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7 Elogio aos Errantes: a arte de se perder na cidade! Paola Berenstein Jacques (Nao poder orientar-se em uma cidade ndo significa grande coisa. Mas se perder em uma cidade como quem se perde fem uma floresta requer toda uma educacéo. Walter Benjamin Errar enquanto experiéncia urbana Neste ensaio tentarei observar sobretudo 0 que esta a principio fora, ou & margem, do urbanismo enquanto campo disciplinar. Me interesso ao que escapa ao urbanismo e aos projetos urbanos em geral, 20 que est fora do controle urbanistico® e, em particular, as errdncias Urbanas, ou seja, um tipo especifico de apropriagdo do espaco piiblico, que nao foi pensado nem planejado pelos urbanistas ou outros especialistas do espago urbano. Se anteriormente® sugeri a possibilidade de um arquiteto urbano, que na verdade nao seria um tipo ou categoria de arquiteto especifico, mas sim uma postura com relacdo & arquitetura e, principalmente, com o “outro” na cidade ou com o que chamei de alteridade urbana, agora a minha preocupacdo principal estaria no que cchamei de estado de espirito errante, ou melhor, um “estado de corgo" errante, ou ainda, seguindo a maneira de pensar de Deleuze e Guattari, eum devir errante, que no caso mais extremo e especificn, seria o devir uz IL tl errante do préprio urbanista (ou de qualquer outro especialista urbano), aquele que também poderia, paradoxalmente, ser chamado de urbanista errante, © urbanista errante ~ que, como no caso do arquiteto urbano, seria sobretudo uma postura com relagéo ao urbanismo enquanto disciplina pratica ~ seria aquele que busca o estado de espirito errante, que experimenta a cidade através das errancias, que se preocupa mais com as praticas, ages e percursos, do que com as representacdes graficas, planificagées ou projecdes, ou seja, com os mapas e planos, com 0 culto do desenho e da imagem. O urbanista errante nao vé a cidade somente de cima, em uma representacao do tipo mapa, mas a experimenta de dentro, sem necessariamente produzir uma representagdo qualquer desta experiéncia. Esta postura com relagéo & apreensdo e compreensdo da Cidade por si s6 ja constitul uma critica com relagdo tanto aos métodos mais difundidos da disciplina urbanistica —como o “diagnéstico”, baseado principalmente em bases de dados estatisticos, objetivos e genéricos — quanto 2 propria espetacularizacao urbana contemporénea. Tanto os métodos de andlise contempordneos das disciplinas urbanas quanto 0 que poderia ser visto como um de seus resultados projetuais, a cidade-espetéculo’, se distanciam cada vez mais da experiéncia urbana, dda propria vivencia ou prética da cidade. Errar poderia ser um instrumento desta experiéncia urbana para o utbanista errante, uma ferramenta subjetiva e singular, ou seja, 0 contidrio de um método® ou de um diagnéstico tradicional e, assim, o devir errante do urbanista poderia ser visto como 0 contrario de urn modelo® urbanistico. A erréncia urbana seria uma apologia da experiéncia da cidade, que poderia ser praticada por qualquer um. A questo central do devir errante do urbanista também estaria na experiéncia ou pratica urbana ordindria, diretamente relacionada com a questdo do cotidiano. Michel de Certeau, em seu livro Linvention du quotidien, nos fala daqueles que experimentam a cidade, que a vivenciam de dentro, ou “embaixo”, como ele diz, se referinda ao contrdrio da visio aérea, do alto, dos urbanistas através dos mapas. Ele os chama de praticantes, ordinarios das cidades, e dedica um capitulo ao “Andar pela cidade”, 0 118 CORPOS € CENARIOS URBANOS que ele considera a forma mais elementar desta experiéncia urbana Varios autores tratam da questao do andar, em particular do andar na cidade, talvez Balzac com a sua Théorie de la démarche tenha sido um dos primeiros a tratar do tema, certamente a questao do andar significativa e esta relacionada com a erréncia, mas 0 errante urbano vai além da questo do andar para chegar na experiéncia do percurso, do percorrer, do deslocamento urbano, que pode também se dar por ‘outros meios. De Certeau nos mostra que hé um conhecimento espacial proprio desses praticantes, ou uma forma de apreensdo, que ele relaciona ‘com um saber subjetivo, iidico, amioroso. Eembaixo, a0 contréro, a partir dos limites onde termina a visibilidade, {que vivern us praticantes ordindrios da cidade, Forma element des experiéncia, eles s40 0s andarilhos, Wandersmanner, cujo corpo ‘obedece as plenitudes e discontinuidades de um texto urbano que eles escrevem sem poder ler. Esses praticantes brincam com os espacos que no séo vistos; eles tém um canhecimento tdo cego do espago {quanto no corpo a corpo amoroso. Os caminhos que aparecem nesses encontios, poesias tiradas de cada corpo é um elemento assinado entre varios outros, que escapam da lsibilidade. Tudo acontece como se uma cegueira caracterizasse as préticas organizadoras da cidade habitada. (td.a., grifo nosso) Esta cegueira de que fala De Certeau seria exatamente o que garante lum outro conhecimento do espago e da cidade. O estado de esprrito errante pode ser cego, ja que imagens € representacdes visuais ndo so rrais prioritérias para a experiéncia, Parao errante, sdo sobretudo as vivéncias @ ‘aces que contam, as apropriagies com seus desvios e atalhos, e estas do precisam necessariamente ser vistas, mas sim experimentadas, com todos os outros sentidos corporais. A cidade é lida pelo corpo e 0 corpo escreve 0 que poderiamos chamat de uma “corpografia"”. A corpografia seria a meméria urbana no corpo, © registro de sua experiéncia da cidade. ‘Aimagem espetacular, ou 0 cenério, s6 necessita do olhar. A cidade habitada precisa ser tateada, assim como esta possui sons, cheiros e gostos propos, que vao compor, com o olhar, a complexidade da experiéncia urbana: Essa experiéncia da cidade habitada, da propria vida urbana, revela ou denuncia 0 que o projeto urbano exclui, pois mostra tudo o que escapa a0 projeto, as micro préticas cotidianas do espago vivido, ou seja, as CORPOS E CENARIOS URBANOS 119 IL tl apropriagées diversas do espaco urbano que escapam das disciplinas Urtanisticas hegeménicas, mas que ndo esto, ou melhor, ndo deveriam estar, fora do seu campo de acéo. Os praticantes das cidades atualizam os projetos urbanos, €0 proprio Urtanismo, através da pratica dos espagos urbanos. Os urbanistas indicam sos possiveis para 0 espaco projetado, mas so aqueles que o experimentam no cotidiano que os atualizam. Sao as apropriagées e improvisagdes dos espagos que legitimam ou