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46% edigdo Odette de Barros Mott ay stino, ai 0 retirante Tlustragées: Marcelo Campos € Lucas Tozzi Conforme a nova ortografia Série Entre Linhas n de Nido & Trois Design 13 Almeida eo Impresso © acabamiento + Grsfcs Paym Sl aoe ee oe Sunfemento de Ietua Prjeta de abatho Interdicipina «abel Chstna M. Cobra Dados Intemacionats de Catalogago na Publicagdo (CIP) Mott, Odette de Barros Justino, o retirante / Odette de Barros Mott; ragbes Marcelo Campos. ~ 46, etl, ~ So Paulo : Atual, 2009. — (nite Linhas: Sociedade] Inclutroteira de leis ISBN 978-85-357-1155-4 2. Literatura infantojuvenilL Campos, Marcelo. 1, Tuto, IN, Série, cop-0285 indices para catdlogo sist J. Literatura "© Odeite de Bares Mott, 2002 SARAIVA Educagio S.A, \Wenida das Nogdes Unidas, 7221 SEP 0545-902 ~ Sao Paulo - $2 come mnento@atiastpione.com br 3003-3061 2810348 NE: 605620 no consegue dormir, vira-se na rede de um lado para o ou- 0, coga 0 dedo onde penetrara um bicho, ouve o galo cantar, logo depois, o pio agourento da coruja, Mais 20 longe, outro galo cantou, Era 0 da casa-grande, Benzeu-se no escuro, enrodilhou-se mais € fingiu dormir. Apertou os olhios, esfregou outra vez 0 pé de encontro a palha aspera da rede. ‘Madrugada, manhazinha recém-chegada, acordou. Jé a passarada cantava no arvoredo. O papagaio falava no poleiro pedindo café. Entdo Justina teve nogao de que esse dia era diferente dos outros, sentou-se na rede e agucou 0s ouvidos tentando captar todos os ruidos que vinham de fora, Depois, levantou-se. Ja estava quase vestido, sungou as calgas na cintura, esfregou pela tiltima vez o pé na rede, pensou que precisava tirar aquele bicho, antes que aumentasse, que se tornasse batata, pois, af sim € que iria incomodar € doer. No comeco, bem que a coceitinha era gostosal 0 papagaio gritava barull i café... Mae, dé cafél... nto, pedindo café ¢ chamando: “Mae, a menino vai até o fogtio, atiga, assopra as brasas, poe uns gra- vetos em cruz, procura no oco da parede de barro, bem socada, uns palitos de fésforos ¢ com eles acende 0 fogo. As palhas crepitam, 0 sabugo seco, esturricando, pega fogo e loga a gua, que mal cobre 0 funcio da panela de barro, chia e pée-se a ferver. Justino coa o café, enquanto ouve o ganir triste do seu Pité, que arranhe a porta do casebre. Abre-a para que o cachorrinho sarnento possa entrar e © animal vai lamber-Ihe as pernas, alegremente. — Passa, Pit6, pas Procura na tabua, que em cima do fogao serve de prateleira, um pedaco de rapadura. Come e da um tico para o animal, que o engole, faminto. Agora, nada mais Ihe resta a fazer que por-se a caminho. Sua trouxa jé esté preparada, desde a véspera. Escolhera a toalha bran- ca, de que a mae tinha citimes, Ela trancara bonito as pontas de um saco de agiicar e, quando havia missa na capela, levava a toalha na cabega, a Ihe descer pelos ombros. Dentro dela colocara suas calcas, a camisa, a sandélia de couro cru que o pai fizera, Agora s6 Ihe faltava a matula, um pouco de fi rapadura € podiia partir... ‘Mas Justino, apesar de pronto, nao se decidia. O galo cantou outra vee, Ja era quase Fle nasceu ali, naquela palhoga, cresceu brincando no terreiro com © Pitd, trepando no cajueito carregado, ouvindo a mée socar no pili Punhados de milho, vendo 0 pai chegar da roca, molambento, sujo, ‘magro como a came-seca em cima do borralho. Doze anos vivera ali, vendo o sol esturricar a terra, as plantas se- ‘caren € morrerem, 08 animais se deitarem para nao mais se levantar. Doze anos, toda sua vida... Agora que o pai e a mée haviam morrido, com um intervalo de a, 0 resto da quinze dias, 0 primeiro mordido por cobra e, logo depois, a mae, de tristeza e fraqueza, Justino resolvera partir. Nos primeiros dias, depois do enterr0 do pai, 0 patrao, dono das terras, chegara-se 4 porta do casebre e, de cima mesmo da montaria, gritara: a 10, que limpava umas 1 na beira da cho} — Menino, que da tua mée? Preciso falar com ela, — Ela esté de cama, senhor, desde que pai morreu — Pois diga a ela que vou precisar das terras, que aumentei 0 gado e vou transformar tudo aqui em pastagens. Bom lugar para sumas cabegas! Olhava ao derredor, avaliando as terras, 0 lugar. — Bem, vocés desocupem logo 0 casebre, preciso derrubar isto aqui — ¢ batera com o relho na trave que escorava uma das paredes abauladas. Ante 0 olhar assustado do menino, prosseguira: —Podem ocupara choga de Nh6 Iulia, esta sem cobertura, porém voce é um rapaz ¢ fard 0 conserto. Tocando 0 cavalo, tomou a estratta, ndo se despedindo, nem se voltando. 