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BACHELARD: O FILOSOFO DA DESILUSAO Alice Ribeiro Casimiro Lopes Escola Técnica Federal de Quimica - RJ Faculdade de Educagio - UERJ Rio de Janeiro — RJ Resumo Este artigo se propde a analisar os principais aspectos da obra epistemoldgica de Gaston Bachelard, notadamente sua concepgéio de erro e verdade e sua perspectiva descontinuista. Argumentamos que esta perspectiva se expressa pelas concepcdes de fenomenotécnica, ruptura, obstdculos epistemologicos, filosofia do nao, recorréncia historica, racionalismos setoriais e alcanca seu dpice com a proposta da razéo polémica. Assim, enquanto um fildsofo da desilusdo, da retificagdo constante, Bachelard construiu uma _epistemologia sencialmente histérica e questionadora das coergoes de um racionalismo unitario, que tem sua base na tradigdo do pensamento. es 1- Introduga0 ‘Trata-se de uma tarefa extremamente ous de Gaston Bachelard nos limites de um artigo. Para tanto, somos obrigados um enfoque, uma linha de abordagem, que privilegia alguns conceitos ¢ andlis detrimento de outros, nao necessariamente menos significativos no conjunto da obra. Corremos 0 risco de retratar a epistemologia bachelardiana como um s cabado, quando sua marca central é exatamente o eterno recomegar, a nos exigir uma constante vigilincia cpistemoldgica. Por outro lado, a importiineia de tal propésito é considerivel, uma vez que, infelizmente, 0 conhecimento no Brasil sobre os trabalhos deste filsofo & reduzido, nao apenas sadores de ciéncias fisicas, mas também entre pesquisador idéias, do cariter polémico que nos inspiram e da versatilidade de sua forma de pensar, os educadores em ciéncias sofrem maior influéncia de autore iados ao positivismo anglo-saxdnico, corrente de pensamento de certa forma ainda hegemonica. Muito desse desconhecimento certamente se deve ao fato de sua exten: obra apenas recentemente haver sido traduzida, ainda que nao completamente, para 0 portugués. Por sua vez, 0 nem sempre bem compreendido carter dual dos trabalhos de da analisar a obra epistemologica olher aes stema a S504 (Cad.Cat.Ens.Fis,, 13,03: p.248-273, dez.1996, 248 Bachelard - no campo da ciéncia ¢ da epistemologia (livros publicados de 1928 a 1953) © no campo da postica (livros publicados de 1942 a 1961) - contribui para o distanciamento dos pesquisadores frente a sua obra. Acrescente-se a isso, 0 fato de que a iniciagdo ao pensamento bachelardiano, freqtientemente, se fez a partir da leitura da obra de Althusser !, scu orientando nos estudos superiores, ficando, pois, associada ao campo da epistemologia das cigncias sociais. Assim sendo, este artigo tem por objetivo analisar as principais concepgdes cpistemoldgicas de Gaston Bachelard, de forma a contribuir para as discussdes que hoje se fazem no ensino de cigneias. Inicialmente, situamos alguns aspectos da vida deste autor em confronto com os principios gerais de sua filosofia. Em seguida, argumentamos sobre scu cariter de filésofo da desilusio no processo de construgio do conhecimento, a partir de sua perspectiva de valorizagao do erro da retificagzio, em detrimento dos processos de validagéo do conhecimento o. Posteriormente, analisamos as diferentes facetas da perspectiva descontinuista de seu pensamento, ou seja, a nogio de recorréncia historica, de ruptura, © conceito de obsticulo cpistemolégico, de racionalismos setoriais ¢ a filosofia do nao. Por fim, analisamos contribuigdes de sua proposta cpistemoldgica para 0 ensino de ciéncia II - Bachelard: de professor de ciéncias a filésofo da Sorbonne Dagognet (1986), ao analisar a vida ¢ a obra de Bachelard, condena a aproximagiio demasiadamente facil que alguns autores fazem entre a produgdo de um filésofo © aspectos de sua existéncia. Segundo cle, & maneira bachelardiana, nao devemos nos prender ao empirismo das primeiras impressdes ¢ considerar que a vida de um filésofo se reflete em sua obra. Ao contrario, em Bachelard, nitidamente observamos ser 0 pensamento o que dinamizava sua vida, instaurava novos significados om sua existéncia. Entretanto, conforme o proprio Dagognet ressalta, podemos evocar alguns lagos, alguns tragos, sendo de similaridade, ao menos de paralelismo, entre a vida e a 1 - Althusser incorpora os pressupostos de Bachelard na construgdo de sua leitura cientifiea do marxismo, defendendo no apenas uma radical separagio entre ciéneia ¢ idcologia, como a ocorréncia de um corte cpistemoldgico na fundacao de uma ciéncia. Freqiientemente, afirma-se que esta nogo de corte epistemoldgico foi desenvolvida por Bachclard, cabendo a Althusser sua tradugiio do campo das ciéncias fisicas para o campo das cic s. Contudo, trata-se de um termo criado por Althusser, ao reinterpretar a nogdo de ruptura em Bachelard (ver Balibar, 199 11), Bachelard, inclusive, questiona a idéia de fundagao de uma ciéneia (ver Bachelard, 1985: 43), © que nos faz colocar ressalvas frente interpretago de Althusser, por considerar problematic sua transposi¢ao, de certa forma acritica, dos principios cpistemoldgicos das igncias fisicas para as ciéneias sociais. 