ndo aquilo que foi projetado, ‘ou seja, S40 essas experiéncias do espaco pelos habitantes, passantes ‘ouerrantes que reinventam esses espacos no seu cotidiano. De Certeau faz uma distingéo entre 0 lugar, a principio estavel e fixo, e 0 espaco, insidvel ¢ em movimento, Podemos consideré. los enquanto uma relagao e, assim, seria a inscrigao do corpo do praticante em movimento no lugar que o transformaria em espaco, ou como De Certeau mesmo escreveu: “o espaco € 0 lugar praticado. Assim, a rua geometricamente definida pelo urbanismo é transformada em espaco pelos andarilhos (praticantes).” A distingéo entre esses termos por varios autores (espaco, lugar ou ainda territério) nao é tao relevante aqui, j4 que o que interessa a prdpria agio, prdtica ou experiencia da cidade, ou seja, o que, mesmo de fora ou da margem, transforma, realiza ou atualiza, as intervengoes planejadas e os projetos urbanos. De Certeau cita ainda Merleau Ponty em Phenomenologie de fa perception: “existem tantos espages quanto experiéncias espaciais, distintas". De fato, a experiéncia urbana pode se dar de maneiras bem diferentes — 0 que podemos notar ao longo do histérico das errancias Urtanas ~_mas possivel se observar tiés caracteristicas, ou propriedades, mais recorrentes nas experiéncias ce errar pela cidade, e que estéo diretamente relacionadas: as propriedades de se perder, da lentido e da corporeidade. Talvez a caracteristica mais evidente da erncia seja a experiéncia de se perder, ou como téo bem disse Walter Benjamin, da “educacao" do se perder. Enquanto 0 urbanismo busca 4 orientagdo através de mapas e planos, a preocupacéo do errante estar'a mais na desorientagio, sobretudo ‘em deixar seus condicionamentos urbanos, uma vez que toda a educacao 120 CORPOS € CENARIOS URBANOS do urbanismo esté voltada para a questao do se orientar, ou seja, 0 contrério mesmo do “se perder"®. Em seguida, pode-se notar a lentido dos errantes, 0 tipo de movimento qualificado dos homens lentos, que nnegam, ou Ihes & negado, 0 ritmo veloz imposto pela contemporaneidade. E por fim, a propria corporeidade destes, e, sobretudo, a relacéo, ou contaminacao, entre seu préprio corpo fisico e 0 corpo da cidade que se dé através da acéo de errar pela cidade. A contaminacéo corporal leva a uma incorporagao, ou seja, uma acéo imanente ligada & materialidade fisica, corporal, que contrasta com uma pretensa busca contemporanea do virtual, imaterial, incorporal. Esta incorporacéo acontece na maior parte das vezes quando se est perdido € em movimento lento. As trés propricdades podem se dar em ordens ¢ intensidades variadas, mas ‘estas se relacionam mesmo que de formas variadas e, assim, caracterizam aerrancia, Franco La Cecla, em seu livro Perdersi trata da relacdo entre ¢ se perder e uma conseqliente reinvencdo das referéncias espaciais daquele que se perde, ou seja, ele adianta a hipdtese de que se perder levaria a um estado sensorial que possibilita uma outra percepodo do espaco. Porém, 0 autor parece mais interessado no pés-perder-se do que no proprio momento em que se esté perdido, uma vez que a sua questéo central esté na idéia de “mente local", que seria uma reorientacao no espaco que se segue ao estado de desorientacao. O errante vai além disso, pois este seria aquele que consegue se perder mesg na cidade que mais conhece, que erra 0 caminho voluntariamente, e através do erro (e da erréncia que este erro provoca) realiza uma apreensdo ou percepedo espacial diferenciada da sua prépria meméria local. Perder-se no lugar conhecido é uma experiéncia mais dificil, porém bem mais rica, do que a desorientagao no espago totalmente desconhecido. Neste livro ‘se perder’ significa a distragdo episédica ou cronica de ‘como somos atingidos nas relacoes com 0 ambiente que nos circunda. AAtese das paginas que se seguem & a de que: quanto menos intervimos no nosso entorno menos somos capazes de nos orientarmos neste Porque se orientar, no sentido mais amplo e arigindro, é um atividede de conhecimento dos lugares e das organizagdes destes em uma trema de referéncias visiveis eu ndo. [...] 0 proceso do se perder ac se CORPOS E CENARIOS URBANOS 121 orientar & a condicao de se ambientar que semeia histérias pessoais e coletivas, uma atividade que neste livro é chamada mente focal. Wradugdo Alessia de Biase) Neste proceso, que vai do se perder ao se (re)orientar, podemos identificar trés relagdes espago-temporais (temporalidades) distintas orientagéo, desorientacdo e reorientacdo. Estas idéias também estéo presentes no pensamento rizomdtico de Deleuze e Guattar, principalmente através das nogées de territorializacdo, destertitorializagao e reterritorializagao. © desterttorializar seria 0 momento de passagem do teritorializar ao reterritorializar. O interesse do errante estaria precisamente neste momento do desterritorializar, ou do se perder, este estado efémero de desorientagao espacial, quando todas 0s outros sentidos, além da visa, ‘se agucam possibilitando uma outra percepcao sensorial. A possibilidade do se perder ou de se desterritorializer esté implicita mesmo quando se esti (te) teritorializado, e é a busca desta possibilidade que caracteriza 0 errante, Podemos fazer uma aproximacéo entre 0 errante € 0 némade? caracterizado por Deleuze e Guattari: Se o némade pade ser chamado de 0 Desteritoralizado por exceléncia, 6 justamente porque a reteriterializagao nao se faz depois, como no Imigrante, nem em outra coisa, como no sedentério. Para o némade, a0 contrério, € a desteritorialzagéo que constitui sua relagéo com a terra, por isso ele se reterriorialza na propria desteritoralizacao. Enquanto os errantes buscam a desorientacao, a desteritoralizacéo, e se reteritorializam através da propria prética da erréncia, os urbanistas e as dlisciplinas urbanisticas em geral buscar, na maioria das vezes, a orientaco eatertitoriaizagdo, e assim, tentam anular a propria possibildade de se perder nas cidades'®. Gianni Vattimo escreve na introdugdo do livro de La Cecla “Assim, 6 sobretudo 0 contrario: 0 que se perde no espago homologado plaxejado da cidade industrial moderna é propria possibilidade de se perder, ‘ou seja, de se fazer essa experiéncia ce desorientacdo e de uma eventual reintegracdo que é parte constituinte da existéncia.” A propia propriedade de se perder seria uma das maiores caractersticas do estado de espirito errante, esta propriedade é diretamente associada a outra, também relativa a0 122 CORPOS € CENARIOS URBANOS movimento: a lentidSo. Quando estamos perdidos, quase automaticamente