja perfeito e pensar que um de
seus Protetores possa ter feito algo contra você... — Aisha suspirou. —
Bem, é o oposto do que precisamos agora.
— Ela pode mesmo ler minha mente?
— A magia de Cassandra é diferente da minha. Ela é capaz de criar
e quebrar feitiços. Foi ela quem criou este lugar e protegeu o território
contra Desertores. Fez isso em todas as sedes de Protetores. Inclusive, está
aqui para reforçar as proteções. Mas ela também pode fazer mais. Pode
bloquear e desbloquear a mente de alguém, rever o que a pessoa viu ou
ocultar estas visões. — Aisha se aproximou, colocando dois dedos em meu
pulso, sentindo os batimentos ali. — Sua magia é mais crua do que a minha.
Eu posso curar corpos e, às vezes, a mente. Mas não posso usar minha
magia para nada muito além disso. Cassandra, no entanto, pode.
Engoli as informações com cuidado. Se Cassandra e Aisha podiam
fazer tudo isso, do que as outras três eram capazes? E por que diabos
precisam de mim para matar Vicenzo? O Destino realmente estava tentando
puni-las quando criou essa profecia.
— Tem certeza de que precisam de mim para matar Vicenzo?
Aisha sorriu.
— Eu gostaria de poder dizer que esse é um trabalho que podemos
fazer sozinhas. Gostaria muito que este não fosse seu fardo, querida. Mas
não foi assim que o Destino quis.
O Destino me parecia um idiota arrogante.
— Você já o viu pessoalmente?
— O Destino ou Vicenzo?
Dei de ombros.
— Ambos.
— Conheci Vicenzo quando ainda era humano e eu mesma o
abençoei como o primeiro Protetor. — Aisha apalpou meus braços e minhas
costelas. Quando tocou minha perna, eu me retraí. Luz caiu de suas mãos
até minha pele. — Quando ele traiu minha irmã e se tornou o primeiro
Desertor, foi Cassandra quem lançou o feitiço que lhe diferenciava dos
demais, garantindo que víssemos que havia sido marcado pela escuridão.
Mas foi Freya quem o baniu.
— Mas ele se soltou. Não está mais exilado em Florença.
Aisha concordou.
— Já faz algum tempo.
— Porque ele é forte demais — supus.
A luz se extinguiu e ela abriu um sorriso confiante ao me olhar.
— Assim como você também será.
Então ela se virou para a porta, dizendo que meus pais estavam
esperando. Pelo que ela me contou, minha mãe saiu para caçar minha
agressora e meu pai esteve do lado de fora, aguardando Aisha fazer seu
trabalho.
Fui surpreendida por um abraço da Guardiã.
— Quem quer que a ameaça seja, nós iremos resolver. — Suas mãos
eram quentes quando ela afastou o cabelo do meu rosto. Suas próximas
palavras foram mais baixas: — E não se preocupe. Nathan está bem.
Suas palavras eram o suficiente para me fazerem respirar com
alívio. Era como se houvessem tirado um peso de minhas costas, que já
estava me sufocando. Aisha sorriu, percebendo meu alívio e deu um
pequeno aceno, quase que se curvando para mim. A Guardiã deixou o
quarto logo em seguida, permitindo que minha família viesse ao meu
encontro.
Acabei me esquecendo de pedir as descrições físicas de Vicenzo. E
só depois notei, que Aisha não havia me dito nada sobre o Destino.
— Mãe, olha para mim — pedi.
Ela estava em um canto do quarto, quieta, a raiva pulsando dela
como um tsunami alcançando a costa. Meu pai, por outro lado, estava ao
meu lado, observando as marcas ainda rosadas das antigas feridas, onde
Aisha usou seu poder para me curar. Mas minha mãe nem mesmo ergueu o
rosto para mim. Pelo contrário, ela permaneceu parada como uma estátua.
O único momento em que se permitiu demonstrar que percebia minha
presença ali, foi quando deu uma olhada em meu corpo curado e minhas
roupas esfarrapadas, para então deixar uma nova troca de roupa limpa e sem
nenhum rasgo.
— Como está a dor? — meu pai perguntou.
— Não sinto nada — respondi, ainda encarando minha mãe,
esperando que ela ao menos me olhasse. — Mãe, apenas diga o que quer
dizer.
— Você não quer ouvir as coisas que quero dizer — ela retrucou,
carrancuda.
— Deixem disso — meu pai interferiu. Ele penteou meus cabelos
para trás, com carinho. — Se quem atacou você, foi mesmo um Protetor,
então isso quer dizer que aquele bilhete não era uma brincadeira de mau
gosto, mas sim, uma ameaça real. Precisamos pensar em como resolver
isso.
— Não tem como resolver isso porque Alyssa se recusa a agir
racionalmente — minha mãe esbravejou, ainda do outro lado do quarto. —
Passamos dezessete anos fazendo de tudo para mantê-la segura, apenas para
que ela se colocasse em risco por conta própria. — Finalmente ela me
encarou fazendo com que eu quisesse voltar no tempo, para o momento em
que ela se recusava a reconhecer minha presença ali. — Você não tem
qualquer respeito pela sua própria vida e, assim, vai acabar morta.
Independentemente do que eu ou seu pai, ou qualquer outro nesse lugar,
faça para protegê-la.
— Uma Protetora me atacou, mãe. Eu não estava segura aqui.
Jasmine explodiu. Veio até mim com tanta velocidade, que mais
pareceu um borrão. Eu me questionava como ela havia conseguido conter
aquela força dentro de si, por tantos anos.
— Se quem te atacou foi mesmo uma Protetora, ela só teve a chance
de fazer isso porque você saiu deste território protegido. Ela nunca
arriscaria atacar você aqui, não com tantos outros por perto. — Seus olhos
queimavam com a raiva que ela tentava conter em suas palavras. Porque eu
sabia que minha mãe poderia ser muito mais cruel se quisesse. — Se não
fosse Serena nos avisando, você poderia ter se afogado! Seu pai e Roman te
encontraram no meio do Lago, logo após a travessia. A queda foi tão alta e
forte que você estava cheia de escoriações e uma perna quebrada,
provavelmente porque bateu em alguma pedra! Você estava desacordada,
Alyssa, meio morta! E tudo por quê? Por que?
Tudo por Nathan. Porque Diana me pediu. Porque eu não podia
simplesmente ignorar o medo que cresceu em mim como uma maldita
praga. E, mesmo agora, meu único arrependimento era não ter conseguido
encontrá-lo. Tinha falhado com a única razão que havia me feito correr
aquele risco.
Pelo menos Aisha havia dito que ele estava bem, mas eu não tinha
notícia nenhuma além daquela. Será que a Guardiã mentiria?
— Vocês têm notícias de Nathan? — perguntei com os olhos fixos
em meu pai, não podendo encarar minha mãe agora.
— Nathan? — ela praticamente gritou. — Você foi atrás de
Nathan?
— Eu só queria saber se ele estava bem — me defendi, ainda
encarando meu pai, que tinha um olhar triste no rosto. — Ele iria para uma
missão e...
— Como você ao menos sabe disso? — dessa vez, a voz da minha
mãe era tão baixa, tão forçadamente controlada, que finalmente a encarei.
Ah, que merda.
— Mãe...
— Eu quero que me fale como sabe tanto sobre o que Nathan anda
fazendo — ela exigiu, os braços cruzados e os olhos flamejando.
Meu pai se virou para ela, pedindo calma, mas minha mãe nem
ergueu seu olhar para o marido.
— Ele tem me ajudado mãe — confessei.
Ela semicerrou os olhos para mim.
— Com o que? — rosnou. — E desde quando?
— Jasmine, isso não vem ao caso agora — meu pai a cortou. —
Precisamos encontrar quem atacou nossa filha e, então, podemos nos
preocupar com o restante.
— Isso se Alyssa fizer a gentileza de seguir as regras e não acabar
se matando no processo — ela rebateu.
— Ela irá seguir as regras — meu pai disse. Eu não poderia estar
mais errada ao pensar que talvez ele ainda confiasse em mim. Logo entendi
sua intenção quando continuou: — Porque a partir de agora, ela terá um
Protetor cuidando de sua segurança vinte e quatro horas por dia.
Eu arquejei em puro horror. Meu pai sempre foi o mais sensato,
aquele que tentava me dar o máximo de liberdade possível.
O que eu tinha feito?
Apesar de eu estar me sentindo bem, sabia que era graças aos
poderes de Aisha. Eu havia sentido a queda, tinha sentido meus ossos
quebrarem e a água infiltrar meus pulmões. Não tinha nem ideia de como
havia conseguido atravessar para o Outro Lado. Lembrava bem do
desespero, enquanto eu implorava para que o Lago me ajudasse. Seria
possível que ele tivesse, de fato, me ajudado a atravessar?
Eu sabia que era um milagre que eu estivesse viva, mas pensava que
essa dádiva, por si só, compensava a parte de quase morrer, enquanto
quebrava as regras.
Aparentemente, não era bem assim que funcionava.
— Então vou ter carcereiros agora?
Minha mãe quase me bateu, mas foi meu pai quem respondeu.
— Não estou mais feliz que você quanto a isso, Alyssa. Mas se você
não tem qualquer resguardo quanto a sua segurança, eu não medirei
esforços para cobrir sua falta de prudência.
Fiquei sem reação com suas palavras.
Eu tenho resguardo quanto a minha segurança. Pouco tempo atrás,
quando fui àquele festival na cidade, meu pai havia conversado comigo,
questionado se, talvez, minhas ações não eram motivadas por um desejo de
ser capaz de controlar meu próprio destino. Minha própria morte. Mas eu
não queria morrer. O problema era que também me importava com a vida
de outras pessoas e, agora, tinha tendência a escutar fantasmas em meu
quarto. Se minha mãe estivesse em meu lugar, ouvindo o apelo e o medo de
Diana, ela teria ido atrás de Nathan também. O problema era que não podia
confiar nela quando o assunto era ele, porque ela agia como se Nathan fosse
um pária e eu fosse sua próxima vítima. Se Diana confiasse em qualquer
outra pessoa para ajudá-la, ela não teria me pedido ajuda.
— Acho ótimo que estejam me punindo por ter quebrado uma regra
que deveria me proteger contra Desertores, quando, na verdade, quem me
atacou foi uma Protetora.
A porta se abriu, batendo contra a parede, e eu soltei um palavrão
com o susto. Ravenna invadiu a enfermaria com seu ar de superioridade
quase não cabendo dentro das quatro paredes. Seu cabelo parecia fogo e
suas roupas de couro provavelmente faziam coro à sua personalidade de
víbora.
— Você não sabe se foi uma Protetora — ela vociferou.
Ravenna parou a menos de um metro de distância, ignorando a
presença dos meus pais. Observei seus olhos, por um instante imaginando
se ela poderia ter sido minha agressora. Mas seus olhos eram claros e
esverdeados. Quem quer que tivesse me esboçado na trilha, tinha olhos
castanhos.
— Eu sei o que vi.
Lembrei de pensar que talvez o bilhete tivesse sido enviado por
Lirya, por conta de qualquer rixa que ela nutrisse por mim. Mas Lirya tinha
olhos claros e não era tão alta quanto a agressora. Agora me sentia uma
idiota mesquinha por ter cogitado nada além disso.
— Seu discernimento é questionável, Fidly — ela desdenhou.
Meu pai cruzou os braços na frente do corpo e a encarou, não dando
a mínima para como Ravenna insistia em fingir que ele não existia. Naquela
noite, ela não poderia ter escolhido momento pior para enfrentá-lo.
— Podemos te ajudar, Ravenna? — ele a fuzilou. — Porque caso
contrário, saia. Você não dá ordens à Alyssa.
Seu sorriso para meu pai foi felino e, como sempre, não alcançou
seus olhos.
— Você, humano, não deveria se meter em assuntos de Protetores.
— Ela se virou para minha mãe. — E se Jasmine é incapaz de fazer com
que a própria filha obedeça algumas ordens simples, então eu preciso
resolver a sua bagunça.
Trinquei os dentes. Eu odiava que meus erros fossem colocados na
conta dos meus pais, principalmente quando minha mãe nem mesmo
retrucava Ravenna.
— Você tem notícias de Nathan? — questionei Ravenna, decidida a
ignorar seus ataques.
Minha mãe praticamente revirou os olhos. Meu pai coçou a testa,
frustrado. Ravenna por sua vez pareceu surpresa.
— Nathan?
Assenti.
Ela soltou uma risada.
— Ah, Jasmine. — Ela bateu no ombro da minha mãe, como se
fossem camaradas. Minha mãe quase estapeou sua mão para longe. — Acho
que você tem problemas.
— Saia — minha mãe ordenou.
Alguém pode responder uma pergunta simples ou era algo
impossível nesse lugar?
Ravenna me lançou um olhar por cima do ombro, jogando os
cabelos para trás, enquanto ia em direção à porta.
— Agora que sei que está respirando, quero você em minha sala
amanhã, assim que o sol nascer. Entendido?
Engoli em seco. O que esta mulher queria comigo? Mas ela não me
deu tempo de responder ou negar sua ordem. Tão rápida quanto invadiu o
quarto, Ravenna desapareceu.
Infelizmente, depois que minha mãe dispara a falar, ela não para.
Por uns trinta minutos, eu fiquei escutando ela falar que eu era uma
irresponsável que além de não ter respeito por ela e meu pai, não tinha
respeito algum por mim mesma. Pela minha vida. Eu engoli suas palavras
calada. Meu pai apenas assentia em alguns momentos em concordância com
Jasmine, mas não chegou a acrescentar nada. Ele já parecia exausto e eu o
entendia, porque me sentia da mesma forma.
Minha mãe tinha feito questão de contar cada segundo que se passou
entre a ligação de Serena — que entrou em contato com meus pais,
preocupada porque eu não tinha ligado, depois que falei que estava
voltando para o Outro Lado — e o momento em que meus pulmões
voltaram a funcionar. Meu pai e Roman tinham me encontrado na água do
Lago, desacordada. Bem, me encontrado morta. Henry precisou fazer
massagem cardíaca por uns bons três minutos, até que Roman precisou
tomar seu lugar, porque meu pai não conseguia fazer as mãos pararem de
tremer. Roman, então, tinha tentado fazer meu coração voltar a bater pelos
próximos cinco minutos.
Eu voltei a respirar, mas desmaiei devido a dor. Uma perna
quebrada. Duas costelas quebradas e uma lesionada. Meu rosto já inchado
pelos golpes. Eu não podia estar mais grata por Aisha ter vindo me curar.
Por isso, eu me calei. Porque, mesmo que eu tivesse tido uma razão
para fazer o que fiz, minha mãe tinha motivos plausíveis para sua ira. Eu
poderia ter morrido e a profecia não teria sido finalizada. Outra pobre
menina, em alguns anos, teria nascido para carregar o fardo que eu falhei
em carregar.
Finalmente, depois de quarenta minutos escutando minha mãe
praguejar e dizer como minha ação foi idiota, e meu pai parecer
decepcionado e triste, Aisha apareceu e pediu que eles me deixassem
descansar um pouco. De fato, a dor que antes parecia dormente, voltou a me
perturbar, mas não era nada comparado ao que eu deveria estar sentindo.
Aisha me fez deitar na cama e tomar uma mistura que ela insistiu
em dizer ser um chá, mas mais parecia com água de esgoto.
— Descanse — ela ordenou com um sorriso antes de sair.
Não tive muita chance para cumprir sua ordem antes de encontrar
Diana me encarando de um canto do quarto.
— Eu sinto muito.
— Eu que deveria pedir desculpas — falei, o coração apertado em
meu peito. — Não consegui encontrá-lo e ninguém aqui quer me dar
informações sobre ele. Não sei onde Nathan está, mas Aisha disse que ele
está bem.
Diana se aproximou, os olhos cheios de lágrimas e meu estômago
afundou ao vê-la. Oh, Deus. Alguma coisa tinha acontecido com Nathan?
Será que Aisha tinha mentido?
— Eu sei onde ele está — ela disse.
— Ele está...
— Meu filho está bem, Alyssa. — Ela abriu um sorriso triste. —
Graças a você.
— Mas eu não o encontrei — falei confusa, o alívio tomando meu
peito, enquanto imaginava Nathan seguro. O peso em meu estômago cessou
de vez, e meu coração bateu mais calmo.
Sua mão fantasma agarrou a minha, sem realmente conseguir me
tocar. Diana suspirou.
— Eu não queria fazer isso, mas precisei. — Ela não me olhava nos
olhos. — Eu precisava que ele voltasse antes que fosse tarde demais.
Suas palavras demoraram para fazer sentido, mas quando finalmente
entendi, parte de mim se sentiu traída.
— Você sabia que ele não estava em casa.
— Sim. — Ela parecia envergonhada.
— Sabia que alguém viria atrás de mim?
Ela assentiu, ainda sem me olhar nos olhos.
— Eu poderia ter morrido — disparei, ainda sem acreditar.
Uma lágrima solitária escorreu pelos olhos da Fidly morta. Eu
queria saber por que a morte não livrava as pessoas dessa parte também. Se
tirava a vida, por que também não tirar a dor? Só me parecia justo estar
morto se a vida já não pudesse te abalar mais. Mas talvez não houvesse
nada de justo na morte.
— Eu tentei te ajudar. Tentei te guiar para longe dela — ela se
defendeu. — Nunca quis que fosse machucada.
— Mas me enviou sabendo que alguém estaria pronto para me
atacar?
— Eu sinto muito — ela repetiu. — Mas Nathan não teria voltado
por qualquer outra razão. Só por você. Só se você estivesse em perigo. —
Suas mãos tentaram me tocar novamente, mas não senti nada mais que um
sopro. — Alyssa, você precisa entender. Ele é meu filho e iria morrer.
Morreria amanhã quando a luta fosse demais para ele e escolhesse a
morte. Eu sei disso, vi o próprio Destino traçando o final. Então fiz o que
precisava fazer para mantê-lo vivo.
O Destino estava tramando a morte de Nathan? Eu nem queria saber
o que teria acontecido a ele. Ou o que aconteceria comigo.
Como poderia julgar Diana quando eu mesmo tinha feito o que
precisava para tentar salvar seu filho? Eu não tinha saído da minha bolha de
proteção para tentar mantê-lo a salvo? Não tinha ido contra tudo o que
esperavam de mim para isso, tudo o que eu sabia que era certo?
E apesar de parte de mim se sentir traída, a outra se sentia grata.
Porque se ele fosse mesmo morrer, então o que passei valeu a pena para que
ele ainda respirasse. Essa certeza era tão clara quanto as batidas do meu
coração.
Mesmo que não fôssemos amigos. Mesmo que ele não me quisesse
por perto porque era difícil demais. Mesmo assim faria de novo.
Nathan merecia viver. Tudo o que eu esperava era que um dia
pudesse aproveitar a vida que tinha e se deixar esquecer um pouco daquele
lado sombrio que havia marcado sua existência desde muito novo.
— Acho que você subestimou os sentimentos do seu filho, Diana —
falei, e finalmente consigo olhar em seus olhos azuis tão semelhantes aos de
seu filho. Mas os de Nathan eram duros e sombrios, como fogo que
queimava no lugar mais improvável. O de Diana, por outro lado, era pura
calmaria, mesmo frente à dor. — Mas estou feliz que ele esteja bem.
Dessa vez, ela sorriu para mim. Levemente. Quase que
imperceptivelmente.
— Não, eu não subestimei nada.
Absorvi suas palavras e escutei um burburinho vindo de fora do
quarto. Uma gritaria que eu não conseguia distinguir pareceu tomar o
corredor.
— Não conte a ele que me viu, Alyssa. — Diana pediu e logo
desapareceu, deixando-me sozinha novamente.
Ele está aqui — percebi. O que eu deveria fazer, depois que ele
havia dito tão claramente que não queria me ver? Por que ele veio, então?
Grunhi, saindo da cama e colocando o peso sobre minha perna
recém-curada para andar até a porta do quarto. Tentei ignorar a dor residual
quando abri a porta e me deparei com Roman agarrando Nathan pela
garganta.
Aquilo já parecia um hábito entre os dois.
— Tire as mãos de mim, Scott — Nathan rosnou.
Serena, ao lado dos dois, tentou puxar Roman, mas o Protetor não
cedeu. No fim do corredor, Brian e meus pais se aproximavam rapidamente.
— Você fez isso com ela — meu amigo rosnou para Nathan.
Dei um passo à frente, minha cabeça já estava doendo horrores.
— Ninguém fez nada comigo — interferi.
Os olhos de Nathan encontraram os meus. Um misto de sentimentos
passou por seus lagos azuis tão rápido, que o único que consegui distinguir
foi alívio. Como se não esperasse que eu realmente estivesse bem e ainda
houvesse um coração batendo dentro do meu peito.
— Alyssa.
Meu nome em sua boca era quase uma melodia. Precisei falar para o
meu coração idiota parar de acelerar, toda vez que seus olhos passavam por
mim.
Serena correu e me abraçou tão apertado que minhas costelas
protestaram.
— Eu sinto muito, Aly — ela disse e chorou. — Eu devia ter ido te
encontrar. Quando você não ligou, precisei avisar a Roman e seus pais.
Abracei minha amiga de volta, sabendo que ela havia feito o que
pôde.
— Você fez o que eu pedi, S. Não se culpe por isso. Eu estou bem.
Ela se afastou e limpou as lágrimas. Nós duas reparamos em
Nathan. Em como ele não parecia nem mesmo notar o Protetor o sufocando,
tendo os olhos presos em mim.
— Solte ele, Roman — pedi, firmemente.
Os ombros tensos de Roman me diziam o quanto aquilo o
perturbava. Mas ele soltou Nathan ao mesmo tempo que Brian parou ao seu
lado.
Roman deixou Nathan e andou até o meu lado. Parte de mim sabia
que ele queria gritar comigo, mas também queria ter certeza de que eu
estava bem. Apertei sua mão, mostrando-lhe que eu não poderia estar
melhor. Dada as circunstâncias, eu não mentia.
Só então encarei Nathan. Seus olhos me consumindo como se
fôssemos fogo e brasa. Ele pareceu receoso de se aproximar, como se eu
fosse enxotá-lo para longe. E talvez eu devesse, talvez eu não devesse
querer tanto falar com ele. Mas eu queria. Queria que me dissesse onde
estava indo e por que voltou por mim. Queria que pudéssemos voltar a ser
como éramos antes, mesmo que isso significasse engolir tudo o que eu
sentia. Queria tanto, que parecia difícil respirar. Alguns dias atrás, vê-lo e
falar com ele seria fácil, simples e certo. Agora, parecia que havia uma
muralha entre nós e nenhum dos dois tinha ideia de como quebrá-la. Nem
sabia se ele queria quebrá-la.
— Nathan, você precisa ir — minha mãe disse e a pura ordem vindo
dela me fez querer gritar. Ela precisava parar com essa merda.
— Você está bem? — Nathan finalmente perguntou, ignorando
minha mãe completamente.
Assenti.
— Nathan, talvez devêssemos... — Brian começou, colocando a
mão no ombro do filho.
— Não — Nathan o cortou, afastando-se do pai, como se seu toque
fosse afiado como um corte. — Estou cansado dessa merda. — Ele encarou
minha mãe. — Você disse que ela estaria segura. Disse que não tinha
porquê eu ficar.
Minha mãe desviou o olhar.
Ela sabia. O modo como se encararam agora mesmo... Ela sabia que
ele estava vindo ao Outro Lado me ver e, poucas horas atrás, fingiu que isso
era uma grande surpresa. Jasmine sabia e havia dito a ele que ficasse longe.
— Você não tem porquê estar aqui — ela insistiu. — Você tem seus
compromissos como Protetor e Alyssa não é um deles.
— Parem de falar como se eu não estivesse bem aqui — me
intrometi naquela guerra de olhares entre eles. — Eu estou bem aqui.
— O que diabos aconteceu, Aly?
Quando ele me chamou pelo meu apelido, parte de mim quis sentar
e chorar. Se ele não queria ser meu amigo, por que fazia isso? Por que agia
como se ainda fôssemos algo mais do que meros estranhos? Ele determinou
o limite, não eu.
— O que aconteceu foi ela se pondo em risco por você — minha
mãe retrucou, mas Nathan não tirou os olhos de mim. Seus olhos
percorreram meu corpo, como se estivesse se certificando de que eu
realmente estivesse bem. — Eu te disse para ficar longe, Nathan.
— Ah, você fez mais do que apenas me dizer para ficar longe, não é
Jasmine? — ele rebateu, voltando um olhar furioso para minha mãe.
— O que isso quer dizer? — perguntei, mas eles fingiram não me
notar.
— Chega, Nathan — Brian pediu.
Mas minha mãe tinha o queixo erguido ao responder:
— Eu fiz o que precisou ser feito.
Tinha algo que não estavam me contando. Eu era parte de algum
segredo entre eles e estava parada como uma idiota tentando entender.
— Só eu que estou perdida nessa troca de farpas? — Serena
murmurou.
Eu dei um passo à frente em direção a Nathan. Roman agarrou
minha mão, querendo que eu parasse, mas eu me desvencilhei dele
gentilmente. Parei cara a cara com o Protetor de olhos azuis e o vi inspirar
profundamente.
— O que precisou ser feito? — perguntei para ele, porque sabia que
minha mãe apenas mentiria ou omitira qualquer que fosse a verdade.
— Nathan... — minha mãe tentou pará-lo, mas os olhos dele
estavam conectados aos meus, como se nada mais no mundo importasse.
— Você realmente não se lembra?
Ele falou tão baixo que mal consegui ouvi-lo.
— Lembrar do que?
Meu pai se aproximou, segurando minha mãe que parecia prestes a
me arrastar dali. Os olhos de Nathan se distraíram com algo atrás de mim.
Virei-me e encontrei Cassandra e Aisha nos observando atentamente. A
primeira Guardiã o encarava sem muita emoção, mas Aisha lhe deu um leve
aceno de cabeça.
— A Fidly precisa descansar — Cassandra disse com sua expressão
séria e calculista.
Eu olhei para todos eles. Encarei cada um de meus amigos, meus
pais, Brian e as Guardiãs e, por fim, Nathan.
— Não preciso que me digam o que fazer — falei em alto e bom
som. — Não preciso que me tratem como uma incapaz. Eu sei que o que fiz
foi irresponsável, mas em minha cabeça, era o que precisava ser feito. —
Minha mãe pareceu prestes a me interromper, mas eu logo continuei, não
lhe dando a chance. — Estou cansada de suas meias verdades e cansada de
tratar Nathan como se fosse o inimigo. Ele não é. — Balancei os braços,
mostrando a cena que se desenrolava. — E isso não é um show.
Agarrei o braço de Nathan e o puxei para dentro do quarto da
enfermaria, fechando a porta na cara da minha mãe que estava a um passo
de impedir.
Tranquei a porta e me virei para Nathan, que me olhava com
diversão.
— Isso não é hora de rir da minha cara.
Ele apontou para a fechadura.
— Isso não resolveria muito, caso ela quisesse invadir.
— Ela não vai — disse alto, para que ela e os outros escutassem. —
Porque eu não sou uma maldita criança.
Nathan lutou contra um outro sorriso.
— Pare de me olhar assim.
— Assim como?
— Como se você se importasse.
Ele cruzou os braços, o meio sorriso desaparecendo de vez.
— Eu estou aqui, não estou?
— Está, o que não faz sentido, porque, da última vez que o vi, você
estava dizendo que não suportava ficar perto de mim — retruquei, irritada.
O alívio já não era o único sentimento que sobressaía, enquanto eu encarava
Nathan. Eu estava com raiva e machucada. — Então, o que quer?
— Quero saber o que aconteceu — ele disparou.
Nathan me encarou com tanta intensidade, que senti a necessidade
de me sentar. Talvez fosse a dor em minha cabeça esgotada.
— Eu fui atacada.
— Eu sei essa parte. — Ele fez uma careta, como se aquilo fosse
demais para ele imaginar. — Quero saber o porquê saiu daqui em primeiro
lugar.
Suspirei, cansada de ter que explicar a mesma coisa, vez após vez.
— Eu fui até sua casa. — Lancei um olhar duro. — E não fale
comigo como se fosse meu chefe.
Ele soltou os braços ao lado do corpo e andou pelo quarto,
murmurando um palavrão. Quando se deu por satisfeito — ou seus pés se
cansaram de percorrer círculos — ele se aproximou, os cabelos escuros
bagunçados e os olhos azuis frustrados.
— Por que fez isso? — ele perguntou.
Desviei o olhar. Diana não queria que eu contasse sobre sua
aparição e, para ser sincera, nem eu. Era loucura demais para fazer sentido.
— Eu tive um mau pressentimento sobre você. Sobre sua missão.
Queria saber se estava bem.
Seu rosto ficou sombrio. Seus olhos perderam qualquer brilho.
Fiquei esperando que brigasse comigo, que me dissesse o quão idiota eu
tinha sido, em como eu poderia ter morrido e todas as coisas que todos os
outros fizeram questão de me lembrar. Mas ele não fez isso. Ele não gritou
ou me recriminou. Na verdade, Nathan pareceu se sentir mais culpado do
que qualquer outra coisa.
— Talvez eles estivessem certos, afinal — ele sussurrou.
— Sobre o que?
Ele olhou para longe de mim.
— Sobre eu e você. Eles estão certos em me querer longe.
— O que está acontecendo, Nathan? — perguntei, cansada de todos
esses códigos que eu nunca era capaz de decifrar.
— O que está acontecendo é que me lembro. Me lembro de tudo. —
Seus dedos afundaram sobre as mechas negras do cabelo, puxando os fios
em frustração.
Ele se lembrava. Mas o que isso queria dizer?
Desde o primeiro dia que o vi, pela minha janela em uma
madrugada chuvosa, eu não conseguia tirar os olhos dele. Não conseguia
parar de pensar no garoto de olhos azuis como o Lago. Quando o encontrei
no festival, eu não pude evitar segui-lo, como se ele fosse um ímã
ambulante. E todo esse tempo que passamos juntos, mesmo que não tenha
sido muito, parecia tão familiar... Como se um resquício de alguma
memória perdida.
Era como se eu o conhecesse antes mesmo de nos encontrarmos.
Ergui-me da cama e andei até ele, parando à sua frente, tão perto
que podia sentir sua respiração em meu rosto. Ele piscou e fez menção de se
afastar, mas eu agarrei seu braço e o forcei a ficar. Forcei ele a me encarar.
Exigi que lidasse com qualquer que fosse a merda que eles não estavam me
contando e fosse honesto comigo.
— Eu continuo pensando — eu disse. — Que há algo. Algo que me
ajudaria a entender, por que você é essa saudade que dói tanto, sem nem ter
motivo? Por que quando você me afastou doeu mais do que devia? —
Minha mão em seu braço era um lembrete de que ele era real. Eu estava tão
assustada, com medo de como ele poderia me rejeitar dessa vez, que
precisei me forçar a continuar. — Você se lembra de tudo — repeti suas
palavras. — Eu deveria também?
Seus lindos olhos azuis estavam fixos nos meus olhos negros
quando tirou algo do bolso interno de sua jaqueta.
— Eu me lembro que éramos amigos quando criança — disse, quase
em um sussurro. — Não só conhecidos. Não colegas. Amigos. Inseparáveis.
Lembro de proteger você das crianças da cidade que iam ao Lago. Lembro
de te ajudar a perder o medo da água. Lembro de comer um pedaço de
cheesecake pela primeira vez na vida, que você me deu, porque eu nunca
comia nada do tipo, já que meu pai não sabia fazer nada que não fossem
sanduíches e omeletes. — Meu coração bateu acelerado em meu peito
quando suas palavras não pareceram fazer sentido. — Lembro de você se
esconder comigo no porão, para que eu pudesse ver as coisas da minha mãe.
Você se sentava comigo e parecia pronta para me proteger de qualquer
coisa. E então lembro de quando você foi embora, eu mal dormi por um
mês.
Eu não me lembrava dessas coisas. Mal me lembrava de vê-lo
quando éramos crianças. Mas isso também nunca fez muito sentido porque
éramos vizinhos, então devíamos nos ver com certa frequência,
principalmente sendo duas crianças de quase a mesma idade. Tudo estava
confuso. O que eu sabia não parecia fazer sentido e o que ele me contava
também não.
Ele pegou minha mão e colocou algo nela. Baixei meus olhos e
encontrei uma foto repousando em minha palma. Éramos eu e ele. Mas não
éramos crianças ali. Eu provavelmente tinha 15 anos quando a foto tinha
sido tirada, porque eu estava usando um anel que havia perdido mais ou
menos naquela época. Nathan parecia mais novo, mas ainda completamente
lindo e muito mais alto que eu. Ele estava atrás de mim, abraçando-me
como se eu fosse uma boneca de porcelana. Seu rosto enfiado na curva do
meu pescoço, com um sorriso tímido, mas largo. Mas não mais largo que o
meu. Na verdade, eu gargalhava na foto. A boca aberta e os dentes todos
expostos. Eu parecia tão feliz que, mesmo não me lembrando do
acontecimento, ao olhar a imagem de nós dois daquele jeito, eu era capaz de
me lembrar daquele sentimento que parecia me consumir. Da sensação de
estar ali, em seus braços como se nos conhecêssemos a vida toda e
soubéssemos de tudo um do outro. Confiávamos um no outro. Não era
possível sorrir daquela forma com alguém em quem não se tinha confiança,
ou intimidade.
— Eu não...
— Você não se lembra — ele falou por mim. — Eu sei. Eu também
não me lembrava até uma semana atrás, quando comecei a desconfiar que
havia algo em você que não me parecia estranho. Para ser sincero, pensei
nisso quando a vi atrás da sua janela e tentava adivinhar seu nome em
minha cabeça. — Ele afastou uma mecha do meu cabelo do rosto. —
Alyssa. Eu sabia seu nome antes mesmo de você dizê-lo e confirmar minha
suposição quando a encontrei novamente, naquele estacionamento do
festival.
— Como? — perguntei.
Como eu me esqueceria dele?
— Eu não conseguia tirar você da minha cabeça. Mesmo naquele
primeiro dia, passei a noite tentando me lembrar de você, porque parecia
que havia algo a ser lembrado. — Ele sorriu, dessa vez com tristeza. —
Então você apareceu no festival e me seguiu e eu só queria agradecer ao
Destino por isso, porque assim eu saberia quem você era. E saber seu nome
apenas... Apenas dificultou as coisas. Quando os Desertores nos atacaram,
eu não conseguia deixar você ir, então a levei comigo, esperando que as
coisas passassem a fazer mais sentido. Esperando que talvez você se
lembrasse de algo que eu não conseguia.
Mas eu não me lembrei. Eu me senti tão atraída por ele desde o
primeiro dia, como se houvesse um enigma nele que eu precisava
desvendar, mas não sabia explicar por quê. Ainda não sabia.
— Então você não se lembrou e pensei que eu estava inventando
coisas em minha cabeça. Me convenci de que você não era ninguém além
de uma estranha com um destino fodido. — Ele suspirou. — Mas eu não
conseguia ignorar a sua existência. Então eu vim para cá ajudar você a lutar.
E quanto mais tempo eu passava com você, mais confuso eu ficava.
Confuso com o fato de que conhecer você nem parecia algo novo. Como o
fato de eu saber como você se sentia antes mesmo de me dizer. Como você
sabia sobre a sobremesa que eu gostava. Uma sobremesa, que logo eu
lembraria, que você havia me ensinado a gostar.
Eu soltei seu braço e dei um passo para trás. Afastando-me dele
porque Nathan era um precipício e eu estava prestes a desmoronar. Eu ia
cair por ele, por causa dele. E nada do que ele dizia fazia sentido. Nada.
Porque eu não podia simplesmente ter esquecido que ele existia. Não podia
ter esquecido daquela foto ou de qualquer coisa relacionada a ela. Ou me
esquecido daqueles anos de nossa infância. Eu nem me lembrava de ter
vindo para o Lago quando eu era mais jovem. Até onde eu sabia, desde que
deixamos a nossa casa quando eu tinha sete anos, nem eu nem meus pais
jamais voltamos. Até poucos meses atrás.
Eu não deletaria tanta informação do meu cérebro. Isto seria
loucura.
Mas o que, até agora, não foi uma loucura?
E Nathan tinha uma foto nossa, de um período do qual eu não me
lembrava, em um lugar que eu não deveria estar.
— Está me dizendo que eu tenho amnésia e ninguém nunca me
informou? — incredulidade perpassava minha voz. — Aliás, que tivemos
amnésia juntos?
— Estou dizendo que nos fizeram esquecer um do outro de
propósito.
Uma risada nervosa rasgou minha garganta e tapei minha boca
imediatamente, forçando o pânico de volta para dentro, sob controle e
enclausurado. Eu não perderia a cabeça agora.
— Não.
— Eles pediram para Cassandra fazer isso — Nathan acrescentou.
— Não — não sei se gritei ou implorei.
Não podia ser verdade. De toda a liberdade que me foi tirada, de
todo o futuro incerto que eu enfrentava, minha mente era a única coisa
realmente minha. A única coisa sobre a qual eu tinha controle, que era
minha e de mais ninguém. Nossas lembranças eram partes de quem éramos
assim como um braço ou uma perna. Elas nos construíam. Nos
modificavam e nos faziam evoluir.
Eles não me tirariam isso. Eu não queria acreditar que meus pais
fariam isso comigo.
Nathan se aproximou e eu me apoiei na cama. De repente, meu
corpo pareceu falhar, assim como minha mente, que tinha se tornado um nó
bagunçado e confuso.
— Cassandra trancou nossas memórias um do outro, em algum
espaço escondido em nossa mente. Como se fossem objetos guardados em
uma caixa no porão — ele disse, rondando-me como se tivesse medo que eu
caísse. — Por isso, demorou para que eu me lembrasse. Quando me contou
o que Lirya havia dito a você, comecei a pensar que ela soubesse de algo,
então fui atrás dela para saber. Acontece que ela nos viu, na época em que
tiramos essa foto. — Ele apontou para a imagem ainda em minhas mãos. —
Foi por isso que ela te provocou, porque achou que estava mentindo quando
disse que não se lembrava de mim, antes de chegar aqui. Ela sabia sobre
nosso passado mais do que nós dois.
Aisha havia dito algo sobre a capacidade de Cassandra de usar os
poderes para modificar a mente, como se pudesse criar um feitiço que
bloqueasse as memórias.
— E você se lembra de tudo?
Nathan assentiu.
— E por que você se lembra e eu não? — sussurrei, temendo a
resposta.
— Não sei. — Ele pegou meus braços, ancorando-me como se
temesse que eu caísse. — Sente-se.
— Não me diga o que fazer.
— Você está cansada — ele respondeu com uma bufada. — Sente-se
antes que caia no chão.
Sentei-me na cama, apenas porque sabia que minhas pernas
estavam, de fato, falhando. Olhei para ele irritada.
— A quanto tempo sabe?
Eu soube a resposta, no segundo em que Nathan preferiu desviar os
olhos do que responder. Já havia um tempo. E ele não havia me contado.
Provavelmente, assim como meus pais, não pensava em me contar a
verdade.
— Desde quando foi embora e praticamente me disse para esquecer
que você existia? — explodi, a traição se irradiando como uma dor em meu
peito.
— Sim — assumiu. — Eu questionei meu pai uns dois dias antes,
depois que me ofereceu aquele cheesecake. Ele me disse para ficar longe de
você porque eu não podia me desconcentrar do meu trabalho. — Ele nem
pareceu perceber seu dedo percorrer uma marca rosada em meu pescoço,
provavelmente onde a mulher havia fechado as mãos para me sufocar.
Aisha a tornou bem mais clara do que deveria estar, mas ainda era um
pouco visível. — Então fui até Lirya e ela me contou que alguns anos atrás
passamos algumas semanas juntos, enquanto seus pais estavam na cidade.
Agora eu me lembro daquele encontro. Depois de todos os anos que
passamos separados, você apareceu no Lago de surpresa e nós voltamos a
nos ver, a sermos amigos, como se nada tivesse mudado. Como se nenhum
tempo tivesse passado.
Ele abaixou a mão.
— Então nós nos conhecíamos.
Ele assentiu.
— Nós fomos amigos — concluí.
— Você é minha melhor amiga — ele disse. Não “era”, “é”. —
Mesmo que tenhamos passado a maior parte de nossas vidas separados,
quando você voltou, três anos atrás, você ainda era a amiga de quem eu me
lembrava.
— Por que eles fizeram isso? — perguntei.
Nathan se sentou ao meu lado.
— Porque somos uma variável.
Fiz uma careta para sua resposta vaga.
— Seja mais específico que isso, Nathan.
De canto de olho pude ver o meio sorriso triste que ele abriu.
— Depois que você foi embora, eu passei duas semanas fugindo de
casa para procurar você. Eu tinha quase dez anos e já era um pentelho que
não seguia as regras porque não podia aceitar que nunca a veria novamente.
Então eu saía e buscava por você. Todas as noites por catorze dias, até meu
pai descobrir e passar a me trancar no quarto até o sol voltar a nascer.
Eu o olhei, tão surpresa que não sabia o que dizer. Ele me procurou.
Procurou por mim por catorze dias, porque éramos tão importantes um para
o outro, que ele não podia aceitar que eu havia ido embora e não voltaria.
Éramos, de alguma forma, tão importantes um para o outro e, mesmo assim,
eu não me lembrava.
Eu tinha alguém. Tinha um amigo. Tinha um melhor amigo que
lutaria por mim, que me queria por perto. Mas, porque tomaram todas as
decisões por nós, eu tinha passado a maior parte da minha vida sozinha, e
nem me lembrava da época em que ser sozinha não era um fato
irremediável.
Uma lágrima solitária escapou e molhou meu rosto.
— Somos uma variável — ele continuou — porque somos eu e
você. Olhe o que fez, Aly. Mesmo sem se lembrar de tudo, você se colocou
em risco por mim. Por que? Por causa de um pressentimento?
— Não fale comigo como se eu fosse idiota — retruquei.
Ele bufou.
— Você é provavelmente a pessoa mais inteligente que conheço.
Mas é irracional para caralho quando suas emoções estão em jogo. Você age
sem pensar. É impulsiva ao extremo. — Ele me encarou, mas eu apenas
enrolei meus dedos no suéter que estava usando. — Você entende que
poderia ter morrido? O que acha que aconteceria depois? Como acha que eu
sobreviveria sabendo que matei você?
Dessa vez, fui eu que bufei.
— Você não é responsável pelo que faço, Nathan. Eu fiz o que
precisava fazer. O que achei necessário. E faria novamente, porque por mais
que não queira ser meu amigo, eu ainda sou sua — eu disse. — Eu faria
novamente porque é quem sou. Teria feito por Serena ou Roman também.
E eu teria. Apesar de Nathan mexer comigo de uma forma que os
outros não faziam — e agora parecia fazer um pouco mais de sentido — ele
não era o único com quem me preocupava. E não era o único por quem eu
me sacrificaria.
— Isso não me deixa mais aliviado — ele resmungou.
— Sinto informar, Nathan, mas esse não é meu objetivo de vida.
— Isso explica muito.
Nós caímos em um silêncio profundo e cheio de significado,
enquanto forçava minha mente a se lembrar. Vasculhei todos os seus cantos
escuros e arestas afiadas, mas não encontrei nada. Procurei por Nathan em
cada pedaço sombrio dela. A raiva encheu meu peito tão forte, que eu
gostaria de poder quebrar algo. Gostaria de poder tirar algo dos meus pais e
Cassandra, como tiraram de mim e Nathan. Era um pensamento do qual eu
não me orgulhava, mas tão pouco era capaz de ofuscar.
Observei a foto em minhas mãos. Absorvi cada detalhe dela,
pensando que assim minha memória fosse ativada.
Mas nada aconteceu.
— No que você está pensando?
— Eu estou com tanta raiva que nem consigo pensar com clareza.
Talvez isso seja bom, porque tenho certeza que não seria algo bonito —
murmurei depois de um tempo que pareceu longo demais.
— Tudo bem estar com raiva.
— Como faço para me lembrar? — questionei.
Ele deu de ombros.
— Não tenho ideia. Eu apenas me lembrei.
Bufei.
— Ótimo. Você é muito útil. — Eu suspirei. — Por que não me
contou?
Ele mordeu o lábio.
— Meu pai e seus pais me pediram para não contar. — Deu de
ombros. — Parte de mim acredita que, talvez, eles estivessem certos.
Franzi o cenho.
— Não queria se lembrar de mim?
— Queria, mas seria mais fácil se você só fosse a Fidly.
Eu entendia. Seu trabalho seria mais simples se não tornasse as
coisas pessoais. Mesmo assim, doía ouvi-lo dizer isso.
— Ainda assim, não é justo que você tenha mentido para mim.
Ele fez uma careta.
— Tecnicamente, eu não menti. Você nunca perguntou, então só não
comentei sobre nossas memórias terem sido bloqueadas por uma Guardiã
poderosa, a mando dos nossos pais. Se parar para pensar, não é um assunto
que surge a toda hora.
Eu bati meu ombro no seu, perdida entre irritação e divertimento
com sua expressão.
— Então, vai me contar o que aconteceu quando nos
reencontramos? — Mostrei a foto em minhas mãos.
Nathan desviou o olhar rapidamente.
— Éramos amigos e nos encontramos depois de anos separados —
contou Nathan. — Na verdade, quando nos vimos, nem parecia que havia
passado tanto tempo. Você me viu primeiro, perto do tablado com Zeus.
Gritou meu nome tão alto que achei que as pessoas aqui do Outro Lado
poderiam escutar. Então, você me abraçou tão forte que eu pude sentir seu
coração batendo. Seus pais haviam te deixado em casa para resolver alguma
coisa e meu pai nunca estava por perto, então eles não me impediram
quando contei a você tudo o que tinha acontecido nos últimos seis anos. E
então, eu reparei na marca em sua mão que, quando éramos apenas
crianças, nunca tinha parecido nada demais. Mas naquela época, eu havia
sido ensinado sobre aquela marca. A marca da Fidly. Não te contei de
imediato porque queria ter certeza. E estava com medo. Estava morrendo de
medo do que aquilo significava, se sua vida seria tomada como a da minha
mãe foi. — Seus olhos fitaram o chão, como se um filme do que aconteceu
se passasse ali, sob seus pés. — Então eu aproveitei os dias que tinha com
você e fui procurar informações sobre a marca. Você mal acreditava no que
eu havia contado sobre mim, então era difícil pensar em como você reagiria
à ideia de ser a Fidly.
— Mas você me contou? — perguntei. Porque se ele havia me
contado, então Nathan era ainda mais leal do que eu imaginava. Enquanto
todos à minha volta mentiam para mim, ele escolheu me dar a verdade sem
pestanejar, mesmo que tivesse falhado com isso agora.
Mas, então, haviam tirado a verdade de nós dois.
— Falei com Brian sobre você e ele me disse que eu deveria ir para
o Outro Lado e não sair de lá até que você tivesse ido embora. — Ele
relembrou. — Foi quando percebi que havia algo errado e tive a certeza de
que você era a Fidly. Meu pai não estava na cidade, então foi fácil mentir
para ele. Foi quando nós começamos a nos esconder de seus pais. Eu fingi
que havia voltado para o Outro Lado e você fingia que não me via,
enquanto na verdade, estávamos nos encontrando escondidos. Então em
uma noite que estávamos sozinhos no Lago, eu te contei.
— E como eu reagi?
Ele sorriu.
— Você disse: “agora posso lutar ao seu lado”. — Eu e ele rimos. —
Aí depois me encheu de perguntas a noite toda. Foi irritante pra cacete.
Meu sorriso se igualou ao dele.
— Parece algo que eu faria.
Ele bateu seu ombro contra o meu e apontou para nossos sorrisos na
foto.
— Então você decidiu que íamos fazer uma fogueira e comer
marshmallows.
Eu arqueei uma sobrancelha.
— Parece que era mais fácil te convencer a comer doces naquela
época.
Ele deu de ombros, sorrindo.
— Eu nunca soube como dizer não a você. — Seus olhos caíram
para as próprias mãos, sobre o colo. — Você tinha ganhado uma câmera
nova, então nós a testamos quando ficamos empanturrados demais de doce.
A imagem de nós dois sobre a grama, em frente a uma fogueira,
enquanto assávamos marshmallows e conversávamos, apareceu viva em
minha mente. Na foto, ele me envolvia, o corpo atrás de mim e os braços à
minha volta. Uma das mãos provavelmente segurava a câmera e, ali, com
Nathan ao meu redor, eu parecia pequena e segura.
Parecia algo bom para se lembrar.
— Você devia descansar — ele disse, quebrando o silêncio.
Revirei os olhos.
— Eu não sei se consigo ignorar tudo o que descobri hoje por tempo
suficiente para dormir — falei, apesar dos olhos pesados. — E não posso
encarar meus pais porque vou dizer coisas terríveis que eu, talvez, me
arrependa. — Fiz uma careta só de pensar neles. — Mas só talvez. Acho
que eu deveria estar acostumada com as mentiras.
— Talvez seja mais difícil se acostumar às verdades.
— Touché.
— Para ser sincero, você sempre foi meio esquecida. Uma vez
simplesmente esqueceu que estávamos brincando de esconde-esconde e me
deixou esperando dentro de um baú por duas horas, enquanto fazia um
lanchinho da tarde.
Eu o olhei, chocada e gargalhando.
— Eu não acredito que fiz isso!
Nathan riu junto, o som mais lindo que eu já havia escutado.
— Fez. Eu fiquei preocupado e saí do esconderijo apenas para te
encontrar comendo um super hambúrguer — contou. — E eu estava com
fome!
Eu gargalhei mais ainda, mas a risada logo morreu. Queria poder me
lembrar daquilo. Queria poder passar horas e horas ouvindo-o contar sobre
nosso tempo juntos. Mas eu estava tão cansada e ferida pela mentira que me
fizeram engolir por todos esses anos. Eu me sentia violada. Como se aquela
vida, aquela mente, não me pertencesse. Havia sido arrancada de mim, do
meu controle.
Eu inspirei, sentindo minha cabeça latejar e me recostei contra a
parede em que a cama era prensada contra.
Nathan balançou a cabeça. Ele se levantou da cama e se virou para
me encarar.
— O processo de cura parece fácil, mas é exaustivo. — Tentei não
pensar em como ele sabia disso. — Deite-se e relaxe. Durma um pouco.
— Fácil falar para quem tem todas as memórias — resmunguei.
Ele riu, dando de ombros.
— Eu sou mesmo incrível.
Semicerrei os olhos.
— Não foi isso que eu disse.
—Não? — Suas sobrancelhas franziram em uma careta exagerada.
— Eu jurava que era isso que eu tinha ouvido.
Bufei.
— Eu poderia gostar de você quando tinha minhas memórias, mas
agora não entendo o porquê.
Ele puxou minhas pernas para cima da cama, como se eu fosse uma
criança que precisava ser colocada para dormir.
— Você fugiu para tentar me encontrar porque estava com medo que
eu me ferisse, Alyssa — ele apontou o óbvio. — Você gosta de mim.
Estalei a língua.
— É algo que vai e vem.
Ele puxou um cobertor para cobrir meu corpo.
— Não faça isso novamente, ouviu? — Ele já não sorria mais. —
Nunca mais se coloque em perigo por mim.
— Eu não sou uma donzela indefesa — repeti as palavras que, um
tempo atrás, ele havia me dito. — Não me trate como uma.
Nathan mordeu o lábio para não sorrir. Ele me encarou por um
tempo, antes de puxar uma cadeira para o canto da minha cama, perto dos
meus pés. Ele se sentou, tirou os coturnos e se ajeitou em uma posição
confortável, com os pés sobre a cama.
— Você vai ficar? — perguntei.
— Se eu sair agora, sua mãe vai entrar — ele murmurou, os olhos já
fechados, a cabeça jogada para trás. De fato, era possível ouvir alguém do
outro lado da porta bufar. — Estou te fazendo um favor.
Justo.
— Então me conte mais — pedi. — Conte sobre as coisas que eu
deveria me lembrar.
Ele hesitou, mas então assentiu.
Nathan passou a próxima hora me contando sobre a época em que
éramos crianças. Contou sobre como o chutei por ter rido do meu cabelo,
depois que eu mesma usei uma tesoura de cozinha para cortar uma franja.
Ele também disse que eu era uma pirralha e eu retruquei que apenas um
pirralho poderia reconhecer outro pirralho. Nate falou sobre como me
ajudou a perder o medo do Lago e isso me pareceu levemente familiar. Eu
sempre tive medo, não exatamente da água, mas dos animais que o Lago
poderia hospedar, e sabia que alguém havia me ajudado a superar aquilo, só
nunca assimilei que havia sido Nathan. Ele disse que tínhamos ficado três
horas dentro da água, sem nos mexer muito, apenas para que eu me
acostumasse com aquilo, com a calmaria da água, e finalmente perdesse o
medo dos animais que moravam nela. Eu já sabia nadar, claro, mas nunca
ficava muito tempo no Lago por medo. Eu tinha sete anos quando Nathan
fez isso, pouco antes de eu ir embora.
Também descobri que sou o motivo pelo qual ele lê. Aparentemente,
eu enchi seu saco, listando todas as maravilhas da leitura até que
estivéssemos lendo juntos e comentando sobre as histórias. Ele contou
também que, um dia, algumas crianças humanas mais velhas adentraram o
território de nossas casas, depois de sair de uma trilha. Elas nos
encontraram lendo sobre o tablado e um dos meninos começou a fazer
piada com Nathan por ser um menino que lia. Como resposta, eu soquei a
cara dele e gritei que soltaria nosso cachorro sobre eles, se não saíssem
dali.
O cachorro em questão era Zeus. Com sete meses de vida. Pequeno
e estabanado.
Meu amigo esquecido me contou vários pequenos detalhes que
aqueceram meu coração, mas quando perguntei sobre a primeira vez que
nos reencontramos quando eu tinha quinze anos, Nathan desconversou. Ele
disse estar cansado e que eu também deveria estar e pediu para que eu
dormisse.
Resmunguei algo sobre não conseguir dormir, mas Nathan já estava
respirando profundamente, imerso no sono. Então eu fechei meus olhos e
me obriguei a tentar dormir.
Acho que horas se passaram, enquanto me esforçava para isso,
escutando a respiração leve de Nathan para tentar igualar a minha. Em
algum momento, a tranca da porta fez um tic e apertei meus olhos,
esperando que minha mãe me encontrasse dormindo e fosse embora.
Mas foi a voz sussurrada de Aisha que ouvi:
— Vou apenas checar como ela está e então podemos deixá-los.
— Talvez devêssemos pedir que Nathan nos acompanhe — foi
Cassandra quem respondeu.
Eu trinquei os dentes, não queria que ele fosse a lugar algum. Era
reconfortante tê-lo no quarto. Mas não falei nada.
— Deixe-os, irmã — Aisha disse para meu alívio, mais firmemente
do que pensei que ela era capaz. — Não há mais razão para esconder a
verdade.
Suas mãos tocaram a pele da minha testa e bochecha. Uma leve
quentura passou de sua mão para meu rosto e me senti relaxar
instantaneamente, pronta para dormir.
Ouvi seus passos contornar a cama, indo para perto de Nathan.
— O que é para ser, não pode ser combatido — ela sussurrou. —
Você já deveria saber disso, irmã. Aqueles destinados a se encontrar,
sempre se encontrarão.
Cassandra bufou. Ouvi passos caminhar em direção a porta, até que
essa se fechou, deixando o quarto quieto novamente, com apenas eu e
Nathan nele.
Então, eu finalmente dormi.
Eu acordei com um rompante, encontrando Nathan a meio caminho
da porta.
— Onde vai? — perguntei, a voz rouca de sono. Não sabia que
horas eram, mas o que quer que Aisha tenha feito, foi melhor do que um
remédio tarja preta para dormir.
De costas para mim, pude ver a tensão nos ombros de Nathan. Ele
enfiou as mãos nos bolsos, antes de se virar para mim.
— Tenho coisas para fazer.
Ansiedade me sufocou. Será que agora ele já não corria mais
perigo? Será que seu destino já havia mudado? Eu não sabia como as coisas
funcionavam, quais regras seguiam. Esperava que Diana se intrometesse,
pedisse para me fazê-lo ficar, mas ela não apareceu. O silêncio era a minha
resposta e parte de mim ficou decepcionada, querendo qualquer desculpa
para fazê-lo ficar mais.
Eu tinha medo que se ele me deixasse, a verdade também o faria.
— Quando volta?
Mesmo cansado, ele ainda era o homem mais lindo que eu já tinha
visto. Só agora percebi que ele devia ter passado a noite em claro, já que
conseguiu chegar aqui tão rápido depois do ataque. Queria que ele ficasse e
me contasse mais sobre as coisas das quais não me lembrava, mas seu olhar
distante me impediu.
— Nada mudou, Alyssa.
Respirei fundo.
— O que?
— Você se machucou por minha causa e faria isso de novo — ele
usou minhas palavras contra mim. — Nossos pais estavam certos quanto a
isso. Não posso ser seu amigo e seu Protetor.
Eu me sentei, muito próxima de xingá-lo.
— Serena é minha amiga e minha Protetora.
Ele assentiu.
— E ela sabia que você estava fora do Outro Lado e não fez nada.
— Porque eu pedi! — rebati.
Mais uma vez ele apenas assentiu.
— Exato, Alyssa. Ela respeitou seu pedido porque é sua amiga.
Qualquer outro Protetor teria ido buscá-la ou mandado alguém para fazer
isso.
O palavrão estava na ponta da minha língua agora.
— Roman é meu amigo e meu Protetor. — Optei por deixar o
palavrão para depois. Em breve, eu provavelmente sentiria ainda mais
vontade de usá-lo.
Nathan revirou os olhos como uma criança mimada.
— Roman é um idiota, mas ele colocaria sua vida na frente de
qualquer lealdade estúpida. — Seus olhos perfuraram os meus. — O
problema é que ele está apaixonado por você, o que o faz ainda mais idiota.
Dessa vez o palavrão saiu da minha boca, antes que eu tentasse
impedir.
Apaixonar-se por mim era um ato idiota?
Eu me levantei da cama com tanta raiva que praticamente esmurrei
o cobertor para fora.
— Talvez ele esteja mesmo apaixonado por mim, já que ele me
beijou — atirei em sua cara as palavras como se fossem uma bomba, mas
ele nem demonstrou reação. A atitude infantil não me envergonhou tanto
quanto deveria, no entanto. Sua reação apenas me enfureceu ainda mais.
Por que ele não se importava quando eu me importava tanto? O quão idiota
eu era? — Pelo menos ele não acha que gostar de mim é algo idiota.
Ele estalou a língua. Nós estávamos tão próximos que esperei que
ele se afastasse, mas Nathan se manteve parado como uma estátua. Alto e
largo e ridiculamente lindo. E eu odiava que sua beleza me chamasse
atenção, mesmo quando eu queria arrancar seus belos olhos. Talvez eu
arrancá-los resolvesse um pouco o problema.
— Você é a Fidly. Ele é o Protetor — Nathan expôs, como se fosse
óbvio. — Não seja estúpida, Alyssa. A história já nos mostrou como um
relacionamento assim, pode ser desastroso.
Então era disso que se tratava?
Esperei sentir raiva por suas palavras. Esperei sentir como se ele
estivesse pisando no coração que não pertencia à Fidly, mas à Alyssa. Mas
eu entendi. Entendi aquilo que ele não era capaz de dizer: que sua mãe
morreu porque seu pai fez as escolhas erradas. Porque Brian agiu como um
marido e não um Protetor, no dia fatídico que tirou a vida de Diana.
Ele não disse, mas eu sabia que ele não conseguia parar de pensar
que eu e ele poderíamos repetir a história.
Porque, enquanto encarava os olhos falsamente frios de Nathan,
enxerguei o garoto que perdeu a mãe e passou sua vida inteira sozinho. Pelo
menos quando eu não estava nela, acho. Ele parecia ser bom em fingir.
Fingir que nada o atingia, que o mundo não era nada mais do que escravo
de seus desejos. Ele usava essa camada imperturbada para que as pessoas
não vissem o quanto ele estava machucado, o quanto estava sozinho. Porque
uma vida solitária é doída demais. Eu sabia disso.
Nathan poderia ser bom em fingir, mas naquele momento eu vi tudo.
Vi a verdade que ele tanto temia expor. Vi o garotinho que fugiu de casa
para me encontrar. O garoto que me abraçou e me fez rir como se o mundo
fosse perfeito. O homem, Protetor, que me salvou e me ajudou a ser uma
ameaça para meus inimigos e não mais a presa.
Ele estava aqui agora. Havia corrido para me encontrar e se
certificar de que eu estava viva. Diana parecia saber disso, que ele não
mediria esforços para ter certeza de que eu estava bem. Meus pais sabiam
que aquele sentimento que nos unia, nunca se perderia, a ponto que optaram
por tomar nossas memórias.
Ele estava aqui.
Ele se importava.
Por isso, eu escutei o que meu coração tem tentado me dizer por
todo esse tempo. Eu finalmente escutei o apelo que eu tentava ignorar
desde que o conheci. Ou desde que o encontrei novamente. Porque, Deus do
céu, era a coisa mais estúpida, mas meu coração gritava por ele.
Era como se ele fosse o final de uma canção que não deixava minha
mente, mesmo que eu não recordasse a letra por completo. Minha alma
cantarolava com aquela melodia. Meu coração disparava com a letra
cantada. Meu corpo todo tentava responder a ela.
Então, eu fiquei nas pontas dos pés e puxei seu rosto para mim. Me
movi tão rápido que me peguei de surpresa. Se eu me permitisse pensar
demais, acabaria desistindo.
Nossos lábios se tocaram e eu inspirei, nervosa. Nathan não se
afastou. Tomou apenas um segundo para absorver o que acontecia antes de
seus braços envolverem minha cintura e ele me puxar para mais perto.
Nossos peitos se fundiram um no outro e ele chupou meu lábio.
— Porra — ele soltou sobre sua respiração.
Eu puxei seus cabelos, fazendo com que ele calasse a boca e
continuasse a usando na minha. E ele fez isso perfeitamente. Enquanto o
beijo de Roman foi como um toque suave, o de Nathan parecia queimar.
Sua língua invadiu a minha e a tomou como queria. Era profundo e tão
desesperado que logo eu estava sendo prensada contra a parede.
Era como entrar em casa depois de um longo tempo fora.
E, mesmo que Roman fosse uma pessoa incrível e por mais terrível
que pudesse ser pensar isso, era este o beijo que eu queria que tivesse sido o
meu primeiro.
Nathan me beijava com paixão. Como se eu fosse água em meio ao
deserto, ou ar, enquanto ele se afogava. E eu respondia na mesma
intensidade. Eu o respirei. Quando sua língua tocou a minha, dessa vez com
adoração e timidez, juro que minhas pernas falharam e só suas mãos em
minha cintura foram capazes de me manter em pé.
Eu podia sentir minha alma saudando a dele. Como velhas amigas
que se reencontravam. Meu coração batia tão forte que apenas o coração
dele, batendo no mesmo desespero, acalmava meu orgulho.
Mas então eu toquei seu rosto, traçando a curva de seu maxilar com
a ponta do dedo, e ele tirou a boca da minha. O azul de seus olhos pareceu
preencher todo o espaço, as pupilas dilatadas. Eu não via mais nada. Suas
mãos em minha cintura me apertaram levemente, antes de me soltar de vez.
Eu podia vê-lo erguer suas barreiras, criar as muralhas em volta do
próprio coração. Pude vê-lo se afastar daquilo como um cordeiro assustado
se afastava de um caçador.
— Eu não posso, Alyssa.
Respirei fundo, tentando diminuir a dor que suas palavras
provocavam.
Talvez eu devesse ter criado minhas próprias muralhas.
— Nós não somos eles, Nathan.
— Ainda não — ele sussurrou, encarando-me como se tentasse me
marcar em sua mente. — E não vou permitir que sejamos.
Ele se afastou de mim e eu tentei manter a calma, porque ele parecia
estar se despedindo e aquilo não era algo que eu estava pronta para aceitar.
— Nathan, você não precisa ir embora.
Ele soltou uma risada amarga.
— Eu claramente preciso.
— Por que gostar de mim é estúpido? — não ousei usar a palavra
amor, mesmo que talvez eu a sentisse no fundo do meu estômago agora.
Nathan me olhou.
— Porque é tão estúpido que não consigo respirar — confessou, em
um sussurro. — Desde que me lembrei de você, isso só piorou. Você não sai
da minha maldita cabeça. Eu não tenho paz, Alyssa. Você é como uma
droga em que eu estou viciado. E eu não consigo respirar. — Seus olhos me
diziam tudo e nada ao mesmo tempo. Ele era uma alma atordoada e,
também, vazia. Estava se afastando tão rápido que parecia areia escorrendo
pelos meus dedos. — Passo todo maldito momento do meu dia miserável
tentando não pensar em você, tentando não sentir sua falta, e eu falho toda
vez. Sempre foi assim, como se você fosse uma extensão de mim, mesmo
quando ainda éramos crianças. Você sempre foi meu porto seguro, o lugar
que me fazia sentir em casa. Minha melhor amiga, a pessoa com quem eu
podia contar e confessar todos os meus segredos mais obscuros, minhas
dores mais profundas. Você é como o ar, Alyssa, muito antes de eu começar
a afogar. E eu não vou deixar que um erro meu a mate. Se meu pai me
ensinou algo, é que amar é um erro para tolos. E eu não vou te condenar a
isso.
Amar é um erro para tolos.
Meu peito subiu e desceu, enquanto eu lutava contra as lágrimas.
Porque ele estava indo e eu nem me lembrava dele ainda. De nós. Ele
estava indo e eu tinha quase certeza de que estava apaixonada.
Nathan estava me deixando, nos condenando à solidão que nenhum
de nós suportava mais. Eu era sua amiga, sua melhor amiga, e ele também
era o meu. Mesmo que eu não me lembrasse, eu sentia. Era por isso que
tinha sido tão fácil confiar nele. Por isso eu nunca conseguia aceitar o que
diziam sobre ele: porque eu o conhecia, melhor que ninguém. Só não me
lembrava.
E me doía ver tanta dor naquele lago azul que eram seus olhos. Eu a
sentia como se fosse minha. A mágoa. A culpa. O ódio. E o amor.
— Não faz isso — implorei, todo meu orgulho se contorcendo sob
seus pés.
— Você vai ficar bem, Alyssa. Vou me certificar disso. — Ele
acariciou minha bochecha pelo que parecia ser a última vez. E então, ele
beijou minha boca novamente. Apenas um toque de seus lábios nos meus,
como uma leve carícia, mas que me deixou completamente desconcertada.
Era seu adeus. Era sua forma de ter aquilo, uma última vez. — Só não faça
nada idiota, Aly.
Ele se afastou tão rápido que precisei usar a parede para não cair ali
mesmo. Ele já estava saindo pela porta quando eu disparei, trêmula:
— Você é um covarde.
Nathan não se virou para mim.
— Sim, eu sou.
Então ele me deixou sozinha. De novo.