49 Lopes, ARC. obra de Bachelard, Gaston Bachelard nasceu em 27 de junho de 1884, na Franga campesina, ¢ morreu em 16 de outubro de 1962, na Paris cosmopolita ¢ industrializada. Vivenciou assim a ruptura entre século XIX ¢ 0 século XX, entre o campo ¢ a cidade, © contato com os elementos basicos que inspiram os devaneios - a agua, 0 ar, 0 fogo ea terra -, expres s trabalhos no campo da Poética, ¢ a vivéncia junto as expressa em sua obra epistemolégi Foi, sem divida, um filésofo miultiplo, com uma vida marcada por mudangas bruscas de trajetoria. Trabalhou, assim que se fez bacharel, na administragio dos Correios © Telégrafos, com 0 cuidado administrativo de pesar as carta que Ihe conferiu o trago empirista de seu perfil epistemoldgico para 0 conccito de massa, como destaca em 4 Filosofia do No. Apés ver frustrado, pela Primeira Guerra, seu interesse de se tornar engenheiro, ingressou no magistério secundario. Trabalhou, entdo, como professor de ciéncias ¢ de filosofia em sua terra natal (Bar-sur-Aube). Aos quarenta € quatro anos publicou suas primeiras teses: Ensaio sobre 0 conhecimento aproximado ¢ Estudo sobre a evolucéo de um problema de fisica, a propagago térmica nos sélidos (ainda nao publicados em portugués). Em 1930, ingressou na Faculdade de Letras de Dijon ¢ em 1940, na Sorbonne. Essa multiplicidade de projetos em sua vida profissional tem scu paralelismo com a pluralidade de suas idgias filoséficas ¢ com a vivacidade de um pensamento resistente as classificagdes ¢ aos rétulos. Quando se pensa em entendé-lo como idcalista, por sua critica incisiva ao realismo, tem-se que retificar 0 pensamento, a0 se compreender sua anilise sobre 0 papel constitutive da técnica frente Quando se pensa, entio, s surpreendemo-nos com s construgio do conhecimento: do racional ao real. Como cle mesmo afirmou, de certa forma respondendo aos que tentavam defini-lo como racionalista: Racionalista ? Tentamos tornar-nos isso, ndo apenas no conjunto de nossa cultura, mas nos detalhes de nossos pensamentos, na ordem pormenorizada de nossas imagens familiares (Bachelard, 19892: 7). Bachelard, portanto, manteve-se eqtiidistante, ¢ igualmente critico, do materialismo © do idealismo, para construir uma epistemologia intrinsecamente histérica. Segundo o fildsofo francés, sé podemos efetuar uma reflexdo critica sobre a produgao dos conceitos 20 nos debrucarmos sobre a historia das ciéncias. Por isso, Canguilhem (1994) afirma ser da histéria das cigncias, filosoficamente questionada, que surge uma cpistemologia. Enquanto um intérprete da ciéncia de scu tempo, especialmente a partir das contribuigdes da Fisica Relativistica, das Geometrias Nao-cuclidianas ¢ da Quimica Quintica, Bachelard organiza uma cpistemologia ndo-normativa, ao contririo das 0 em se , vivencia r ele um materialista, cu cixo de (Cad.Cat.Ens.Fis,, 13,03: p.248-273, dez.1996, 250 filosofias da ciéncia dominantes 2, de cunho empirico-positivista, pertencentes matriz, . Como afirma Lecourt (1980: 8-9), Bachelard inaugura este nio- inguindo-se de tudo o que se pratica “noutro lado” sob a designagao de epistemologia. O chamado "outro lado" da tradigo epistemolégica, que engloba tanto os empiristas l6gicos como as perspectivas de Karl Popper 3 ¢ de Imre Lakatos, sempre se apresenta como a "ciéneia da ciéneia” ou “a ciéncia da organizagao do trabalho cientifico" ou ainda como uma filosofia cientifica, com base nos conceitos da logica matemética, Segundo Japiassu (1991), trata-se de uma corrente cpistemoldgica ligiea, que visa ao estudo e @ construgdo da linguagem cientifica, bem como a uma investigagao sobre as regras légicas que presidem a todo enunciado cientifico correto (positivismo anglo-saxénico). Ao contrario, a epistemologia historica nos faz questionar a possibilidade de definirmos de forma definitiva e universal o que é cigncia. Nesta perspectiva, ciéncia é um objeto construido socialmente, cujos critérios de cientificidade sao coletivos ¢ setoriais as diferentes ciéncias. Por conseguinte, 0 objetivo de Bachelard nao é dizer a devem proceder em seu trabalho. Seu didlogo é com os filésofos de seu tempo 4; seus questionamentos se dirigem a uma filosofia desatenta para as transformagdes radi que sofre a razio humana com o advento da ciéncia contemporinea. Como afirma Canguilhem (1994), devemos considerar a obra de Bachelard como uma tentativa obstinada de despertar a filosofia de seu sono dogmdtico, nela suscitando a vontade de revalorizar sua situagdo face 4 ciéneia contemporanea. Por outro lado, a maioria dos filésofos da ciéneia trabalha com enfoque quase total na Fisica ¢ Bachelard também deles se distingue por trabalhar com questdes cpistemolégicas tanto na Fisica, quanto na Matematica ¢, sobretudo, na Quimica 5. cientistas como is 2 _ A expressito filosofia das ciéncias, em fungao de sua origem associada aos trabalhos de Comie, tende a ser compreendida como expresso de uma problemitica positivista, enquanto a expresso epistemologia tende a ser associada a uma problemitica nio-positivista. Por isso, no decorrer deste artigo, procuramos utilizar o termo epistemologia para as referencias a Bachelard, deixando a expressio filosofia das ci€ncias para expressar os autores da matriz. anglo-saxGnic: Para maiores desenvolvimentos sobre a origem dessas expressdes diversas, ver Fichant (1995: 113-116). 