passamos para um movimento do tizo lento, uma busca de outras eferéncias ‘espaco-temporais, mesmo se estivemos em meios répidos. Para Deleuze e Guattari, a lentidao nao seria, como pode-se acreditar, um grau de aceleragao ou desaceleracao do movimento, do répido a0 devagar, mas sim um outro tipo de movimento: “Lento € rapido no so graus quantitatives do movimento, mas dois tipos de movimento qualificados, seja qual for a velocidade do primeira, ¢ 0 atraso do segundo", Os movimentos do errante urbano s4o do tipo lento, por mais rdpidos que sejam, nesse sentido a errdncia poderia se dar por meios répidos de circulagéo, mas esta continuaria sendo lenta. O estado de cspfrito crrante é lento, mas isso ndo quer dizer que scja algo ostalgico ou relativo a um pasado, quando a vida era menos acelerada, ‘como buscam os adeptos do neo-urbanismo. Porém, esta lentidéo também pode ser vista como uma critica ou dentincia da aceleragéo contempordnea, aquela buscada pelos urbanistas neo-modemos, vidos de meios de circulacdo cada vez mais velozes. Entretanto, a lentidao do errante ndo se refere a uma temporalidade absoluta e objetiva, mas sim relativa e subjetiva, ou seja, significa uma outra forma de apreensdo e ercepcao do espago urbano, que vai bem além da representagao meramente visual. S40 0s homens lentos, como dizia Milton Santos, {que podem melhor ver, aprender e perceber a cidade eo mundo, indo além de suas fabulagées puramente imageticas ‘Agora, estamos descobrinde que, nas cidades, o tempo que comanda, ou vai comandar, é o temgo dos homens lentos. Na grande cidade, hoje, 0 que se dé 6 tudo ao contririo. A forga dos “lentos” e nao dos {que detém a velocidade elcgiada por um Virlio em delirio, na estsira de um Valéry sonhador. Quem, na cidade tem mobilidade - e pode percorté-a e esquadrinhé-la ~ acaba por ver pouco, da cidade e do mundo. Sua comunhao com as imagens, frequentemente pré- fabricadas, € sua perdicao. Seu conforto, que nao desejam perder, vem, exatamente, do convivio com essas imagens. Os homens “lentas", para quem tais imagens so miragens, néo podem, por muito tempo, estar em fase com esse imegindrio perverso e acabam descobrindo as, fabulacées. CORPOS E CENARIOS URBANOS 123 IL tl Quando Milton Santos fala dos homens lentos, ele se refere principalmente aos mais pobres, aqueles que ndo tém acesso a velocidade, ‘os que ficam & margem da aceleraco co mundo contemporaneo. O errante urbano seria sobretudo um homem lento voluntério intencional, consciente de sua lentido, e que, assim, se nega a entrar no ritmo mais acelerado (movimento do tipo répido), de forma ctica, Um exemplo cléssico € figura do flneur do século XIX que passela sua tartaruga pelas passagens patisienses e assim critica a busca da velocidade dos modems, preocupados em nao “perder tempo". 0 fléneur era um homem lento voluntario, agia de forma critica, Sem duivida, como nos indica Santos, os mais pobres, mesmo cde maneira no voluntaria, experimeniam ou vivenciam mais a cidade do ‘que 03 cidad0s abastados, pois estes obrigatoriamente possuem 0 habito da pratica urbana no cotidiano, e assim desenvolvem uma relagéo fisica mais profunda e visceral com o espago urbano#®, Os sem-teto por exemplo podem ser vistos como homens lentos contempordneos, pois sé0 0s que ¢efetivamente praticam a cidade, uma vez que habitam literalmente 0 espaco pblico urbano, Porém, da mesma forma que a lentido é um outro tipo de movimento, o homem lento seria sobretudo uma postura, que ndo poderia serlimitada a uma questéo de classe, etnia ou sexo"? Oerrante, a0 contaio cdaquele que mora nas ruas por necessidade, erra por vontade propria, mas pode se deixar inspirar pelas formas ce apropriagéo do espaco dos mais pobres, na maneira como estes reinventam, por necessidade, formas pr6prias de vivenciar e experimentar a cidade. Essas outras formas de apropriagao do esfaco seriam fontes de inspiracéo para o urbanista errante. Este observa ‘coro 0s “outros”, que habitam de fato oespaco pilblico, se apropriam deste, mesmo que temporariamente, como os sem-teto camelés, ambulantes, entre varios outros. Pierre Sansot, no seu livro Du bon usage de fa lenteur, nos diz: ‘Mas talvez ele (0 urbanista) teria evitado varios enganos, se tivesse se dado 0 tempo para se abrir, leniamente, as exigéncias dos lugares que ele deveria trata, se ele tivesse aceltado ser modestamente um fléneur esclarecido de sua cidade. 124 CORPOS € CENARIOS URBANOS IL tl A lentidao, enquanto propriedade da errncia, da mesma forma que tem relacdo com a desorientacdo do se perder, esta diretamente Telacionada com a questéo do corpo, ou como dizia Santos, da corporeidade"* dos homens lentos. Esta corporeidade lenta seria uma determinagao, ou um “espirito de corpo", que também nasce da desterritorializagao ~ ou seja, também esté relacionada a uma temporalidade propria (como o se perder e a lentidao) -, e teria relagdo ‘com aquela que Deleuze e Guatarrirelacionam aos conjuntos de esséncias materiais vagas (vagabundas ou némades) que se distinguem das esséncias fixas, métricas e formais (sedentérias): “Dir-se-ia que as esséncias vagas extraem das coisas uma determinagao que é mais do que a coisidade, 6 2 da corporcidade, ¢ que talvez até implique am espirito de corpo.” ..1 “Desprendem uma corporeidade (materialidade) {que nao se confunde com a essencialidade formal inteligivel, nem com a coisidade sensivel, formada e percebida.” A cidade, através da erréncia, ganha também uma corporeidade prépria, ndo orgénica!®, — que se opbe A idéia da cidade-organismo, que esté na base da disciplina urbana eda propria nogdo de diagnéstico urbano — esta corporeidade urbana “outra” se relaciona, afetuosamente e intensivamente, com a corporeidade do errante e determina o que chamams de incorporagao. A incorporacao"®, diretamente relacionada com a questao da imanéncia, seria a propria ‘aco do corpo errante no espaco urbano, através da erréncia que, assim, oferece uma corporeidade “outta” & cidade. Como pode-se notar, as trés propriedades mais recorrentes das errancias - se perder, lentidéo, corporeidade — estdo intimamente relacionadas, e remetem a propria aco, ou seja, a pratica ou experiéncia do espago urbano. O errante urbano se relaciona com a cidade, a experimenta, @ este ato de se relacionar com a cidade implica nesta corporeidade prépria, advinda da telagdo entre seu préprio corpo fisicoe © corpo urbano que se dé no momento da desterritorializacdo lenta da errdncia. Como veremos, essas trés propriedades esto presentes, mesmo que de