Horas mais tarde, quando percebi o céu já completamente claro,


minha mãe atravessou pela porta do quarto junto com meu pai. Eu não olhei
em seus rostos. Não ousei dizer nada também. Não quando eu estava tão
destruída por dentro. Eu era uma variável. Eu era um perigo. Eu era uma
mobília sem memórias. E Nathan não quis fazer sua aposta. Acho que parte
de mim entendia, talvez fosse certo que ele protegesse seu coração dessa
forma, caso as coisas dessem errado.
E olhar para meus pais, encarar o que haviam feito, apenas me
enfurecia. Abria ainda mais aquela ferida em meu peito. Eles me agrediram,
mesmo sem me tocar. Haviam violado minha mente, tomado o que era meu.
E haviam feito aquilo para me controlar. Nos controlar.
— Alyssa, nós precisamos conversar — minha mãe anunciou, como
se não fosse nada demais.
Eu quase ri dela. Quase gargalhei da careta séria que ela portava.
Era a ansiedade e a raiva desabrochando em meu peito. Era a dor também.
— Ah, com certeza precisamos, mãe — debochei e me virei para
ela, cruzando os braços. Ela não me intimidaria dessa vez. — Por que não
começa me contando como consigo minha memória de volta?
Meu pai inspirou alto, mas minha mãe nem piscou, enquanto me
encarava.
— Eu fiz o que precisava ser feito — ela disse.
Assenti.
— É, você diz muito isso.
— Filha, você não estava pronta para entender tudo o que isso
significava. Mal conseguimos tirar você de perto de Nathan da última vez.
Nós tivemos que tomar ações drásticas.
Só agora percebi que Nathan nunca chegou a contar o que havia
acontecido depois do nosso encontro quando eu tinha quinze anos. O que
aconteceu para que nossos pais apagassem nossa memória.
—“O que tudo significava”? — vociferei. — Ter um amigo? Ter
alguém em minha vida além de vocês dois? E “ações drásticas” —
desdenhei, formando aspas com as mãos. — Não deveriam incluir apagar
minhas memórias, pai.
— Nós não apagamos — Cassandra disse, entrando no quarto sem
aviso. Ela sempre fazia aquilo e eu entendia que era alguém importante,
mas precisava aprender a respeitar a conversa alheia. — Eu apenas as
encobri. Quanto mais tempo passam juntos, mais as memórias são atraídas
para fora da caixa. Nathan já se lembrou e você também lembrará.
Ouvir seu nome doeu. Eu trinquei os dentes.
— Vocês não entendem o tanto que isso é errado? — falei, irritada.
— São minhas memórias. Partes de quem eu sou. Eu estive aqui este tempo
todo como uma idiota sem saber de coisas que outros sabiam. E por que?
Porque ele havia me contado a verdade? Porque ele é um Protetor e não
podíamos ser amigos? Vocês violaram minha mente, apenas para ser mais
fácil me controlar, para conseguir me transformar em quem queriam que eu
fosse.
— Não foi para torná-la alguém diferente, Alyssa. Foi para protegê-
la — minha mãe se defendeu.
— Proteger do que? Por que apagar justo Nathan?
— Porque você não queria deixá-lo — Cassandra explicou. — E
você é a Fidly, Alyssa. Você tem seus deveres e Nathan tem os dele.
— Eu quero minhas memórias — retruquei. — Me devolva.
Cassandra balançou a cabeça.
— Você as tem, criança. Apenas precisa desbloqueá-las.
Eu cerrei meus olhos.
— Desbloqueie para mim. Foi você quem fez isso, então conserte.
Ela negou novamente.
— Faça sozinha, criança.
Criança.
— Alyssa, apenas esqueça isso. Nathan foi esperto o bastante para
entender o que precisava ser feito e ele se foi — minha mãe disparou, a
verdade doendo fundo em mim. — Agora é a sua vez de seguir em frente e
continuar dando prioridade para seu treinamento.
Cassandra balançou a cabeça, em concordância. Meu pai apenas me
observou.
— Eu estou focada em meu treinamento. Se não fosse por Nathan,
eu nem mesmo teria descoberto minha capacidade de utilizar os poderes dos
Protetores! — explodi, atirando a verdade neles sem receio. — Sabia disso,
mãe? Sabia que herdei parte dos seus poderes? Que sou capaz de correr
mais rápido, bater mais forte, ouvir melhor do que um humano? E sabia que
foi ele quem me ensinou isso?
— O que? — falaram, em uníssono.
— Enquanto Nathan me ajudava a treinar, ele desconfiava de que
talvez eu fosse mais forte do que sabia. Que as mentiras pudessem ter
ocultado minhas habilidades provenientes da herança Protetora.
— E você nunca nos contou? — minha mãe atirou.
— Você consegue usar mesmo os poderes? — meu pai perguntou,
ao mesmo tempo.
— Isso é interessante — Cassandra comentou, o olhar distante,
como se pensasse no que aquilo significava.
— Eu sou capaz de usar as habilidades dos Protetores, mas com um
pouco menos de precisão. E se isso é possível, é graças a ele, porque foi ele
quem pensou na possibilidade para começo de conversa. Foi ele que insistiu
que eu tentasse e foi ele quem passou noites me treinando. Então não me
diga que ele é uma ameaça. Nathan nunca foi uma ameaça para mim.
— Eu não estou acreditando que manteve isso escondido de nós —
minha mãe me fuzilou.
— Estamos contando as vezes que ocultamos a verdade agora? —
Exibi os dentes. — Tenho certeza que irá perder esse jogo, mãe.
— Alyssa, tente entender...
Eu me virei para meu pai, praticamente rangendo os dentes de raiva.
— Entender o que, pai? Como se sentiria se eu decidisse tirar anos
de memórias da sua vida? Se tirasse alguém importante da sua vida?
— Eu digo e repito: fiz o que precisei fazer — minha mãe repetiu, o
nariz empinado, os olhos frios de determinação. — Não foi prazeroso, mas
foi o certo.
Ela não se desculparia. Não reconheceria o próprio erro ou mesmo
me ajudaria a conseguir minhas memórias de volta. Jasmine não se
arrependia. A fúria cresceu dentro de mim com aquela percepção.
— Eu decidi que não quero falar com você — informei. — Não
quero que me dê ordens e não quero que fique me rondando como uma
segurança. Eu sei que é minha mãe, mas se ficar por perto agora, vou dizer
coisas que talvez eu me arrependa. Eu quero que fique longe de mim,
principalmente se não mudar sua forma de pensar. Se não for me tratar
como uma pessoa, como alguém que merece respeito e direito a tomar
escolhas, quero que fique longe de mim.
Meu pai tentou se aproximar, mas eu me desviei dele.
— Você também — acrescentei. — Não quero falar com você
também.
Cassandra soltou um assovio, quebrando o silêncio vindo da reação
dos meus pais.
— Ok, então. Aisha vai encontrar você em sua cabana, Alyssa.
Não respondi. Peguei meu celular arruinado na mesinha e saí do
quarto antes que eu quebrasse algo.
Somente quando deixei a enfermaria, que percebi que estava na casa
principal. Não era exatamente uma casa comum e nem se parecia com as
outras cabanas. Ela era quase toda feita de vidro, por exceção de algumas
vigas de sustentação de madeira e o telhado. Lembrei de encarar o lugar
diversas vezes quando ia treinar. Era uma construção tão exuberante.
Olhei em volta do longo corredor iluminado e logo me lembrei
porque nunca tinha entrado ali antes.
— Fidly — Ravenna me chamou, saindo por uma porta mais à
frente. — Venha.
Era por causa dela.
Eu sabia que ela tinha me falado para encontrá-la assim que
amanhecesse, mas eu estava esperançosa na minha capacidade de conseguir
fugir disso.
Será que conseguiria cavar um buraco grande o suficiente, onde eu
pudesse me enterrar imediatamente? Eu estava muito confiante das minhas
probabilidades. Qualquer coisa era melhor do que lidar com Ravenna.
— Agora — ela ordenou quando viu minha hesitação.
Suspirei e caminhei até ela. Entrei em um grande escritório, com
uma linda mesa de carvalho escura e cadeiras que pareciam confortáveis
demais para serem baratas. Mas quem disse que ela pagava por isso? Até
onde sabia, alguma das Guardiãs poderiam simplesmente materializá-las.
Quem sabia como diabos as coisas funcionam nessa subdimensão? Internet
e sinal de celular, por exemplo, funcionavam normalmente, mas também
havia uma redoma de proteção sobre o lugar. Realidade mundana e magia
se mesclavam no Outro Lado e isso era bastante confuso.
Serena havia contado que os Protetores recebiam por seus trabalhos,
e as famílias influentes tendiam a duplicar suas fortunas criando comissões
e realizando missões mais perigosas. As Guardiãs movimentavam o
dinheiro, sendo herdeiras importantes de seus continentes. Freya, por
exemplo, era dona, por direito, de praticamente toda Itália. O Destino
garantiu que as fortunas fossem repassadas e tivessem longevidade, para
que suas criações tivessem do que viver ao longo das gerações. Isso
explicava aquelas riquezas, e a hierarquia das famílias.
Inclusive, era dali que grande parte do dinheiro dos meus pais vinha.
Minha mãe não só tinha uma rechonchuda herança proveniente dos Nephus,
mas também ganhava bem, pelo serviço prestado como Protetora.
Encontrei Ravenna sentada, encarando-me com olhos felinos.
— O que você quer? — perguntei. Quanto mais rápido ela
desembuchasse, mais rápido eu poderia ir embora.
— Quero que entenda suas obrigações aqui, Fidly. — Seus dedos
bateram no tampo da mesa no mesmo ritmo que seus pés. — Quero que
você saiba que, quando se coloca em risco, condena todos nós à uma vida
de incerteza e medo. Então, por gentileza — Ela exibiu um sorriso falso —,
não seja egoísta.
Egoísta? Era eu quem estava vivendo baseado nas expectativas
alheias. Fui eu quem precisei sair da minha casa para viver neste lugar
porque eles precisavam que eu soubesse lutar. Era eu quem estava sendo
perseguida por um assassino de nem sei quantos malditos anos.
Eu tive minhas memórias ocultadas. Tive meu amigo afastado de
mim. Tive que me acostumar a uma nova casa, a um novo treinamento, a
uma nova maldita dimensão e eu era egoísta?
Claro, eu era egoísta por tentar ajudar Nathan.
Inspirei fundo, engolindo todos os palavrões. Eu não perderia meu
tempo com Ravenna.
— Era só isso que precisava dizer?
— Vicenzo está ficando mais forte. — Seus dedos pararam de bater
na mesa quando ela cerrou o punho. — Não sabemos como, mas uma das
Guardiãs está investigando. Isso quer dizer que você morrendo, apenas
atrasará algo para o qual podemos não ter mais tempo. Meus Protetores
estão indo em missões diárias. Humanos estão desaparecendo de suas casas,
e mesmo meus Protetores estão sendo assassinados. Se não tem qualquer
respaldo por sua vida humana, tenha pela nossa. Nós não temos auxílio de
uma vida imortal, Alyssa. Meu povo sangra e morre. Então tente fazer seu
papel nessa guerra antes de morrer.
Engoli minha raiva. Eu entendia seu apelo. Até poderia entender seu
descontentamento. Mas eu não tinha pedido para nascer com aquela marca.
Não tinha feito nada para merecer aquele fardo.
E temia, principalmente, pela vida dos humanos que não tinham
chance contra qualquer Desertor.
— Se essa guerra é entre Protetores e Desertores, por que eles
trazem os humanos para isso?
— Nenhuma guerra se limita a dois exércitos.
— Mas o que ele pode querer com os humanos?
Ela cerrou os olhos para mim.
— Preocupe-se com os Protetores, Fidly. Nós daremos um jeito de
garantir que os ratos sobrevivam.
Ratos. Era isso que ela pensava de nós. Eu não era completamente
humana, mas foi como ela havia me chamado, não foi? E ela sempre fazia
questão de tratar meu pai com desprezo, como se ele não passasse de um
rato de esgoto.
Ravenna pensava que ser uma Protetora a fazia melhor do que os
humanos. Mas eu sabia que suas habilidades não a tornavam uma boa
pessoa, mesmo que fosse poderosa. Em muitos sentidos, podia ser
comparada a muitos humanos.
— Vocês não deveriam se preocupar com os humanos? Não é este o
seu trabalho?
— Há muito tempo estamos tendo muitos trabalhos diferentes,
Fidly. Desde que Freya não soube controlar seu coração. Nós precisamos
cuidar do Tesouro de ameaças que você nem imagina, impedir que você
morra, matar Desertores e, nas horas livres, também impedimos que os
humanos sejam extintos. Não é algo que eu me preocupe pessoalmente, mas
é o que devemos fazer para manter a balança do Destino equilibrada.
Porque, não sei se entendeu, mas este é o nosso trabalho inicial: manter o
equilíbrio.
Com tudo acontecendo, acabei me esquecendo que havia algo mais
importante do que me manter viva: o Tesouro. Minha mãe não soube me
explicar bem o que ele era, aparentemente nem mesmo as Guardiãs sabiam
ao certo. Mas havia algo lá fora, dentro do Lago, que era mais importante
para manter o equilíbrio do que qualquer outra coisa. Mas o que diabos era?
— Entendido. Suponho que eles sejam sortudos por você poder tirar
um tempo para ajudá-los.
— Você supõe corretamente, Fidly.
Cerrei o punho.
— Mais alguma coisa, Ravenna?
Seu olhar não poderia ser de maior desprezo.
— Eu tento encontrar o que a faz tão especial, o motivo pelo qual
você foi marcada. Mas não encontro nada. — Ela soltou uma risada sínica.
— Saia da minha sala e não deixe mais este território, ou prometo que lhe
prenderei em uma jaula como um animal, até que esteja pronta para fazer o
que precisamos que faça.
Sua ameaça apenas deu combustível para minha já existente fúria e
desprezo por ela. Eu quebraria suas mãos antes que ela me tocasse.
Saí da sala sem nem lhe dar uma resposta. Ravenna não a merecia.
Fosse lá o que a mantivesse leal aos Protetores, não era, nem de longe,
bondade.
Quando saí da casa de vidro, fui abordada por Serena. Meus pais
falavam sério ontem quando me disseram que eu teria um Protetor
designado para me seguir a todo maldito momento. Pelo menos eles
permitiram que Serena continuasse por perto, algo que Nathan não podia.
Serena repetiu mil vezes que sentia muito por não ter ido me
encontrar, antes que as coisas ficassem tão ruins. E eu apenas a lembrei que
fui eu quem havia pedido para ela não fazer nada. Eu não tinha ânimo
algum para conversar ou ouvir mais sobre o ataque. Eu não queria pensar
no que tinha acontecido, porque sabia muito bem que havia mais do que
Desertores querendo me matar agora.
Eu preferia ignorar que aquele dia existiu. Também iria ignorar que
hoje existiu.
Mas Serena insistia em saber o que aconteceu comigo e Nathan e eu
acabei contando. Chegamos à cabana e eu me joguei no sofá, vomitando
tudo o que descobri, toda a verdade que Nathan me confessou. Como meus
pais apagaram — ou bloquearam — nossas memórias. Bem, Cassandra
havia feito isso a pedido deles. Contei sobre como eu e Nathan éramos
amigos antes disso tudo e ele se lembrava, mas eu não. Também acabei
contando sobre Ravenna e sua teoria de que Vicenzo estava ficando mais
forte. Serena não respondeu nada, mas pela sua expressão, podia ver que ela
acreditava nisso.
Passamos as próximas duas horas conversando. Bem, eu
choramingava e ela escutava. Quando contei que Nathan provavelmente
não voltaria para o Outro Lado, ela o chamou de covarde, o que me fez
concordar.
Porque eu nunca estive tão brava com alguém simplesmente por ir
embora. Eu queria que ele tivesse ficado. Queria que lutasse por nós.
Nathan me deixou e nem minhas memórias eu tinha, para completar
os buracos na história que ninguém fazia questão de me contar.
— Isso vai passar — Serena disse.
— O que?
— A dor, como se ele fosse uma parte sua que foi arrancada. —
Minha amiga desviou o olhar. — Sempre passa.
Eu sabia em quem ela estava pensando. Roman. Por que eu não vi
isso antes? Eu deveria ter percebido que suas palavras não eram apenas
enrolação ou brincadeiras vazias.
— Sobre Roman, realmente não foi nada demais...
— Ele gosta de você, Aly — ela me cortou. — Tudo bem. Eu acho
que percebi logo no primeiro dia quando ele voltou para cá, dizendo o
quanto você era muito mais interessante do que ele imaginava. Como era
corajosa. — Eu não sabia que ele tinha dito isso, mas foi difícil escutar
sabendo que meu coração não podia retribuir o sentimento e que, mesmo
que pudesse, isso machucaria Serena ainda mais. — Se você realmente
gosta dele, acho que seria bom. Ele seria feliz.
Eu balancei a cabeça levemente.
Seria tão mais simples amar Roman. Mesmo com Serena na
equação, amá-lo ainda envolveria muito menos drama porque eu sabia que
minha amiga nunca impediria, dois de seus melhores amigos, de serem
felizes. E eu amava Roman, mas o amava da mesma forma que amava
Serena. Não era o mesmo amor que sentia por Nathan. E não era nem de
longe paixão. Por alguma razão doentia, meu coração insistia em bater mais
forte por Nathan. O órgão idiota estava empenhado em amar Nathan,
mesmo quando ele não se deixava ser amado.
— Você o ama? — perguntei à Serena, tentando calar aquele
sentimento em meu peito.
Ela me olhou.
— Às vezes acho que só sinto atração por ele, porque, bem, olhe
para Roman. Ele é lindo e alto e forte, e apesar de ter o pior humor possível,
ele é tão leal e corajoso. Gosto quando ele está por perto, e quando não está,
fico procurando por ele. Então, nas outras vezes acho que sim, acho que o
amo — confessou. — Mas pode ser amor quando não é retribuído?
Pode. Era injusto, cruel e muitas vezes errado, mas podia sim ser
amor mesmo quando não era correspondido. Porque o amor não era uma
transação. Não era um acordo. Era apenas um sentimento, e você não tinha
absolutamente nenhum controle sobre. Amar alguém era como um impulso,
como cair em um abismo porque não há nada a que se agarrar. Não dá para
controlar. Não dá para conter.
Talvez, se pudéssemos escolher quem amar, não seria chamado
“amor”.
— Acho que pode ser amor até mesmo quando não deveria.
— Você ama o Nathan? — ela perguntou.
Eu amava?
Nathan me enfurecia, instigava e encorajava, tudo ao mesmo tempo.
Quando o desespero me sufocava, o simples fato de ele se fazer presente,
parecia resolver metade dos problemas, como se ele fizesse as coisas se
encaixarem. E eu simplesmente amava a sensação de tê-lo por perto,
mesmo que fosse para se acomodar em meu sofá minúsculo e ler em
silêncio por algumas horas. Como se devesse ser assim. Como se fôssemos
parte um do outro que nem mesmo o tempo ou a memória pudesse afastar
ou destruir.
Às vezes, o que eu sentia por ele parecia querer explodir do meu
peito e isso nem sempre era bom. E talvez, se eu tivesse minhas memórias,
saberia responder com certeza, porque se me conheço bem, a Alyssa de
quinze anos teria se apaixonado por Nathan com um só olhar. Mas esta
Alyssa o amava? Eu podia amá-lo?
Céus, eu podia não o amar?
Quando não respondi nada, Serena apenas assentiu, como se
soubesse a resposta mesmo que eu não pudesse dizê-la em voz alta. Mesmo
que as palavras não saíssem.
— Apenas não deixe que Roman pense que há uma chance quando
na verdade, não há.
Acordei no meio da tarde, depois de um cochilo após o almoço, com
o barulho de alguém batendo à porta. Eu estava me permitindo ser
completamente improdutiva pelo dia. Seja lá como o poder de Aisha
funcione, ele havia me curado, mas também me deixado exausta. Para sair
da cama e descer as escadas, eu sentia como se estivesse descendo o
Everest.
Serena tinha me deixado descansar há um tempo, mas outro Protetor
tinha chegado para guardar minha cabana. Jasper dessa vez. Ele pareceu
genuinamente feliz ao me ver com todos os membros no lugar, o que me fez
lhe dar um sorriso verdadeiro. Mas não nos falamos muito, estava cansada
demais para ao menos perguntar se ele sabia sobre Nathan e as memórias
bloqueadas. Apenas entrei e dormi.
Agora, ao abrir a porta, Jasper já havia ido embora e Aisha estava
parada na soleira em seu lugar, esperando um convite para entrar. Não que
ela realmente precisasse de um. Ela era poderosa e imortal, as regras de
convivência nem deveriam se aplicar a ela. Mas eu estava feliz que ela
fosse alguém que se preocupava com aquilo, o que não podia ser dito a
respeito da outra Guardiã, Cassandra.
— Oi.
Seus olhos dourados brilharam e ela abriu um enorme sorriso para
mim.
— É tão bom vê-la novamente, Alyssa! — ela me abraçou. — Você
parece cansada. Como se sente?
— Cansada — resmunguei.
Seu vestido branco, de costas abertas, balançava enquanto ela
adentrava a cabana. De pés descalços, Aisha ainda parecia algum tipo de
deusa mística. Ela observa minha cabana com uma expressão de satisfação.
— Vejo que gosta de ler.
Assenti, caminhando até o sofá para poder me sentar.
— O que quer? — perguntei de uma vez. Sabia que estava sendo
grosseira, mas eu estava cansada e Aisha provavelmente tinha
conhecimento sobre o que haviam feito com minhas memórias. Sabia de
tudo e não disse nada, como Cassandra e meus pais, e não pude me impedir
de ficar irritada com isso. Eu me lembrava do que a Guardiã havia dito ao
entrar na enfermaria, enquanto eu e Nathan estávamos dormindo — ou
tentando. “Não há razão para esconder a verdade.”
Aisha se virou para me olhar.
— Posso ajudá-la a se curar mais rapidamente. O cansaço é parte da
primeira cura que realizei. Posso fazer com que se sinta melhor.
— Não precisa se desgastar por isso, está tudo bem.
Ela bateu as mãos.
— Besteira! — Aisha se sentou na poltrona à minha frente e
estendeu a mão. — Me dê sua perna. Era a lesão mais severa.
Sim, porque eu havia conseguido a proeza de quebrar minha perna
na queda.
Eu suspirei, sentei ao seu lado, e estendi minha perna esquerda para
ela. Era, de fato, a parte que ainda parecia pulsar quando eu ficava em pé.
Aisha imediatamente colocou suas mãos sobre minha pele nua e uma luz
amarelada fluiu de suas mãos. O verão quente apenas pareceu esquentar
mais quando a luz consumiu minha perna. Ela contornava minha pele como
se fosse uma corrente.
— Diga o que está em sua mente, Alyssa.
Eu ergui meus olhos para ela.
— Há muitas coisas em minha mente, Aisha.
Ela sorriu, sempre tão carinhosa.
— Claro que há.
— Você sabia sobre as memórias?
Aisha apenas assentiu.
— Teria me contado ou iria me deixar agir como uma idiota?
— Você não é uma idiota, Alyssa. Você apenas ignorou o que seu
coração tentava te dizer. — Eu tinha certeza de que ela fez algo para que o
vazio em meu estômago fosse preenchido. — Não é verdade?
Eu não respondi. Será que eu sabia? Desde que vi Nathan no
gramado, em meio a chuva, parecendo apenas um vulto em meio à
escuridão, eu me senti atraída. Como se ele fosse algo que eu precisava
conhecer. Por isso o segui no festival até aquele estacionamento, mesmo
indo contra todo o bom senso que eu deveria ter. Eu não precisava conhecê-
lo, contudo. Eu precisava me lembrar dele.
Ela soltou minha pele, a dor já sendo uma memória distante. Parte
de mim pensava que seu poder, aquele dom, devesse ser o mais
extraordinário de todos. Poder curar até mesmo as piores feridas.
Reconstruir carne, osso, pele e até fazer um coração voltar a funcionar
direito... Poder juntar as peças quebradas que permitiam que uma pessoa
vivesse.
Meu poder provavelmente seria bem diferente, já que para cumprir a
profecia era preciso matar. Talvez eu e ela fôssemos exatos opostos no que
dizia respeito a habilidades.
— Você consegue me ajudar a lembrar?
— O que Cassandra fez com sua memória não foi nada que pudesse
danificá-la, então tecnicamente, sua mente não precisa ser curada. As
memórias estão aí, Alyssa. Apenas precisa desbloqueá-las.
Bufei. Ela e Cassandra falavam como se fosse algo simples de se
fazer, mas por que diabos eu ainda não me lembrava? Eu queria me
lembrar, sabia que havia algo a ser lembrado, isso não era suficiente?
— Bem, tomara que eu tenha tempo para isso.
Aisha tocou uma das pedras penduradas em seu pescoço. O brilho
em seus olhos se intensificou e me perguntei se aqueles cristais eram algo
mais do que apenas matéria.
— Você percorreu um longo caminho. Não se deixe manipular pelo
medo.
Eu encarei seus olhos dourados.
— O que me faz diferente das outras? — Eu lhe mostrei minha mão.
— Eu nem mesmo entendo o porquê do Destino me dar essa marca.
Aisha cruzou as mãos sobre o colo. Por um momento, pensei que
não quebraria o silêncio, mas ela inspirou profundamente e disse:
— Quando encontramos Diana, depois de anos procurando por ela,
eu pensei que ela seria nossa salvação. Ela era cheia de vida, leal e corajosa
de uma forma que eu mesma nunca fui, nem minhas irmãs. E ela tinha
vivido muito mais do que as outras, então pensei que o Destino finalmente
tinha enviado aquela que cumpriria a profecia.
Mas ela morreu — era o que nem eu, nem Aisha ousamos falar.
Engoli em seco, lembrando-me da mulher que havia aparecido para
mim. O fantasma ainda tão belo quanto em vida. Ela realmente era corajosa
e tinha uma determinação inquestionável, afinal, havia conseguido se
comunicar comigo para procurar pelo seu filho. Havia me manipulado para
isso. Não que eu a culpasse por isso. Eu acho que entendia.
— Mas você, Alyssa... — ela abriu um sorriso triste. — Você é
diferente de tudo o que esperávamos. Em milhares de anos, todas as Fidlys
vinham de famílias humanas. Seriam humanas até o dia que completassem
dezoito anos. Nenhuma viveu o suficiente para vermos o que o Destino
havia preparado para elas. Mas você não é totalmente humana. Você tem
sangue Protetor tanto quanto sangue humano. Você é a junção de dois povos
que há muito tempo sofrem com a ascensão dos Desertores. Dois povos que
precisam lutar para sobreviver.
— A maioria aqui trata os humanos como se eles fossem
insignificantes.
Aisha pareceu pensar sobre minhas palavras.
— Este é um erro comum quando alguém ganha um poder que
outros não possuem. Os Protetores se esquecem que, antes de se tornarem
quem são, seus antepassados eram humanos. Como humanos foram
abençoados. — Ela me lançou um olhar, como se compreendesse
exatamente do que eu estava falando. — Ravenna e Akantha são Protetoras
talentosas, mas com ideias ultrapassadas. Ideias parecidas com as quais
fizeram Vicenzo desertar.
Eu nunca tinha pensado muito nisso.
— Acha que elas desertariam?
Aisha estalou a língua.
— Não. Pelo menos não por enquanto. E Cassandra que me perdoe,
mas que ideia incrivelmente estúpida colocar Ravenna na liderança. Sua
mãe estaria fazendo um trabalho muito melhor.
— Minha mãe? Era para ela estar no lugar de Ravenna?
A Guardiã assentiu.
— Jasmine era a melhor Protetora de sua geração.
— Mas então ela me teve e precisou se afastar — conclui.
— Sua mãe tomou a decisão que a deixava mais em paz,
principalmente para viver a vida que queria ao lado de seu pai e você. Eu
ainda não consegui, mas um dia todos os Protetores irão saber respeitar o
amor que dificilmente pode ser controlado, e tratarão os humanos com o
respeito que merecem — ela disse, esperançosa. — E Jasmine se afastou do
Outro Lado, mas nunca do trabalho. Por todos esses anos, enquanto
protegia você, ela também lutava pelos humanos. Alguns anos atrás,
tivemos problemas com desaparecimentos e foi ela quem liderou a busca.
Os humanos que ainda estavam vivos foram resgatados por ela.
Mesmo completamente furiosa com minha mãe, eu ainda era capaz
de sentir orgulho do que ela havia feito e ainda fazia como Protetora. Ela
era uma guerreira. E era uma das boas.
Suspirei, encostando-me no apoio do sofá.
— Por que o Destino simplesmente não nos ajuda? Por que criar
Fidly após Fidly, apenas para que morressem?
Seus olhos dourados foram nublados por memórias.
— Porque ele está nos punindo.
— As Guardiãs?
Ela assentiu.
— Quando ele nos abençoou, as regras eram claras. Viveríamos para
manter o equilíbrio. Agiríamos quando necessário, mesmo que não fosse
algo agradável — ela explicou. — E nunca, nunca, poderíamos viver por
nós mesmas. Viveríamos pelo trabalho. Para guardar o tesouro e manter a
balança dos mundos intacta. Não podemos ter filhos, justamente porque o
Destino não queria que houvesse algo em nossas vidas, que pudesse se
tornar mais importante do que ser quem ele quer que sejamos. Mas ele não
pensou que o amor também poderia ser uma distração que não
conseguiríamos controlar. Quando Freya se apaixonou por Vicenzo e lhe
deu imortalidade, a balança foi alterada. O Destino não perdoou aquilo que
ele pensava ser fraqueza. Não tínhamos sido feitas para amar, entende? Foi
um erro que não deveríamos cometer.
Quanto mais descobria sobre o Destino, mais ele me parecia um
grande hipócrita. Por que punir Freya, a qual o único crime foi amar, e não
punir Vicenzo? Por que criar algo apenas para torturar ambas as partes?
— Você escolheu se tornar Guardiã?
— Claro.
— Por que? — perguntei. — Ser uma Guardiã parece ser um fardo
pesado demais.
— Ser grandioso nunca é fácil — ela respondeu. — É melhor se
acostumar com a ideia.
Ela estava certa. Eles esperavam tanto de mim, que não sabia como
lidar com as expectativas. Nem mesmo sabia qual seria o meu poder quando
finalmente fizesse 18 anos. Será que elas e as outras Guardiãs haviam
aceitado se tornar o que eram hoje, por causa dos poderes? Eles seriam
suficientes para uma vida imortal solitária?
Lá fora, o sol se punha e a escuridão da noite começava a tomar o
céu. Aisha se levantou, jogou os cabelos para trás e encarou meus olhos
negros com os seus dourados. Eu sabia que ela estava prestes a se despedir,
então eu pulei para ficar em pé e me apressei em confessar:
— Eu vi Diana. Ela apareceu para mim na noite em que saí do Outro
Lado.
Aisha parou, os olhos parando em mim com pura surpresa
estampada neles.
— Você viu Diana?
Eu assenti.
— Me diz que isso é normal e eu não estou enlouquecendo. Juro que
a vi. Ela disse que estava preocupada com Nathan, que ele acabaria sendo
morto e que eu precisava encontrá-lo.
— Por isso você foi para a casa do Lago — ela compreendeu. —
Porque ela te avisou que ele poderia estar em perigo.
Não comentei sobre o fato de Diana ter me usado, sabendo que eu
provavelmente seria ferida, para atrair Nathan de volta para o Outro Lado.
Aisha não precisava saber disso.
— Alguma Fidly já foi vista por alguém, ou mesmo por outra Fidly?
— questionei.
Aisha se aproximou e colocou as mãos em meus ombros, fazendo-
me encará-la de perto.
— Nunca pude ver nenhuma Fidly após suas mortes e nem nunca
ouvi falar de alguém que pudesse — ela contemplou a ideia. — Mas não
acho que esteja ficando louca. As Fidlys compartilham um destino, uma
marca. É possível que vocês também compartilhem uma conexão mais
profunda e, com a motivação certa, pode ser que uma delas consiga força o
suficiente para ultrapassar o véu, que divide os mundos. Diana com certeza
encontrou sua motivação com a possibilidade de o filho estar correndo
perigo.
Eu suspirei.
— É bom saber que não estou enlouquecendo.
Ela sorriu, apertando meus ombros levemente.
— Mande meus cumprimentos para Diana, caso ela apareça
novamente.
Pelo bem da minha sanidade, eu esperava que ela não aparecesse.
Aisha sorriu e se afastou, caminhando até minha estante de livros.
Observou os títulos com atenção, percorrendo os dedos pelas lombadas.
Algo ainda me incomodava. Ela havia falado sobre como o Destino
havia punido todas as Guardiãs porque uma havia se apaixonado. Freya
amou alguém muito errado, claro, que trouxe consequências desastrosas
para todo mundo, mas mesmo assim, havia punido todas elas porque
nenhuma Guardiã deveria se permitir amar. E eu sabia que muitos
Protetores culpavam Freya. Achavam que quando ela se apaixonou por
Vicenzo, afundou-se em egoísmo, que a cegou e garantiu que concedesse
imortalidade ao primeiro Desertor.
Era engraçado, como a mulher sempre retinha a maior parte da
culpa de um erro do homem. Freya havia dado a imortalidade a Vicenzo,
mas ela não o fez desertar, ou ir contra tudo o que havia defendido até
então. Muito pelo contrário, e ainda sofreu com as consequências das
escolhas dele.
Mas mesmo assim, Freya era a egoísta da história. Assim como
Ravenna me dizia que eu era.
Eu observei Aisha observar os títulos e então se afastar da estante,
deixando um pequeno cristal para trás, em frente a um exemplar antigo. Ela
estaria me deixando aquela pedra para trazer boas energias? A Guardiã não
explicou, no entanto, apenas caminhou até a porta.
Eu a segui, indagando:
— Seria egoísmo me permitir amar Nathan?
Aisha parou. Ela se virou e pegou minha mão, os anéis em seus
dedos tocando a minha pele, ainda aquecida.
— Egoísmo seria não permitir que seu coração seja honesto.
Eu limpei uma lágrima silenciosa que molhou minha bochecha.
Quando Aisha soltou minha mão, havia algo dentro dela. Estiquei meus
dedos e encontrei um papel amarelado dobrado.
— Esta é a sua profecia, Alyssa. — Seu sorrio se ampliou. — Não
tema seu destino. Faça da luz, poder.
Eu desenrolei o papel de aparência antiga e encontrei as palavras
escritas em uma caligrafia impecável. Ergui os olhos, buscando por Aisha,
mas a cabana já estava vazia. Então voltei a encarar as palavras. Com o
coração batendo forte em meu peito, eu li a profecia.

Quando o mal ascender


E a escuridão ganhar poder
Na luz existe a resposta
Da luz foi criada aquela que
Pura
Equilibrará bem e mal
Fará da escuridão
Casa
Fará da luz
Poder
E protegerá os mundos
Ela há de ser sua rainha
Porque ela será salvação