3 Estamos levando em conta, para essa afirmacdo, os trabalhos mais divulgados de Karl Popper, no incluindo sua mais recente obra, na qual parece redimensionar aspectos de suas primeiras obras. 4. Bachclard, além de questionar os principios dos filésofos que sc basciam na ciéncia do século XIX - Descartes, Kant ¢ Comte -, discute os pressupostos de scus contemporiincos, notadamente Meyerson, Sartre, Freud, Bergson ¢ Brunschvieg 5 - Quanto & Biologia, Bachclard nao vivcu o suficiente para assistir as rupturas empreendidas nesta drea a partir do advento do enfoque molecular. O campo bioligico era para ele mais 251 Lopes, ARC. Assim, a importincia da obra de Bachelard para professores ¢ pesquisadores em ensino de cigncias ¢ inegavel. Nés, quimicos ¢ fisicos, temos & disposigio, inclusive, livros de Bachelard especialmente dedicados & Fisica (La actividad racionalista de la fisica contempordnea) ¢ & Quimica (Le pluralisme cohérent de la chimie moderne - ainda ndo traduzido em portugui Le matérialisme rationnel). A pertinéncia de Bachelard para 0 campo do ensino de inda maior, se considerarmos sua trajctéria como professor. Sua passagem pela escola secundaria fez dele um filésofo constantemente preocupado com o ensino. Nao ha em sua obra textos exclusivamente voltados para a questo educacional, mas freqtientemente cle pontua suas anilises filoséficas com interpretagdes a respeito do conhecimento cientifico na escola. J4 em seu livro de 1938, La formation de Vésprit scientifique, ele ressalta a necessidade de nés, professores, conhecermos as concepgdes prévias dos alunos (scus conhecimentos anteriores ao processo de ensino), com a colocagao da problemitica do obsticulo pedagdgico: os obsticulos que impedem o professor de entender porque 0 aluno nao compreende ©, Outro aspecto singular da filosofia bachelardiana, em relagdo aos demais filosofos das ciéncias, esta no cariter até certo ponto impar de sua linha de trabalho. Nao existe uma continuidade entre scus trabalhos ¢ os de seus “seguidores”. Estes tém sua obra como inspiragzio, mas produziram teorizagdes préprias, em campos os mais diversos, a exemplo de Canguilhem, Foucault, Althusser e Bourdieu, nc III - A filosofia da desilusio Uma das contribuigdes fundamentais da cpistemologia histérica de Bachelard & a primazia conferida ao crro, a retificagao, ao invés da verdade, na construgaio do conhecimento cientifico. Segundo Canguilhem (1972a), freqiientemente filésofos interpretam o erro como um acidente lamentvel, uma impericia a ser evitada, Bachelard, ao contrério, defende que precisamos errar em ciéncia, pois © conhecimento cientifico s6 se constréi pela retificagao desses erros. Como seu objetivo nao é validar jéncias jé prontas, tal qual pretendem os partidarios das correntes epistemolégicas logicas, 0 erro deixa de ser interpretado como um equiveco, uma anomalia a ser cxtirpada. Ou seja, com Bachelard, 0 erro passa a assumir uma funeao positiva na génese do saber ¢ a propria questio da verdade se modifica. Nao podemos mais nos as limitado do que a Fisica ea Quimica, justamente por ser o campo da reprodugio ¢ nao da criagio. Seri em Canguilhem, discipulo de Bachclard, que os bidlogos encontrario interpretagdes mais pertinentes sobre as ciéneias da vida contemporancamente. © . Para uma analisc mais aprofundada sobre as contribuigées de Bachclard para o cnsino de cigncias, ver Lopes (19934). (Cad.Cat.Ens.Fis,, 13,03: p.248-273, dez.1996, 252 referir A verdade, instincia que se alcanga cm definitivo, mas apenas As verdades, miltiplas, historicas, pertencentes esfera da veridicidade, da capacidade de gerar credibilidade © confianga. As verdades sé adquirem sentido ao fim de uma polémica, 6s a retificagdo dos erros primeiros. Assim, um fato ngio tem 0 mesmo valor epistemolégico em racionalidades as, a exemplo da cientifico. De um fato verdadciro no conhecimento comum, a ciéncia precisa organizar um conheeimento veridico. racionalidades do conhecimento comum e do conhecimento Por ele 6, este duplo do verdadeiro e do veridico retém a acdo polar do conhecimento. Este duplo permite reunir os dois grandes valores epistemolégicos que explicam a fecundidade da ciéncia contempordnea. A ciéncia comtemporanea é feita da pesquisa dos fatos verdadeiros ¢ da sintese das leis veridicas. As leis veridicas da ciéncia tém uma fecundidade de verdades, elas prolongam as verdades de fato por verdades de direito. O racionalismo pelas suas sinteses do verdadeiro abre uma perspectiva de descobertas. O materialismo racionalista, depois de ter acumulado os fatos verdadeiros ¢ organizado as verdades dispersadas, ganhou uma surpreendente forca de previsto. A ordenagdo das substdncias apaga progressivamente a contingéncia de seu ser, ou, em outras palavras, esta ordenagao suscita descobertas que preenchem as lacunas que faziam acreditar na contingéncia do ser material. Apesar de suas riquezas aumentadas, suas riquezas transbordantes a quimica se ordena num vasto dominio de racionalidade (Bachelard, 1972: 45-46). Contudo, relacionar