forma distinta, ao longo do pequeno hist6rico das errancias. Para resumit, pode-se dizer que o errante faz seu elogio & experiéncia “urbana” principalmente através da destertitorializagao do ato de se perder, da CORPOS E CENARIOS URBANOS 125 qualidade lenta de seu movimento e da determinacdo de sua corporeidade. As trés propriedades poderiam ser consideradas como resisténcias ou criticas a0 pensamento hegeménico contemporaneo do Urtanismo que ainda busca uma certa orientacao (principalmente através do excesso de informacéo), rapidez (ou aceleracéo) e, sobretudo, uma redugao da experiéncia e presenca fisica (através das novas tecnologias de comunicacao e transporte). ‘Apesar da intima relacdo entre essas propriedades da errancia, talvez seja a relacdo corporal com a cidade, na experiéncia da incorporacéo, que mostre de forma mais clara e critica, 0 cotidiano contemporaneo cada vez mais desencarnado e espetacular. Esse encontro de determinagées de corporcidades, do errante com a cidade — ou incorporagao (relagéo do corpo com a aga, experiéncia corporal “outra") — explicita a redugao da cota de experiéncia urbana direta na contemporaneidade, como, por exemplo, da experiéncia fisica de andar pela cidade, de que nos fala, por exemplo, Mario de Andrade no relato de suas andancas por Sao Salvador da Bahia no dia 7 de dezembro de 1928: Gosto de banzar ao até pelas ruas das cidades ignoradas ...] $. Salvador ime atordoa vivida assim a pé rum isolamento de inadaptacdo que dé vontade de chorar, é uma gostosura. [...] E nem ¢ tanto questéo de apreciar os detalhes churriguerescos dela, é 0 mesmo do saber fisico (que da a passeada a pé. [...] Pessear a pé em S. Salvador é fazer parte dum quitute magniticiente e ser devoraco por um gigantesco deus. Ogum, volipia quase sédica, at. Diante da atual espetacularizagéo das cidades que se tornam cada dia mais cenogréficas, a experiéncia corporal das cidades, ou seja, sua pratica ou experiéncia, poderia ser considerada como um antidoto a essa espetacularizagao. O que chamo de espetacularizacao das cidades contemporéneas!” — que também pode ser chamado de cidade- espetéculo (no sentido debordiano) - esté diretamente relacionado a uma diminuigéo da participagéo mas também da prépria experiéncia urtana enquanto pratica cotidiana, estética ou artistica, 125 CORPOS € CENARIOS URBANOS A reducao da aco urbana pelo espetéculo leva a uma perda da corporeidade, os espacos urbanos se tornam simples cenérios!®, sem corpo, espacos desencarados. Os espacos piiblicos contemporadneos, cada vez mais privatizados ou nao apropriados, nos levam a repensar as relagdes entre urbanismo e corpo, entre 0 corpo urbano @ 0 corpo do cidadao, 0 que abre possibilidades tanto para uma critica da atual espetacularizacdo urbana quanto para uma pesquisa de outros caminhos pelos urbanistas errantes, que pessariam a ser 0s maiores criticos do espeléculo urbano. Através desta voltipia quase sédica de que fala Mario de Andrade com relagio a Salvacor, o urbanista errante buscaria uma reinvengao corporal, carnal, sensorial das cidades. ‘Ao se observar mais de perto a histéria critica do urbanisme, a historia marginal, é poss(vel se perceber um outro caminho, que critica a espetacularizagéo desde seus primérdios!®. Nesta pista, as principais questées so as diferentes formas de aco, e participacdo, na cidade, mas também as relagdes corporzis, através das experiéncias efetivas dos espacos urbanos. As relacdes sensoriais com a cidade que passam pelas experiéncias corporais destes espacos, em suas diferentes temporalidades, seriam 0 oposto da imagem da cidade-logotipo. Os ccendrios ou espagos espetacularizados, desencarados, seriam propicios somente para 0s simples espectacores. Os praticantes da cidade, como 0s errantes, realmente experimentam os espagos quando os percorrem, ¢ assim Ihe dao corpo, e vida, pela simples agao de perconé-los. Una experiéncia corporal, sensorial, néo pode ser reduzida a um simples espetculo, a uma simples imagem ou logotipo. A cidade deixa de ser um simples cendrio no momento em que ela é vivida, experimentada, Ela, a partir do momento em que é praticada, ganha corpo, se torna “outro” corpo. Para o errante urbano, sua relacao com a cidade seria da ‘ordem da incorporacdo. Seria precisamente desta relacdo entre o corpo do cidadao e deste outro corpo urbano que poderia surgir uma outra forma de apreensdo da cidade, uma outra forma de agéo, através da experiéncia da errancia - desorientada, lenta e incorporada — a ser realizada pelo urbanista errante, que se inspiraria de outros errantes CORPOS E CENARIOS URBANOS 127 IL tl urtanos e, em particular, das experiéncias realizadas pelos escritores & artistas errantes. Pequeno histérico das errancias ‘Assim como de forma simultanea a histéria das cidades, podemos falar de uma histéria do nomadismo, ou melhor, como diriam Deleuze e Guattari, de uma nomadologia®, também podemos tragar, de forma quase simulténea a prépria hit6ria do urbanismo, um breve histérico das errancias urbanas, Esse hist6rico seria construido por seus atores, errantes madernos ‘ou némades urbanos, herdeiros tanto de Abel quanto de Caim. Os cerrantes urbanos ndo perambulam mais pelos campos como os némades, mas pela propria cidade grande, a metrOpole moderna, mas recusam 0 controle total dos planos modernos. Eles denunciam direta ou indiretamente os métodos de intervengo dos urbanistas, e defendem que as agdes na cidade ndo podem se tornar um monopélio de especialistas. Dentre os errantes e némades urbanos encontramos varios artistas, escritores ou pensadores que praticaram errancias urbanas, errancias voluntarias, intencionais. Aqueles que erraram sem objetivo preciso, mas ‘com a intengao de errar. Errar tanto no sentido do vagabundear quanto dda propria efetivagdo do erro (de caminho, de itinerério, de percurso). Auavés das obras ou escritos desses artistas, ¢ pussivel se aprender 0 espiago urbano de outra forma, partindo do prinefpio de que os errantes questionam a apropriacdo desses espacos de forma critica. O simples ato de errar pela cidade pode assim se tornar uma critica ao urbanismo enquanto disciplina pratica de intervencao nas cidades. Esta critica pode ser vista tantos nos textos quanto nas imagens produzidas por artistas errantes a partir de suas experiéncias de andar”! pela cidade. ‘Ao ler Baudelaire, por exemplo, podemos ver uma reacdo critica & reforma urbana do Bardo Haussmann, que estava transformando completamente a velha cidade de Patis naquele exato momento”®, Para fotogratar