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FEYERABEND E O PLURALISMO METODOLOGICO* recentemente, de “o pior inimigo da ciéncia”, encabegando uma li nomeados Karl Popper, Imre Lakatos ¢ Thomas Kuhn (Scientific American, May/1993, Anna Carolina Krebs Pereira Regner Departamento de Filosofia - UFRGS. Porto Alegre ~ RS Resumo Na epistemologia contempordnea, Paul Karl Feyerabend, pensador austriaco (1924-1994), cientista (doutor em Fisica), _ filésofo, especialista. em teatro e dowor honoris causa em Letras ¢ Humanidades, & um dos mais perspicazes criticos das andilises da natureza da ciéncia usualmente propostas. Neste texto, é analisada sua critica contra 0 “racionalismo” e sua defesa do “anarquismo epistemolégico”, 0 qual se traduz muma “metodologia pluralista”, tendo por foco sua obra-chave, Contra 0 Método. A andlise em pauta revela que Feyerabend se vale de uma estratégia anarquista. Mostra a irracionalidade das regras do racionalismo, dado 0 que esse pretende ¢ os procedimentos que propoe, ea razoabilidade das regras que sto contrérias ds suas (as contra-regras), a luz da praxis cientifica. Como resultado da anélise empreendida, coloca-se a quest@o: a que ‘racionalidade" se dirige a critica de Feyerabend? Na edigao inglesa mais recente de sua obra-chave, é reforcada e mais trabalhada a idéia, jd insimuada na primeira edicdo, de que 0 significado da ‘racionalidade” ndo se esgota no daquela que é criticada. PALAVRAS-CHAVE: “Paul Feyerabend”, “Filosofia da Ciéncia”, “racionalismo”, “racionalismo critico”, “pluralismo metodoldgico”. Na trajetéria epistemolégica d: * 0 presente texto foi publicado, sob a forma de artigo, cm Epistéme: Filosofia e Historia das Ciéncias em Revista. Porto Alegre, V.1, 0.2, 1996, p.61-78. BI (Cad.Cat.Ens.Fis,, v.13,n3: p.231-247, de7.1996, s reflexdes sobre a natureza da ciéncia que povoam 0 panorama contemporineo, Paul Karl Feyerabend, pensador austriaco (1924- 1994), é um dos criticos mais perspicazes das andlises usualmente propostas, chamado cm rodas mais fechadas de “terrorista epistemolgico” © por alguns fisic a em que sao 8, mais p-16). Um inimigo, sem divida, altamente eredenciado, pois é doutor em Fisica pela Universidade de Viena e doutor honoris causa em Letras e Humanidades, pela Universidade de Chicago, e, além de profundo conhecedor de teatro, foi assistente de Berthold Brecht. Trata-se de um profundo conhecedor de Filo: com um pensamento forjado pelo debate com grupos certamente qualificados na area -como o da London School of Economics, liderado por Popper nos anos 50; 0 de wittgensteincanos, como Elizabeth Anscombe; o de Herbert Feigl ¢ seu centro nos Estados Unidos - ¢ pelas discussdes com Kuhn ¢ Lakatos, lecionando nessa area em varias instituigde: dentre as quais a Universidade da Califéria, em Berkeley, ¢ o Instituto Federal de ‘Tecnologia de Zurich. Buscando uma amostragem significativa do pensamento de Feyerabend, a questo que vai nos ocupar neste texto & a da andlise da ciéncia que cle oferece. Para cexpé-la - sera esta a minha tarefa - tomarei como guia a sua obra mais conhecida entre nés, Contra 0 Método (1977), a favor do que cle chama de “anarquismo cpistemolégico” © que se traduz, em termos metodolégicos, na defesa de um “pluralismo metodoldgico”. Tomo essa edigdo como guia por ser a mais facilmente disponivel ao leitor deste artigo. Além disso, as mudangas ocorridas nas edigé subseqiientes nfo comprometem a linha de anélise aqui escolhida, nem sua di Cabe, contudo, fazer referénci leitura da ultima edigdo inglesa de: obra (Against Method, 1993), com revisio feita pelo proprio Feyerabend em 1992. Nela, 0 autor revé certas posigdes que aparecem na_1* edigdo inglesa, de 1975, sendo essa a versio traduzida na edigdo brasileira de 1977, posteriormente reeditada. Assim ocorre com a posigao defendida ao final da Introduce da edigio de 1977 (a de 1975, cm lingua inglesa), quando diz. que poder vir um tempo em que seja necessario dar & razio uma vantagem temporaria sobre a metodologia anarquica, mas que no pensava que estivéssemos vivendo esse tempo. Em 1992, assim escreve Feyerabend: © um convite “Esta era a minha opinido em 1970, quando escrevi a primeira versdo deste ensaio. Os tempos mudaram. Considerando algumas tendéncias na educacao dos Estados Unidos (‘politicamente cor- reto’, menus académicos, etc,), em filosofia (pds-modernismo) ¢ 0 mundo em geral, penso que se deva dar a razdo, agora, um peso maior, ndo porque ela seja ¢ sempre tenha sido fundamental, mas porque isso parece ser necessério, dadas circunsténcias que ocor- rem bem fregiientemente hoje (mas que podem desaparecer amanhd), para criar uma abordagem mais humana”. (Feyerabend, 1993: p. 13, n12) Em 1992, Feyerabend discute em maior detalhe a questio da “racionalidade”, adentrando-se por uma porta que parece ter deixado, anteriormente, timidamente entreaberta, ¢ diz ser possivel avaliar padrdes de racionalidade ¢ Roger, A.C.KI 232 aperfeicod-los. Chama também a atengo para mal-entendidos simplistas de suas idéias, como a que concerne a seu alegado “relativismo”: “., filosofias simples, sejam de um tipo dogmético ou mais liberal, tém seus limites. Nao hé solucées gerais. Um alargado liberalismo na definicéio de ‘Jato’ pode ter graves consegiiéncias, enquanto faz um excelente sentido a idéia de que a verdade é ocultada e mesmo pervertida pelos processos destinados a estabelecé-la. Eu, conseqiientemente, novamente alerto o leitor quanto a que ndo tenho a intengdo de substituir. principios ‘velhos ¢ dogméticos’ por outros ‘novos e mais libertérios'. Por exemplo, n&o sou nem um populista para quem 0 apelo ‘ao povo’ é a base de todo 0 conhecimento, nem um relativista para quem nao hd ‘verdades enquanto tais’, mas apenas verdades para este ou aquele grupo e / ou individu. Tudo 0 que digo & que os