Terminei de ler as palavras, ainda buscando pelo significado oculto


que com certeza elas encobriam. E hora após hora, o que Aisha me disse
continuava martelando em minha mente: Faça da luz, poder. Ela havia
citado a profecia. Mas a profecia também dizia que eu deveria fazer da
escuridão minha casa, e isso não era muito reconfortante. Talvez eu
preferisse viver debaixo do sol, bem iluminada e com o mínimo de sombras
possível.
Eu não queria temer. Sabia que ser corajosa era parte do meu
destino, mas a incerteza me perseguia onde quer que eu fosse.
Talvez teria sido mais inteligente que o Destino apoiasse Diana
nessa jornada. Ela teria sido melhor do que eu nisso.
Quando acordei no dia seguinte, era como se os últimos dois dias
tivessem sido apenas um pesadelo. O ataque, a descoberta de que tinha
minhas memórias e de Nathan bloqueadas... Tudo parecia um sonho
distante. Até que eu abri meus olhos e encarei as manchas desbotadas dos
machucados que Aisha havia curado e me lembrei que Nathan não voltaria
a aparecer durante as noites, para me treinar ou apenas passar algum tempo
comigo.
E agora eu também conhecia a profecia, que dizia que eu deveria ser
algum tipo de rainha de mundos. Eu só podia esperar que fosse apenas uma
metáfora.
Ergui meu corpo da cama com mais facilidade do que no dia
anterior, o que me deixou satisfeita. Porém, a satisfação logo passou quando
quase pulei da cama ao encontrar Cassandra parada em frente à minha
janela.
Por um segundo, pensei estar tendo um ataque cardíaco.
— Finalmente você acordou. — Cassandra caminhou até a borda da
cama, jogando seu cardigã preto esvoaçante para trás do corpo, como se
estivesse em um desfile. Ela era naturalmente graciosa, mas sua presença
ainda era intimidadora. Tê-la por perto, logo de manhã, era no mínimo
desconcertante. — Vamos fazer isso logo.
— Isso o que?
— Preciso ver o que aconteceu na noite do ataque. — Ela gesticulou
para minha cabeça.
— Eu te falei o que aconteceu — retruquei.
Ela me ignorou e levou a mão em direção à minha cabeça.
Eu bati sua mão para longe.
— Você não vai mexer com a minha cabeça novamente.
Cassandra me fuzilou. Aposto que se eu fosse uma criança, ela teria
puxado minha orelha. Com um estalo de seus dedos, ela fez minha cama
deslizar para mais perto dela. Como diabos ela podia fazer isso? Aquilo
também entrava na área de feitiços?
Talvez, ela fosse a Guardiã que mais se aproximava de uma bruxa.
— Deixe de ser medrosa, Fidly — ela me dispensou com um aceno,
colocando uma mão em cada têmpora minha. — Eu quero apenas ver o que
você viu. Você pode manter suas memórias dessa vez.
Eu trinquei os dentes, tentada a bater suas mãos para longe de mim
novamente. Mas qual seria o sentido? Ela era uma Guardiã, o ser mais
poderoso que eu havia conhecido. Poderia muito bem me forçar se quisesse
e, bem, não achava que ser amarrada por algum de seus feitiços fosse uma
opção melhor.
Ela pressionou os dedos em minha pele, mas não senti nada além de
um leve desconforto, causado pelo aperto. Seus olhos esverdeados
encararam meu rosto sem realmente ver. Ela parecia perdida, assistindo um
filme que eu não tinha acesso agora.
— É fascinante como, mesmo que tenhamos bloqueado as
memórias, você ainda é atraída por ele como um ímã.
Eu queria poder perfurá-la com meu olhar.
— Talvez você não deveria ter se dado ao trabalho, então.
Cassandra não reagiu. Continuou observando o que quer que
pudesse ver em minha mente. Pânico me tomou como um nó na garganta.
Era para ela ver apenas o que aconteceu naquela noite, mas e se visse mais?
Se pudesse ter meus pensamentos em suas mãos, como se eu fosse um livro
aberto em uma mesa?
— Já é o suficiente — minha voz foi firme.
Cassandra continuou alheia à realidade por um tempo, antes de
fechar os olhos. A Guardiã piscou e então desceu seus olhos para encontrar
os meus.
— Interessante.
— Agora acredita em mim? — resmunguei, tirando suas mãos da
minha cabeça e saindo da cama.
— Sim. — Um vinco em sua testa parecia profundo demais, para
alguém que nunca envelhecia. — Isso não deveria acontecer. É
inadmissível.
Estalei a língua, abrindo a janela para que o ar quente da manhã de
verão me atingisse.
— Meus pais avisaram sobre o bilhete que recebi, mas acho que
ninguém levou muito a sério. Eu mesma não levei.
Cassandra parecia alheia aos meus movimentos. Ela observava um
ponto vazio na parede, perdida em seus próprios pensamentos. Por fim, ela
piscou, os olhos frios e intocados. Ela ajeitou sua postura e se virou para me
encarar.
— Eu não consegui identificar a autora desse... ataque insolente.
Mas irei. E quando descobrir qual de minhas Protetoras fez isso, ela
desejará ter desertado, antes que eu pusesse minhas mãos nela.
Não precisava de muito mais, para que eu tivesse certeza de que
Cassandra não seria piedosa com a Protetora. Havia algo na Guardiã que
não necessitava de demonstrações para se provar. Estar atenta em sua
presença, apenas parecia bom senso, mesmo que não houvesse nada de
errado, então eu podia imaginar como reagiria alguém que havia traído a
causa dos Protetores.
— Tudo bem — foi tudo o que respondi.
Ela estalou os dedos e um uniforme de couro apareceu estendido em
minha cama. Seu couro era azul escuro, um pouco mais claro que o
uniforme de Nathan. Botas de cano curto estavam no chão, esperando para
serem usadas.
— Isso também é um tipo de feitiço? — questionei, curiosa. Quando
pensava em feitiço, a primeira coisa que vinha à cabeça era algum tipo de
cântico longo e de alguma língua perdida. Aquilo parecia apenas mágica
pura.
— Meu dom não se baseia apenas em feitiços. Isso é parte do que eu
posso fazer — disse. — Feitiços foram o que me tornaram notável, no
entanto.
Peguei o couro. Nunca haviam me dado um de seus uniformes para
usar. Achei que nunca teria um, já que eu não era exatamente uma
Protetora.
— Deve ser bastante conveniente poder simplesmente materializar
coisas.
Cassandra deu de ombros, tão entediada quanto a eternidade poderia
fazer com que alguém se sentisse.
— É útil.
Assenti, com os dentes cravados em meu lábio inferior. Ela captou
minha curiosidade em relação às roupas.
— Isso aqui é pra eu vestir?
— Claro. Não é como se eu fosse vesti-lo.
Cerrei os olhos para ela, contendo uma resposta afiada. A eternidade
também parecia tê-la tornado arrogante. Mas isso podia ter sido culpa dos
poderes. Se eu pudesse materializar o que eu bem quisesse à minha frente
— imaginando que fosse assim que acontecia — eu provavelmente seria
arrogante também.
— Nada mais justo do que se vestir como uma Protetora. Afinal,
você retém a força de uma, não é? — Cassandra continuou, parecendo
ainda assimilar aquela informação. Mas ela havia visto eu lutar contra a
Protetora que me atacou e imaginava que Jasper já tivesse confirmado a
informação. — Você é, de longe, a Fidly mais singular. Filha de uma
Protetora com um humano, nascida menos de dois anos depois da morte da
Fidly anterior. Um espaço de tempo tão curto... Me faz pensar no que mais
é excepcional. — Ela analisou meu rosto, como se gravasse cada detalhe
das minhas feições. — Tenho grandes esperanças em relação a você, Fidly.
As esperanças dela, contudo, não faziam nada para me acalmar. Mas
eu esperava que ela estivesse certa, que algo me fizesse excepcional o
bastante para sobreviver à profecia.
Encarei os couros.
— Por que tenho que usar isso agora?
— Porque Ravenna preparou algo para apaziguar os ânimos e
mostrar que você, como uma de nós, é parte dessa luta como uma igual.
Mostrar que, apesar de tudo, você sobreviveu e é forte o bastante para
realizar a profecia.
Semicerrei os olhos.
— Um uniforme deve fazer isso tudo?
Cassandra me lançou um olhar entediado.
— Apenas se vista, Fidly. Estarei esperando na porta.
Eu não falei mais nada porque eu estaria me comunicando com as
paredes naquele momento, já que Cassandra desapareceu no ar.
Literalmente no ar. Bufei.
Tirei meu pijama e coloquei as roupas de couro que me foram
dadas. Fiquei surpresa quando percebi que o uniforme era, na verdade,
bastante confortável e não muito calorento. Apesar do couro, havia um
tecido de algodão que revestia a parte de dentro da roupa, impedindo que a
pele ficasse grudando quando me mexia.
Logo eu estava pronta e caminhando para fora da cabana, enquanto
trançava meus cabelos. Cassandra estava do lado de fora, com as mãos
estendidas em frente ao corpo, como se pesassem o vento. O que ela estava
fazendo? Com os olhos fechados, tombou um pouco a cabeça em minha
direção e disse:
— Finalmente.
Eu a encarei.
— O que está fazendo?
Ela soltou um chiado e por fim baixou as mãos. Seus olhos
encararam os meus.
— Estava sentindo as proteções dessa dimensão. Me certificando
que ainda estão firmes.
— Por que não estariam? — perguntei, já com receio da resposta.
A Guardiã começou a andar e eu a segui, logo percebendo que
caminhávamos em direção à praça principal.
— Quando permitimos a entrada de alguém de fora, as barreiras
ficam um pouco fracas.
O burburinho ficou cada vez mais alto à medida que nos
aproximamos da praça central. Alguns Protetores mais jovens, ainda em
treinamento, passavam por nós correndo, parando apenas o suficiente para
nos cumprimentar com um meneio de cabeça respeitoso. Curiosidade fez
com que eu me apressasse.
Quando saímos da rua adjacente à praça, onde as cabanas abriam
espaço e ofereciam visão à ampla fonte e a área florida e levemente
medieval à nossa frente, não era capaz de encontrar palavras para descrever
a cena. Protetores de todas as idades se reuniram ali.
Eu o encontrei primeiro, sem nem procurar por ele. Meus olhos
simplesmente seguiram seu próprio caminho em sua direção. Nathan estava
parado em um canto, os braços cruzados e o corpo escorado em um poste de
luz. Seus couros eram bem parecidos com os meus e eu não deixei de notar
a ironia daquele pequeno detalhe, entre tantos Protetores, éramos os únicos
que pareciam se completar em tons.
Nathan notou minha presença tão rápido quanto eu notei a dele. Ele
parecia agitado, ansioso. Como se já estivesse esperando a minha chegada
há algum tempo. Ele percorreu todo meu corpo com os olhos, quase
parecendo surpreso com o que eu usava. Mesmo à distância, eu podia sentir
seu olhar queimar de uma forma que fazia meu estômago se revirar de
anseio. Precisei me lembrar que tinha sido ele quem havia delimitado a
fronteira de nosso relacionamento. Foi ele quem quis se afastar, então eu fui
a primeira a desviar o olhar. Acho que eu já tinha me humilhado o bastante.
Sentado ao lado de Nathan, como o bom garoto que era, Zeus me
observava com as orelhas em pé e o rabo balançando. Ele soltou um latido,
como se dissesse oi e eu sorri para ele, com o coração aquecido. Com
Nathan protestando, o animal correu até mim. Zeus parou à minha frente, e
eu logo me agachei para afagar sua orelha e beijar seu focinho. Aquele era o
animal mais educado e carinhoso do mundo e ele parecia muito satisfeito
com a minha atenção. Não deixei de ver que, do outro lado da praça,
Nathan escondia um sorriso sobre a mão. Desviei o olhar novamente e
voltei a ficar de pé para observar o que acontecia ali.
Queria poder saber como controlar as batidas do meu coração
acelerado. Apenas a presença dele era o suficiente para me deixar ansiosa,
como se eu precisasse me aproximar. Mesmo com a distância, eu apostava
que Nathan seria capaz de ouvir meus batimentos acelerados caso se
esforçasse.
Havia Protetores jovens e mais velhos, enquanto que a maioria dos
adultos estavam em missões. Ravenna estava no centro da praça, com
Serena ao seu lado e alguma coisa entre elas. Eu não conseguia ver o que
elas tinham, no centro daquele círculo, porque muitos as contornavam,
como uma parede viva e pulsante, de onde o burburinho era mais grave.
— O que está acontecendo?
— Ravenna está retomando a ordem — Cassandra respondeu,
simplesmente.
Zeus latiu para algo atrás de mim, o rabo balançando ansiosamente.
Virei a tempo de encontrar Roman e meus pais vindo em minha direção.
Apenas meu pai não possuía nada que o definisse como um Protetor,
enquanto os outros dois exibiam seus uniformes e armas. A minha própria
arma, presa ao meu cinto, — que havia sido recuperada pelo meu pai no
Lago — fazia com que eu parecesse ainda mais com eles. Mais do que isso:
eu era aquilo pelo qual estavam esperando.
— Alyssa. — Minha mãe reconheceu minha presença, sem se
aproximar muito. — Você parece melhor.
Eu a ignorei. Meu pai parou à minha frente, cobrindo toda minha
visão com seu corpo alto e ombros largos.
— Eu senti sua falta, pequena pássara.
Trinquei os dentes. Ele mentiu, Alyssa. Assim como Jasmine.
Henry não esperou por uma resposta e nem me deu a chance de me
afastar. Com destreza, meu pai me puxou para seus braços. Eu sempre amei
seus abraços de urso e, por um instante, enquanto estava imersa em seus
braços, parecendo protegida de tudo desse mundo e de todos os outros, senti
vontade de chorar. Por sorte, minha mãe me ensinou bem como engolir as
lágrimas.
— Tudo bem?
Balancei a cabeça, dizendo que sim e ele me soltou.
— Força, filha. Mostre a eles o motivo pelo qual o Destino a
escolheu.
Eu nem mesmo sabia o porquê.
— Ravenna realmente espera fazer disso uma festa, não é? —
Roman murmurou.
Hoje Roman não estava usando o uniforme completo. Ele parecia
mais despojado, sem o casaco e a camiseta dobrada sobre os bíceps,
permitia uma visão um pouco mais clara de sua tatuagem.
— O que exatamente é isso? — perguntei.
— Isso — minha mãe disse. — É a forma de Ravenna encobrir a
desordem de sua sede. — Ela ergueu o olhar para Cassandra. — Não é?
A Guardiã não respondeu, apenas se virou para encarar o centro da
praça, esperando o desenrolar do que quer que Ravenna tivesse planejado.
Senti Roman se aproximar e parar ao meu lado, tão próximos que
meu ombro tocava seu braço. Ele afagou a cabeça de Zeus, com os olhos
fixos na comoção ao nosso redor. Observei o Protetor ao meu lado e, como
se sentisse seu olhar, encontrei Nathan nos observando do outro lado da
praça. Nenhum deles nunca me explicou o que diabos havia acontecido
entre eles, mas o fato de que Zeus reconhecia Roman e parecia feliz com
sua presença, dizia muito sobre como o relacionamento de Roman e Nathan
podia ter sido próximo um dia. Será que, antes de me tirarem as memórias,
eu sabia o que havia acontecido?
— Você fica bem em couro — ele disse, ainda sem me olhar.
Minhas bochechas queimaram, o olhar frio de Nathan ainda sobre
nós.
— Só estou grata por não ser tão quente quanto imaginei, mas ainda
espero que isso acabe antes do sol entrar em seu ápice. Odeio ficar suada.
Roman soltou uma risada abafada.
— Ah, por isso você se movimenta como uma velha nos treinos.
Dei um soco em seu braço.
À nossa frente, as pessoas davam espaço para Ravenna. Irreverente
como uma serpente, ela deu passo após passo, até que pudesse ser vista por
todos. Ela me olhou e meu corpo inteiro ficou tenso, porque ela não me
olhava como alguém que reconhecia outro alguém, ou como se estivesse
ciente da minha presença ali. Ela me olhava como se uma peça do tabuleiro
houvesse chegado. Ravenna tinha um objetivo para aquele jogo e eu era seu
peão.
Eu era uma peça do que quer que houvesse arquitetado, mas era um
jogo injusto, porque eu não tinha ideia do que estávamos jogando.
Serena estava parada, atrás de Ravenna, segurando algo em suas
mãos ocultas.
Por um instante, quando observei Cassandra se aproximar do centro
da praça, ao mesmo tempo que Aisha caminhou até o canto onde Nathan e,
agora também Brian, se encontravam, foi como se eu pudesse ouvir um
ruído. Como se o próprio ar fosse algo vivo e estivesse insatisfeito.
A proteção.
O escudo de Cassandra sobre o Outro Lado guinchava, como se em
revolta.
Eu nunca o havia sentido antes, mas agora ele parecia tão palpável
quanto a água ou a terra daquela dimensão.
— Dê um passo à frente, Fidly.
Eu não recuei. Sabia que era isso que ela esperava.
Erguendo a cabeça e tentando ocultar minha completa falta de
noção, cheguei mais perto da Protetora.
Fiquei tão perto que finalmente fui capaz de enxergar Akantha,
interessada na cena que se desenrolava. Eu não havia visto Jonnah desde o
ataque e eu queria gritar na frente de todos para saber o que ele estava
fazendo ali, perto da avó, que nunca amou nenhum de nós dois. A avó que,
até pouco tempo, eu nem sabia que existia.
— Irmãos, — a voz de Ravenna era alta e clara e nenhum ruído
vinha dos grupos de Protetores ao nosso redor. — Por milênios, tudo o que
fizemos foi lutar. Lutar pelo equilíbrio, lutar pelo Tesouro e lutar pela Fidly.
Por milênios, lutamos contra aqueles que decidiram se juntar ao lado
sombrio dessa balança. E, por milênios, temos travado uma guerra contra os
Desertores, ao mesmo tempo que tentamos sobreviver.
Onde ela queria chegar com isso?
— Há poucos dias, a Fidly foi atacada e quase morta nesta guerra.
— Ela apontou para mim, a mão estendida quase como uma prece. Ravenna
interpretava bem o seu papel, eu devia admitir. — E ela é a nossa única
esperança para que esta guerra tenha, finalmente, um fim.
Porque eu era a Fidly. Eu era aquela de quem a profecia falava.
“Equilibrará bem e mal. Fará da escuridão, casa. Fará da luz,
poder.”
Inspirei. Não sabia se as palavras estavam na minha mente ou na
boca de Ravenna.
“Porque ela será salvação.”
— O ataque contra a Fidly não foi uma surpresa. Surpreendente, no
entanto, é que os Desertores estão se tornando mais ousados. Invadindo
nosso território. Clamando nossas armas. Tomando a vida de nosso povo.
— Seus olhos se fincaram em mim. — Tentando destruir aquela que deve
ser nossa salvação.
Ravenna ergueu a mão, como se chamasse alguém. Atrás dela,
Serena se moveu. Minha amiga se manteve séria e impecável, como a
guerreira que eu sabia que seus pais tanto queriam que fosse: fria e
inabalável. Com um puxão, pude ver as correntes que sua mão segurava. A
onda de pessoas ao redor da fonte se movimentaram, e alguém foi jogado
no chão, entre meus pés e os de Ravenna.
Eles capturaram a Protetora que me atacou?
A pergunta morreu em meus lábios.
Aos meus pés, um homem com marcas em todo o corpo, como veias
negras em sua pele branca e pálida, estava acorrentado e me encarando
como se eu fosse a maldita corsa em território de leões.
Um homem. Não a mulher que me atacou. Um Desertor, não a
Protetora que falhei em reconhecer. Foi por isso que Cassandra precisou
reforçar as barreiras, porque eles haviam deixado alguém entrar. Alguém
que não deveria estar lá.
Aquilo era mesmo um espetáculo. Não era justiça. Nem mesmo
vingança.
Era um jogo e eu não sabia como jogar.
O burburinho voltou a tomar espaço. Vozes se sobressaíam, mas eu
não conseguia distinguir qualquer palavra que não fosse: “mate-o”.
Assustada, procurei minha mãe. Ela entenderia o que os Protetores queriam
melhor do que eu. Mas seus olhos cor de mel estavam vidrados, encarando
a mãe que a renegou com fúria mal contida. Então, olhei para o meu pai.
Henry estava de punhos cerrados, focado em Ravenna e o Desertor à minha
frente. Não sabia se sua raiva se devia ao que Ravenna faria ou pelo homem
próximo aos meus pés.
Foi Nathan que parecia tentar me explicar algo. Sua expressão séria,
com sobrancelhas franzidas, tornava seus olhos azuis mais escuros. Ele me
deu um meneio de cabeça, como se me dissesse para seguir a canção, fazer
o que quer que Ravenna dissesse.
— Hoje, Alyssa Monroe, a Fidly enviada pelo próprio Destino, irá
provar de nossa luta e matar seu agressor. Irá provar sua força. Nossa força.
Não foi ele quem me atacou. Ravenna sabia disso.
Trinquei os dentes.
Eu nunca havia tirado uma vida.
— O que foi? — Roman sussurrou ao meu lado.
Eu toquei seu braço.
— Não era ele — sussurrei de volta.
— Mesmo que não tenha sido, ele ainda é um Desertor, Alyssa.
Eu sei.
Soltei seu braço. Os olhos de víbora de Ravenna pareciam divertidos
com a minha confusão.
— Venha, Fidly — ela chamou. — Tome a vida que tomou tantas
das nossas. Vingue suas irmãs e irmãos.
Jasper apareceu ao meu lado, vindo de onde meus pais apenas
encaravam a cena, provavelmente esperando que eu tivesse o estômago
necessário para aquilo.
E, por Deus, eu tinha? Eu podia matar alguém? Nunca havia feito
aquilo. Mesmo no dia do ataque no estacionamento, foi Nathan e Roman
quem fizeram toda a matança, enquanto eu parecia uma inútil presa ao
chão.
Sempre pensei que, quando finalmente tivesse que tomar a vida de
alguém, isso aconteceria em uma batalha, onde matar meu oponente fosse
minha única opção. Achei que, por isso, o derramamento de sangue seria
justificável.
Mas, primeiro, aquele homem não era quem havia me atacado e,
segundo, ele estava acorrentado e machucado o suficiente para mantê-lo
encolhido ao chão.
Meu treinador desembainhou a adaga em meu cinto e a estendeu
para mim. Eu sabia que, assim como todos ali, esperava que eu matasse o
Desertor sem pensar duas vezes.
— Um golpe — ele disse. — E você termina isso.
Um golpe e eu mataria o Desertor.
Peguei a adaga e tentei não tremer, enquanto me aproximava do
homem marcado pela escuridão.
Ravenna chutou as costas do homem, fazendo-o rolar. Agora eu
podia ver seu rosto. Ele era jovem. Talvez da idade de Jonnah. Sua pele
pálida era marcada por veias pretas. Seu cabelo ruivo estava enlameado.
Percebi que um de seus braços estava quebrado, assim como sua clavícula.
As correntes em seus pulsos pareciam pesadas e seus olhos eram humanos
demais.
Todo Desertor era ruim?
Era uma equação tão simples assim? Desertor igual a maldade e
ponto final? Não havia outra opção?
— Mostre que é nossa salvação, Fidly.
Ravenna quase parecia ansiosa demais para que eu falhasse.
Akantha, atrás da líder, parecia divertida e entediada ao mesmo tempo, e
como ela conseguia essa proeza era uma incógnita para mim.
— Apenas faça isso, Alyssa — a voz da minha mãe era baixa o
suficiente para que, aqueles ao nosso redor não ouvissem.
Encarei os olhos esverdeados do Desertor. A dor de seus ferimentos,
provavelmente o enfraquecia o suficiente para que nem ao menos tentasse
reagir. Ele me olhou com curiosidade, observando-me até encontrar a marca
em minha mão, mas não disse nada.
Eles haviam escolhido aquela vida, certo? Haviam desertado porque
queriam.
Roman havia me dito uma vez que ser um Protetor era uma
imposição e não uma escolha. Será que os Desertores apenas queriam o
poder de escolha, ou todos estavam tão condenados à crueldade quanto
Vicenzo?
E mesmo que estivessem. Mesmo que fossem cruéis e perturbados,
o que matar um deles a sangue frio, em frente a uma multidão ansiosa, faria
de mim? Eu não teria que ter o coração tão cruel quanto para poder fazer
algo do tipo? Tirar uma vida já era um passo enorme a se tomar, um que
provavelmente deixaria marcas, mas tirar uma vida daquela forma... Como
se não fosse nada mais que um animal para o abate... Era desumano.
Ele trabalha para Vicenzo. — Lembrei-me. Desertores matam
humanos e Protetores diariamente. Causam caos e desequilibram a balança.
A adaga pesou em minhas mãos.
Ergui o olhar para Ravenna. Ela não ganharia esse jogo tão
facilmente. Ela queria brincar? Queria me usar em seu show? Pois eu lhe
mostraria como fazer um ainda melhor.
— Você sabe que não foi ele quem me atacou.
Akantha sorriu, entretida. Ravenna apenas balançou a cabeça,
preparada para meu ataque.
— Isso faz diferença?
Ao meu redor, os Protetores pareceram esperar minha resposta, já
prontos para julgá-la. Mesmo as crianças pareciam interessadas no que eu
tinha a dizer. Como se quisessem ver se eu ousaria defender o Desertor.
Eu não queria defendê-lo, no entanto. Não o conhecia e não sabia
quantas coisas terríveis ele havia feito. E este era exatamente o ponto. Eu
não sabia.
Ravenna estava tentando limpar a sua bagunça. Estava tentando
esconder que um dos seus, havia me atacado. E ela queria me empunhar
como uma maldita espada.
Eu não permitiria que ela me usasse nem se o mundo estivesse
queimando.
— Faz diferença quando a verdade é que não foi um Desertor que
me atacou e você sabe muito bem disso — falei, em voz alta e clara, e
percebi que ela não esperava que eu assumisse aquilo na frente de todos.
Seus olhos se arregalaram por um segundo, antes de voltar a usar sua
máscara usual. — Faz diferença quando foi um Protetor que tentou me
matar.
A multidão pareceu arfar.
— Isso é o que você acha — ela retrucou e eu busquei por
Cassandra, esperando que ela confirmasse minhas palavras. Mas a Guardiã
ficou quieta, os braços atrás do corpo, apenas esperando que aquilo
acabasse logo. — E, mesmo que fosse verdade, isso o torna um Desertor,
assim como este. — Ela cutucou as costelas do homem, que se encolheu
pela dor. — Então mate-o e será um a menos com que se preocupar.
Eu o encontrei em meio ao rebuliço da multidão, sem nem perceber
que eu o procurava. Nathan me deu um leve aceno de cabeça, como se me
dissesse para ir em frente. Ir em frente e matar alguém acorrentado e
machucado? Busquei a força em mim para isso. Busquei a raiva que
poderia me impulsionar.
Mas eu não era uma assassina. E não sabia se queria ser uma.
— Não.
Ao meu redor, os Protetores pareceram não acreditar. Ouvi alguém
reclamar que eu estava brincando. Outro dizia que eu era uma impostora.
Outra — Lirya —, parada próxima à Serena, gargalhou.
— Não? — Ravenna rosnou para mim.
— Ele não me fez nada. — Olhei o Desertor aos meus pés. — E já
está praticamente morto.
— Ele está praticamente morto, porque meus Protetores precisaram
se defender quando ele quase arrancou a cabeça de um deles — Ravenna
rebateu, a voz carregada.
Minha mão, que segurava a adaga, tremeu.
Parte de mim queria matá-lo. Eu sabia que ele provavelmente
merecia morrer. Acabar com aquilo logo, mas eu não conseguia fazer essa
parte vencer. Não conseguia forçar minhas mãos a darem o golpe final.
Ravenna andou até Serena e tomou a corrente de suas mãos. Seus
olhos me fuzilaram quando ela falou:
— Ele é um Desertor. A mataria sem pensar duas vezes.
Mate-o, Alyssa. Acabe com isso logo.
— Já chega, Ravenna — minha mãe interviu.
Ravenna estalou a língua, em desprezo.
— Você a protegeu demais, Jasmine. Nós precisamos de uma
guerreira, não de uma boa samaritana.
Ela soltou a corrente, apenas um pouco, mas o suficiente para que o
Desertor à minha frente sentisse o pequeno libertar. Como se tomasse um
fôlego que o energizasse, o Desertor se levantou, rápido como um raio e se
esticou para me alcançar. Eu pulei para trás, mas suas mãos teriam
facilmente me alcançado, se não fosse a adaga agora perfurando seu
coração. O homem cuspiu sangue e Nathan grunhiu um xingamento ao
arrancar sua própria lâmina de fogo, do peito do homem. O Desertor caiu
no chão como se não passasse de um saco de batatas.
Eu mal o vi chegar, antes que tivesse matado o Desertor.
E se Nathan não o tivesse matado, talvez o Desertor tivesse
quebrado meu pescoço.
Os ombros largos de Nathan pareciam uma muralha, protegendo-me
do inimigo. Impedindo que o olhar feroz de Ravenna me atingisse. Com um
movimento desinteressado, meu esquecido amigo, limpou o sangue da
lâmina no tecido de couro de suas calças.
— Você está louca? — minha mãe gritou, parando ao lado de
Ravenna. Eu sempre me esquecia da velocidade com que conseguia se
mover. Agora, ela parecia pronta para usar sua força sobrenatural em
Ravenna.
Nathan me observou por apenas um segundo, antes de se virar para
as Protetoras, que agora se fuzilavam.
— Essa sua brincadeira poderia ter dado muito errado, Ravenna —
ele sibilou, o olhar tão furioso quanto o de minha mãe.
— A Fidly precisa matar. É a única coisa que queremos dela. Talvez
você devesse parar de interferir onde não é chamado, garoto, e deixar com
que ela faça o que deve fazer.
Cerrei o punho. Não sabia se era a vergonha ou a raiva que me fazia
tremer.
A Protetora se movimentou e minha mãe agarrou seu braço,
impedindo que ela chegasse mais perto. Agora, eu podia ver todos à minha
volta: desde meu pai atrás de mim e Nathan à minha frente, até Jasper e
Roman em cada lado.
Não devia ser assim. A este ponto, eu já não devia precisar de
proteção. Principalmente não contra Ravenna.
— Eu apenas me pergunto... — Ravenna cantarolou. — Se não irá
matar por nós, — ela observou a multidão de Protetores como se observasse
seu público —, o que irá fazer, então? Como irá cumprir a profecia, Alyssa?
E se não matará por nós, porque morremos por você?
Eu já estava a meio caminho da floresta que cercava o Lago,
aproveitando que pelo menos ali, eu poderia ir para onde eu bem
entendesse. Movimentei-me tão rápido que passei despercebida, deixando
todo o burburinho para trás. Deixando minha mãe gritando com Ravenna, o
olhar pesado de Akantha e os Protetores discutindo se eu seria ou não sua
maldita salvação.
Maldita profecia. Maldito Destino.
Naquele momento, eu pude entender porque as mocinhas dos livros
sempre negavam seus poderes. Porque eles traziam uma responsabilidade
que não envolvia apenas suas vidas. Os poderes faziam delas apenas uma
arma que outros desejavam usar. Eu ainda nem tinha os meus e já sentia
como um grande erro, um boneco a ser manipulado.
Se não fosse por Nathan, talvez o Desertor tivesse conseguido me
machucar. Talvez tivesse até mesmo sido rápido o bastante para me matar e
eu morreria como a maior idiota de todas por tentar poupá-lo.
— Pare de correr.
Eu parei. Quase tropecei em um tronco caído. Virei para encarar
Nathan atrás de mim, e a raiva pareceu aflorar mais forte. Ele já não devia
ter ido embora?
— Você já não devia estar longe daqui?
Ele caminhou até mim. Zeus vinha logo atrás, seguindo seu dono de
perto.
— Eu estava curioso para ver o que Ravenna planejava.
— Aposto que ficou satisfeito com o show.
Nathan arqueou a sobrancelha.
— Satisfeito?
Desviei o olhar.
— Acha que fico satisfeito em ver você prestes a ser estrangulada
por um Desertor, que se recusou a matar?
— Eu disse que não tinha sido ele na floresta.
Ele trincou os dentes.
— Teria sido ele hoje. Ravenna teria deixado que ele colocasse as
mãos imundas em você, apenas para provar isso.
— Ok. — Frustração me tomava. — Então eu sou uma inútil. Sou a
Fidly que se recusa a matar. Tenho certeza que estão discutindo agora
mesmo se vale a pena continuar me treinando e gastando recursos para me
manter segura. Talvez cheguem à conclusão de que esperar pela próxima
Fidly, seja a melhor alternativa.
— Pare com isso.
— Com a verdade? Quer que eu pare de dizer o óbvio? Porque você
sabe, tão bem quanto eu, que é exatamente isso que todos estão pensando.
Zeus deitou aos meus pés, olhando-me com os olhos amarelados.
— Por que não o matou, Alyssa?
Mordi o lábio. Não o respondi porque não tinha ideia de como fazer
isso sem parecer uma idiota.
— Achou mesmo que ele pudesse se redimir? Que talvez não fosse
te matar na primeira oportunidade?
— Não sei!
— Não sabe que eles estão atrás de você desde que nasceu, Alyssa?
— seu tom de voz aumentou e eu o fuzilei. — Você não pode fazer isso.
Não pode simplesmente se agarrar à esperança de que as coisas vão dar
certo, só porque você quer!
Eu bati os pés, andando até ele, até que estávamos tão perto que eu
poderia beijá-lo. Mas eu não sentia vontade de beijá-lo agora. Eu o fuzilei,
querendo gritar com ele.
— Talvez eu não queira ser uma assassina!
Nathan piscou, recuando um mísero centímetro.
— E como espera sobreviver assim?
Essa era uma boa pergunta. Eu precisaria matar. Eu era a única que
poderia matar Vicenzo, era tudo sobre isso. Então eu devia muito bem
começar a me acostumar.
— Eu sinto te informar, Aly. Mas todos aqui são assassinos, e
aqueles que ainda não mataram, irão em pouco tempo. E apesar de eu
adorar fazer isso, e mesmo que fosse uma honra matar, cada um daqueles
bastardos por você, ainda assim, não será suficiente. Você precisa fazer isso.
Não podemos segurar sua mão por todo o caminho e nem você deveria
confiar que o façamos!
Eu recuei com suas palavras. Nathan sabia apresentar um ponto e,
naquele momento, eu fiquei furiosa por isso. Não era como se eu quisesse
ser uma folgada, esperando que fizessem tudo por mim. Eu só não havia
conseguido me forçar a tirar a vida de alguém. Talvez em uma luta fosse
diferente. Eu sabia que, no dia do ataque, haveria um grande impulso dentro
de mim, que agiria rapidamente para matar a Protetora, se eu tivesse a
chance. Sabia que havia pensado em matar mais de uma vez desde que
cheguei aqui, como quando Ravenna ou Akantha apareciam. Eu só nunca
fui confrontada com a chance de tirar a vida de alguém, então nunca parei
para pensar que seria mais difícil do que parecia.
E eu não queria discutir isso com Nathan. Não queria expor minha
fraqueza, minha completa falta de serventia. Então eu o confrontei com
aquilo que estava entalado em minha garganta desde ontem.
— Tem certeza de que está falando sobre os Desertores, Nathan?
Está mesmo tão frustrado porque eu não matei um homem ou porque você
não tem coragem de lutar pelo que quer?
Nathan não se afastou, pelo contrário, acabou dando um passo para
mais perto de mim. Nossos olhares travaram uma batalha de fúria. Eu
estava irritada por tudo o que ele não queria me dar, por todas as memórias
que não conseguia acessar e pela frustração de não ser o que precisavam
que eu fosse.
— Estou frustrado, Alyssa, porque não posso confiar que você irá se
manter viva — ele retrucou. — Estou puto da vida porque você se recusa a
lutar quando não há outra alternativa e sou incapaz de ir embora, sem saber
se você não vai fazer algo idiota amanhã. Ele não era um homem, Alyssa.
Era um Desertor. Seria demais querer que você entenda que a sua vida vale
mais do que a de qualquer um deles?
— Por que eu sou a Fidly? Por que precisam que eu cumpra uma
profecia?
Ele bufou e se aproximou mais, seus olhos quase me engolindo.
— Porque é você! — Seus dedos correram por seus cabelos,
tentando aliviar a frustração que percorria seu corpo. — Porque você é
minha amiga, a única que fez com que eu sentisse que pertencesse a algum
lugar. Que não permitiu que eu vivesse, miseravelmente sozinho. Mesmo
que não se lembre de nada disso, eu me lembro. — Ele agarrou meu rosto
com urgência, mas também com tanta delicadeza que fez minha raiva ceder
um pouco. — Porque eu acabei de te encontrar de novo e não posso te
perder.
Minha raiva derreteu para fora de mim, como cera de vela.
Coloquei minha mão sobre a dele. Meu coração batia
descompassado, tão rápido que eu o sentia na garganta. Olhei dentro
daqueles infinitos olhos azuis e busquei pelas minhas memórias do passado.
Qualquer coisa que me dissesse como fazê-lo ficar. Como fazê-lo ver que
eu tão pouco queria perdê-lo.
— Foi você quem disse que iria embora — falei. — Não é justo
você dizer tudo isso quando sou eu que estou te perdendo.
— É diferente. — Ele tentou tirar a mão do meu rosto, mas eu o
segurei firme.
— Por que, Nathan?
— Porque eu e você juntos é como uma condenação. E preciso que
você sobreviva. Preciso não ver você morrer. Posso suportar ser qualquer
coisa seu, Aly, menos sua ruína.
— É muito egocêntrico da sua parte achar que pode ser minha ruína,
sabia? Além de muito dramático.
Ele quase sorriu.
— Sou um covarde, — ele listou nos seus dedos desocupados —,
dramático e egocêntrico, não lembra?
— É difícil lembrar de algo esses dias — brinquei, nossos narizes
quase se tocando.
Seus olhos caíram em minha boca e senti que talvez eu tivesse
coragem o suficiente para quebrar a barreira de novo e o beijar. Mas o medo
da humilhação falou mais alto. Se ele recusasse ou ainda assim me
deixasse, não haveria mais orgulho algum sobrando em mim.
— Por que faz isso comigo? — ele murmurou.
— O que?
— Me faz querer tanto algo que não posso ter.
Eu cheguei mais perto, nossos narizes se tocaram.
— Foi você quem definiu a linha.
— Porque alguém aqui precisa.
Ele parecia pesar suas opções junto as consequências. Talvez vendo
se valia a pena arriscar e me beijar, jogar tudo para o alto e se entregar. Se
talvez nossa história pudesse ser diferente da de seus pais. Então eu apenas
fiquei parada, esperando que ele decidisse que valia a pena lutar por isso,
por mim. Precisava que ele chegasse a essa conclusão, porque caso
contrário, eu era só mais uma peça que o Destino escolheu e não poderia ser
nada além.
O transe acabou quando Zeus latiu para as árvores, ouvindo alguém
se aproximar.
Nathan me soltou e eu o deixei. Ele deu um passo para trás, como se
finalmente percebesse o quão perto estávamos, o quão próximo ele estava
de desistir de seus limites idiotas.
— Talvez um dia, quando tudo isso acabar — sussurrou.
Isso não era bom o bastante para mim. Não servia.
Eu queria agora. Queria que ele lutasse por nós. Queria que ele me
quisesse o suficiente para ignorar seus medos.
Nathan assimilou a descrença e desgosto em meu olhar, antes de se
virar para as árvores e encontrar Roman.
— Bom saber que você ainda é sorrateiro, Scott.
Roman pareceu tenso ao nos observar. Isso apenas me lembrava que
eu precisava esclarecer logo, as coisas com ele. Serena estava certa, eu não
podia deixá-lo esperar por algo, que não iria acontecer. Talvez ele fosse a
melhor opção, a opção mais simples e muito menos problemática. Mas não
podia me forçar a amar alguém dessa forma e Roman merecia mais do que
ser a “melhor opção”. Porque agora mesmo, enquanto Nathan estava parado
ao meu lado e Roman logo à minha frente, era Nathan quem eu conseguia
sentir em minha pele. Talvez sempre fosse Nathan. Não seria justo comigo e
muito menos com Roman, se eu fingisse o contrário.
— Não posso dizer o mesmo sobre você e sua tendência a quebrar
as regras — Roman retrucou.
Nathan riu.
— Não vamos fingir que sou o único quebrando as regras.
— Qual o problema de vocês dois? — intervi. — Não sabem
conversar sem se alfinetarem?
Nathan se virou para mim, o olhar perdido. Por um instante, pensei
que ele iria me tocar novamente, mas ele apenas encolheu os ombros e
disse:
— Preciso ir.
— Você não precisa...
Nathan apenas balançou a cabeça.
— Tenho que me preparar para a nova missão, Aly. — Então ele se
virou para Roman. — Imagino que saiba que não foi um Desertor que
tentou matá-la. — Roman assentiu a contragosto e percebi que meus pais
deviam tê-lo avisado. — Você deve ser capaz de levá-la para a cabana e
impedir que ela seja morta, certo?
Nathan não esperou uma resposta. Ele assoviou para Zeus e
começou a andar.
— Não sou eu que estou fazendo-a ultrapassar a fronteira — Roman
murmurou.
Nathan parou no meio do caminho. Suspirei, exasperada. Ele se
virou para encarar Roman e parecia a um passo de esganá-lo.
— Eu não estou fazendo nada. Não sou o dono dela, não a forço a
absolutamente nada — sua voz era profunda e transbordava irritação. —
Cuide do seu maldito trabalho.
Roman bloqueou Nathan, parando à sua frente. Nathan o fuzilou.
Dei um passo à frente, pronta para separá-los.
— Parem com isso — pedi.
Roman nem pareceu escutar. Com os olhos fixos nos de Nathan, o
cenho franzido e os ombros tensos, ele disse:
— Você está dificultando meu trabalho, Cross. Então o que vamos
fazer sobre isso?
Nathan empurrou Roman. Senti sua irritação como se fosse a minha
própria. Roman quase não se moveu, contudo. Apressei-me para separá-los
e coloquei minhas mãos entre eles, esperando conseguir separá-los.
Esperava que o maldito senso caísse sobre eles e parassem logo com essa
merda!
— Você quer mesmo parecer valentão para ela? O quão idiota é? —
Nathan retrucou. — Sabe diferenciar seu trabalho dos seus sentimentos?
Roman bufou, cinicamente.
— Você sabe?
Nathan vacilou.
Bati meu punho em seus peitos e me enfiei no meio deles, usando
minha força sobrenatural. Eu estava tão cansada dessa disputa, de quem tem
mais testosterona nas veias. Eles se odiavam? Tudo bem. Mas me deixem
fora disso!
— Parem com essa merda, agora mesmo — exigi.
Nathan me olhou.
— Talvez eu não devesse ser o único a me afastar, afinal. — Então
ele olhou para Roman. — Se você errar com ela, acabo com você. Se algo
acontecer, qualquer coisa, por sua culpa, juro pelo Destino que mato você.
— Nathan! — protestei, mas ele não me escutou, já estava se
virando e indo embora.
Eu estava tão exausta de vê-lo me dando as costas.
Logo eu e Roman estávamos sozinhos em meio às árvores.
Suspirei.
— Vocês precisam parar com essa merda.
Roman se virou para mim.
— O que estavam fazendo?
Eu o encarei de volta.
— Conversando — retruquei. — Acho que, basicamente, ele me
disse o que você está prestes a dizer.
— É mesmo?
Assenti.
— Veio me dizer o quanto foi estúpido, eu ao menos pensar em
poupar um Desertor.
— Na verdade, vim dizer que você caiu direitinho no plano de
Ravenna — ele disse, chutando uma pedrinha para longe. — Apesar que foi
bem estúpido tudo aquilo. Mas a questão é que, agora, Ravenna pode te
pintar como a garota que se recusa a matar. Mesmo por nós.
— Não é assim.
— Não?
Seu tom condescendente me irritou.
— Não foi ele quem me atacou. E sei que é idiota pensar assim, mas
e se nem todos fossem ruins como dizem? E se eles só não tivessem escolha
de voltar atrás?
— Escolha é justamente o que os transformaram em Desertores.
De fato, parecia o caso. Então por que eu tentava negar? Por que
achava que havia salvação? Talvez, no fundo, eu achasse que se eles ainda
tivessem uma alma, eu poderia impedi-los de querer me matar.
Eu o olhei e então lhe dei as costas.
Roman me seguia pelo caminho até minha cabana quando me
recusei a continuar aquela conversa e enfrentei a trilha de volta para casa. O
que eu tinha para dizer? Nada. Mesmo assim, ele me seguia de perto, em
completo silêncio.
Já estávamos entrando na ruela vazia que levava à minha cabana
quando Roman colocou sua mão na minha e me puxou para si. Parei a
poucos centímetros de distância dele.
— Desculpe. Eu não queria te machucar — disse.
— Você não me machucou.
Sua mão subiu até meu rosto. Ele prendeu uma mecha de cabelo
solta da minha trança atrás da minha orelha. Seus olhos chocolate me
olharam com uma emoção que fez meu estômago se revirar.
Como isso aconteceu?
— Roman...
— Eu sei que você sente algo por Nathan — ele disparou, os olhos
ainda nos meus. — Não sou idiota, Alyssa.
— Eu não sei... — o que sinto? Isso não era verdade. Eu sabia, só
não desejava admitir nada tão cedo e principalmente não para Roman. — É
complicado.
— Tudo bem. — Seus dedos acariciaram minha bochecha e senti
um arrepio descer pela minha coluna. — Eu beijei você porque quis, não
porque achei que iria querer se casar comigo em seguida.
Revirei os olhos, sorrindo.
— Ah, jura?
Ele também sorriu.
— Mas eu sei o que quero. — Seus dedos desceram até meus lábios.
— Eu quero fazer isso dar certo.
Seria bom se fosse simples assim. Se eu pudesse fazer meu coração
corresponder a ele dessa forma. Seria tão mais fácil. Tão menos doído. Mas
eu não estava apaixonada por Roman. Não era ele quem fazia meu coração
acelerar.
Tirei sua mão do meu rosto, com gentileza.
— Não posso fingir, Roman. Não seria justo comigo e muito menos
com você.
Ele parecia como alguém, que acabava de perceber que havia
perdido uma aposta importante. Percebi, com o coração apertado, que talvez
ele tivesse certeza de que funcionaríamos juntos.
— Alyssa, eu sei que é cedo...
Balancei a cabeça.
— Dadas as circunstâncias, eu nem mesmo acho que é cedo,
Roman. Mas eu não posso ignorar o que eu sinto por Nathan.
— Então você está apaixonada por uma mentira — ele rebateu,
amargo.
Engoli em seco.
— E você, Roman? Por que está tão certo de que sente algo por
mim?
Ele cerrou os olhos.
— Que tipo de pergunta é essa?
— Uma pergunta válida — respondi. — Talvez você esteja
apaixonado pela ideia de quem sou...
— Não me insulte — ele me cortou. — Não espero nada de você,
Alyssa. Não estou deslumbrado pelo fato de você carregar a marca da Fidly.
— Roman deu um passo para trás. — Você, sem dúvida, é mais do que eu
esperava. Mais do que eu esperava que o Destino nos daria. Cabeça dura,
leal e vergonhosamente talentosa. Mas nada disso se dá pela profecia. —
Ele me olhou. — Já parou para pensar por que está tão interessada por ele?
— Eu e Nathan temos um passado.
— Que você nem ao menos se lembra!
Mordi o lábio.
Eu não queria machucá-lo. Não queria destruir nossa amizade.
— Eu não me lembro, mas sinto tudo, desde que o vi no gramado na
fronteira entre nossas casas.
Roman bufou uma risada. Seus ombros estavam curvados, como se
carregassem o peso de sua mágoa. E eu vi, em seus olhos, a traição que
sentia.
— Acho que você deveria ao menos saber no que está se metendo
— disse, as palavras sendo atiradas como dardos. — Houve um tempo em
que eu esperava que Nathan fosse leal a mim, também. Leal a nossa
amizade. E ele me deixou para trás, como um animal descartado.
Do que ele estava falando? Era por isso que os dois não conseguiam
ficar em um mesmo lugar sem se alfinetar?
— Nós treinamos juntos desde que Brian o trouxe para cá.
Aprendemos a empunhar nossa primeira adaga de pedra de fogo, juntos.
Fizemos tudo juntos, até o dia que recebemos a tatuagem. Passamos dia
após dia, pensando em como deixaríamos este lugar e quando finalmente
tomaríamos a rédea de nossas vidas. Prometemos que, como irmãos,
cuidaríamos um do outro. Ele me prometeu que, se planejássemos bem,
conseguiríamos deixar o Outro Lado para trás. Nathan queria se rebelar
contra seu pai e Ravenna. Eu queria deixar este lugar, que apenas me
lembra dos pais que perdi. Fazia sentido irmos embora juntos.
— Mas você ficou — percebi.
Nathan foi embora, logo depois de receber a tatuagem. Se não fosse
por Brian, teriam mandado Protetores atrás dele, por temerem que se
tornasse um Desertor. Mas Roman nunca deixou o Outro Lado, por mais do
que o tempo de uma missão.
— Fiquei porque Nathan havia deixado o Outro Lado escondido,
durante a madrugada, deixando um caos entre os Protetores para trás.
Havíamos passado noites em claro, planejando o que diríamos quando
disséssemos que queríamos seguir por conta própria, fora do Outro Lado,
apenas para que ele surtasse e fosse embora sozinho. — Raiva brilhava nos
olhos de Roman. — Se você espera que ele esteja ao seu lado quando as
coisas se complicarem, talvez devesse repensar suas expectativas. Nathan é
uma bomba relógio e quando ele finalmente explodir, talvez te destrua
junto.
Absorvi suas palavras.
— Por que você queria ir embora?
— Eu já disse. Tudo aqui me lembra da família que perdi. Passei
minha infância e adolescência inteira preso nesse lugar. Todos os outros,
eventualmente, saíam com suas famílias, conviviam um pouco com o
mundo humano. Eu estava cansado disso. Estava cansado de nunca ver nada
além dessa dimensão e as missões ordenadas por Ravenna.
— Talvez Nathan tenha tido alguma razão para ter ido embora tão
rápido.
Roman pareceu cético.
— Sim. Claro que tinha. Seu próprio egoísmo.
Eu não queria aceitar isso. Não queria acreditar que Nathan deixaria
seu amigo para trás, sem uma boa razão. E mesmo se houvesse de fato um
motivo, isso seria uma justificativa? Será que Roman não estava certo em
dizer que eu não poderia contar com Nathan? Afinal, ele preferia fugir dos
problemas do que ficar e lidar com eles.
Mas, mesmo assim, ele esteve ao meu lado sempre que precisei.
Salvou minha vida mais de uma vez, voltou para o Outro Lado, apenas para
me ajudar a treinar... Algo parecia errado nessa história entre os dois.
— Na noite em que ele deixou o Outro Lado, eu roubei armas do
arsenal. Nós sabíamos que Ravenna não ia simplesmente nos deixar ir.
Éramos bons demais no que fazíamos e ela não nos deixaria seguir
independentemente. Então eu roubei as armas, enquanto Nathan deveria
estar planejando como sair sem ser notado. Ele descobriu, claro. Mas não se
importou em esperar por mim. — O sol agora parecia tornar aquele
uniforme sufocante e a pele de Roman brilhava de suor. — Ravenna me
encontrou e disse que eu poderia deixar as armas porque Nathan já tinha
deixado o Outro Lado.
Eu não sabia o que responder.
Talvez Nathan de fato tenha o hábito de deixar as pessoas para trás
quando tudo se complicava.
Eu sabia que ele estava fazendo isso agora mesmo.
— Eu sinto muito, Roman.
Seus olhos chocolates encontraram os meus.
— Não sinta. — Ele avistou algo atrás de mim. — Apenas abra os
olhos.
Atrás de nós, Jasper caminhava em nossa direção. Agora devia ser o
seu turno de ser minha babá e aproveitar para dizer o quanto eu era
estúpida.
Com um suspiro exasperado, voltei a me virar, apenas para
encontrar Roman já caminhando para longe.
— Roman! — chamei.
Não queria deixar as coisas assim.
Ele mal me olhou ao dizer:
— Está tudo bem, Alyssa.
Apesar de suas palavras, seu olhar dizia o contrário.
Jasper me encarou com descrença.
— Me diga que todo o meu trabalho não foi em vão, Alyssa.
Quantas pessoas ainda me interrogariam e apontariam minha própria
estupidez?
— Jasper...
— Me diga que não tenho perdido meu tempo com uma garota com
desejo suicida.
— Eu não sou suicida.
— Você teve um leve AVC, então? Porque de onde eu estava
parado, parecia que você não ia matar o Desertor.
— Ele nem mesmo era mais velho que eu! Desculpa por achar que
talvez eles ainda tenham alguma humanidade! Ou por ainda querer tentar
preservar a minha!
Jasper parecia não acreditar no que escutava.
— Eles não têm — garantiu. — Vi homens idiotas, mas bons,
escolherem este caminho e se transformarem em monstros movidos pela
ambição de Vicenzo. E quanto à sua humanidade, menina, não servirá de
nada se estiver morta.
Suas palavras me atingiram como um tapa.
— Talvez exista um modo de fazê-los voltar para nosso lado —
insisti, ignorando suas últimas palavras.
— Você está se escutando, criança? Ou seu delírio dificulta seu
raciocínio?
Eu o encarei, com raiva. Eu não era estúpida. Mas se existisse um
modo de evitar mais mortes nessa guerra, não seria algo válido? Não seria
melhor aumentar nossa armada do que nos prepararmos para uma maior
matança?
— Quando fazem o juramento de sangue com Vicenzo, algo
deturpado e sombrio cresce dentro deles. O impulso de matar é tudo o que
Vicenzo lhes dá. O desgraçado lhes promete um futuro imortal e os
presenteia com desejo de sangue. Tornam-se escravos do desejo dele. Não
há como salvá-los disso. O juramento só acaba com a morte. — O que? Eu
não sabia disso. Não sabia que funcionava como um pacto com o próprio
diabo. Jasper jogou minha adaga no chão, aos meus pés. — E isso não é
uma suposição, Alyssa. É um fato.

Eu treinei com Jasper até o anoitecer, submersos em um silêncio


pesado. Além de ordens para que eu melhorasse meus movimentos, Jasper
não dizia mais nada. Estava óbvio, pela sua expressão carrancuda e
frustrada, que eu o havia desapontado. Bem, entre na fila.
Na hora do jantar, meus pais apareceram com comida para nós. Era
a primeira vez que comíamos juntos desde que descobri sobre as memórias
e eu não havia exatamente deixado um convite. Minha mãe estava
impressionantemente mais agradável. Parecia, ao menos, tentar se redimir.
Não que ela pensasse que tinha feito algo errado, eu sabia muito bem, que
era meu pai que se certificava para que ela não comentasse sobre Nathan ou
o que havia acontecido naquele dia. Sobre meu fiasco em frente a todos os
Protetores do Outro Lado, tudo o que ela disse era que resolveria tudo.
Preferi não perguntar ao que exatamente ela se referia.
— Deveriam ter convidado Jonnah para jantar conosco — falei.
Minha mãe fez uma careta.
— Jonnah estava com Akantha hoje. Não podemos confiar
cegamente em alguém que mal conhecemos — respondeu.
Deixei os talheres baterem na louça.
— O que diabos isso quer dizer?
— Alyssa... — meu pai começou.
Ergui minha mão.
— Você ouviu ele — tentei lembrá-la. — Akantha é uma megera
com ele. E, talvez, se você tivesse sido mais leal ao seu irmão, você teria
conhecido Jonnah antes que Akantha pudesse colocar as mãos nele.
As palavras saíram tão rápido, que mal pensei na ferida que estava
cutucando. Os olhos da minha mãe queimaram e ela trincou os dentes. Mas
dessa vez não era raiva. Era dor.
— Alyssa! Desculpe-se agora mesmo. — A expressão surpresa do
meu pai dizia muito bem, que eu estava me tornando alguém que ele talvez
não reconhecesse mais.
Às vezes nem eu mesma me reconhecia.
Levantei da mesa e coloquei meu prato na pia.
— O que eu quero dizer — tentei novamente, os olhos no prato sujo.
— É que Jonnah, é apenas mais uma vítima nisso tudo. Não o trate como
um traidor quando não sabemos o que está acontecendo de verdade.
Minha mãe se levantou com força. A cadeira rangeu no piso de
madeira.
— Eu não a ensinei a ser condescendente, Alyssa — minha mãe
repreendeu. — Talvez você devesse começar a tomar todas as decisões, já
que pensa que são tão simples. — Ela estalou a língua. — Mas para alguém
que não consegue segurar uma adaga para salvar a própria vida, acho que te
pedir para tomar as decisões seja um pouco demais. Enquanto você não
decide sujar suas mãos, nós precisamos fazer o trabalho sujo.
Eu abri a boca, mas nada saiu. Nunca pensei que não querer ser uma
assassina fosse algo tão ruim.
Jasmine, no entanto, não esperou qualquer represália. Ela saiu da
cabana batendo os pés e fechou a porta com tanta força, que um livro caiu
da minha estante. Acho que, vivendo entre humanos por tanto tempo, ela se
esquecia da força inumana que tinha.
Meu pai suspirou. Seus dedos coçavam a linha profunda entre suas
sobrancelhas.
— Eu não devia ter mencionado o irmão — admiti.
— Você acha?
Mordi o lábio.
Henry se levantou e veio até mim. Seus olhos escuros não chegavam
a ser negros como os meus, mas eram profundos e intensos. Decepção
perpassava por eles e ver aquilo me machucou mais do que eu esperava.
— Você está com raiva. Não sei se por causa do que é ou por causa
de Nathan. Talvez ambos. — Eu sentia ele ler cada pedacinho da minha
alma, enquanto falava e observava minha reação com atenção. — Estou
errado?
Não respondi.
Ele apertou meu ombro com carinho.
— Você pode estar brava comigo, com sua mãe, com a verdade e
com as mentiras... — disse. — Mas a raiva, Alyssa, ela vai apenas tirar seu
sossego. Vai pesar sua alma como uma barra de ferro presa em seus ombros.
— Ele sorriu tristemente. — Como vai poder voar com algo tão pesado nos
ombros, minha pequena pássara?
Pequena pássara. Ele costumava me chamar assim quando eu era
pequena, e às vezes ainda chama, como hoje mais cedo. Quando ainda
morávamos no Lago, eu tinha a mania de acordar cedo apenas para observar
os pássaros se agrupando e cantando logo ao amanhecer. Eu assistia,
enquanto voavam para longe e às vezes tão baixo que tocavam a água com
as asas. Em alguns dias, meu pai se juntava a mim. Uma vez, perguntei:
“por que não posso voar também, papai?”. Ele me olhou, divertido,
provavelmente tomando tempo para pensar em uma boa resposta, então
disse: “humanos voam de forma diferente que os pássaros.” Aquilo não
colou comigo. Eu balancei a cabeça para ele e insisti: “eu não voo de forma
alguma, pai, sou pesada demais. Nunca vou sair do chão.” Meu pai, como
sempre calmo e paciente, afagou meus cabelos e apontou para um pequeno
pássaro em um ninho: “você é pequena como ele, Aly. Ambos ainda não
aprenderam a voar, mas irão. Em pouco tempo, você será minha pequena
pássara.”
E eu amava sempre que me chamava assim.
A vergonha queimou minhas bochechas.
— Eu estou brava — confirmei. — Quero minhas memórias.
— Eu sei. — Ele assentiu. — E sinto muito que não encontramos
forma melhor de lidar com você e Nathan.
Eu o encarei.
— É tão ruim que eu goste dele?
Ele me observou, pensando a respeito da pergunta.
— Terei que responder isso como seu pai, certo? — Ele tirou o
cabelo do meu rosto, com um sorriso. — E como seu pai, Alyssa, sempre a
colocarei em primeiro lugar. Se gostar de Nathan atrapalhe que você se
coloque em primeiro lugar, então é sim algo ruim.
— Não é como se eu o colocasse em uma posição de importância
dessa forma. Não acho que suas vontades são mais importantes que as
minhas. — Eu desviei o olhar. Como eu poderia explicar melhor? — O que
eu fiz, pai... Preciso que acredite que fiz o que achei certo. Eu não posso...
não posso permitir que se machuque. Não só ele, mas você, mamãe, Serena,
Roman, Jonnah e até Jasper, que chutaria minha bunda por eu pensar que
ele precise da minha ajuda.
— Então não é diferente o que sente por Nathan?
Eu corei. Eu amava meu pai e ele era um bom confidente, mas
discutir meus sentimentos por Nathan parecia demais.
— É diferente. Só não sei o que isso quer dizer. — Bati em minha
têmpora. — Sem memórias e tal.
Ele me olhou com diversão.
— O que você e Nathan tinham quando crianças era, de fato,
excepcional. Quando vocês se reencontraram alguns anos atrás... aquilo
provavelmente explicaria parte dos seus sentimentos. Mas não finja que
tudo o que sente se baseia no passado, filha. Seria uma mentira. Você pode
amar alguém e ainda assim se apaixonar novamente por essa pessoa.
Eu o olhei, surpresa. Ainda mais envergonhada. Ele estava certo,
como sempre. Eu usava a desculpa das memórias, apenas para ter tempo de
entender melhor como Nathan me fazia sentir. E era vergonhoso que até
mesmo meu pai percebesse que eu estava apaixonada por ele.
— Eu não sei o que estou fazendo, pai. Todos esperam algo de mim
que não sei se posso fazer. Sinto... — as palavras ficaram presas no nó em
minha garganta. — Sinto que estou me perdendo.
— Então lute. — Ele soltou meu ombro e pegou meu rosto, sorrindo
para mim. — Eu sei quem você é, filha. Se me permitir, posso ajudá-la a se
lembrar.
O nó em minha garganta se afrouxou um pouco.
— Quem eu sou, pai?
Seu sorriso ampliou.
—Você é esperança, pequena pássara.
O pesadelo ainda perturbava minha mente nublada quando Jasper
bateu apenas uma vez na porta, antes de entrar na cabana e pedir que eu
colocasse o couro e descesse. A urgência em sua voz foi capaz de me fazer
despertar de imediato. Estava prendendo os cabelos quando o encontrei na
sala, os punhos cerrados e a expressão séria.
Sinais de alerta tocaram em minha cabeça.
— O que aconteceu?
— Ravenna quer que você a encontre na casa de vidro. Agora.
Durante o caminho, Jasper parecia tenso. Seus olhos focaram-se em
qualquer lugar, menos em mim. Minhas mãos suavam de nervosismo. O
que Ravenna poderia querer comigo? E por que Jasper parecia tão tenso a
respeito disso?
Para aliviar a tensão que tomava meu corpo, tentei focar nas pessoas
ao meu redor. Os Protetores que ainda não tinham deixado o Outro Lado
para alguma missão, não me encaravam ao passar por eles, mas algumas
crianças — as que aprendi serem muito novas para o treinamento, mas que
viviam ali porque eram órfãs — me olhavam com curiosidade. Uma
garotinha, parecia ter sete anos, mostrou um desenho em sua mão direita. O
desenho ficava na mesma área que a minha marca, nas costas de sua
mãozinha. Ela sorriu abertamente para mim, com as bochechas rosadas pelo
calor e o cabelo cacheado preso em um rabo de cavalo.
Meu coração bateu forte, meio envergonhada e levemente abalada.
Até mesmo as crianças esperavam que eu conseguisse destruir Vicenzo.
Aquela menininha provavelmente, não sabia do fiasco de ontem ou seu
sorriso seria menos esperançoso.
Você é esperança — meu pai havia dito.
Devolvi o sorriso à garotinha, mas talvez com menos entusiasmo.
Desviei meu olhar para o Lago que beijava a montanha com suas leves
ondas. Os cumes estavam esverdeados, mas eu sabia que no inverno aquilo
mudava. Em menos de cinco meses, quando meu aniversário chegasse, eles
já estariam começando a congelar.
Quatro meses e quinze dias.
Esse era o tempo que eu tinha até tudo mudar.
Pouco mais de quatro meses e, teoricamente, me tornaria capaz de
matar Vicenzo e, então, poderia viver em paz. Sem as expectativas de
ninguém, além das minhas próprias. Sem ninguém me perseguindo e
querendo me matar.
Quatro meses, caso eu sobrevivesse à Ravenna hoje.
Jasper abriu a porta da casa de vidro e me guiou para dentro. Eu já
sabia onde o escritório de Ravenna ficava, então não hesitei quando Jasper
bateu à porta e, com a aprovação vinda de dentro, ele entrou comigo a seu
encalço.
Ravenna estava sentada como uma rainha em seu escritório. As
mãos descansando em seu colo eram uma mera distração de seu olhar feroz.
Nunca vi outro olhar nela que não fosse aquele, a não ser talvez, pela sua
curiosidade cética de quando me observou de perto pela primeira vez.
Seus longos cabelos vermelhos como sangue estavam soltos e
escorriam pelos seus ombros quando ela tombou a cabeça e empinou o
nariz para mim.
— Olá, Fidly.
Cerrei os olhos.
— O que quer?
Um sorriso felino nasceu em seus lábios.
— Não seria eu quem deveria estar irritada depois da sua
performance vergonhosa de ontem?
Trinquei os dentes.
— Ravenna, talvez seja melhor puni-la nos treinos. Dobrar os
horários, quem sabe até mesmo instruir novas armas — Jasper sugeriu.
Eu o olhei de esguelha. Ele realmente estava tão irritado que achava
que eu precisava de punição por não ter enfiado minha adaga naquele
Desertor?
Ravenna estalou a língua, levantando-se da cadeira.
— Não pretendo puni-la, irmão. Meu objetivo aqui é ensiná-la.
Jasper não pareceu acreditar e, portanto, muito menos eu.
— Como pretende fazer isso, Ravenna? — perguntei.
Ravenna, no entanto, não me respondeu. Com os olhos em Jasper,
ela disse:
— Pode nos deixar agora.
Jasper abriu a boca para dizer algo, mas Ravenna o cortou com um
olhar afiado. Meu treinador parecia hesitante ao deixar a sala. Antes de sair,
Jasper parecia querer me dizer algo, mas não fui capaz de compreender as
palavras presas em seu olhar.
Ravenna caminhou até sua larga estante de madeira escura, que
cobria toda a parede. Suas mãos traçaram os livros e dividi meu peso entre
uma perna e outra quando percebi que ela não parecia ter a menor pressa.
— Muitos Protetores, líderes dessa sede, usaram esta sala antes de
mim. Séculos e séculos e séculos da história de nossa luta percorreu esta
sala. Muitas informações sigilosas, impressionaram essas paredes.
Ela queria me entediar até eu aprender a matar?
— Há um objetivo nessa conversa?
Ela cerrou os olhos para mim, mas logo voltou sua atenção para a
estante. Então, afastou um livro e pressionou o fundo de madeira. Com um
estampido rouco, a estante se afastou da parede, e Ravenna empurrou mais,
abrindo espaço para uma longa escadaria que descia até a densa escuridão,
que impossibilitava a distinção de qualquer coisa.
— O objetivo é apenas lhe informar que há mais nesse lugar do que
os olhos podem ver. — Ela esticou o braço, dando espaço para as escadas
obscuras. — Desça.
Algo me dizia que nada de bom poderia vir daquilo.
Minha hesitação foi óbvia.
— Com medo, Fidly?
Talvez eu usasse um pouquinho do poder que eu iria ganhar em
poucos meses, para quebrar o nariz empinado de Ravenna.
— Estarei logo atrás de você.
Respirei fundo quando passei por Ravenna e comecei a descer os
degraus íngremes. Ela apertou um interruptor na parede, estando tão
acostumada àquele caminho que o encontrou mesmo no breu, e uma luz
amarelada irrompeu pelas bordas do teto, tornando a completa escuridão,
em um espaço levemente sombreado.
As escadas terminaram em uma ampla sala, com nada além de uma
grande caixa de vidro, quase tão grande quanto o lugar que a guardava.
Senti Ravenna parar ao meu lado, tão satisfeita com si mesma que seu ar de
superioridade pareceu preencher o espaço escuro, quente e completamente
sufocante. Não havia janelas na sala e, tirando alguns buracos na grande
caixa de vidro, o ar não podia correr muito pelo espaço.
Mas não foi nada disso que me fez travar no lugar, sem saber o que
fazer ou o que falar.
Eram as duas pessoas amarradas, uma em frente à outra, que me fez
soltar um suspiro esguichado. Nathan estava sentado em uma cadeira, os
braços amarrados e a cabeça tombada para frente, desacordado. À sua
frente, um homem de cabelos escuros e pele marcada por calombos
avermelhados, que o faziam parecer uma rocha, guinchava de raiva,
encarando Nathan com puro ódio. Sua boca estava amordaçada, assim
como suas mãos e pés estavam acorrentados.
Eu corri até a caixa. Demorei longos segundos para encontrar o
portal de entrada e, quando finalmente consegui entrar naquele túmulo de
vidro, Nathan estava inspirando e expirando com dificuldade.
— Que merda você fez? — rosnei para Ravenna.
Os saltos de suas botas ecoavam pelas paredes da caixa e por um
segundo pensei em quebrar suas pernas. Raiva pairava sobre mim como
uma névoa espessa. Meu sangue borbulhava quando toquei Nathan.
Toquei o rosto de Nathan e ele suspirou, quase acordando. Tirei o
cabelo do seu rosto e ele murmurou algo que não consegui entender.
— Eu o coloquei em uma cadeira — Ravenna disse, como se isso
justificasse o fato dele estar amarrado e desacordado. Como se ela tivesse
feito uma gentileza.
— Se você tiver tocado em um fio sequer de cabelo dele, eu juro...
Não ousei encarar o Desertor e seu estado deplorável.
— Não, Fidly. Não machuquei seu precioso Nathan. Apenas dei
algo para deixá-lo mais... maleável.
Eu a fuzilei.
— Alyssa.
Sua voz era um sussurro, quase um sopro que eu não ouviria se não
estivesse tão perto.
— Vou te tirar daqui, Nathan — eu disse, tirando seu cabelo dos
olhos. Seus lindos olhos azuis me olharam com cansaço e confusão, como
se não tivesse ideia de como eu ou ele havíamos chegado ali.
Puxei as cordas de suas mãos e comecei a tentar desamarrar o nó
apertado.
—Aly — ele chamou baixinho, seus olhos fixos em algo atrás de
mim.
Virei-me para encontrar Ravenna levantando o Desertor que rosnava
como um touro sendo provocado. Seus olhos caíram na marca em minha
mão e eu tremi com sua inspeção. Ele parou de se debater e um olhar frio e
odioso caiu em seus olhos, como se uma nova determinação tomasse
controle de seu corpo. Nada mais importava, além do que pareceu como
puro instinto de me matar. Era quase como se um botão fosse apertado e
toda sua existência passasse a se basear naquele único propósito. Eu vi
quando ele tomou a decisão de me alcançar e, com meu corpo, bloqueei
Nathan. O Protetor estava tão dopado com o que quer que Ravenna tinha
lhe dado, que mal conseguia erguer a cabeça.
Quando ele estava a pouco menos de um metro de distância,
Ravenna puxou as correntes e enrolou uma nova em volta de seu pescoço.
O Desertor vacilou para trás e, por pouco, não caiu de bunda no chão.
Ravenna libertou a mordaça de sua boca e o homem tentou morder
seu rosto. Ela chutou suas pernas com força e ele caiu de joelhos, rugindo
alto.
Quase não percebi a mão fria de Nathan agarrada ao meu braço,
como se tentasse me tirar de sua frente. Suas mãos nunca eram frias. A
lembrança veio como uma reminiscência, contornando minhas memórias
nubladas como garoa acinzentada. Eu sabia daquilo, não só pelas vezes que
me tocou no tempo que estive aqui, mas por muitas outras vezes. Lembrava
desse detalhe, mesmo não sendo capaz de lembrar de uma cena específica.
— O que você está fazendo? — gritei para Ravenna.
— Não está claro? Estou te ensinando.
— Nathan está preso como um animal e dopado!
— Alyssa. — Virei-me para Nathan, que urgia por mim. — Saia
daqui.
Ravenna soltou uma risada dramática.
— Olhe bem, Alyssa. Nós não temos muito tempo ou disposição
para lidar com seus caprichos. Meus Protetores lutam e morrem todos os
dias por causa de vermes como este. — Ela puxou a corrente, sufocando o
Desertor um pouco mais. — Todos os dias, Vicenzo se fortalece mais e
danifica a balança do Destino, fazendo com que tenhamos que lidar com
bestas selvagens que não pertencem a esta dimensão. — Fogo, da cor de
seus cabelos, consumia seus olhos. Algo me dizia que ela não estava se
referindo aos Desertores ao mencionar “bestas selvagens”. — O mínimo
que você deve fazer é nos estender a mesma delicadeza e não se recusar a
matar os vermes que estão sempre tentando nos matar.
O Desertor rosnou e tentou alcançar Ravenna, mas o aperto da
Protetora era de ferro e as correntes se apertaram mais, até que ele não teve
outra opção a não ser se ajoelhar aos pés da mulher.
— Pensei que, talvez, você não fosse completamente inútil. Pensei
que, com o encorajamento correto, você poderia mudar de posicionamento
e fazer algo. — Ela apontou para Nathan. — E é aí que nosso querido
Protetor prodígio entra na história. Veja bem, Alyssa, talvez se recuse a
matar por mim ou até mesmo por si mesma. Mas será que se recusaria,
mesmo que para salvar a vida de Nathan?
Ela queria que eu matasse alguém? Tudo bem.
Eu mataria ela.
Enfiaria minha adaga em seu coração e sorriria ao vê-la dar o último
suspiro. Por tudo o que ela fez com Nathan quando ele era mais novo e
nunca contou a ninguém. Pelo o que ela estava fazendo com ele agora. Iria
arrancar aquele sorrisinho arrogante de seus lábios com meu punho.
Ela queria me dar um motivo para que aquela fúria dentro de mim
surgisse? Queria que eu me tornasse a arma que tanto desejam que eu
fosse? Aqui estava. Eu seria a lâmina.
Ravenna pegou uma faca de dentro de sua bota e colocou no
pescoço do Desertor. Ela sussurrou para que ele ficasse quieto e começou a
soltar as correntes de seus braços e pernas.
— Você vai soltá-lo? Está louca?
— Bem, preciso ser convincente, certo? Você é teimosa demais e ele
precisa ser uma ameaça real — disse. — Não concorda, querido?
Ela estava falando com Nathan agora. A mão dele apertou meu
braço. Com esforço, ele ergueu a cabeça e focou em Ravenna.
— Você vai matá-la se soltá-lo — sua voz ainda saía com
dificuldade. O que diabos ela tinha dado a ele? — Ela não está pronta.
Ravenna dispensou o comentário com um aceno.
— Se ela não está pronta ainda, pode começar a planejar seu
funeral.
— Ravenna — Nathan grunhiu. — Não.
— Ah, não seja tão dramático! — Ela sorriu para mim, uma víbora
observando sua presa. — Eu e você fazíamos isso o tempo todo e você
sempre se saía bem. E nós dois sabemos que ela tem alguns dons
interessantes.
Ela sabia. Eu já desconfiava que soubesse. Nathan insistiu tanto para
manter os dons que herdei da minha mãe para mim mesma e, mesmo assim,
Ravenna descobriu.
— Me diga seu preço — Nathan disparou, fracamente. — Me diga o
que quer e eu faço. Apenas deixe ela ir.
Ravenna pareceu interessada, mas nem no inferno eu deixaria ele
fazer qualquer coisa para ela.
— Está disposto a implorar por ela, Nathan?
Eu rosnei para ela, cerrando o punho.
— Cale a boca — eu atirei.
— Sim — Nathan respondeu ao mesmo tempo. Ele forçava sua voz
a ir além de um sussurro.
Eu o olhei, os olhos arregalados. Nathan estava amarrado, fraco e
drogado, e mesmo assim, se preocupava em me proteger. Imploraria por
mim. Mas eu não precisava que ele fizesse isso. Eu não seria a donzela e ele
não teria que se preocupar.
— Interessante, muito interessante — ela disse, batendo os dedos no
queixo. — E mesmo que eu adorasse ouvi-lo implorar, Nathan, eu tenho
planos traçados aqui.
Ele grunhiu, mas eu não sabia se era de dor ou de raiva. Talvez
fossem os dois.
Eu mataria por ele. Mataria o Desertor e Ravenna também.
— Faremos assim: — Ravenna disse para mim, erguendo um dedo
— vou soltá-lo — ergueu outro dedo — e então, você usa essa adaga
bonitinha que tem e o mata. Entendido?
Engoli em seco.
Minhas mãos tremiam. Meu estômago se revirava. Eu nunca tinha
enfrentado um Desertor sozinha. Todas as vezes, eu tive alguém junto
comigo. Roman matou aqueles na floresta. Então, ele, Nathan e Serena,
mataram os do festival.
Agora, eu não poderia esperar que Nathan fizesse muito naquele
estado.
— Se falhar — por um segundo, uma máscara triste tomou suas
feições. — Vocês morrem. — Então abriu um sorriso. — Quem sabe eu
interfira, antes que o verme aqui, arranque seu coração, já que preciso que
cumpra a profecia. Mas não digo que farei o mesmo por ele. — Ela apontou
para Nathan.
Fúria ferveu meu sangue.
— Talvez deva deixá-lo me matar — eu rosnei. — Porque se eu sair
daqui, vou enfiar minha adaga bonitinha no seu coração.
Seu sorriso se ampliou.
— Vamos ver.
Ravenna não pensou duas vezes, antes de soltar as correntes e correr
tão rápido para a porta que enxerguei apenas um borrão. Em um segundo,
ela já havia nos trancado do lado de dentro.
— Filha da puta — Nathan soltou em meio a respiração pesada.
Até mesmo respirar parecia difícil para ele.
O Desertor jogou as correntes para longe, os olhos presos em mim.
Desembainhei minha adaga e me posicionei como Jasper havia me
ensinado, inúmeras vezes. Meu pé esquerdo ficou de base, enquanto o
direito se preparava para me impulsionar para o primeiro golpe. O Desertor
sorriu, deixando seus dentes amarelados à mostra. Ele não podia ter mais de
quarenta anos, mas parecia ter muito mais.
— Vicenzo irá me honrar em um altar quando eu matá-la.
— Mesmo que me mate, Ravenna não deixará que saia desta caixa
— eu disse. — Seu altar não passará de um funeral.
Ele nem pareceu absorver minhas palavras, tão alucinado estava
pela sede de sangue.
Até que ponto a influência de Vicenzo ia?
Nathan tentou se levantar, mas caiu aos meus pés.
Eu dei um passo à frente, bloqueando a visão do Desertor para que
não pudesse ver Nathan. Eu não queria nem que ele pensasse em Nathan.
Ele já havia percebido o estado do Protetor, eu não permitiria que ele
pensasse muito a respeito da vulnerabilidade dele.
O medo era quase uma terceira pessoa naquela caixa. Mas eu o
ignorei.
O Desertor começou a me rondar, como um animal que brincava
com a presa.
A chuva caía com voracidade, parecia pretender inundar o mundo
naquela mesma tarde. Meus olhos se embaçaram. Parei de correr e aceitei
a chuva encharcando meu vestido. Sorri para os céus e esperei o arco-íris
iminente, que logo chegaria por causa do sol, que ainda iluminava o
campo. O que estava acontecendo? Pisquei. Foquei no Desertor. Meu
sorriso se alargou quando vi Nathan parar no meio do caminho e voltar até
onde eu estava parada. “O que está fazendo?”, perguntou. Pisquei.
Apontei a adaga para o Desertor, que agora me cercava como um lobo
prestes a atacar. Se eu pudesse fazer minha mente focar, eu poderia me
aproveitar do fato de ele estar machucado. Sangue escorria do seu peito e
cabeça.
Eu avancei primeiro, não permitindo que ele tivesse a chance de me
pegar de surpresa.
Fui treinada a minha vida inteira. O que aprendi aqui, apenas
aprimorou o que eu já sabia. Eu podia fazer isso. Apesar de que, não era
uma grande fã da ideia, eu havia sido criada para matar.
E se matar o Desertor era o preço de manter Nathan vivo, eu o
mataria.
Cortei seu ombro, apesar de ter mirado em sua jugular. O Desertor
se moveu a tempo de impedir o golpe fatal, mas o sangue espirrou quando
cortei sua pele. Ele rugiu. Pulei para trás, antes que ele conseguisse me
pegar.
Nathan uma vez me disse que eu nem sempre conseguiria ser a mais
forte e, por isso, precisava ser mais rápida. Eu tinha a velocidade dos
Protetores, afinal. Então, eu faria bom uso dela.
De canto de olho, encontrei Nathan se colocando de pé com tanta
dificuldade que meus olhos correram para Ravenna do outro lado do vidro,
parecendo totalmente concentrada na luta aqui do lado de dentro.
O Desertor gargalhou, encarando a situação de Nathan.
— Você deveria ter aceitado o convite, Cross.
Nathan grunhiu.
— Eu vou arrancar sua pele do corpo se tocar nela — mesmo com
dificuldade, sua voz saiu ameaçadora. — E vou fazê-lo comer depois.
O Desertor riu e avançou. Ele não tinha armas, mas suas mãos eram
quase do tamanho da minha cabeça. Eu desviei do seu golpe, empurrei
Nathan para trás e chutei o peito do Desertor com tanta força que ele caiu
no chão.
Foi quando ele percebeu. Vi em seus olhos alarmados, que ele tinha
visto que eu não era uma simples humana que carregava a marca da Fidly.
Minha mão tremia quando avancei com a adaga empunhada. Eu
poderia esfaqueá-lo agora. Poderia acabar com aquilo, antes que ele se
recobrasse do susto.
Eu dei apenas um passo, antes da minha vista embaçar novamente.
Agarrei minha cabeça, grunhindo com as imagens atacando minha mente.
Nathan pegou minha mão e me puxou para frente. “Você vai pegar
um resfriado se continuar aí”, disse. Eu apenas balancei a cabeça.
“Apenas aproveite”. O sorriso de Nathan então se igualou ao meu. Quando
suas mãos tocaram meu rosto e ele colou sua testa contra a minha, sua pele
era como brasa. Nathan era quente. Sempre fora, mesmo com a chuva
gelada caindo dos céus e nos molhando inteiros.
— Alyssa!
Pisquei e consegui focar os olhos. Mãos tomaram meu pescoço e eu
tentei enfiar minha lâmina em seu abdômen. Mas o Desertor foi mais
rápido. Ele bateu no meu pulso com tanta força, que um grito escapou pelos
meus lábios. A adaga foi jogada para longe. Suas mãos se apertaram e o ar
começou a se tornar viscoso, enquanto eu lutava para inspirar. Avancei
contra ele, fincando minhas unhas em seu rosto. Sangue começou a escorrer
pelos meus dedos, como linhas finas de um desenho colorido.
“Eu senti sua falta”. Os dedos dele acariciaram minha bochecha.
Eu bati contra o chão e a memória voltou a ser fumaça em minha
mente. Encontrei Nathan jogado sobre o Desertor, tão fraco, que o
degenerado o agarrou e o prensou contra o chão.
— Pensei que ia arrancar minha pele, menino — debochou.
Rastejei no chão até alcançar minha adaga, jogada em um canto
daquela caixa de vidro, malditamente claustrofóbica.
Eu precisava matar o Desertor, antes que ele matasse Nathan.
Peguei a adaga e vi, além do vidro, Ravenna sorrir.
Fiquei de pé e enchi os pulmões de ar. Nathan, não muito longe,
bloqueava um soco do Desertor no rosto, mas não teve sucesso em bloquear
aquele direcionado às suas costelas.
Corri até eles, o coração batendo na garganta tão forte que até
mesmo engolir a saliva, se mostrava ser uma tarefa árdua. Minhas mãos não
tremeram quando eu ergui a adaga. O Desertor estava tão embriagado de
ódio mortal, que mal me viu chegando. Ele se virou a tempo de encontrar
minha adaga indo em direção ao seu peito. Era melhor assim. Assim, eu
poderia mirar melhor em seu coração.
A lâmina de pedra de fogo, tão afiada quanto poderia ser, cravou no
peito do Desertor, bem em seu coração. Algo acendeu em seus olhos
quando baixou os olhos para a arma em seu peito, mas eu não soube
decifrar o que. Suas mãos agarraram as minhas, sujando-me de sangue.
Puxei minha mão e a adaga de seu peito, sabendo que assim, ele morreria
mais rápido. Demoraria apenas alguns segundos se eu houvesse de fato,
acertado seu coração.
O Desertor desabou no chão. O som ressoou pela caixa sufocante.
Eu vi quando seus olhos se desfocaram e sangue escorreu de sua
boca.
O sangue sobre minhas mãos era mais do que eu havia notado.
Tanto sangue, que minhas palmas ficaram pegajosas. O cheiro forte de ferro
tomou conta dos meus sentidos e eu me curvei com o vômito já saindo pela
boca.
Eu não escutei Ravenna se aproximar ou Nathan gritar com ela. Mal
vi a fúria tomar conta dele. Percebi, vagamente, ele prendê-la contra uma
parede de vidro, já pronto para estrangulá-la, mas Ravenna logo tomou o
controle da situação.
Como se estivessem a quilômetros de distância, pude distinguir as
palavras frias da Protetora.
— Não seja idiota, Nathan. No seu estado atual, não conseguiria
nem mesmo me cansar.
Minha respiração estava pesada.
Desacelere, coração. Desacelere.
Meu sangue parecia cristais de gelo em minhas veias. Mas isso era
muito mais do que o Desertor aos meus pés podia dizer. Seus olhos ainda
estavam abertos, me encarando com desprezo, mesmo na morte.
— Me solte — ouvi Nathan rugir.
Então, mãos me tocaram e eu recuei. Mas foi a voz de Nathan que
sussurrou em meu ouvido:
— Vamos sair daqui, Aly.
Eu queria sair dali. Queria deixar aquele lugar para trás e fingir que
nada daquilo aconteceu. Mesmo que ser uma assassina era o que eles
esperavam que eu me tornasse, não era exatamente o que eu queria ser. Até
pouco tempo, meu maior objetivo era ir para alguma faculdade longe dos
meus pais e descobrir sobre o que eu poderia escrever um dia. Descobrir
quem eu era, longe da bolha que haviam mantido à minha volta durante
toda a minha vida.
— Traga-a para cima, garoto — impaciência transbordou da voz de
Ravenna. — De preferência, antes que ela vomite. De novo.
Subir as escadas de volta para o andar térreo da casa de vidro foi um
sacrilégio, porque minhas pernas ainda estavam trêmulas. Meu ódio pela
mulher subindo à minha frente, me fez continuar, assim como as mãos de
Nathan em minha cintura apoiaram a subida, mesmo ele ainda estando fraco
pela droga que Ravenna havia lhe dado.
No escritório, Jasper estava esperando, as mãos no pomo de sua
adaga, como se esperasse que alguma ameaça surgisse das escadas. Ele
sabia sobre o Desertor? Sobre Nathan?
— Pensei que havia te mandado embora, Jasper — Ravenna
disparou.
— Pensei que talvez precisaria que eu levasse Alyssa de volta. —
Ele não me olhou, mas seus olhos pararam em Nathan, em alguma conversa
silenciosa entre eles. O vermelho em minhas mãos parecia brilhar com a luz
que se infiltrava pela janela. — Pelo visto, Nathan pode precisar de ajuda
também.
— Eu estou bem — a voz do meu amigo esquecido era um rosnado
rouco e fraco. Mas pelo menos, ele conseguia se manter em pé.
Nathan pegou meu braço e começou a me puxar para a porta,
parecendo desesperado para me tirar dali, o mais rápido possível. Jasper deu
espaço a ele, saindo do escritório e provavelmente nos esperando do lado de
fora.
— Espere, Fidly. — Eu me virei para encarar Ravenna. O brilho em
seus olhos deixava claro que ela havia se superado em sua tarefa. Estava
mais do que satisfeita com o resultado. — Fique do lado de fora, Nathan.
Quero parabenizar nossa querida Alyssa.
— Vai para o inferno — ele fervilhou de ódio.
Jasper interveio. Colocou a mão sobre o ombro de Nathan e
sussurrou algo em seu ouvido. Meu amigo se desvencilhou do Protetor e
voltou a me olhar, parecendo frustrado.
— Você vai ficar bem? — Nathan me perguntou.
Apenas assenti.
Jasper e ele saíram com relutância da sala. Eu me aproximei da
mesa, onde Ravenna agora se posicionava. Cerrei o punho e escondi as
mãos atrás das costas.
Ela sorriu e não era em nada um sorriso gentil.
— Você fez o trabalho. Meus parabéns.
— Você não me deu muita escolha.
— Logo irá perceber que nós não temos muitas escolhas nessa vida,
Fidly.
Trinquei os dentes. Raiva ameaçava me consumir como se esta fosse
uma entidade independente.
— Você dopou Nathan e o acorrentou, sabendo que o Desertor
poderia matá-lo.
Ravenna apenas deu de ombros, limpando uma unha.
Aquela cena, ver o puro desinteresse dela, foi o suficiente para que
eu fervilhasse de ódio. Eu avancei contra ela, bati minhas mãos na mesa,
com tanta força que algo caiu.
— Você me queria como uma assassina? Você conseguiu. Mas não
pense que esquecerei sobre o que aconteceu hoje. E, depois que eu receber
meus poderes, seja lá quais forem, e eu matar Vicenzo, você será a próxima.
— Apontei um dedo. — Vou matá-la porque hoje não foi a única vez que
fez algo assim com Nathan, não é mesmo? Vou matá-la — anunciei. —
Pelo que fez com ele, com meus pais e comigo.
Ravenna continuou inexpressiva, como se minha ameaça não
passasse de algum surto momentâneo.
— Aprecio sua franqueza, Fidly. Mas o que te faz pensar que terá a
chance? — Ela soltou uma risada baixa. — Não te explicaram nada, não é
mesmo? Deixe eu te mostrar os fatos, tudo bem? — Ela baixou as mãos e
me encarou. — As Guardiãs acham que, para matar Vicenzo, você terá que
usar toda sua força. Para suprimir a força dele e, então, conseguir dar o
golpe final, você terá que utilizar até a última gota de seu poder e energia.
O que?
Vacilei para trás, afastando-me dela e de suas palavras. Eu não podia
estar entendendo corretamente.
— Sinto informá-la, Alyssa, mas o preço de matar Vicenzo é, muito
provavelmente, a sua vida. Afinal, o Destino não iria querer criar uma
abominação, um novo desequilíbrio, apenas para matar o problema original.
Assim, ele se livra dos dois ao mesmo tempo.
Não era possível.
Não, não, não.
O combinado é que eu teria uma vida depois disso tudo. Eu poderia
tomar as decisões e fazer as escolhas pelo resto da minha vida, depois que
eu cumprisse a profecia.
Falsa compaixão brilhou nos olhos da Protetora. Vadia.
— Imagino que Nathan também não saiba — ela disse, uma mão
sobre o coração. — Pobre garoto! Como ele reagirá quando souber que
outra mulher importante em sua vida será tomada pelo mesmo motivo? A
mesma profecia será a razão pela qual ele sempre ficará sozinho.
Eu não respondi.
Não sabia o que responder.
Ela havia, não só, cutucado a ferida, como também me apunhalado
em um só golpe. Às vezes, a mentira era uma benção. E a verdade era uma
sina.
Havia acabado de descobrir que o motivo pelo qual eu deveria viver,
era o mesmo motivo que iria me matar.
E eu me pegava questionando constantemente se aquilo era justo ou
apenas o Destino.
Jasper e Nathan estavam me esperando do lado de fora da casa de
vidro. Nathan parecia melhor, um pouco mais corado e conseguindo se
manter em pé, sem muito mais esforço. O sangue Protetor acelerava o
processo de cura, então logo ele não teria em seu sistema, nada do que quer
que Ravenna tenha usado para dopá-lo.
Ele me perguntou se eu estava bem, mas eu não conseguia fazer
minha cabeça focar em uma mentira. Eu não estava bem. Eu estava com
raiva e minha esperança havia sido estilhaçada. A vida nunca passaria
daquilo, daquele ponto em que ela havia chegado. Não haveria crescimento
para mim. Eu nunca iria para a faculdade, ou construiria uma família. Eu
estava presa ali, até que a morte me reivindicasse.
Meu pai estava errado. Eu não era esperança. Eu era sacrifício.
Quando não respondi, Jasper pediu que eu o seguisse para minha
cabana, mas Nathan interveio.
— Ela não está bem, Jasper.
— Nathan...
— Deixe que eu a leve comigo — ele pediu. — Prometo levá-la
para a cabana mais tarde quando ela estiver melhor. — Jasper hesitou. —
Você sabe que eu nunca deixaria nada acontecer com ela. Ela estará segura
comigo. Não vou deixar o Outro Lado.
Nathan estava ficando aqui?
Jasper assentiu por fim. Eu sabia que seus olhos estavam me
avaliando com cuidado.
— Tudo bem.
O quão patética eu estava para que ele ignorasse as ordens dessa
forma? Nathan não deveria poder ficar de babá para mim. Ele nem mesmo
queria isso. Era para já estar longe a essa hora.
Mas eu não hesitei quando o Protetor, que um dia havia sido meu
amigo, pegou minha mão e me guiou pelo caminho até sua cabana, não
muito longe da minha própria.
Quando finalmente entramos na cabana, ele me guiou até o
banheiro. Zeus nos recepcionou, mas quando percebeu que não estávamos
com interesse em brincar, o animal se deitou em um canto, próximo à porta,
e esperou.
— Vamos limpar você, ok?
Eu não respondi.
— Preciso que fale comigo, Aly.
— Tudo bem — consegui dizer.
Ele pegou minhas mãos ensanguentadas e colocou embaixo da água
que saía pela torneira ligada. Um de seus braços tinha sido passado pelo
meu corpo, para que cada uma de suas mãos pudessem esfregar cada uma
das minhas. Sua proximidade aquecia meu corpo frio e fiquei grata por isso.
Fiquei grata por poder sentir aquilo antes que fosse tarde demais. Sentir
como era bom estar nos braços de alguém que fazia meu coração disparar
daquela forma, mesmo que não houvesse nada de romântico no ato.
Nathan limpou minhas mãos com dedicação, esfregando minha
palma, meus dedos e até mesmo minhas unhas.
— Aly?
Ergui e virei meu rosto para olhá-lo. Estávamos tão próximos que
minha bochecha tocou seu queixo.
— Vou limpar seu pescoço, ok?
Assenti.
— O que Ravenna queria com você? — ele perguntou, baixinho.
Eu balancei a cabeça.
— O mesmo de sempre.
Eu não queria contar a ele. Nem mesmo queria pensar sobre o que
Ravenna tinha me contado.
Ele soltou minhas mãos e pegou uma toalha pequena. Molhou a
toalha e tirou meu cabelo do caminho. Seus dedos estavam quentes agora,
como me lembrei que eram. Através do espelho, eu podia vê-lo
concentrado, os olhos fixos no sangue que tirava da minha pele. As mãos
eram tão delicadas, que lágrimas se acumularam em meus olhos. Será que
Ravenna estava certa? Será que ele se revoltaria se soubesse a verdade?
Será que doeria me perder como eu sabia que doeria se eu o perdesse?
— Eu me lembrei de uma coisa.
Minha voz era um sussurro, mas estávamos sozinhos ali, em meio a
um silêncio profundo e, tão próximos, que eu conseguia sentir sua
respiração tocar minha pele, então não foi difícil me escutar.
Eu queria falar. Queria poder juntar as peças do quebra-cabeça.
Ele ergueu os olhos, encontrando os meus através do espelho.
— Lembrei de nós dois, mais jovens, provavelmente na época em
que a foto, que me mostrou, foi tirada. Estávamos na chuva e você queria
me tirar de lá, mas eu disse...
—“Apenas aproveite” — ele terminou a frase por mim. Algo
brilhava em seus olhos azuis.
Assenti novamente.
Nathan soltou a toalha e colocou meu cabelo de volta no lugar.
Jogou a toalha em cima da pia e se afastou um passo.
— Eu não queria que você ficasse doente.
— E eu fiquei?
O fantasma de um sorriso ameaçou seus lábios.
— Não.
— Bom.
— Lembrou de mais alguma coisa? — ele ousou perguntar, os olhos
fixos no meu pescoço.
— Não.
Voltei a encarar minhas mãos. Não havia nenhum resquício de
sangue nelas, mas eu ainda podia sentir o que elas haviam feito. Mesmo
assim, eu era egoísta demais para me importar com a vida que havia tirado
quando agora sabia, que a minha própria não teria um fim muito melhor.
O olhar de Nathan me perfurava, ciente de cada respiração minha.
Não tive coragem de contar o que Ravenna havia dito. Parte de mim queria
esquecer a informação. Assim seria mais fácil quando chegasse a hora. Era
melhor deixar que a morte simplesmente me levasse e não ficasse
esperando por ela.
Mas suas palavras estavam tatuadas em minha mente.
“Sinto em informá-la, Alyssa, mas o preço de matar Vicenzo é a sua
vida.”
Bloqueei a memória. Bloqueei a ansiedade e desesperança que
ameaçavam me deixar de joelhos.
Então disse a única coisa que me veio à mente, na esperança de que
me distraísse:
— Você está ficando aqui.
Era óbvio que ele estava dormindo na cabana e não apenas de
passagem. Eu tinha visto que sua sala estava repleta de livros e armas
espalhadas e a cozinha tinha algumas frutas expostas.
— Eu queria ficar por perto, caso precisasse de mim.
Ele não tentou fingir que se referia à Ravenna ou seu pai, ou mesmo
Jasper. Nathan queria estar por perto caso eu precisasse dele. O quão
confuso era aquilo? Ele não queria arriscar nada comigo, mas não podia
simplesmente ir embora? Nathan nem mesmo suportava viver aqui!
Eu apenas assenti, desviando o olhar.
— Eu sinto muito — ele começou. — Eu não vi quando Ravenna se
aproximou com a seringa cheia de calmante.
— Não é sua culpa.
Seus olhos buscaram os meus. A intensidade neles quase me
derrubou.
— Você matou por mim.
— Você também já matou por mim — lembrei. — E, uma hora ou
outra, eu teria que fazer isso.
Nathan assentiu, um olhar triste em seu lindo rosto, ainda se
sentindo culpado.
— Eu faria de novo — revelei, sincera. — Eu não deixaria ninguém
machucar você. Quero... — inspirei. — Quero que saiba disso, porque
quero que entenda que o que faz por mim, seria retribuído. Você já me
salvou tantas vezes que isso é o mínimo que eu poderia fazer. Sei que não
quer ouvir isso, mas é a verdade. Faria isso por você. Por todos vocês, aliás.
Ele engoliu em seco, absorvendo minhas palavras.
Nathan se aproximou. Colocou uma mecha do meu cabelo atrás da
orelha. Seus olhos estavam fixos em minha boca quando disse:
— Eu beijei você. Naquele dia, embaixo da chuva — ele contou,
como se aquela memória fosse um segredo entre nós. — Você estava tão
linda, os olhos brilhando, encharcada pela chuva e, mesmo depois de tanto
tempo, ainda me olhava como se me conhecesse como ninguém mais
conhecia.
Meu coração golpeava contra meu peito, descontrolado.
— Então você sorriu para mim e eu precisei te beijar. Como se não
beijar você fosse um puta crime. — Ele se inclinou contra mim. — E você
me beijou de volta. Foi isso que aconteceu naquele dia.
Roman não tinha sido meu primeiro beijo, afinal.
Nathan me beijou dois anos atrás, pela primeira vez, eu só não me
lembrava. Procurei em minha mente essa memória específica, tentando
acordar o que quer que tenha me permitido ver aquela pequena lembrança.
Eu precisava ver isso. Precisava me lembrar. Precisava saber que ele tinha
me beijado — meu primeiro beijo — porque simplesmente não podia
evitar... Deus, por que eu não me lembrava?
Estiquei meu braço atrás dele, para pegar a toalha úmida que agora
repousava sobre a pia. Então, subi minha mão para seu rosto, onde um
pequeno corte sobre sua sobrancelha estava sujo com sangue seco. Eu
estava aliviada que aquele tinha sido o seu único ferimento. Limpei o
machucado com cuidado, sabendo que os olhos azuis do Protetor à minha
frente me examinavam com atenção.
— Obrigado — ele sussurrou. Parecia haver tantas coisas ocultas
naquela simples palavra.
Soltei a toalha sobre a pia novamente.
Meus olhos subiram para boca de Nathan e, por fim, aqueles lagos
azuis. Olhos tão lindos. Ele era tão lindo. E era meu amigo. Eu sentia isso
como se estivesse gravado em meus ossos. Era por isso que ele não
conseguia me deixar para trás e eu não conseguia permitir que se
machucasse. Parecia mais do que certo que ele tivesse sido meu primeiro
beijo. Principalmente sabendo que meu coração quase errava as batidas toda
vez que ele estava por perto. Ele me olhava como se eu fosse algum tipo de
presente, ou um segredo especial e eu amava isso.
— Vai me beijar agora?
Eu queria isso. Queria que ele me mostrasse algo que não fosse
aquela ansiedade crescente dentro do meu peito. Algo que eu pudesse me
agarrar e, assim, fingir que nada daquilo estava acontecendo.
Precisava tanto daquilo quanto precisava de oxigênio para
sobreviver.
Um alarme soou tão alto que meus ouvidos zumbiram. O rosto de
Nathan, antes suave e determinado, mudou completamente para a expressão
que eu conheci no dia da luta contra Desertores no estacionamento. Ali
estava: o assassino que todo mundo falava sobre.
De alguma forma, aquilo me atraiu ainda mais.
Qual a merda do meu problema?
— O que é isso?
Ele pegou minha mão e me puxou para fora do banheiro.
— Ataque.
Chegando na sala, Jasper já estava irrompendo pela porta de
entrada. Ele encarou nossas mãos unidas antes de dizer:
— Estão invadindo o Lago.
— Eles estão aqui? — perguntei, tensão rasgando minha voz.
— Não — Nathan respondeu, os olhos em Jasper. — Estão
invadindo a dimensão original do Lago. Devem ter pensado que você
poderia estar em casa.
Jasper assentiu.
— Ou estão fechando o cerco, para quando ela precisar sair —
disse. — De qualquer forma, Ravenna está mandando todos os Protetores
disponíveis para fazer uma limpeza na vizinhança.
Nathan esboçou um sorriso cruel, muito diferente daquele que ele
havia me dado há pouco tempo.
— Vai ser um prazer.
Apertei sua mão, medo subindo pela minha garganta.
— Não, você está dopado. Não tem condições de lutar agora.
Nathan passou os dedos pelo meu rosto, gentilmente.
— O efeito já passou há um tempo, Aly. Vou ficar bem.
— Andem logo com as despedidas, crianças — Jasper pediu, já
jogando uma espada para Nathan. — Alyssa vá para a sua cabana. Nós
vamos matar alguns Desertores.
Eu nem me dei ao trabalho de protestar. Nunca me deixariam ir com
eles. Então quando Nathan e Jasper saíram pela porta e eu voltei para minha
cabana com Zeus ao meu encalço, tudo o que fiz foi pedir ao Destino que
não me tirasse nenhum dos meus amigos. Principalmente quando descobri
que Serena, Roman, minha mãe e Jonnah também haviam se juntado aquela
“limpeza”.
Demorou quase o dia todo, para ter notícia dos Protetores que foram
para o Lago. Meu pai ficou comigo e, mesmo tentando fingir que não, era
óbvio que estava apreensivo com a ida da minha mãe. Uma jovem Protetora
ficou de guarda em frente à minha cabana, até que os outros retornassem.
Seu nome era Leona e sua tatuagem cobria todo seu peito, de um ombro a
outro, visível através da regata que usava.
Leona não falou muito, no tempo em que esteve plantada em frente
à cabana, mas ela parecia ser boa no que fazia. Ela parecia pronta para lidar
com qualquer ameaça.
Eu me distraí com Zeus, que dormia aos meus pés, enquanto
esperava notícias. Meu pai, por outro lado, só foi capaz de respirar
novamente quando minha mãe irrompeu pela porta, com sangue dos pés à
cabeça, mas com um sorriso vitorioso. Precisei desviar os olhos, para não
ser agraciada com a visão do meu pai dando um beijão nela. De língua.
Pouco a pouco, todos apareceram. Roman, Serena, Jonnah e até
mesmo Jasper.
Só um não voltou.
Eu fiquei curiosa para entender como os humanos nunca tinham
noticiado as lutas entre Desertores e Protetores, já que às vezes, elas
ocorriam na rua de suas casas. Mas minha mãe explicou que as Guardiãs
possuem um poder único de encobrimento. Esse poder é, basicamente, uma
camuflagem da realidade. Hoje, os Desertores haviam sido emboscados no
Lago, um território vazio, mas em outros dias, quando humanos podiam
estar por perto, as Guardiãs utilizavam do encobrimento para ocultar os
acontecimentos. Os únicos humanos que saberiam da verdade, eram aqueles
que haviam sido mortos naquela guerra.
Jasper me disse que Nathan tinha sido mandado para caçar aqueles
Desertores que haviam fugido, e não deveria voltar naquele dia. Ele disse
que poderia cuidar de Zeus, mas eu insisti para ficar com o cachorro. Zeus
era uma boa companhia e ele estava bem acomodado ali. Jasper, então,
concordou e se foi.
Eu disse a mim mesma que Nathan sabia o que estava fazendo, que
era bom nisso.
Então, perto da meia noite, me forcei a dormir.