cigneia ¢ verdade nfo implica dizer que todo discurso cientifico € necessariamente verdadeiro. A ciéncia é um discurso verdadeiro sob fundo de erro (Bachelard, 1986: 48); os erros compdem um magma desorganizado ¢ as verdades se organizam em um sistema racional, Em outras palavras, a ciéncia ¢ 0 processo de produgiio da verdade, € 0 trabalho dos cientistas - os trabalhadores da prova = no processo de reorganizacao da experiéncia em um esquema racional, Desta maneira, a cigncia nao reproduz uma verdade, seja cla a verdade dos fatos ou das faculdades do conhecimento. Portanto, nao existem critérios universais ou exteriores para julgar a verdade de uma ciéncia. Cada ciéncia produz sua verdade © organiza os critérios de analise da veracidade de um conhecimento. Mas a légica da verdade atual da ciéncia nao é a logica da verdade de sempre: as verdades so sempre provisérias. 253 Lopes, ARC. Assim sendo, uma questio como “o que é cigneia?” ¢ 0 que Bachelard chamaria de um problema mal posto: como para essa questo niio existe uma resposta, trata-se de um problema nao devidamente formulado. Nesse sentido, todo trabalho das epistemologias positivistas, com o intuito de definir o que é ciéneia, perde sua razdo de ser. A epistemologia histérica nao intenciona estabelecer critérios de demarcagao, capazes de deslegitimar alguns saberes em detrimento de outros, nem tampouco articula um processo de extrair de diferentes priticas cientificas, vistas como uma realidade homogénca, uma esséncia, a unidade do todo. Igualmente, nao objetiva que essa esséncia seja capaz de se flexionar sobre si mesma ¢ constituir a ciéneia da ciéneia. Tal perspectiva significa anular a concretude das priticas cientificas, por manté-las descoladas da historia real das ciéncias. Na concretude das priticas cientificas, por conseguinte, 0 conhecimento é a reforma de uma ilusio. Conhecemos sempre contra um conhecimento anterior, retificando 0 que se julgava sabido ¢ sedimentado. Por isso, no existem verdades primeiras, apenas os primeiros erros: a verdade esti em devir. Bachelard, portanto, situa como 0 filésofo da desilusio, aquele que afirma: somos o limite das nos perdidas (Bachclard, 1970). O que significa dizer que somos a expressio, no de nosso conhecimento imediato, de nossas habilidades inatas, mas do constante ¢ descontinuo processo de retificagio que nosso espirito sofre no decorrer da existéncia. O que sabemos é fruto da desilusdo com aquilo que julgavamos saber; 0 que somos é fruto da desilusdio com o que julgavamos ser. Com esta marcante renovagio na concepgaio de conhecimento, ¢ inaugurada uma interpretago epistemolégica visceralmente polémi sas ilusdx descontinuis TV - A descontinuidade do conhecimento cientifico O continuismo na interpretagaio da cultura ¢ do conhecimento, como bem ressalta Pessanha (1987), ¢ a marca de nossa tradigao filos6fica ocidental. A idéia de que a historia da cultura e do conhecimento se constréi como o desenrolar de um novelo, os conceitos sendo paulatinamente somados uns aos outros, a compreens3o de que diferentes saberes so expressdes de uma Unica racionalidade, fazem parte de filosofias to distintas quanto © empirismo, 0 positivismo ¢ 0 cartesianismo 7. Por sua vez, 0 entendimento de que existe uma continuidade entre conhecimento comum ¢ conhecimento cientifico, sendo o iiltimo um refinamento das qualidades do primeiro, ainda se mantém dominante. Uma manifestagao clara dessa marca continuista ¢ a tentativa constante da escola de fazer do conhecimento escolar a ponte capaz de 7 . Para aprofundamento do carater monista ¢ continuista do cmpirismo, do positivismo ¢ do cartesianismo, ver Oliveira (1990). (Cad.Cat.Ens.Fis,, 13,03: p.248-273, dez.1996, 254 mascarar a ruptura entre conhecimento comum ¢ conhecimento cientifico (Lopes, 1996) Em um de scus tiltimos trabalhos, Bachelard (1972: 209-217) questiona, incisivamente, algumas das razGes que sustentam os argumentos dos continuistas da cultura. Primeiramente, analisa a defesa que fazem da idéia de progresso continuo do saber. Como, via de regra, os progresso: os foram muito lentos, os contin interpretam que os conhecimentos cicntificos partem dos conhecimentos comuns por Ienta transformagiio. Quanto maior a lentidao, mais ficam mascaradas as rupturas do conhecimento, mais é defendida a idgia de progresso continuo. Dai a histéria ser concebida como um continuo relato de eventos, tal qual num livro, em que o capitulo antecedente determina inexoravelmente 0 capitulo seguinte. A segunda forma de defender a continuidade consiste em argumentar que 0 mérito do progresso cientifico se deve a uma multidao de trabalhadores anénimos: 0 cientista genial apenas tem o insight daquilo que jé se encontrava “no at interpretagao, quando feita ao longo da hi traduz a marca do contin idgias atuais so entendidas como pré-cxistentes de forma embriondria em époi anteriores. Nao que Bachelard negue a produgio social do conhecimento ¢ considere existir 0 trabalho absolutamente original de cientistas isolados; ao contrario, ele freqticntemente salienta a formagao de escolas de trabalho cientifico especializado, esferas garantidoras