14 havia dito tudo. Justino permaneceu parado, quieto, quigd sem compreender. Dei- xara casa, a mae daquele jeito e as terras, que agora estavam secas, porém um dia se cobririam de verde, de flores e de frutos, como num lagrel — Justino, “fi A.voz fraca da mie vinha de dentro da camarinha. = Ja vou, mie. 0s pensamentos confusos na cabega... Um martelar, com a mao 40, pam... pam... pam... —“Fio".. ~ a voz fraca se extinguiu, antes de alcangar o mer que jé entrava. — Mae, nao é nada ndo, mecé vai se cansar outra vez € Vou trazer um cha de macela. — Ouvi conversa, “fio”, a andadura do “anima; 0 que deseja o patrao? — Ver as terras, mae, A velha, apoiando-se nos bragos finos, dentro da escuridao da camarinha, procura ver o filho que, encolhido, nao ousa entrar € ‘menos se explicar. jorar, — Ver as terras, pra qué? — Nao sei ndo, mae, somente ver. Ela se deixara cair na tarimba arfante, com o peito a chiar, sem folego. — Eu nao disse, mae, para nao se preocupar? Nao se amofine, descanse. Vou buscar 0 cha. io”, vé procurar o compadre Tido. Que venha aqui. Quero falar com ele, — Sim, mie. 0 menino saiu para 0 quintal. 0 sol queimava, a terra comecara a se abrir, dspera, sedenta. Néo 14 verde, no ha colorido, tuda de um cinza torrado, como se enorme fogueira tivesse se espraiado pelos campos. Agora, na hora de deixar a casa, Justino relembra, com nitidez, aquele dia. Correra ao casebre do padrinho, que encontrara cuidando dos leitdes do pat © consumidos como peixes no fumeiro. Dava pena os animais com 0s focinhos arranhados, em carne viva, de tanto fossarem a terra requeimada, Comiam os talos de juazeiro, que Ihes dava o padrinho, entre grunhidos de dor, contudo a fome os forcava. — Abenga, padrinho, — Deus te abensoe, menino... estas vendo o sofrimento? E sempre assim, nesta infeliz terra. A seca come tudo, os bichos, os homens. Ea comadre? — Ruinzinha, padrinho, inda agora teve uma recaida, Pede para © padrinho ir Li, ~ Coitada, que tristezal — Padrinho, ela nao pediu as terras. Tido parou o servigo, olhow o menino. = Qué?! Ouvira bem? Desgraga de pobre é sempre assim, anda de péreo, de acompanhamento. Jd nao bastava a viuvez? — 0 patrao pediu as terras? = Sim, ele disse que quer aumentar a pastaria, Que a gente fi- casse com a tapera, mae nao sabe, ela ouviu barulho de conversa € perguntou da camariniia quem era, Eu disse que nao era nada, no 1, € hom que nao saiba mesmo, o patrao a Tido, pensativo, parecia nao ouvir, perdera-se em divagagées. Os animais granhiam mais forte de dor e de fome. Tentavam fossar e dos focinhos feridos 0 sangue ia tingir a terra rebentada em torres. — Pois vamos. Nao precisa contar que 0 patrao pediu as terras, cu falo com ela, —E melhor! 0 padrinho nao acha que devo ir ver a choca na beira do morro? Ela est descoberta, preciso cortar pit — Nao, menino, vai até minha casa ¢ diz pra tua madrinha que prepare um lugar na camarinha. Depois me ajuda na mudanga das redes ¢ dos trastes. Ficam com a gente, nao séio animais para dormir ao relento, 0 menino abaixa a cabega € ruma para a choca do padrinho, enquanto este se distancia, encolhido, pés nus, pisando de leve na terra escaldante. sol dardejava seus rains, de maneira violenta. Era uma batalha a ser vencida contra a terra, contra 9 homem, contra 0 verde. Justino recorda que nem fora preciso fazer a mudanga; na mesma tarde, a mie falecera, num acesso mais forte, que quase Ihe arrancara 0 peito. Tudo muito triste. Triste como sua vida. Depois do enterro 0 padrinho conversara: — Afilhado, agora é nosso, meu e da tua madrinha, Junta teus trastes € entrega a terra ao patrio. E cuspira raivoso, sem forgas, sem animo para lutar, , senior, padrinho. Porém, pedira permisséo para ficar ainda aquela noite na palhoga € a ideia crescera em seu peito, onde a dor ficara presa. N&o chora- ra, nem mesmo quando levaram a mae na rede, téo levezinha, mal pesando nos ombros do padrinho ¢ de um vizinho. De repente, ao se deitar, compreendera que nao poderia continuar ali, naquelas bandas, vendo o gado pisar a terra que o pai lavrara, a terra que no tempo das guas se cobria de verde, renascendo alegre- mente, a ofertar seus frutos, Justino quieto, 56, amadurece seu pensamento. Vai partir! repentina, violenta, como o sol nascente, Bola 0 peito. Vai partir, nao continuard ali ‘scolheu, nem sabe que caminho seguir, porém sabe por conversas suvidas qu etirantes fugindo da seca, Pensa em se j les seguindo em diregéo a Croibero, encontrar levas de itar a eles © seguir o E preciso seguir logo, antes que alguém apareca. Mais tarde os »eGes virdo derrubar a choga e soltar o gado, Nao quer ser visto, nem ‘er ninguem. Ja tomou o café. Prende a trouxa no bordao do pai que na ponta avrara uns desenhos. 