Nathan não apareceu no dia seguinte e nem nas duas próximas


semanas. Jasper acabou contando aos meus pais o que havia acontecido,
antes do ataque, quando Ravenna me forçou a matar um Desertor, enquanto
usava Nathan de isca. Ela apareceu com um olho roxo e um lábio cortado
no dia seguinte. Tudo indicava que minha mãe tinha feito aquilo e, a parte
cruel dentro de mim, ficou mais do que feliz com aquela visão. Eu vi
quando meu pai prometeu que a mataria se tocasse em mim novamente. Ou
em Nathan. Ouvi-lo proteger Nathan, apenas aqueceu ainda mais meu
coração. Eu sabia que o Protetor tinha sido especial não só para mim, mas
também para meus pais. Por isso, não entendia a recusa de Jasmine de me
permitir estar perto dele.
Nesse meio tempo, fiquei feliz por ter Zeus me acompanhando a
cada passo. Ele me seguia para o treino, para o refeitório, para a costa do
Lago e para cada pequeno cômodo da cabana. Sua companhia permitiu que
eu não enlouquecesse com a informação que, até então, não tinha tido
coragem de discutir com meus pais: eu poderia morrer antes dos dezoito
anos, mas de qualquer forma, morreria ao matar Vicenzo. Estava óbvio que
as Guardiãs sabiam — pelo que Ravenna contou, elas mesmas chegaram à
conclusão —, mas ela não deixou claro até que ponto meus pais estavam
informados e, caso não soubessem, eu não queria ser a pessoa que daria a
notícia. E, se soubessem... Bem, esta seria mais uma mentira dentro da
longa lista de mentiras e omissões que construíram nosso relacionamento e
eu não estava pronta para brigar novamente.
Então, dia após dia, eu treinei. Me tornei ótima no combate corpo a
corpo, porque havia tensão e raiva demais que eu descontava metendo a
porrada em alguém. Era reconfortante até.
Roman havia me evitado pelos primeiros dias, mas quando viu que
os Protetores mais jovens não estavam conseguindo me cansar — afinal já
não havia mais sentido em fingir que eu não tinha mais força do que
deveria, agora que Ravenna já sabia disso —, ele apareceu para ficar em seu
lugar. Isso tornou os treinos mais difíceis fisicamente e mais complicados
também. Mas, aos poucos, eu sentia que chegávamos a uma relação no
mínimo amigável. Ele ainda me olhava como se esperasse que eu me
apaixonasse por ele, mas passou a conversar comigo mais abertamente, sem
aquela tensão de quem havia discutido seus sentimentos. Era um bom
começo.
Os dias foram se passando monótonamente, até que acordei em uma
manhã ensolarada, com Serena esperando na porta, um sorriso enorme
estampado no rosto. Ainda assim, não havia notícia alguma de Nathan.
Cheguei a pedir para Serena tentar falar com ele, telepaticamente,
mas ela disse que era como tentar se comunicar com uma muralha, o que
quer dizer que ele não havia aberto caminho para que ninguém o contatasse
daquela forma. E eu não podia mandar uma mensagem, porque, bem, eu
praticamente implorei para que ele me beijasse e não tive resposta alguma
antes do caos do ataque se instalar. Se ele quisesse falar comigo, já teria
dado um jeito. O mais óbvio era que estivesse usando aquela missão para se
afastar, como ele havia dito várias vezes que precisava fazer. Por isso,
contentei-me com os relatórios diários de Jasper que, para ser honesta, eram
resumidos em seu revirar de olhos para mim e a simples informação de que
Nathan estava vivo.
— Vou te dar um ótimo motivo para tirar essa careta do rosto —
minha amiga declarou quando me juntei a ela. — Hoje é Noite de Luz!
Fiz uma careta, mas Zeus latiu.
— Eu deveria saber o que é isso?
— Claro que deveria! É simplesmente a melhor comemoração dos
Protetores! — Ela me olhou, divertida, e começou: — A Guardiã Cassandra
moldou esta subdimensão, para que tivesse as condições de segurança
necessárias para os Protetores e, também, para conseguir transformar uma
dobra simples do universo em uma casa — ela contou. — Acontece que
Cassandra sempre sentiu falta de sua terra natal, uma floresta tropical quase
celestial no hemisfério sul. Quando ela era garota, o que deve ter sido há
milhares de anos, sua terra era abençoada por uma superlua todos os anos
no mesmo dia. Se você observar bem, a lua já está sobre nós, pronta para
nos impressionar esta noite.
Olhei para o céu. De fato, apesar da claridade, era possível enxergar
uma grande lua cheia já exposta no céu.
Eu nunca havia reparado que este lugar não seguia as regras
astrológicas do mundo real, mas agora fazia um pouco de sentido. Sempre
achei impressionante a quantidade de estrelas que apareciam à noite.
— Então vocês têm uma festa para a lua?
Serena sorriu.
— Não uma festa. A melhor festa. É praticamente uma celebração
espiritual — disse, empolgada. — Cassandra tinha um apreço especial por
esta data e quando enfeitiçou o Outro Lado, garantiu que pudesse reviver os
momentos de quando era jovem. Por isso, a noite começa com a superlua e
termina com um eclipse lunar. Depois disso, o céu volta à escuridão
completa, apenas iluminado por algumas poucas estrelas.
Eu balancei a cabeça, assimilando a informação.
Nós entramos na tenda, onde vários Protetores mais jovens já
estavam dispersos. Sorri para um Protetor que acenou para mim quando
chegamos ao refeitório e logo depois me deparei com Jonnah se
aproximando com um sorriso no rosto. Fazia dias que eu não o via de perto,
mas talvez o fato de Akantha estar na dimensão original tivesse algo a ver
com sua presença e seu humor.
— Já está contando sobre a Noite de Luz? — foi sua saudação. Suas
mãos enormes bagunçaram meu cabelo e eu dei um tapa em sua mão.
Serena parecia incapaz de tirar o sorriso do rosto, que apenas
ampliou ao ver Jonnah. Meu primo acariciou o pêlo de Zeus e se posicionou
ao nosso lado em seguida.
— Estava contando a história da Noite de Luz. Ainda não cheguei
na melhor parte.
Eles se entreolharam e eu engoli uma risada com a empolgação dos
dois. Enquanto os Protetores conversavam em silêncio, me estiquei para
pegar algumas torradas e suco de laranja, na mesa de café da manhã. Eu
queria perguntar a Jonnah o motivo do seu desaparecimento, mas parecia
que aquele dia era algo importante e eu não queria estragá-lo.
— Permita-me? — Jonnah pediu à Serena. Eu revirei os olhos,
achando graça. Serena lhe deu um aceno, para que fosse em frente, e
aproveitei o momento para me sentar em uma das mesas.
— A Noite de Luz é simplesmente a maior festividade dos
Protetores. No começo, só era comemorada na América, mas quanto mais
Protetores nos visitavam, mais eles se apaixonavam por esta noite.
Eventualmente, toda Guardiã pediu para que Cassandra enfeitiçasse suas
sedes para que pudessem celebrar a ocasião. Hoje em dia, todas as sedes de
Protetores, em cada continente, comemoram a data, apesar de o Hemisfério
Sul e Norte possuírem datas diferentes para a ocasião. Cassandra fez
questão que ocorresse sempre no verão, então o Hemisfério Norte
comemora em julho e o Hemisfério Sul comemora em dezembro — Jonnah
explicou.
— E o que fazem nesse dia? Apenas observam a lua?
Serena e Jonnah balançaram a cabeça em negativa, quase como se
fossem um só.
— É o único momento em que todos os Protetores, sem exceção, se
vestem formalmente e se reúnem para celebrar aquilo que lhes deu a vida e
a força: o universo. A lua é celebrada em especial, mas tudo nesta noite é
inacreditavelmente... energético. É como se o ar se tornasse partículas de
corrente elétrica, atiçando nossos nervos até que nossa única opção é aceitar
nossa volatilidade interna. É a única noite em que não somos punidos por
agirmos por impulso, paixão e desejo. É nossa folga do trabalho de proteger
o equilíbrio, e aproveitamos para nos permitir ser os mais intensos e
impetuosos possível — Serena disse.
— Que legal — murmurei. — Como ter Viagra no ar.
Os dois riram em uníssono.
— Então nós temos comidas, bebidas e muita dança à nossa
disposição — Jonnah prosseguiu. — Não nos privamos de nenhum de
nossos desejos mais profundos, ou impulsos mais ousados. A bebida acaba
contribuindo com a eletricidade no ar também. — Ele sorriu, dando-me
uma piscadela.
— Muitos Protetores foram concebidos com essa desculpa —
Serena acrescentou.
Eu fiz as contas mentalmente, só por curiosidade.
— O Destino bem sabe que fiz escolhas... duvidosas baseadas em
meu desejo durante esta noite — Serena murmurou.
Eu ri com sua careta.
— Na última Noite de Luz, acho que meu desejo e impulso se
materializou em levar Jace e Aaron para o quarto, depois da festa — Jonnah
relembrou, um olhar nostálgico no rosto.
Eu engasguei com uma risada. Eu não sabia que Jonnah gostava de
homens, mas estava feliz que isso não parecia ser um tabu entre os
Protetores. Pelo menos alguém da nossa família estava fazendo jus aos seus
desejos. Em contrapartida, eu me enrolava com as palavras perto de Nathan
e passava vergonha, enquanto perguntava se ele me beijaria.
— Jace e Aaron da sede Soyan? — Serena perguntou, os olhos
arregalados.
Eu não tinha ideia de onde ficava essa sede, mas fiquei atenta para
ouvir a resposta.
Jonnah assentiu, parecendo orgulhoso.
— Eu estava na Sicília em uma missão para Akantha naquela noite e
dei sorte com a companhia.
Hum, então a sede Soyan era na Sicília. Interessante que cada
subdimensão dos Protetores tinha um nome.
— Eu te odeio — Serena resmungou e eu ri alto.
— Posso assumir que são bonitos?
Serena me olhou como se eu tivesse dito que um filhotinho de
cachorro era o animal mais nojento do mundo.
— Bonitos? Eles parecem deuses! Bonito não descreve nem parte da
extensão da beleza desses homens. Deuses italianos gostosos. Lindos,
gostosos e talentosos. — Serena bateu os dedos no queixo. — Já disse que
são gostosos?
— Bem, meus parabéns Jonnah — dessa vez, fui eu que desarrumei
o cabelo dele. — Estou orgulhosa do meu priminho. Mas tenho certeza que
eles também devem se gabar por ter levado você para a cama.
Serena analisou Jonnah dos pés à cabeça.
— De fato você é gostoso — ela o informou.
Meu primo riu.
— Obrigado?
— Você só... hum... — Serena buscou as palavras. — Só homens?
Jonnah gargalhou alto, chamando atenção dos Protetores a nossa
volta, que o olharam com diversão. Aparentemente, todos estavam de bom
humor hoje. Jonnah era o próprio exemplo de que havia algo diferente
naquele dia. Ele não era exatamente contido, mas nunca falava tanto quanto
hoje ou se expressava de forma tão aberta.
— Você é maravilhosa, Serena, mas só homens.
Minha amiga pareceu genuinamente desapontada.
Comi minhas torradas em silêncio, mas senti a atenção de Serena
sobre mim.
— Imagina como será ano que vem quando Vicenzo for apenas uma
lembrança em nossas vidas — ela disse, os olhos brilhando. — Você vai ser
mais especial que a própria lua.
Serena claramente não sabia sobre a barganha do Destino e, pelo
que eu via, tão pouco sabia Jonnah. Eles me observaram com sorrisos no
rosto, esperançosos de que no próximo ano, eu teria cumprido a profecia e
viveríamos todos em paz. Eu apenas desviei o olhar, com um sorriso
forçado.
Eu me questionava constantemente se tudo após a morte de Vicenzo
seria como imaginavam. O Destino prezava muito pelo equilíbrio, e este
não era necessariamente bom. Bem e mal eram partes necessárias da
balança. Pelo que eu via, o problema não era a maldade de Vicenzo, mas
sua mera existência imortal quando, na verdade, ele deveria ser mortal.
Dali a um ano, no entanto, eu sabia que não estaria presente. Se eu
sobrevivesse aos meus dezoito anos, eu usaria meu poder para matar o
primeiro Desertor e morreria no processo. Não ousei falar isso em voz alta.
Nem mesmo fui corajosa o suficiente para encarar meus amigos.
A verdade era que eu não estaria presente. Assim como a própria
lua, estarei assistindo tudo de longe. Contanto que exista algo remotamente
parecido com vida após a morte.
Por falta de palavras, eu não respondi. Enfiei meu café da manhã na
boca e apenas lhes entreguei palavras de concordância e balanços de cabeça
esporádicos em suas conversas.
Eu esperava que o espírito de comemoração da Noite de Luz não
fizesse Jasper pegar leve comigo hoje. Eu me beneficiaria de quebrar
algumas coisas e chutar algumas bundas.

Graças ao Destino — ou não —Jasper não pegou nada leve.


O Protetor me observou de perto e me fez lutar contra Serena e
Jonnah ao mesmo tempo, o que resultou na minha completa humilhação. Eu
poderia lutar contra um deles sozinha, mas dois era quase impossível. Isso
queria dizer que eu precisava me esforçar mais porque Desertores, quase
sempre, andavam em bando e era bem provável que eu tivesse que lidar
com alguns deles, antes de conseguir chegar à Vicenzo.
Zeus fez companhia a Jasper, como sempre, ambos observando o
treino. Eu ouvi meu treinador dizer para o cachorro algo sobre Nathan logo
estar de volta, mas preferi não verificar a informação. Meu treinador estava
cansado de ficar me informando sobre o outro Protetor. Eu sabia que Jasper
gostava e talvez até cuidasse de Nathan com carinho, mas acho que teria o
mesmo pensamento que meus pais quando se tratava de um relacionamento
entre nós dois. E, de qualquer forma, minha vida romântica inexistente, não
era algo que eu gostaria de discutir com ele.
Quando o treino acabou, antes do que era comum, para podermos
nos preparar para a Noite de Luz, Jasper havia feito valer aquelas horas
perdidas.
Serena e Jonnah foram caminhando na frente quando o treinador se
aproximou para falar comigo.
— Oi — eu disse quando ele se aproximou.
— Eu queria falar com você porque... — ele parecia ansioso. —
Nunca me desculpei pelo meu papel no que Ravenna fez com você e
Nathan. Estou envergonhado por não ter conseguido trazer algum senso a
ela, antes daquilo tudo acontecer.
Eu apertei seu braço, carinhosamente, sabendo da sinceridade de
suas palavras.
— Eu não o culpo, Jasper. — Dei de ombros. — Pelo menos eu fiz o
que deveria ser feito.
Seu sorriso era fraco quando disse:
— Eu não tinha dúvidas de que faria o que era preciso por Nathan.
Eu queria muito saber se o que eu sentia estava tão óbvio assim.

Eu havia chegado à cabana antes do pôr do sol. Serena e Jasper me


escoltaram, já que eu não podia mais ficar sozinha devido às ordens dos
meus pais. Zeus me seguiu para dentro da cabana e se aconchegou no sofá,
pronto para tirar um cochilo depois de um dia inteiro correndo pela campina
do treino. Eu sorri e fui para cozinha procurar algo para comer. Jonnah me
avisou que haveria muita comida à noite, mas eu estava faminta e não
queria esperar. Meu humor não era dos melhores quando eu estava com
fome. Na verdade, isso era um eufemismo. Eu encarnava o próprio diabo
quando ficava sem comer.
Serena prometeu voltar em alguns minutos e eu fiquei satisfeita por
poder ficar sozinha, pelo menos por aquele pouco tempo. Jonnah nos
encontraria na base da montanha ao norte, em frente a parte mais ampla do
Lago, onde a Noite de Luz ocorreria. Minha amiga, no entanto, estaria de
volta a qualquer momento.
Quando ouvi duas batidas na porta, suspirei. Pensei que teria pelo
menos tempo o suficiente para tomar um banho, antes que Serena voltasse
para montar guarda.
Abri a porta e me deparei com minha mãe com uma caixa enorme
em mãos.
— Oi, filha.
— Oi.
Dei espaço para que ela entrasse na cabana.
Nós não nos falávamos direito desde que a ataquei usando seu irmão
morto. Eu não tinha orgulho do que havia feito, mas também não tinha
conseguido reunir coragem o suficiente para tentar me redimir.
Eu reparei quando minha mãe entrou na cabana e encontrou Zeus
em meu sofá. Vi quando ela passou os olhos pelo lugar, procurando por seu
dono. Será que ela não sabia que Nathan estava em uma missão ou ele já
havia voltado?
Jasmine poderia ter suspirado quando percebeu que Nathan não
estava ali.
Cerrei o punho e me forcei a não comentar nada. Pelo que me
contaram, esta noite deveria ser uma noite feliz. Brigar com a minha mãe
não faria isso.
— Acredito que Serena já deve ter te contado sobre a noite de hoje,
não é?
Assenti, pegando uma maçã na bancada da cozinha. Na primeira
mordida que dei, soube que aquilo não seria suficiente para matar minha
fome. Talvez eu devesse fazer um sanduíche de uma vez.
— Trouxe isso para você usar.
Minha mãe colocou a caixa sobre a mesa, parecendo ansiosa. Ela
havia me trazido um presente, mesmo depois de tudo. Talvez ela estivesse
erguendo a bandeira branca. Talvez pudéssemos voltar ao normal. Se eu
ignorasse o que ela havia feito e como tratava Nathan, eu poderia conseguir.
Desfiz o laço ridiculamente grande sobre a tampa e então abri a
caixa. Eu sempre amei moda, apesar de ter usufruído pouco da minha
paixão desde que cheguei ao Outro Lado. Mas o conteúdo daquela caixa me
tirou o fôlego. Por um momento, pensei poder chorar por aquilo.
Eu nunca fui em uma festa em toda a minha vida e apenas a ideia de
ir em uma hoje, me deixava ansiosa. Como eu deveria me comportar?
Como seria dançar em uma festa como aquela? Havia passado pela minha
cabeça que eu não teria nada para usar e fiquei na esperança de conseguir
encontrar algo no guarda-roupa de Serena, apesar dela ser muito mais
magra que eu.
Mas ali, à minha frente, estava um lindo e elegante vestido.
Puxei o tecido da caixa, sentindo a textura do material em meus
dedos.
Era seda.
O vestido era longo e prateado. A seda era marcada por pequenos e
finos bordados brilhantes que desciam pelo decote das costas. Era tão liso
que fiquei com medo de marcar os pontos onde meu corpo era mais
rechonchudo. Eu havia ficado mais definida devido aos treinos mais
intensos desde que cheguei aqui, mas meu corpo nunca seria tão esbelto
quanto o de Serena ou Lirya. Eu tinha muitas curvas, meu quadril era largo,
assim como meus seios não eram exatamente pequenos.
— Eu mandei fazer esse vestido para você poder usar hoje — minha
mãe disse, contornando a mesa e apontando alguns detalhes no design. —
Eu queria que fosse uma surpresa, mas podemos procurar alguma outra
coisa, caso você não goste. Pensei que... — ela parecia se enrolar com as
palavras. Minha mãe nunca se enrolava com nada. — Pensei que, como esta
é a sua primeira Noite de Luz e sua primeira festa de verdade, você merecia
passá-la usando algo especial.
Eu encarei o vestido, absorvendo cada lindo detalhe.
Apesar de tudo, minha mãe quis me dar algo especial. Eu lutei
contra as lágrimas. Será que ela sabia? Será que sabia que eu não usaria
outro vestido para a Noite de Luz do próximo ano? Será que sabia que
passou a vida tentando me manter segura, só para me perder no final de
qualquer forma?
Tudo o que eu sabia era que não podia viver em guerra com ela
quando sabia que não teria muito mais tempo.
— É tão lindo, mãe.
Eu a senti sorrir, quase aliviada.
— Nós não usamos sapatos esta noite. Como a festa é na areia em
frente ao Lago, nós ficamos descalços para energizar nossos corpos quando
a lua atinge seu ápice.
Quando olhei para minha mãe, ansiedade e amor foi tudo o que
enxerguei.
Eu esqueci todas as mentiras. Esqueci tudo, a não ser o fato de que
meu tempo era limitado. Nosso tempo. Então eu a abracei. Deixei o vestido
sobre a mesa e a apertei contra mim com força.
Minha mãe era um pouco mais baixa que eu e seus cabelos curtos
faziam cócegas em meu rosto quando o afundei em seu pescoço. Era a
melhor coisa do mundo: estar no abraço protetor e caloroso da minha mãe.
Era quase como se nada pudesse me tocar ali. Ela não permitiria. E eu me
afundei nela, sentindo seu cheiro e absorvendo aquele momento, deixando-
o gravado em minha mente.
Se a morte me deixasse sentir falta de algo, eu sentiria falta daquilo.
E tantas outras coisas.
Com a voz embargada, eu disse:
— Obrigada, mãe.
Minha mãe deixou a cabana quando Serena chegou com umas cinco
sacolas nos braços. Antes de ir, perguntou se precisaríamos de ajuda com
algo, mas Serena disse que estava tudo sob controle, então eu confiei nela.
Não que eu soubesse muito bem para o que era tudo aquilo.
Eu ri quando Zeus ficou preocupado e afoito com a intrusão de
todas as sacolas em nossa sala. Ele nos observou de perto, enquanto Serena
andava até meu vestido e gritava o quanto era perfeito.
Foram as duas horas mais estranhas e engraçadas de toda a minha
vida. Ela disse que já havia tomado banho, então fui tomar o meu. Quando
saí do banheiro, ela tinha colocado música para tocar e a mesa de jantar
havia se tornado uma grande exposição de diferentes acessórios e
maquiagens. Havia por volta de quinze tonalidades de batons, incluindo os
glosses. Três paletas de sombras enormes tomavam grande espaço, assim
como outras coisas que eu assumia serem importantes.
Eu nunca fiz nada muito elaborado no meu rosto porque nunca
participei de nada que exigisse tal coisa, e eu esperava que os vídeos de
pessoas se maquiando na internet pudessem me ajudar.
Fiquei enrolada na toalha e comecei escolhendo os acessórios. Meu
vestido já era chamativo o suficiente por si só, mas com todas as opções de
joias expostas ali, fiquei tentada a usufruir. Escolhi uma tornozeleira de
ouro branco com cinco pedrinhas coloridas. Também escolhi um colar do
mesmo material, com uma pedra bruta que parecia o céu estrelado. Pirita,
Serena me disse que se chamava.
Minha adoração por aquelas joias deve ter ficado bastante óbvia
porque Serena me olhou e me disse para ficar com elas. Eu comecei a
negar, mas minha amiga insistiu. Eu sabia que a família de Serena era
importante e influente na sociedade dos Protetores, mas não tinha ideia de
que eram tão ricos a ponto de ela doar joias como se fossem blusinhas de
malha.
Nessas duas horas de preparação, eu entendi o que era ter uma
amiga. Serena e eu rimos como duas descontroladas sobre os assuntos mais
banais e idiotas. Contei a ela sobre a história que estava lendo e ela me
contou sobre o livro adulto que lhe rendeu algumas ideias sexuais
interessantes. Engasguei com uma risada tão alta que Zeus latiu, tentando
garantir que estava tudo certo. Eu leria aquele livro em breve. Falamos,
também, sobre filmes e séries, apesar dela não ter conhecimento de metade
das produções famosas. Serena até mesmo desabafou sobre os pais,
enquanto colocava o próprio vestido azul claro. O fato era que seus pais não
eram pessoas muito gentis. Assim como minha mãe havia sido criada por
Akantha, eles cresceram buscando perfeição e esperavam que Serena, como
sua única filha, alcançasse esses padrões altíssimos.
Fiz minha maquiagem, com o auxílio de Serena, mas preferi não
fazer nada muito forte. Esfumei meu olho e coloquei delineador e rímel. Na
boca, passei um batom cor vinho.
Minutos mais tarde, Jonnah avisou Serena, telepaticamente, que
logo nos encontraria, então me apressei.
Quando finalmente coloquei o vestido, arfei com minha visão no
espelho.
À minha frente, uma Alyssa completamente diferente estava
exposta. O decote da frente do vestido não era muito profundo, mas deixava
o contorno dos meus seios à vista, e a pedra do colar ficava evidente um
pouco abaixo da linha que unia minhas clavículas, quase exposta entre o
vão entre meus seios.
Virei meu corpo para poder ver melhor as costas.
O decote ali era bem maior, descendo até a minha cintura em um V.
O bordado no tecido pesava o vestido, mas ele descia até quase meus pés
com leveza. E apesar do que eu temia, ele não marcou nada indesejado. Eu
me sentia linda. Poderosa.
Eu me sentia especial.
Incrível o que apenas uma roupa era capaz de fazer.
Não era mentira quando mulheres diziam que um traje poderia
trazer à tona toda a segurança que se escondia dentro de si. Aquele vestido
me fez amar o que eu via. Aquela Alyssa parecia algo diferente. Não algo a
se proteger. Com os lábios vermelho-escuros, os cabelos como ondas
jogados sobre os ombros e o conforto de estar em sua própria pele, eu
poderia muito bem ser algo a ser temido.
Eu poderia ser a última vítima de Vicenzo, mas eu seria sua ruína.
Isso era consolo o bastante para aquela noite.
Naquela noite, eu me permitiria ignorar o que o Destino havia me
reservado e focaria naquilo que seria: uma ameaça, uma salvação.
Nunca gostei de estar vinculada a uma profecia, mas ali, olhando
para meu reflexo, eu poderia muito bem aceitar ser uma bela mártir.

— Vocês estão lindas! — Jonnah nos cumprimentou, um sorriso


largo e enérgico em seus lábios.
Meu primo estava de tirar o fôlego. Com o smoking branco, sua pele
negra se ressaltava ainda mais.
— E você parece alguém que poderia levar mais dois deuses
romanos para casa — eu ofereci, com uma piscadela.
Jonnah riu alto.
— Eu posso levar, se quiser — Serena brincou, mas algo me dizia
que a oferta era válida.
Minha amiga também estava simplesmente exuberante. Seu vestido
azul claro descia até a metade de suas pernas, abrindo uma pequena fenda
até o meio da coxa. As mangas esvoaçantes combinavam com seu cabelo
volumoso — já que ela havia tirado as tranças para a comemoração — e
cheio de adornos dourados. Os grandes lábios carnudos de Serena estavam
cobertos por um batom vermelho vivo.
A superlua já estava se exibindo no céu e, enquanto caminhava para
o Lago, eu podia sentir aquilo que Jonnah tanto falou: a energia. Era como
se meu sangue corresse mais rápido e minha consciência fosse embebedada
por aquele gigantesco astro no céu.
Mesmo de longe eu pude ver que muitos dos Protetores que haviam
saído em missões haviam voltado para o Outro Lado, apenas para a
comemoração. Meu coração se acelerou com a esperança de encontrar
Nathan.
Coração estúpido e iludido.
Pequenas imagens, que pareciam memórias antigas, de vez em
quando tomavam minha mente, e a esperança de que logo eu me lembraria
do meu passado com ele por completo trazia certo alívio. Mas nunca havia
nada muito concreto em que eu pudesse me agarrar. As imagens eram fracas
e distorcidas, nunca mostrando o contexto exato.
Eu vi quando Zeus pareceu pensar o mesmo e passou os olhos pela
multidão ao mesmo tempo que farejou o ar.
Nenhum de nós teve sorte, no entanto.
Toda a área de areia em frente ao Lago havia sido contornada por
pequenas bolas de luz com brilho fraco. A verdadeira iluminação da noite
vinha da superlua sobre nós. Uma enorme mesa de madeira se estendia em
um canto, cheia de comida. Ao lado, inúmeras garrafas de bebida e frutas
haviam sido colocadas sobre uma mesa redonda.
Havia poucas mesas espalhadas, mas ninguém se sentou nelas. As
crianças corriam em volta do Lago. Os Protetores mais velhos, aqueles
raros que pareciam ter mais de sessenta anos, conversavam perto da
comida. Os mais jovens, prestes a receberem a tatuagem ou recém-tatuados,
dançavam ao som da música, riam e bebiam. Aparentemente, não havia lei
que os impedissem de beber antes dos dezoito ou vinte e um anos. Para
alguém que matava diariamente, ou logo mataria, beber álcool parecia uma
coisa bem insignificante.
Eu ignorei Ravenna junto aos Protetores adultos, conversando com
taças nas mãos. Outros poucos se dispersavam pela areia, alguns mais
próximos do Lago, outros mais próximos da montanha.
Todos, sem exceção, estavam descalços.
Era cômico ver como todas aquelas roupas formais pareciam mal
colocadas em um lugar tão natural e onde todos tinham os pés descalços
afundados no chão arenoso.
Encontrei meus pais de mãos dadas, os pés banhados pelas leves
ondas do Lago. Quando me viram, sorriram abertamente e começaram a
caminhar até mim.
— Você está deslumbrante, filha — meu pai me saudou, deixando
um beijo em minha testa.
— Você também, pai.
Eu estava sendo sincera. Meu pai estava lindo, vestido com um
terno simples preto, mas sem gravata. Henry nunca precisava de muito para
ficar deslumbrante. Minha mãe, ao seu lado, parecia uma verdadeira deusa
grega. Seus cabelos curtos estavam meio presos com um ornamento
dourado, e seu vestido preto parecia ser feito do mesmo tecido que o meu,
mas cobria todo seu corpo, dos pés até a curva de seu pescoço. O cinto
dourado em sua cintura parecia um bracelete agarrado à curva de seu
corpo.
Jasmine sorriu hesitante, e estendeu o braço para mim.
Eu a abracei apertado.
— Você está linda, mãe.
— E você parece uma estrela. — Ela acariciou minha bochecha. —
Eu sabia que havia acertado.
Sorri.
Todos nós nos viramos ao ouvir Zeus latir. Talvez eu tenha olhado
para a direção do latido com ansiedade demais, mas era apenas Brian
caminhando em nossa direção, com uma mão no bolso e a outra afagando a
cabeça de Zeus. Seu cabelo escuro estava penteado para trás, parecendo
molhado. Ele usava um terno completo, parecido com o do meu pai, mas
com uma gravata azul marinho em volta do pescoço.
Diferente de todos ali, Brian não parecia sentir a eletricidade da
noite, ou mesmo notar a grandiosidade da lua acima de nós. Seu olhar
continuava inexpressivo, apesar do esforço em nos cumprimentar com um
meio sorriso.
— Como foi a missão na África? — minha mãe perguntou. —
Conseguiu encontrar os Desertores?
Brian balançou a cabeça.
— Estou aqui apenas para a Noite de Luz. Preciso voltar o mais
rápido possível. Os Desertores estão se tornando mais sorrateiros, não
deixam qualquer pista. É como se desaparecessem em meio ao ar.
Suas palavras pareciam familiares de alguma forma, e fizeram me
lembrar do ataque na floresta quando Roman me salvou e a Desertora
restante desapareceu como fumaça no ar.
— Quando fui atacada na floresta com Roman, a mulher também
desapareceu sem deixar rastros. Literalmente, se tornou fumaça. — Então
me lembrei que Nathan havia reclamado quando fomos atacados no
estacionamento, que Desertores estavam surgindo do nada. — Nathan
também disse que os Desertores estavam simplesmente surgindo do nada
quando fomos atacados na cidade. Isso não é algo que eles já faziam?
Mais uma vez, Brian negou.
— Roman nos contou sobre isso, mas não é algo comum. Até pouco
tempo, nunca havia visto nenhum Desertor fazer isso.
O olhar da minha mãe se tornou sombrio, mas foi Serena quem
falou:
— O que quer dizer que estão tendo alguma ajuda externa. Algo
poderoso o suficiente para chamar a atenção de Vicenzo.
Um arrepio desceu pela minha coluna.
Então agora, além de me preocupar com Vicenzo e os Desertores,
também teria que me preocupar com algo tão forte quanto? Algo ou alguém
capaz de transformá-los em fumaça para uma fuga rápida e sem rastros?
Perfeito.
Não era como se já não estivesse difícil o bastante.
— Alguma ideia de quem pode estar ajudando eles? — Jonnah
perguntou.
— Os Desertores que capturei engoliram a própria língua para não
falarem nada.
Eles... o que?
O envolvimento com Vicenzo era tão profundo que os Desertores
preferiam morrer ou engolir a própria língua para não dizerem nada?
Ao meu lado, meu pai pigarreou.
— Vamos deixar este assunto para depois, amigos. Hoje é Noite de
Luz. Esta noite nós comemoraremos, amanhã voltamos a nos preocupar
com os Desertores.
Todos concordaram, mas de longe eu era a mais aliviada. Eu
esperava que aquela noite, como Jonnah havia me dito, fosse uma noite de
liberdade e alegria. Poderíamos voltar à realidade amanhã.