ndo-especialistas freqiientemente sabem mais que os especialistas e devem, consegiientemente, ser consultados, e que os profetas da verdade (incluindo aqueles que fazem uso de argumentos), mais fregiiente que raramente, sao levados por uma visto que colide com os préprios eventos que essa visdo deve explorar”. (Feyerabend, 1993 > p.Xll) Em seu instrutivo Prefacio 4 edigdo inglesa de 1993, Feyerabend s pensamento no novo estado de coisas que se configurou desde aquela primeira publicagaio, com as draméticas mudangas politicas, sociais e ecolégicas ocorridas, & com uma nova atitude de médicos ¢ intelectuais, adaptando o que aprenderam nas universidades © escolas especializadas para fazer 0 conhecimento mais eficiente ¢ humano. Num nivel mais académico, ressalta que os historiadores da ciéncia, da cultura comegaram a abordar 0 passado_ nos termos préprios deste: “... estamos bem distantes da idgia platonica da ciéneia como um sistema de enunciados crescendo com experimento ¢ observagio ¢ mantendo a ordem por meio de padrées racionais duradouros” (Feyerabend, 1993 : p.11). A Ieitura desse Preficio proporciona, além disso, um elucidativo quadro da histéria ¢ da sociologia das ciéncias contemporiineas. tua o seu 1. Anarquismo epistemolégico Feitas as consideragdes acima, comecemos esclarecendo 0 que cabe entender por “anarquismo epistemolégico”. Inicialmente convém lembrar que “anarquismo” significa, antes, oposig%io a um principio tnico, absoluto, imutivel de ordem, do que oposigao a toda ¢ qualquer organizagio. Na sua tradugaio metodolégica, nao significa, portanto, ser contra todo ¢ qualquer procedimento metodolégico, mas 233 (Cad.Cat.Ens.Fis,, v.13,n3: p.231-247, de7.1996, contra a instituigdo de um conjunto Unico, fixo, restrito de regras que se pretenda universalmente valido, para toda e qualquer situagdo - ou seja, contra algo que se pretenda crigir como “o” método, como “a” caracteristica distintiva, demarcadora do que seja “ciéncia”. E 0 que Feyerabend quer que se entenda por “anarquismo epistemolégi Feyerabend diz que esse anarquismo difere tanto do ceticismo quanto do anarquismo politico (religioso). Ao anarquista epistemolégico, nao Ihe ¢ indiferente um ou outro enunciado © desejard, talvez, defender certa forma de vida combatida pelo anarquista politico ou religioso, mantendo ou alterando scus objetivos © estratégias, na dependéncia do argumento, do tédio, de uma experiéneia de conversiio ou de outros fatores de ordem emocional ¢ de forga persuasiva. O anarquista epistemolégico nao se recusara a examinar qualquer concep¢ao, admitindo que, por tras do mundo tal como descrito pela ciéncia, possa ocultar-se uma realidade mais profunda, ou que as pereepgdes possam ser dispostas de diferentes maneiras © que a escolha de uma particular disposigo “correspondente 4 realidade” no sera mais “racional” ou “objetiva” que outra (Feyerabend, 1977, cap.XVD). Antes de um ideario, 0 anarquismo epistemolégico & uma atitude refletida na propria estratégia utilizada por Feyerabend em sua defesa ¢ na critica da postura adversaria, 0 racionalismo, que vem contemporaneamente representado, em sua forma mais claborada, pelo “racionalismo critico” de Popper ¢ na forma mitigada de representada pelo “novo racionalismo” de Lakatos. Por que 0 racionalismo se torna 0 alvo visado? Para responder a essa questo, fagamos duas breves digressdes: uma, para esclarecer 0 que Feyerabend entende pelo “racionalismo” que condena, como sendo tanto “incorreto”, para dar conta do desenvolvimento da ciéncia (é este 0 ponto a que vamos nos ater), como “indesejavel”, para uma vida gratificante: outra, para explicitar alguns pressupostos que fundamentam a postura epistemolégica de Feyerabend IL. Racionalismo (critico) © racionalismo com uma tradi 10 que ¢ inicialmente “substituiu os conceitos ricos ¢ dependentes da situagao, préprios da épica primitiva, por umas poucas idéias abstratas e independentes da situag30”, gerando, numa segunda ctapa, “estorias especiais, logo chamadas de ‘provas’ ou ‘argumentos’, cuja trama nao é imposta aos caracteres principais, mas “segue-se de’ sua natureza.” Desenvolveu-se, assim, igualmente, a idéia de que “so as proprias coisas que produzem a estoria e¢ a dizem ‘objetivamente’, isto é, independentemente das opinides ¢ das compulsdes histéricas.” A pressio conjunta destes dois desenvolvimentos afiangou “ 0 critério de que 0 conhecimento ¢ tinico - de que existe apenas uma estéria aceitavel: a ‘verdad’ - abstrato, independente da situagio objetivo’) ¢ baseado em argumento” (Feyerabend, 1987 : p.9). Roger, A.C.K.P. 234 Sob esse enfoque, podemos entender a razdo criticada por Feyerabend como a faculdade pela qual os padrdes de tal tradigZo se exercem, traduzindo-se em obediéncia a regras fixas e a padrdes imutdveis, estabelecendo ¢ submetendo-se a algo como “o” método, concentrado, na sua versio contemporinea mais fiel, nas seguintes regras: 1. S6 aceitar hipdteses que se ajustem a teorias confirmadas ou corrobora- das 2 .Eliminar hipoteses que nao se ajustem a fatos hem estabelecidos. Essas regras expressam, segundo Feyerabend, a “esséncia do empirismo” ¢ mo (Feyerabend, 1977, capitulos I ¢ II)!. Ao criti regras para dar conta da condugao da ciéncia, Feyerabend igualmente critica a eficdcia, para tal fim, do proceder por “razdes”, ou seja, daquilo que, segundo as regras, podemos alegar como base de legitimagdo para nosso proceder. De modo similar, critica a racionalidade, enquanto marca caracteristica daquela tradigaio e a teoria estdtica da racionalidade a que esta concepgao dé lugar, desacreditando a imponéncia de uma teoria da cigncia que aponte a tais padrdes e regras © se pretenda autorizada por alguma teoria da racionalidade do fazer cientifico (Feyerabend, 1987), por algum principio dnico de legitimagao © organizacao. Caso possamos resistir a tentagdo de buscar um principio (meta-metodolégico) que s aplicivel a todas as situagdes (ou contextos), concede que o iinico seria o principio tudo vale (Feyerabend, 1977, cap.1)4. do indutivi a eficacia de tai | Assim, em que pescm as criticas de Popper ao indutivismo, podemos ver que compartilha 0 empirismo deste, ao tomar a experiéncia como "o" Arbitro para a aceitabilidade (via "falsea- mento") de nossas teorias. Desse modo, podemos entender que Feyerabend chame © procedi mento que se oponha aiquelas regras e aos preceitos do proprio racionalismo critico de contra- indugao. 