essas transformagbes urbanas radicais, da cidade antiga sendo destruida para dar lugar a nova, Haussmann contratou um fotograto, 128 CORPOS € CENARIOS URBANOS Charles Marville, que retratou 0 desaparecimento de uma certa Paris por ‘onde perambulava Baudelaire. No Rio de Janeiro se passou algo bem parecido, j4 no inicio do século XX, Joao do Rio, cronista e errante urbano, descreve nos jomais suas errdncias pela antiga cidade que também estava sendo destruida pelo nosso Haussmann tropical®, Pereira Passos, que ‘como Haussmann, também contratou um fotdgrafo oficial para retratar a transformagdo em curso na cidade, Marc Ferrez. Um texto muito conhecido de Joao do Rio, por exemplo, chamado A Rua, foi publicado na mesma época na Gazeta de Noticias, mais precisamente em 1905. Esse texto de Jodo do Rio (1881-1921, seudénimo de Paulo Barreto) faz uma apologia da rua, do andar pelas ras: Eu amo a rua (...] Para compreender a psicologia da rua no basta ar-lhes as delicias como se goza o calor do sol e 0 liismo do luar preciso ter espirito vagatundo, cheio de curiosidades malsas € os rnervos com um perpétuo desejo incompreensivel, é preciso ser aquele {que chamamos fléneur e praticar 0 mais interessante dos esportes — a arte de flanar. A titulo de comparagéo, entre os principais objetivos do plano de melhoramentos de Pereira Passos, citados por Alfredo Rangel em 1904, era: “Dar mais franqueza ao tréfego crescente das ruas da cidade, iniciar a substituicdo das nossas mais igndbels vielas por ruas largas arborizadas” O urbanism enquario campo disciplinar e prdtica profissional surgi exatamente com 0 intuito de transformar as antigas cidades em metrépoles modernas, o que significava também transformar as antigas ruas de pedestres em grandes vias de circulagao para automéveis, reduzindo as possibilidades da experiéncia fisica deta, através do andar, das cidades. Podemos, a grosso mado, classificar o urbanismo moderro”* em trés momentos distintos (mas que se sobrepdem): a modemizagao das cidades, de meados ¢ final do século XIX até inicio do século XX; as vanguardas modernas e 0 movimento moderno (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, CIAMs), dos anos 1910-20 até 1959 (fim dos CIAMs); e 0 que chamo de modernismo (ou modemo tardio), do pos-guerra até os anos 1970. CORPOS E CENARIOS URBANOS 129 IL tl © pequeno histérico das erréncias urbanas também poderia ser dividido em trés momentos, de forma quase simulténea a esses trés momentos da historia do urbanismo modero, que corresponderiam as diferentes criticas aos trés momentos do urbanismo: 0 perfodo das fanéries ou flanancias, de meados e final do século XIX até inicio do século XX, que criticava exatamente a primeira modernizagao das cidades; ‘das deambulagées, dos anos 1910-30, que fez parte das vanguardas modemas, mas também criticou algumas de suas idéias urbanisticas do inicio dos CIAMS; e 0 das derivas, dos anos 1950-60, que criticou tanto 08 pressupostos basicos dos CIAMs quanto a sua vulgarizagao no pés- guerra, 0 modernismo. © primciro momento, fléneries ou flandncias, corresponderia principalmente a criagéo da figura do Fidneur em Baudelaire, no Spleen de Paris ou no Les fleurs du mal, que foi tao bem analisada por Walter Benjamin nos anos 1930. Benjamin também praticou a flanerie (prncipalmente de Paris e de suas passagens cobertas”), ou seja, as flandncias urbanas, a investigacao do espaco urbano pelo Flaneur. segundo momento, deambulagées, corresponderia as aces dos dadalstas e surrealistas, as excursdes urbanas por lugares banais, as deambulagdes aleatérias organizadas por Aragon, Breton, Picabia e Tzara, entre outros, que desenvolvem a idéia de Hasard Object, ou seja, da experincia fisica da errdncia no espaco urbano real que foi a base dos, anifestos surtealistas, do Nauja de Breton ou ainda do préprio Paysant de Paris de Aragon. J4 0 terceiro e ultimo momento, derivas, corresponderia ao pensamento urbano dos situacionistas, uma critica radical a0 urbanismo, que também desenvolveu a nogdo de deriva urtana, da errdncia voluntéria pelas ruas, principalmente nos textos e cies de Debord, Vaneiguem, Jorn ou Constant. Tanto Baudelaire quanto 08 dadaistas e surrealistas, ou ainda os situacionistas, estavam praticando errncias urbanas ¢ relatando essas experiéncias através de escritos ‘ou imagens explicitas ou implicitamente criticas - em uma mesma cidade, Paris, mas em trés momentos bem distintos. Paris se tornou assim, uma cidade paradigmatica para os errantes urbanos, as 130 CORPOS € CENARIOS URBANOS IL tl experiéncias parisienses serviram como uma referéncia para outras experiéncias urbanas. Essas idéias de erréncias uroanas se desenvolveram também no meio artistico apés os situacionistas. © grupo neo-dadaista Fluxus (Maciunas, Patterson, Filliou, Ono etc), por exemplo, também propés experiéncias semelhantes, foi a época dos “happenings” no espaco piblico, no caso do Fluxus, dos Free Flux-Tours, errancias por Nova lorque, neste momento, anos 1960-70, outros artistas trabalharam sobre 0 tema, como Stanley Brouwn, Vito Acconci, Daniel Buren ou ainda Robert ‘Smithson, Dentro do contexto da arte contemporanea, principalmente nos anos 1990, varios artistas trabalham no espaco puiblico com algm tipo de questionamento teérico, como o grupo neo situacionista italiano Stalker, por exemplo. Alguns artistas propuseram errancias também, mas em sua maioria essas acdes contemporéneas séo cada vez menos criticas e cada vez mais espetaculares®*, O denominador comum entre esses artistas, e suas agées urbanas, seria 0 fato de que eles véer. a cidade como campo de investigacées artisticas aberto a outras possibilidades sensitivas, e assim, possibilitam outras maneiras de se analisar e estudar 0 espaco urbanoatravés de suas obras ou experiéncias. No Brasil, tanto os artistas modernistas quanto os tropicalistas também erraram pela cidade de forma critica, em “performances” como as Experiéncias de Flavio de Carvalho, préximo aos surrealistas parisienses dos atts 1930, ou o Delirium Anbulatoriuss de Helio Oiticica, feito? do mentor dos situacionistas dos anos 1960, Guy Debord. Da mesma forma que nas flanancias de Jodo do Rio, com os textos de Baudelaire, Flavio de Carvalho (1899-1973), que conheceu os surrealistas parisienses em seus anos de estudo na Europa, ajudou na circulagéo dessas idéias no Brasil, principalmente através de suas deambulagies urbanas. O engenheiro civil, arquiteto, escultor e decorador Flavio de Carvalho, como ele se denominava, ficou mais conhecido