Eu comi mais do que era humanamente possível. Também bebi


alguns drinques doces e maravilhosos. Serena me puxou para a pista de
dança ao mesmo tempo que encontrei Roman me encarando de longe, como
se não soubesse como se aproximar. Então eu dancei. Com a batida da
música envolvendo o ar úmido, imitei Serena e Jonnah. Joguei os braços
para cima e balancei meus quadris.
Em algum momento, encontrei Cassandra, que apenas me deu um
aceno de cabeça e se afastou de todos, parando com metade das pernas
submersas no Lago. Ela não se moveu e acabou ficando por lá mesmo.
Estava lá até agora, inclusive, apenas observando a lua. Aisha, eu soube,
tinha voltado para a África para lidar com uma emergência há alguns dias.
— Isso é ridículo — minha amiga disse, olhando para Roman atrás
de nós. — Eu vou arrastar a bunda dele para cá. Não é porque você não
quer ficar beijando a boca dele que ele precisa agir como uma criança que
acabou de ralar o joelho.
Revirei os olhos, mas continuei dançando. Ela estava lidando muito
bem com aquilo, então eu não me permiti ficar preocupada. Roman
superaria também. A bebida havia me deixado leve o bastante para não me
preocupar com isso. Ou era por causa da Noite de Luz em si. Eu havia
contado a minha amiga tudo o que conversamos e ela pareceu aliviada por
eu ter sido honesta. Talvez o que quer que ela sentisse por Roman fosse
mais como uma vontade de protegê-lo de tudo, do que a real vontade de o
ter para si.
Jonnah riu para mim e nós balançamos nossos corpos em um
mesmo ritmo.
Alguns outros Protetores se juntaram a nós. Ravenna havia se
certificado que todos soubessem que eu havia matado um Desertor, e os
Protetores pareciam ainda mais contentes com a minha existência. Como se
agora eu não os estivessem enganando. Alguns garotos até chegaram a
flertar comigo, o que me fez rir alto com as caretas que Jonnah fazia. A
maioria, ousada o bastante para tentar, era pelo menos três anos mais novos
que eu, então fui gentil ao dispensá-los.
A verdade, porém, era que eu teria dispensado quase qualquer um.
Qualquer um que não fosse Nathan. E mesmo Nathan tinha chances de
receber um belo chute na bunda quando voltasse, por toda a frustração que
me causava.
Serena logo voltou, com a mão agarrada ao braço de Roman. O
Protetor parecia entediado com a comemoração, mas se permitiu sorrir por
causa de uma piada de Serena.
— Olá, Alyssa.
Eu sorri para ele, com sinceridade.
— Oi, Roman.
E foi isso. Não falamos mais. Não discutimos sobre nada que não
fosse a comida, as bebidas ou a dança. Dançamos juntos, as mãos de
Roman tocando minha cintura de vez em quando. Rimos como os jovens
que éramos, sem qualquer peso de nossas obrigações. Jonnah prometeu
pular no Lago ao final da noite como agradecimento por Akantha não
aparecer — o que me deixou tentada a fazer o mesmo. Não ter a mulher ali
era uma benção, principalmente quando eu precisava me esforçar para não
trombar com Ravenna. Eu tinha medo de que, caso o fizesse, cortaria sua
garganta. A pequena adaga presa à minha coxa ficaria feliz se eu fizesse
isso.
A superlua atingiria seu ápice em menos de uma hora. Suor escorria
pela linha da minha coluna, assim como fazia meu pescoço brilhar. Meus
pais conversavam com sorrisos nos rostos, as mãos sempre se tocando, em
um canto da festa. Eu vi quando minha mãe fez questão de incluir o
solitário Brian à interação. Observei Jasper se unir a eles também. Zeus
agora ficava aos pés deles, se dividindo em observar os Protetores dançando
a minha volta e contemplar a floresta calma, como se visse algo lá, mas não
tivesse certeza.
Com o suor escorrendo e meu corpo superaquecido, aproveitei que
Jonnah estava ocupado com um Protetor mais velho, extremamente bonito,
e Serena agora ria de algo que Roman havia dito, para escapar para longe da
multidão.
Caminhei em direção ao Lago, onde as árvores tocavam a água.
Afundei os pés na água morna e suspirei. Meu corpo parecia ter recebido
uma descarga elétrica. Meu sangue borbulhava, meus pelos se arrepiavam.
Peguei um pouco de água e molhei meu pescoço e peito.
No céu, tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe, a superlua se
exibia como uma deusa em busca de exaltação. Ela iluminava metade do
meu corpo, fazendo minha pele bronzeada brilhar como se houvesse
pequenos fios de ouro.
Eu queria que todos os dias fossem como aquele. Calor humano.
Alegria. Diversão.
Eu estava viva.
Senti a mudança no ar antes de ouvir o estalar proposital causado
por seus passos. Ele queria que eu soubesse que estava se aproximando.
Respirei fundo, tentando fazer aquele redemoinho em meu peito e aquela
movimentação no fundo do meu estômago se aquietarem.
Eu não estava preparada para vê-lo assim, de calça, camiseta e um
blazer, todo preto. Seus pés descalços estavam fundo na areia. Seus cabelos
negros como nanquim estavam penteados, mas algumas mechas caíam em
seu rosto. Os olhos azuis brilhavam mesmo escondidos do brilho da lua.
Eu queria tanto vê-lo, mas agora a ansiedade tomava meu corpo. Ele
me analisou sem descrição, descendo seus olhos por cada curva do meu
corpo. Seu olhar me deixou quente e arrepios desceram pela minha coluna.
Nathan estava de tirar o fôlego.
Ele era como fogo azul. Lindo. Exótico. Diferente. Chamava a
atenção com apenas um olhar. Me atraía como os vagalumes eram atraídos
pela luz.
E eu estava tão louca para me aproximar, tão sedenta por tê-lo perto,
que não me importava que ele pudesse queimar.
Meus dedos se contorceram sobre o tecido do meu vestido. Eu não
sabia se queria gritar com ele por ter sumido e não me dado nenhuma
notícia, gritar porque ele insistia em me manter longe, ou apenas pedir que
tirasse minha roupa.
Talvez os drinks tivessem me deixado um pouco mais do que apenas
alegre e aquela coisa de energia no ar realmente estivesse fazendo efeito.
“Ousada” talvez fosse uma palavra melhor para me descrever. Eu estava
comendo Nathan com os olhos, e ao mesmo tempo me forçando a ficar
quieta.
Seus olhos azuis, encobertos por sombras profundas, encaravam os
meus como se ele não pudesse ver nada além. E, por um segundo, permiti-
me abraçar aquela carícia. A necessidade dele, tão parecida com a minha
própria. Satisfez-me ver que não era a única. Pelo menos agora. Pelo menos
aqui, embaixo deste céu negro com uma lua brilhante, enfrentávamos a
mesma angústia.
Ele consumia cada movimento meu. Absorvia cada respiração
minha. Era como se estivesse vidrado. Como se não pudesse ver nada além
de mim. Nem mesmo a lua gigantesca sobre nossas cabeças, ou à festa a
poucos metros de distância.
Meu coração acelerou.
Meu estômago parecia revirar de ansiedade.
Nathan não disse nada e eu também não.
Tirei meus pés da água morna e andei até ele, lentamente, esperando
que fugisse.
Eu estava sonhando com ele mais frequentemente. Sonhava com os
olhos e suas mãos me tocando. Era o melhor que eu podia ter com ele longe
e era um alívio aos pesadelos.
Revirei meu cérebro, tentando me lembrar do momento em que isso
aconteceu, essa necessidade que queimava meu peito. Devia ter havido um
momento no passado que me fez querê-lo tanto. Eu amava que ele tivesse
ido contra seus próprios limites para me ajudar a treinar. Amava que sempre
parecíamos falar a mesma língua, até mesmo quando não usávamos
palavras. Amava que ele estivesse aqui, apesar de tudo. Era por isso que eu
o havia beijado, não só dias atrás, como também anos atrás. Bem, naquela
época foi ele quem me beijou. Nathan foi meu primeiro beijo e aquilo
parecia mais do que certo.
Queria me lembrar de tudo antes do fim. Queria saber como éramos
quando crianças, e como foi deixá-lo. Queria entender aquela coisa que
havia entre nós que o fez fugir todas as noites quando ainda era um menino
apenas para tentar me encontrar.
Queria, mais do que tudo, entender porque meu coração parecia
bater fora do peito quando ele estava por perto e, quando estava longe, era
pura tormenta.
Parei a pouco mais de um metro de distância dele. Seu cheiro
amadeirado tomou meus sentidos e, de perto, ele estava ainda mais lindo.
Mas havia tanta tensão em seus ombros que eu quis tocá-lo, apenas para
afastar o que quer que houvesse em sua mente.
— Eu quero impor uma regra — eu disse, quebrando o silêncio
quando ficamos frente a frente. Ele curvou a cabeça para o lado, esperando
minhas palavras. — Quando você sair em alguma missão, precisa ao menos
me informar que está vivo de vez em quando.
Algo queimou em seus olhos.
Dessa vez, ele percorreu todo meu corpo com seu examinar lento,
sem receio. Desceu lentamente pelo meu pescoço e demorou um tempo
sobre o decote e o alto dos meus seios. Então, percorreu toda a extensão até
minhas pernas. Seus olhos pararam em meus pés descalços sobre a grama
úmida.
— Você está deslumbrante.
Eu pisquei, desconcertada.
— E você está mudando de assunto.
Ele sorriu.
— Você é mandona — sua voz profunda me envolveu como um
manto. — Senti falta disso.
Cerrei os olhos, apesar do acelerar em meu peito.
Eu poderia me tornar brasa sob seu olhar.
— Você poderia ter mandado uma mensagem — insisti.
— Farei isso da próxima vez.
Suspirei. Da próxima vez.
Atrás de nós, a festa continuava. Energia pulsando através da lua e
da terra sob nossos pés. A bebida poderia ser um fator que me trouxe
ousadia, mas sabia bem que aquela energia no ar, que fazia meus pelos se
eriçarem, não era algo comum. Era por causa da lua que cobria o céu esta
noite.
Meus amigos estavam com os olhos em nós, assim como meus pais.
Virei a cabeça rapidamente.
— Quando chegou? — perguntei.
— Há algum tempo — disse, seus olhos me deixando apenas para
ver aqueles atrás de nós, nos observando. Ele logo voltou a focar em mim.
— O suficiente para te ver rodando sobre os pés como se fosse um peão.
Eu engasguei. Ele ampliou seu sorriso.
— Parecia estar gostando da festa, Vossa divindade.
Revirei os olhos com seu tom zombeteiro. Em minhas primeiras
noites aqui, havia lhe dito o quanto os olhares de todos me assustavam e ele
simplesmente respondeu que este era o preço de ser a prometida. Uma
deusa.
Eu poderia estar bem vestida, mas não havia nada de divino em
mim. E não queria que houvesse. Queria que ele me visse como a garota,
não a promessa. Queria que ele não pensasse que eu fosse algo imaculado,
porque precisava muito que me beijasse sabendo disso.
— Você não está? — perguntei, engolindo meus pensamentos.
Nathan pareceu pensar.
— O vinho é bom — disse por fim.
A tensão em seus ombros persistiu.
— O que aconteceu?
Nathan me olhou.
— Nada.
— Mentiroso.
Ele mordeu um sorriso.
— O mesmo de sempre... Desertores tentando me matar e eu
matando os bastardos. — Ele deu um passo à frente. — Alguns estão dando
mais trabalho que o normal. Não sei se te avisaram, mas a remuneração
desse trabalho é bem ruim.
Bufei uma risada.
— Está fazendo piadas agora? Isso quer dizer que somos amigos?
— Sempre fomos amigos.
Eu sentia em meus ossos que era verdade.
— Bem, amigo, que eu me lembre, foi você quem criou o embargo
em nossa amizade e sumiu por dias sem dar nenhuma notícia.
Nathan estalou a língua, dando mais um passo para frente. Agora, se
eu esticasse um braço, eu seria capaz de tocá-lo.
— É Noite de Luz, Alyssa — meu nome pareceu uma oração em
seus lábios. — Estou me dando uma folga. Durante a Noite de Luz, os
Protetores deixam tudo de lado. Todos os deveres. Todas as promessas —
sua voz me envolveu como uma música que queria a tanto tempo ouvir, mas
não conseguia lembrar o título. — Nós só existimos. Nos permitimos fazer
o que realmente queremos. Uma única vez no ano.
— Ok, então posso ter a graça da sua companhia durante uma noite
do ano, sem qualquer remorso te distraindo. Uau. Sou mesmo sortuda.
— Fico lisonjeado com suas palavras. — Ele lambeu os lábios. —
Mas sou eu o sortudo nesse caso. Não entende?
Cerrei os olhos para ele.
— Não, eu não entendo. — Eu queria que ele quisesse estar comigo.
Queria que deixasse suas preocupações de lado e apenas se entregasse ao
que quer que fosse aquele sentimento sufocante entre nós. Queria que
sentisse que aquilo valia a pena. Queria tudo isso antes que fosse tarde
demais. — Foi bom conversar com você este ano, Nathan. Sem
preocupações e deveres. — Dei um passo para longe. — Espero poder vê-lo
repetir seu dia de liberdade ano que vem.
Comecei a me virar, mas ele apareceu à minha frente, bloqueando
meu caminho. O sorriso havia desaparecido e suas sobrancelhas estavam
franzidas.
— Não fale assim.
— Assim como?
— Como se não fosse existir um próximo ano.
Soltei uma risada seca.
Quase contei a ele. As palavras, no entanto, ficaram presas na ponta
da minha língua.
Eu apenas desviei o olhar. O quão egoísta eu era por querer ser
amada antes de partir? O quão terrível eu era por querer que ele me amasse,
apenas para me perder no final?
— É bom saber que está vivo, Nathan.
Afastei-me tão rápido que precisei tomar cuidado para não cair de
cara no chão. Se eu ficasse perto dele, nem que fosse por mais meio
segundo, eu não conseguiria deixá-lo. E eu precisava. Precisava me afastar
porque estava cansada de não ter nada do que queria. A frustração estava
me matando.
À frente, Serena desviou o olhar, enquanto Roman continuou me
encarando. Passei os olhos por aqueles que nos olhavam, e encontrei meu
pai, que me observava com um olhar triste.
Uma mão quente se enroscou na minha. Parei. Logo pude sentir seu
corpo contra minhas costas. Sua respiração tocou o lado do meu rosto
quando Nathan se inclinou e disse, baixinho:
— Dance comigo.
Eu me virei para olhá-lo. Estávamos tão perto que eu poderia
facilmente fechar a distância entre nós com um beijo, se me erguesse sobre
as pontas dos pés.
— Dance comigo — ele repetiu, nunca desviando os olhos. — É
isso que quero desta noite. Quero dançar.
— Eu já dancei.
— Mas eu não. E quero dançar com você.
Engoli em seco. Meu coração se apertou contra minha vontade. A
verdade era que ele era tão... sozinho. Como eu às vezes ainda era, mas por
motivos diferentes. E por mais que eu quisesse negar isso a ele, como ele
me negou sua aproximação, eu não conseguia.
Eu havia matado por ele. Poderia facilmente dançar com ele.
Apertei sua mão, que ainda estava entrelaçada à minha.
— Espero que não pise em meu pé — avisei.
Sua mão grande, antes solta ao lado do corpo, subiu até minha
cintura.
— Eu sou um dançarino decente, não se preocupe.
Nós sorrimos. Juntos.
Vocês irão apenas dançar — fiz questão de me lembrar.
Fique quieto, coração.
Ele fitou cada pequeno detalhe do meu rosto. Observou meu corpo
mais uma vez, antes de fechar e abrir os olhos, focando-os, então, nos meus.
Agora, nossos corpos já estavam enlaçados, sua mão presa à minha cintura
e a outra enlaçando minha mão, a mesma que carregava a marca, e meu
peito raspando o seu.
— Você é tão absurdamente linda.
Sangue ferveu em minhas bochechas quando corei. Que o Destino
me salvasse! Ou me matasse de vez.
Por que ele tinha que dizer coisas assim?
As palavras tropeçaram seu caminho para fora:
— Você também é.
O azul infinito em sua íris brilhou. Não. Queimou. Quase questionei
porque parecia surpreso. Era impossível não achar que ele era lindo.
Nathan me guiou até a borda do Lago, onde a água tocou nossos pés
nus. Seus dedos nunca se desentrelaçaram dos meus e sua outra mão nunca
deixou minha cintura.
Sobre nossas cabeças, a lua brilhou intensamente, como se ousasse
nos abençoar.
Nathan me puxou para si, elevando nossas mãos entrelaçadas e
envolvendo ainda mais a minha cintura. Sua mão se afundou em minha
pele, tocando a parte nua das minhas costas, exibida pelo decote da parte de
trás do vestido.
Eu inspirei profundamente. Nossos peitos se tocavam e eu podia
sentir sua respiração pesada roçar meu rosto. Nathan tinha os lábios
entreabertos, como se aquilo fosse demais, mas sorriu quando me pegou
encarando.
A música alta nos envolveu em um casulo, enquanto a luz da lua
traçava sombras sobre nossos pés. Ele me guiou em uma dança lenta, os
olhos fixos nos meus.
Algo atrás de mim chamou sua atenção e eu segui seu olhar até
encontrar meu pai impedindo minha mãe de vir nos interromper. Henry
assentiu uma vez para nós e eu me virei, sabendo que aquilo era sua
aprovação. Não que eu precisasse de uma para dançar com quem eu bem
entendesse, mas fiquei feliz em saber que meu pai não era tão ignorante ao
ponto de achar que Nathan seria minha ruína.
Se as coisas seguissem o rumo que o Destino queria, eu poderia
muito bem ser a sua.
— Talvez eu possa justificar minha insolência com o vinho mais
tarde.
Eu o encarei.
— Insolência por fazer o que?
— Eu estou desrespeitando a norma de sua mãe que diz que não
posso me aproximar de você, não estou?
— Isso é besteira.
Ele franziu o nariz.
— Hum, péssima desculpa. — Ele bateu o dedo em meu nariz antes
de voltar a me envolver em seus braços. — Você quer uma justificativa
mais factual, Aly. “Besteira” convém a muita coisa e não é um argumento
nem um pouco forte.
Eu bufei uma risada.
— Você está muito engraçadinho hoje. Talvez o vinho seja mesmo a
justificativa.
Eu segurava firmemente seu blazer, mas soltei quando ele me girou
e prensou minhas costas contra seu peito, balançando nossos corpos colados
devagar. Sua respiração roçava minha nuca e eu pensei sentir seus lábios
roçando minha pele. Estrategicamente, percebi, encarávamos a água do
Lago e não mais a multidão da festa.
— Você sente a energia no ar? Como um fio desencapado tocando
sua pele? — Eu sabia que ele não se referia a sua pele contra a minha, mas
eu sentia mesmo assim. — Isso é a lua nos instigando. Eu estou apenas
fazendo jus à Noite de Luz e agindo exatamente como eu quero. Como ela
quer que eu faça.
— Boa ideia. Culpe a lua.
Ele riu baixo, mas o som retumbou pelo meu corpo.
— O dia é basicamente para isso, Aly. Por isso estou aqui. Porque
tenho uma desculpa boa o bastante e porque o vinho é excepcional.
Meus dedos apertaram seu braço.
— Parecia mais que você estava se escondendo de todo mundo —
sussurrei.
Ele me girou novamente e ficamos frente a frente. Nós balançamos
como a água sobre nossos pés, languidamente, lentamente, usufruindo da
música o máximo possível.
— Você diz como se eles quisessem me ter por perto.
— Nem todos aqui te julgam como você imagina. — Seu maxilar
ficou tenso, mas continuei mesmo assim. — Ouço as crianças contarem
histórias suas, como se você fosse o maior herói que elas conhecessem.
— É porque elas não me conhecem — retrucou. — Não sou um
herói.
— Não? — questionei, erguendo uma sobrancelha para ele.
— Não — ele insistiu. — Sou um assassino, e sou muito bom.
Simples assim.
Meus dedos tomaram vida própria e rastejaram até sua nuca,
enroscando-se em curtos fios de cabelo preto. A lua agora iluminava seu
rosto e eu podia ver cada traço forte em suas feições.
— Você mata para proteger.
— Isso não faz de mim menos assassino. O que faço ainda é
assassinato.
Franzi o cenho.
— Todos aqui fazem o mesmo que você, Nathan.
Seu rosto se suavizou ao me ouvir dizer seu nome.
Eu toquei seu rosto.
— Isso te perturba? — perguntei.
Ele soltou uma risada seca.
— Nem um pouco. Talvez isso devesse me preocupar.
— Acho que você faz o que precisa para deixar todos mais seguros,
assim como os outros Protetores.
— A diferença, Aly — disse — é que eu gosto. Gosto de matar
aqueles desgraçados. Adoro a sensação de ter suas vidas em minhas mãos,
antes que eu as tomassem. É o que me mantém são, quase noventa por
cento do tempo. Pelo menos costumava ser assim, antes de você aparecer.
Meu coração subiu até minha garganta. Eu percebi quando ele ficou
atento, procurando encontrar medo ou repulsa vinda de mim, mas eu não
sentia nada disso.
Ele gostava de fazer tudo aquilo porque, assim, poderia fazer o que
não pôde pela mãe. Eu entendia. Nós fazíamos o que podíamos para não
enlouquecer. E o que ele fazia, tornava o mundo melhor e eu nunca o
julgaria por isso.
— Então você usa seu trabalho para se vingar. É compreensível.
Ele balançou a cabeça, descrença tomando sua expressão.
— Você nunca enxerga o pior em mim, não é?
Dei de ombros.
— Eu tenho a tendência de confiar e defender as pessoas que gosto.
Ouvi ele engolir em seco.
— Você me disse isso uma vez.
Eu disse?
— É muito injusto que você saiba muito mais sobre nós dois do que
eu.
Ele sorriu.
— Nós éramos apenas crianças e você havia perdido uma boneca
horrorosa que uma vez tentei tomar de você. Eu acabei devolvendo quando
você me olhou como um cachorrinho de rua, mas quando a boneca sumiu
eu realmente não sabia onde estava. Eu te disse isso e você acreditou,
mesmo que pouco tempo atrás eu tivesse tentando enterrar aquele
brinquedo medonho no Lago. Nem sua mãe pareceu acreditar quando falei
que não estava com a boneca, mas prometeu que compraria outra. — Ele
soltou uma risada baixa. — Mas então você veio até mim, com marias-
chiquinhas na cabeça, toda séria, e disse que confiava em mim. Disse que
precisávamos confiar e defender as pessoas que gostávamos e por isso,
sabia que eu não havia feito nada.
Eu afundei meu rosto em seu peito, rindo.
— Por favor, me diz que você não estava mentindo e não tinha
mesmo enterrado minha boneca.
Seu peito pareceu um tambor sobre meus ouvidos quando ele riu
também.
— Não. Isso foi obra do Zeus. — Ergui meus olhos para ele. —Ele
pegou sua boneca enquanto nadávamos e a mastigou inteira, deixando
apenas alguns pedaços para trás. — Fiz uma careta. — Ele era um filhote
travesso — explicou, como uma desculpa.
Eu concordei, sorrindo. Era difícil imaginar aquele cachorro como
qualquer coisa além de extremamente disciplinado. Durante os últimos dias,
ele até mesmo esperou eu dizer que estava na hora de comer, antes de atacar
sua comida.
A música acabou e outra começou a tocar. Em nenhum momento
Nathan fez menção de me deixar ir, e eu tão pouco quis me afastar.
Continuamos balançando levemente com o som, colados um ao outro.
Minha mão, agarrada à dele, estava encostada em seu peito e eu sentia seu
coração bater acelerado. Eu estava decidida a nos manter assim.
Pedi que a lua me desse forças o suficiente e, então, eu disse, dando
o primeiro passo:
— Eu não quero que você me afaste — sussurrei, os olhos em sua
garganta, incapaz de enfrentar sua análise. — É ridículo, mas sinto sua falta.
Sinto sua falta o tempo todo.
Sua mão apertou a minha e a outra afundou mais na pele do meu
quadril. Ele inspirou profundamente, seu peito subindo. Seu exalar,
contudo, foi lento.
— É verdade — insisti. — Sinto falta de treinar com você e de ficar
à toa lendo em meu sofá com você. Sinto falta de discutir com você porque
seu livro favorito é uma merda. Sinto falta de ver você comendo doce,
enquanto reclama. Sinto falta de poder simplesmente falar com você. Acho
que sinto falta até das coisas que nem me lembro.
Seus olhos agora espelhavam emoções que eu mesma tentava apagar
dos meus. Seus dedos me apertaram, sua respiração travou.
— Todo mundo sabe que seria melhor se eu ficasse longe. O mais
longe possível. Principalmente de você.
— Mas você está aqui.
— Porque eu sou um idiota. — Seus olhos se escureceram,
perdendo o brilho de alguns momentos atrás. — Um idiota que deveria
saber melhor.
— Saber o que?
— Que isso — ele me soltou, suas mãos pendendo ao lado do corpo,
enquanto encarava a nova distância entre nós. — Essa coisa entre nós. Só
vai causar mais dor.
Todo meu corpo quebrou. Meu coração quebrou.
Ele sabia? Será que sabia que meu destino não poderia ser diferente
dos das outras Fidlys?
— Porque eu sou o sacrifício final — constatei.
Ele balançou a cabeça diversas vezes, em negativa.
— Não, não. Você irá sobreviver. Vai matar aquele bastardo. —
Então ele não sabia. — Mas porque você é a salvação e não posso destruir
isso — sussurrou. Seus olhos azuis me estudaram. — Não posso destruir
você. Eu já destruí o suficiente.
Nathan não sabia, afinal, a parte egoísta de mim respirou aliviada.
Se ele soubesse, tudo ficaria mais complicado. Ele nunca me aceitaria ao
seu lado, porque sabia que não teríamos nenhum futuro juntos e eu queria
ter algum tempo junto a ele. Qualquer coisa. Qualquer coisa era melhor que
nada.
Então eu vi tudo nele. Vi a culpa. A dor. Tanta dor. Mágoa como
nunca vi antes. E vi aquilo que ele tanto tentava esconder sobre suas
camadas de arrogância e da atitude de quem não se importava com nada e
nem ninguém. Deparei-me com o garotinho que pensava ter sido a razão
pela qual a mãe foi morta. Só um garoto que queria ser melhor do que
pensava ser. Um garoto que não suportava mais a perda, não suportava mais
dor e culpa. Quebrado. E solitário.
Já destruí minha mãe. Era isso que ele queria dizer.
Como ele podia não saber que nada daquilo tinha sido sua culpa?
Como eu poderia fazê-lo ver que aquele mundo poderia ainda valer a pena,
mesmo que fosse injusto e cruel?
— Você não vai me destruir, Nathan. — Ele deu um passo para trás,
para longe de mim ao ouvir minhas palavras. Mas eu não aceitei. Não dessa
vez. Agarrei sua mão e dei um passo firme em sua direção. — Eu confio em
você. Você não pode me destruir.
— Você nem se lembra de mim — sua voz cortou, afiada.
— Meu coração conhece você e ele me diz que posso confiar minha
vida a você. Ele se lembra, mesmo que eu ainda não. E o que quer que
tenha acontecido quando éramos crianças, não chega aos pés do que
aconteceu quando nos reencontramos. Você me protegeu. Você me treinou.
Você me apoiou.
Ele soltou uma risada amarga, mas seus olhos denunciavam sua
verdadeira emoção.
— É o meu trabalho. — Nathan olhou no fundo dos meus olhos,
como se quisesse gravar suas palavras em minha alma. — Eu morreria por
você.
— É mais do que isso. É mais para mim. — Coloquei sua mão sobre
meu peito, onde meu coração batia em desespero. — Eu matei por você e
mataria de novo sem hesitar dessa vez. E eu morreria por você se este fosse
o preço a ser pago, porque não importa se tenho memórias ou não, eu não
posso suportar a ideia de um mundo sem você.
Desespero tomou seus olhos. Ele balançou a cabeça, vez após vez,
querendo apagar minhas palavras.
— Não.
— Você não pode querer que eu aceite que morra por mim, e esperar
que eu não faça o mesmo.
— Não.
Seus olhos encontraram algo além de mim, na festa longe de nós.
Nathan puxou as mãos da minha e vacilou para trás. Então, ele
desapareceu da minha frente, usando sua velocidade super-humana para
adentrar a floresta e correr para longe, como se eu fosse algum tipo de
doença contagiosa.
Dei um passo à frente para segui-lo, mas uma mão em meu ombro
me parou.
— Deixe ele ir, Alyssa — minha mãe ordenou.
Não lhe dei ouvidos. Lancei o meu melhor olhar afiado para ela,
Brian e meu pai, que agora estavam atrás de mim, e disse, em alto e bom
som:
— Não. Não deixo.
Eu corri entre as árvores, usando aquela velocidade recém-
descoberta. Segui por instinto até um ponto onde as árvores formavam um
círculo. Uma fina corrente de água corria pelo chão.
— Nathan, para! — gritei.
Ele continuou andando, mas mais devagar. Eu sabia que parte dele
lutava para ficar.
— Pare agora, seu babaca egocêntrico! — gritei de novo.
Dessa vez ele parou.
Agarrei o braço de Nathan antes que ele pudesse ir mais longe. Eu o
puxei, fazendo com que me encarasse de vez. Eu oscilava entre querer
chutar suas bolas e beijar sua boca. A lua agora, percebi, estava em seu
ápice, pronta para atingir seu brilho máximo. Eu podia sentir sua energia
moldar meus ossos.
—“Babaca egocêntrico” — murmurou. — Acho que essa é nova.
Eu o fuzilei.
— Vai negar que é? — retruquei.
— Vou confiar no seu julgamento.
Eu revirei os olhos.
— Você é meu amigo — declarei. — Você me protegeu e me salvou
e eu fiz o mesmo por você. E você é meu amigo — repeti. — Não me
importo se ninguém acredita em você ou se todos me dizem para ficar
longe. — Eu me aproximei. — Então, Nathan, não estou pedindo, estou te
dizendo: pare de fugir.
— Eu não sei ser seu amigo — ele murmurou, os olhos presos em
mim como se eu fosse algum tipo de miragem.
Eu não acreditava nisso. Eu sabia que ele tinha sido um amigo muito
bom. Eu sentia no fundo de minha alma.
— Aprenda — exigi.
Ele bufou uma risada sem qualquer graça.
— Você acha que não é isso que tenho tentado fazer desde que te
encontrei? Desde o maldito dia que coloquei meus olhos em você, por uma
janela embaçada, eu tenho tentado dizer a mim mesmo que conseguiria ser
seu amigo. Naquele dia, eu nem sabia quem você era e eu já queria colocar
minha boca em você. — Seus olhos queimaram e senti suas palavras como
se fossem uma carícia. — Quando te encontrei no festival, pareci um
adolescente idiota incapaz de raciocinar. Fiquei tão deslumbrado com você
que quando percebi a presença dos Desertores já era tarde demais — as
palavras jorravam de sua boca e meu coração se acelerou no ritmo de suas
confissões. Estávamos frente a frente, gritando em meio às árvores, mas
graças aos céus, longe demais para que nos ouvissem. — Tem noção disso?
Você entende que quase morreu porque eu estava distraído? Eu não me
distraio, porra! Eu faço meu trabalho. Sou bom nisso. Rastreio os
Desertores muito antes de eles terem a chance de me ver chegar. Mas
apenas um olhar seu, e fiquei cego e surdo para todo o resto do mundo. E a
culpa disso não é sua, obviamente. É minha. Porque eu não sei me controlar
perto de você e tudo piorou desde que me lembrei de nós.
— Você não sabia que precisava me proteger — teimei.
Ele balançou a cabeça.
— Eu não sabia que você era a Fidly. Não me lembrava. Mas era
meu dever proteger qualquer um contra aqueles merdas.
— Isso não importa mais. Desde que soube, você nunca falhou
comigo. Mesmo naquele dia, você ainda conseguiu me manter segura.
— Mesmo? — descrença tomou sua voz. — E quando você foi atrás
de mim além das fronteiras do Outro Lado, só para ser atacada no final?
Pelo amor de Deus, Alyssa, você quase morreu! Ou quando precisou matar
um Desertor porque eu tinha sido dopado por Ravenna?
Fiquei tensa com as memórias.
— Essas foram as minhas escolhas. Não havia nada que você
pudesse fazer.
— Exatamente, Alyssa! Eu não pude fazer nada, mesmo quando
você se colocava em perigo por mim! Você foi até minha casa para ter
certeza de que eu estava bem e Ravenna me usou porque sabia que você
faria qualquer coisa para me manter seguro. Percebe o problema? — Ele fez
um gesto para o espaço entre nós dois. — Você não é apenas a minha
fraqueza. Eu sou a sua também.
Ira me tomou, principalmente porque eu não era capaz de negar suas
palavras.
Bati em seu peito, meus olhos queimando.
— Mesmo que isso seja verdade, pensa que irá fazer isso mudar
apenas fugindo? Acha que me importarei menos com a sua vida porque está
longe? É assim tão fácil para você? Porque para mim não é.
— Se eu ficasse longe, pelo menos me certificaria que nunca fosse
colocado em uma posição onde você tivesse que escolher entre sua própria
segurança e a minha.
— Você é realmente um idiota egocêntrico — gritei contra seu rosto,
tão perto que podia tocá-lo. — Eu tentaria salvar qualquer um de meus
amigos. Serena, Jonnah, Roman, meus pais... Você não é o único.
Nathan deu um passo à frente, nossos narizes quase se tocando.
— Foi isso que disse ao Roman quando ele confessou seu eterno
amor por você? — ele disparou, ácido.
Eu estalei a língua.
— O que eu disse a ele não te diz respeito. Mas se quer tanto saber,
talvez eu tenha apenas admitido a mim mesma o que você é covarde demais
para admitir para si.
Ele quase recuou. Senti quando compreensão, medo e ansiedade
tomaram suas feições. Mas ele encobriu tudo quando inspirou e soltou:
— Covarde? Precisa começar a encontrar novos adjetivos, Aly.
— Estou mentindo? — rebati. Eu não deixaria ele se safar assim. —
Você sempre foge! Está sempre agindo como se fosse o centro do mundo
quando não é! Você não pode ser minha ruína, Nathan. Sabe por quê?
Porque você não tem esse poder sobre o meu destino. É a porra da minha
vida, então pare de agir como se fosse um belo príncipe encantado se
sacrificando pela mocinha indefesa. Você lembra do que me disse um tempo
atrás? — Bati contra seu peito mais uma vez, como se quisesse acionar seu
coração. — “Você não é uma donzela indefesa. Não me faça tratá-la como
uma” — eu o imitei. — Você disse isso. Então pare com essa merda de me
tratar como se eu fosse quebrar pelo simples fato de você estar por perto. Eu
tomo minhas decisões. Eu sei o que quero ou não. As consequências de
minhas escolhas são minhas e de mais ninguém. Isso é a única coisa que o
Destino não me tirou, então pare de ser um idiota que pensa que pode me
salvar de alguma catástrofe que nem mesmo é real!
Ele piscou. Uma. Duas. Três vezes. Abriu e fechou a boca pelo
menos duas vezes, antes de cruzar os braços sobre o peito. Aquele fogo
queimando em seus olhos com uma calma profunda e atormentadora.
— Eu acho que deveria ter esperado por algo assim.
Eu o encarei, esperando uma explicação.
— Que você fosse destruir todos os meus argumentos com algumas
poucas palavras — explicou.
Mordi o lábio. Eu precisava agir agora. Fazê-lo entender o que eu
queria. Precisava lutar pelo que eu queria porque eu não tinha muito tempo.
E eu podia ver, em seus olhos, que ele sentia algo por mim. Talvez não
fosse amor, nem mesmo paixão, mas ele se importava comigo e me queria.
Eu sabia que sim. E isso era suficiente.
Dei um passo em sua direção. Ele soltou os braços, como se
estivesse se preparando para o momento em que eu o tocaria.
— Eu não vou deixar você — eu disse, encarando seus olhos azuis.
A lua acima de nós brilhou fortemente e eu senti a energia pulsar entre nós,
como um pequeno tornado tomando forma. Era Noite de Luz. Era uma
noite sem restrições, sem deveres. — Então você facilitaria muito a minha
vida se parasse de fugir.
Nathan me fitou de volta. Eu pude ver seu maxilar se tencionar e ele
engolir em seco.
Toquei seu rosto, contornando seus traços com meus dedos. Ele
inspirou e senti o ar bater em meu nariz quando expirou logo depois.
Eu queria prometer que tudo ficaria bem, que ele nunca me perderia,
mas aquilo seria uma mentira cruel. Tudo o que eu podia fazer era lhe
mostrar que valia a pena ter aquele tempo. Valia a pena sentir, mesmo que
com nosso tempo limitado. E eu podia — precisava — deixar claro que ele
não teria culpa alguma por se permitir ser guiado pelo que sentia.
Meus dedos traçaram seus lábios e, como se tivesse ligado a um
disjuntor, suas mãos subiram e agarraram minha cintura. Os dedos fincados
em minha carne.
— Talvez eu não possa ser sua amiga, afinal. — Ele ergueu os olhos
para mim, confusão tomando seu belo rosto. — Eu quero beijar você —
sussurrei. — E quero que me beije sem se importar com nada além das
nossas bocas. Acho que isso não faz parte da área de amizade, não é?
Ele assentiu levemente, os olhos presos em minha boca, a respiração
pesada.
— Eu quero viver, Nathan, e você me faz sentir viva.
Seus olhos azuis devoraram os meus olhos negros. A luz da lua
iluminou toda a floresta e era quase como estar em um quarto com a luz
ligada. Havia algumas sombras aqui e ali, mas era possível enxergar tudo
com clareza. Energia pulsou do céu para a terra, e das mãos de Nathan até
minha pele.
— E você me faz querer viver.
Sua voz foi apenas um sussurro, mas eu o ouvi com clareza.
Finalmente estávamos na mesma página. Meu coração exposto
como uma relíquia em uma feira em frente ao mar e, por mais que eu
duvidasse que ele sentisse o mesmo que eu sentia quando nos tocávamos ou
nos olhávamos, eu sabia que estava me ouvindo. Sabia que havia decidido
se permitir.
Ele me fazia sentir viva e eu o fazia querer viver. Era uma barganha
justa.
Por fim, como no final de um filme, a luz se apagou. A lua foi
encoberta pela escuridão.
Escuridão tomou a floresta e eu arfei, surpresa. Apertei Nathan,
agarrando-o como se ele fosse uma âncora. Aquilo havia sido suficiente,
então. Com um puxão firme, Nathan colou nossos corpos e eu suspirei
quando ele desceu sua boca na minha. Foi apenas um toque, e a incerteza
pareceu confundir a coragem dele. Como se lhe desse permissão e ousadia,
eu segurei firme sua cabeça, enrolei meus dedos em seu cabelo, e
aprofundei o beijo.
Eu estava afogando e ele era meu oxigênio. E vice-versa.
Sua mão subiu pela curva da minha cintura e se afundou na pele nua
das minhas costas, como se precisasse sentir pele contra pele. Eu queimei.
Queimei como gasolina sendo tomada pelo fogo. Mal conseguia me manter
em pé quando sua língua tocou a minha.
Nós duelamos como guerreiros profanos. Afundei meus dedos em
seu ombro e a outra mão tocou seu peito. Ele era tão grande e forte, e eu
queria me perder em tudo o que ele era e esquecer tudo o que não éramos.
O que nunca seríamos. Eu o tinha agora e era o bastante.
Era o bastante.
Mas também não era.
Pressionei meu corpo contra o dele desesperadamente, e ouvi o
gemido preso em sua garganta. Nathan mordeu meu lábio inferior e depois
o sugou, sua mão descendo lentamente pelas minhas costas até minha
bunda. Eu gemi e foi o suficiente para baixar qualquer barreira que Nathan
ainda estava mantendo erguida. As paredes desmoronaram. As defesas
ruíram. Éramos apenas Nathan e Alyssa, Alyssa e Nathan. Éramos desejo
cru e eu nunca poderia ter imaginado o quanto era maravilhoso ser
desejada. Nenhuma vozinha perturbava nossa mente, enquanto ele me
empurrava contra uma árvore.
Ele se afastou para respirar. Vi seus olhos claros e brilhantes
procurar os meus na escuridão e um sorriso presunçoso se formou em meu
rosto. Ele xingou baixinho, derrotado, e apertou minha bunda com vontade.
Com as costas pressionadas contra uma árvore, suas mãos agarrando
minha bunda e toda a frente do meu corpo pressionado contra ele, eu não
tinha como fugir. Tão pouco queria. Seu corpo estava duro contra o meu em
todos os lugares certos, e eu o puxei mais contra mim, nos fundindo, meus
braços enrolados em seu tronco, meus dedos agarrados às suas costas.
Ele rosnou quando as partes sensíveis de nossos corpos se tocaram.
Enquanto eu era macia, ele estava duro. Nathan desceu a boca na minha
novamente, lambendo e mordendo meus lábios. Eu chupei o seu lábio
inferior antes que ele pudesse se afastar.
— Eu não consigo parar — ele grunhiu em minha boca. — Me faça
parar, Aly.
Eu agarrei seus cabelos.
— Pareço querer que você pare?
Uma mão ficou em minha bunda e a outra subiu para meus cabelos,
puxando-os levemente para que eu expusesse meu pescoço. Eu o fiz de bom
grado. Vi um sorriso malicioso em seu rosto antes que Nathan descesse a
boca até minha pulsação e chupasse a pele do meu pescoço.
Deus do céu.
Finquei os dentes no lábio para não gemer alto.
Ele fez de novo, dessa vez mordendo levemente a pele em seguida,
e eu suspirei seu nome.
Nathan tirou os lábios da minha pele e ergueu a cabeça para mim.
Mesmo na escuridão, eu sabia que estava me encarando.
— Por que parou? — perguntei, frustrada pela interrupção.
Seu sorriso era travesso ao responder:
— Você me chamou.
Apertei minhas mãos em suas costas, desejando que não houvesse
tantas roupas entre meus dedos e sua pele.
— Pare de ser idiota. — Corri as mãos pelas suas omoplatas e então
pelo seu peito. — Volte a me beijar. Agora mesmo.
Nathan sorriu tão amplamente que pude ver seus dentes brancos,
mesmo com certa dificuldade. Quase pude ouvi-lo murmurar: “tão
mandona”, como se houvesse dito isso várias vezes no passado.
— Com prazer — respondeu, voltando a pressionar meu corpo.
Sua boca devorou a minha. Nossas línguas batiam uma contra a
outra e, então, dançavam em perfeita harmonia. Eu chupei sua língua, e sua
mão que estava presa em meu cabelo percorreu o caminho até meus peitos.
Eu não estava usando sutiã e era óbvio que minha excitação estava clara.
Sua mão afundou em meu seio, sobre o tecido do vestido e eu me pressionei
contra ele novamente, como se por instinto.
— Eu amo isso. — Ele deixou minha boca e desceu beijos pela
minha clavícula e, por fim, entre meus seios. — Amo isso pra caralho.
Era demais. Seu toque era demais. Sua boca era demais. Suas
roupas eram demais.
Puxei seu blazer sobre os ombros. Ele me soltou apenas para que eu
tirasse a peça de roupa, deixando-a cair sobre a grama úmida. Logo suas
mãos estavam ancoradas em mim novamente. Eu passei minhas unhas pelo
tecido fino de sua camisa, contornando seus ombros, suas omoplatas, seu
pescoço e seu peito. Desci as mãos, me aventurando para áreas mais baixas,
que ainda não havia tocado. Parei a mão sobre seu cinto e Nathan respirou
alto, tomando minha boca com a sua. Puxei, às cegas, sua camiseta para
fora da calça e enfiei minhas mãos sob a blusa, sentindo sua pele quente.
Como resposta, Nathan me pressionou com mais força contra a
árvore, esfregando-se em mim.
— Porra — ele gemeu, a boca colada à minha.
Aquilo era tão bom. Vê-lo se perder assim por mim era tão
completamente fascinante. E eu queria mais. Queria isso para sempre.
Mas eu não tinha para sempre. Tinha o agora. E só.
Parei minhas mãos, agora espalmadas onde eu sabia estar sua
tatuagem. Tirei minha boca da sua e o encarei com diversão.
— Eu deveria parar, Nate?
O apelido pareceu uma carícia em minha língua, e ativou pequenos
fragmentos de memórias onde éramos mais jovens. As imagens logo
sumiram como fumaça.
Sua mão em minha bunda apertou. Ele desceu a outra para minha
cintura e, com um puxão firme e rápido, eu estava com minhas pernas
enroladas em sua cintura. Meu vestido se enroscou sobre o topo de minhas
coxas, deixando-me quase nua da cintura para baixo. Sua mão apertava
diretamente a pele da minha bunda e eu estava pressionada contra ele.
Assim, eu podia senti-lo em todo lugar. Sua voz estava embargada quando
respondeu:
— Nem mesmo se um meteoro cair sobre nossas cabeças.
Dessa vez, fui eu que liderei o beijo. Aproveitei a textura de seus
lábios e o calor de sua língua. Balancei, inconscientemente, contra seu
quadril e afundei meus dedos em sua pele e outros em seu cabelo.
Ele pareceu uma estátua, tentando ao máximo não se esfregar contra
mim e, como resposta, esfreguei-me contra ele novamente. Ele pareceu
hesitante, mas praticamente rosnou em minha boca ao se pressionar em
mim. Eu nunca tinha estado assim com ninguém antes, mas meu corpo
sabia muito bem o que queria. Minha mente, por sua vez, estava
completamente de acordo.
— Você é tão perfeita — ele sussurrou para mim, sem fôlego.
Eu queria me perder.
Queria me perder nele.
Eu o beijei com paixão e me esfreguei contra ele, enlouquecida.
Apesar de não investir contra mim, suas mãos me apertaram contra seu
corpo, me guiando por um caminho que nunca tinha percorrido com
ninguém, além de mim mesma. Nathan parecia querer ser cuidadoso
comigo, e não perder o completo controle. Minha respiração ficou mais
pesada, junto com a sua, e eu gemia em sua boca. Sua respiração ficou
ainda mais pesada, seus dedos ainda mais firmes contra minha pele,
impulsionando-me a continuar. Ele me guiou nos movimentos, sussurrando
em minha pele quando tirava a boca da minha e chupava a pele da minha
garganta e pescoço. Às vezes, seu corpo tremia e ele xingava baixinho,
como se estivesse na borda de um abismo. Eu sabia que ele estava tentando
se controlar, ser o mais respeitoso possível comigo, mas eu não queria isso.
Ele parecia querer me ver no limite, me guiando pela borda, queria que eu
tivesse exatamente o que eu desejava, mas ao mesmo tempo se continha no
próprio desejo.
— Eu não sou uma donzela — sussurrei contra a sua boca, fincando
meus dedos em suas costas.
Ele rosnou, agarrando meu lábio com força, chupando minha língua
em seguida.
Pequenos gemidos ecoavam dele. E eu o beijei e beijei e beijei até
que meu corpo explodisse, tão prazerosamente que eu não sabia o que fazer
a não ser tentar prolongar a sensação. No meu ouvido, ele sussurrou meu
nome, totalmente perdido em mim.
Eu estava descontrolada. Selvagem. Ousada. E eu amava.
Eu estava viva e estava amando.
Meu corpo se acalmou e eu parei de me mexer. Minhas mãos
desceram para seu cinto e eu fiz menção de tirá-lo, mas Nathan se afastou
um milímetro, colocando uma mão sobre a minha.
— Não vou transar com você pela primeira vez contra uma árvore,
Aly — eu o ouvi sussurrar.
Bem, seu corpo discordava.
— Qual o problema?
Sua mão dava suporte ao meu peso, agarrada em minha coxa, mas a
outra acariciou minha bochecha.
— Tenho um plano sobre como quero fazer isso com você e, apesar
de incluir uma árvore no futuro, não vou fazer assim na nossa primeira vez.
Eu sabia que no fundo o que ele queria dizer era “sua primeira
vez”. Odiava admitir que ele estava certo. Eu não era ingênua o bastante
para pensar que Nathan era virgem, principalmente quando Lirya havia
deixado explícito que haviam transado. Mas seria a minha primeira vez. E
fazer sexo pela primeiríssima vez provavelmente doeria horrores, então
fazer isso em uma cama confortável, talvez fosse mesmo a melhor opção.
Meu coração inchou com seu cuidado em pensar sobre isso, mas ao
mesmo tempo acelerou, apavorado com a possibilidade que tudo acabasse,
assim que nos afastássemos.
Eu não poderia deixá-lo, mesmo que precisasse. Não queria que nos
perdêssemos assim que nos afastássemos.
— Você não vai fugir — sussurrei, quase como uma pergunta.
Nathan deu um leve beijo em meus lábios, um toque mais profundo
do que qualquer coisa que havíamos feito antes. Era carinhoso. Cuidadoso.
Zeloso. Era minha alma e a sua selando um pacto que ia além da promessa
velada de suas palavras.
— É inútil ao menos tentar. Então não, Aly, não vou fugir. — Seus
olhos tomaram os meus. — Nunca. Seremos eu e você, sempre.
Nathan caminhou comigo pela escuridão, a mão entrelaçada à minha
e nossos braços se tocando por todo o caminho. Nós decidimos seguir direto
para minha cabana ao invés de voltar para a festa, que inclusive já devia ter
terminado. Assim que a lua foi coberta pelas sombras, os Protetores se
dispersaram.
A mão de Nathan, agarrada à minha, era como uma âncora. Era seu
jeito de me dizer que ele não se afastaria. Ele lutaria por nós. Pelo menos
era o que eu esperava.
Eu agarrei seu braço quando pisei em falso, sem conseguir enxergar
um palmo à minha frente.
— Você consegue ver algo? Não consigo enxergar nem minha mão
em frente ao rosto — reclamei.
Sua risada reverberou em meu peito. Quente. Aconchegante. Certa.
— Estou meio distraído com as suas mãos em mim — disse. — Mas
estou bem certo de que estamos seguindo o caminho correto até a sua
cabana.
Assenti, mesmo que ele não pudesse ver.
— Você pode me agradecer depois pela distração.
Ele apertou minha mão e o senti se abaixar e beijar minha têmpora.
— Será um prazer.
Eu juro que me arrepiei.
Estávamos provavelmente já chegando à cabana, apenas alguns
metros até lá quando Nathan parou. Eu o senti ficar tenso sobre minhas
mãos, enquanto encarava a escuridão.
— Você não me avisou que viria hoje, Nathan.
Era Jasper.
Nathan claramente relaxou ao ouvir a voz, mas eu sabia que ainda
estava receoso. Afinal, poucos ali entenderiam nosso relacionamento. Se é
que podíamos chamar assim.
— Foi uma decisão de última hora — respondeu.
Adentramos a ruela da minha cabana e um poste de luz iluminava
fracamente a rua. Jasper estava parado ao lado deste poste, os braços
cruzados, nos observando.
— Não preciso dizer que isso trará dor de cabeça, certo? — Ele
apontou para mim. — Sua mãe nos trará muita dor de cabeça com isso.
Eu bufei, mas foi Nathan que respondeu:
— Vai valer a pena. Não se preocupe.
Meu coração se aqueceu com a resposta.
Jasper ergueu uma sobrancelha para nós.
— Sejam espertos, crianças. — Ele quase pareceu se importar.
Caminhando até nós, deu um tapinha no ombro de Nathan. — Preciso de
você para averiguar o perímetro do Lago em uma hora. Consegue desgrudar
dela por tempo suficiente para isso?
Nathan devolveu o tapinha no ombro do Protetor, com um sorriso
arrogante no rosto.
— Não se preocupe, vovô, posso ajudar você com um trabalho tão
fodidamente simples. — Seus olhos caíram em mim. — Mesmo que para
isso eu tenha que desgrudar dela.
Jasper quase sorriu, o que era um milagre.
— Tenho certeza de que ela pode estar precisando de um tempo sem
a sua chatice.
Eu ri, o que me garantiu um aperto em minha cintura. Ergui meus
olhos e encontrei Nathan fingindo estar ferido.
— Oh, eu não preciso de um tempo da sua chatice. — Bati os cílios
para ele. — Consigo lidar bem com ela.
Nathan fez um biquinho, o que me fez rir ainda mais. O guerreiro
assassino emburrado era a melhor coisa de se ver.
— Muito engraçada.
Eu sorri, batendo em seu peito.
— Certo, certo. — Jasper limpou a garganta, nos olhando de canto
de olho. — Espero você, Nathan. E, Alyssa, vê se dorme direito porque
amanhã não quero ter que ficar corrigindo sua postura.
Eu mordi a língua, porque estava prestes a mostrá-la para ele.
Protetor rabugento.
Com a confirmação de Nathan, Jasper nos deixou, caminhando pela
ruela até se perder na escuridão. Nathan continuou me guiando para a
cabana.
— Jasper treinava você, não é? — Lembrei-me de Serena dizer que
Nathan era treinado por um Protetor quando seu pai não estava por perto.
— E foi ele quem pediu que me treinasse escondido.
Nathan assentiu.
— Na verdade, eu que propus treinar você. Jasper concordou só
depois do seu fiasco no primeiro treino aqui, mas aí eu já tinha falado sobre
ajudá-la e seu desempenho apenas me deu uma boa justificativa para isso.
Eu revirei os olhos. Eu não tinha sido tão ruim. Apenas ruim para os
padrões Protetores.
Apertei sua mão, com carinho.
— Ele sempre foi assim? — Nathan arqueou uma sobrancelha e eu
completei. — Como se quisesse matar alguém metade do tempo e na outra
metade estivesse de saco cheio?
Nathan balançou a cabeça, pensativo.
— Quando Jasper começou a me treinar, eu tinha dez anos. Ele
havia perdido sua esposa, que era humana, para alguma doença, mas ainda
era um homem de risada fácil. Acho que foi por isso que Brian pediu que
me treinasse, porque ele não seria tão cruel — contou. Jasper não seria
cruel? Uma vez ele gritou comigo só porque meu pé estava posicionado um
milímetro errado. — Jasper tinha uma filha. Clarissa. Anos depois que ele
começou a me treinar, Clarissa recebeu a tatuagem. Aos dezesseis anos, ela
já era uma garota prodígio, mas ninguém esperava menos da filha de
Jasper.
Quando estávamos perto da minha cabana, Nathan mudou o
caminho, nos levando em direção ao Lago. Nós caminhamos até o Lago e
afundamos os pés na água, como se ambos precisássemos daquilo.
Alguma coisa havia acontecido com Clarissa então, porque nunca
tinha ouvido falar que Jasper tinha uma filha. Isso explicava bastante.
— O que aconteceu? — perguntei, ansiosa.
— Jasper estava comigo no dia. Clarissa tinha recebido a tatuagem
poucos dias antes e Ravenna decidiu enviá-la em sua primeira missão. Ela
disse que deveria ter sido algo simples e rápido, mas eu ainda não entendo
porque Clarissa foi enviada sozinha. Ninguém deveria ir sozinho em sua
primeira missão, mas Ravenna deu a ordem mesmo assim. — Eu vi o
semblante de Nathan se fechar, os punhos se cerrando. Eu passei meu braço
por sua cintura e o puxei para perto. — Acho que eu tinha uns doze anos e
Jasper já estava me treinando mais sobre nossos sentidos e forças
ampliadas. Estávamos em frente à minha casa, longe da cidade, para onde
Clarissa havia ido. Pouco tempo depois, Jasper ouviu seu pedido de
socorro. Ela estava tentando se comunicar, pedindo que a ajudassem porque
havia mais Desertores do que deveria. Haviam Desertores demais e ela
estava sozinha. Jasper largou tudo e correu atrás dela, mas quando ele
finalmente a encontrou, já era tarde demais. Clarissa tinha sido degolada e
os outros Protetores encontraram Jasper sobre seu corpo, tentando tapar o
corte no pescoço da filha.
Meu Deus.
Aquilo era mais do que cruel. Era desumano. Como um pai poderia
superar uma perda dessa, uma morte tão violenta de alguém tão importante?
Uma lágrima molhou minha bochecha e eu inspirei. Eu não deveria
chorar, mas pensar no meu treinador daquela forma, com sua filha, ainda
apenas uma criança, morta... Eu não me importava com as regras, tornar
adolescentes de dezesseis anos em máquinas de matar era errado de tantas
formas. Esperar que lidassem com uma responsabilidade tão grande quando
ainda deviam estar cometendo erros banais era ultrajante.
— O que aconteceu com os Desertores?
Nathan acariciou meus braços à sua volta, fazendo círculos
carinhosos em minha pele. Mesmo assim, eu sentia que aquela história
também parecia machucá-lo. Ele havia vivido aquele momento, tinha visto
o que aconteceu com Jasper.
— Jasper os encontrou depois. Cada um deles. — Seus olhos
estavam fixos na água deslizando levemente à nossa frente. — Então, ele
voltou e jogou na cara de Ravenna toda a merda que ela já tinha feito,
inclusive o erro que levou Clarissa à morte. — Sua mão apertou a minha.
— Depois ele foi para sua cabana e tentou se matar.
Choque passou pelo meu corpo e eu encarei Nathan, abismada.
— Ele tentou se matar?
Nathan assentiu.
— Meu pai o encontrou no banheiro, com a garganta aberta e uma
adaga em mãos. A adaga de Clarissa. Por sorte, meu pai conseguiu conter o
sangramento e Aisha veio curá-lo.
Oh, céus, ele queria morrer! Mais lágrimas molharam meu rosto e a
dor em meu peito aumentou. Eu não conseguia imaginar aquele tipo de dor,
uma dor tão profunda que te fazia querer desistir da própria vida.
— Ele se sente culpado pelo que aconteceu — Nathan tentou
explicar.
— Mas ele não é!
Nathan se virou e limpou minhas lágrimas.
— Não, mas ele perdeu a pessoa mais importante da vida dele. Isso
o mudou.
Eu o encarei. Suas mãos ainda tocando meu rosto, os olhos azuis me
olhando como se eu mesma fosse tão importante que o fazia querer decorar
cada pedaço do meu rosto. Aquele olhar, em especial, me atingiu fundo. O
que eu estava fazendo?
Era arrogância minha pensar que talvez ele sentisse tudo o que eu
sentia por ele, mas às vezes era o que parecia.
— Como o seu pai — sussurrei.
Diana morreu e Brian nunca mais foi o mesmo.
Deus, o que eu estava fazendo?
Eu sabia que, mesmo no melhor cenário, eu iria morrer e não por
velhice ou porque era o sentido natural da vida. Eu iria morrer ao cumprir a
profecia e ali estava Nathan, me olhando como se seu coração batesse em
compasso com o meu. E se ele realmente sentisse tanto por mim? E se
minha morte o destruísse?
Todo esse tempo, ele tinha tentado me proteger de si mesmo,
quando na verdade, eu deveria estar tentando protegê-lo de mim.
Nathan não comentou sobre seu pai, mas continuou:
— Jasper é exigente nos treinos porque não pode suportar a ideia de
falhar com mais alguém. Ele foi assim comigo e está sendo com você e isso
é porque ele se importa. E tentar nos preparar para o pior é a única forma
que ele conhece para nos manter seguros.
Eu sabia. Tinha visto o alívio em Jasper quando me encontrou bem,
após o ataque que exigiu que Aisha me curasse. Tudo o que eu sabia sobre
ele agora, apenas me fazia respeitá-lo ainda mais.
— Você acha que ele está melhor? — perguntei e depois completei,
mesmo que parecesse errado: — Acha que seu pai está melhor?
Sombras passaram pelos lindos olhos claros dele e eu precisei me
manter firme para não retirar o que havia dito, mudar de assunto e deixar
aquilo de lado. Mas eu precisava saber.
— Acho que eles encontraram algo que os mantém ocupados. Meu
pai tem sua bendita missão e Jasper tem os treinamentos. Mas não acho que
algum dia voltarão a ser quem eram. Eu parei de esperar isso do meu pai
quando ainda era uma criança. Na verdade, nem lembro de como ele era
antes de ter se quebrado.
Porque eu não queria pensar mais em sua resposta, eu o beijei. Me
levantei sobre a ponta dos pés e colei nossas bocas. Ele segurou meu rosto
firmemente, surpreso, mas nunca o suficiente para se afastar.
Eu o beijei com aquele sentimento que parecia tomar meu peito.
Aquela coisinha que sussurrava mais alto sempre que ele estava por perto.
Eu o beijei com tudo o que eu tinha e tudo o que eu era e esperei que fosse
o suficiente para nos salvar. Ou pelo menos para salvá-lo.
Nathan me deixou em minha cabana antes de sair para encontrar
Jasper. Eu pedi que ele fosse cuidadoso e recebi um beijo como resposta.
De língua. Nada a reclamar aqui.
Zeus apareceu logo em seguida, batendo em minha porta com a
pata. Eu afaguei sua cabeça e mostrei-lhe o sofá, onde ele poderia dormir.
Era engraçado que, sempre que Nathan não estava, ele escolhia se juntar a
mim e eu adorava isso.
Deixei Zeus já dormindo e fui direto para o banheiro. Peguei meu
celular na mesa de jantar no caminho e me deparei com umas dez
mensagens diferentes. Minha mãe queria saber onde eu estava. Serena
queria saber — em detalhes — o que eu estava fazendo com Nathan. Ela
pode, inclusive, ter adicionado alguns emojis de beijo e uma berinjela
duvidosa. Eu corei instantaneamente. Eu de fato havia beijado Nathan hoje.
Tinha feito outras coisas além de beijá-lo, mas não chegamos a ir muito
mais longe que isso. E mesmo assim tinha sido tão bom.
Digitei que estava em casa para minha mãe e enviei uma mensagem
falando que contaria sobre Nathan amanhã para Serena. Larguei o celular
sobre a pia e tirei as roupas para entrar no banho.
Parte de mim não queria me lavar. Eu gostava do cheiro de Nathan
misturado ao meu. Gostava de saber que, há pouco tempo, sua boca estava
na minha pele. Mas eu odiava dormir suada, então o banho acabou
vencendo.
Quando saí do banheiro, minutos mais tarde, Zeus estava cochilando
no sofá e minha mãe estava sentada na mesa de jantar, esperando.
Suspirei.
— Ok, me deixe colocar uma roupa antes de você começar.
Ela não respondeu.
Subi as escadas até o meu quarto e coloquei meu pijama
rapidamente. Meu pai não havia vindo, então haviam dois motivos
possíveis para isso: primeiro, ele não queria discutir ou, segundo, ele não
achava que minha mãe devesse falar algo. De qualquer forma, estava ótimo
para mim.
Voltei para a sala de jantar já me preparando psicologicamente para
aquela conversa.
— Eu havia sido clara quanto à Nathan, Alyssa — ela disparou.
Encostei-me contra o balcão da cozinha e cruzei os braços.
— E eu me lembro de ter falado o quanto isso é ridículo.
Jasmine me encarou, claramente irritada.
— Você não pode se dar ao luxo de se distrair agora, Alyssa.
— Por que? — retruquei. — Por que preciso me concentrar em
cumprir a profecia e matar Vicenzo? Por que preciso ser tudo o que vocês
esperam que eu seja? E quanto ao que eu quero, mãe? Quando vou ter
tempo para fazer as coisas que eu quero?
Minha mãe balançou a cabeça, desviando o olhar.
— Você terá tempo para isso depois que receber seus poderes,
Alyssa. Não podemos arriscar até lá.
Ela estava mentindo. Estava estampado em seu rosto. Ela sabia.
Sabia sobre a teoria das Guardiãs de que, após eu receber meus poderes e
tentar matar Vicenzo, eu morreria junto com ele. “Teoria” apenas porque
nenhuma Fidly havia chegado tão longe, mas fazia mais do que sentido. O
Destino não iria permitir que eu vivesse, sabendo que eu tinha força
suficiente para matar Vicenzo, que era quase como um Guardião. Era por
isso que minha mãe parecia incapaz de me encarar ao dizer suas últimas
palavras.
— Você sabe que não é verdade.
Ela ergueu a cabeça para mim, os olhos arregalados.
— Do que está falando?
— Não tente mentir, mãe. Ravenna me contou que as Guardiãs
acreditam que eu vá morrer ao matar Vicenzo. Eu não vou ter um “depois”.
Tudo o que eu tenho é o agora, até eu conseguir fazer isso. — Ela engoliu
em seco, as mãos tremendo levemente. — Eu não tinha certeza se você e
meu pai sabiam disso, então preferi não falar nada. Mas eu não deveria ficar
surpresa que também esconderam isso de mim.
— Alyssa, isso é apenas uma teoria.
— Sim, uma teoria porque nenhuma outra Fidly viveu até esse
ponto, mas nós duas sabemos que faz bastante sentido que seja verdade.
— Isso não irá acontecer — ela disse, convencida. — Há anos eu e
seu pai temos buscado por uma solução. Até lá teremos uma resposta.
Anos. Há anos eles buscavam por algo que pudesse me salvar e eu
imaginava que não haviam encontrado nada até agora. Mesmo assim, ela
queria que eu confiasse que encontrariam a resposta em alguns poucos
meses?
Eu sentei em uma cadeira à sua frente e peguei suas mãos nas
minhas.
— Sabe qual a verdade, mãe? É que nenhuma de nós tem certeza de
nada. E se esse é todo o tempo que tenho, então quero vivê-lo o máximo
possível. E Nathan é isso para mim. Ele me faz sentir viva, mãe. Como se
eu fosse só Alyssa e não a Fidly.
Seus olhos me perfuraram. Eu podia ver lágrimas acumuladas
neles.
— Mas você é a Fidly, Alyssa. Você tem um alvo nas costas desde
que nasceu.
— E daí?
— E Nathan não pode ser sua prioridade.
— Por que estar com ele faz com que você pense que eu não me
colocarei em primeiro lugar? Acha que vou mudar minha vida
completamente por causa de um garoto?
Ela negou, com um suspiro.
— Eu acho que conheço você, Alyssa. Acho que quando você ama,
você ama com intensidade. Eu sei que você nunca se rebaixaria para ele,
não é isso que me preocupa. A questão é que, caso aconteça alguma coisa,
você tentará salvá-lo. Você colocaria sua vida em risco pela dele. Não foi
assim que Ravenna o usou? Ela não usou Nathan para forçá-la a matar?
— Não é só ele, mãe. Eu faria isso por você e papai. Por Serena e
Roman. Por Jasper. — Eu respirei fundo. — Você me ama, certo?
— Claro que amo.
— E mataria e morreria por mim, não é?
Ela apenas assentiu.
— Por que é tão errado que eu esteja preparada para fazer o mesmo
pelas pessoas que eu amo?
— Porque você é minha filha! — ela explodiu. — Porque pensar
que algo pode acontecer a você é como enfiar uma adaga em meu peito. Eu
posso ter tomado decisões cruéis e talvez até erradas, Alyssa, mas fiz o que
precisava para mantê-la segura.
— Mãe, Nathan não é uma ameaça maior do que você mesma.
Minha mãe estalou a língua.
— Brian foi uma ameaça maior para Diana do que eu havia
imaginado.
Eu a encarei, incrédula.
— Você não pode seriamente culpar Brian pelo que aconteceu.
— Eu não o culpo diretamente, mas sei que, se Diana não tivesse se
apaixonado por ele, ela provavelmente teria sobrevivido.
Sobrevivido para que? — eu queria gritar. Sobrevivido apenas para
morrer mais tarde, quando matasse Vicenzo?
Minha cabeça estava doendo. As alegações sem sentido me
deixavam cansada. A morte de nenhuma Fidly era culpa do amor, ou da
amizade, ou de qualquer Protetor. A culpa era dele. Era Vicenzo quem
matava as garotas. Ele era o único culpado.
Talvez eu pudesse culpar o Destino também, por ser mesquinho o
bastante para colocar nossas vidas na linha de frente dessa guerra.
— Se seguir essa linha de raciocínio, mãe, você se apaixonar por
meu pai também o colocou em perigo. Ele poderia estar vivendo uma vida
mundana, sem essa loucura toda, mas está aqui, no meio de uma guerra da
qual a filha faz parte.
Eu não falei isso para machucá-la, mas porque queria que ela visse
que certas coisas valiam a pena.
— Eu estou ciente do risco ao qual expus o seu pai, Alyssa.
— E mudaria algo? — questionei.
Eu podia ver a resposta em seus olhos. Não. Ela não mudaria nada.
Ela ainda assim teria se aproximado do nerd estranho no parque. Ainda
assim, teria se apaixonado por ele. Ainda teria largado sua família por ele e
criado uma própria.
Porque ela o amava. Porque não podia imaginar uma vida sem ele.
Eu tinha medo de pensar nisso, mas era bem possível que fosse a
verdade: e se Nathan fosse esse alguém para mim? E se Nathan fosse para
mim, o que meu pai era para minha mãe? Ou o que Diana tinha sido para
Brian?
— Você ainda guarda rancor das pessoas aqui porque elas te
negaram o direito de amar quem você queria, mãe — comecei, forçando-a a
me encarar. — Eles te excluíram quando você insistiu em amar o humano.
E mesmo assim, agora, você tenta fazer o mesmo comigo? Tenta definir
minhas opções, meu futuro. Tenta ditar quem eu devo amar e não amar.
Você chegou a tirar minhas memórias para poder controlar meu futuro. O
que te torna diferente daqueles que negaram a você o direito de amar meu
pai?
Eu falava de amor com clareza, mesmo que nunca tivesse admitido
sentir isso por Nathan, nem mesmo para mim mesma.
— Eu amo você, Alyssa. Não posso assumir os riscos.
— Mas eu posso — insisti, com firmeza. — É a minha vida, mãe.
Isso que você está tentando fazer, controlar até a decisão mais involuntária
minha... Isso não é amor. É domínio. — Ela recuou, sentindo minhas
palavras profundamente. Eu não tentava ser cruel, mas honesta. E aquilo era
exatamente o que eu pensava há um bom tempo. — Não me faça ter que
lutar por algo que quero tanto, como você precisou.
Ela abriu a boca, mas a fechou em seguida. Uma lágrima solitária
desceu pelos seus olhos, e ela logo a enxugou. Parecia pronta para falar
novamente, mas foi interrompida pela porta da cabana sendo aberta com
força.
Nós nos viramos, assustadas, e encontramos Jonnah irrompendo
pela porta.
— Ótimo, você já está aqui — ele disse para minha mãe, depois me
olhou. — Nós precisamos conversar.
— Você mal se aproximou de nós nos últimos dias — minha mãe
disse. — Sobre o que quer falar?
Jasmine sabia ser direta quando queria.
O olhar de Jonnah admitia a ausência, e provavelmente sentia muito
por isso.
— Eu sei como deve ter parecido, mas tenho uma boa razão para
isso. — Ele se aproximou e juntou-se à mesa com a gente. — Estive
tentando me aproximar do círculo pessoal de Akantha para descobrir o que
ela anda fazendo. Desde que viemos para cá, ela tem estado estranha.
Estava óbvio que tinha um plano em mente.
Minha mãe arqueou uma sobrancelha.
— E qual é o plano? — perguntou, mais direta do que nunca.
Eu me aproximei, curiosa com o desenrolar da conversa. Se
Akantha tinha um plano, com certeza não seria algo bom.
— Ela esteve se encontrando com Ravenna e alguns outros
Protetores em reuniões tarde da noite — contou. — Nessa última semana,
eu tentei me aproximar deles para saber do que se tratava. Não é nada bom.
Eu franzi o cenho.
— O que estão planejando?
— Pelo que consegui ouvir, Akantha está buscando um grupo
grande o bastante para apoiar sua nova ideia de abençoar os Protetores com
mais força — explicou. — Eu posso estar enganado, mas o que entendi foi
que ela quer impor que as Guardiãs nos deem imortalidade.
— Mas isso foi o que tornou Vicenzo um Desertor — protestei. —
Ela não pode estar propondo fazer o mesmo que ele.
O silêncio de minha mãe era ensurdecedor, mas meu primo
continuou:
— Ela acredita que se for capaz de fazer com que as Guardiãs vejam
que esse é o melhor caminho, que assim os Protetores serão mais fortes, não
será o mesmo que Vicenzo fez. Vicenzo manipulou e mentiu para Freya.
Akantha quer que as Guardiãs escolham nos dar a imortalidade.
— O Destino nunca concordaria com isso — minha mãe interferiu.
Jonnah deu de ombros.
— Se Akantha conseguir manipular tantos Protetores quanto deseja,
o Destino seria o menor de seus problemas. Imagine se a maioria dos
guerreiros que ele mandou criar se recusarem a lutar, porque querem ser
abençoados com imortalidade. Seria um caos. Talvez o Destino não tenha
outra escolha a não ser ceder.
— Por que ela acha que a imortalidade é necessariamente uma
benção? O Destino cobrou um preço pela imortalidade das Guardiãs, elas
não podem formar família, não podem se apegar a nada que não seja seu
trabalho. E também foi cobrado um preço ainda pior pela imortalidade de
Vicenzo — falei, inconformada com a audácia de Akantha. — E por que
isso agora?
Foi minha mãe que respondeu:
— Se existe algo que Akantha teme mais do que qualquer outra
coisa, é a morte. E é arrogante demais para aceitar que, eventualmente,
todos chegam ao seu fim. — Seus olhos estavam perdidos, em um ponto
sobre a mesa. — Quando meu pai foi morto, Akantha parecia furiosa não
porque nunca o veria mais, ou porque ele jamais voltaria para casa. Estava
furiosa porque ele havia morrido, como se sua mortalidade fosse uma
vergonha aos Nephus. O mesmo aconteceu com meu irmão.
Eu engoli suas palavras como se fossem vidro triturado. Qual era a
merda do problema daquela mulher? Como podia ser tão fria com tudo?
Como sua arrogância podia ter se tornado tudo pelo qual mais prezava?
— Ela quer lutar sem se preocupar em estar em desvantagem com
Vicenzo — Jonnah concluiu.
— Mas nada é de fato imortal — reiterei. — Eu não sei o que pode
matar as Guardiãs, mas tenho certeza de que o Destino preparou algo para
equilibrar a balança. E Vicenzo... Vicenzo tem a mim. Mesmo que as
Guardiãs façam isso pelos Protetores, ainda teria que haver algo para pesar
o outro lado da balança, ainda teria que existir uma arma que os matassem.
— E é aí que Akantha se tornaria como Vicenzo — minha mãe
disse, mais para si mesma do que para qualquer um de nós ali. — Assim
como o Desertor, ela faria de tudo para destruir essa arma.
Não havia dúvida sobre isso nos olhos da minha mãe.
O final da Noite de Luz foi tumultuado. Meu pai apareceu em minha
cabana depois que Jonnah contou a nós o que havia escutado e passamos
horas pensando no que fazer com aquela informação. No final, eu e Jonnah
fomos instruídos a ficarmos de fora daquele assunto e que minha mãe
conversaria com as Guardiãs. Ela dizia estar confiante que nenhuma delas,
nem mesmo aceitariam pensar a respeito do possível pedido da mulher que,
nem o Destino devia entender como, era minha avó.
E minha mãe não voltou a desconfiar de Jonnah.
Já era tarde da madrugada quando eles saíram e me deixaram
sozinha. Bem, não exatamente sozinha. Zeus ainda roncava no meu sofá.
Eu estava quase pronta para ir dormir quando uma mensagem fez
meu celular apitar com a notificação.
“Por que Nathan está me pedindo seu número de telefone?” —
Serena enviou.
Ao mesmo tempo, outra mensagem surgiu na tela:
“Devo voltar para o Outro Lado só depois do amanhecer. Durma
bem”. Um sorriso aqueceu meu rosto, borboletas saltitando no fundo do
meu estômago. —“Ah, caso não tenha notado, sou eu. Nathan. Ou o cara
com quem você estava se pegando na floresta algum tempo atrás.” — Uma
risada escapou da minha boca. —“Aliás, aquilo foi ótimo. Podemos
repetir?”.
Com um sorriso bobo no rosto, digitei uma resposta rápida para ele:
“Nathan? Não me lembro bem. Talvez eu precise de algum incentivo para
me lembrar desse tal beijo.”
A resposta em seguida veio ainda mais rápida: “Eu te lembraria
agora mesmo se Jasper não estivesse me levando para o outro lado da
cidade. Mas volto logo. Prometo. Vou tentar ser mais memorável na
próxima vez que eu estiver com a boca em você.”
Eu ofeguei audivelmente em minha cabana vazia e silenciosa. Será
que ele tinha alguma ideia do quanto esta noite tinha sido memorável? Eu
nem sabia se dava para melhorar.
“Gosto do jeito que pensa, Cross” — digitei.
A resposta seguinte demorou alguns segundos.
“Jasper está ameaçando quebrar meu celular. Te vejo mais tarde.” —
Eu já digitava uma despedida quando ele enviou mais uma mensagem.
“Esse sou eu te deixando informada de que ainda estou vivo, já que foi
bastante específica quanto a isso quando estava gritando comigo no meio da
floresta esta noite.”
Meu coração se aqueceu. Ele se lembrava.
“Viu? Gritar funciona” — digitei, então adicionei: “Te vejo amanhã,
Nate.”
“Te vejo amanhã, Aly.”
Aquilo com certeza não era grande coisa para muitas pessoas, mas
para Nathan e eu era uma promessa de que continuaríamos de onde
havíamos parado. Ele não fugiria de mim e eu não aceitaria me afastar dele.
Estávamos nessa juntos e nada mais importava.
Antes de finalmente me enfiar embaixo das cobertas, enviei outra
rápida mensagem para Serena, dizendo que explicaria tudo quando nos
encontrássemos para o treino. Ela me respondeu com emojis de carinhas
frustradas como resposta.
Quando finalmente peguei no sono, eu sonhei. Não um pesadelo.
Fidlys mortas e Vicenzo nem mesmo rondaram minha mente. Mas eu
sonhei. Sonhei com Nathan e seus olhos azuis tão lindos. Sonhei com
memórias enclausuradas em minha mente de quando éramos apenas
crianças, brincando no Lago, contando histórias de terror durante noites de
fogueira em frente à minha casa... Então, éramos adolescentes e ele me
beijava, enquanto a chuva caía sobre nossas cabeças.
Era eu e Nathan. Éramos passado e presente.
E era o melhor sonho que já tive.