da producto do conhecimento cientifico, Sua critica se dirige & idéia da existéneia de um fio condutor de influéncias ao longo da histéria. Por exemplo, essa idéia se manifesta na interpretacdo da Quimica como uma derivagdo da Alquimia, com a justificativa de que os alquimistas utilizavam algumas técnicas apropriadas legadas aos quimicos. Neste caso, sio desconsideradas as concepgdes de mundo completamente diversas que permeiam esses campos do conhecimento 8. Outro cexemplo emblematico dessa visio continuista ¢ a concepgiio de que os atomistas gregos foram precursores das formulagdes dos atomistas modernos, negando a nitida ruptura de nti racionalidade entre as proposigdes de Demécrito e de Dalton 9. Em sintese, os 8_ A interpretago continuista da Historia da Quimica tende a considerar a Alquimia como uma espécie de infaincia da Quimica. Ao contrario, coneebemos a Alquimia com caracteristicas de arte sagrada, O alquimista nao investiga as propriedadcs das substancias ¢ suas transformagdes, com 0 intuito de conhecer melhor a Natureza ¢ construir teorias sobre a matéria. O alquimista tem por objetivo alcangar a revelago de scgredos divinos, a busca do Bem, o auto-conhecimento, a transformagdo de sua alma. Dai o animismo estreitamente associado a sua interpretagio da Natureza. Nesse sentido, a racionalidade da Quimica rompe decisivamente com a Alquimia. Para maiores desenvolvimentos dessa questo, ver Lopes (1990: 25-29). 9 As proposigdes de Demécrito, bem com as de Leucipo ¢ Epicuro, nio compdem uma teoria atomica, nem tampouco visam explicagdes para as trasformagées quimicas, Suas concepgics de mundo so bem diversas das concepgdes dos fisicos modernos. Seus pensamentos constituem 255 Lopes, ARC. continuistas nao analisam o pensamento filos6fico inserido cm sua cultura, com pressupostos ¢ visdes proprias de mundo, porque interpretam a cultura como um todo monolitico, historia cumulativamente contada, na qual hé formulacdes de infiincia e de vida adulta, Insistem em ver todo acontecimento do pasado como uma preparagao dos acontecimentos do presente. Um terceiro argumento apresentado ¢ pedagégico. Na medida em que cré na continuidade entre conhecimento comum e¢ conhecimento cientifico, procura- reforgi-la: busca-se considerar a ciéneia como uma atividade facil, simples, extremamente acessivel, nada mais que um refinamento das atividades do senso comum. Tal perspectiva, por sua vez, tende a ser a divulgagao de uma falsa imagem da ciéncia, capaz de estimular processos de vulgarizagdo excessivamente simplificadores e, por isso mesmo, crivados de equivocos. Bachelard, 20 contririo, enfatiza em diversos momentos de sua obra o fascinio que a dificuldade pode exercer, o prazer gerado pelo mérito de se vencer as dificuldades do saber - as verdadeiras dificuldades racionais, e nao as dificuldades externas ao conhecimento. Bachelard introduziu a concep¢ao de descontinuidade na cultura cientifica através das nogdes de recorréncia historica, de racionalismos sctoriais ¢ da concep¢aio de ruptura. No que se refere a ruptura, esta se apresenta tanto entre conhecimento comum ¢ conhecimento cientifico, a partir do que se constituem os obsticulos cpistemolégicos, quanto no decorrer do prdprio desenvolvimento cientifico, configurando a filosofia do nao. Passaremos agora a analisar mais detidamente essas noges, IV. 1 - A nogao de recorréncia histérica Segundo Bachelard, a ago epistemoldgica sobre a histéria deve ser uma ago eminentemente judicativa, capaz de distinguir, no discurso considcrado cientifico em dada época, 0 que era erro ¢ 0 que era verdade, com base em critérios da propria ciéne! jo ou de conceituagio Nesse sentido, a histéria dos fatos de experimenta a deve ser apr (Canguilhem, 1972b: 11). Ou seja, a historia da cigneia deve ser freqiientemente refeita, iluminada pela historia atual. Através do conhecimento do passado, percorremos o caminho da ciéncia, mas é a partir do presente, da atualidade da eigncia, que podemos compreender o cientif da na sua relagio com os valores cientificos recentes uma filosofia que procura explicar a natureza, a partir da insergiio do homem nessa natureza: seus propésitos e seus valores. Nesse sentido, as teorias de Dalton niio sio conseqiiéneia das teorias de Demécrito, Diferentemente, Dalton tinha por objetivo construir um modelo de stomo capaz. de explicar as relagdes de massa nas transformagdes quimicas. Para maiores desenvolvimentos dessa questio, ver Lopes (1990: 23, 29-31). (Cad.Cat.Ens.Fis,, 13,03: p.248-273, dez.1996, 256 passado de mancira claramente progressiva. Desta forma, o fildsofo francés constitui a nogao de recorréncia ! histérica: o historiador deve conhecer o presente para julgar 0 s no no sentido de ver no passado a preparacio para o presente, como ja jonamos, mas sim d sado € sus interpretagdes. E muito comum em uma perspectiva histérica continuista vermos a interpretagtio de um fato do passado como precursor do que hoje fazemos. Bachelard (1985: 134-135) discute 0 exemplo do ouro coloidal que, por vezes, ¢ interpretado como tendo sido produzido pelos alquimistas, ao colocarem ouro finamente dividido em gua, duzentos ¢ cingiienta anos antes de Bredig demonstrar suas propriedade: Apoiando-se em Brunschvicg, Bachelard argumenta que, a partir de uma andlise recorrente, 0 ouro coloidal s6 pode ser considerado como "descoberto" no momento em que suas propricdades foram definidas como tal: nao basta produzir a substdncis saber que ela esta sendo produzida Por isso, a histéria do desenvolvimento dos fatos deve vir acompanhada da histéria do desenvolvimento dos valores racionais, valores esses que se constituem a partir de um racionalismo abrangente: 0 valor de uma idéia nfo depende apenas da idéia em si, mas da relagdio desta idéia com a clareza de outras idéias. A histéria recorrente é assim uma histéria que se esclarece pela finalidade do presente: partimos das certezas do presente para descobrirmos, no passado, as formagdes progressivas da verdade. e, a partir do presente, questionar os valores do pa A historia das ciéncias surgiré, entdo, como a mais irreversivel das histérias, Ao descobrir 0 verdadeiro, 0 homem de ciéncia obstrui um irracional. Sem diivida, 0 irracionalismo pode brotar de outro Jado qualquer. Mas tem, dai em diante, algumas vias interditadas. A historia das ciéncias é a histéria das derrotas do irracionalismo. (Bachelard, s.d.: 36) Uma vez superado o irracionalismo, a ele nao se retorna, Essa obstrugaio do irracional ¢ marca de uma ruptura nitida ¢ clara na ciéneia, ruptura essa que também pode ser identificada entre conhecimento comum ¢ conhecimento cientifico. 10 _ Em nossa linguagem didria, o termo recorréncia possui os significados de reaparecimento fregiiente e periédico de um fato, ago de retornar ao ponto de partida ou investigar. E preciso salientar que, do ponto de vista filos6fico, recorréncia é a Caracteristica de um processo, real ou ligico, que retorna sobre si proprio (...) reagao de um fato sobre as suas causas, da idéia de um fato sobre este fato (Lalande, 1993: 932-933). 257 Lopes, ARC. IV. 2- A ruptura entre conhecimento comum e conhecimento cientifico nas ciéncias fisicas Segundo as concepgdes empirico-positivistas, 0 conhecimento advém da experiéncia: ha um real dado em que a razo deve se apoiar. O real é um todo tinico, composto de fatos, fenémenos que se apresentam ao experimentador ¢ que pressupdem, portanto, uma unica razio capaz de dar conta dessa multiplicidade desconexa. Entendidas de uma mancira mais ampla, as concepgdes realistas, campo no qual 0 cempirismo se enquadra, compreendem o modelo da teoria do reflexo (Schaff, 1991: 63- 98). O conhecimento, enquanto produto do processo de conhecer, reflete o real ¢ tanto mais objetivo e cientifico sera, quanto maior for o grau de reflex alcangado. Mesmo as concepgdes positivistas 11, que avancam ao salientar a sidade do referencial tedrico, definidor da forma de interpretar os fato io rompem com a concepe¢ao realista. A verdade ibe ao pesquisador reveli-la, torna-la visivel aos olhos, a razio. Para o empirismo, a construgdo racional s6 se pode estruturar a partir da experiéneia sensivel. Para o positivismo, a teoria é uma rede de pescar dados, mas os dados é que orientarfio a claboragaio de novas teorias A concepgao realista da Natureza, tio cara aos filésofos da matriz cempirico-positivista, sofre scu primeiro grande abalo com o estabelecimento da hipétese quantica por Max Planck, em 1900. Segundo comentarios de Heisenberg (1987: 29-30), © proprio Planck custou a aceitar 0 rompimento com os pressupostos da Fisica Classica, dado scu conservadorismo. Contudo, teve que se render & necessidade de postular a descontinuidade na energia para interpretag3o da radiacao térmica de um corpo negro, trabalho que iniciou um campo de investigagéo dos mais ricos neste século: a Mecdnica Quantica. neck ‘4 na Natureza, no fenémeno, ¢ Ao interpretar as conseqiiéncias da Mecénica Quintica para 0 campo cpistemolégico, o fildsofo francés faz-nos compreender a distingao entre real cientifico © real dado. Na ciéneia, nao trabalhamos com o que se encontra visivel na 11 ~ Nessa vertente incluimos no apenas Comte, mas os positivistas légicos de uma forma geral. Quanto a Popper, precisamos ser mais cuidadosos na sua interpretagao. Em suas obras mais famosas, ainda que Popper questione os pressupostos do positivismo légico e forneca contribuigdes importantes para a filosofia das ciéncias, com sua critica ao verificacionismo, nao avanga na concepgio filoséfica de real, Para ele, cicntificas s 8 porque a qualquer momento podem ser abandonadas em fungo da experiéneia. Contudo, autores como Japiassu buscam uma aproximagio entre Popper ¢ Bachelard, enquanto outros, com os quais, concordamos, colocam Popper no campo do positivismo, portanto em campo diverso ao de Bachelard. Para maiores esclarecimentos, sugerimos confrontar: Japiassu (1991: 83-110) Mendonga (1984), (Cad.Cat.Ens.Fis,, 13,03: p.248-273, dez.1996, 258 homogencidade panoramica. Ao contririo, precisamos ultrapassar as aparéneias, pois 0 aparente & sempre fonte de enganos, de erros, ¢ o conhecimento cientifico se estrutura através da superacao desses erros, em um constante processo de ruptura com o que se pensava conhecido. onforme aponta Canguilhem (1972: 