por suas pinturas e obras arquiteténicas, do que por suas errancias urbanas, que ele denominou de Experiéncias. A Experiéncia n° 2, realizeda em 1931 e publicada em livro homonimo (com 0 subtitulo, ume possivel teoria e uma experiéncia), CORPOS E CENARIOS URBANOS 131 consistiu na pratica de uma deambulacao, no sentido contrério de uma procissdo de Corpus Christ pelas ruas de So Paulo, como ele conta em ‘seu livro: “Tomei logo a resolugéo de passar em revista 0 cortejo, conservando o meu chapéu na cabeca e andando em diregao oposta a que ele seguia para melhor observar 0 efeito do meu ato impio na fisionomia dos crentes.” Depois de algum tempo, a multiddo se voltou contra ele, que teve que fugit. Quando a policia o prendeu, ele disse que estava realizando uma “experiéncia sobre a psicologia das multidées” Nos jornais do dia seguinte, as manchetes destacavam: “Na procisséo uma experiéncia sobre a psicologia das multidées resultou em sério disttrbio" (0 Estado de S40 Paulo, 9 de junho de 1931). ‘Antes mesmo desta experiéncia, Fldvio de Carvalho publicou um texo interessante no jornal Didrio de So Paulo intitulado: “Uma tese cutiosa — A cidade do homem nu”. Ja na Experiéncia n° 3, que s6 foi realizada publicamente em 1956, ele sai andando pelas ruas de So Paulo vestido com o traje de veréo do “novo homem dos trépicos” (ou new look), desenhado por ele. A deambulagdo foi conturbada e polémica, mas segundo os jomalistas da época: "Séo Paulo nunca viu nada igual” (Manchete, 1956). Flavio de Carvalho escreveu uma série textos sobre a cidade e as questées urbanas em 1955 no Didrio de So Paulo, que tralavam sobretudo da questao do transporte e do transito urbano, € a partir de 1956 ele escreveu outra série de textos no mesmo jomal sobre “A moda e 0 nove homen onde expla Entende-se por moda as costumes, os habits, os trajes, a forma do rmobilidrio e da casa (...] Contudo, & a moda do traje que mais forte influncia tem sobre o homem, porque ¢ aquilo que esta mais perto do seu corpo ¢ 0 seu corpo continua sempre sendo a parte do mundo que mais interessa ao homem. ‘Assim como Flavio de Carvalho pode ser considerado um pioneiro da chamada “arte de aco" ou performance no Brasil — em particular desta relagdo entre a arte e a vida cotidiana que passa também tanto por questées corporais quanto por questées urbanas, chegando numa relacdo entre a experiéncia sensorial do corpo e a propria experiéncia 132 CORPOS € CENARIOS URBANOS IL fisica da cidade ~ Hélio Oiticica (1937-1980) pode ser considerado um dos mais inquietos seguidores desta linhagem tedrica no pals (junto ‘com Lygia Clark e Ligia Pape). A partir de 1964, ano da morte de seu pai e da “descoberta” da favela da Mangueira no Rio de Janeiro, Oiticica passa a desenvolver os Parangolés ~ capas, tendas e estandartes, sobretudo capas ~ que vo incorporarliteralmente as tés influéncias da favela que Oiticica acabava de descobrir: a influéncia da idéia do corgo do samba, uma vez que os Parangolés eram pata ser vestidos, usados e, de preferéncia, 0 participante devia dangar com eles; a influéncia da idéia de coletividade anénima, incorporada na comunidade da Mangueira: ‘com os Parangolés, os espectadores passavam a ser participantes da obra, © idéia de participagao do cspectador (a mesma idéia desenvolvida pelos situacionistas como antidoto ao espetaculo) encontrou af toda sua forca; ea influéncia da arquitetura das favelas, que pode ser resumida nna propria idéia de abrigar, uma vez que os Parangolés abrigam efetivamente e, ao mesmo tempo, de forma minima (como os barracos das favelas), os que com eles estio vestidos. Da mesma forma que as Experiéncias de Carvalho, os Parangolés de Oiticica causaram bastante polemica. Os Parangolés, foram mostrados 420 ptiblico pela primeira vez em 1965, na exposigdo coletiva Opinio 65 no MAM do Rio. Na abertura da exposicao, Oiticica chegou vestido com tum desses Parangolés, acompanhado por um cortejo de amigos da escola de samba da Mangueira, também vestidus com Paranigus, tocando percussdo, cantando e sembando. Mas Oiticica e os passistas, da Mangueira foram efetivamente impedidos de entrar no Museu de ‘Arte Moderna, e os jornais da épeca registraram que a festa teve lugar no lado de fora do museu, no espaco piiblico. Toda a obra de Oiticica, que cada vez mais se confundiu com sua prépria vida, buscou novas experiéncias fisicas, sensorials, corporais, mas também urbanas: Parangolés, Penetraveis, Tropicdlia, Eden, Barracio, entre varias outras””. A partir de sua estadia em Nova lorque, Oiticica se aproximou ainda mats do pensamento situacionista, ele passou a citar Guy Debord em varios de seus escritos e chegou a propor um Penetrével (P12) com textos escritos e declamados retirados do classico de Leberd, CORPOS E CENARIOS URBANOS 133 A sociedade do espetéculo (1967), Ao voltar ao Brasil, em 1978, participou do evento Mitos Vadios, realizado pelas ruas de Sao Paulo, onde apresentou o Defirium Ambulatcrium, uma de suas tiltimas derivas urtanas. No texto EU em MITOS VADIOS (de outubro de 1978) ele descreve essa experiéncia urbana e diz que a proposta era exatamente: “0 poetizar do urbano” 0 poetizar do urbana > AS RUAS E AS BOBAGENS DO NOssO DAYDREAM DIARIO SE ENRIQUECEM > VE-SEQ ELAS NAO SAO BOBAGENS NEM TROUVAILLES SEM CONSEQUENCIA > SAO 0 PE CALCADO PRONTO PARA O DELIRIUM AMBULATORIUM RENOVADO ACADA DIA. ‘As experiéncias de investigagao do espaco urbano pelos artistas errantes apontam para a possibilidads de um “urbanismo poético", que se insinua através da possibilidade de uma outra forma de apreenséo urtana, 0 que levaria a uma reinvencio poética, sensorial, das cidades, Talvez a maior critica dos artistas errartes aos urbanistas modernos tenha sido exatamente 0 que Citicica resumiu de forma tao clara no que ele ‘chamou de “poetizar do urbano”. Os urbanistas teriam esquecido, diante de tantas preocupagées funcionais e formais, deste enorme potencial poetico do urbano e, principalmente, da relagao inevitével entre o corpo fisico e 0 corpo da cidade que se d4 através da errancia, através da prépria experiéncia — do se perder, da lentido, da corporeidade - do esfaco urbano, algo simples, porém imprescindivel, para possibilitar uma outra forma de percepgao ou apreensio da cidade. No urbanismo contemporaneo, a disténcia, ou descolamento, entre sujeito e objeto, entre pratica profissional e vivéncia-experiéncia da cidade, se mostra desastrosa ao esquecer 0 que 0 espago urbano possui de mais poéi que seria precisamente seu cardter humano, sensorial e