Serena apareceu em minha porta com o raiar do sol. Era um


eufemismo gigantesco dizer que ela estava animada. Quando contei sobre
Nathan e o que havia acontecido na noite passada, ela me encheu de
perguntas sobre como eu tinha me sentido. E como eu me sentia? Eu me
sentia extasiada, ansiosa e completamente perdida por ele.
— Estou feliz por você, Aly — ela me disse.
Eu sorri.
— Eu também.
Zeus nos seguiu para fora da cabana, em direção ao refeitório, onde
encontramos Jonnah e Roman. Não comentei nada sobre Nathan, não ali.
Eu sabia que ainda havia muito entre Nathan e Roman. Eu, inclusive,
precisava perguntar ao primeiro o que tinha acontecido na noite que deixou
o Outro Lado, depois que recebeu sua tatuagem. Algo não encaixava na
história contada por Roman e como Ravenna estava envolvida, eu tinha
certeza de que algo estava errado. Pelo menos eu torcia para que esse fosse
o caso.
Mais tarde, o cachorro continuou me seguindo para onde quer que
eu fosse. Metade dos Protetores pareciam estar com uma ressaca dos
infernos, escondendo-se da luz do sol ou se jogando nos bancos do ginásio,
incapazes de treinar. Aqueles que ainda receberiam a tatuagem estavam
ainda mais deploráveis. Era cômico, visto que eu quase nunca tinha a
chance de vê-los como qualquer coisa além de guerreiros sérios e rígidos.
— Se não melhorarem as expressões de doentes, não duvido que a
própria Cassandra ordene atrasar a Cerimônia de Iniciação — Roman
murmurou, observando os jovens ainda tentando se alongar.
Mesmo de ressaca, eles não pareciam em nada com adolescentes. A
maioria era pelo menos um ou dois anos mais novos que eu, mas eu não
afirmaria isso apenas olhando-os. Na verdade, eu só tinha certeza disso
porque haviam me falado que os Protetores recebiam suas tatuagens aos
dezesseis anos de idade.
— Quando será a cerimônia? — perguntei.
Jonnah buscou uma espada para mim. Argh. Eu odiava espadas.
Jasper e Nathan ainda não haviam chegado, então tudo indicava que eu teria
que começar o treino com meus amigos, o que não era de nada ruim,
tirando o fato do meu primo ter escolhido justamente a arma que eu mais
odiava. Eu ainda não entendia porque não usavam armas de fogo. As
Guardiãs poderiam tentar criar algo como as lâminas especiais em forma de
balas.
— Ocorrerá sexta-feira — meu primo respondeu, enquanto eu
agarrava a espada.
— Já?
— É Ravenna quem decide a data anual e como você está há alguns
meses de completar dezoito anos, ela acha melhor que tenhamos Protetores
prontos para o possível conflito — Serena explicou.
— Conflito? Eu pensei que eu só teria que matar Vicenzo. Sozinha,
já que sou a única que tecnicamente pode.
Matá-lo e morrer no processo, ao que tudo indicava.
— Quando você receber seus poderes, Vicenzo não vai
simplesmente aparecer na sua frente e esperar que o mate. Provavelmente
teremos que invadir Florença, ou fazê-lo vir até nós — Roman esclareceu.
— E quando matá-lo, nós teremos chance de atacar os Desertores com uma
vantagem.
Eu esperava que não contassem comigo para a segunda parte do
plano.
— Como é a cerimônia? — perguntei, mudando de assunto.
— Eu não sei aqui — Jonnah começou —, mas na Grécia nós nos
reunimos em volta de uma fogueira e Freya nos marca com a tatuagem. O
processo é chato, mas Freya pelo menos é rápida. Ela parece odiar se reunir
com os Protetores.
— Ela provavelmente ainda se envergonha pelo que aconteceu —
Serena comentou, me dando um aceno para que eu atacasse usando a
espada.
— Ela não tem culpa por Vicenzo ser um psicopata manipulador —
defendi a Guardiã. Ela com certeza havia errado, mas tinha feito por amor.
Vicenzo tinha feito por ganância.
Roman bateu em meu ombro, pedindo que eu o ajeitasse
apropriadamente ou a espada nunca alcançaria o alvo com força o suficiente
para perfurar.
— Aqui no Outro Lado nós nos reunimos em volta da fonte.
Cassandra joga um feitiço sobre ela, fazendo-a brilhar e se mover como se
estivesse viva. É legal. Mas ela também não costuma se prolongar. Logo
nós recebemos a tatuagem e podemos comemorar bebendo e pulando no
Lago — Roman nos contou.
Eu cortei o ar, próximo ao tronco de Serena, que pulou para o lado
oposto.
— Acho que esse ano vai ser ainda mais simples. Os Protetores mais
velhos estão ocupados demais com os ataques dos Desertores, cada vez
mais próximos do Lago, para se preocuparem em comparecer. — Serena
disse, um pouco sem fôlego, mas mantendo os golpes regulares. Eu a
continha com facilidade, recebendo algumas investidas e me desviando de
outras. O combate era direto e próximo, mas só porque eu podia usar aquela
agilidade para escapar e atacar.
— Eles sabem que estou aqui. Por que diabos perdem tempo
perambulando pelo Lago?
Serena baixou a espada. Jonnah e Roman se aproximaram,
parecendo confusos com a minha pergunta.
— Há inúmeras respostas para isso — Serena murmurou.
— Darei duas simples — Jonnah disse, erguendo um dedo. — Um,
eles ficam mais próximos de você, para quando você finalmente deixar esta
dimensão. — Então, ergueu outro dedo. — Dois, e acho que você se
esqueceu dessa importante informação: o Tesouro está escondido e
guardado no Lago. Não espero, por um segundo, que Vicenzo tenha se
deixado esquecer dessa informação.
Ah. Eu quase sempre me esquecia. O Tesouro estava escondido e
guardado (provavelmente sob muita magia de proteção, como aquelas que
rondavam essa subdimensão) para nunca, jamais, ser tocado. Era o que o
Destino ordenou que acontecesse. E era o que Vicenzo desejava para si, na
esperança de que pudesse subjugar aquele mundo inteiro e dominá-lo a seus
desejos.
O que quer que o Tesouro fosse, devia reter muito poder.
— Eu pensei que seria mais reconfortante lembrar que os Desertores
têm mais o que caçar além de mim. — Estalei a língua, encolhendo os
ombros. — Eu sempre me surpreendo com a minha capacidade de errar.

Na hora do almoço, meu pai me encontrou a meio caminho para


minha cabana. Serena se despediu com um aceno para meu pai e um abraço
em mim. Assim que me aproximei, Henry abriu um largo sorriso e beijou
minha testa. Ele disse, então, que me acompanharia até em casa.
Nós entramos em minha cabana. Zeus, claro, ainda me seguia, já
que Nathan ainda não havia aparecido ou enviado uma nova mensagem. Eu
estava tentada a enviar uma para ele, mas esperaria até depois do almoço
para caso ele aparecesse.
— Então você não veio me pedir para ficar longe de Nathan?
Meu pai foi direto para minha pequena cozinha. Seus óculos caíam
um pouco no nariz e ele ergueu uma sobrancelha para mim.
— Eu vim preparar um chá para nós tomarmos juntos — ele disse,
já preparando a chaleira. — Não pretendo insistir em algo que não trará
resultado, não é mesmo?
Eu mordi o lábio.
— Eu gosto dele, pai.
Ele assentiu.
— Eu sei.
Talvez ele soubesse também que eu gostava dele antes. Foi por isso
que tinham bloqueado nossas memórias, não é? Porque nós nos recusamos
a nos separar, principalmente sabendo da verdade sobre o que eu era (que
Nathan mesmo me contou).
Eu balancei a cabeça e segui para a geladeira, procurando algo para
comermos.
— Sua mãe chegará com sanduíches — meu pai informou.
Fechei a geladeira, dei meia volta e sorri para ele, satisfeita.
— Ótimo. Não tenho nada aqui.
Como se tivesse nos escutado, minha mãe adentrou a cabana com
uma vasilha cheia de sanduíches dentro. Quantas pessoas ela pensava que
teria que alimentar?
Mamãe me cumprimentou, deixando um beijo em minha bochecha e
deu um selinho nos lábios do meu pai. O chá ficou pronto e ele veio para a
mesa. Minha mãe começou a preparar a mesa, parecendo um pouco tensa,
lançando olhares curtos para meu pai, que tentava disfarçar.
— O que foi? — questionei.
Meu pai inspirou.
— Eu sei que você sabe sobre a teoria das Guardiãs, Alyssa — meu
pai começou. — Mas é apenas uma teoria.
Eu desviei o olhar. Eu não queria falar disso. Não queria pensar
naquela maldita teoria que muito provavelmente era verdade. Afinal,
quantas vezes as Guardiãs estavam erradas sobre algo? E o pior: fazia
sentido.
— Eu estou trabalhando nisso, Aly. Antes mesmo de enfrentá-lo, eu
terei uma resposta para lidar com isso. Estou procurando por algo que,
mesmo que as Guardiãs estejam certas, poderá ajudar você —meu pai
afirmou, sério e determinado. O punho estava cerrado sobre a mesa. —
Você não vai morrer por isso, filha.
Eu inspirei fundo, fechei os olhos por um segundo e assenti.
Meus pais queriam acreditar que havia um jeito para que eu
sobrevivesse. Parte de mim queria acreditar também, mas a outra se
recusava a ser iludida mais uma vez. Eu já tinha achado que minha vida
estaria garantida depois que eu fizesse dezoito anos e caí do cavalo
fenomenalmente. Não queria ignorar a realidade mais.
Mas meus pais mereciam esses últimos meses de paz. Eles tinham
feito tudo por mim. Sacrificado uma vida inteira para me manter segura.
Mesmo que tivessem mentido e feito coisas das quais nunca aceitarei, eles
fizeram tudo por amor. Mereciam ter esperança se isso facilitasse as coisas.

Meus pais deixaram minha cabana logo após o almoço. Minha mãe,
pelo que parecia, tinha uma reunião com Ravenna. Sobre o que? Eu não
tinha ideia e também não sabia se queria saber.
Aproveitei para limpar meu quarto, enquanto esperava Jasper chegar
para meu treino com ele, já que todos os meus amigos estavam ocupados
com alguma tarefa durante a tarde. Eu estava guardando algumas roupas
limpas nas gavetas do meu armário quando Zeus latiu. Eu me virei e
caminhei até o parapeito que contornava meu quarto, que ficava no andar
superior. Alívio e saudade apertaram minha garganta como se eu não o
visse há dias.
Nathan estava parado em frente à porta, agachado sobre o joelho e
fazendo carinho em Zeus, que balançava o rabo euforicamente, lambendo o
rosto do dono.
— Sinto que você está a um passo de roubar o meu cachorro — ele
disse para mim, enquanto sorria para o animal.
Eu desci as escadas, ajeitando minha trança como uma idiota.
— Não é minha culpa que ele me ama.
Nathan ficou de pé, observando enquanto eu me aproximava.
— Realmente — disse baixinho, os olhos presos em mim.
Não tive que pensar muito na situação constrangedora que poderia
recair sobre nós. Nem deu tempo de pensar se eu deveria cumprimentá-lo
com um beijo ou um abraço. Assim que me aproximei o suficiente, ele deu
um passo à frente, fechando a distância entre nós, e passou o braço pela
minha cintura. Nathan me puxou para si e, com um sorriso nos lábios, colou
a boca na minha.
Apesar da intensidade do beijo, não durou muito. Logo ele se
afastou, passando os dedos pelo cabelo e inspirando, como se por um
segundo tivesse esquecido sua missão ali.
— O que foi?
Suas mãos ainda estavam em minha cintura quando disse:
— Jasper vai chutar minha bunda se souber que fiquei enrolando ao
invés de treinar você — murmurou, coçando o pescoço. Ao fazer isso, pude
ver seu bíceps flexionar e... meu santo Deus. Ele não estava usando o
casaco de couro, apenas uma camiseta preta e as calças do uniforme, além
do coturno usual. — Ele está ocupado então me mandou no lugar dele —
explicou, por fim.
Mordi o lábio.
— Então sem beijos.
Ele encarou minha boca por longos segundos.
— Sem beijos — disse, quase a contragosto.
Eu bufei uma risada.
— Certo, certo. E onde vamos treinar?
— No meu lugar favorito nesse manicômio que chamamos de Outro
Lado.
Dessa vez eu ri.
Eu sabia sobre qual lugar ele estava falando.

Zeus havia ficado dormindo em minha cabana quando saímos.


Dessa vez, para adentrar a montanha foi mais fácil, já que eu sabia que não
iria enfiar minha testa em nenhuma rocha pelo caminho.
Nathan fez o caminho até o refletor que ele mantinha ali e o ligou. A
luz adentrou o espaço cavernoso e fui capaz de enxergar as estalactites
descendo pelo teto rochoso. Sempre me impressionava a visão do pequeno
lago ali dentro, que provavelmente era um resquício daquele do lado de
fora. Agora de manhã, era possível encontrar um fino feixe de luz que
descia do topo da montanha, muitos metros acima.
Era lindo e exótico.
Nathan me pegou observando e eu corei com seus olhos em mim.
Ele parecia... feliz. Eu lembrava de pensar que ele sempre parecia meio
sombrio, como se estivesse guardando tanta raiva dentro de si que aquilo
tirava suas energias. Mas agora, enquanto me observava, parecia leve. E
feliz. E eu amava isso. Amava ainda mais ter sido quem havia provocado a
mudança.
Contei a ele sobre o treino de manhã, e fiz questão de me gabar,
falando sobre ter derrubado Jonnah e Serena. Orgulho brilhou nos olhos de
Nathan quando expliquei os movimentos que eu tinha usado.
Meus poderes, herdados dos Protetores, eram bastante convenientes.
Apesar de estarem presentes em meu sangue, eles não vinham
naturalmente, como era o caso dos meus amigos. Eu quase nunca quebrava
algo apenas porque me esqueci de minha força, e nunca havia corrido
rápido demais sem nem perceber. Para mim, aquele poder era um processo
de concentração. Eu precisava buscar ativá-lo para que funcionasse. Por
isso, estar no controle e ser capaz de utilizá-lo em um treino inteiro, era
uma grande razão para eu me orgulhar.
Nathan me disse o quanto estava orgulhoso do meu
desenvolvimento e, como prova disso, depositou um rápido beijo em meus
lábios.
— Você e Jonnah parecem se dar bem — ele comentou. — Vi vocês
ontem na festa e pareciam felizes. Como foi descobrir que ele era seu
primo?
Eu abri um sorriso honesto.
— Foi muito bom — falei. — Jonnah é uma pessoa incrível e estou
feliz que minha família tenha mais um membro.
Nathan assentiu.
— Eu de fato ouvi muitas coisas boas sobre ele.
Arqueei uma sobrancelha.
— Você esteve procurando informações sobre meu primo?
Ele deu de ombros.
— Quando ouvi sobre o parentesco, decidi me certificar que você
estava a salvo perto dele e que ele não era apenas um fantoche de Akantha.
Balancei a cabeça, achando graça.
— Jonnah iria chutar sua bunda por duvidar dele. — Nathan me
lançou um olhar divertido e, ao mesmo tempo, arrogante. Ele achava que
ninguém pudesse ser capaz de chutar sua bela bunda. Suspirei e perguntei:
— Como foi a missão?
Ele piscou.
— Entediante.
Eu ri.
— Então você não se machucou, não é? E nem Jasper.
Nathan se aproximou, o olhar arrogante brilhou em seus olhos.
— Nos dê algum crédito, Aly.
Revirei os olhos.
Bati as mãos juntas e flexionei os joelhos, posicionando-me para o
ataque.
— Então, vamos treinar ou não? — provoquei.
Nathan me cercou, caminhando à minha volta lentamente, mas a
cada passo que ele dava, eu me posicionava para enfrentá-lo de frente. Um
sorriso torto e arrogante nasceu em seus lábios. Ele havia me dito que hoje
treinaríamos combate corpo a corpo e eu estava feliz em não precisar usar a
espada novamente.
— Mostre o que você sabe fazer, linda.
Eu engoli o apelido com carinho, meu coração batendo duas vezes
mais rápido.
Então, eu ataquei.
Ele interceptou meu golpe antes que eu pudesse causar algum
estrago, mas não me demorei para tentar outro. Busquei toda aquela força
sobrenatural em mim e fechei meus punhos à sua volta, controlando-a.
Golpe após golpe, nós circulamos a caverna e eu estava orgulhosa de mim
mesma porque, pela primeira vez, eu parecia realmente estar cansando
Nathan. Eu não estava apenas me defendendo. Eu estava lutando e estava
boa o bastante para que ele não conseguisse me parar ainda. Esses meses no
Outro Lado tinham vindo a calhar.
Uma vez ou outra ele me informava sobre algum erro, mas nada
muito grande. O suor escorria pela minha nuca e minha respiração estava
cada vez mais cansada com o passar dos minutos. Mas eu estava amando.
Estava sendo boa naquilo e era uma satisfação gigantesca ver que eu tinha
aprendido com os treinos infernais dos últimos meses.
Em algum momento, consegui derrubá-lo no chão, prendendo seu
pescoço com minhas pernas e puxando seu braço para cima. Com um
impulso para o lado, ele girou o corpo e, de alguma forma absurda, foi
capaz de se afastar do meu aperto, agarrando meu braço e o prendendo atrás
do meu corpo. Eu girei, com destreza, e me coloquei de pé, empurrando-o
para longe.
Acho que horas se passaram, porque aquele feixe de luz vindo do
topo da montanha se tornou mais fraco. Quando eu já estava cansada,
Nathan, por fim, conseguiu me prender contra a parede rochosa, o rosto tão
perto do meu que pensei que me beijaria.
— Isso foi bom — disse.
— Eu sei — falei, convencida.
Ele riu.
— É bastante excitante vê-la lutar bem.
Eu cerrei meus olhos, fogo queimando seu caminho pelo meu
estômago.
— Está dizendo que eu não lutava bem antes?
Nathan se aproximou um centímetro.
— Quem disse que não era excitante antes?
Mordi meu lábio. O ar parecia rarefeito e, estar presa contra a
parede, com Nathan segurando minhas mãos, fazia meu corpo todo rugir
por ele. O que ele estava fazendo comigo? Eu mal conseguia me concentrar
o suficiente para focar em qualquer coisa, além de seus olhos ou sua boca.
— Eu sonhei com você — sussurrei, meu hálito atingindo seu
queixo.
Curiosidade ascendeu em seus olhos azuis.
— É mesmo?
Assenti.
— Acho que foi uma lembrança — disse, mas então corrigi: —
Tenho certeza que foi uma.
— E o que viu?
— Vi nós dois brincando quando crianças. — Ele me observava
atentamente, as mãos ainda me prendendo, quase como se fosse incapaz de
me soltar. — Também vi quando me beijou pela primeira vez.
Ele sorriu descaradamente.
— Bons tempos.
— Metido.
Nathan riu. Não. Nathan gargalhou. Era o som mais maravilhoso
que eu já tinha ouvido. Profundo, meio rouco e tão verdadeiro. Foi naquele
momento, olhando em seus olhos azuis brilhando e ouvindo aquele som,
que fui honesta comigo mesma e corajosa o suficiente para admitir: eu
estava apaixonada por ele. Talvez tivesse me apaixonado ainda mais depois
daquilo.
E, por algum milagre do Destino, alguma benção superior, eu podia
jurar ver o mesmo nos olhos dele.
Ele se abaixou, pairando os lábios sobre os meus. Eu fiquei parada,
esperando que me beijasse. Mas, de repente, ele soltou minhas mãos e
agarrou minha cintura, puxando-me para cima. Um gritinho vergonhoso
escapuliu pelos meus lábios e eu enrolei meus braços em seus ombros e
minhas pernas em sua cintura.
— Nathan! O que você está fazendo?
Ele não respondeu. Correu comigo até a borda do pequeno lago sob
aquela fresta de luz e pulou na água antes que eu tivesse tempo de protestar.
Nós afundamos, ele ainda me segurando firme e, então, emergimos
juntos.
Eu o fuzilei.
— Eu vou matar você.
— O que? Nós estávamos suados como porcos. Merecemos nos
refrescar.
— Eu estou de roupa! — protestei, batendo em seu peito.
Ele me lançou um olhar falsamente inocente.
— Realmente. Não quero que fique com essas roupas pesando seu
corpo. Eu voto para que você as tire.
Eu mordi o lábio, as bochechas queimando. Mas não era por
vergonha do que ele havia dito, era vergonha pelas coisas muito gráficas
que se passaram pela minha mente. Eu não me importaria em nada em ficar
pelada com ele.
— Só se você ficar também — retruquei.
Seu olhar se transformou em fogo ardente.
— Nada justo, linda.
Ele colou a boca na minha com desespero. Com paixão. Nathan
chupou meu lábio inferior e eu abri a boca para que ele me tocasse com a
língua. Agarrei seus cabelos e o puxei contra mim, suas mãos ainda
enterradas em minha cintura.
Eu me permiti viver naquele beijo. Respirar e me afogar nele ao
mesmo tempo. Senti toda a urgência daquele sentimento que parecia querer
sair pela garganta. Senti a adoração de Nathan, mesmo que ele não usasse
palavras. Quando deixou meus lábios e fez uma trilha pelo meu queixo até
meu pescoço, eu arranhei seus ombros sobre a camiseta. Nathan enfiou uma
mão por baixo da minha blusa encharcada, tocando minha pele nua e
quente, e agarrou meu cabelo com a outra, fazendo com que eu arqueasse
meu pescoço da maneira que ele queria. Eu senti sua língua correr pela
minha pele e ofeguei em resposta.
Puxei a barra da sua blusa e ele permitiu que eu a tirasse pela sua
cabeça. Joguei a roupa na borda do lago, sobre a rocha, fazendo o
estampido ecoar pelas paredes daquela montanha.
Nathan me observou encarar seu peito como se fosse a obra de arte
mais linda de todas. A água tocava metade da sua barriga, mas eu ainda
podia ver com clareza todos os cumes do seu abdômen. Tracei meus dedos
pelo seu ombro e, então, pelo seu peito forte. Desci as mãos, percorrendo o
caminho até os gominhos de sua barriga.
— Isso aqui que não é justo — murmurei. — Você não podia ter
algum defeitinho?
— Eu estou cheio de cicatrizes, Aly.
De fato, estava. Haviam cicatrizes pelo seu peito e tronco, algumas
mais profundas ou novas do que outras. Mas ainda assim ele era perfeito.
— Continua perfeito — sussurrei, agora descendo as mãos até a
tatuagem em seu abdômen. A tatuagem dos Protetores.
Era uma tatuagem incomum, difícil de definir. Parecia chamas, mas
ao mesmo tempo poderia lembrar raízes, subindo pelo final da sua cintura,
até a linha de seu umbigo.
Subi meus olhos para ele, que me observava como se eu fosse algum
tipo de ilusão pessoal. Aqueles lagos azuis pareceram me afogar quando ele
disse:
— Imagine então o que eu penso quando olho para você.
Meu coração batia descontroladamente contra meu peito.
— O que pensa? — perguntei, em um sussurro.
Ele beijou minha boca, apenas um selinho.
— Penso que é a coisa mais linda que já vi. A pessoa mais linda, por
dentro e por fora. — Seus dedos acariciaram meu rosto, a linha do meu
maxilar. — Eu sabia que seria você, mesmo quando éramos crianças. Sabia
que não haveria outra pessoa no mundo que pudesse ser melhor que você
para mim.
Então, sem conseguir me conter, eu o beijei.
Eu me sentia tão viva. Como se eu tivesse sido ligada na tomada. Eu
era pura emoção e era a melhor coisa que senti em toda minha vida. Não era
dor. Não era desespero. Não era vazio ou solidão. Era vida.
E eu queria tudo da vida. Queria tudo dele.
— Quero fazer isso — disse, com os lábios colados nos dele. —
Quero experimentar esse lado da vida antes que seja tarde demais.
Nathan tirou a boca da minha subitamente. Só então percebi o que
tinha dito. Como tinha dito. Como se eu fosse morrer logo.
As sombras tomaram a luz brilhante dos olhos azuis, do garoto pelo
qual eu estava apaixonada. Seu maxilar ficou tenso, assim como todo seu
corpo.
— O que isso quer dizer?
Eu desviei o olhar.
— Nada. Só estou dizendo que caso aconteça alguma coisa, eu
quero ter vivido o máximo dessa vida.
Ele cerrou os olhos para mim.
— Nada irá acontecer, Alyssa.
Eu suspirei.
Eu nunca conseguiria dizer a ele. Sabia disso, apenas ao olhar para
seu rosto ferido. Talvez, por isso, eu nunca fosse capaz de me despedir. Mas
eu, com certeza, iria aproveitar o tempo que ainda tínhamos juntos.
Isso me fazia egoísta e mesquinha, eu sabia.
Mas não queria me importar.
— Tudo bem.
— Não — ele disse, baixo e frio. — Não está tudo bem. Você não
pode continuar pensando que irá morrer. Logo você fará dezoito anos e tudo
isso acabará.
Acabará mesmo. Só que de um jeito provavelmente diferente do que
ele esperava.
— Tudo bem — eu repeti.
Dessa vez, ele se afastou de verdade, baixando as mãos que ainda
me seguravam, o olhar ferido como eu nunca tinha visto.
— Acho que devíamos ir embora agora.
Meu estômago afundou. Eu era uma idiota. Ele provavelmente
pensava que eu o estava usando para qualquer fim que eu quisesse. Mas
apesar de eu querer mesmo fazer tudo com ele, eu estava fazendo aquilo
porque queria ele. Não podia ser mais ninguém. Não era só porque eu não
queria morrer virgem ou qualquer besteira do tipo. Eu queria aquilo, porque
estava perdidamente apaixonada por Nathan.
E tinha estragado tudo.
Depois que Nathan me deixou na porta da minha cabana, ele foi
embora, apenas dizendo que ficaria na sua própria cabana pela noite. Não
ouvi nada dele, até que fosse tarde do dia seguinte.
Minha mãe tinha saído para averiguar alguma coisa na dimensão
original do Lago e meu pai ficou me observando, enquanto eu treinava.
Jasper estava de volta, mais exigente do que nunca. Eu desconfiava que, o
que quer que tivesse acontecido em sua última missão, tivesse o assustado
suficiente para se tornar dez vezes mais rígido nos treinos. Pelo menos,
nenhum dos meus amigos estavam lá para me ver suando, como se eu
estivesse há dias no deserto.
Sempre que Jasper brigava comigo por um passo em falso ou um
golpe que ele considerava mal feito, mas que não tinha nada de errado, eu
me lembrava de sua história. Lembrava que ele provavelmente ainda
desejava poder voltar no tempo e ter treinado mais a filha e ter estado lá
com ela quando tudo aconteceu.
Quando finalmente fui dispensada, fiquei surpresa ao encontrar meu
pai sentado com Nathan. E eles estavam conversando.
Aproximei-me dos dois, enquanto eu embainhava minha adaga no
cinto. Os dois ergueram a cabeça para me olhar quando parei à sua frente,
mas Nathan ainda parecia distante.
— Oi, filha — meu pai cumprimentou. — Seu treino já acabou?
Assenti.
— Jasper me disse para aprender a usar meus pés, antes de tentar
lutar. — Dei de ombros. — Homem exigente.
Nathan quase sorriu.
— Tenho certeza de que ele está exagerando um pouco — meu pai
me assegurou. — Você estava indo bem.
De fato, o Protetor exagerou um pouco.
— Sobre o que estavam falando? — perguntei, por fim.
— Eu e Nathan estávamos apenas colocando os assuntos em dia —
Henry respondeu, batendo nas costas de Nathan, como se fossem
camaradas. — Aliás, vou pedir que ele faça a guarda pelo resto da noite.
Preciso encontrar sua mãe e resolver alguns assuntos.
Eu o encarei, surpresa. Ele estava me dando permissão explícita
para ficar com Nathan? Para que Nathan ficasse encarregado de me
proteger? O céu tinha queimado e eu não estava sabendo?
— Hum, ok.
Meu pai beijou minha testa e saiu, deixando-me sozinha com
Nathan. Bem, não exatamente sozinha, desde que haviam outros Protetores
treinando, que tinham parado apenas para nos observar. Inclusive Lirya,
com quem eu não falava há semanas. Não que tivéssemos muito sobre o
que conversar de qualquer forma.
— Vamos sair daqui — ele pediu, dando-me as costas e caminhando
para longe da área do treino.
Sem dizer nada, eu o segui.
Nós percorremos a área das cabanas até a praça central, onde a fonte
com a mulher se erguia exibindo reflexos do pôr do sol. Andamos até a
margem do Lago e caminhamos pela costa. Ele não parecia ter um objetivo
específico. Parecia apenas passar o tempo daquela forma.
— Onde está Zeus? — perguntei.
Nathan não se virou ao responder.
— Ele estava cansado então ficou na cabana. Acho que está ficando
velho para ficar me seguindo o tempo todo.
Dei passos mais largos para ficar ao seu lado, enquanto
caminhávamos. De canto de olho, eu o observei. Os olhos azuis estavam
fixos no caminho à nossa frente, os ombros tensos.
— Ainda está bravo comigo?
— Não estou bravo.
Eu suspirei. Não acreditava naquilo.
— Então o que foi? Você mal consegue me olhar.
Ele parou de andar de repente. Com o cenho franzido, Nathan se
virou para me encarar.
— Eu estou frustrado.
— Por que?
— Porque não importa o que eu faça, você ainda insiste em agir
como se fosse morrer. Não importa quantas vezes eu a treine, ou o quanto
você evolua, ainda não confia em si mesma.
Eu o encarei, sem reação.
— Não é isso...
— Então o que é? Sou apenas o garoto que está usando para se
divertir, Alyssa? O excluído do qual você tem pena?
— Eu não tenho pena de você. E você não é excluído de nada, você
escolhe se manter longe de todos.
Ele bufou.
— Por favor, Alyssa, apenas seja sincera quando quiser algo de mim
e não culpe seus medos infundados para isso.
Infundados? Ele não tinha ideia no que meus medos se baseavam.
— Eu não estava usando você!
Ele desdenhou.
— Posso aceitar ser usado por você, contanto que eu tenha
conhecimento disso.
Eu trinquei os dentes. Ele só podia estar de brincadeira. Eu queria
muito enfiar a cabeça dele no Lago para ver se talvez ele descobrisse o
senso que havia perdido nas águas. E estava prestes a fazer isso mesmo
quando fomos interrompidos por vários Protetores adultos caminhando em
direção à passagem, que os levaria até a dimensão original.
Eram muitos. Vinte. Talvez mais.
Atrás deles, Serena nos viu e caminhou até nós.
— O que está acontecendo? — questionei.
— Muitos Protetores receberam ordens de vasculhar a cidade,
buscando por Desertores. Estão dizendo que é melhor ficarem de guarda
para que não cheguem ao Lago — minha amiga explicou.
— São todos os Protetores que temos desde que outros foram
enviados semana passada — comentei. — Só vão restar aqueles em
treinamento.
— E Ravenna — Jonnah disse, aparecendo atrás de nós. — E
Akantha. Bem, Jasper e seus pais também. Alguns outros Protetores mais
velhos como nós. — Ele apontou para si mesmo, Serena e Nathan.
— Roman foi enviado também? — perguntei, não o encontrando em
lugar algum.
— Não. Ele está com Jasper, acho — Serena disse.
Nathan estava estranhamente quieto, observando os Protetores que
sumiam no Lago.
— No que está pensando, Cross? — Jonnah questionou.
Nathan apenas balançou a cabeça, mas se virou para meu primo.
— Eu nunca pensei muito nisso, mas agora eu não consigo parar de
tentar entender...
— O que? — eu e Serena perguntamos, ao mesmo tempo.
— Os Desertores tentaram encontrar você por alguns anos, mas
sempre foi esporadicamente. Seu pai hoje mesmo me contou que logo ao
deixar o Lago, vocês foram atacados — disse, pensativo. Nós fomos? Eu
também não me lembrava daquilo. — Não é estranho que eles não tenham
feito nada grande? A esse ponto, Vicenzo já devia vir ao Lago
pessoalmente, mas ainda assim ninguém o viu.
— Talvez ele esteja com medo — Serena refletiu.
— Há Desertores espalhados pela cidade, Nate. Mesmo que ele não
esteja aqui, já está pronto caso algo aconteça — eu disse.
— Mas ele não está agindo — insistiu. — Minha mãe não tinha nem
dezessete anos quando ele veio pessoalmente tentar matá-la. Ele deveria
estar fazendo absolutamente tudo para encontrar e matar você.
Ah, bom saber.
O medo apertou minha garganta com garras fortes.
— Ele não está com medo — Jonnah concluiu, tão pensativo quanto
Nathan.
— Não — Nathan assentiu, olhando nos meus olhos. — Ele só
mudou o plano e nós não temos ideia de qual é.
Serena acabou caminhando comigo até a cabana quando Nathan
decidiu averiguar o perímetro com Jonnah, buscando por qualquer coisa que
pudesse lhes dizer o que Vicenzo estava esperando para atacar de verdade.
Seria o Tesouro? Ou algo tinha acontecido?
Nathan estava certo. Com Diana, que nem havia chegado tão perto
quanto eu dos dezoito anos, Vicenzo a encontrou e a manipulou até que ela
aceitasse duelar com ele. O Desertor imortal podia muito bem tentar entrar
em contato comigo, poderia tentar me levar para fora do Outro Lado para
que ele pudesse finalizar seu trabalho.
De qualquer forma, eu preferia pensar que independente do porquê,
eu ainda estava viva — então pontos para mim!
— Você está muito calada — Serena comentou, ao chegarmos na
cabana. — Está tudo bem?
— Estou bem.
Ela parou, colocando as mãos na cintura.
— Mesmo que Nathan esteja certo, isso não quer dizer que qualquer
que seja o novo plano de Vicenzo, seja bom.
Eu balancei a cabeça.
— Não é isso.
— Então qual o problema?
O problema era que eu tinha pouco tempo, Vicenzo vencendo ou
não esta guerra. O problema era que Nathan achava que eu o estava usando.
Também havia Akantha preparando um motim para transformar os
Protetores em seres imortais. Havia Ravenna, quem eu não confiava nem
por um segundo. O problema era que havia tantos problemas que eu só
queria passar o dia na cama.
— Só estou cansada e sinto que estou perdendo o controle da minha
vida.
Serena me analisou, parecendo entender exatamente do que eu
estava falando.
— Então você deve fazer o seguinte: tome um banho quente, coma
alguma coisa. Depois, pegue essa sua bunda grande e empinada e vai tomar
o controle da sua vida de volta. Porque se você não fizer isso, Alyssa,
ninguém mais fará por você.
Ela estava certa. Eu estava cansada de todos ao meu redor
parecerem saber mais sobre tudo do que eu e quererem me controlar, cada
um à sua forma. Ninguém me entregaria as rédeas da minha vida e diria:
“tudo bem, agora viva”. Era eu quem precisava tomar as decisões que eu
queria tomar. E era necessário deixar extremamente claro aquilo que eu
queria, que eu sentia, que eu precisava.
Então foi isso que fiz.
Eu estava tremendo, mas não era de medo. Ansiedade, talvez.
Depois que Serena foi embora, eu tomei um banho, comi um
sanduíche e coloquei um vestido de verão que, com sorte, era bonito e
fresco ao mesmo tempo. Então, saí da minha cabana e segui o caminho que
lembrava, vagamente, terminar na cabana de Nathan, não muito longe dali.
Quando cheguei, pensei em bater à porta, mas desisti. Nathan nunca
batia antes de entrar em minha cabana, então ele merecia o mesmo
tratamento. Se eu o pegasse apenas de cueca enquanto roncava, eu diria ser
karma.
Entrei na cabana, que de fato estava destrancada, e descobri que eu
praticamente não me lembrava daquele lugar. Da última vez que havia ido
ali, eu estava tão atormentada pelo que eu havia feito e pelo que Ravenna
havia me contado, que eu mal fui capaz de assimilar qualquer coisa que não
fosse Nathan e alguns relances do banheiro.
Mas agora eu reparei em tudo. Não era muito diferente da casa do
Lago, sendo tão vazia quanto. Eu apostava que Brian, assim como Nathan,
quase não passasse tempo no Outro Lado. Ele, inclusive, estava em sua
secreta e, ao mesmo tempo, famosa, missão. Tudo o que eu podia ver que já
não pertencia à cabana naquela sala e cozinha eram alguns livros, que eu
acreditava serem de Nathan.
Diferente da minha cabana, aquela não tinha um andar superior para
um quarto. Ao contrário, um corredor se estendia, onde eu conhecia estar o
banheiro. Ouvi o barulho do chuveiro ligado ao mesmo tempo que avistei
Zeus, deitado esparramado no sofá de couro da sala.
Ele ergueu a cabeça para mim, esperando que eu o notasse e desse
algum carinho. Com um sorriso, fui até ele e afaguei sua cabeça. O
cachorro realmente parecia cansado, ou no mínimo preguiçoso, porque não
pulou nem me seguiu em direção ao corredor. Preferiu baixar a cabeça e
voltar a cochilar.
A cabana tinha três quartos. Segui por aquele no qual eu ouvia o
barulho do chuveiro. Aparentemente, havia também mais de um banheiro.
Entrei no quarto quase escuro, com apenas um abajur ligado e encontrei
algumas mochilas de Nathan, uma escrivaninha bagunçada e um livro
aberto sobre a cama.
Peguei o livro. “A menina que roubava livros”. Um dos meus
favoritos. Folheei, relendo a parte onde Nathan parecia ter parado, uma
parte feliz ao menos. Havia diversos marcadores posicionados em
diferentes páginas e ele parecia ter lido aquele livro várias vezes. Um
rabisco na contracapa me chamou atenção.
Ali, com a minha letra cursiva, estava escrito em um post-it
desgastado pelo tempo:
De acordo com Markus Zusak: “há pessoas que nos roubam e há
pessoas que nos devolvem.” Para mim, você é as duas. Mas se não ler e
amar esse livro, vou repensar minhas prioridades. E se não o devolver, vou
chutar sua bunda.
Eu lembrava de ter lido aquele livro quando tinha catorze anos. Um
pouco jovem demais, talvez, mas eu me sentia pronta para ele. Chorei
horrores, mas nunca um livro me tocou tão poderosamente apenas com o
rearranjo de palavras. Eu o tinha perdido aos quinze anos. Ou eu pensava
que tinha perdido. Aparentemente, eu apenas o tinha emprestado para outra
pessoa.
Devo ter entregado a Nathan logo após nosso reencontro, que depois
foi esquecido. Forçado a ser esquecido.
Respirei fundo, sentindo tudo quanto é tipo de sentimento, enquanto
caminhava até a escrivaninha. Havia papéis e muitas armas ali,
esparramados. Mas uma foto nossa, aquela que ele havia me mostrado,
repousava encostada à parede.
Ouvi o chuveiro ser desligado e me virei para a porta do banheiro.
Meu coração batia desorientado. Não havia prova maior de confiança do
que eu ter emprestado meu livro — um dos meus preferidos — ao garoto
que esqueci. Eu era bem ciumenta com tudo que era meu e mesmo assim
compartilhei com ele.
E aquela confiança se fazia presente, praticamente marcada em
meus ossos.
Eu estava decidida a ter ele da maneira e pelo tempo que eu poderia
ter. Se ele me quisesse também.
A morte pairava sobre mim como um aviso mudo, mas constante e
pesado. Eu não precisava ouvi-la falar comigo, ou vê-la no decorrer do meu
dia. Ela era um fato para qualquer mortal. Assustadora para qualquer um.
Mas para mim, ela era um alerta da vida. Era como se dissesse: Acorde!
Este é o momento. Essa vida é tudo o que tem, então aproveite.
E assim, o medo não foi mais o impulsionador das minhas ações. Eu
não estava agindo por impulso ou despeito, como meu pai havia sugerido
quando me esforcei para ir ao festival na cidade. Não era porque eu queria
controlar a morte. Eu não me importava mais com isso. Mas eu queria,
precisava controlar minha vida. Precisava assumir as rédeas. Pedir e tomar
o que eu desejava.
Acho que estava tão apavorada com a ideia de terminar sozinha,
porque estive assim por todo o tempo que era capaz de me lembrar. Tirando
alguns vislumbres de Nathan, eu fui isso: esse móvel encostado na parede.
E eu estava ainda mais apavorada por ter encontrado a pessoa com quem eu
gostaria de passar todos os dias da minha vida, criar um futuro, porque eu
sentia que não seria capaz de voltar a me adaptar à solidão. Não sabia se me
acostumaria a ela novamente.
Nathan saiu do banheiro com o cabelo e tronco molhados. Uma
toalha estava enrolada em sua cintura, e outra tentava tirar o acúmulo de
água de seu cabelo. Deus, ele era lindo.
Mordi o lábio, coçando a marca em minha mão direita.
Quando ergueu os olhos e me encontrou ali, parada, ele pareceu se
assustar.
— Oi — eu disse.
— Oi. — Ele baixou a toalha do cabelo. — O que está fazendo
aqui?
— Eu quero falar com você.
Ele deu um passo à frente, como se me motivasse a continuar. Mas
seus olhos desceram pelo meu vestido, mal percebendo que ele próprio só
usava uma toalha. O fato de que ele parecia gostar do que via fez meu
coração acelerar.
— Estou ouvindo.
Eu lancei um olhar para o livro sobre sua cama.
— Você está com meu livro.
Não era bem isso que fui ali para dizer, mas foi o que saiu pela
minha boca, enquanto ele me inspecionava.
— Sim — respondeu, simplesmente, os olhos me queimando.
— Não ia me devolver?
— Eu ia. Mas então você foi embora e eles apagaram nossas
memórias. Eu não me lembrava que era seu. — Outro passo para mais perto
de mim. — Só fui lembrar que tinha guardado o livro alguns dias atrás,
então quis reler antes de devolver de vez.
Eu assenti.
— Ótimo.
Minhas mãos estavam suando. Enrolei meus dedos, raspando uma
palma contra a outra. Por que tinha que ser tão difícil falar o que estava em
nossos corações?
Respirei fundo. Ele aguardava pacientemente.
— Eu não estou usando você. Eu gosto de você — disparei. — Eu
tenho uma tendência idiota de falar coisas inapropriadas em momentos
inapropriados, mas se você for justo, vai entender que é porque não tive
muitas experiências sociais antes.
Quase suspirei quando vi sua boca se alargar em um sorriso.
— Tudo bem.
Mas eu continuei mesmo assim:
— Eu tenho meus medos, ok? Não vou deixar de tê-los só porque
você quer. Não é porque não confio em você ou mesmo em mim mesma. É
só algo que às vezes não consigo controlar, e acho que, dadas as
circunstâncias, é um medo considerável. Sinto muito se isso te frustra, mas
é a verdade.
Eu sabia que devia contar a ele sobre o que Ravenna havia dito.
Sabia que era o certo a se fazer, mas não conseguia me forçar a dizer as
palavras.
Nathan deu outro passo à frente. Eu poderia tocá-lo se esticasse o
braço.
— Eu não fui justo — admitiu.
— Não foi mesmo — concordei. — E o que eu sinto por você não
tem nada a ver com o que está acontecendo ao nosso redor. Fui atraída por
você muito antes de saber quem você era, ou quem eu era. — Seus olhos
brilharam, desejo e carinho queimando neles. — E eu lutei por você, até
quando você não me queria.
— Eu nunca não quis você — ele retrucou, depressa. — Eu só não
queria estragar tudo.
Eu assenti.
— Tudo bem. Eu entendo. — Fechei o espaço entre nós, pegando
sua mão e colocando sobre meu peito, onde ele podia sentir meu coração
bater. —Eu... — busquei pelas palavras aterrorizantes, sentindo a quentura
de sua pele. — Eu não consigo imaginar a vida sem você. É a coisa mais
clichê e idiota do mundo todo, mas mesmo assim é verdade. E talvez não
tenha nada a ver com o futuro. Quem sabe não tem nem mesmo a ver com o
passado. Mas é o que eu sinto.
Nathan baixou o rosto, tocando sua testa contra a minha. Ficamos
assim, sua mão sentindo meus batimentos cardíacos e sua testa colada à
minha, enquanto ele inspirava o ar entre nós. Ele puxou minha mão direita
para seu peito, para que eu sentisse seus batimentos também, os dedos
enrolados em meu pulso.
— Eu tenho medo de estragar tudo — sussurrou. — Porra. Estou
aterrorizado com a simples ideia do que está por vir. E toda vez que tenho
você em minhas mãos, é como se fosse uma despedida.
— E se for uma? — questionei e o senti tremer. — Mesmo que, um
dia, isso se torne um adeus, não vale a pena aproveitar o agora?
Seus olhos azuis encontraram os meus olhos negros.
— Eu prometi a você que não fugiria. Tenho certeza que você vale
um coração partido, só prefiro não pensar na possibilidade de perder você.
Bem, aquilo era algo em que podíamos concordar. Eu preferia não
pensar na morte também.
Eu sempre senti muito. Senti a solidão como uma sentença, até que
a fiz se tornar minha amiga. Senti medo ao ponto de preferir sentir bravura.
Senti o coração de Nathan como se fosse o meu próprio e roguei ao Destino
que me deixasse ficar. Que mudasse as regras daquele jogo, só para que eu
pudesse viver com ele.
Passei minha mão livre por seus cabelos molhados até a sua nuca e o
beijei. Toquei seus lábios com delicadeza, com carinho. Com amor. E ele
devolveu tudo aquilo. Delicadeza. Carinho. Amor. Aquelas três palavras
comuns não haviam sido ditas, mas estavam em tudo o que fazíamos.
Nathan desceu uma mão para minha cintura e me puxou contra seu corpo,
abraçando-me como se não pudesse nunca me soltar.
Logo o beijo se tornou apaixonado. Foi transformado em fogo,
paixão e uma promessa que eu não poderia cumprir. Era começo e fim. Era
vida e morte. Éramos tudo. E eu amava aquilo. Amava como ele me olhava
e tocava como se fosse algo raro, não porque eu pertencia a uma profecia,
mas porque eu era eu.
— Eu estou ficando bastante ciente que estou de toalha — ele
murmurou contra a minha boca.
De fato, estava ficando meio óbvio.
Eu sorri, puxando seu lábio inferior com os dentes.
— Se está te incomodando, tire.
Um som baixo e profundo saiu de seu peito.
— Você é muito malvada, linda.
Ergui meus olhos para ele, da melhor forma inocente que eu era
capaz.
— Eu? Estou apenas te ajudando.
Ele balançou a cabeça, um meio sorriso nos lábios.
O que eu teria que fazer para ele me levar logo para a cama? Eu
entendia que ele queria ser respeitoso e cuidadoso comigo, mas por favor,
eu não iria quebrar se perdesse minha virgindade. Na verdade, era provável
que melhorasse meu humor.
Nathan me beijou novamente, mais cálido dessa vez, suas mãos
percorrendo minha cintura até a curva da minha bunda.
— Nathan?
— Oi.
— Me leve para a cama.
— Alyssa...
Eu peguei seu rosto em minhas mãos, fazendo-o olhar no fundo dos
meus olhos.
— Você não quer?
— Você sabe que quero.
— Então me leve para a sua cama.
Suas mãos me apertaram, ansiosas. Olhando para ele, eu sabia qual
pergunta ele faria em seguida.
— Eu tenho certeza — falei. — Tenho muita certeza. E não estou
fazendo isso por nada além do simples fato de que quero. Quero você.
Ele sorriu, como se aquilo fosse tudo o que ele precisasse saber.
Como se aquela certeza fosse tudo o que ele mais queria ouvir.
Com um grunhido satisfeito, ele beijou minha boca. Dessa vez, foi
como assistir fogo crepitar até que tomasse tudo à nossa volta. Suas mãos
agarraram minha bunda e desceram pela minha coxa, até que me puxou
para cima e enrolei as pernas em volta de sua cintura. Ficou ainda mais
óbvio que apenas uma toalha cobria seu corpo. Eu agarrei seus ombros e
aprofundei o beijo, descendo minha boca pelo seu queixo e a curva de sua
mandíbula até seu pescoço.
Nathan gemeu baixinho em meu ouvido e me levou até a sua cama.
Ele me colocou sobre o colchão com carinho, escalando meu corpo. Por um
instante, ele apenas me observou, os olhos brilhando. Passei minhas mãos
por suas costas nuas, traçando os músculos e, depois, fiz o caminho de volta
para seu peito. Abri um sorriso para ele, que ainda me observava
atentamente.
— O que foi?
— Eu ainda não acredito que você está aqui.
— Na sua cama? — perguntei, com um sorrisinho malicioso.
— Na minha vida.
Eu tracei o desenho de sua tatuagem. A toalha tapava o final dela, e
eu enganchei meus dedos na borda do tecido.
— Espero que isso seja algo bom.
Ele observou meus dedos percorrendo a borda da toalha.
— É perfeito.
Eu sabia que ele estava excitado e eu mal podia me manter quieta
embaixo dele do tanto que eu estava excitada e ansiosa. Mas ao mesmo
tempo, meu coração me pedia para ir devagar e aproveitar aquilo.
Aproveitar seu olhar, seu toque possessivo em minha pele, percorrendo todo
o caminho da minha coxa até minha cintura. Aproveitar que ali, naquele
momento, ele era meu.
Por isso, eu o puxei para mim e beijei sua boca como se decorasse
seus lábios. Nossas línguas se embaralharam em uma dança profunda. Senti
suas mãos subirem pelo meu corpo, até agarrarem um seio meu. Ele
inspirou alto e baixou a alça do meu vestido, deixando meu seio nu.
Nathan beijou minha boca, meu pescoço, minha clavícula e,
finalmente, meus seios. Eu arfava e mordia os lábios para conter os
gemidos, mas aquilo era tão bom... finquei minhas unhas no ombro e
quadril de Nathan e ele se empurrou contra mim como resposta.
Meu santo Deus.
Esse homem ia me matar. E eu talvez o agradeceria depois.
Nathan puxou o vestido mais para baixo, revelando minha barriga, e
foi descendo a boca por ela, até o osso do meu quadril. Eu sempre tinha
sido insegura com meu corpo. Sempre encontrava algum pequeno ou
grande defeito nele. Às vezes achava que minhas pernas eram marcadas
demais por cicatrizes de quando eu era criança, ou pensava que meu cabelo
era indomável demais, meus olhos, pretos demais, ou meu quadril, largo
demais. Mas enquanto ele adorava minha pele, lançando-me olhares de
desejo e ao mesmo tempo de cuidado, nada dessas coisas passavam pela
minha cabeça. Ele nem mesmo parecia notar as estrias e celulites em
minhas coxas ou o fato de que elas eram tão grossas que ainda estavam
marcadas pela calça que usei no treino.
E se não bastasse seu olhar, Nathan também orava sobre minha pele,
dizendo o quanto eu era linda, o quanto ele era sortudo... O quanto ele
sentia que seu coração fosse sair pela boca.
Talvez eu devesse agradecer ao Destino por tê-lo colocado em
minha vida. Por ter me permitido reencontrá-lo depois de todo esse tempo.
E, como se o Destino ouvisse meu agradecimento silencioso e
assentisse em aprovação, quando Nathan tirou minha roupa e eu fiquei só
de calcinha, eu me lembrei.
Não me lembrei de tudo, não ainda. Mas lembrei dos dias após
aquele primeiro beijo quando passávamos horas no Lago, só conversando
ou nos abraçando, enquanto observávamos o pôr do sol. Lembrei dele entrar
no meu quarto, tarde da noite, porque sabia que eu sofria com meus
pesadelos e queria estar comigo para me ajudar a ter uma boa noite de
sono.
— Tudo bem? — ele sussurrou, beijando meu peito, onde meu
coração batia.
Eu sabia que lágrimas se acumulavam em meus olhos e eu só queria
que ele soubesse que eram boas lágrimas. Eu sorri amplamente.
— Eu só estou feliz.
O sorriso que ele abriu em seguida ficaria guardado em minha
memória por mais dez vidas seguintes.
Nathan beijou toda a pele do meu corpo. Cada pinta, cada cicatriz,
cada pedacinho de mim. Quando ele voltou para meus lábios, eu o empurrei
para a cama e montei em seu quadril, cada perna em um lado de sua cintura,
e fiz o mesmo com ele. Beijei cada pinta, cada cicatriz, cada pedacinho de
pele. Puxei sua toalha, deixando-o nu, e beijei meu caminho pela sua
tatuagem. Ele era lindo, grande em todos os sentidos e perfeito sob as
minhas mãos. E estava bem claro que ele estava amando aquilo.
Com um rugido que pareceu rasgar seu peito até sua garganta, ele
me puxou para cima e grudou nossos lábios com força, enquanto tirava a
única peça de roupa restante em meu corpo e se colocava em cima de mim.
Apesar do beijo profundo e apaixonado, ele tomou seu tempo com
meu corpo. Era desejo puro, mas não era tão cru quanto na Noite de Luz.
Nós não estávamos agindo por puro impulso e desejo desenfreado. Era
mais. Era paixão, amor, e uma promessa silenciosa.
Ele se certificou de qual movimento seu eu mais gostava, cada lugar
que eu preferia que tocasse. Quando ele se posicionou entre as minhas
pernas, eu já estava a ponto de implorar por ele.
Nathan pegou uma camisinha em uma gaveta na mesa de cabeceira
ao nosso lado e a colocou com destreza, os olhos nunca deixando os meus.
Quando voltou a se abaixar, beijando minha boca e, então meu pescoço, eu
me contorcia por ele.
— Não quero machucar você — ele grunhiu, em meus lábios, tão
perdido em desejo quanto eu.
Eu olhei para ele, acariciando suas costas.
— Eu sei.
Era bem mais provável que eu o machucasse. Eu sabia que não
estava fazendo a coisa certa. Talvez, se tivesse permitido que ele me
afastasse, quando a hora viesse, ele não sentisse tanto a minha falta. Mas eu
era egoísta e preferia passar o tempo que me restava com ele. Era errado,
mas eu queria tanto que déssemos certo. Que aquilo entre a gente nunca
acabasse. E era fraca demais para aceitar qualquer coisa que não fosse
aquilo.
Olhando nos meus olhos, uma mão firme em minha cintura e outra
em minha coxa, ele fez amor comigo. Em um primeiro momento, doeu
como o inferno, mas ele me deu tempo para me acostumar, passou longos
minutos apenas me beijando e dizendo o quanto eu era perfeita e o quanto
ele me queria.
Depois, a dor era apenas uma lembrança e eu me perdi com ele.
Minhas unhas se afundaram em sua pele e nós nos movimentamos juntos.
Ele gemia roucamente, com o rosto enterrado em meu pescoço, e mesmo
meus dentes marcando meus lábios, não continham o barulho que eu fazia.
E enquanto nossos corpos se descobriam, nossas peles se decoravam
e nossas bocas marcavam o corpo um do outro, eu soube, com toda certeza
do mundo, que eu havia nascido para encontrá-lo. Sabia também que ele
havia nascido para me encontrar. Éramos começo e fim, como se tivesse um
pouco dele dentro de mim e um pouco de mim dentro dele.
E se nosso amor fosse uma tragédia... Então seria uma tragédia bem
contada.
Nós acordamos tarde no dia seguinte, depois de passarmos a noite
juntos. Durante todas as horas em que passamos acordados, Nathan foi o
mais gentil, mas ao mesmo tempo apaixonado, possível. Antes de pegarmos
no sono, ainda insistiu em me limpar. Tomamos um longo e quente banho
que, de agora em diante, estaria na lista das melhores coisas que já fiz.
Aquela noite inteira entraria na lista, aliás.
Eu encarava o teto, as lembranças enevoando minha mente, passado
e presente juntos, enquanto Nathan dormia, a respiração pesada próximo ao
meu pescoço e um braço jogado por cima do meu corpo. Ele me prendia
contra si, como se não pudesse ficar longe e eu estava grata por isso, porque
sentia o mesmo.
Acariciei seus braços fortes, passando a unha levemente pela linha
de suas veias no antebraço, até os músculos do bíceps. Ele era tão quente,
tão macio à minha volta...
— Por que já está acordada? — ele sussurrou, o som abafado pela
minha pele em seus lábios.
— Eu não tive nenhum pesadelo esta noite.
Ele ergueu um pouco a cabeça para me olhar. Seus olhos azuis,
ainda sombreados pelo sono, era a coisa mais linda para se ver de manhã.
— Isso é bom, não é?
Eu assenti, um sorriso suave e sereno no rosto.
— Eu não me lembrava da última noite que passei sem um
pesadelo.
Nathan beijou minha bochecha, a curva do meu maxilar e, por fim,
minha boca.
— É egoísmo eu querer ter algo a ver com isso?
Eu balancei a cabeça, puxando-o para mais um selinho casto.
— Acho que posso te perdoar por ser a razão de eu não ter
pesadelos à noite. — ironizei. — Mas provavelmente terei que forçá-lo a
dormir comigo todas as noites.
Ele bufou dramaticamente.
— Que crueldade da sua parte.
Com um sorriso, percorri meus dedos pelo seu peito, traçando as
cicatrizes estampadas em seu corpo. Eram muitas cicatrizes e logo meu
sorriso se fechou.
— Ravenna foi a causa de alguma dessas cicatrizes? — perguntei, já
sentindo a raiva aquecer meu peito.
— Aly...
— Qual delas? — praticamente rosnei. Eu mataria aquela mulher.
Juro que mataria.
Ele suspirou e tocou duas cicatrizes, uma sobre seu peito, onde a
pele era irregular, e outra próxima a uma costela, que parecia ser algo
causado por choques.
Meu coração batia forte, enquanto eu traçava as formas irregulares.
— Ela me cortou quando me testou, querendo saber se eu era mais
rápido que o normal, e depois usou choques para saber se eu era mais imune
a eles — ele contou, baixinho.
Eu nunca senti tanto ódio, em toda minha vida.
— Quantos anos você tinha?
Ele pensou.
— Catorze? Acho que treze ou catorze.
— Eu vou matá-la por isso.
Nathan sorriu.
— Gosto quando você fica toda ameaçadora, pronta para me
defender. — Ele subiu em mim, um braço em cada lado da minha cabeça, e
beijou minha boca, meu pescoço, minha clavícula. — É sexy pra caramba.
Eu suspirei quando sua língua percorreu a linha da minha garganta.
— Você está querendo me distrair da minha raiva assassina — eu
murmurei.
Ele mordeu minha pele, levemente.
— Está dando certo?
Sim.
Nathan balançou o quadril e eu o beijei.
Estava dando muito certo.

Nós acabamos dormindo juntos todas as noites daquela semana.


Quando estávamos muito cansados, eu por causa dos treinos e Nathan por
causa de alguma missão, nós só dormíamos mesmo, às vezes com Zeus aos
nossos pés.
Logo, tornou-se nossa própria rotina. Fazíamos o que tínhamos que
fazer durante o dia. À noite, ele até se esforçava para comer comigo, Serena
e Jonnah, o que ocorria maravilhosamente bem. Meus amigos passaram a
gostar de Nathan tão rápido, que ele começou a encontrá-los mesmo quando
eu não estava junto, mas Roman nunca aparecia quando Nathan estava por
perto. Quanto aos meus pais, eles nunca perguntavam sobre Nathan. Eu
tinha certeza que Jasmine estava tentando esquecer que suas regras estavam
sendo violadas tão descaradamente. Então, quando eu não marcava nada
com meus amigos ou meus pais, nós apenas íamos para minha cabana ou
para a dele e preparávamos algo para comer. Depois, ficávamos juntos até o
amanhecer do dia seguinte.
Era uma boa rotina.
Estava sendo fácil esquecer a realidade.
Quando chegou a sexta-feira, a maior parte dos Protetores estava
fora. Era possível contar nas mãos quantos Protetores adultos ainda
permaneciam no Outro Lado, e entre eles estavam meus pais, Akantha,
Ravenna e Jasper. Os outros eram crianças, os jovens que receberiam a
tatuagem ou Protetores da idade de Nathan e Serena.
Nathan foi chamado por Jasper para falar com alguns Protetores
mais jovens sobre as missões externas, já que ele passou a maior parte dos
últimos anos indo de cidade a cidade, estado a estado, e país a país para
encontrar Desertores. Eu estava feliz de vê-lo fazendo parte daquilo,
mostrando aos jovens como seu trabalho havia feito a diferença. Contanto
que Ravenna não estivesse por perto, eu sabia que ele ficaria bem.
Zeus o seguiu esta manhã, então eu estava sozinha. Bem, não
exatamente sozinha. Havia uma Protetora caminhando atrás de mim, e eu
sabia que estava fazendo a guarda, já que também a vi entre as árvores mais
cedo. Jasper devia ter avisado minha mãe que Nathan não estaria por perto
pela manhã e que alguém precisaria ficar de babá.
Caminhei pelas ruelas até a praça central, aproveitando o sol da
manhã. Eu teria que encontrar meus amigos para o treino de apenas uma
hora. Jonnah quer me ensinar algumas táticas hoje, mas logo teríamos que
nos preparar para a Cerimônia. O que era estranho, já que ela costumava
começar um pouco antes do pôr do sol. Mas, pelo que ouvi, era um
momento sagrado, do qual Cassandra esperava que estivéssemos
“energizados” para não atrapalhar os jovens que receberiam a tatuagem.
Passei pela linda fonte e acenei para algumas crianças que passavam
me observando, com os olhos arregalados. Eu havia reparado que faziam o
mesmo com Nathan. Eu podia ser a garota da profecia, mas ele também era
algum tipo de lenda ali. Eu desconfiava que Jasper tivesse algo a ver com as
histórias heróicas que eram compartilhadas pelas crianças, não que não
fossem verdade, mas eu sabia que não tinha sido Nathan que falou sobre
elas.
Eu estava prestes a fazer meu caminho até a tenda de café da manhã
quando meus olhos pegaram uma movimentação em uma das ruelas
adjacentes à praça. Em uma das ruas que levavam até a montanha, Akantha
e Ravenna cercavam Cassandra. Eu sabia que a Guardiã era muito bem
capaz de se proteger se precisasse, e duvidava que as duas Protetoras
fossem idiotas o suficiente para tentar algo contra ela, mas se Jonnah tivesse
escutado certo, aquele era provavelmente o momento que Akantha usaria
para convencer Cassandra, e eu precisava ouvir exatamente qual era o
plano.
Olhei para trás para ver se a Protetora ainda me seguia de perto, mas
ela estava distraída conversando com uma menina mais jovem.
Provavelmente sua irmã, dadas as semelhanças físicas.
Entrei na ruela e segui as mulheres até quase a base da montanha.
As árvores, por sorte, davam a cobertura que eu precisava para que não me
vissem.
— Precisamos disso, Cassandra. Você sabe que precisamos —
Akantha dizia.
— O que você está me pedindo é impossível. Vai contra todas as
regras e vocês sabem disso tão bem quanto sabem o que tornou Vicenzo um
Desertor — a Guardiã respondeu, os braços cruzados sobre as típicas
roupas esvoaçantes.
— Você e as outras Guardiãs tornaram Vicenzo um Desertor. Não
foi apenas a imortalidade — Ravenna retrucou.
— Fizemos isso para fazê-lo um exemplo e equilibrar a balança.
Akantha pareceu pensar nessas últimas palavras de Cassandra.
— Se fôssemos imortais, poderíamos combater a horda criada por
Vicenzo com muito mais facilidade.
— Alyssa irá cumprir a profecia, matará Vicenzo e então
acabaremos com o restante dos Desertores — Cassandra disse.
— Alyssa não servirá de muito depois que estiver morta — Ravenna
atacou.
Eu cerrei o punho. Eu odiava aquela mulher.
— A Fidly tem o seu trabalho, nós temos o nosso — Cassandra
disse, irredutível. Graças ao Destino ela parecia ter algum senso, o que
faltava nas duas Protetoras.
— O problema, Cassandra, com todo o respeito, é que os Desertores
já não são o único problema há muito tempo, não é? — Akantha disse,
parecendo esperar por uma confirmação que não veio. Por fim, continuou:
— Não é isso que Brian está fazendo agora mesmo? Caçando aqueles seres
que não pertencem a esse mundo? E provavelmente tentando entender
como estão entrando em nossa dimensão quando a única com o poder de
criar portais, teoricamente, é Freya.
Aquilo era informação nova.
Eu vi a raiva fluir de Cassandra como uma massa de energia densa e
escura.
— Está sugerindo que minha irmã tem algo a ver com isso,
Akantha? — a Protetora abriu a boca para dizer algo, mas Cassandra não
permitiu: — Porque se está fazendo essa sugestão, eu diria para tomar
cuidado. Muito cuidado. Lembre-se que sua mera existência se dá graças às
minhas irmãs e eu. E não irei aceitar nada menos que respeito.
Akantha baixou a cabeça, o que me fez contorcer de prazer por
dentro. Aquilo devia estar acabando com seu orgulho.
— Estamos apenas dizendo — Ravenna continuou — que há
inimigos demais e nossos irmãos estão morrendo todos os dias nessa guerra
onde a desvantagem é clara.
Cassandra ergueu os olhos, percorrendo-os pelas árvores. Eu me
joguei contra o tronco, escondendo-me de sua visão. Ouvi ela estalar a
língua, até podia imaginá-la fazendo um meneio simples com as mãos.
Quando falou, sua voz era de alguém que perambulou aquela terra por mais
tempo do que eu poderia contar.
— Não se enganem, crianças, a mortalidade é um presente à vocês.
Não uma punição.
— Cassandra, repense...
— Chega! — sua voz foi dura, fazendo com que até eu quisesse
recuar. — Esqueçam isso, ou terei que repensar sobre sua lealdade aos
Protetores e às Guardiãs.