2-"& como regras ¢ padres sao usualmente tomados como constituintes da 'racionalidade’, infiro que episédios famosos na ciéncia, admirados por ientistas, filésofos do mesmo modo que por pessoas comuns, nao foram 'racionais', nfo ocorreram de uma maneira ‘racional’, a 'razaio' nao foi a forga motora por detris dos mesmos ¢ cles no foram julgados ‘racionalmente" (Feyerabend: 1978, p.14). 3 Feycrabend explicitamente critica scu cnfoque estdtico:"a idéia de um meétodo estatico ou de uma teoria estitica da racionalidade funda-se numa coneep¢ao demasiado ingénua do homem & de sua circunstincia social”. (Feyerabend: 1977, p.34), 4 Nao cabe aqui a critica de que este principio seria auto-destrutivo. Entendido como um meta- principio, poderia compreender sob si o principio nem tudo vale como principio de ordem infe~ rior, atinente a um particular contexto, enquanto fudo vale seria o ‘nico principio que se aplicaria a fodos os contextos. Cabe igualmente ressaltar que a anilise da ciéncia feita por Feyerabend, com a critica que clabora contra o “racionalismo", nao depende da prévia accitago desse principio ou de qualquer prineipio que fosse wniversalmente valido, nao pretendendo uma nova 25 (Cad.Cat.Ens.Fis,, v.13,n3: p.231-247, de7.1996, IIL, Pressupostos do anarquismo epistemolégico Em contrapartida, quais os pressupostos em que se apdia a visto de Feyerabend? © exame que faz da ciéneia se projeta na perspectiva de uma rede de pressupostos epistemoldgicos, ontolégicos, antropolégicos ¢ pedagégicos, que excedem uma pauta meramente metodolégica. Vé 0 mundo que desejamos explorar como uma entidade em grande parte desconhecida. E vé a ciéncia construida em seu acesso, como um modo de conceber essa entidade, dando-lhe sentido, (1) admitindo que a coisa ¢ a compreensio de uma idéia correta dessa coisa “silo, muitas vezes, partes de um tinico ¢ indivisivel processo” (Feyerabend: 1977, p.32) ¢ que nao ha “fatos nus”, estando os fatos sempre sujeitos 4 “contaminagdo” fisiologica ¢ historico-cultural da evidéncia (Feyerabend: 1977, cap.V), (2), tomando a Histéria como um labirinto de interagdes & (3) propondo que a educagao cientifica de scus atores seja conciliada com uma “atitude humanista”, libertadora, de vida completa e gratificante, junto a “tentativa correspondente de descobrir os segredos da natureza ¢ do homem” (Feyerabend: 197, p.22). Essa rede de pressupostos faz-se presente na concepedio de conhecimento que Feyerabend ofere ico “O conhecimento ... ndo é um gradual aproximar-se da verdade. E, antes, um oceano de alternativas mutuamente incompativeis (e, tal- vez, alé mesmo incomensurdveis), onde cada teoria singular, cada conto de fadas, cada mito que seja parte do todo forca as demais partes a manterem articulagéo maior, fazendo com que todas con- corram, através desse processo de competicéo, para 0 desenvolvi- mento de nossa consciéncia. Nada é jamais definitivo, nenhuma forma de ver pode ser omitida de uma explicacdo abrangente”, “A tarefa do cientista ndo & mais a de ‘buscar a verdade’ ou a de ‘Touvar a Deus' ow a de ‘sistematizar observagdes' ou a de ‘aper- Jeicoar previsies’. Esses so apenas efeitos colaterais de uma ati dade para a qual a sua atencdo se dirige diretamente e que é ‘tor- “teoria da ciéncia" ou da "racionalidade". No Prefiicio A 2* edigfo inglesa de Against Method (1988) ¢ reproduzido na 3* edigao (Feyerabend: 1993, p.7), Feyerabend diz: “tudo vale” néo é um ‘principio’ que eu defendo ~ nao penso que principios possam ser usados ¢ Jfrutiferamente discutidos fora da situagdo concreta de pesquisa que se espera que eles afetem - ‘mas a aterrorizada exclamagéo de um racionalista que otha mais de perto a histéria, Lendo as muitas criticas exaustivas, sérias ¢ completamente desorientadas que recebi apés a publicagao da 1° edigéio inglesa, freqiientemente me lembro das minhas trocas com Imre; 0 quanto ambos teriamos rido se fossemos capazes de ler exsas efusies juntos.” Roger, A.C.K.P. 236 nar forte 0 argumento fraco’, tal como disse o sofista, para, desse modo, garantir 0 movimento do todo” (Feyerabend: 1977, p.40-41) Essa “visdo” da ciéncia, por sua vez, ¢ recolhida da trama de um outro pressuposto, que jogaré papel central na estratégia argumentativa de Feyerabend: a de uma freqiiente oposigdo entre a “epistemologia oficial” (sob a égide do racionalismo) ¢ a “prixis cientifica” (que se revelaria irracionalista, segundo os critérios da “epistemologia oficial”). IV. Estratégia anarquista Encerradas nossas digressdes, voltemos, entdo, ao teor mais imediato da defesa do anarquismo epistemolégico ou pluralismo metoddgico feita por Feyerabend. Pretende ele fornecer uma nova metodologia ou uma nova teoria da racionalidade? Nao, seu objetivo ¢ convencer 0 leitor de que “todas as metodologias, mesmo as mais ébvias, tém limitacdes” (Feyerabend: 1977, p.43). Como procede? Na leitura de Contra 0 Método podemos encontrar, subjacente & sua narrativa, uma estratégia que, refletindo seu anarquismo, se desenvolve em duas frentes, a suportarem-se mutuamente. De um Jado, busca implodir a posigao do adversério. Lutando em seu campo ¢ com as suas armas, mostra “a irracionalidade do racionalismo>”, uma vez que suas regras, levada is suas ltimas