0 pai gostava de traballiar com a lena, fazendo ‘cisas bonitas, bichos, flores, criangas, Pas na cabeca 0 chapéu de alha que ele mesmo tecera, ¢ chamou o Pit6, que se enrodilhara na ira do fogao, vigiando alguma faisca do que comer e, sem olhar ara a camarinha, deixa a casa, Na porta, ouve 0 papagaio a chamé-lo: “Mae, qué café!” Ese o levasse? Poderia deixt-lo na mata, junto aos companheiros, ustino entra na choga e para em frente & camarinha da mae. En 40 seus olhos se enchem de agua, que Ihe escorre pelo peito magro. través das lagrimas vé 0 oratério, onde a m&e o fazia rezar. Quei- 2ado, preto pela fumaca, era o tesouro de sua mae, que o herdara da v6. Abre-o e de I: onceicao. Colaca-a na trouxa, toma do papagaio e, quase corendo, cixa a choga, Delonge, do curval, soam vozes ¢ mugido dos animais esfomeados, Ainda esté escuro, Névoas se amontoam finas por sobre 0s morros 1é ficam penduradas. Nao precisa de luz, pois sabe de cor a diregdo. Quantas vezes fora € a cacimba buscar um gole de gual A cacimba que secara de do, este ano! ‘Segue sempre firme, para a frente, com Pitd nos calcanhares, sem har uma vez sequer para tris. uma pequena imagem de Nossa Senhora da Justino caminha apressado, tanto quanto lhe permitem suas pernas franzinas. 0 sol nascera violento, selvagem. Uma tinica explosio! Os gallos secos parecem pontas de langas e lhe barram o caminho. Tudo é hostil, seco, cinzento e triste. Com 0 papagaio calado, sofredor, agarrado em seu ombro magri- cela, Pité a tocar-the 0s calcanhares, ele caminha, fugindo da Fazenda do patrio, da saudade ¢ das lembrancas. Um sé desejo o anima: distanciar-se o mais rapido possivel, para ganhar tempo, fugir a qualquer perseguicéo. Um tinico pensamento ‘em sua cabega a torturé-lo: serd que encontrard retirantes? Compa- nheiros de viagem? it6 game, caga-se, lambe humildemente 0 pé do dono, aproveitan- d0 0 sal do suor que Ihe corre das pernas. Como estas pesamn! Parece a0 menino terem vida propria, negando-se a conduzir o resta do corpo Pelo sol alto, calcula ser meio-dia; pelo cansago juga que dias se passaram, Resolve parar, tomar um pouco de félego, comer um pedaco de rapadura e um punhado de farinha. A carne-seca ficard para outra refeigao. B melhor poupar. Também, se a comesse sentiria mais sede e a agua era pouca: Nao sabe de nada, além do cansago ¢ da fome que o torturam, A aventura que corre € maior que sua imaginacéo. Sente-se embotado pela fraqueza, pelo cansago, Forgas Ihe faltam vara softer. Final nais fresco, m se projetam para a frente, ci nte, divisa uma ligeira sombra, um lugar que The parece is acolhedor, entre duas ou trés pedras enormes, que no as abas de um chapéu. Senta-se aessas pedras, contra 0s raios diretos do sol, abre a sacolinha, tira a apadura ¢ pde-se a roé-Ia, Dali avista os trilhos por onde passam os ‘antes, Nao ha ruido de animais se arrastando e nem ha passaros cantando. 56 solidao! Tiao também nao dormira pensando no menino, Insistira muito para que trouxesse a rede e viesse naquela mesma noite, porém ele pedira permissao para ficar na choca. — Padrinho, se mecé néio se amofina, eu vou dormir na minha ‘asa, por despedida. Amanha levo minha rede. — Esti bem, afilhado. A madrinha te espera, amanha ent&o irs ara casa, no €? Lembra-se agora da conversa, revirand imanhecer. Logo que 0 sol surja fra buscd-l redes lever 0 gado. Quer impedir que o menino presencie tal so- timento. To menino e jé Go sé! 0 patréo cra uma peste, mem 20 nnenos sabia respeitar 0 sofrimento allio. No Tido, por que mercé nao dorme ¢ se revira tanto? — pergunta mulher. — Esté doente? Quer um cha? — Nao, Joaquina, ndo é questao de doenga, € tristeza, penso no nnenino, ele devia ter vindo comigo. = Mece descanse, essa tristeza fala mal & alma Mais um canto do galo, 0 do préprio terreiro. Fraco como a gras~ tar de um corvo. Levanta-se, esquenta 0 café da véspera, sem despertar a mulher, jue pegara no sono novamente, ¢ ditige-se a choca dos compadres, e na rede espera do antes mesmo que oS gora vazia. a pelo caminho, lembrando-se das coisas, desses anos, de como m passado cheios de lutas, de sofrimentos. Olhando ao derredor, apesar da escuridao divisa os galhos secos, spetados. “Todos os anos a mesma coisa”, pensa. Todos os