52), para Bachelard a , ela indica a dirego ¢ a organizacao intelectual, nos asseguramos que nos aproximamos do real. E no caminho do verdadeiro que o pensamento encontra 0 real; a realidade do mundo esté sempre para ser retomada, sob responsabilidade da razio. Com efeito, para Bachelard no devemos ver no real a raziio determinante da objetividade: o problema da verdade nao deriva do problema da sua realidade. O que entendemos por realidade faz-se em fungo de uma organizagdo do pensamento. Por isso, ele afirma que devemos colocar 0 problema da objetividade em termos de métodos de objetivagdo: uma prova de objetividade existe sempre em relagdo a um método de objetivagio, a objetivagdio de um pensamento a procura do real (Bachelard, 1984b: 40-42). Ao contrario, para 0 senso comum, a realidade objetiva é uma sé: aquel que se apresenta aos sentidos; o real aparente faz parte do senso comum. Portanto, sera essencialmente a partir do rompimento com esse conhecimento comum que se stituiré 0 conhecimento cientifico. Contra essa concepgao unitaria do real se colocard Bachelard: (..) sera demasiado cémodo confiar-se uma vez mais a um realismo totalitério e unitério, e responder-nos: tudo é real, 0 elétron, 0 nicleo, 0 dtomo, a molécula, a micela, 0 mineral, 0 planeta, o astro, a nebulosa, Em nosso ponto de vista, nem tudo é real da mesma maneira, a substancia ndo tem, em todos os niveis, a mesma coeréncia; a existéncia néo é uma funcéo monétona; néo pode se afirmar por toda parte ¢ sempre no mesmo tom. (Bachelard, 1988: 54) Por que nem tudo é real da mesma maneira ? Por que a existéncia nao é uma fung%o monétona ? Porque ha diferentes razdes constitutivas de diferentes niveis de realidade. A realidade de um objeto que se apresenta aos olhos, que pode ser tocado, que possui lugar ¢ forma definidos, no é do mesmo nivel de realidade de uma molécula, a qual constitui e & constituida pela teoria molecular a ela subjacent Todavia, é nm sdrio deixar claro que nao se trata de uma distingao entre realidade e idealizagdo. Moléculas, atomos e elétrons ndo sao idéias que podem ser utilizadas enquanto os fatos assim o permitem, ou ainda abstragées racionais com as quais 259 Lopes, A.R.C. formulamos tcorias. Trata-se de uma outra ordem de realidade, que no pode ser compreendida sem o uso da razio. A construgao do objeto de conhecimento nas ciéncias fisicas - 0 real cientifico - é realizada na relagdo sujeito-objeto, mediada pela técnica, A cigneia descreve, ela produz fenémenos, com o instrumento mediador dos fenémenos construido por um duplo processo instrumental ¢ teérico. Mas essa relagdo um subjetivismo inexistente. No caso, a influéncia do sujcito sobre o objeto € sempre mediada pela técnica, pelo aparelho ou instrumento de medida. Niio se trata de uma influéneia da psique individual do pesquisador sobre 0 objeto de pesquisa, geradora de um relativismo sem medida. Portanto, para compreendermos a nogo de real nas cigneias fisicas, a partir de Bachelard, precisamos ter muito clara a nogao de fenomenotéeniea !2_ sendo devemos atribuir a E preciso haver outros conceitos além dos conceitos ' visuais' para montar uma téenica do agir-cientificamente-no-mundo e para promover a existéncia, mediante uma fenomenotécnica, fendmenos que ndo estdo naturalmente-na-natureza, Sé por uma desrealizagao da experiéncia comum se pode atingir um realismo da técnica cientifica. (Bachelard, 1986: 137, grifos nossos) Em Le Rationalisme Appliqué, & feita a anilise do espectrémetro de m a 13 como exemplo da estreita relagZo entre teoria © instrumento: 0 proprio instrumento é teoria materializada, teorema reificado. As trajetérias que permitem separar ions nesse aparelho so produzidas tecnicamente, sem nenhuma seqiéncia com fenémenos naturais. Existe a teoria que permite a construgo do aparelho ¢ a teoria que permite a interpretacdo dos resultados; teoria essa que s6 adquire valor pelo processo de aplicagdo experimental. Por isso, Canguilhem (1994: 191) afirma que na ciéncia moderna, para Bachelard, os instrumentos nao so mais objetos auxiliares. Bles so os novos drgdos 12_y primeira obra em que Bachelard definiu 0 conccito de fenomenotécnica ¢ Le nouvel ésprit sciemifique © a partir dai torma-se completa sua sintonia com a ciéneia contemporinea. A argumentago que aqui desenvolveremos sobre esse conceito encontra-se, parcialmente, em Lopes (1990; 1994). 