conseqiiéncias, dentro da prépria esfera légica e epistemoldgica em que se alicergam, tornam-se auto-destrutivas, inviabilizam 0 alcance de scus objetivos ¢ conflitam com os fundamentos que as suportam. Dada a “contaminagao” histérica ¢ fisiolégica da evidéncia - admitida mesmo por posigdes racionalistas como a de Popper ¢ de Lakatos -, a condigio de coeréneia encerrada na regra I: Sé aceitar hipsteses que se ajustem a teorias confirmadas ou corroboradas, impede a exploragao da evidéncia. Alimenta uma visio conformista ¢ dogmatica, de preservagio do status quo, ¢ supde uma autonomia da propria experiéncia, uma vez que, tornando irrelevante a explorag’o de alternativa tebricas para o acesso a cla, supde que, independentemente da teoria que a condiciona, a experiéncia seja capaz de revelar-se, tornando-se “a” medida para o contetido empirico de uma teoria (Feyerabend: 1977, cap. III). Por sua vez, a regra 2: Eliminar hipéteses que ndo se ajustem a fatos bem estabelecidos, se observada, nos deixaria sem qualquer tcoria, dado o desacordo tanto quantitative como qualitativo que toda a teoria exibe com relagdo aos fatos de seu dominio. Para avaliar tais discordancias, bem como permitir a exploragao da evidéncia, escavando as ideologias subjacentes (Feyerabend: 1977, cap. 5 © passatempo favorito do anarquista é "perturbar os racionalistas, descobrindo razies fortes para fundamentar doutrinas desarrazoadas" (Feyerabend, 1977 : p.293). 27 (Cad.Cat.Ens.Fis,, v.13,n3: p.231-247, de7.1996, V), © a discussio critica de tcorias, tomna-se indispensivel o trabalho com alternativas te6ricas conflitantes - “ndo podemos descobrir 0 mundo a partir de dentro. Ha necessidade de um padrio externo de critica: precisamos de um conjunto de pressupostos alternativos” (Feyerabend: 1977, p.42) De outro lado, Feyerabend mostra a “razoabilidade do irracionalismo”, viabilizando 0 progresso da ciéncia, em qualquer uma das acepgdes que Ihe seja emprestada (Feyerabend: 1977, cap.tI). Assim como 0 “racionalismo” foi caracterizado pelas regras acima mencionadas, 0 “irracionalismo” 0 sera através das contra-regras (opostas as regras do racionalismo): 1. Introduzir hipéteses que conflitem com teorias confirmadas ou corroboradas; 2. Introduzir hipoteses que néo se ajustem a fatos bem estabelecidos Se as regras do “racionalismo” representarem a esséncia do “indutivism = ao tomarem a “experiéneia” (enunciados singulares) como arbitro para conferir aceitabilidade / Iegitimidade as “teorias” (emunciados universais) ~ as contra-regras representario 0 que se pode chamar de “contra-induco”. A “razoabilidade” da contra- inducdo estabelece-se na medida em que suas contra-regras sto necessérias exploragio da evidéncia e discussio critica pretendidas pelas regras do racionalismo & mostram-se “corroboradas” pela prixis cientifica, tal como pode ser visto no s u estudo de caso® sobre a defesa da doutrina copernicana e introdugao de uma nova Fisica por Galileu (Feyerabend, 1977, caps.VI-XIID). Esse estudo de caso de Feyerabend revela como a nova teoria, a de Copémico, admitindo o movimento da Terra, conflitava com teoria e fatos aceitos € bem estabelecidos - a teoria aristotélica, com uma sélida epistemologia ¢ ontologia, e sua bem sucedida administragao do senso comum, provendo-lhe o requerido suporte empirico. A estratégia para a defesa da nova visio demandou a substituigio do padrio sensorial ¢ lingitistico-conceitual vigente, atingindo diferentes estratos da experiéncia, desde uma nova teoria da sensagao (que deveria ser acompanhada de “razdio”) © da percepcao (com o uso de um “sentido superior” - o telescépio), até uma nova concepgiio do movimento ¢ da propria experiéncia. Consistiu, em primeiro, garantir-Ihe espago, com um movimento inicial de recuo, evitando © confronto directo com a teoria aristotélica e neutralizando 0 apoio da evidéncia disponivel, apelando nao sé a argumentos, mas a propaganda, a razdes eventuais ¢ procedimentos para os quais Galileu nao dispunha de “boas razdes”, como o do uso do telescépio. Posteriormente, os novos padrdes orientaram a busca da evidéncia favoravel ao novo sistema, com 0 desenvolvimento de hipéteses (ciéneias procedimentos, ao qual serviram recursos “proibidos” pelas regras d “o método”, como auxiliares, novos instrumentos¢ 6 Procedimento cocrente com sua recusa a oferecer uma nova teoria da ciéncia, Roger, A.C.K.P. 238 uso de adaptagdes ad hoc, afastamento da evidéneia contriria ¢ privilégio a evidéneia corroboradora. V. Critica 4 metodologia do ‘racionalismo’ Tais recursos ¢ procedimentos ferem os ditames do racionalismo critico, “a metodologia positivista mais liberal hoje existente” (Feyerabend: 1977, p.269). Feyerabend contesta cada uma de suas regras metodolégicas (Feyerabend: 1977, cap.XV). Alega que, freqiientemente, instituicdes, idgias ¢ priticas se desenvolvem a partir de atividades sem importancia. A formulacdo clara do problema ¢ parte daquele processo de mitua clarificago da coisa e da idéia correta da coisa. Comparte a criticas de Lakatos (1979) a um principio estrito de falseamento, a que este chama de falseamento ingénuo’. Critica a exigéneia de contetido crescente (excedente) ou de crescimento empirico, atribuindo sua pretensa aferi¢ao a uma ilusdo epistemolégica: “o imaginado contetido das teorias anteriores {...