anos! Port ‘quando se casata, isso ha q mara terra, torrar os homens, defumar os animais. Custava acre que depois surgisse vitla dessa solidao. E, no entanto, todos os anos presenciava 0 milagre, tudo a reverjedar, 0 pasto, 0 campo, 0 milho criando alma nova com as chuvas. ‘A natureza inteira se mudava, tornando-se esperangosa, alegrinha. Os campos cobriam-se de verde, flores e espigas rebentavam das hastes. Passaros cruzavam o ar leve € perfumado, armando ninhos, cantando doidos! Em todos os cantos a vida explodia, numa ressurreicdo, |, duas vezes a situacio piorara, a seca fora mais dura — uma, ¢ anos, @ essa aggora, que parecia quei- ar Era a hora do regresso! Muitos haviam partido, na suportando a dureza da vida, Porém, alguns ficavam sem coragem para deixar o que era seu, Sabiam que 1m no céu, que o sol deixaria de nes mesmo de chegarem |, a chuva cairia ea ‘um dia nuvens negras se amontoa brilhar e pingos grossos se dissolveriam no 4 terra. Até que, com uma forca indémita, ten terra sbfiega, sedenta, a receberia por suas mil bocas abertas: Era questo de pacigncia, coragem e fé! Suportar todos os sofri- mentos a espera desse dia. ‘Assim, caminha pensativo, lembrando-se do afilhado, menino e ja 6rffio, Nao ficard desamparado, isso nao. Ele e a mulher sem filhos 0 estimam, como proprio, E, que homenzinho ja é no deixando que 0 sofrimento 0 enfraquega, perante os outros! Que siléncio! Talver tivesse sido melhor obrigar 0 menino a dormir com eles. Aquela solidao aumentava o softimento. Onde andaria 0 Pit, que amunciava sempre sua chegada com ganidos de alegria ¢ festas? Grita pelo menino: — Justino, 6. Bue Espera, A escuta, Estara o menino procurando agua na cacimba Ja seca? Desce 0 barranco que desembaca no casebre € de onde rolam grumos de terra seca. a casa, bsoluto. 0 papagaio, que trouxera para o menino, novinho ainda, tirado do 0, sempre a gritar ¢ bater asas, nao esti no poleiro. Um arrepio he sobe pela espinha. Que estaria acontecendo? = Justino... 6.6 La fora, o sol jd rompera todas as barreitas. E 0 vencedor absoluto, ubro e violento. Fecha os alhos a meio ¢ tenta localizar o afilhado aquela orgia de luz, Subito, um pressentimento 0 toma de assalto; teria acontecido Iguna desgraga ao menino? Entra na camarinha, onde ja penetrara ‘ma réstia de luz, vé o oratério aberto, ¢ nao encontra a imagem da ‘irgem da Conceigao, que muitas vezes vira em dias festivos. Como um soco no peito, toma conhecimento do que acontecera: menino partira! Nao querendo permanecer la, as vistas do patrao, fora em busca © outras terras.., Jd era homem, 0 afilhado. Corajoso e leal para com 3 pais. Tiéo compreende sua nobreza de alma, seu modo de ser. Sai, fecha a porta da choca em siléncio ¢ estica 0 alhar pelos uminhos. Qual deles teria escolhido o afilhado? Indeciso, coca a cabega branca, faz um cigarro de palha ¢ procura na soluco. Ir atrés do menino? Voltar para casa ¢ por a mulher a ur do assunto? Retorna primeiro para casa e avisa a mulher. — Nhana, 0 menino fincou pé na estrada, ele partiu! ~ Partiu? Pra onde, marido? — Nao sei nao, vou procurar. Quem sabe se acho, Mas Deus queira e 0 Bom Jesus do Bonfim o leve destas terras, pra bem longe, pra dade. Aqui, mulher, € terra de maldigfo, de dor, de fome. A ma ha, retirando-se para sua camarinha, pGe-se a chorar, mente. Pobre menino, poderia se perder nesse sertdo, passar me. — Ah! com isso ele jd est acostumado; fome, ele vive com ela na rriga, desde que nasceu, E, com a seca que vem chegando, daqui a aa pouco nem mesmo farinha @ gente vai ter. A fome vem brava este 1, com 0 sol vermelho como baeta e 0 céu azul sem nuvens, Ga- Thos secos e esturricados, sem folhagem e sem frutos... Mulher, € bom que enxugues tuas légrimas, 0 menino quem sabe encontrara coisa melhor. Aqui, ia sofrer muito, Depois, pos-se nos atalhos e caminhos, nos sitios conhecidos entre nigos, a procurar o afilhado, A noite, cansado, amargurado, avisa 20 patrio, que se enfurecera com a not — Nao encontrei ele, nao. — Menino tolo, bem que poderia ter ficado na fazenda, estava no ponto de pegar rijo na lavoura. -£. ‘Mas, ao entregar 0 corpo cansado rede, pensa consigo, bem no fundo do coragao: “Fez bem, Justino, fez bem em deixar esta terra infeliz.” E grossas lagrimas Ihe rolam pela face seca ¢ esturricada, encardida como a prdpria terra Sol alto, meio-dia Justino, sentado na raiz de um juazeiro, procurando um pouco da sombra projetada pelos galhos nus, come seu pedaco de rapadura, am punhado de farinha e bebe um gole de