Esperei pacientemente, enquanto as duas Protetoras iam embora,


provavelmente tão decepcionadas quanto eu poderia imaginar. Será que
aquilo faria, finalmente, com que parassem de ir atrás dessa idiotice de
imortalidade?
Eu pensava que não. Nem Akantha e nem Ravenna pareciam o tipo
de mulher que desistia facilmente.
— Não deveria ouvir a conversa alheia, criança.
Pulei, colocando a mão sobre o coração, esperando que ele não
saltasse para fora. Virei para encontrar Cassandra, os braços cruzados sobre
o peito, encarando-me seriamente.
— Não sou eu quem estou pedindo imortalidade, então acho que
minha infração é perdoável se comparada a delas.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Você é bem audaciosa.
Eu sorri.
— Já tentou viver em meio a essas pessoas? Se eu não falar o que
penso, eles me engolem viva.
Cassandra assentiu.
— Que bom que sabe, criança.
Jonnah não pegou leve, mas me ensinou movimentos novos
valiosos. Ao final da aula, eu conseguia derrubá-lo no chão com apenas um
movimento. Serena estava se matando de rir toda vez que Jonnah ia ao chão
por minha culpa e quando Roman apareceu, juntou-se a ela. Ao
terminarmos o treino, Jonnah estava com os dois dedos do meio erguidos
para cada um dos dois Protetores.
Roman estava melhorando com o passar do tempo — no sentido de
não fazer uma careta sempre que Nathan era mencionado ou não desviar os
olhos sempre que eu aparecia. — Eu sabia que, eventualmente, seria assim.
Não acho que ele estivesse de fato apaixonado por mim, talvez fosse só um
encanto. E ele era um amigo muito importante para que eu aceitasse perdê-
lo por algo tão bobo.
Nós caminhamos pelas ruelas de pedra que formavam a pequena
vila no Outro Lado. Precisávamos nos arrumar para a cerimônia que, pelo
visto, já estava sendo organizada. Protetores e Cassandra se movimentavam
pela praça, em volta da fonte, para preparar o local para a Iniciação dos
mais jovens. Aqueles que já tinham 16 anos, logo estariam recebendo a
tatuagem.
Minutos mais tarde, Nathan apareceu com Jasper ao seu lado, e
Roman logo tratou de fugir. Foi assim pelos últimos dias: era só Nathan
aparecer, que Roman fugia. Era como se não suportasse estar no mesmo
espaço que ele.
Pelo menos assim eles não podiam se atracar.
Já Zeus, o cachorro mais educado do mundo, não parecia ligar para
ninguém à sua volta. Ele trotava pela praça, observando a movimentação
dos Protetores com curiosidade. Era adorável de ver.
— Como foi o treino hoje, Alyssa? — Jasper perguntou, sem nem
nos cumprimentar primeiro. Típico.
— Pergunte ao Jonnah — falei, com uma risada.
Meu primo puxou minha trança, uma careta no rosto esculpido.
— Ela é muito convencida — murmurou.
Nathan se aproximou, deixando um beijo rápido nos meus lábios e
passando um braço pelo meu ombro em seguida. Ele exibia um sorriso
arrogante quando disse:
— Ela tem motivos para isso.
Serena nos encarou, o olhar divertido e um sorriso esquisito nos
lábios.
— Vocês são fofinhos. Nunca pensei que diria isso sobre Nathan um
dia.
Eu ri, mas Nathan estava franzindo a testa.
— Eu não sou fofinho.
Eu me estiquei.
— É sim — eu disse, perto de seu ouvido.
Ele bufou adoravelmente, como uma criancinha indignada.
— Chega de ladainha. Vocês precisam se arrumar. — Jasper desceu
os olhos por Jonnah. — E pelo amor de Deus, tome um banho e tire a terra
das suas costas. Você está parecendo um cachorro depois de rolar na lama.
Todos nós rimos.

Eu tomei banho e me arrumei em minha cabana, enquanto Nathan se


arrumava na dele. Serena decidiu que ficaria comigo, para tentar extrair até
o último detalhe de informação referente ao meu relacionamento com
Nathan. Ela era incansável. Mas eu amava contar a ela, porque eu estava
amando. Mesmo que não tivesse pronunciado essas palavras ainda, eu
sentia que tanto eu quanto Nathan sabíamos.
Coloquei meus couros e embainhei minha adaga, assim como uma
nova que havia sido presente de Nathan. Era uma de seu arsenal pessoal.
Ele havia dito que sempre devíamos ter duas armas em mãos... Se quatro
fossem demais.
Serena estava sentada em meu sofá, folheando um de meus livros,
enquanto lia as marcações feitas. Eu estava fechando o zíper da minha bota
quando a porta da cabana se abriu e minha mãe entrou. Minha mãe não se
importou em fechar a mesma atrás de si.
— Nós precisamos conversar, Alyssa.
Arqueei uma sobrancelha, confusa.
— O que aconteceu?
— Cassandra me disse que ficou espionando a conversa dela com
Akantha e Ravenna.
Serena estava paralisada, apenas observando a cena. Eu havia me
esquecido de contar sobre a ideia de Ravenna e Akantha, parte de mim
temia que ela encontrasse defesa para a mulher.
— Eu queria saber o que ela responderia — respondi, sem nenhuma
dorzinha na consciência. Não dava para jogar limpo com aquelas pessoas.
— Eu falei para não se intrometer. Eu já tinha falado com Cassandra
sobre o que Akantha queria.
Serena balançou a mão, chamando nossa atenção.
— Ok, desculpe atrapalhar, mas do que estamos falando mesmo?
Suspirei, pressionando os dedos contra minha têmpora. Eu teria uma
dor de cabeça hoje. Certeza.
Contei a ela sobre a ideia de Akantha, que queria exigir que as
Guardiãs dessem imortalidade aos Protetores para que tivesse uma maior
vantagem. Quando Serena pareceu considerar o assunto, apressei-me para
contar sobre o dia em que Ravenna não só dopou Nathan, mas o colocou em
uma caixa de vidro com um Desertor para que ela conseguisse me fazer
matar pela primeira vez.
Serena parecia enjoada quando terminei.
— Eu não acredito que ela fez isso.
Assenti.
— Não duvido que tenha feito coisas piores.
Eu sabia que tinha.
Minha mãe estava batendo o pé, ansiosa.
— Não quero você se metendo nisso, Alyssa. Já tem muito com o
que se preocupar. — Ela caminhou pela sala e eu a segui. — Ainda mais
agora que anda distraída por Nathan.
Joguei as mãos para o alto, frustrada, tendo que engolir todo
palavrão que me vinha à cabeça.
— Eu não estou distraída! Qual o problema de eu aproveitar um
pouco a vida?
— Você tem que focar no que precisa fazer! — ela rebateu. — Pode
se divertir depois.
Cerrei meu punho. Por que ela insistia em se enganar? Na verdade,
ela poderia fingir o quanto quisesse, contato que não esperasse que eu
fizesse o mesmo.
— Depois? — quase gritei. — Eu sei o que tenho que fazer. Preciso
ficar trancada nesse lugar até ter idade suficiente para matar Vicenzo e
morrer fazendo isso. — Serena arfou ao meu lado. — Não tem depois para
mim, mãe!
Minha mãe me encarava com os olhos arregalados, dor exposta em
cada linha de expressão sua. Meu coração batia acelerado. Eu estava
cansada de ouvir suas reprimendas por estar vivendo minha vida, enquanto
ainda podia.
— Do que está falando?
A voz veio de trás de mim, na direção da porta entreaberta, tão fria
quanto gelo. Eu me virei e encontrei Nathan paralisado, segurando algo nas
mãos que eu não conseguia ver. Seus olhos estavam confusos e
horrorizados, e eu quis engolir minhas palavras no momento em que o vi
ali.
Serena não parecia muito melhor.
— Nate...
— Você não vai morrer! — Serena esguichou.
Eu a encarei, sem poder negar os fatos. Eu não queria que
soubessem. Não queria que sofressem com antecedência por algo que não
podíamos mudar.
— Alyssa? — Nathan chamou, desolado, os olhos sombrios.
— As Guardiãs acham que o Destino me deu força necessária,
apenas para matar Vicenzo. Então, eu teria que usar tudo o que tenho, cada
gota de energia. E isso me mataria no final — confessei.
— Não — ele e Serena negaram ao mesmo tempo.
Eu baixei os olhos. Eu não gostava disso tanto quanto eles.
— Ia me dizer em algum momento? — Nathan perguntou, a voz
fraca.
Não. Não iria. Eu havia escolhido a saída mais fácil: ignoraria
aquela informação até o fim. Era uma covarde que preferia não ter que lidar
com aquilo, com ele sabendo a verdade.
— Eu e Henry estamos buscando uma saída. Alyssa não vai morrer
dessa forma.
Eu não conseguia respirar. Não com Nathan me olhando como se eu
o tivesse traído da pior maneira possível. Como se ele estivesse
desmoronando bem à minha frente.
Ele nem pareceu assimilar o que minha mãe disse.
— Iria me contar? Sabia disso quando foi à minha cabana naquela
noite?
Engoli em seco, mas assenti. Eu já havia mentido demais. Havia
tentado proteger meu coração, mesmo que o dele estivesse na reta. Havia
sido egoísta porque queria ter meu tempo com ele, mesmo que limitado.
— Sabia disso e mesmo assim não disse nada? Você não estava
apenas com medo de uma possibilidade, você tinha motivos para isso, para
tentar experimentar a vida antes que fosse tarde demais — ele parecia
querer gritar, mas sua voz estava trêmula. A mão, que ainda segurava algo,
estava tremendo.
— Eu não queria preocupar você com algo que não temos controle
— minha voz era um sussurro envergonhado.
— Me preocupar? — Ele soltou uma risada fria. — Com certeza
seria melhor descobrir isso quando você já tivesse se sacrificado e estivesse
morta em meus braços, não é?
Meu peito subia e descia. Minhas mãos estavam suando. Eu tentei
me aproximar dele, mas ele se afastou, o olhar ferido. Como conserto isso?
Pânico já apertava meu peito, obstruía minha garganta.
— Eu queria... Eu queria você, mesmo se não pudesse tê-lo por
muito tempo.
— E eu? Já pensou no que isso significaria para mim? — minha mãe
tentou se aproximar dele, colocou a mão em seu ombro como se sentisse
que precisava confortá-lo ou acalmá-lo, mas Nathan se afastou. — Isso não
vai acontecer. Você não vai morrer, porra! O acordo era que, caso vivesse
tempo o suficiente para chegar aos dezoito anos, você teria novos poderes e
ficaria bem!
— Eu teria novos poderes para matá-lo, Nathan — contestei,
baixinho.
— Isso não faz sentido nenhum — Serena murmurou. — Essa
merda não é justa!
Eu mordi o lábio. Minhas unhas estavam fincadas na marca
estampada nas costas da minha mão direita.
Nathan ergueu os olhos para mim. Ele estava quebrando. Ele estava
desmoronando bem na minha frente.
— Não — falou, firme. — Não vai ser assim. — Ele, então, olhou
para Jasmine. — Vamos tirá-la daqui. Vamos mantê-la longe dessa merda
toda.
— Mesmo que Vicenzo não a encontrasse, as Guardiãs encontrariam
— ela respondeu, os olhos já vermelhos. Minha mãe odiava chorar perto de
outras pessoas, mas assim como Nathan, toda vez que aquele assunto
surgia, ela parecia desmoronar mais um pouco. — Por isso, eu e Henry
estamos buscando uma terceira saída.
Apenas vendo eles daquela forma... Era como se eu estivesse tendo
meu coração arrancado do peito.
— Eles não podem forçá-la — Serena disse, mesmo que isso
significasse uma vida de caça aos Desertores. Uma vida destinada a repetir
os mesmos passos, todos os dias, nunca tendo paz.
A verdade, porém, é que podiam me forçar. Duvidava que as
Guardiãs se importariam com isso. Talvez Aisha se sentisse mal, mas não
deixaria de fazer seu trabalho.
— Não posso fugir disso — eu falei.
Nathan parecia prestes a me sacudir, como se quisesse colocar
alguma noção em minha cabeça.
— Do que está falando? É a sua vida!
Balancei a cabeça.
— Então vai morrer? Como... — ele engoliu em seco, uma lágrima
descendo pelos seus belos olhos. — Como espera que eu viva com isso?
Você me disse que tudo daria certo! — gritou. — Como espera que eu viva
depois que você morrer? Depois que a mulher com quem estou
predestinado a ficar, morrer?
Predestinado.
Predestinado.
Ah, meu Deus.
Como Brian estava predestinado a ficar com Diana. Como meus
pais provavelmente estavam predestinados a se encontrarem naquele
parque. Um laço que unia almas. Um elo profundo demais para ser
quebrado. O tipo de amor tão antigo quanto o próprio Destino.
“O que é para ser não pode ser combatido” — Aisha havia dito
quando pensou que eu estava dormindo na enfermaria, Nathan ao lado.
“Aqueles destinados a se encontrar, sempre se encontrarão”.
Éramos predestinados a ficar juntos? O Destino havia traçado aquele
caminho para nós, antes mesmo de nascermos?
— Nathan...
Eu amei Nathan quando éramos crianças. Amei quando éramos
adolescentes. Amei quando nem me lembrava de quem ele tinha sido para
mim. Eu sentia sua dor em meu próprio coração. Sentia seu amor em meus
ossos. Se colocasse minha mão sobre meu peito, talvez até conseguisse
sentir as batidas do meu coração e do dele também.
Fazia tanto sentido. Eu era uma idiota por não ter percebido antes.
Ou por não ter aceitado antes.
Ele caiu aos meus pés. Os joelhos bateram no chão com um baque
oco que reverberou pela minha alma ligada à dele. Fazia tanto sentido que
ele fosse meu predestinado. Que ele fosse a pessoa com quem eu dividia
minha alma.
Nathan estava com a cabeça baixa, os olhos fincados no chão. Com
as mãos trêmulas, ele segurou minha cintura.
— Eu já perdi o suficiente. — Atrás de mim, Serena chorava, mas a
voz dele era clara. Lágrimas manchavam minha visão. — Por favor. Por
favor.
— Se eu fugir disso, estou apenas condenando outra garota ao
mesmo destino.
Ele me olhou.
— Eu não me importo.
— Nathan, você nunca terá paz, enquanto ele viver. Prometi que
faria o que pudesse para vingar você, vingar sua mãe e todas as outras
garotas antes dela.
— Eu não me importo — ele rosnou.
— Nate...
— Por favor — implorou. — Sigo você para qualquer lugar. Fuja
disso comigo. Fuja disso por mim.
Ainda nem havia chegado a hora e aquilo já estava nos destruindo.
Por isso não queria que soubessem. Por isso a mentira parecia tão
satisfatória.
Agora eu chorava livremente, as lágrimas molhando meu rosto. Eu
me agachei para poder olhá-lo nos olhos. Puxei seu rosto para encarar o
meu. Tirei os cabelos que caíam em sua testa com carinho.
— Eu amo você.
Ele engasgou, as lágrimas descendo como um rio.
— Então fica comigo.
Respirei fundo, tentando fazer minha voz ficar estável.
— Eu estou com você.
Eu beijei sua boca, mas ele estava paralisado. Seus lábios tinham
gosto do sal de suas lágrimas.
— Eu amo você — repeti.
Mas quando me olhou, eu podia sentir que aquilo não era suficiente.
Ele limpou as lágrimas que manchavam seu rosto e depois se afastou de
mim.
— Não — sua voz era fraca, mas a força do seu olhar me deixaria
de joelhos se eu já não estivesse no chão. — Você está me deixando.
Eu tentei puxá-lo de volta, tentei implorar, mas havia um nó gigante
em minha garganta que impedia que eu dissesse qualquer coisa. Nathan
deixou a sala tão rápido quanto um furacão, batendo a porta com força e nos
isolando dentro.
Só quando Serena se jogou ao meu lado, passando os braços sobre
meus ombros e me envolvendo em um abraço aflito, que o nó em minha
garganta cedeu e o choro explodiu em soluços atormentados.
Eu não conseguia respirar.
Meu rosto ainda estava inchado pelas lágrimas derramadas. O de
Serena também. Minha mãe tentou nos confortar e disse que nada iria
acontecer comigo. Acho que ela tentava se convencer também.
Mesmo assim, precisávamos ir. Eu queria buscar por Nathan, mas
minha mãe pediu que eu desse um tempo a ele. Pela primeira vez, ela
parecia realmente se preocupar com ele, então eu escutei. Nathan merecia
um tempo para digerir as informações. Eu tentaria resolver as coisas entre
nós depois.
— Ei — chamei as duas, que andavam em direção a porta. — Não
quero falar disso com mais ninguém. Não há nada que possamos fazer, —
vi o olhar da minha mãe e acrescentei, mesmo sem acreditar muito: — pelo
menos por agora.
Serena e minha mãe assentiram.
— Precisamos ir. Cassandra odeia atrasos — minha mãe disse.
A construção daquela cidadela era de fato incrível, as ruas se
originavam em alguma parte daquele círculo que era a praça, e se estendiam
quase até as montanhas ao fundo. O sol estava quase a ponto de se pôr. Nós
caminhamos pelas ruelas que nos levariam até a praça central, em formato
circular. No centro, a escultura de pedra da mulher, que normalmente era
acinzentada, estava brilhando com algum feitiço que Cassandra jogou sobre
ela. Uma fila de Protetores — aqueles que receberiam a tatuagem — estava
posicionada à sua frente, os jovens parados lado a lado um do outro. Outros
Protetores estavam dispersos pelo local.
Vasculhei o lugar com os olhos, procurando por Nathan, mas não o
encontrei em lugar algum. Então me apressei para encontrar meus amigos,
todos reunidos embaixo de um lindo ipê lilás. Jonnah estava ao lado do meu
pai, e minha mãe se aproximou e enganchou o braço no do marido, ainda
abalada. Meu pai percebeu nosso desconforto, mas não disse nada, apenas
puxou minha mãe para mais perto. Eu parei ao lado de Serena, que me
escoltava do olhar curioso de Roman.
Cassandra já estava sobre a fonte, as mãos brilhando como a estátua.
Os cabelos ondulados escuros estavam trançados em um penteado
elaborado que começava no topo de sua cabeça. Os olhos castanho-
esverdeados estavam sérios, enquanto encaravam as palmas das mãos.
Ravenna estava com Akantha, de um lado mais próximo à fonte. Eu
tentava não olhar as mulheres. Toda vez que o fazia, raiva aquecia minha
pele como fogo descontrolado. Eu odiava elas.
Jasper, por fim, juntou-se a nós, parando ao lado dos meus pais.
O sol começou a se pôr. Ansiedade pairava sobre os jovens
Protetores à frente. Eles não usavam couros. Todos vestiam apenas mantos
da cor branca. Aqueles com cabelos longos, estavam com eles soltos sobre
os ombros e não pareciam usar nada além daquele tecido que descia até o
chão. Uma das garotas, com o pé um pouco para frente, mostrou que
também não usavam sapatos.
Ravenna avançou um passo, parando próxima à fonte.
— Sejam bem-vindos, meus guerreiros — sua voz, quando tentava
ser gentil e acolhedora, era a coisa mais falsa que já tinha ouvido na vida.
— Hoje, vocês se tornam parte dessa guerra e serão honrados por isso.
Traços de luz dourada pintaram o céu azul. Cassandra ergueu as
mãos e mais raios de luz correram pelo céu, dessa vez, da cor vermelha.
Atrás de nós, percebi, que o sol caía sobre o Lago, escondendo-se no
horizonte aos poucos. Ravenna voltou para onde estava parada antes, então
Cassandra deu início:
— Hoje, nós celebramos nossos novos guerreiros. Celebramos a
força, a destreza e a lealdade — sua voz pairou sobre todos como uma
nuvem espessa. — Hoje, vocês juram pelo Destino que lutarão para manter
a balança dos mundos em equilíbrio.
Do outro lado da praça, afastada de quase todos, encontrei a mulher
com quem esbarrei tempos atrás. O nome dela era... Cerrei os olhos,
tentando me lembrar. Seu rosto era marcado por traços firmes, seus olhos
eram meio puxados e castanhos... Eram familiares.
Gaia.
Seu nome era Gaia.
— Deem um passo à frente, guerreiros — Cassandra ecoou e os
Protetores obedeceram imediatamente, como se fossem um só. — Façam
seus juramentos.
— Nós iremos lutar e proteger, com sangue e fogo — suas vozes
reverberaram pela praça como uma só.
Gaia tinha os olhos em mim naquele momento. Eu acenei levemente
para ela. Talvez ela quisesse me cumprimentar e não sabia como.
Tirei os olhos da Protetora e os voltei para o grupo enfileirado.
Cassandra ergueu as mãos e os jovens se mexeram. Alguns estenderam
mãos, pés, braços e pernas. Outros se viraram, expondo os pescoços ou as
costas, baixando o manto até a área onde eu imaginava que queriam receber
a tatuagem. Uma das garotas abriu o manto para que a tatuagem fosse feita
entre seus seios, outro garoto expôs a coxa musculosa. Com as peles
expostas, esperaram. A Guardiã baixou as palmas das mãos e o movimento
foi repetido pela escultura.
Meu Deus. Ela realmente estava se mexendo.
— Com sangue foi feito, com fogo foi forjado e com bravura viverá.
— Cassandra entoou, não havia nada em suas mãos que pudesse expor o
feitiço, mas eu vi quando a pele dos jovens começou a ser marcada. O
desenho começou a se formar em um tom escuro de preto. Era um desenho
de aparência antiga, raízes e fogo ao mesmo tempo, e cada um recebia uma
versão do desenho que representava os guerreiros. — Com a benção do
Destino, eu dou a vocês a marca dos meus guerreiros.
Aparentemente, este era o fim da cerimônia. A estátua voltou a ficar
imóvel, na mesma posição de sempre. Cassandra baixou as mãos e
observou, com aquele olhar sério, quando os mais jovens Protetores se
viraram, com sorrisos nos rostos e correram em direção ao Lago, metros à
frente.
— O que estão fazendo? — perguntei.
Serena sorriu, apesar dos olhos inchados.
— Agora eles vão se purificar.
Purificar?
Ah.
Os Protetores pularam na água do Lago, mergulhando e afundando
sob o azul imenso. Eu imaginava que “purificar” na língua protetora fosse o
mesmo que “ignorar todo mundo e dar risada, enquanto se molhavam nus
em um lago”. Parecia uma comemoração digna.
Deixei os Protetores se jogando na água e afundando uns aos outros
para buscar pela Guardiã. Uma mesa de comida e bebida havia sido
instalada na praça e pequenos fios de luz corriam pelo espaço, de lado a
lado, agora que o céu escurecia. Mas não encontrei Cassandra em lugar
algum.
— Onde está Cassandra?
— Com certeza já foi embora. Ela nunca fica para a festa — Serena
respondeu.
— Há uma festa?
Normalmente eu estaria mais empolgada com isso.
— Claro — Jonnah disse, puxando-me para a praça, onde crianças e
Protetores mais jovens se reuniam. — E começa agora.
Apesar do sorriso no rosto do meu primo, eu não estava exatamente
no clima para me divertir. Nathan ainda não havia aparecido, e a verdade
ainda estava recente em minha memória.
Parei, incapaz de seguir Jonnah.
— Na verdade, acho que preciso ir na minha cabana um pouco.
Preciso pegar uma coisa — a mentira saiu fácil.
A verdade era que eu precisava encontrar Nathan.
Serena impediu que Jonnah protestasse.
Acenando para todos, inclusive meus pais e Jasper, dei meia volta e
caminhei sem direção. Talvez eu devesse procurar Nathan na caverna da
montanha. Se ele não tivesse deixado o Outro Lado, era possível que
estivesse lá.

As risadas dos mais novos Protetores oficiais eram tão altas que eu
podia escutá-las por todo o caminho até a montanha. Eu imaginava que
Nathan pudesse estar lá. As ruelas estavam vazias, já que os poucos
Protetores que ainda estavam do Outro Lado se reuniram na praça para a
iniciação.
Mãos agarraram meu braço e me puxaram para um canto escuro.
Engoli o grito quando vi quem era.
Nathan estava me encarando, seu rosto iluminado apenas pelos raios
que ainda cobriam o céu e as luzes fracas da rua de paralelepípedos. Suas
mãos soltaram meus braços e ele me encarou.
— Eu estava procurando por você — eu disse.
— Imaginei.
Estava claro que ele ainda estava magoado e eu entendia. Eu havia
mentido e ignorado como a minha morte afetaria ele. Se eu fosse sincera e a
situação fosse inversa, eu estaria gritando com ele agora mesmo.
— Me desculpe por não ter contado antes. Eu não queria lidar com a
verdade.
Nathan balançou a cabeça.
— Eu estou... Estou com tanta raiva que mal consigo pensar —
disse, e eu me encolhi.
Será que era assim que acabariam as coisas entre nós? Eu dizia “eu
te amo” e ele fugia para as montanhas? Literalmente.
— Eu sinto muito.
Quando seus olhos se ergueram para encontrar os meus, Nathan
tentou suavizar sua expressão.
— Eu odeio que você tenha mentido para mim, mas o pior é essa
situação. O fato de que o Destino esteja nos passando para trás mais uma
vez. — Ele inspirou. — Mas eu não devia ter saído daquele jeito da sua
cabana. Eu fui um idiota. Não quero que pense que irei fugir sempre que as
coisas ficarem ruins. — Ele segurou minha mão e subiu a outra para tocar
meu rosto. — Eu não me importo com a profecia. Não me importo com o
que o Destino quer. Você não vai morrer.
Eu suspirei.
— Eu não vou fugir disso, Nathan.
Ele assentiu, desgostoso.
— Então temos que encontrar uma saída. Ainda temos tempo. —
Seus dedos traçaram a linha do meu maxilar. Nathan deu um passo à frente,
os olhos me queimando com a intensidade contida neles. Ele afundou a
outra mão em meu pescoço, agarrando a base dos meus cabelos. — Prometa
que irá esperar até que tenhamos uma saída. Só estou pedindo isso, Aly. Só
isso. Faça por mim. Melhor ainda: faça por você. Faça porque você merece
uma chance de viver.
Respirei fundo e assenti levemente.
— Prometo esperar, enquanto houver a possibilidade de
encontrarmos uma saída. Mas se não encontrarmos nada...
— Nós iremos encontrar algo.
Mordi o lábio e seus olhos flagraram o movimento.
— Tudo bem.
Eu queria que houvesse uma maneira de sobreviver tanto quanto ele.
Só não tinha muitas esperanças. Não me permitia ter esperança. Eu havia
pensado uma vez que tudo o que eu precisava fazer era sobreviver até meus
dezoito anos e tinha quebrado a cara. Não estava muito a fim de passar por
isso novamente.
Mas Nathan me fez esquecer tudo isso quando grudou os lábios nos
meus. O beijo foi carinhoso, mas profundo e eu o senti em cada nervo do
meu corpo. Suas mãos estavam firmes em meu rosto, os dedos submersos
em meu cabelo. Eu passei minhas mãos pelas suas costas, até as omoplatas
e o puxei para mais perto.
— Eu sei que não respondi quando me disse o que sentia — ele
sussurrou contra a minha boca. Abri meus olhos e aquela imensidão azul
quase me derrubou. —, mas eu...
— Não precisa dizer só porque eu disse.
Ele negou.
— Tem hora que me pergunto se você está tão alheia à verdade
assim, porque não é possível que eu seja tão bom em esconder meus
sentimentos — ele murmurou e beijou minha boca mais uma vez, por
apenas um segundo antes de voltar a me encarar. — Eu amo você. Amo
você há um bom tempo. E estou disposto a ir até o inferno e voltar por
você.
Eu apostava que ele podia ouvir meu coração bater mesmo se
estivesse a metros de distância.
Apesar de parte de mim estar em êxtase com suas palavras, a outra
estava entrando em pânico. E se não houvesse saída para mim? E se eu o
estivesse condenando a uma vida vazia como a de Brian?
Havia apenas uma coisa que eu sabia com total certeza. Era
inegável. Imutável. Nem o tempo, nem as memórias poderiam impedir o
que eu sentia. E eu amava ele. Amava cada pedacinho dele. Amava a forma
como me olhava, como me tocava, como falava comigo — quando não
parecia haver nada mais importante do que o que eu tinha a dizer.
Amar ele tinha sido tão fácil e ao mesmo tempo eu sabia que
poderia se tornar a coisa mais difícil que já fiz.
— Eu amo você — sussurrei de volta.
Seu sorriso, como sempre, era a coisa mais linda que eu já tinha
visto, mesmo que ainda houvesse traços assombrados em seus olhos.
Nathan me deu mais um beijo rápido antes de se afastar, de repente
parecendo tímido, relutante. Ele coçou a cabeça, encarando o chão como se
não soubesse o que fazer em seguida.
— O que foi?
— Eu... — ele coçou a garganta e pegou algo do bolso da calça. —
Eu trouxe algo para você.
Eu sorri.
— Um presente?
Ele assentiu.
Nathan já havia me presenteado com uma adaga há poucos dias e eu
ainda não tinha dado nada a ele.
— Está tímido porque vai me dar um presente? Eu não vou te bater
por isso. A não ser que seja algo péssimo, tipo... — o que ele poderia me
dar que não seria simplesmente maravilhoso, apenas por vir dele? — hum,
uma garrafinha de sangue? — aquilo seria estranho.
Nathan me olhou com uma careta e revirou os olhos.
— Engraçadinha.
Aproximei-me dele, esticando as mãos, um sorriso largo estampado
em meu rosto. Ele havia pensado em mim o suficiente para encontrar um
presente que quisesse me dar.
Ele abriu a mão que segurava meu presente e eu me estiquei para
ver. Era uma pulseira de ouro branco, com uma pedra azul escura em seu
centro. Parecia um topázio e era lindo. Nathan pegou minha mão e colocou
o presente sobre minha palma, observando minha reação de perto.
— Nathan, isso é... Isso é lindo demais. — Eu ergui meus olhos para
ele. — Eu não tenho nada para dar para você.
Ele deu de ombros, um sorriso torto nos lábios.
— Não dou presentes pensando em ganhar algo em troca, Alyssa —
disse e pediu permissão para colocar a pulseira em meu pulso direito. —
Todos recebem uma tatuagem quando chega a hora de se tornarem
guerreiros, e é como um presente para muitos. Apenas pensei que você
merecia ganhar algo também.
Olhei para ele, ainda concentrado em fechar o fecho da pulseira.
Aquele garoto à minha frente tinha perdido muito. A mãe, de certa forma o
pai, o amigo e eu. Havia se isolado em sua dor, em seu rancor, e fugido de
tudo e todos apenas porque achava que a solidão facilitaria sentir aquele
vazio no peito. E mesmo assim, ele podia ser tudo, menos vazio.
— Era da minha mãe. E, antes disso, tinha sido da mãe dela — ele
contou e eu o encarei, surpresa. — Eu encontrei na casa do Lago hoje,
quando fui lá esta manhã com Zeus. — Ele sorriu, timidamente. — Acho
que ela gostaria que eu desse para alguém importante para mim. Alguém
que pudesse usá-la.
Isso era... demais. Não tinha como desacreditar quando dizia que me
amava, quando me olhava daquela forma, ou quando me presenteava com
algo que era importante para sua mãe.
Aquilo, percebi, era sua forma de deixar claro o quanto eu
significava para ele e eu não podia estar mais feliz.
Quando Nathan finalmente conseguiu fechar a pulseira, saltei em
seus braços, mergulhando meu rosto em seu pescoço e inspirando seu
cheiro. Ele me agarrou contra si, meus pés nem tocavam o chão a esse
ponto. Ele deu risada quando agradeci beijando um ponto em seu pescoço
que eu sabia que o fazia sentir cosquinha.
Nathan me colocou no chão, mas não tirou as mãos de mim.
— Obrigada.
Ele sorriu.
— Por nada, linda.
Linda. Ainda sentia borboletas no estômago quando ele me chamava
assim.
Alyssa!
A voz veio intensa, como se fosse um grande esforço conseguir ser
ouvida. Virei para o meu lado direito, procurando a voz, e encontrei Diana
me olhando aflita.
— Precisa sair daqui — ela disse, com urgência.
Franzi o cenho, confusa. Eu não sorria mais, toda a euforia anterior
havia passado. A expressão de Diana parecia me dizer que não era o
momento. Peguei Nathan me olhando sem entender o que estava
acontecendo.
— O que foi? — perguntei à mulher, relutantemente.
— Precisa sair daqui logo. Leve meu filho.
— Com quem está falando, Aly? — Nathan buscava o invisível a
seus olhos. Só eu podia ver a Fidly morta. Sua mãe.
O olhar de Diana se encheu de amor quando observou Nathan. Seus
olhos azuis, como os do filho, encheram-se de lágrimas.
— Meu menino... — sussurrou, passando os dedos fantasmas pelo
rosto de Nathan, ainda estampado pela confusão. — Eles estão aqui, Alyssa.
Precisa fugir. Leve meu filho com você. Por favor.
Quem está aqui? Os Desertores não podiam entrar no Outro Lado.
Ali era o lugar mais seguro para se estar.
— Eu não estou entendendo — protestei. — O que está
acontecendo?
Nathan pegou minha mão.
— Aly?
— Eu não sabia quem havia te atacado na floresta. Mas hoje eu
descobri. A mulher de descendência asiática, de olhos castanhos. Ela fez
um acordo — sua voz parecia falhar, como se a bateria que a permitisse ser
visível estivesse prestes a acabar. — A Protetora está deixando que ele
entre aqui.
O que?!
Mulher asiática. Olhos castanhos.
Os mesmos olhos que me atacaram naquela noite na floresta.
Gaia.
— Isso é impossível — murmurei.
Como eu não tinha percebido antes?
Era a única mulher asiática que encontrei aqui. Gaia estava na
cerimônia mais cedo e me olhava... Olhava para mim como se tivesse algo a
dizer. Algo a confessar. Mas por que ela faria algo assim?
— Ela está fazendo isso agora mesmo, Alyssa. Precisa confiar em
mim.
Nathan pulou na minha frente e balançou meus ombros.
— Aly, o que está acontecendo?
Encarei Diana.
Se Gaia permitisse, os Desertores conseguiriam entrar no Outro
Lado. Vicenzo conseguiria entrar. E estaríamos perdidos.
— Sua mãe — sussurrei. — Sua mãe está me dizendo que uma
Protetora nos traiu e irá permitir que Vicenzo entre no Outro Lado.
Nathan parecia ainda mais confuso.
— Minha mãe?
Assenti, apontando para o ponto onde Diana ainda estava parada,
quase se misturando ao ar.
— Ela está aqui agora e está dizendo que precisamos sair do Outro
Lado imediatamente, porque há uma Protetora permitindo que os
Desertores entrem aqui. Não sei porque posso vê-la, mas não é a primeira
vez. — Ergui meus olhos para ele. — Quando fui à dimensão original
buscar por você, foi porque ela havia me pedido, dizendo que você estaria
em perigo se não voltasse para cá — confessei. — Eu não contei antes
porque não queria chatear você. Ou fazê-lo pensar que estou louca.
Seu peito subia e descia, provavelmente enquanto ele tentava se
acalmar e assimilar as informações que joguei em sua cara como uma
bomba.
— Eu não entendo — ele sussurrou, buscando por Diana no ponto
onde eu havia apontado, segundos atrás. Mesmo que Nathan não a visse, ela
o observava, lágrimas manchando o belo rosto. — Por que não posso ver
você? — ele perguntou à mãe, ainda invisível para ele.
Diana balançou a cabeça, limpou as lágrimas e falou, com ainda
mais urgência:
— Não há tempo, Alyssa. Diga a ele. Diga que o amo e que eu
tenho muito orgulho do homem maravilhoso que está se tornando — pediu.
— E então saiam daqui. Avisem aos outros. Mas precisam ser rápidos.
Agarrei o braço de Nathan. Ele se virou para me olhar.
— Ela disse que precisamos ser rápidos — falei. — E me pediu para
dizer que ama você e que está orgulhosa pelo homem maravilhoso em que
está se tornando — repeti suas palavras.
Um lampejo de dor percorreu o rosto de Nathan, mas então ele
trincou os dentes e cerrou o punho.
— Que Protetora está fazendo isso?
— Gaia — falei. — Acho que é Gaia. Pela descrição que Diana me
deu, só pode ser ela. E ela deve ser a pessoa que me atacou na noite que saí
para buscar por você.
— Eu não tenho mais tempo aqui — Diana disse, chamando minha
atenção. — Tome cuidado, Aly. Sejam rápidos. E, por favor — implorou.
—, não deixe que Vicenzo toque em meu filho.
Eu acreditei, pela urgência e terror em sua voz, que Vicenzo estaria
no Outro Lado naquela noite.
Eu balancei a cabeça, assegurando-lhe que faria de tudo para manter
Nathan a salvo.
— Eu prometo.
Nathan encarou o local, onde Diana deveria estar, mas ela já havia
sumido, desaparecido no ar como fumaça.
— Mãe? — ele chamou, e a dor em sua voz me quebrou.
— Ela já se foi, Nate.
Eu explicaria tudo mais tarde. Contaria como vi sua mãe pela
primeira vez e tudo sobre o que falamos. Mas não tínhamos tempo agora.
Ele encarou o vazio por um tempo, mas então assentiu e disse:
— Precisamos avisar aos outros.
Eu e Nathan corremos em direção à praça, mas acabamos
encontrando meus amigos no meio do caminho. Serena e Roman estavam
rindo de alguma coisa, e Jonnah foi o primeiro a ver nossos rostos aflitos.
— O que foi?
— Vocês viram a Gaia? — disparei.
Serena franziu o cenho.
— Ela estava indo para o Lago agora há pouco. Acho que ia para a
dimensão original.
Olhei para Nathan. Ele xingou. Aquilo não era uma boa notícia.
— O que está acontecendo? — Roman perguntou.
Eu não tirei os olhos de Serena.
— Quando liguei para você na noite que saí para encontrar Nathan,
tinha alguém por perto?
Ela me olhou confusa, sem entender o sentido da pergunta justo
agora, mas respondeu:
— Eu estava em uma missão com outros Protetores, mas quando vi
que era você, me afastei deles para atender o telefone.
— Quem eram os outros Protetores?
Ela deu de ombros.
— Leona e Gaia. Por quê? Vocês estão parecendo dois loucos. O
que está acontecendo?
— Foi Gaia quem atacou Alyssa naquela noite — Nathan informou,
com certeza. Tudo se encaixava. Fui atacada por uma Protetora logo depois
de falar com Serena sobre onde eu estava, e Gaia estava com a minha amiga
naquele momento. Ela deve ter ouvido a conversa. — E aparentemente, ela
fez um acordo com Vicenzo.
— Isso é loucura — Serena protestou. — Gaia é uma boa Protetora.
— Gaia é uma Protetora amarga — Roman contradisse. — E
durante todo esse tempo, ela sempre saía de perto quando Alyssa se
aproximava.
Jonnah assentiu.
— Ela trombou com a gente um dia e foi estranho.
— Mas por que ela faria isso? — perguntei. — O que eu fiz?
Nathan balançou a cabeça.
— Nós precisamos nos preocupar em encontrá-la, Aly — disse. —
Talvez ainda possamos pará-la.
Pela primeira vez desde que o conheci, Roman pareceu concordar
com Nathan.
— Se ela deixar que entrem, nós estamos perdidos.
Então nós corremos.
Decidimos que Jonnah continuaria em direção à praça e explicaria o
que estava acontecendo aos outros, enquanto tentávamos impedir Gaia. No
segundo em que chegamos àquela conclusão, um deles já estava se
comunicando mentalmente com o restante. Serena disse que não fazia mais
de um minuto que deixou a cerimônia, então podíamos ter tempo antes de
ela permitir a entrada dos Desertores.
Talvez nem precisássemos causar alarde.
Se tivéssemos muita, muita, muita sorte.

Nós encontramos Gaia na costa do Lago, próxima ao portal. Ela


nem pareceu surpresa ao nos ver.
— Dê mais um passo em direção ao Lago, e vou enfiar minha adaga
em seu peito — Nathan rugiu.
Gaia se virou, os belos cabelos curtos e lisos se movimentando com
o vento. Seus olhos pararam em mim e eu me senti uma idiota por não ter
visto antes. Ela usou muita maquiagem naquela noite, provavelmente para
disfarçar o contorno oblíquo de seus olhos. Mesmo assim, estava óbvio que
eram os mesmos. Tinha sido ela.
— Pensei que seria mais rápida para descobrir.
Ignorei seu cinismo.
— Não faça isso.
Ela deu de ombros.
— Tarde demais.
Serena mal parecia acreditar no que via. Mesmo que distantes, elas
haviam sido amigas. Haviam lutado juntas. Eram, no ponto de vista dos
Protetores, irmãs.
— Por que está fazendo isso? — minha amiga perguntou à mulher.
Gaia não podia ter mais de vinte e cinco anos, mas eu sabia que
muito podia acontecer em pouco tempo de vida para mudar uma pessoa.
— Eu estou cansada disso. — Ela apontou para mim. — Cansada de
ter que viver em função de uma garota. — Ela deixou o Lago por um
segundo, dando um passo em minha direção. Nathan logo se enfiou em
minha frente, praticamente rosnando para ela. — Nós vivemos e morremos
por você. Tomamos decisões cruciais em nossas vidas para que você seja
melhor beneficiada. Eu perdi meu irmão por sua causa!
Eu me encolhi com a dor e a raiva em sua voz. Era uma mistura
potente, perigosa.
— Isso faz anos — Roman argumentou.
Gaia soltou uma risada fria.
— E você já se esqueceu da morte de seus pais, Roman? Já se
esqueceu de quando foi deixado órfão nesse lugar? Para viver e ser criado
por um bando de guerreiros sangrentos?
Não. Roman não parecia ter esquecido de nada disso.
— Eu sinto muito pelo seu irmão — eu disse. — Mas se fizer isso,
não estará punindo apenas a mim.
Gaia nem se moveu.
— Eu tentei punir apenas você e não consegui — disse. — Sabia
que até tentar machucar você causa dor física a nós? Literalmente! Por
causa dessa maldita tatuagem!
Não, eu não sabia disso. Mas agora fazia sentido, porque eu
lembrava de ter visto ela se encolher e hesitar durante a luta.
— Então por que não desertou? — Nathan questionou, o corpo
tenso e em alerta.
Ela balançou a cabeça, encarando-o como se ele devesse saber.
— Porque não quero ser uma Desertora. Mas também não me
interesso em ser uma Protetora mais. Quero ter controle sobre a minha vida,
tomar as decisões que melhor me beneficiem.
Ela podia me odiar, mas em um sentido éramos parecidas: nós duas
queríamos tomar o controle de nossos futuros. Mas ela nunca
compreenderia que eu também era um peão naquele jogo.
— Se pensa que Vicenzo vai concordar com isso, é ainda mais idiota
do que pensei — Nathan desdenhou.
— Gaia, por favor, nós podemos consertar isso. Podemos fingir que
nada aconteceu se não continuar por esse caminho — Serena pediu.
— Victor foi assassinado salvando a vida dela! Meu irmão! — Gaia
explodiu, apontando o dedo para mim. — Ele morreu porque os malditos
pais dela estavam tão preocupados com o laço entre ela e Nathan e o que
isso acarretaria no futuro dela, que decidiram tirá-la do único lugar seguro.
— Ela parecia sentir repulsa daquela memória. — Então meu irmão morreu
para que eles a levassem para outra cidade, longe de você — ela apontou
para Nathan. —, apenas para que, anos mais tarde, vocês ficassem juntos
novamente.
O primeiro ataque. Eu não me lembrava, mas Nathan havia
comentado sobre meu pai ter contado a ele a respeito do ataque que
sofremos após deixarmos o Lago. Foi a primeira vez que os Desertores
chegaram perto de me matar, mas o resultado foi a morte de um Protetor.
Ela olhou para o Lago, como se visse algo no horizonte que nós não
conseguíamos.
— Então eu trouxe o único que pode acabar com isso — Gaia disse,
mais para si mesma do que para qualquer um de nós. — O único que quer
matá-la ainda mais que eu. — Ela me olhou. — Estou cansada de viver em
função da sua sobrevivência, Alyssa.
— Há crianças aqui! — eu explodi, indignada. — Crianças
inocentes, Gaia!
Ela deu de ombros.
— Nenhum de nós é inocente. Nós nascemos para essa vida,
fadados a esse destino.
Então ela mergulhou o braço, em direção ao Lago. Foi uma grande
surpresa que, entre todos ali, eu tenha sido a primeira a lançar minha adaga
em sua direção. A lâmina enfiou em seu braço, aquele estendido sobre a
água. Se ela a tocasse, abriria as portas e qualquer Desertor que ela quisesse
entraria. Gaia rugiu de dor, mas me lançou um sorriso diabólico.
— Eu sabia que você não era um anjo como faziam parecer.
Eu fervilhei de ódio. Eu me tornaria o próprio diabo para manter
meus amigos e minha família a salvo. Aquelas crianças não tinham culpa de
nada, mesmo que ela afirmasse o contrário. Os Protetores recém-tatuados
mal tiveram a chance de viver. E eu havia prometido à Diana que Vicenzo
não chegaria perto de Nathan.
Eu cumpriria minha promessa.
— Saia de perto da água — ordenei. Eu mal reconhecia minha
própria voz.
Mas Gaia não ouviu. Dessa vez, ela se jogou no Lago. A adaga de
Nathan voou dessa vez, acertando-a no ombro, mas ela já estava submersa
no Lago.
Sangue sujou o Lago etéreo. Gaia emergiu das águas com um
sorriso triunfante apesar das feridas.
— Aceite seu destino, Fidly.
Eu não acreditei.
— Os Desertores não irão conseguir passar. Há Protetores fazendo a
guarda da fronteira — Serena disse, trêmula.
Nathan encarava Gaia, com os olhos frios. Era impossível dizer o
que estava sentindo.
— Não é verdade, é? — ele perguntou à mulher. — Os Protetores
estão preocupados com o Lago original e seriam facilmente dispersos com o
incentivo correto.
Gaia assentiu, caída na água.
Eu senti quando o escudo de proteção em volta do Outro Lado
tremeu, como se revoltado. Gaia puxou a minha adaga de seu braço e jogou
na areia, próxima aos meus pés. Depois, fez o mesmo com a de Nathan.
— Sempre te achei esperto, Nathan. — Ela gesticulou para as
adagas. — Pegue. Vocês irão precisar.
Foi quando nós vimos, horrorizados.
No horizonte, Desertores emergiam da água, nadando em direção a
costa. Muitos. Desertores demais. Eu mal conseguia enxergar todos, mas
haviam, com certeza, mais de trinta só naquele lado.
Poderiam haver mais.
— Precisamos ir e alertar os outros — Roman disse.
Do lado oposto ao nosso do Lago, era possível ver corpos
emergindo da água também. Ao centro, distante e dispersos, estavam os
Protetores comemorando suas novas tatuagens, completamente alheios à
movimentação.
— Não vou matar você — ouvi Nathan dizer. — Porque quero que
perceba a merda que fez quando Vicenzo fizer isso por mim.
Eu peguei nossas armas da areia e entreguei uma a Nathan. Em
minha cabeça, milhares de cenários diferentes mostravam como aquela
noite terminaria. Nenhum tinha um bom final.
Nathan deu ordens para corrermos em direção a praça.
Nós corremos em uma velocidade não humana. Enquanto nos
aproximávamos do centro do Lago, começamos a gritar para os Protetores
que nadavam, nem percebendo os Desertores que se aproximavam aos
poucos.
— Saiam da água! — gritei.
Nathan reduzia o passo quando percebia que eu não conseguia
acompanhá-los, mas logo eu forçava minhas pernas a correrem mais rápido.
A adrenalina percorria meu corpo como uma descarga elétrica.
O que vamos fazer?
O que vamos fazer?
— Saiam! — nós vociferamos juntos, balançando os braços para os
Protetores.
Eu vi quando uma garota percebeu nossos gritos e mostrou para os
outros. Ela se virou para o outro lado, onde um Desertor se aproximava e
gritou. Não era um grito de medo, percebi. Era um grito de guerra. Um
aviso. Um alerta a seus irmãos.
Ela tinha sido treinada para aquilo.
Mas até que ponto seu treino serviria quando eram dezenas de
Desertores contra algumas dúzias de Protetores cercados em seu território
sagrado?
Àquele ponto, eu quase era capaz de ouvir o escudo rugir em
reprovação. Gaia havia liberado a entrada de muitos Desertores, e
Cassandra não estava mais por perto para controlar a redoma protetora.
Todos já estavam cientes do ataque, tanto os Protetores no Lago quanto
aqueles na praça. Mesmo assim, eu senti. Todos sentimos.
O escudo tremeu, rugiu e, por fim, estilhaçou-se de vez.
Os jovens Protetores começaram a sair da água e correr para a costa
com afinco. Alguns chegaram à areia. Outros já corriam em direção à praça,
provavelmente buscando por armas.
Ainda assim, eu vi quando o Desertor agarrou um garoto, com a sua
nova tatuagem estampada no braço que ergueu para tentar se salvar. Eu vi
quando esse mesmo Desertor rasgou o pescoço do garoto e o jogou de volta
ao Lago, como se não passasse de uma carcaça vazia.
Logo haviam muitos corpos jogados pelo Outro Lado. E não havia
mais nada que pudesse manter os Desertores do lado de fora.
O grito de horror ensurdeceu minha mente, mas não saiu pela minha
boca. Nós paramos apenas por um segundo, para puxar alguns Protetores
que caíam na areia, mas não ousamos parar por tempo o bastante para lutar.
Os mais jovens se enrolavam em seus mantos, alguns seguindo em
direção à praça, outros parando para bloquear os Desertores, impedindo-os
de chegar muito perto de mim.
Nós estávamos encurralados e haviam, para cada um de nós, cinco
Desertores.
Não tive coragem de olhar para trás e encarar a água onde Gaia
ainda estava e, na qual, muitos Desertores emergiam.
Por algum motivo, em desespero, pensei em Zeus. Mas me lembrei
que Nathan havia levado o seu cachorro para aproveitar o Lago naquele dia.
Ele ainda estava lá, seguro, dentro do território que, eu esperava, ainda ser
protegido. Pelo menos eu não precisava me preocupar com ele.
Quando chegamos à praça, Jonnah já tinha conseguido alertar os
Protetores, mas nosso número era vergonhosamente inferior. Tinha sido um
péssimo momento para enviar os outros Protetores para fora do Outro Lado
e eu não conseguia deixar de pensar que Vicenzo tinha planejado tudo isso.
Toda a agitação no território em volta do Lago não podia ser uma simples
coincidência.
— Nós entramos em contato com os Protetores e pedimos reforços
— minha mãe disse, buscando por qualquer machucado em mim —, mas os
Desertores cercaram o território. Vai demorar até que consigam quebrar a
barreira.
Eu tremi.
— O que vamos fazer?
Atrás de nós, os Protetores mais velhos que ainda restavam,
liderados por Jasper, tentavam bloquear a investida dos Desertores.
— Vamos te tirar daqui — meu pai disse.
O que?
— Estamos cercados — informei-lhes o óbvio. — Não tem para
onde ir!
Eu sabia que a passagem pela qual os Desertores entravam, era
nossa única forma de sair daqui.
As crianças, reunidas em círculo por Ravenna, estavam quietas. Até
as que choravam, faziam isso baixinho.
Jasper deu um passo à frente.
— Vou tentar segurá-los. Decidam-se logo. — Então ele apontou
para os Protetores mais velhos e os que haviam acabado de passar pela
Iniciação. — Vamos formar uma linha em frente à praça. Não deixamos
ninguém passar! Entendido?
Os Protetores assentiram, tiraram suas armas e começaram a se
organizar. Lirya, que só então percebi estar ali, foi a primeira a se
posicionar, dando-me um aceno firme de cabeça.
Nós encontramos aliados nos mais diversos cenários. Eu me
envergonhava de ao menos ter cogitado que pudesse ter sido ela que me
atacou na floresta aquela noite.
— Vamos dar um jeito — Nathan falou.
— Eu não vou abandonar todo mundo aqui. Vicenzo veio por mim.
— Exatamente — minha mãe rosnou, mas quando olhou para
Nathan, ela parecia implorar. — Tire minha filha daqui e a mantenha viva.
Vou segurar Vicenzo pelo tempo que eu puder.
Nathan assentiu, firmemente, como o guerreiro que era. Mas eu
esbravejei:
— Não.
Ela não ligou para meu protesto, e se virou para meu pai.
— Você vai com eles.
Meu pai balançou a cabeça, determinado.
— De jeito nenhum.
Akantha, como se enviada pelo próprio diabo, se intrometeu.
— Ninguém vai a lugar algum, pelo que posso ver.
Ela apontou para a horda de Desertores que agora investia contra os
Protetores. Era tudo o que tínhamos. Todos os Protetores, os mais velhos e
até os mais jovens estavam ali, lutando e tentando proteger o centro daquela
cidadela com bravura, liderados por Jasper.
Todos nós sabíamos as nossas chances.
Eu ergui o queixo e trinquei os dentes. Eu precisava me lembrar que
havia sido treinada para isso. Se houvesse uma luta, eu estaria nela.
Eu não era uma donzela.
— Serena — chamei. Minha amiga parecia prestes a vomitar —,
leve as crianças para a montanha. No lado direito, próximo às rochas na
costa do Lago, há uma entrada pequena que a levará para uma caverna. As
crianças ficarão seguras lá.
Nathan assentiu.
— Boa ideia. — Ele se virou para Serena e explicou melhor a
localização da fenda que dava passagem para dentro da caverna. — Você
fica lá, de guarda para caso alguém tente entrar.
— Eu não posso deixar vocês...
Foi Roman quem se intrometeu. Ele parecia tão desesperado para
tirá-la de lá quanto eu. Nós sabíamos que Serena era uma grande guerreira,
mas eu preferia ter certeza de que ela ficaria segura, pelo menos enquanto
fosse possível.
— Alguém precisa proteger as crianças, Serena. Faça isso.
Apesar da firmeza em suas palavras, havia carinho em sua
expressão. Eu sabia, no fundo, que ele estava aliviado que um de nós estaria
longe daquele inferno.
— Você deveria ir também, filha — meu pai disse, pois sabia
melhor do que ordenar.
Eu balancei a cabeça.
— É minha luta também, pai. Se ele me quer, terá que me pegar.
Um segundo mais tarde, Serena já corria com as crianças, em
direção à montanha. Ela fez questão de me abraçar forte antes de ir e
sussurrar, em meu ouvido, um pedido. Não morra.
Eu faria o meu melhor.
— Nathan e Roman, — minha mãe chamou — liderem os mais
jovens. Jasper já tem muito com que se preocupar com o número escasso de
Protetores. — Ela apontou para o grupo à nossa esquerda. — Mas fiquem
para trás. Iremos manter a guarda sobre essa praça, até que os Protetores do
lado de fora consigam entrar e nos ajudar.
— Isso se tivermos sorte de chegarem antes de Vicenzo — Akantha
murmurou.
Velha amargurada. Ela quase parecia se divertir com aquilo, como
se fosse apenas mais uma justificativa para exigir o que queria das
Guardiãs.
— Cale a boca — sibilei. O ódio em meu rosto deve ter sido
suficiente para fazê-la se calar. E talvez minhas adagas em mãos também.
— Pegue a porcaria de uma arma e vá lutar.
Dei as costas para ela, antes que retrucasse. Eu não sabia se
conseguiria manter minha faca longe da sua jugular por muito tempo.
Meu pai afivelou uma espada em meu cinto. Eles haviam
conseguido reunir muitas armas com o alerta de Jonnah. Isso era bom. Ele
se abaixou e colocou duas pequenas facas em cada uma de minhas botas.
— Seja esperta, Alyssa. — Ele apertou meu nariz. — Lute como a
guerreira que é. Não se renda.
Assenti.
Eu lutaria. Por eles. Por mim.

Apesar de liderar os mais jovens, Nathan não deixou meu lado.