} diminui e pode reduzir-se até 0 ponto de tornar-se menor que 0 imaginado contetido das novas ideologias” (Feyerabend: 1977, p.276-277). Pois, “o aparato conceitual da teoria, que emerge lentamente, logo comeca a definir seus préprios problemas, sendo esquecidos ou postos de lado como irrelevantes os problemas, os fatos, as observagoes anteriores” (p.275) Ou pode ser que es problemas, fatos, observagdes sejam trazido: esfera da nova teoria através de recursos ad hoc, redefinigaio de termos ou simples afirmagio da decorréncia de seu micleo dos novos prineipios bisicos. Em que pesem seus pontos de convergéncia com a andilise de Lakatos, Feyerabend estende sua critica & “face conservadora” de sua proposta racionalista. Essa proposta apresenta-se como metodologia dos programas de pesquisa. Os critérios de avaliagdo propostos por essa metodologia referem-se, antes, a séries de teorias estruturadas num programa, dotado de um niicleo, que inclui 0 componente metafisico, a idéia diretora ¢ “irrefutével” que 0 caracteriza ¢ move. Desenvolve-se através de suas 7 Lakatos concorda com a critica de Popper, segundo a qual nenhuma teoria pode ser verificavel, ‘mas vai além, criticando ao proprio Popper - contra Popper, defende o eardter historico, retro- spectivo dos chamados "experimentos cruciais” ¢ a impossibilidade de refiuar conclusivamente qualquer conhecimento ou teoria, 29 (Cad.Cat.Ens.Fis,, v.13,n3: p.231-247, de7.1996, devem ‘cinto de heuristicas positiva ¢ negativa. A heuristica negativa estabelece que caminhos ser evitados, visando a preservacio do nucleo - estabelece a formagao de um " prote¢o", pela articulagao ¢ / ou invengiio de hipsteses auxiliares; redirige 0 modus tollens ao "cinto de protecao", procedendo a ajustes ou a substituigao total do "cinto”. A va diz respeito a politica de pesquisa a ser seguida - sugestdes sobre como modificar e¢ sofisticar o "“cinto" refutavel, incluindo a construgio ¢ complexificagaio de uma "cadeia de modelos" sucessivos, sendo esperada ¢ antecipada a existéncia de "refutagdes", bem como a estratégia para digeri-las. Sdo as "verificagdes" (c, nfo, as "refutagdes") que mantém o programa, a ser avaliado em fungio da iransferéncia progressiva de problemas. A luz. dese critério, uma série de teorias é progressiva, quando tedrica ¢ empiricamente progressiva; teoricamenie progressiva quando cada nova teoria tem algum excesso de contetido empirico (prediz fatos novos, cm relagio 4 sua predecessora); empiricamente progressiva quando parte do contetido cempirico for corroborado; degenerativa quando nao for progressiva. A accitabilidade de um programa requer que exiba, pelo menos, transferéncia teoricamente progressiva de problemas. Programas sao rejeitados por outros programas, com os quais competem, em vista de sua forca heuristica - capacidade para produzir fatos novos, explicar refutagdes no decorrer do crescimento e, quando possivel, estimular a matemiatica. (Lakatos, 1979) Tais avaliagdes, entretanto, nfo sio_ ins . nem de aplica mecdnica®, Tanto a novidade de uma proposigZo fatual como as avaliagdes de casos "corroboradores" ¢ "falseadores” so sempre retrospectivas ¢ a evidéncia contrria a uma teoria sera sempre corroboradora de outra. Nao ha razdes logicas ou empiricas que possam decretar 0 — falseamento conclusive de um programa. Programas em degeneragio podem se recuperar. Incompatibilidades geralmente surgem com a expanstio dos modelos: "Nao se trata de propormos uma teoria ¢ a Natureza poder gritar NAO; trata-se de propormos um emaranhado de teorias ¢ a Natureza poder gritar INCOMPATIVEIS" (Lakatos: 1979, p.159). E “alguns dos maiores programas de investigagio cientifica progrediram sobre fundamentos inconsistentes" (Lakatos: 1987a, p.52). Segundo Feyerabend, quando Lakatos permanece consistente com suas proprias regras, ou seja, com © racionalismo liberal que apregoa, scu racionalismo & um anarquismo disfargado; quando, porém, afastando-se de suas regras, de seu liberalismo, admite a coer¢o pritica, di lugar a uma “idcologia conservadora”, divergindo do “anarquismo”. Feyerabend, contudo, diz que, no nosso atual estagio de 8 Em uma nota de pé de pagina, defendendo-se de critica que Ihe é feita por Kuhn ¢ Feyerabend, Lakatos apela & necessidade - de resto presente, segundo ele, em todas as metodologias - de valermo-nos do "senso comum" (isto é, de juizos de casos particulares que nao se fazem segundo regras mecanicas, mas que apenas seguem prineipios que deixam algum Spielraum)" para aplica- 80 das regras (Lakatos: 1987a, p.36-37, nota 58). Roger, A.C.K.P. 240 consciéneia filosofica, essa ambigitidade de Lakatos ¢ scu “racionalismo” fazem mais pelo “anarquismo” que uma defesa ostensiva deste ¢ que, ele proprio, Feyerabend, ao concluir seu livro, sera um lakatiano (Feyerabend: 1977, cap.XVII). VL. Novos questionamentos: a ‘incomensurabilidade’ A critica de Feyerabend ao “racionalismo” (ou, a sua defesa do “anarquismo”) atinge certos pontos cruciais &s anélises contemporiineas da ciéncia - as supostas distingdes entre “observacional/teérico”, “historia da cigneia/filosofia da ciéncia” ¢, relacionada a esta, “contexto-de-descoberta / contexto-de-justificagao”, com um s6lido ponto de ataque no material histérico para questiona-las. Enquanto a primeira se encontra ja bastante “desacreditada”, as duas iiltimas ainda so divisores de Agua importantes entre modos de analisar a ciéncia, cujo questionamento recebe um novo enfoque a partir dos estudos de caso realizados por Feyerabend. Esses estudos conferem a histéria das ciéncias um papel substantivo para a sua compreensio filoséfica,? com minuciosos exames do papel de fatores contextuais ¢ circunstanciais ¢ reconstituigdo do “contexto de descoberta”, levando a uma critica daquelas distingdes.19 Levam-nos, dentro deste quadro, a algumas discussées de questées bastante problematicas, tais como as da “comensurabilidade / incomensurabilidade” de teoria: ponto que esta no ceme de todas as discussdes contemporineas, a da “racionalidade / irracionalidade”. Detenho-me, daqui em diante, no exame de algumas dessas questdes bretudo, no da primeira, ponto nevralgico das polémicas acerca da “mudanga na ciéncia” e alvo central da discussio “racionalidade / “irracionalidade”. Pois a “incomensurabilidade” no sé fere as pretensdes de um conjunto unico