agua morna, que trouxera ‘no embornal de couro. Os olhos ardentes, queimados € judiados pelo sol, se esticam A arocura de companhia, Os retirantes costumam passar por lé em diregdo &s varzeas timidas de S40 Francisco de Canindé, Precisa de companhia para a viagem, néo sabe para onde ir e também nao se mporta com isso. O que Ihe interessa ¢ sair o mais depressa di Pit6, aos seus pés, arfando € se cogando, ganindo com as picadas Jas pulgas e dos bemes, olha-o com seu alhar quase humano. Esfre~ 42.0 focinho no chao & procura de agua, de umidade, porém a terra ispera o arranha € 0 queima. Sentadinho ali, naquela soliddo agreste, to pequeno e mirrado, 44 pena. A trouxa ao lado, 0 papagaio jé ficara hd muito num galho eco, no meio da estrada, no pensa, sente-se embotado pelo calor, selo softimento e... adormece sentindo tudo ao seu redor como as sinzas de uma fogueira extinta. Nao sabe quanto dormiu, desperta meio sonolento, atordoado, ‘om fortes dores de cabeca, cansado, ouvindo o chamado insistente 1o papagaio: “Mae, qué café, mae, qué cafe... Levanta-se de um salto, julga estar em casa, a mae viva a preparar- Ihe 0 caldo de rapadura. Sonhara apenas. 0 sol ainda esta alto, dormira pouco. Mas € melhor partir antes que anvitega Poe-se a andar, cansado, com 0 cachorro atras. Deixa o pasto € entra na caatinga tao feia e suja. Procura os trilhos, para se desem- baragar da galharia espalhada pelo cho. A noite se avizinha, o menino olha ao redor, procurando pouso. Passaros notumos, alguns que resistiram & seca, soltam seu pio. Justine se arrepia, amedrontado... Pitd gane. A solidio 0 siléncio 0s absorvem e a noite desce, répida, negra, envolvente. ‘no nem sabe que forga o sustém nas pernas fracas e o impele ho, junto & para a frente quando, encruzilhada, avista um grupo de ret Sao quatro mulheres, seis homens, duas dezenas ou mais de crian- ‘cas, todas menores do que ele, franzinas, as roupas em frangalh ‘Ao menino, elas parecem ser a continwac3o da caatinga, da terra vermelha... A prépria terra! Olham Justino que se aproxima, sem entusiasmo e set fome lhes tira qualquer possibilidade de raciocinio, qualquer expres sio de sensibilidade provocada por um agente exterior. Verdadeiros autématos tocados para a frente numa luta contra a morte, caminham aos tropegées, mal tocando os pés, mas caminham. Justino aleanga-os. Nele também nao hé mudanga na face, um maior brilho nos olhos, nada. Abre a boca ressequida e balbuci — Boa tarde. — An, an, boa tarde, © menino se cala, assim & espera de perguntas, até que uma das mulheres, a mais velha, Ihe diz: ~ Onde esta tua mic € teu pai? — Nao teriho mie e nem pai, nao, senhora ~ E teus companheiros? weresse, A — Nao tenho, nao, senhora, estou sé. ~ S62! Apesar de hares convergem para ele. ~ Pra onde vais? — pergunta-lhe um dos homens. = Vou m'embora, 0 dono pedir a terra que pai plantou. na historia, a seca, 0 patrdo tomando as corpora a Enquanto ca- quase se arrastando pela estrada vert ersam. E s6 troca simples de palavras, pouco menos que nada. Nao sentem zcessidade de frases grandes e pomposas, porque o menino no passa 2 um retirante como os outros, olhos queimados pelo sol, barriga azia, pés cansados. — Fome por fome— diz a velha, para o pequeno grupo —, podemos assé-la juntos. E melhor que o menino venha com a gente do que fa ingrata. Ainda esta na idade de companbia, afrentarsé esta caati 2 ter pai e mae. lo-se aos retirantes, ndo sentiu nem alegria E, assim, Justino, nem tristeza. Ainda nia saira do seu desequilibrio inter adler participar de qualquer alterag3o, mesmo em sua prépria vida, fe-se como uma coisa, ¢ & como coisa que se une ao grupo, Um \co de feijao ou de mitho, nada mais. E seguem caminho, os retirantes, ele ¢ Pitd, a Ihe lamber os cal- imhares, A: lenciosos, caminham até o entardecer. De vez em 4ando, uma crianga choraminga, geme baixinho. Ao término do dia, a terra se refresca levemente e militares de rilampos cruzam o céu. A fome cresce, toma vulto em sua barriga Ja a saudade. Justino lembra-se da mae, do pai, da pobre casinha. Custara-the amara deixou {nas terras do Coronel, daquele peste que Ihes tomara as planta Ses. Junto as lembrancas queridas, surge a visto do gado a pisotear a terra que 0 pai lavrara. Glha os comp criangas nas redes. Ela — Mae, qué comé! Sempre @ mesmo pedido, 0 mesmo tom lamurioso. Seré que em algum lugar da Terra haverd de com encher suas barrigui s de viagem, as mulheres aconchegando yedem 0 que de comer. ra todas as criangas, para 1as?, pensa Justino, enquanto vé os homens i€ S40 Outros tantos pirilampos a acender e — Menino, deita-te e dorme, nao adianta ficar pensando. Amanha temos de caminhar cedo ¢ o chao é téo grande — diz a velha, Justino obedece e estica a rede, Enrolando-se nela, parece sentir os ‘ noite fora péssima, As criancas haviam chorado, a fome a torturd-las mais que 0 ansaco. Mal a madrugada se anunciou, cuidaram da partida. Cada mm tirou do embornal um pouco de rapadura e farinha e comeu. ~ Se a gente encontrasse um gole d'agua por aqui... ~ Mas néo encontra nao — comenta outta mulher. ~ A minha se acabou também, quatro criangas bebendo... 