Meus pais também não. Ravenna mal falava, parecia incapaz de liderar no
caos, então minha mãe fazia isso por ela. Mas pelo menos a mulher serviu
para algo, com suas espadas gêmeas. Akantha, por outro lado, dava palpites
demais, que decidimos ignorar. Para nosso bem, ela sabia lutar.
Os Desertores começaram a infiltrar a barreira criada por Jasper.
Àquele ponto, até mesmo Nathan havia aberto a mente, para que pudesse se
comunicar com os Protetores do lado de fora. Era uma loucura. Lutávamos
daqui de dentro e eles de lá, tentando adentrar o Outro Lado, mas algo os
estava detendo.
Um Desertor avançou contra nós, espadas em punho, e eu ataquei,
batendo minha adaga contra sua espada, prendendo-a, enquanto enfiava
minha outra adaga em seu abdômen.
— Vadia — ele rosnou.
Torci a adaga e depois a arranquei de seu corpo.
— Vá para o inferno e reclame com o diabo — sibilei, e então cortei
sua garganta com um só golpe.
Minha consciência, aparentemente, já não era mais um problema
quando o assunto era matar esses desgraçados. Eles estavam invadindo a
minha casa. Estavam machucando meus amigos, ameaçando minha família.
Se dependesse de mim, eu mandaria todos para o inferno.
O Desertor caiu aos meus pés, morto.
— Boa — Nathan elogiou, mas logo me puxou para trás de si
novamente. Eu bufei para suas costas, mas ele explicou: — Quanto menos
deles te verem, melhor.
A poucos metros, Jonnah lutava com dois Desertores e minha mãe
foi ao seu socorro, matando a mulher marcada por uma cicatriz grotesca em
seu rosto. Jonnah matou o homem restante.
Meu pai tinha uma espada e uma faca em mãos. Ele era aquele de
nós com maior desvantagem, visto que não podia correr tão rápido, nem
possuía a força equivalente aos Protetores e Desertores. Mas ele se manteve
firme, ao lado de Nathan, pronto para lidar com qualquer ameaça.
— Pai — chamei. —, fique atrás de mim.
Ele me lançou um olhar ressentido.
— Eu sei o que estou fazendo, filha.
Minutos mais tarde, ele provou isso, matando um Desertor que se
aproximou demais da fonte onde nos encontrávamos. Nathan estava certo
quando disse que ser o mais forte nem sempre era o mais importante. Ser
inteligente poderia servir muito mais.
Eu suava intensamente e não conseguia manter a mente limpa. Os
gritos e grunhidos estavam acabando comigo. Quantos Protetores haviam
morrido ainda no Lago?
Ao longe eu conseguia ver Jasper lutando bravamente, os Protetores
ao seu lado fazendo de tudo para manter a guarda. Eu ouvia eles gritarem
ordens relacionadas a mim. “Não deixem que se aproximem da Fidly!”.
“Mantenham a guarda e protejam a Fidly!”.
Toda vez que via um deles cair, eu sabia que tinha sido minha
culpa.
Eles estavam ali por mim. Estavam morrendo porque não poderiam
permitir que chegassem até mim.
O que aconteceu em seguida foi caótico. Uma nova onda de
Desertores pulsou sobre os Protetores. As ruelas adjacentes à praça
começaram a se encher. Eles vinham de todos os lados.
— Onde estão os outros Protetores? — Nathan rosnou, me puxando
para mais perto.
Meu pai estava com as costas contra as minhas. Eu encarava as
costas de Nathan. Minha mãe flanqueava um de meus lados e Roman o
outro. Eu parecia a merda de um estandarte em um jogo de caça à bandeira.
— Eles ainda estão tentando entrar — minha mãe disse.
À nossa volta, Desertores nos cercavam.
— Vicenzo trouxe todos os malditos Desertores que tinha? —
Roman se queixou.
Era o que parecia, sim.
E a pergunta que nenhum de nós tinha coragem o suficiente de
fazer: onde diabos Vicenzo estava?
Cada vez mais, os Protetores recuavam, cercando-nos na esperança
de manter uma proteção simbólica contra os inimigos que, por sua vez,
investiam contra nós. Eu peguei o olhar preocupado e descrente de Jasper.
Nós não sairíamos vivos daquilo.
— Protejam a Fidly enquanto estiverem de pé! — ordenou.
Os Protetores deram um grito de guerra que fez o chão tremer.
Como resposta, um trovão rugiu no céu limpo de nuvens. Era como
um alerta. Um aviso do que viria em seguida.
Então, o mundo queimou e o inferno se abriu.
Os Desertores avançaram. Logo, as posições meticulosamente
controladas de meus amigos e pais se dispersaram com a força do ataque.
Eu empunhei minha espada quando os Desertores atacaram com força total.
Mergulhei no chão, deslizando até onde Jonnah lutava contra um grupo de
inimigos sozinho. Nathan gritou meu nome, mas não me permiti temer.
Usei tudo o que havia aprendido naqueles meses e durante toda a minha
vida.
Cortei um Desertor antes que ele pudesse quebrar o pescoço do meu
primo. Jonnah se empurrou para frente, enrolando as pernas no torso de um
homem e girando-o até tê-lo no chão. Sua própria espada se afundou no
peito do inimigo.
Meu primo ergueu os olhos para mim e assentiu em agradecimento.
Nós lutamos lado a lado, até que aquele grupo não fosse mais uma
ameaça. Então Jonnah me escoltou de volta para onde nossos amigos ainda
estavam reunidos. Eu vi Nathan empurrando contra Desertores, matando
quem ficava em seu caminho, até me encontrar. Ele parecia desesperado
quando me encarou de perto. Seus olhos desceram pelo meu corpo,
procurando algum machucado, mas não havia nada demais, apenas alguns
arranhões.
— Precisamos sair daqui. — Eu apontei o óbvio.
Outro trovão ressoou no céu. Aquilo parecia cada vez menos
natural.
Os Desertores, de alguma forma, conseguiram se enfiar no meio de
nosso círculo e não houve outro jeito a não ser se dispersar. Meus pais
foram para um lado, forçados pelo fluxo, enquanto gritavam para que
Nathan me tirasse dali. Eu, Nathan e Roman para outro. Jonnah se juntou a
Jasper em uma luta corporal com um grupo de Desertores. Os outros
Protetores, incluindo Akantha e Ravenna, estavam espalhados pela praça
que, naquele momento, já estava se tornando vermelha.
Nós pisávamos em um mar de sangue e corpos.
— Se espalhem! — minha mãe gritou.
Ela queria que saíssemos da praça, abandonasse nossa redoma. Não
era a ideia original. Havíamos pensado que os Protetores seriam mais
rápidos e conseguiríamos manter a guarda no centro da cidadela. Mas
aquilo era um sonho distante agora.
Nathan me puxou para uma ruela e me enfiou dentro de uma cabana.
Roman nos seguiu, o rosto cheio de sangue.
— O que aconteceu com você? — quase gritei, puxando seu rosto
para que eu pudesse ver melhor.
— Acertaram meu nariz. Não é nada demais — Roman disse.
Virei para checar Nathan, mas ele só tinha sangue respingado nas
roupas e um pouco no rosto. Ele murmurou que estava bem, enquanto
passava as mãos pelo meu torso, garantindo que não havia nenhuma
fratura.
— Não estou machucada.
Roman pigarreou.
— O que fazemos agora?
Nathan não parecia ter ideia de como responder a isso.
— Gaia disse que Vicenzo viria. Onde ele está? — questionei.
— Se for uma opção, prefiro não descobrir — Roman murmurou.
— Aquele bastardo tem um plano — Nathan disse, com convicção.
— Ele não atacou antes, e agora está se escondendo. Deve ter um motivo.
Roman observou a luta pela janela.
— Ei — ele chamou. — Nós temos companhia.
Não tivemos tempo de responder. Um Desertor e uma Desertora
arrombaram a porta, fazendo-a voar pelo cômodo. Nathan precisou me tirar
do caminho, ou ela teria me acertado em cheio.
Roman avançou contra o homem e a mulher sorriu para mim e
Nathan. Seus dentes eram podres. Nathan atacou primeiro, mas ela
bloqueou o ataque com sua espada. Eu me joguei no chão, chutando suas
pernas. Ela caiu, com um baque, mas me puxou pelas pernas. Nós rolamos
uma por cima da outra, suas mãos em meu pescoço e eu chutando suas
costelas com força. Eu tentei afastá-la, fincando minhas unhas em seu
rosto.
No momento em que eu tentava pegar uma golfada de ar, Nathan
enfiava a espada na coluna da mulher. Ela tossiu sangue em meu rosto. Saí
debaixo de seu corpo e tentei limpar seu sangue da minha pele. Argh.
Aquilo era nojento e pegajoso.
Um urro de dor chamou nossa atenção e nós nos viramos em busca
do autor do som.
Roman tinha uma adaga enfiada entre suas costelas. Eu arquejei,
correndo em sua direção. Tão rápido quanto uma flecha em disparada,
Nathan balançou a espada no ar e cortou a cabeça do Desertor. A cabeça
caiu no chão, seguida pelo corpo.
Eu segurei Roman, que estava se agarrando à parede para se manter
em pé. Ele já estava pálido. A adaga, apesar de ainda estar alocada em seu
corpo, deixava uma ferida terrível que já sangrava.
Não. Não. Não. Não.
Eu o deitei no chão, colocando sua cabeça em minhas pernas.
Nathan se agachou ao meu lado, encarando o corpo ferido de Roman sem
reação.
— Acho que mereço isso — murmurou, olhando-me. — Eu baixei a
guarda.
Lágrimas queimavam meus olhos.
Ele não merecia nada disso. Roman era um bom garoto. Era ético e
honesto e corajoso. O tipo de pessoa que, se você estivesse afundando,
morreria para te trazer de volta à superfície. Esse não seria seu fim. Eu não
aceitaria que fosse.
— Não fale idiotice. Você nunca baixa a guarda — Nathan retrucou,
desafivelando o cinto de armas.
Roman bufou uma risada, descrente.
— Você vivia se gabando disso — resmungou.
Nathan deu de ombros, concentrado nas opções que poderiam salvar
a vida de Roman. Tudo o que eu conseguia fazer era não berrar.
— Bem, eu sou um babaca. A verdade é que você até que é bom. —
Eu sabia que ele estava tentando melhorar a situação com um pouco de
humor, mas não estava funcionando para mim e Roman parecia olhá-lo
como se não o reconhecesse. Ou, talvez, como se não o tivesse visto há
anos. — Vamos ter que parar o sangramento. — Nathan avisou. — Não vai
ser legal.
Roman tossiu sangue e encarou o Protetor que um dia tinha sido seu
amigo.
— Já não está muito legal agora, Cross.
— Aly — Nathan chamou —, tire a adaga e eu vou enrolar o cinto
sobre a ferida para conter o sangramento.
Eu assenti. Minhas mãos tremiam quando toquei a arma.
— Isso é perda de tempo — Roman resmungou.
Eu olhei feio para ele. Não era o melhor momento para ele abusar de
seu pessimismo irritante.
Mas foi Nathan que o interrompeu:
— Cale a boca.
Eu sabia, apenas de olhá-los, que todo o passado pairava sobre suas
cabeças agora. Nathan, eu vi, ainda se importava com Roman. E o Protetor
ferido o olhava como se estivesse tentando entender o que tinha acontecido
entre eles. Apesar das brigas e das ameaças, eles se importavam um com o
outro.
Parte de mim não acreditava que Nathan o tivesse deixado para trás
quando deixou o Outro Lado.
— Aposto que está arrependido de ter voltado para cá, não é? —
Roman provocou. — Esse não é o melhor momento para estar preso aqui.
E era minha culpa. Nathan havia voltado por mim. Havia decidido
ficar naquele lugar que ele odiava porque queria me proteger.
Engoli a culpa com dificuldade.
Tirei a adaga com um puxão firme e logo enfiei minhas mãos sobre
a ferida, para conter o sangramento. Roman urrou de dor e Nathan se
apressou para passar o cinto por baixo de seu corpo e contorná-lo sobre a
ferida aberta.
— O fato de ainda estar falando que nem um papagaio é um bom
sinal — Nathan retrucou. — Pelo menos não deve ter atingido seu pulmão.
Roman balançou a cabeça, ainda mais pálido pela dor que sentia,
enquanto Nathan prendia o cinto com firmeza. Quanto mais apertado,
melhor para conter o sangramento.
— Talvez um pouco — ele sussurrou.
Roman estava quase desmaiando em meus braços.
— O que vamos fazer? — perguntei à Nathan, desesperada.
Ele encarou Roman, o rosto franzido e tenso.
— Estou avisando aos Protetores do lado de fora para, quando
entrarem, virem imediatamente buscá-lo.
— Precisamos de Aisha — falei.
Nathan me olhou com dor estampada nos belos olhos.
— Precisamos de muita coisa agora, Aly.
Roman gemeu de dor e resmungou alguma coisa.
— O que foi? — Nathan perguntou. — Não deu para entender o que
disse.
— Eu disse — Roman sussurrou, mais forte dessa vez. —, que não
entendo porque me deixou para trás. Eu não tinha mais ninguém e você foi
embora sem pensar duas vezes.
Talvez Roman estivesse delirando. Eu sabia que ele nunca exporia
seus sentimentos em sã consciência.
Nathan travou, os punhos cerrados.
— Nunca deixei você para trás.
Roman balançou a cabeça, irritado.
— Ele está falando sobre quando você deixou o Outro Lado — eu
disse baixinho para Nathan.
— Eu não deixei você. — Nathan insistiu, fazendo com que Roman
erguesse os olhos para ele. — Você me dedurou para Ravenna.
O que?
Roman começou a protestar.
— Eu não...
— Ravenna me encontrou naquela noite e disse que você tinha
avisado sobre o plano. Disse que, se eu quisesse ir, deveria ir sozinho
porque você não apareceria.
Aquela desgraçada...
— Ravenna mentiu para os dois — constatei. Roman estava fraco
demais para falar, mas observava Nathan com atenção redobrada agora. —
Ravenna encontrou Roman roubando as armas e disse que você já tinha ido
embora, sem ele. Então ela foi até você e disse que Roman não iria mais. —
Eu olhei, de um para o outro. — Ela queria separar vocês.
— Por que? — Roman sussurrou, fracamente.
— Porque juntos éramos fortes demais. — Nathan percebeu,
encarando o amigo com intensidade, como se só agora entendesse como
todos aqueles anos tinham sido perdidos por uma idiotice. Se tivessem
parado e conversado, poderiam ter resolvido isso. — Ela queria me isolar.
Outro trovão soou alto e claro. A cabana tremeu com o som.
Ok, aquilo não era coincidência.
Nathan encarou a porta escancarada e, depois, voltou para o corpo
de Roman.
— Vou te esconder no banheiro — informou, já pegando Roman nos
braços.
Roman era praticamente do tamanho de Nathan, mas foi erguido
com facilidade. Eu ajudei, segurando a cabeça do Protetor e pressionando a
ferida com cuidado para que o cinto não saísse do lugar. Nós desviamos da
cabeça decepada e dos corpos mutilados dos Desertores e fomos em direção
ao banheiro.
Nathan o colocou dentro da banheira e quando se despediu, as
palavras eram determinadas:
— Dê um jeito de não morrer. Porque quando tudo isso acabar, nós
vamos matar aquela desgraçada.
Roman assentiu, com toda a força restante que tinha. Eu me abaixei
e passei meus braços pelo seu ombro e o abracei com delicadeza. Eu
tentava segurar o choro, mas eu odiava ter que me despedir dele. Ele ficaria
bem — tentei me convencer.
— Por favor, não morra.
Ele sorriu para mim, mas foi um sorriso triste.
— Eu digo o mesmo a você.
Eu assenti com determinação.
— Vamos nos ver depois que esse caos acabar. Talvez vocês
precisem de ajuda para matar Ravenna.
Nathan e Roman riram baixinho, em concordância.
Aquilo não era o fim. Não era uma despedida. Eu não permitiria que
fosse.
— Nathan — Roman chamou, antes de sairmos. —, proteja ela.
Nathan assentiu, firmemente.
— Com a minha vida.
Um novo trovão rompeu do céu, e eu poderia afirmar que até
mesmo o Lago se rebelou em resposta.
— Que merda?! — Nathan reclamou, cerrando o punho.
Nós saímos do banheiro, fechando a porta e fomos até a ruela com
cuidado. Lá fora, não havia nenhum Desertor ou Protetor. O barulho de
gritos e grunhidos haviam cessado.
Mais um trovão e eu cerrei o punho.
— Há algo errado — afirmei.
O céu estava escuro, mas sem nuvens. Não havia tempestade à
vista.
Aquele trovão, percebi, era um aviso. Um chamado, talvez.
Vicenzo, de fato, tinha um plano.
Eu e Nathan caminhamos juntos até a praça, com as armas em mãos,
prontas para serem usadas. Antes de sairmos, Nathan se comunicou com
Serena só para saber se ela e as crianças ainda estavam seguras na caverna
sob a montanha e, para nosso alívio, eles estavam. Ela havia conseguido
manter as crianças quietas quando ouviu Desertores por perto e, graças ao
Destino, nenhum deles encontrou o caminho para dentro do esconderijo.
Agora, caminhávamos para o centro daquela cidadela, sabendo com
certeza de que algo estaria nos esperando.
Algo, não.
Alguém.
Eu podia sentir que Vicenzo estava ali. Cada passo que eu dava em
direção ao lugar, meu corpo se arrepiava e tremia em receio.
Nathan havia tentado me convencer para que pudesse me levar para
longe dali, mas eu sabia que não havia para onde correr. Os Protetores ainda
não haviam conseguido entrar, o que dizia que havia algo mais do que
Desertores os mantendo afastados. E meus pais, meu primo e Protetores
inocentes estavam ali. Eu não deixaria que Vicenzo os matasse.
Então nós lutaríamos.
Eu sabia que Nathan estava prestes a me jogar sobre o ombro e me
levar para longe, mas prometi que enrolaríamos até que os Protetores e as
Guardiãs chegassem para ajudar. Aisha e Cassandra deviam estar perto. Eu
desconfiava que precisariam de Cassandra para quebrar a barreira que
impedia que os Protetores entrassem no Outro Lado.
Mas nada, em todos aqueles meses de treinamento, poderia ter me
preparado para o que vi.
Nathan fincou os pés no chão, parando de repente, tão chocado
quanto eu.
A praça havia se transformado em um palco de Desertores. Eles
cercavam todo o terreno central. Nós não podíamos ver quem estava no
centro, mas eu ouvia a voz de minha mãe, irritada, grosseira e ameaçadora.
Havia uma grande barreira de Desertores de costas para nós. Apesar
de provavelmente poderem nos ouvir se aproximando, eles nem se
mexeram.
Então, uma voz profunda e grossa ressoou pela praça:
— Abram espaço para nossos queridos convidados, companheiros.
Os Desertores se moveram todos ao mesmo tempo, abrindo o
caminho para o centro da praça. Ali, parados como se estivessem presos por
correntes invisíveis, estava meus pais, Jonnah, Jasper e todos os Protetores
sobreviventes — incluindo Ravenna e Akantha, o que não me deixava
aliviada, e talvez eu fosse uma péssima pessoa por isso. A maioria estava
machucada e ensanguentada, mas pelo menos estavam vivos.
Mas o que de fato chamou minha atenção foi o homem parado à
minha frente. Ele parecia uma muralha. Eu apostava que tinha quase dois
metros de altura e era cheio de músculos. Sua pele bronzeada estampava
roupas de couro negro, bem parecidas com as dos Protetores, mas muito
mais elegantes. Seu cabelo era escuro e parava na altura dos ombros. Tudo
nele parecia ameaçador. A curva reta e angular de seu maxilar, marcado por
resquícios de sua barba. O nariz era reto e a boca era larga e cheia. As
sobrancelhas eram pesadas e angulosas e quando ele me olhou, eu quis
desaparecer. Quis ser levada pela brisa, fugir imediatamente.
Nunca haviam me dito o que esperar. Não havia nenhuma descrição
daquele homem em lugar algum, mas eu sabia que era ele.
Vicenzo estava parado a poucos metros de distância, o olhar fixo em
mim. Apesar da maioria dos Desertores terem marcas mais grotescas, a dele
era igualmente aterrorizante. Seus olhos — eu mal podia acreditar — eram
como fumaça.
Era o preço que a imortalidade havia lhe cobrado. A marca que a
crueldade havia deixado naquele belo rosto. Sua íris era cinza,
embranquecida, como um dia de geada intensa. Era quase impossível
distinguir a íris da esclera.
— Inacreditável — ele falou, mais consigo mesmo do que com sua
plateia muda. — De perto você é ainda mais inacreditável.
Eu vi a adaga que assombrava meu inconsciente durante a noite.
Aquela que sempre aparecia para matar as meninas em meus pesadelos. O
cabo da arma parecia ser feito de ouro branco, ornamentado por desenhos
arcaicos e rubis vermelho-sangue. Uma pedra ônix enfeitava seu pomo. Por
sua vez, a lâmina era maior que meu antebraço.
— Eu estive esperando por você, Alyssa — ele pronunciou meu
nome como se fosse um insulto. Seus olhos me deixaram e caíram em
Nathan, que tentava me esconder atrás de si. — Você tem dificultado muito
meu trabalho ao longo dos anos, garoto.
Nathan deu de ombros, aparentemente imperturbável, se não fosse
sua mão firme em frente ao meu corpo, segurando minha cintura.
— Eu pedi que parasse de mandar seus lacaios atrás de mim.
Alguns Desertores relincharam, ofendidos, mas Vicenzo ergueu uma
mão e eles voltaram a se silenciar.
— Você é ousado, assim como sua mãe era — disse. — Aliás, onde
está seu pai?
Eu fiquei ainda mais tensa.
— Desgraçado — Nathan rosnou.
Agarrei seu braço para que ele não avançasse em Vicenzo.
Nesse momento, alguém se movimentou, saindo de trás da fonte e
caminhando até nós. Eu arfei ao vê-la. Os cabelos eram cinza, mas ela não
parecia ter mais de trinta anos. Se eu pensava que ela podia ser mais uma
Desertora, ao ver seu rosto eu descartei essa possibilidade. Desertores
tinham alguma parte de seus corpos marcados, como uma podridão que
havia sido espalhada, mas ela era diferente daquilo. Seu rosto não tinha um
resquício de humanidade. Seus olhos eram órbitas negras, sem espaço para
qualquer luz. Seu rosto tinha linhas proeminentes e as maçãs de seu rosto
pareciam capazes de cortar. O vestido longo e preto que usava, parecia
flutuar com a brisa leve de verão.
Eu não sabia o que ela era, mas tinha certeza de que não pertencia
àquele mundo.
Ela sorriu, algo que podia ser melhor descrito como uma exposição
de seus dentes afiados e escurecidos.
— Estou começando a ficar entediada, Vicenzo.
O Desertor deu um aceno despreocupado para aquela... mulher.
— Alyssa Monroe — ele testou meu nome em seus lábios. — Você
é uma garota diferente, não é? — Apontou para minha mão direita agarrada
ao braço de Nathan, onde a marca da Fidly estava estampada. — Além
dessa marca, você é filha de um humano e uma Protetora. E, bem — então
gesticulou para meu rosto, como se estivesse levemente surpreso com o que
via. — É interessante.
O que é interessante?
Vicenzo olhou para a mulher ao seu lado e assentiu.
De repente, eu e Nathan estávamos sendo arrastados para o centro
da praça, para mais perto do Desertor. Minha mãe gritou e meu pai tentou
se mover, mas algo parecia impedi-los. Era como se houvesse uma corda
nos puxando e outra os mantendo presos.
Mas que merda?
— Acredito que devo apresentá-los à minha mais nova aliada — ele
fez uma menção para a mulher de cabelos cinza. — Esta é Sybil, uma
feiticeira que encontrei por aí. — Ele se virou para os Protetores que ainda
estavam vivos, o que eram poucos. — Vocês devem estar se perguntando
como consegui entrar em seu território sagrado. Gaia, claro, foi uma bela
ajuda, mas foi graças à Sybil que sua preciosa casa agora não possui mais
as barreiras de proteção.
Eu arqueei a sobrancelha. Uma feiticeira? Eu nunca tinha ouvido
ninguém falar sobre isso, mas sabia que havia outras dimensões de onde, às
vezes, algum ser poderia conseguir escapar e adentrar nosso mundo. Ela, de
fato, não pertencia à Terra.
Vicenzo caminhou até mim. Ele ergueu a mão para me tocar, mas
Nathan atacou, enfiando a adaga em seu peito, bem onde o coração deveria
estar.
Eu encarei a cena, horrorizada quando Vicenzo olhou para a adaga
fincada em seu peito e depois ergueu os olhos para Nathan, que ainda
segurava o pomo da arma. Ele parecia sentir o desconforto da lâmina em
seu corpo, mas nem mesmo tropeçou para trás com o golpe. Nathan soltou a
arma, com o peso dos olhos do homem em si, e deu um passo para trás,
levando-me junto.
O Desertor imortal fechou a mão no pomo da adaga e a tirou do
peito. Havia sangue na lâmina, mas fora isso, a ferida já parecia se
cicatrizar.
— O que esperava fazer com isso, Nathan?
Nathan não respondeu, mas continuou nos afastando do homem.
Vicenzo ergueu o dedo indicador e, como se entendesse a ordem, a
feiticeira balançou as mãos. Com o movimento, Nathan foi jogado para o
lado, seu corpo sendo lançado como uma simples bola. Eu gritei por ele e
arfei quando o vi bater contra a base esculpida da fonte.
Pelo barulho, ele poderia ter quebrado algo.
A ira tomou minha mente e meu corpo como uma onda de calor. Eu
avancei contra Vicenzo tão rápido que ele mal me viu chegando. Soquei seu
rosto e tentei enfiar minha adaga em sua garganta, mesmo sabendo que
aquilo não causaria nada mais que um desconforto.
Ele parou minha mão no meio do caminho. Seus olhos de geada
pareceram brilhar.
— Eu adoro quando o Destino me manda meninas raivosas. É mais
divertido — ronronou, perto do meu rosto. — Diana era assim — ele
observou Nathan grunhir, tentando se levantar, de canto de olho.
— Solte ela! — minha mãe berrou, de onde ainda estava presa por
qualquer que fosse o feitiço que Sybil usava.
Vicenzo fechou a mão em meu pescoço.
Seria isso?
Era assim que acabava?
Eu pude ver a expressão assombrada, em pânico de Nathan, que
tentava se erguer. A feiticeira provavelmente tinha conseguido quebrar suas
costelas com aquilo. Do outro lado, minha mãe e meu pai me encaravam
como se estivessem prestes a ver seu mundo ruir. Uma lágrima solitária
desceu pelo meu rosto. Jasper e Jonnah se debatiam, mas ambos pareciam
muito machucados.
Ravenna e Akantha me encaravam com pesar, o que foi
surpreendente. Assim como outros Protetores, elas me olhavam sabendo
que ali acabaria mais uma chance de se verem livre de Vicenzo. A profecia
seria atrasada e a Fidly não cumpriria seu destino.
Eu queria saber se Gaia estava satisfeita ou se o imortal a tinha
matado antes que pudesse me ver morrer.
— Pense pelo lado bom, eu permiti que vivesse por bastante tempo
até. — Vicenzo sussurrou para mim.
Seus dedos se apertaram mais e eu sufoquei.
Então, entre um sugar por ar e a percepção de inutilidade, eu vi
Nathan se erguer, rugindo de dor, e se lançar contra a feiticeira. No
momento em que caiu sobre ela, uma de suas facas estava pronta para se
alojar no meio da coluna da mulher.
Sybil gritou de dor e se contorceu no chão, buscando uma forma de
tirar a faca de sua coluna. Aparentemente, aquilo não era suficiente para
matá-la.
Como era possível matá-la?
Com aquela dispersão, Sybil perdeu o controle das amarras. As
correntes invisíveis que mantinham meus pais e amigos presos se soltaram.
Meu pai foi o primeiro a perceber o que Nathan tinha conseguido fazer. Ele
correu tão rápido que, por um segundo, não pareceu humano.
Papai bateu contra o corpo de Vicenzo, que me soltou com o
impacto, caindo no chão.
Meu pai atacou, então.
— Nunca mais toque na minha filha! — meu pai rugiu, desferindo
golpe após golpe.
Vicenzo, no entanto, se esquivava dos golpes com facilidade. Sua
força e velocidade não eram páreos para um humano. Eu cambaleei para
frente, querendo alcançá-los, mas a cada golpe, eles se afastavam mais.
A feiticeira estava quase conseguindo arrancar a faca e os
Desertores, no momento em que Vicenzo foi atacado, voltaram a se
movimentar, impedindo que os Protetores avançassem contra ele. Minha
mãe tentava abrir caminho entre eles, gritando o nome do meu pai.
Eu forcei meu corpo a cooperar, meu pulmão a respirar, e corri na
direção deles. Vicenzo agora desferia os golpes, fortes o suficiente para
deixar meu pai debilitado. Ao me ver chegando perto, o desgraçado me
olhou e sorriu.
Eu nunca me esqueceria daquele sorriso.
Ou do que aconteceria em seguida.
Meu pai sangrava, mas se mantinha em pé. Ele me viu também. Em
seus olhos eu vi tudo. Desespero e dor. Mas acima de qualquer coisa, a luz
persistia. Amor. Devoção. Esperança.
Uma vez ele havia me dito que eu era esperança naquele mundo
deturpado.
Mas a esperança foi destruída, derrotada e estilhaçada quando
Vicenzo fechou as mãos na cabeça de meu pai e, com um movimento
rápido, quebrou seu pescoço.
O grito ficou preso em minha garganta, mas em minha mente era
como se eu nunca mais pudesse parar de gritar. Era um barulho
ensurdecedor, que parecia querer poder entorpecer minha consciência.
E como se o mundo tivesse afundado em pura agonia, eu observei
meu pai cair no chão, sem vida. Seus olhos não brilhavam mais. Seu corpo
não mais persistia na luta. Ele era mais uma carcaça naquele mar de morte.
O grito da minha mãe rasgou meu peito.
Naquele segundo, nós duas percebemos. Nós duas vimos.
Henry Monroe estava morto e não havia mais esperança ou luz
naquele mundo sombrio.
Eu não conseguia me mexer, mas de alguma forma eu afundei no
chão, ao lado do corpo do meu pai. Sua cabeça estava posicionada de uma
forma bizarra e eu tentei consertar. Tentei consertá-lo. Implorei ao Destino
que me permitisse trazê-lo de volta.
Não. Não. Não. Não.
Não o meu pai.
Não o homem que só tinha amor dentro de si.
Não o meu pai.
Atrás de mim, minha mãe urrava de dor e soluçava tão alto que a
cada som que saía de sua boca, eu me encolhia. Eu não conseguia olhar
para ela. Não conseguia encará-la. Mas eu ouvi Jonnah se aproximar e falar
com ela, implorar que se acalmasse.
Meu pai parecia tão pequeno agora. Com a mão em seu peito, eu
esperei sentir as batidas de seu coração, mas não havia nada.
Minha mãe gritava e se debatia atrás de mim, mas mesmo assim não
fui capaz de tentar confortá-la. Era minha culpa. Minha culpa. Minha culpa.
Eu tinha definido seus destinos quando fui escolhida para carregar aquela
marca em minha mão. Eu era a sentença de morte. Havia destruído suas
vidas por anos, fazendo com que vivessem com medo, sempre lutando uma
batalha sem fim.
Eu era o motivo pelo qual meu pai estava morto. A razão pela qual
minha mãe sentiria aquela dor excruciante pelo resto da vida.
Braços se fecharam ao meu redor e a voz que eu amava tanto
sussurrou em meu ouvido.
— Meu amor, ele se foi.
Eu sabia que Nathan queria que eu deixasse meu pai, mas eu não
conseguia. Eu havia falhado com ele e não conseguia deixá-lo.
Eu solucei dessa vez, não aguentando mais a dor em meu peito.
Faz parar — implorei. — Acabe com isso. Acabe com a dor.
Nathan me puxou, querendo me tirar dali, mas um grito cortante de
protesto saiu da minha boca, fazendo-o parar.
— Aly, por favor — ele implorou. O desespero era evidente em sua
voz, assim como também a dor. — Olhe para mim, linda. Por favor.
“Você é esperança, pequena pássara.” Eu podia ouvi-lo em minha
mente.
Mas pai, eu nunca me senti tão presa ao chão, tão incapaz de voar.
Nunca me senti tão pesada.
Eu estava acorrentada naquele chão.
Era como se o mundo tivesse se escorado em mim. Como se eu
tivesse o peso da terra inteirinha em meu peito e eu não podia respirar. Não
podia pensar. Não podia viver.
Eu tapei meus ouvidos, tentando bloquear os gritos da minha mãe.
Ela parecia estar morrendo. Talvez estivesse. Talvez aquilo a matasse.
Perder meu pai seria seu fim.
Nathan puxou meu rosto para cima, forçando-me a encará-lo.
Lágrimas molhavam seu rosto e eu queria pedir que ele não chorasse.
Queria pedir que me perdoasse por ser quem era. Por ser o motivo de tanta
dor. Tanta morte.
— Você precisa lutar, Aly. Nós vamos sair daqui.
Eu nem sabia mais se queria sair.
Eu queria que eles saíssem. Queria que salvassem Roman, que eu
nem sabia se ainda estava vivo. Queria que tirassem Serena e as crianças
daquela caverna e as levassem dali. Queria que minha mãe e Jonnah
levassem meu pai e o enterrassem com dignidade. Queria que Jasper
sobrevivesse àquilo.
Mas eu? Não havia mais luta em mim.
Eu tinha vergonha de admitir que, talvez, eu não merecesse viver.
— Eu amo você, Alyssa — ele sussurrou. — Vamos sobreviver a
isso. Eu prometo a você.
Eu mal conseguia ouvi-lo com o barulho em minha cabeça e a dor
em meu peito. Eu não merecia aquele amor. Não merecia aqueles
sacrifícios.
— Nathan! — Jasper alertou.
Nós nos viramos e observamos Vicenzo se aproximar de nós. Eu
fiquei em frente ao corpo do meu pai, blindando-o de qualquer coisa que
aquele desgraçado estivesse prestes a fazer.
Àquele ponto, ele já tinha tirado a faca das costas da feiticeira e ela
andava ao seu lado.
Eu sabia que não podia matá-lo antes dos dezoito anos, mas desejei
isso com tanto afinco que eu esperava que o Destino abrisse uma brecha.
Mas nada aconteceu. Nenhum poder preencheu meus ossos. Nada.
Eu era uma inútil e havia condenado a todos nós.
— Não me olhe como se eu sentisse prazer em fazer isso. — Ele
apontou para meu pai com o queixo. Eu rosnei, como um animal
encurralado. — Se você parar para pensar, eu poderia ter feito isso muito
antes. Dei uma chance para ele ficar vivo. Foi ele que escolheu se
intrometer.
— Cale a boca! — eu berrei, meus olhos queimando ele. — Eu vou
matar você!
A feiticeira parou o meu delírio a meio passo em direção à Vicenzo.
Eu travei, como se batesse contra uma parede. Nathan me puxou contra si.
— Aly, por favor — ele pediu, baixinho.
Vicenzo suspirou.
— Eu gosto da poesia desse encontro. — Ele gesticulou entre mim e
Nathan. — Amigos de infância, predestinados a ficarem juntos que, ainda
novos, foram separados, mas então, apenas quando tudo parece perdido,
encontram-se novamente. É bonito até. — Ele encarou Nathan. — Mas sabe
o que não é bonito? A dor de perder a pessoa com quem você divide a alma.
Ele falava como se conhecesse aquela dor, mas eu sabia bem que
Vicenzo era incapaz de amar. Era um ser humano com a alma apodrecida.
Nathan me puxou para trás de seu corpo.
— Deixe ela viver e prometo que não iremos atrás de você —
Nathan barganhou.
Vicenzo deu risada.
— Ah, por favor, garoto, eu já fiz barganhas demais para uma
eternidade. Sua mãe, por exemplo, fez um pedido interessante no dia que
morreu.
Nathan cerrou o punho, mas se manteve quieto. Eu sabia que ele
estava engolindo o orgulho, a raiva e a vontade de vingança apenas para
tentar me manter viva.
— Sabe o que ela pediu? — Vicenzo perguntou. Quando ninguém
respondeu, ele continuou: — Ela queria que eu o deixasse viver.
Nathan não reagiu, mas eu sentia em meu peito a revolta.
— Nos deixe ir — ele pediu novamente.
— Por que eu deixaria a última Fidly ir embora assim? A Escolhida
é minha chance para a paz.
Última Fidly.
Como eu poderia ser a última? A última deveria ser aquela que
cumpre a profecia. Eu claramente não seria esta.
— Do que está falando? — Ravenna ousou perguntar.
Vicenzo nem olhou em sua direção. Seus olhos estavam fincados em
mim.
— Acontece que o Destino tem um senso de humor inabalável e ele
também sabe barganhar. — Ele apontou para mim. — Não há dúvidas de
que você é a última. A Escolhida do próprio Destino.
— Por que? — dessa vez foi um Desertor que perguntou.
— Milhares de anos atrás, eu desafiei o Destino. Ele queria ver
minha miséria, então definiu uma coisa: haveria uma única Fidly, dentre
todas as milhares que existiriam, que seria aquela capaz de me destruir. No
caso, ele escolheu você. — Ninguém ali parecia acreditar. Eu não podia ser
a última. — Eu sei a barganha que fiz com o Destino e não preciso
convencê-los. — Ele olhou para os Protetores. — Se não quiserem
acreditar, podem passar os próximos milênios esperando uma nova Fidly.
Ele caminhou, cercando eu e Nathan, como um abutre que
observava a presa já semimorta.
— Há muitas coisas que a fazem especial, Alyssa — ele indagou. —
E seus pais serem de duas raças diferentes não é a maior delas.
— Vicenzo — a voz da minha mãe surpreendeu a todos nós. Eu me
forcei a encará-la, a ver as lágrimas e a dor estampadas em seu rosto. A
força daquela mulher, eu percebi, era inigualável. Mesmo com o coração
estilhaçado, ela se forçou a implorar: —, deixe minha filha ir. Olhe para
tudo o que fez, todos os anos de tormento que espalhou. Você tirou meu
coração, já basta.
Meu coração batia acelerado em meu peito, prevendo uma
retaliação, mas Vicenzo apenas assentiu, como se entendesse.
— Eu sempre me sensibilizo com os pedidos feitos por mães. —
Seus olhos voltaram para mim. — Mas não posso fazer isso. Sabe, eu tenho
planos.
Ele atacou. Nathan o interceptou e eu gritei para que parasse. A
feiticeira lhe tomou o controle do corpo e o paralisou, em frente a Vicenzo,
que agora me olhava com interesse renovado.
— Vamos ver do que você é capaz, Alyssa. — Ele embainhou a
adaga e passou a lâmina levemente pela pele exposta da garganta de
Nathan. Eu mal respirava. — Eu prometi à mãe dele que nunca o tocaria,
mas toda barganha tem uma ponta solta. Eu posso pedir que um dos meus
Desertores esquarteje seu namoradinho.
— Não.
Minha voz nem parecia mais minha.
Nathan me encarou, desesperado. Ele queria que eu parasse. Queria
que eu lutasse contra Vicenzo para me salvar.
Mas eu o salvaria antes.
— Então se renda — Vicenzo ronronou.
Por que aquilo fazia diferença? Não é como se pudesse sair dali de
qualquer outra forma.
As palavras de meu pai, aquelas últimas ditas a mim antes de tudo
acontecer, soou em minha cabeça. “Não se renda”.
Mas eu preciso, pai.
Se eu não me render, só estarei prolongando minha vida em um
mundo onde não havia mais ninguém que eu amava. Vicenzo mataria cada
um deles. Cada um dos que restavam.
— Deixe Nathan em paz. Solte ele e nunca mais o toque, nem
permita que um de seus Desertores o façam. Então, solte o restante dos
Protetores e vá embora. Deixe o Outro Lado e leve todos os seus Desertores
com você — eu disse. — E eu me rendo.
Nathan protestou, tentando se soltar.
— Ótimo — foi a resposta simplória de Vicenzo.
Eu encarei aqueles olhos azuis que eu nunca esqueceria, nem
mesmo em morte, e não encontrei forças para dizer adeus. Então, com a
mão no coração, como se fosse capaz de senti-lo bater, eu disse que o
amava. Sussurrei as palavras para ele e esperei que fosse o suficiente.
Eu desejava que ele se curasse. Eu desejava que não sentisse minha
falta. Desejava que vivesse depois de hoje.
Mas uma coisa que não poderia permitir, é que me visse morrer.
Minha mãe tão pouco, que já havia visto o amor de sua vida perecer
naquela noite.
Olhei para Vicenzo.
— Mas não faça aqui — pedi, sem a menor condição de exigir
qualquer coisa. — Não me mate na frente deles.
Vicenzo pareceu pensar sobre o assunto, e então assentiu.
— Por que está fazendo isso? — Nathan berrou para Vicenzo.
O Desertor pareceu interessado e se virou para encarar Nathan. Com
uma sinceridade assombrosa, ele respondeu:
— Porque passei a maior parte da minha vida mortal vivendo em
função de regras que não me satisfaziam. Porque encarei o poder nas mãos
de idiotas. — Ele sorriu. — Aqui vai uma dica para você, menino: prefira
sempre ser aquele com o poder. Assim, talvez, conseguisse salvar sua
namoradinha hoje.
Nathan rosnou e se debateu. Jurou mil e uma mortes diferentes à
Vicenzo.
Sem conseguir ver aquilo, eu me virei e encarei minha mãe e
Jonnah. Meu primo a segurava contra seu corpo, tentando mantê-la firme,
enquanto ela desmoronava.
— Eu sinto muito, mamãe — eu disse, então olhei para Jonnah. —
Cuide dela. Não deixe que ela fique sozinha.
Jonnah assentiu, os olhos cheios de lágrimas. Eu sabia que ele
estava machucado e podia ver a força que fazia para manter minha mãe
firme em seus braços. Ele cuidaria bem dela. Eu sabia que sim.
Em um canto, encontrei Jasper me encarando com o rosto franzido
de dor. Eu sorri tristemente para ele.
— Você fez tudo o que podia — eu disse. — Não poderia ter me
treinado melhor. Obrigada.
Eu não esperei sua resposta. Eu sabia que suas mãos e pernas
estavam presas, porque ele parecia se esforçar para se soltar, mas queria que
ele soubesse que havia feito tudo o que podia por mim. Não queria que
sentisse que tinha falhado, como sentia a respeito da filha.
Então, reuni toda a força dentro de mim. Busquei por aquela pessoa
que meu pai acreditava que eu era, forte e resiliente, então me virei para
Nathan.
Nathan gritava meu nome e berrava ameaças à Vicenzo. Estava se
contorcendo tanto, tentando se soltar, que Sybil havia feito com que se
ajoelhasse e agora seu rosto estava prensado contra o chão.
— Eu amo você — falei para ele. — Sempre vou querer ter tido
mais tempo ao seu lado, mas estou feliz que ao menos tive um pouco.
Porque a verdade é que sempre seria você.
Nathan berrou e chorou, grunhindo como um animal sendo
estripado.
Eu fechei meu coração para aquilo. Eu havia me despedido. Havia
me forçado a olhá-lo uma última vez.
Eu havia prometido à Diana que o manteria longe de Vicenzo. Eu
estava cumprindo minha promessa.
Satisfeito, Vicenzo veio até mim, com a feiticeira ao seu encalço.
Ele deu ordens para que os Desertores deixassem o lugar e voltassem para
suas casas. Tinham acabado ali. Eu observei os Desertores desaparecerem
em direção ao Lago. Ninguém se moveu. Sybil ainda tinha o controle em
suas mãos. Minha mãe chorava descontroladamente e Nathan ainda tentava
se soltar.
— Alyssa, por favor — ele implorou por mim.
Eu tentava não ouvir. Tentava fingir que não o enxergava.
Não deixe que ele desmorone — implorei ao Destino. — Você me
deve pelo menos isso. Deixe que seja feliz.
— Está na hora, Alyssa.
Sim, está.
Eu esperava que, caso eu realmente fosse a última, o Destino viesse
pessoalmente matá-lo. Esperava que esse não fosse o seu triunfo final.
Vicenzo colocou a mão sobre meu ombro, as mãos que haviam
matado meu pai e eu quase vomitei. Com um aceno para a feiticeira, o ar se
transformou e nós afundamos na escuridão.
Com um nó em minha garganta e o coração despedaçado, eu me
forcei a dar adeus a tudo o que conhecia, tudo que havia aprendido a amar.
Disse adeus aos meus amigos e à minha família. Disse adeus a vida que eu
nunca pude ter, aos sonhos que nunca pude realizar.
Eu entendia agora e havia dito adeus.
Esta marca em minha mão... Esta era a minha sentença de morte. E
ela tinha acabado de ser cobrada.
Abri meus olhos para encontrar um vasto campo verde. Havia uma
escultura de um Pégaso atrás de nós. Ali, onde quer que fosse, também era
noite. O gramado se estendia por quilômetros e quilômetros de distância e
nos fazia parecer formigas sobre ele. À nossa frente, um palácio antigo,
ornamentado e grandioso se estendia por mais alguns quilômetros.
Olhei ao nosso redor, sem entender onde estava.
Vicenzo estava parado ao meu lado, ainda me observando com
atenção.
Ele poderia ter me matado do lado de fora do Outro Lado, quem
sabe deixado meu corpo para ser velado, mas havia nos transportado para
um lugar completamente diferente.
— Onde estamos? — ousei perguntar.
Vicenzo exibiu o lugar, os olhos brilhando de vaidade e soberba.
— Bem-vinda à Florença, Alyssa. — Ele meneou a cabeça em
direção ao castelo à nossa frente. — Este é o meu lar.
Eu queria arrancar seus olhos. Queria matá-lo com minhas próprias
mãos.
Vicenzo havia acabado de destruir minha vida e agia como se não
fosse mais do que um dia comum. Ele matou meu pai. Matou inúmeros
Protetores. Forçou-me a deixar minha família para morrer, e estava ali,
olhando para mim como se eu fosse seu brinquedo.
Ele percebeu minha raiva, minha fúria, mas manteve sua insolência
ao dizer:
— Você já deve ter ouvido falar dos Médici — eu não respondi. —
Uma família muito importante e influente nessa cidade graças a mim. —
Ele vasculhou o espaço. Alguns Desertores cercavam a ampla propriedade.
— Quando escapei da prisão vergonhosa que Freya criou, decidi que aquela
família seria meu ponto de entrada para tomar essa cidade. No final, eles
tiveram mais o que agradecer a mim do que o contrário. — Ele fez um
gesto vago. — Você deve ter estudado história, enquanto se escondia, não
é?
Sim. Era meu pai quem me ensinava.
O buraco em meu peito se expandiu.
— Pois saiba que tudo isso aqui fui eu que construí. Os Médici eram
apenas uma fachada bonitinha e escandalosa — concluiu.
— Por que não me mata logo?
A feiticeira sorriu e eu a fuzilei. Era culpa dela também. Ela tinha
ajudado Vicenzo a fazer tudo aquilo.
— Eu disse a você, Alyssa, que tinha planos. — Eu não tinha
nenhuma arma mais, ou estaria enfiando em sua garganta apenas pela
satisfação do ato. — Sabe, eu sou um homem visionário. Tomei aquilo que
nenhum Protetor antes ousou, mas que sabiam querer. Minha imortalidade,
Alyssa, é a prova do que sou capaz de fazer, de persuadir.
— Manipular — eu o corrigi. — Você manipulou Freya.
Ele deu de ombros.
— O amor por si só é um ato de manipulação, minha querida. Freya
deveria saber disso melhor do que ninguém. — Ele sorriu. — E agora, vou
tomar algo ainda maior. Veja bem: o Destino fez de você sua Escolhida,
apenas para me torturar. Mas eu vou mostrá-lo como se joga esse jogo. Eu
poderia ter te matado anos antes, mas eu decidi esperar. Decidi apavorá-la e
manipulá-la, como gosta de dizer, para que escolhesse a morte.
Eu tinha nojo dele. O ódio se misturava àquele recém-descoberto
sentimento e me deixava nauseada.
Ele caminhou pelo gramado e a feiticeira me empurrou, para que eu
o seguisse. Paramos, então, em frente à uma sala com grades de ouro
maciço. Lá dentro, parecia um cemitério de esculturas danificadas. À nossa
volta, mais esculturas diferentes se erguiam, mas foi uma dentro daquela
gaiola de ouro que me chamou atenção. Eu olhei para ela e então para
Vicenzo, em choque.
Era ele.
Lá dentro, atrás das grades de ouro ornamentadas, havia uma
escultura de pedra que não podia ser ninguém mais além de Vicenzo. Os
traços do rosto eram idênticos. Os cabelos tinham o mesmo comprimento.
Apesar da perfeição da arte, havia uma grande rachadura que passava pelo
peito e torso da pedra.
— O que é isso?
Ele me ignorou.
Aquela havia sido sua prisão?
— Sabe o que fico pensando, Alyssa? — Ele não esperou por uma
resposta. — As pessoas só acreditam na paz porque a esperança delas é
maior que a realidade dos fatos. Acreditam que a balança do Destino é justa
porque não ousam desafiá-lo, então se apegam à esperança de uma falsa
justiça. Foi assim que os Protetores se mantiveram durante todos esses anos,
esperando pela Fidly que cumpriria a profecia. — Ele se virou e parou os
olhos de fumaça em mim. Eles ainda me faziam tremer sempre que
pairavam sobre mim. — Agora, me diga, doce Alyssa, o que essas pessoas
são sem suas esperanças débeis?
Do que ele estava falando? Por que estava me olhando assim?
— A esperança não é algo que pode ser roubada — retruquei.
— Eu não falei nada sobre roubar. — Seus olhos percorreram meu
corpo, mas voltou a parar em meu rosto. — Corromper, no entanto... Isso
seria prático. Talvez até um pouco poético.
Nathan estava certo. Sempre esteve. Vicenzo tinha um plano. E não
envolvia apenas me matar.
Pânico me abraçou como uma manta pesada e abafada. Eu
cambaleei para trás. Eu não seria seu experimento. Meu corpo trombou com
o da feiticeira e a mulher segurou meus ombros, me fazendo parar no lugar.
— Eu queria que você escolhesse a morte, Alyssa — meu nome
parecia errado em sua língua —, porque queria que pensassem que você
estava morta — explicou, o olhar sombrio.
Não.
Eu não seria a esperança que Vicenzo corromperia. O que quer que
tivesse em mente, eu não participaria.
Eu tomaria o controle.
Minha mão se afundou rapidamente no cinto sobre o vestido de
Sybil, onde ela havia prendido uma faca e a puxei. Percebi, com dor no
coração, que era a faca de Nathan. Não me permiti parar ou pensar naquela
ironia terrível. Não me permiti temer. Avancei com a faca contra minha
garganta.
Eu morreria.
Eu teria o controle pelo menos disso.
Minha mão travou no ar, a faca pressionada contra minha jugular,
incapaz de cortar. A feiticeira usava aquelas amarras invisíveis para me
manter estagnada, imóvel.
— Está tão desesperada assim? — Vicenzo ronronou para mim, a
voz como um carinho intrometido. — Vou cuidar bem de você, minha
querida, prometo.
A feiticeira manteve as amarras em meus braços e me forçou a
baixar a mão e deixar a faca cair no chão. Suas mãos, então, fincaram-se em
minha cabeça, suas unhas que mais pareciam garras afundavam-se em
minhas têmporas.
— Você nem vai se lembrar de nada — Vicenzo sussurrou para
mim, os olhos vasculhando os traços de meu rosto, como se ainda tentasse
compreendê-los. — Prometo.
Então eu senti.
Senti uma dor excruciante tomar minha mente. Tomar minha alma.
Eu gritei e me afoguei naquela agonia infinita. Parecia... parecia que eu
estava morrendo, mas era pior. De alguma forma, eu estava morrendo, mas
ainda estava viva.
Estava me perdendo.
Eu senti quando a feiticeira tomou tudo. Tomou cada memória, cada
lembrança, cada sentimento. Eu gritei e gritei e gritei mais. Eu sentia suas
garras rasgarem meu ser, minha alma, meu coração e, finalmente, minha
mente.
Então eu caí em uma imensidão escura e vazia.
Eu não era eu mais.
Eu estava vazia. Mente e corpo.
Eu era o vazio.
Era uma folha em branco.
Eu estava morrendo.
Essa era a única explicação lógica para aquela dor. Aquela dor que
estava rasgando meu peito. Acho que seria assim que eu me sentiria, se
Vicenzo tivesse simplesmente enfiado sua adaga e arrancado meu coração
fora.
Alyssa havia sido levada. Vicenzo a mataria. Talvez já tivesse
matado. E eu morreria junto.
Não parecia possível viver em um mundo onde ela não existia. Ela
havia me dito algo parecido, dias atrás e, mesmo sabendo que eu sentia o
mesmo, não tinha sido capaz de dizer.
Porra, eu até demorei para dizer que a amava, mesmo que soubesse
daquele fato há anos. Mesmo que aquele sentimento estivesse gravado em
meu peito com brasa.
Eu amo Alyssa.
Amo Alyssa
Amo Alyssa.
Então eu gritei.
Berrei para o céu sobre nossas cabeças. Berrei para as estrelas que
pareciam querer se apagar depois que ela se foi. Fiz minha garganta doer,
gritando a plenos pulmões, pensando naquele desgraçado do Destino.
Ela era tudo o que eu tinha. Tudo o que eu amava. Tudo o que eu
queria.
E havia sido arrancada de mim. Havia se sacrificado por mim.
Eu nunca entenderia como tinha sido capaz de fazê-la se apaixonar
por mim, mas eu era tão grato por isso. Era tão feliz. Tinha sido tão feliz.
Agora eu não era nada.

Os Protetores não demoraram para entrar no Outro Lado depois da


saída de Vicenzo. Eu ainda estava jogado no chão, as costelas e o braço
fraturados, próximo de Jasmine que chorava sobre o corpo de Henry.
Henry.
Meu Deus, ele não merecia aquilo. Era um dos melhores homens
que eu já conheci, uma das almas mais corajosas e honestas que eu já tinha
encontrado em minha vida. Ele era bom. Tão bom que lutou pela filha,
sacrificou-se por ela.
Eu nunca poderia demonstrar minha gratidão a ele. Agradecê-lo por
ter mantido o amor da minha vida segura por tantos anos, mesmo que no
processo tenha me afastado dela. Agora eu entendia por que tinham feito
aquilo. Eu deveria ter levado Alyssa para longe no segundo em que
descobrimos sobre os Desertores. Devia ter levado ela para longe mesmo
que me odiasse depois.
Ela estaria viva agora. Estaria segura.
E eu nem me permitia pensar na forma como descobrimos sobre os
Desertores e Gaia. Era louco demais pensar que Alyssa podia ver minha
mãe morta.
Eu mantive a mente aberta para os Protetores, na esperança de que
conseguissem interceptar Vicenzo e pegar Alyssa de volta. E, ao mesmo
tempo, com medo de que encontrassem seu corpo.
— Nathan, você precisa se levantar.
Já era a terceira vez que Jasper repetia isso.
Eu o ignorei todas as vezes.
Eu observava Jasmine desmoronar pela perda do marido e da filha
como se aquilo me lembrasse que a dor que eu sentia não era tão grande
quanto a dela. Ou talvez fosse bem próxima.
Ouvi que, assim que os Protetores entraram, buscaram um Roman
desacordado no banheiro da cabana onde o deixei. Agora, eu ainda não
sabia se ele havia sobrevivido.
Jasper me tocou, e fez menção de me levantar, mas eu o empurrei
para longe. Minhas costelas e braço protestaram e a dor física se fez bem-
vinda. Ela entorpecia um pouco a dor em meu coração.
Não conseguia parar de vê-la quando fechava meus olhos. Não
conseguia deixar de ver seu rosto assustado ao me ver nas mãos de Vicenzo.
Não conseguia deixar de ver sua devastação quando Vicenzo matou seu
pai.
E eu não conseguia parar de ouvi-la dizer que me amava. “Eu amo
você. Sempre vou querer ter tido mais tempo ao seu lado, mas estou feliz
que ao menos tive um pouco. Porque a verdade é que sempre seria você.”
Eu queria destruir algo. Se Vicenzo pensava que tinha acabado, ele
estava muito enganado. Eu o encontraria e descobriria uma forma de matá-
lo. O desgraçado pagaria por isso.
— Jasmine, vamos para casa. Você precisa descansar. Deixe que
cuidem de Henry e nós o velaremos amanhã — Jonnah tentou racionalizar.
— Não! — o grito dela reverberou dentro de mim e ecoou pelas
montanhas. Quebrado. Doído. Ferido.
Morto.
Eu não aguentava mais aquilo. Não conseguia mais.
Por fim, eu me levantei e corri, deixando os protestos de Jasper para
trás. Corri para o Lago ensanguentado e mergulhei na água para atravessar
para a dimensão original.
Talvez eu pudesse encontrá-la. Talvez os Protetores fossem inúteis
demais e não tivessem procurado direito. Talvez eu ainda pudesse salvá-la.
Então eu corri.
Corri por horas. Corri por noites a fio.
Eu nem tinha mais noção do tempo.
Eu nem me lembrava da primeira vez que a vi. Eu era pequeno
demais. Mas lembro das outras duas primeiras vezes, anos atrás e meses
atrás. Quando a encontrei no Lago, há um pouco mais de dois anos, ela
gritou meu nome tão alto que me virei instantaneamente para ela. Alyssa
estava toda descabelada, com um coque sobre a cabeça e óculos de leitura.
Inclusive, tinha “A menina que roubava livros” em mãos. Nós nos
abraçamos tão forte que nem parecia que tínhamos sido amigos quando
crianças e não nos visto desde então.
O tempo não parecia funcionar com a gente.
Éramos presente. Éramos passado.
E eu pensei que poderíamos ser futuro.
Na segunda vez que nos reencontramos, eu a encarei através de uma
janela embaçada, sem nem me lembrar de quem era, graças à Cassandra e
nossos pais. Mas ainda assim eu era atraído por ela como um vagalume era
atraído pela luz. Só mais tarde que fui perceber quem era, o que tínhamos
sido um para o outro. E aquilo me esmagou. Aquele reconhecimento. E eu
parecia incapaz de deixá-la.
Ela era como uma necessidade. Como uma certeza interna e ao
mesmo tempo uma dúvida. Era como se ela preenchesse o vácuo em meu
peito.
— Nathan?
Parei de encarar o nada e me virei. Brian estava parado atrás de
mim, o olhar perturbado me escaneando.
Eu o tinha encurralado na noite em que descobri sobre Alyssa. Eu já
desconfiava e Lirya apenas confirmou minhas desconfianças. Então eu o
encontrei e tirei a verdade dele. E Brian me disse tudo o que eu já temia:
nossa proximidade era um risco. Jasmine e Henry, e até outros Protetores,
não queriam correr o mesmo risco.
Brian me contou como conheceu minha mãe. Como deixou de se
manter distante, para que ele pudesse entregar-lhe a pulseira de ouro branco
e pedra azul que ela havia deixado cair no chão. Um erro. Ter se
aproximado dela tinha sido seu maior erro. Bem, depois de engravidá-la,
claro. Eu não achava que ele se arrependia de algo mais do que se
arrependia do meu nascimento. Afinal, eu tinha sido o motivo do
assassinato de minha mãe. Vicenzo, inclusive, havia confirmado isso.
Então, ele me disse:
“Eu me vejo tanto em você. O garoto prodígio, com habilidades
incríveis, mesmo não querendo seguir as regras. Você vai achar que é
capaz de protegê-la. Vai pensar que nada no mundo seria capaz de tirar ela
de você. Sei disso porque era como me sentia. Pensava que no dia que
Vicenzo viesse atrás da sua mãe, eu o mataria em um piscar de olhos. O
amor cega a gente, filho. Eu falhei quando deixei sua mãe sair da sede,
porque foi meu coração que me guiou, não a minha cabeça. E essa é uma
luta onde precisamos usar a cabeça. Não há espaço para emoções. E
enquanto você estiver apaixonado por ela, você irá colocá-la em risco.”
“Não estou dizendo para não amá-la” — ele usou aquelas palavras,
mesmo que eu nem tivesse as dito ainda. “Estou dizendo para ignorar esse
sentimento agora. Enquanto ela não atingir a maioridade, ela não possui
chance nenhuma contra Vicenzo. Espere um pouco. Espere até que ela
possa, pelo menos, ter uma chance. Porque agora, ficar com ela é o mesmo
que colocar um alvo nas suas costas. “
Eu havia falhado. Havia sucumbido àquele sentimento que eu temia
que me matasse se não o seguisse. Eu não podia dizer não a ela. Não
conseguia afastá-la.
Agora ela estava morta.
— Nathan? — meu pai me chamou novamente. Eu imaginava como
eu devia estar parecendo. — Filho, vamos para casa.
— Eu não tenho casa.
Eu não tinha mesmo. Há anos não me sentia em casa, até Aly voltar
para minha vida. Agora, “casa”, tinha sido destruída para sempre.
— Nathan... Não havia nada que você pudesse fazer.
As lágrimas embaçaram meus olhos. O nó em minha garganta
voltou a me sufocar.
— Eu a perdi.
Brian assentiu e estendeu uma mão para mim. Era como se estivesse
me jogando o bote salva-vidas para tentar me salvar.
— Eu sei — ele disse. — Vai ficar melh...
Ele parou no meio da palavra.
Vai ficar melhor?
Nem ele podia mentir dessa forma. Era só olhar para ele que saberia
que era uma mentira deslavada.
Aquilo não melhorava.
Aquele vazio no peito, aquele buraco em minha alma... Aquilo seria
minha sina.
Seria meu fim.
A escrita é minha arfada por ar. É o meu dom mais precioso, quem
sabe até o único significativo, que veio com leveza. Escrever coloca todos
os meus pensamentos em prática, envolto de criatividade e liberdade para
criar um universo. Mas também é difícil e incrivelmente desafiador. E
talvez, seja por isso que, junto dessas páginas, tenha um pouquinho de mim.
Um pouquinho do meu coração.
Eu tive a primeira ideia de Escolhida pelo Destino ainda bem
novinha, aos 12 anos. Nathan foi o primeiro personagem que veio à minha
mente, mas a Aly não demorou a aparecer. De lá para cá, claro, a história
mudou radicalmente e acredito que essa seja a melhor versão.
Publicar um livro, então, foi algo que descobri ser extremamente
complicado, burocrático e criterioso. Mais do que meu coração, esse livro
levou meu sangue também. Noites em claro escrevendo, revisando,
planejando e fazendo malabarismos com os números para que tudo fosse do
jeitinho que eu queria. Graças a Deus, deu tudo certo.
Eu não só devo como quero agradecer a muitas pessoas que me
apoiaram nessa jornada, então aqui vai:
Meus pais, mesmo que mal entendessem o que eu estava escrevendo
ou se daria certo, foram peças importantes para que eu confiasse no meu
sonho. Obrigada mãe. Obrigada pai. Eu sei que a literatura não é parte da
vida de vocês e que esse sonho pode parecer duvidoso, mas vocês nunca me
disseram para desistir, nunca diminuíram meu trabalho e sempre buscaram
me ajudar, do modo que podiam. Vocês, durante toda a minha criação, me
deram o melhor presente que eu poderia pedir: garra. Me ensinaram a lutar
pelo que quero, pelos meus sonhos e não desistir porque as coisas parecem
difíceis. Obrigada por isso, foi essencial para que esse livro se tornasse
realidade.
As próximas pessoas que quero agradecer são como anjos enviados
para mim. Minhas primeiras leitoras. As meninas que acreditaram no meu
trabalho e me deram motivos para continuar escrevendo e confiando no
meu potencial. Júlia, Laura, Letícia, Beatriz e Estefane. Muitos amigos não
fizeram o que vocês cinco fizeram. Não tenho palavras para agradecer e
vocês sabem o quanto sou grata pelo primeiro olhar que EPD recebeu de
vocês. Vocês me instigaram a continuar escrevendo, a continuar trabalhando
e lutando pela história da Alyssa. Estiveram ao meu lado com a minha luta
para iniciar meu Instagram profissional e ouviram cada pequeno medo,
dúvida e ideias loucas que eu tive. Esse livro é para vocês também que, no
meio do caminho, se tornaram amigas preciosas.
Além de beta, a Bia também é responsável por grande parte das
artes no meu Instagram, e sem ela aquele feed teria sido um caos completo.
Obrigada, amiga!
Quero agradecer às minhas parceiras de revisão, Heloísa e Evelyn,
que fizeram uma leitura profunda do livro para me ajudar a poli-lo. Helô me
ajudou a ver coisas que, mesmo depois de revisar três vezes, eu não
consegui ver. Evelyn, com seu olhar afiado e incrivelmente sensato, cuidou
para que nada ofensivo saísse desse livro, sem que fosse intencional dentro
da história, e ainda cuidou para que estivesse perfeito gramaticalmente.
Além disso, a Evelyn foi praticamente minha instrutora em vários
momentos, quando eu estava quebrando a cabeça para compreender como
as parcerias funcionavam. Obrigada! Sou mais do que grata por vocês duas
e todo autor deve compreender a imensidão da importância do trabalho de
vocês.
À arte, ninguém poderia ter feito um trabalho melhor do que a
Fernanda. Obrigada demais por cuidar tão bem dos meus personagens e
fazer artes tão impressionantes para esse projeto. Valeu a pena esperar por
você. Quanto a diagramação, a April simplesmente arrasou, ouviu todos os
meus pedidos e criou algo incrível que tornou esse livro a coisa mais linda
do mundo. Vocês cuidaram do meu sonho e eu sou muito grata por isso.
A todo mundo que participou da rifa, principalmente ao meu tio,
Marcos Vilela, que junto com minha tia, Alessandra Ranuzzi, praticamente
financiaram quase metade das rifas: obrigada!! Esse livro teria demorado
muito mais para sair do papel caso não tivessem apoiado essa empreitada.
Obrigada Diógenes (DIX) por ter investido nesse livro e dado atenção ao
meu sonho e, logo, o livro física será uma realidade com este apoio tão
bem-vindo.
Também quero agradecer à minha vó, que comprou meus primeiros
caderninhos, onde eu escrevia frases e pseudopoemas, que mais tarde me
levaria a começar a escrever histórias. Sou eternamente grata à Deus por ter
me presenteado com uma avó como você, que sempre cuidou tão bem de
mim, mesmo que não entenda meus sonhos.
As minhas amigas de sempre, como Laura, Bruna, Anaclara,
Amanda... Vocês me viram escrever em um caderno de 200 folhas no meio
da aula e me falaram para continuar (não exatamente durante a aula, mas
quem controla a inspiração, não é?). Laurinha deve ter lido meu caderninho
inteiro de frases e sempre me perguntava sobre os livros, e quando comecei
o Instagram, foi a primeira a exaltar minha “coragem” em buscar por meus
sonhos. Obrigada!
Também é impossível fazer esses agradecimentos sem citar a ajuda
de autoras nacionais incríveis que me deram várias dicas, tiraram muitas
dúvidas minhas e se fizeram presentes para mim. Bruna Borges, Tatiane
Biasi e Laura Reggiani — obrigada por terem compartilhado a experiência
de vocês comigo. Além delas, a produtora de conteúdo, Bruna do IG
@lerporamor, foi inacreditavelmente acolhedora comigo, apoiou meu
trabalho (assim como está sempre apoiando diversas autoras) baseando-se
em um caráter ímpar de alguém que só quer agregar ao mundo literário,
sem exigir nada em troca.
E o agradecimento final é para todos vocês, leitores, que me
acompanharam e se permitiram mergulhar nessa história. Obrigada por isso.
Tudo o que posso esperar, se chegou até aqui, é que tenham apreciado o
início da jornada de Alyssa e se apaixonado pela história dela, assim como
também espero que estejam animados para descobrir o que mais o Destino
separou para ela... Porque logo, logo tem mais.
LUIZA RANUZZI, nasceu e cresceu em Uberaba, MG - Brasil, mas
sempre quis desbravar o mundo. Aos doze anos, ela já usava os livros para
escapar da realidade e conhecer novos universos e, pouco depois, também
se descobriu na escrita. Mais tarde, aos dezoito, Luiza começou a estudar
Relações Internacionais na Universidade Federal de Uberlândia, focando-se
em assuntos vinculados aos direitos humanos, direito internacional e
negociação. Ela ama livros de fantasia, romance e distopia, e assiste Friends
ou Modern Family praticamente todos os dias. Qualquer coisa a faz chorar,
desde filmes, livros ou vídeos de cachorros. Seu gosto musical envolve
qualquer música pop sofrida e Zack e Lily (seus cachorros/filhos) são seu
antidepressivo diário.
Table of Contents
Sumário
Nota da autora
Prólogo
PARTE 1
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
PARTE 2
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
PARTE 3
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Epílogo
Capítulo extra
Agradecimentos

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