de regras ou principios, a presidir a caracterizagio e 0 progresso da ciéncia, como contextualiza a propria “racionalidade cientifica”, qualquer que seja o sentido a cla atribuido. , das “relagdes ciéncia/nao-ciéncia” ¢, de um modo um tanto velado, mas como 0 9 Revestem de significagao propria a parifrase de Kant feita por Lakatos: "A Filosofia da Ciéncia sem a hist6ria da ciéncia é vazia; a Historia da Ciéncia sem a filosofia da ciéneia ¢ cega"(Lakatos: 1987a, p.11). Feyerabend refere-se a esse miituo remetimento da reflexio filosdfica © do material historico em termos da necessaria combinagao do argumento abstrato com o malho da hist6ria: *O argumento abstrato é imprescindivel porque imprime sentido a nossa reflexdo. A hist6 entretanto, ¢ também imprescindivel, ao menos no atual estégio da filosofia, porque da forca a nossos argumentos" (Feycrabend: 1977, p.244). 10 Na histéria da cigncia, padrées de justificag%io proibem, freqiientes vezes, formas de agir provocadas por condigdes psicolégicas, sécio-econdmico-politicas ¢ outras de cardter 'externo' - € a cigncia tao-somente sobrevive porque sc permite que essas formas de agir prevalegam" (Fey- erabend: 1977, p.260). 241 (Cad.Cat.Ens.Fis,, v.13,n3: p.231-247, de7.1996, A questo da “ilusio epistemologica” de crescimento empirico, hi pouco referida, é um fio privilegiado para a discussao da incomensurabilidade de teorias! |, Para seu exame, Feyerabend procede de modo similar a0 adotado na “implosio” do “racionalismo” pelas suas regras - revela as j4 mencionadas deficiéncias internas das metodologias da comensurago, representadas pelo “racionalismo critico” de Popper ¢ pela “face conservadora” do racionalismo da “metodologia dos programas de pesquisa” de Lakatos, abrindo espago para examinar as “razdes” a favor da tese da incomensurabilidade. Por “incomensurabilidade” de teorias Feyerabend entende sua incomparabilidade, “pelo menos na medida em que estdio em jogo os padrdes mais familiares de comparagao”, notadamente os de comparagio das clas de conseqiiéneias das teorias em questo (Feyerabend: 1979, p.271-274). A incomensurabilidade esta estreitamente relacionada ao significado e depende do modo como sejam interpretadas as teorias cientificas. Coloca-se para uma interpretagio “tealista”, que concebe as teorias cientifieas como pretendendo dizer algo acerca da i gagtio!2 s centrais a favor da incomensurabilidade: a existéneia (1) de esquemas de pensamento incomensurdveis entre si, (2) de estigios incomensuriveis no desenvolvimento da percepgao ¢ do pensamento no individuo (reportando-se a Piaget), (3) de principios ontolégicos condicionantes das ideologias subjacentes a culturas diversas que impedem, fornam sem sentido, determinados sistemas conceituais ¢ que agem a base das cosmovisdes encerradas nas nossas teorias cientificas!3, A mera diferenga conceitual n&o é suficiente para tornar duas 14; para que isso ocorra, 0 uso de qualquer conceito de uma deve tornar inaplicdveis os conceitos da outra - o que tem lugar quando esto em jogo teoria compreensivas, que abrigam diferentes fundamentos ontolégico constituig o ontoldgica do mundo que tomam como objeto de inves Feyerabend arrola trés tes teorias incomensurav “Afinal, supde-se que uma teoria abrangente envolva também uma ontologia com o propésito de delimitar 0 que existe e assim delimitar 0 dmbito dos fatos possiveis e possiveis interrogacbes” (Feyerabend: 1977, p.276). 11 Esse é um dos tragos sticos da andlise de Feyerabend ¢ que o aproxima das consideragdes de Thomas Kuhn (1979), parecendo afasti-lo de Lakatos 12 Nao se colocaria, por exemplo, para uma interpretaggio "instrumentalista", & luz da qual as teorias sio instrumentos para fazer previsées acerca do comportamento de fenémenos (supondo tuma linguagem comum de observagiio). 13 gob esse enfoque ontolégico, partilha a concepgdo de Whorff acerca da linguagem, como “*modeladora de eventos", trazendo classificagdes cosmologicas implicitas. 14 Feycrabend, cm nota de pé-de-pagina (Feyerabend: 1981, p.154), diz que Kuhn ocasional- mente descuida dese ponto. Roger, A.C.K.P. 242 E, para sua investigagdo seméntica ser empreendida, Feyerabend propde que se proceda como um antropélogo ao estudar a cosmologia de uma tribo: aprende sua linguagem ¢ informa-se dos scus hibitos sociais bisicos; investiga as relagdes desses com outras atividades que parecam irrelevantes; procura identificar a idgias-chave ©, entlo, entendé-las, interiorizando-as, sem buscar “tradugdes prematuras!5; completado seu estudo com 0 conhecimento da sociedade nativa ¢ de seu proprio desenvolvimento pessoal, pode estabelecer comparagdes entre, por exemplo, 0 modo de pensar curopeu ¢ 0 nativo, ¢ decidir acerca da possibilidade ou nio de mesmo as reproduzi-lo na linguagem ocidental (Feyerabend: 1977, cap. XVII)! 6. Por fim, cabe mencionar que, no bojo desses novos questionamentos ¢ nutridas pela detalhada andlise que faz da questio da incomensurabilidade, estio as reflexdes de Feyerabend acerca das relagdcs entre subjetividade ¢ objetividade, entre ciéncia ¢ outras “gerais, cocrentes ¢ frutiferas concepgdes de mundo”, entre ciéncia e sociedade, repercutindo na sua visio acerca da racionalidade. Quanto ao primeiro ponto, Feyerabend critica 0 desiderato de objetividade do racionalismo, de algum modo centrado na “tradicional” identificagio da objetividade com 0 que seja racional, abstrato, independente da situagdo (de opinides ¢ compulsdes histéricas), produzido pelas préprias coisas. Diz (Feyerabend: 1981, nota 17, p.238) que nenhum dos autores que defendem standards “objetivos” explicam 0 que esta palavra significa. Os popperianos, segundo Feyerabend, ocasionalmente conectam objetividade com verdade 15 Feyerabend refere-se igualmente & aprendizagem da lingua materna pela crianga, ou, mesmo, a0 seu aprendizado de outras linguas, que nao se processa via "tradugao", © pergunta-se, entao, porque os adultos também nao poderiam aprender ou penetrar em novas teorias cientificas sem supor sua tradugo ("comensura¢o") com outras teorias jé conhecidas. 