corpéreo. © sujeito urbanista, a0 se esquecer de se relacionar fisicamente, afetuosamente, com a cidade em si, 0 seu objeto, se distancia desta e por fim projeta espacos espetacularizados ou desencarnados. A abordagem da cidade pelos urbanistas errantes poderia tentar seguir os 134 CORPOS € CENARIOS URBANOS passos dos artistas errantes @, essim, ser mais postica, afetuosa e, sobretudo, encamada. Notas 0 presente texto & um resumo intodutério do livto de mesmo nome, em desenvolvimento, que seré publicado pela editora Casa da Palavra (Rio de Janeiro). Gostatia de agradecer a letura culdadosa e detalhada, recheada de Cticas construtivas, de Ana Clara Torres Ribeiro e Margareth da Silva Pereira, 0 longo da redacao deste ensaio durante o meu estagio péis-dououral na Franca, e, também, os comentarios e ressalvas pertinentes da letura recente de Ana Fernandes e Pasqualino Magnavita 2 O que poderia até mesmo ser considerado um nao-urbanismo ou um anti- turbanismo, uma resisténcia ao urbanismo, principalmente aquele de estado u corporativo, autortério e dominanie (ainda hegeménico hoje), ou como me disse Ana Clara Torres Ribeiro, também poderia ser visto como um “dieito bsico” de qualquer cidaddo 20 nao urbanismo e ao nao planejamento. Essa questéo, extremamente polémica, mereceria ser debatida de forma mais aprofundada, como bem me alertou Ana Fernandes. Cf, Paola Berenstein Jacques, Estetica da Ginga, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001 “ Espetdculo no sentido dado por Guy Debord em A sociedad do Espetaculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997 (versdo original francesa de 1967). Ver também IS (Paola Berenstein Jacques, org.) Aoologia da Deriva, Rio de Janeiro. Casa da Palavra, 2003. > Segundo Deleuze e Guatarri: “ Um método’ & 0 espaco estriado da cogitatio Universalis, e traga umn caminho que deve ser seguida de um ponto a outro, Mas a forma de exterioridade situa 9 pensamento num espaco liso que ele deve ocupar sem poder medi-lo, € para 0 qual ndo hé método possivel, reprodugao concebivel, mas somente revezamentos, intermezzi, relances." In: Mit platés, S20 Paulo, editora 34, vol. 5, p. 47. ® Deleuze e Guattar citam Platdo para explicar a impossibilidade do devir se tornar modelo: "No Timeu (28,29), Platao entrevé por um curto instante que (0 Devir no seria apenas 0 caréter inevtével das cOpias e reproducdes, mas tum modelo que rivalizaria com o Idéntico e com 0 Uniforme. Se ele evaca essa hip6tese, € apenas para exclu-la; e é verdade que se o devir 6 um modelo, no somente 2 dualidade do modelo e da cépia, do modelo ¢ da reproducéo deve desaparecer, mas até mesmo as nogdes de modelo e de reprodugao tendem a perder qualquer sentido.” Idem, p. 36. CORPOS E CENARIOS URBANOS 135 7 Termo que fol proposto por Alain Guez durante 0 seminério de preparacdo 20 coloquio “L “habitar dans sa poétique premiare". (EHESS - Paris, 2005/Cerisy- la-Salle, 2006) © En Estética da Ginga eu jé havia tratado implicitamente dessa questo, sobretudo no capitulo sobre o labirinto, uma vez que: A sensacdo de se perder esté implicita na experiencia labrintica”. © Seria interessante, como comentou Ana Fernandes, analisar como toda essa questo do nomadismo vem sendo “capturada” pelo pensamento urbanistico cortemporéneo, sobretudo pelos neo-mademnistas (Koolhaas & cia) ou por ‘vez2s pelos neo-situacionistas (como 0 gupo Stalker em algumas experiéncias ma's espetaculares), mas de forma completamente distinta do que estou tenrando mostrar, sobretudo no pequens histérico das errncias urbanas, que alé 0s anos 1960, estiveram a margem do sistema hegeménico da arte, arquitetura e, sobretudo, do urbanismo. A referéncia teérica mais importante sobre o tema (apesar de no relacionada ao urbanismo propriamente dito, mas que expliita uma contraposicao: “Nomos contra Hols") esta no capitulo “Tratado de Nomadologia: a maquina de guerra.” In: Mil Platés, op. cit. Mais, do que 0 nomadismo propriamente dito, o interessante seria discutir a questéo do pensamento ndmade em relagao ao pensamento sedentério ainda hhegeménico e consensual hoje (principalmente na academia). 0 que, felizmente, nunca é completamente obtido (a anulago dessa possibilidade do se perder). Entretanio, o extremo do se perder estaria diretamente associado a questdes puramente psicolégicas, e até mesmo, a tipes especificos de loucura ou mania (dromomania) Movimento e velocidade também precisariam ser diferenciados: * movimento pode ser muito rapido, nem por isso é velocidade; a velocidade pce ser muito lenta, ou mesmo imével, ela &, contudo, velocidade”, Deleuze © Guatari, op.cit, p.52. ® Ver essa questo de forma mais espectica no livro coletivo: Maré, vida na favela, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. °S & figura tradicional do fléneur & masculina, as mulheres que habitam as ruas, “mulheres de rua’, sempre foram mal vistas, um trabalho sobre este tera especifico merece ser feito. Régine Robin esté trabalhando neste sentido, la nos fala da “fldneuse” “* Varios autores, para se opor questao do “corpo”, principalmente no campo das artes, vo propor a idéia de “corporeidade", &s vezes mesmo como um “anticorpo", como Michel Bernard, que define a corporeidade como “espectro sensorial e energético de intensidades neterogéneas e aleatérias" in: De la corporéité fictionnaire, Revue Internationale de Philosophie n4/2002 (Le corps). 'S Sobre essa idéia, ver a nogao de "Corpo sem Orgaos” (CsO) que Gilles Deleuze define a patti do termo de Artaud: * O corpo sem érgaos é um corpo afetivo, Intenso, andrquico, que s6 tém pélos, zonas, limites ou variagdes. E uma potente vitalidade ndo orgénica que o atravessa.” Critique et Clinique, Fars, Minuit, 1993, p.164. 