13 - Aparelho no qual uma amostra é bombardeada com um feixe de elétrons, resultando fons ou fragmentos idnicos das espécies originais, que sio separados segundo. suas relagdes de massa/earga, com base nas diferengas dos percursos inicos em um campo magnético e/ou clétrico, Uma importante aplicagio da espectrometria de massa é a determinagio de massas moleculares de compostos voliteis. (Cad.Cat.Ens.Fis,, 13,03: p.248-273, dez.1996, 260 que a inteligéncia se da para colocar fora do circuito cientifico os drgios dos sentidos, na qualidade de receptores. Na anélise da ciéncia quimica feita por Bachelard (1972), podemos compreender melhor 0 processo de construgiio de fendmenos. A Quimica, em sua istéria, rompe com imediato e abre espagos para o construido, criando ¢ atuando sobre a natureza através da técnica. Ou seja, a Quimica transforma- claborada sobre as bases de uma fenomenotécnica. Um bom exemplo disto sio os processos de sintescs de substincias quimicas inexistentes na Natureza, produzidas a partir do objetivo de se construir determinada propriedade. O quimico pensa ¢ trabalha cm um mundo recomegado. Se a natureza possui uma ordem, a Quimica nao se faz a partir dessa ordem: o quimico constréi uma ordem artificial sobre a natureza, A razio quimica, em seu didlogo com a técnica, avanga na realizagao do possivel. Eo possivel nunca é gratuito, mas j4 esti incluido em um programa de realizagiio, j4 ordena experiéneias para a realizagdo (Bachelard, 1973); 0 possivel no & 0 que existe naturalmente, mas 0 que pode ser produzido artificialmente. Com a diferent em uma ciénci jo entre fenémeno e¢ fenomenoté cnica completa-se a distingao entre real dado ¢ real cientifico. O fendmeno ¢ 0 real dado, 0 mero evento. O real s6 adquire 0 cardter de cientifico se ¢ objeto de uma fenomenotéenica. Ampliamos, consegiientemente, a compreenstio de porque Bachelard afirma que nao podemos falar de uma fungio monétona do real: no real cientifico, ¢ necessario o didlogo da razao com a experiéncia para estabelecer 0 processo de construgdo racional, mediado pela Na medida em que o real cientifico se diferencia do real dado, o conhecimento comum, fundamentado no real dado, no empirismo das_primeiras & contraditério com © conhecimento cientifico. © conhecimento comum lida com um mundo dado, constituido por fendmenos; © conhecimento cientifico trabalha em um mundo recomegado, estruturado em uma fenomenotécnica. E nesse sentido que o conhecimento comum acaba por se constituir em um obsticulo epistemolégico ao conhecimento cientifico, exigindo que efetuemos o que Bachelard denomina de psicanalise !4 do conhecimento objetivo. 14 _ © termo psicanalise em Bachclard se distancia completamente do significado consagrado por Freud. Psicanalisar © conhecimento objetivo é retirar dele todo cariter subjetivo, (..) descortinar a influencia dos valores inconscientes na propria base do conhecimento empirico e cientifico (Bachelard, 1989b: 16). A primeira utilizagio do termo ¢ feita por Bachelard em La formation de l'ésprit scientifique, publicado em 1938, época em que a psicandlise ndo possuia prestigio no meio universitirio francés, Constituiu-se, portanto, uma certa dose de “provocagio” sua apropriag3o por Bachelard (Fichant, 1995: 128). Por sua vez, em suas obras no campo da poética ¢ da imaginagao, publicadas paralclamente as obras cpistemoldgicas, Bachelard condena a concepgao psicanalitica que no admite o lado auténomo do simbolismo ¢ da imagem ¢ encara os 261 Lopes, ARC. Bachelard aborda os obsticulos epistemolégicos, especialmente em La formation de Uésprit scientifique. Nessa obra, ele afirma a necessidade de valorizagdo do pensamento cientifico abstrato ¢ aponta a experiéncia imediata como um obsticulo ao desenvolvimento dessa abstragdo. Na medida em que a historia das cigneias é uma histéria julgada, esse julgamento se faz através dos epistemolégicos. Tal ana que permite hi ser autenticamente uma historia do pensamento (Canguilhem, 1994: 177) obsticulos e (..) nos propomos a mostrar este destino grandioso do pensamento cientifico abstrato. Para isso devemos provar que pensamento abstrato ndo é sinénimo de mé consciéncia cientifica, como a acusagdo trivial parece dizer. Deveremos provar que a abstracao desembaraca 0 espirito, que ela o alivia e que ela 0 dinamiza, Proporcionaremos essas provas estudando mais particularmente as dificuldades das abstragbes corretas, assinalando as insuficiéncias dos primeiros intentos, 0 peso dos primeiros esquemas, ao mesmo tempo que destacamos 0 cardter discursivo da coeréncia abstrata ¢ essencial que nunca logra seu objetivo da primeira vez. E para mostrar melhor que 0 processo de abstragao nao é uniforme, ndo fitubearemos em empregar as vezes um tom polémico, insistindo sobre o cardter de obstaculo que apresenta a experiéncia, estimada concreta e real, estimada natural e imediata (Bachelard, 1947: 8- 9). Como sempre conhecemos contra um conhecimento anterior, retificando da experiéncia comum e construindo a experiéneia cientifica em didlogo cor com a razio, precisamos constantemente superar os obs erro culos epistemolégicos. Nao se trata de considerar os obstéculos externos, como a complexidade ou fugacidade dos fenémenos, nem de incriminar a debilidade dos sentidos ou do espirito humano: é no ato mesmo de conhecer, intimamente, onde aparecem, por uma espécie de necessidade funcional, os entorpecimentos e as confusdes. E ai onde mostraremos as causas de estancamento e até de retrocesso, € ai sonhos apenas como reflexos de desejos inconscientes. Na psicanailise, as imagens sio simbolos que mascaram a realidade - dai ser necesséria a metodologia da busca de seus antecedentes. Nao hna espago para a imagem por cla mesma, imaginante, capaz de ir além da realidade, Para maiores desenvolvimentos, ver Pessanha (1994). (Cad.Cat.Ens.Fis,, 13,03: p.248-273, dez.1996, 262

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