0 sol ja nascera ardente, raivoso. ~E methor a gente andar — ordena um dos homens, Nho Tonico, ue parece conhecer 0 caminho e ser o guia. — Ainda temos chao a omer e do ruim, para a gente encontrar a estrada da cidlade. Por lé alvez alguma cacimba tenha ficado esquecida e a gente ache Agua, uue esta “piolhada” daqui a pouco comeca a pedir o “que de beber" ~ Entio vamos. Todos se levantam e recomegam a marcha, Algumas criancas horam e se negam a andar. As menores so carregadas, as outras se Sarram as saias das mées, as calgas dos pais, Justina, que comera o ultimo pedago de rapadura € 0 tiltimo bo- ado de farinha, enrola a esteira, prende-a na cordinha e, juntando trouxa, caminha entre 05 outros, = M'nino... Justino ja notara o velho cego que, as tontas, apoiado no bordio, caminha entre um € outro. ~ Minino, tu ndo tens mie nem pai? — Nao, sentior, nio tenho. ~ An... e-vais de retirante, pra onde? 0 cego caminha, meio aos tropegdes, pela estrada. Tem nas costas uma violinha presa por um cordel no pescoco, na méo um porrete, no qual se apoia ¢, na outra, uma trouxinha, Repete a pergunta: — Vais de retirante, pra onde? — Onde Deus mandar, nao sei, nao, senhor. ~ Por que nao ficaste na Fazenda do coronel, com teu padrinho? ~ Nao podia, nao, senhor, depois que mae morreu, nao dava gosto ficar no sitio, vendo as terras que pai plantou pisadas pelo gado. Calou. Nao fosse solucar ali, na frente de estranhos. A voz se negava a sair — E, € muito sofrimento mesmo pra um menino sé — comenta 0 cego. Caminham, A caatinga que atravessam é cheia de espinheiros, que ‘hes rasgam a roupa € as canes. Nem mesmo a criangada reclama, tordos vio calados, sem animo para uma disputa, para uma corrida, A fome e o cansaco comeram suas tiltimas energias, 0 caminho se alonga por nao haver variagies de paisagens. Tém a impresséo de que caminham sempre pelo mesmo trecho. — Pois, como ves, também sou retirante— diz o cego, retomando a conversa. — Retirante cego cantador de viola. Fla € meu ganha-pao, meu de comer, Assim coma pai e mie para mim. = Mecé & 56? — Sim, tinha companheiro, mas ele por desénimo ficou nas terras do coronel Zico, ~ Como mece se arranja? — Como tu vas, tropecando nos caminhos, o espinheiro meu corpo, ora dependendo das gracas de um, ora de outro, Caminham outro trecho sem variagbes. Calor. Fome. Sede. Cansaco. — Vida dura — diz o cego. — Vida mais dura ainda, de quem 56... — Se 0 m’nino quisesse, sendo assim, nestes casos, nbs dots sozi- 6, podia ficar comigo e eu com cle. 0 que eu fizesse e ganhasse ", podia repartir com cle € 0 m’nino seria meus othos, me Aicaria o caminho, A gente repartiria as tristezas e até que a vida ia mais alegre. Calou-se, ofegante. Puxou uma baforada do cachimbo de barr, ajeitou a vi jueu o rosto para o alto, num gesto de expectativa ¢ de ansiedade. Justino olhou os olhos comidos do cego. Eram dois buracos, ande ora uma pele franzida fazia fundo. Olhouw e teve pena. Coitada! Mais infeliz do que os outros, mais $6. — Pois, sim, senhor, 0 velho tateou no escuro, na sua eterna escuridao e encontrou a beca do menino, — Deus te abengoe, meu filho. Continuaram o caminho, agora o velho menos trépego, menos silante, com a mao de leve, tocando os ombros do menino. E quase 1a caricia, Pitd, atras, fareja o solo. Serd alguma novidade? Nao sabe qual, 1s por via das diividas, para se fazer presente, para participar, gane stemente, — Sai daqui, agourento — enxota-o um dos retirantes com 0 pé. Pité sai ganindo de dor e se poe a andar, outra vez quieto, alréis dono € do cego. 0 dia findava, o sol se punha vermelho, sem diminuir seu cal Um menino chorou manso, pedindo comida: — "Mae, da de comé.” Justine ouve com atengao a resposta carinhosa: — *Sussega menino, logo néis para.’ — £ melhor acampar — diz o guia. — Este nosso caminho é sem ‘ve tanto faz a gente dar dois passos a mais ou a menos. — £ melhor mesmo, compadre Tonico — comenta a velha —, as angas nfio aguentam mais, vamos parar por aqui Um juazeiro, que se estendia quase amigo, serviu para que la acampassem por mais uma noite. 0 velho estende a rede no chao como velhos amigos, Algumas mulheres pr nham um naco de carne-seca, enquanto as cria impacientes. Outras jé haviam se deitado sem 4 chupando os dedinhos magros. 0s homens espalham- procuram no chao duro restos de raizes de mandioca, algum Mas logo voltam desanimn mel ou alguma cacimba perdid 6 caminho € muito batido pelos retirantes. Chico Cego afina a violinha Na tarde que envelhece, sua voz tem doguras de mel. As criangas se aquictam, algumas roendo um pedago de rapadura, Os homens, rendidos pelo cansaco, enrolam cigarros de palha enquanto 0 velho canta uma mensagem de esperanga’ Acorde mamde do doce dormir cai dé-Ihe pao e vinho e diga ao pobre cego que siga 0 caminho. Justino estira-se de comprido aos pés da rede, junto a Pits ¢ alla o céu negro, vendo as estrelas piscando e pen: “Serio as mesmas que brilhavam por sobre minha choca, na terr do coronel Juvéncio, ow serao outras?” Lembra-se da mae, que nas noites estreladas sentava-se no terre olhando 0 céu, enquanto o pai pitava seu cigarro de palha. Lagrimas quentes Ihe descem pelo rosto e vao molhar a terra seca Porém prende os solugos, pois sente vergonha daquela dor. Quer senti-la sozinho! Mais tarde, bem mais tarde, o mocho pia. E 0 resto é e... alguma esperangal: ge J manhazinha, a criangada acorda chorando € pedindo de comer. — Bando esfomeado de maitacas — comenta um retirante. — E; coitadinhas... dormiram vazias de tudo: 0 fogo crepita vivo, talvez a tinica coisa alegre ao redor. Falta agua. s homens saem outra vez, mais longe, & cata dela, de algumas gotas sig numa poca protegida por pedras ou gathos secos. Voltam mais iquido barrento, que, misturado & rde, com cabacas cheias de um nha & a rapadura, é dado as criangas, Elas se atiram avidas as cuias de coco e logo pedem mais. — Chega — disse a velha —, o resto fiea para mais tarde. Ja come- m para enganar a fome. Vamos? — Sim — respondeu o guia ~, ¢ tempo de parti Levantam as redes. Juntam os trastes € aquela procissao poe-se caminho. ‘Aos poucos, Justino vai tomando conhecimento da vida dos reti- ntes. Pité atras, 0 velho a seu lado, apoiado no bordtio, a mao, asa + passaro, a Ihe tocar os ombros. Conversam de manso. — 0 destino da gente é esse mesmo, sempre em busca de dia melhor. vida é uma estrada ora bonita com florzinhas de todas as cores, aa cheia de espinheiros. A questo é nao desanimar. Sempre depois 3 verdo vem o inverno. Isso é verdade na vida: verdo ¢ inverno. J as dguas chegarem em abril, mas chegarem, Os rios se encheram, verde nasceu nos campos. Uma beleza! 0 vento bate nas plantas, ssovia. O ar se enche de metado, a gente até tem vontade de comer ar, Sé doguras. 0 gado engorda, da leite, ha fartura, Justina entaa se abre e pergunta: — Mecé como cegou os olhos? — Crianga, deu doenga. Ainda vi o sol, conhect as flores. Agora snheco a bonina e a margarida pelo cheiro. Antes nao, € conhecia 2 longe. Minha mae, eu me lembro dela, Ceguei com dez anos. -E dai? — Dai? Foi s6 esse sofrer, ai de n © acompanha sempre, Um dia passou pelo sitio do meu pai um go cantador de viola ¢ soube do meu destino. Eu vivia preso em , casa, como um bicho. Nao queria saber de nada, nada me alegrava. Minha mae me levava no rio, quando ia lavar roupa, punha uma vara nas minhas maos para eu pescar € la ficava horas, triste, iso- lado. Entdo, 0 cego cantador apareceu. A noite, as mogas ¢ mogos ha gemia sem parar. Eu sai do se juntavam para dancar e a vi meu canto € me aproximei do tocador. Ele compreendeu minha tristeza ¢ propés ensinar-me a tocar. A mfe aceitou, ele armou a rede num canto € li ficou uns dias. Aprendi logo, pois 0 cego tem a vista nos dedos. A violinha, desde entdo, tomnou-se minha amiga, tha confidente, Passados alguns dias, 0 cego se despediu. Mie e pai queriam que ficasse, mas ele disse: “O menino ja sabe tudo que sei, agora € tocar. 0 sentimento ensinaré o resto, ¢ eu preciso partir Este é meu destino, 0 de tocador de viola’. No dia seguinte, partiu e ra, No sdbado, as mocas € os inha. Um dia parti, quando eu fiquei, j nfo sentia tanto a ceguc mogos dangavam ao som de minha vi pai ¢ mae morrerai Iustino perguntou: — Para onde vamos? — Em dirego das terras de Sao Francisco de Caninde, —E grande a fazenda? = Nao, m'nino, néo € fazenda, é cidade, tu ndo conheces cidade, no € — Nao, senhor, —Pois é uma “montocira” de casas, muita gente, a fetra, Justino prestava atengio s explicagdes do cego. Era a primeira vex que alguém conversava com ele coisas diferentes, coisas que néo falavam de plantagao, de seca, — Vais gostar, a feira é alegre, ha movimento, eu vou tocar s6 as ‘modinhas alegres. Na feira, ninguém gosta de ouvir falar em tristezas. 