16 Essas condigdes sob as quais cabe falar de incomensurabilidade devem ser consideradas quando essa questo & confrontada com a seguinte objee2o: como falar da propria incomensura- bilidade de duas teorias, caso cla exista, sem comensuri-las? A esse primeiro ataque, cabe lem- brar as ressalvas de Feyerabend ¢ ter em mente que nao podemos dizer que diferentes teorias sejam, por essa tinica raz8o, incomensurdveis, € que o scjam sob qualquer aspecto. Devem ser tcorias compreensivas, estabelecendo principios ontoldgicos conflitantes, e ser interpretadas de uma determinada mancira, realisticamente, atentando 4 constituigao ontolégica. Mesmo assim, ainda podem ser comparadas, com os aleances ¢ limites de uma tradugdo lingdistica, como a de um idioma native numa lingua curopéia: "O que ndo quer dizer que essa lingua, fal como falada, independentemente da comparagao, seja comensurivel com o idioma nativo. Significard que as linguas podem orientar-se em muitas diregdes ¢ que a compreensdo independe de qualquer par- ticular conjunto de regras” (Feyerabend: 1977, p.376). Feyerabend (1979) e Kuhn (1979) exam nam detidamente a questo da incomensurabilidade em termos de “tradugao de lingua- gens".Assim, podemos situar-nos num patamar "fora" das teorias envolvidas e, procedida a inves tigag2o semantica nos termos do método antropoldgico preconizado, examinarmos sua comen- surabilidade / incomensurabilidade. Essa & uma questo que sc coloca quando nosso abjeto & a andlise de teorias constituidas. 23 (Cad.Cat.Ens.Fis,, v.13,n3: p.231-247, de7.1996, © chamam de “objetivas” as comparagdes entre teorias apenas se bascadas numa comparagéo do contetido de verdade. Chamam os standards remanescentes de “subjetivos” e essa ¢ a razio pela qual Feyerabend assim se refere a tais standards Alias, um dos temores frente 4 tese da incomensurabilidade é 0 de que ela s por razdes empiricas. impega a refutag3o empiriea e uma escolha entre teori Feyerabend, contudo, afirma (Feyerabend: 1981, p.238) que hi comparagio, comparagao objetiva, mas que essa comparagio ¢ um procedimento muito mais complexo ¢ delicado do que os racionalistas supdem. Em explicita resposta aquela objecao, lembra que, embora caiba cxigir de uma teoria apenas o que cla promete explicar, as previsdes que estabelece comumente dependem de seus enunciados ¢ também das condigdes iniciais, podendo ser contraditas pela experién nos decidimos entre teorias - dentro de um mesmo ponto-de-vista possiveis juizos de verossimilitude; no caso de diferentes pontos de vista cosmologicos abrangentes, cabe considerar contradigdes internas as teorias estabelecidas, juizos estéticos, de gosto, preconceitos metafisicos, aspiragdes religiosas; em suma, 0 que resta sdo nossos desejos subjetivos, a ciéncia devolvendo ao individuo uma liberdade que ele parece perder quando em suas partes mais vulgares (Feyerabend, 1977 : p.412). Sua posigio é a de que “ha muitas c complexas interagdes entre ‘sujeito’ ¢ ‘objeto’ ¢ muitas maneiras pelas qu: mboca no outro.” (Feyerabend, 1981 : p.2.) Diz: jo, mesmo is um des “E possivel conservar 0 que mereceria o nome de liberdade de cri- agao artistica ¢ usd-la amplamente, ndo apenas como tritha de fu- ga, mas como elemento necessdrio para descobrir e, talvez, alterar os tracos do mundo que nos rodeia. Essa coincidéncia da parte com 0 todo (0 mundo em que vive), do puramente subjetivo e arbitrério com 0 objetivo ¢ submisso a regras, constitui um dos argumentos mais fortes em favor da metodologia pluralista” (Feyerabend: 1977, p.7D). Quanto as relagdes entre ciéncia e outras concepedes de mundo, Feyerabend diz : “Ha mitos, hi dogmas da tcologia, hi metafisica e hii muitas outras, maneiras de claborar uma cosmovistio” (Feyerabend: 1977, p.279). As similaridades entre a estrutura, processo de elaborago ¢ dindmica da fungdo explicativa do mito e da ciéncia sio surpreendentes (Feyerabend: 1977, cap.XVIII). Segundo sua avaliagio, ndo apenas consideragdes de ordem especulativa, mas pritica, face a repressfo a outras maneiras de claborar cosmovisdes que coincidem com o surgimento da ciéncia moderna, ensejam que hoje questionemos as relacdes entre Estado ¢ ciéncia - 0 que nos leva ao terceiro ponto levantado: 0 da racionalidade cientifica. A ciéncia possui uma ideologia propria e cabe-lhe impé-la a seus adeptos; mas nfo deve ter prerrogativas maiores que as concedidas a outras idcologias num Estado democritico, onde os cidadaos devem ter a oportunidade de poder escolher a forma de vida desejada. Em sua Roger, A.C.K.P. 244 cducagio, deveriam ser expostos a diferentes cosmovisdes, antes que fizessem sua escolha pela ciéncia, com suas exigéncias préprias: “Cabe ensina-la, mas t&o-somente aqueles que decidiram aderir a essa particular superstigio.” (Feyerabend: 1977, p.464)!7 Conforme sua andlise, a razdo do tratamento especial que a ciéneia reeebe se deve ao “conto de fadas” de que a cigneia no é mera idcologia, mas medida objetiva de todas as idcologias (Feyerabend: 1977, capXVII). A desmistificagiio desse conto revela o carater democratico da ciéncia na sua dindmica intema!8, ¢, apesar de scu ocultamento na sua apresentacaio ao piiblico maior, os cientistas alegam que s6 os fatos, a l6gica, a metodologia decidem. VIL Uma nova racionalidade? O desvelamento da ciéncia, expondo-a em scus mecanismos irracionais, a luz das regras do racionalismo, acaba sendo 0 meio pelo qual qualquer decisio pela ciéncia seja muito mais racional, calcada na visio esclarecida ¢ sopesada de razées, do que tem sido. E conclui Feyerabend seu Contra 0 método, dizendo: “a