136 CORPOS € CENARIOS URBANOS 2 Termo utlizado pelo artista Hélio Oiticica, ver Estética da Ginga, op.cit, ou © artigo * Por uma inCORPOrAGAO” in: ERR, Belo Horizonte, novemibro de 2003. »” Ver “Espetacularizagao Urbana Contemporanea” in: Cadernos PPG-AU/ FAUFBA, nimero especial Terrtérios Urbanos e Politicas Culturais, PPG-AU/ UFBA, Salvador, 2004 2 No sentido de uma “disneyficacdo” urbana que leva a uma “shoppinizacio" dos espacos piiblicas, uma inverséo de modelos, se 0s parques teméticcs & shoppings imitavam as cidades tradicionais inicialmente, hoje o que se passa € 0 inverso, varios projetos urbanos passaram, principalmente de espacos pblicos ou éreas histricas patrimonlizadas, a imitar os espacos globalizados, securitérios @ homogénios dos parques tematicos e shopping centers (a paginagdo de piso das pracas piltlicas “revitalizadas’ de varias cidades brasleiras explcitam esta relagdo mmética as avessas) » A espetacularizacdo das cidades parece ter surgido com o préprio urbsanismo, fenquanto disciplina, com as primeiras modernizacoes ou embelezamentos das cidades, desde 0 inicio da disciolina urbana as cidades jé estavam em competicdo. A cidade, para o mercado intemacional, sobretudo do turismo — (9s tours turisticos sao 0 contrario das erréncias, 0 tursta é 0 anti-errante por exceléncia -, se tornou uma imagem fixa espetacular, sem corpo, um logotpo. °° A erréncia urbana nao esta necessariamente ligada ao andar a pé. Como ja {oi dito, podemos falar de um espirite errante que pode se estabelecer a partir de outras relacdes entre 0 corpo do errante e a experiéncia do espaco urbano. Nossa questo principal & essa experiéncia urbana, ras, como dizia Michel de Certeau, a forma mais elementar dessa experiéncia urbana seria o simples andar a pé pela cidade. As ditas “errncias virtuais" através do ciberespeco, hoje na ordem do dia ¢ pauta de todas as discusses que se pretencem atuals, no entram em nosso trabalho pelo simples fato de que estas ainda nao podem ser consideradas urbanas, pois ainda néo promovem, de fato, outro" tipo de experiéncia fisica do espaco urbano (no melhor dos casos {uestionam a prépria nogao de ciberespaco). Entretanto, minha ertica nao se direciona propriamente a0 uso de meios digitais e eletrénicos no urbanism, mas sim, de uma forma indreta, a0 uso espetacular e ndo partcipativo desses, eprincipaimente, ao esquecimento do corpo — do corpo material, fisico, tanto, 40 urbanista, do cidado, quanto da propria cidade em si — que a fascinaséo pelos meios digits ou virtuais poce provovar. A questdo esté na postura fencammada com relagdo a cidade, que também poderia ser obtida com 0 uso das novas tecnologia. ® “Escreve-se a histiria, mas ela foi escrita do ponto de vista dos sedentérios, em nome do aparelho unitério do Estado, pelo menos possivel, inclusive {quando se falava sobre ndmades. O cue falta é uma Nomadologia, o contra. de uma histéra (...) Nunca a histéiia compreendeu o nomadismo (...* in Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mille Plateaux, Paris, ed. Minuit, 1930. Pasqualino Magnavita tentou desenvolver um’ pouco mais esta questéo CORPOS E CENARIOS URBANOS 137 specifica em: "Nomadologla ¢ a Histiia da Cidade e do Urbanismo no Persamento Pés-estruturalista", IX SHCU, $0 Paulo, 2006, comunicacao a ser publicada nos Anais do evento. 2 As obras de Haussmann vao de 1853 a 1870, enquanto o livo Le Spleen de Paris de Baudelaire, por exemplo, é de 1855. © Cr, Jaime Larry Benchimol, Pereira Passos: um Haussmann tropical, Rio de Janeiro, Biblioteca Carioca, 1990. Perera Passos realizou um “bota-abaixo no centro do Rio de Janeiro entre 1902 e 1904. Sobre a idéia de Haussmanizacao tanto no Rio com Pereira Passos, quanto em Salvador em seguida com J.J. Seabra (1912-1916), ver Eloisa Petti Pinheiro, Europa, Franca e Bahia, dfuséo e adaptacao de modelos urbanos, Salvador, Edufba, 2002. 0 termo “urbanismo moderno” me perece um pleonasmo, uma vez que 0 pr6prio termo urbanismo, ¢ a discipiina que Ihe corresponde, surgem ‘exalamente neste momento de modernizacdo das cidades ( termo usado pela primeira vez por Cerda em 1867 — responsével pelo plano de modemizagao de Barcelona em 1959 ~ na obra Teoria general de Urbanizacion).Chego a me perguntar: seré que, mesmo apés 0 final do movimento moderno em arquitetura e urbanismo, {8 exstu algum tipo de urbanism nao-moderno ou “pés-moderno"? A propria nogao de plano, de planificagdo ou de planejamento (bases da prética do urbanismo em geral), e até mesmo de projeto, sao extiemamente modemas. Mas a forma de classiicar 0 urbanismo ndo é corsensual, muito pelo contrério, e muda segundo o historiador, ou seja, aqvele que constiéia(s)histria(s)._ Cor intuito de mostrar essas diferentes Corstrugées historicas, sobretudo, o debate e a circulacao de idéias do persamento urbanistico estamos realizendo uma “cronologia interativa” que pocerd ser consultada em: hitp/Awew.cronologiadourbanismo.ufba.br. Ver Walter Benjamin, Pari, capital du XiKéme siécl, le livre des passages, Pars, Cerf, 1989. As passagens, ruas cobertas, so exaltadas por Benjamin, pois representavam um espago intermediério entre interior e exterior, entre privado e pablico, entre arquitetura e pelsagem: “a flanérie pode transformar toda Paris num interior, numa moradia cujos aposentos s80 0s quartirGes, por outro lado, também, a cidade pode abrir-se diante do transeunte como tuma paisagem sem soleiras.” Os arquitetos modernos.estavam propondo éliminar essa iferenca entre o exteror-intrior, Benjamin chega a citar Giedion (texto de 1928) falando de Corbusier: “Os prédios de Corbusier ndo so nem espagosos nem plasticos: 0 ar sopra através deles! (...) Existe apenas um Linico e indivisivel espago. Caem as cascas entre interior e o exterior. *.C andar, enquanto prticaartistica ou estética, parece cada vez mais distante da critica que caracterizou esta pratica ao longo do histérico destas acbes art'sticas. E evidente que os artistas néo pararam de andar na Contemporaneidade, mas essas andancas perderam sua forga crtica e, em algans casos, se tomaram espetaculares e, na maioria dos casos, se institucionalizaram. E por esse motive que nosso pequeno histérico das 138 CORPOS € CENARIOS URBANOS erréncias para nos anos 1970. Denois disso a erréncia urbana, entencida enquanto pratica artstica, estética, infelizmente perdeu seu poder de critea, 20 ser “capturada’,principalmente pelo mercado da arte ou 0s novos circuitos culturals oficiais. Os errantes involuntarios, “outros” homens lentos, por necessidade, continuam e até mesmo podem ser considerados um tipo de “resistencia” urbana, principalmente os sem teto das grandes cidades lobalizadas, que contrastam com cs turistas (que seriam 0 oposto mesmo dos errantes). 2 Sobre esse aspecto na obra de Olticca, em particular com relacdo as faves, ver Paola Berestein Jacques, Estética da Ginga, a arquitetura das favelas, através da obra de HélioOiticica, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001 ® Tudo indica que Hélio Oiticca s6 leu Guy Debord nos final dos anos 1970, ‘em Nova lorque, ao lero cléssico de Debord, A sociedade do espetaculo, de 1967, ele descobre que ja estava realizando acoes ber préximas das idéias situacionistas desde os anos 1960 finicio com os Parangolés) CORPOS E CENARIOS URBANOS 139

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