racionalidade de nossas crengas se verd consideravelmente acentuada.” (Feyerabend, 1977: p.466.) Essa “conclusio” leva-nos a indagar se, 4 base das reflexdes que animam a anéllise da ciéncia feita por Feyerabend, nao se encontra 0 questionamento das relagdes entre razdo ¢ anti- razdo, deixando aberta a porta para pensé-las em termos de uma nova racionalidade. Trazendo para scu anarquismo epistemolégico as palavras de Hans Richter sobre o dadaismo, cita Feyerabend: “A compreensao que razo ¢ anti-razo, sentido ¢ sem sentido, intengio ¢ acaso, consciéncia ¢ nao. humanitarismo c anti-humanitarismo] so, em conjunto, partes necessirias de um todo f.J.” (Feyerabend: 1977, p.294.) Que razdo seria essa, parceira de sentido, intengao, conscigneia, humanitarismo ¢ de ant associados? Nao deve ser aquela da tradi¢ao de uma “estéria tinica” - ¢, se o fosse, seria essencialmente modificada por suas novas relagdes, vale dizer, contextualizada. Onde esto as fronteiras entre “racional” ¢ “irracional”? A andilise de Feyerabend. incita-nos, de um lado, a repensar essa questo, nos termos de uma racionalidade que faga crescer nossa humanidade, nossas aptiddes ¢ conseiéncia [e, acrescentaria eu, ‘azo © scus 17 “A sociedade moderna ¢ ‘copernicana’, mas nao porque a doutrina de Copérnico haja sido posta em causa {...}: € ‘copemnicana’ porque os cientistas so copernicanos © porque Thes accita- mos cosmologia to acriticamente quanto, no passado, se accitou a cosmologia de bispos ¢ cardeais” (Feyerabend, 1977 : p.456.) 18 “No fundo, pouquissima diferenga ha entre © processo que leva ao aniincio de uma nova lei cientifica e processo de promulgago de uma nova lei juridica: informa-se todos os cidados ou os imediatamentc envolvidos, faz-sc a coleta de ‘fatos’ © preconceitos, discute-se 0 assunto ¢, finalmete, vota-se” (Feyerabend: 1977, p.457.) 45 (Cad.Cat.Ens.Fis,, v.13,n3: p.231-247, de7.1996, nossa conciéncia, vindo ao encontro daquela idéia motora da sua concepgio de conhecimento. De outro lado, contudo, a discuss%io desse ponto, na versio de sua obra que aqui nos serve de guia, fica circunscrita a uma visio tradicional de racionalidade, s esgueirando-se a possibilidade de uma nova racionalidade por entre insinuag imulagdes. Que a andlise de Feyerabend nos permita tal abertura parece vir ao encontro de sua visio permanentemente questionadora, “inconformada”, com relagio a scu proprio pensamento, dando a esse novas ¢ penetrantes versdes ao longo de sua trajetéria, De um modo geral, é dificil criticar a anilise empreendida por Feyerabend, devido, em grande parte, & auséncia de uma teoria da ciéncia que Ihe possa ser imputada, & luz da qual pudessem ser julgados scus alcances e limites, sua propriedade © suas inconsisténcias. Podemos criticar-Ihe 0 fato de nao oferecer essa teoria, cntendida como uma grande visio ou um grande esquema aplicavel a diversos contextos da ciéneia, uniformizando sua andlise? Mas a que titulo caberia tal cobran Os principios gerais que cncontramos em Feyerabend, como 0 tudo vale, suficientemente “vagos”, podendo comportar variadas determinagdes. E nao cabe cobrar-Ihe esta vagueza, pois no pretende construir uma critica com base num novo corpo de principios firmes ¢ imutiveis. Podemos cobrar-Ihe que se vale de uma determinada “visao” da histéria das ciéncias, talnada de modo a emprestar forga ao sew (de Feyerabend) argumento abstrato? ‘Teriam as coisas ¢fetivamente ocorrido de: modo? Essa pergunta, contudo, revela-se inapropriada ou inécua, a luz dos pressupostos de andlise tomados - pois basta, para Feyerabend, trazer elementos, na sua reconstituigdo histérica, que nfio se “enguadrem” nos esquemas analiticos que cle critica. Ao nao se “enquadrarem”, cairfio sob o abrigo de uma visio que acolhe fatores complexos ¢ diversos, como a sua. Todavia, teria a sua critica 0 mesmo efeito, caso tomasse como alvo nao a razio “monolitica”, estitica, a que se refere, em 1970, mas uma razdo contextualizada ~ possibilidade que se vé aberta pelo proprio fato da sua critica ¢ de que, em 1992, ele admite presente nas anilises mais recentes da ciéncia’? VIII. Referéncias Bil iograficas FEYERABEND, P. Contra 0 método. Rio de Janeiro: Livraria Frant ra, 1977, . Science in a Free Society. London: NLB, 1978. Consolando o especialista. In: Lakatos, 1 & Musgrave, A. A critica e 0 desenvolvimento do conhecimento, Sao Paulo: Editora Cultrix/Editora da Univer- lade de Sao Paulo, 1979. Philosophical Papers. v.2. London: Cambridge University Press, 1981 Roger, A.C.K.P. 246 Adiés a la razén. Madrid : Tecnos, 1987. Against Method. London / New York: Verso, 1993. . Farewell to Reason. London / New York: Verso, 1994. Killing Time: the Autobiography of Paul Feyerabend. Chicago / London: The University of Chicago Press, 1995. HALL, R. J. Se puede utilizar la historia de la ciencia para decidir entre metodologias rivales? In: Lakatos, I. Historia de las ciencias y sus reconstrucciones racionales. Madrid: Tecnos, 1987". KANT, L. Critica da Razdo Pura (1* cdigio). Sao Paulo: Abril Cultural, 1974. KUHN, T. A estrutura das revolucdes cientificas. Sa0 Paulo: Editora Perspectiva, 1975. Reflexdes sobre os meus criticos. In: Lakatos, I & Musgrave, A. A critica e 0 desenvolvimento do conhecimento. Sao Paulo: Editora Cultrix/Editora da Uni- versidade de Sao Paulo, 1979. Notas sobre Lakatos. In: Lakatos, I. Historia de las ciencias y sus recons- trucciones racionales. Madrid: Tecnos, 1987. LAKATOS, I. O falseamento ¢ a metodologia dos programas de pesquisa. In: Lakatos, 1. & Musgrave, A. A critica e 0 desenvolvimento do conhecimento. Sao Paulo : Edi- tora Cultrix / Editora da Universidade de Sao Paulo, 1979. . Historia de las ciencias y sus reconstrucciones racionales. Madrid : Tecnos, 1987a. . Respuestas a las criticas. 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