0 caminho se estende sem fim, o calor toma conta de tudo, Sustino caminha pensativo. Por que o pai ea mie nunca foram morarna cidade? Por que viviam naquela miséria de sofrimento, se na cidade havia de comer? Assim dizia o cego: feijao, farinha, rapadura, aos montes. =z Paravam e tomavam a partir. Os dias se sucedendo, Atravessavam tlgumas terras, cujos donos nao Ihes permitiram parar nem se apro- simar da casa, com medo da invasio dos retirantes. Era-lhes permitido atravessar as terras, ao largo, Numa manha, um dos homens encontrou um tatu, ainda vivo, fora ta toca. Foi uma festa. O fogo crepitava alegremente. Os pirilampos umiram com as chamas, as criangas pararam de chorar e olhavam came a chiar na panela e o caldo a pular no caldeirio. Mas a comida, caindo nos estémagos vazios, dé contragdes vio- antas, ¢ eles se sentem pior do que antes. Uma fraqueza poe as suas emas bambas, frouxas. Chico Cego caminha, pisando de leve. Justina pensa que ele voa vai conversando sem parar, conta casos, ora tristes, ora alegres. lo espera resposta. Ele fala eo menino ouve: ~ Ja vi dias mais tristes que estes, vi " gado morreu todo, 0 patrio gritav: quela vaca que caiu, néo deixem ela deitada, que depois nao se le- anta mais, cusiou um dinheitao nada, nés faziamos forga a danada soltava um berra ¢ morria ali mesmo. Nao havia um pau de mandioca para matar a fome. Nada, nem sua nas cacimbas. Tudo crestado, mais cinza que agora ~ Deixe de tristezas, homem, cante uma modinha. Mecé parece arcara em cima de bicho novo. © cego, enquanto caminhava, pots para ele nao fazia diferenga nncar os olhos murchos no cho ou no céu, tocava e cantava, Nessas horas, Justino sentia mais saudades da mae, do pai. Até se mbrava do papagaio, dos padrinhos. A estrada se estendia inven- vel, sempre para a frente. Um dia, Justino, que até entio so respondera as perguntas do mmpanheiro, disse-lhe: ~ Parece que a gente engole a estrada e ela sempre aumenta, mpre eresce. Que sera? — Eisso mesmo m’nino, é a canseira, a gente até chega a pensar te ela nao tem fim. A estrada ¢ igual a fome, a gente come ¢ ela ry inverno comecar em abril -vantem, seu preguigosos, continua danada, na barriga da gente. Ja percorri estes caminhos tantas € tantas vezes ¢ eles me parecem um 56, 0 da partida, Ea seca, ela ndo muda o jeito das coisas. Justino ia aprendendo. A vida nao era o pal € a mie, o casebre, a plantaggo da manhé ao por do sol. A vida era isso tudo também aqueles homens ¢ mulheres e mais as criangas, na estrada sem fim, Uma das criangas chora desesperadamente, com dor de dente. 0 calor parece aumentar com o choro. Todos sesentem cansados demais, esfomeados demais, nem forcas tém para se enervar. Marcham, porque 0 instinto de conservagao os obriga. Assim, tragando estradas, caatingas, cantando noite e contando as ¢s- telas, sentindo um vazio permanente no estOmago, as pernas mal sustentando os corpos magros e enfraquecidos, chegam a um lugarejo chamado Croibero. antes mesmo de entrar na cidade, en brigavam os retirantes. Algu acas fincad nt © campo, onde se 1 a pique e sapé, es- redes ¢ dgua.. Agua 5 dias, até passarem por varios res de maleita, outros estdo disen- piolhos e sama, intes, apesar de sua rusticidade, o abrigo € algo 10s0, um paraiso, depois de todo o sofrimento da viagem. {encontram um canto, onde armam as redes, jd no precisam dormir 2 chao, sujeitos as mordidas de cobras ¢ picadas de formigas terriveis amo o fogo. As mulheres se entusiasmam de poder lavar seus trapos. Apés os exames médicos, os doentes sio internados num posto ‘ovisério, e 0s outros partem. Nao podem permanecer na vila, que 40 oferece possibilidades de subsisténcia, a nao sera seus habitantes. E, assim, depois dos exames exigidos po auco de alimento para a viagem, refeitos lig 0 obrigados a partir. Para onde? Uns contam com parentes emt alguma Fazenda, outros procuram dade maior, Canindé, Fortaleza, Crato, € dai partem para o sul, , tendo recebido um amente do cansago, jicam pelas est numa aventura tremenda, ¢ outros, rumo a tomar, esperando a seca passar. S6a fome era certa, constante e permanente. Foi, pois, com i alegria que o pequeno grupo avistou o campo € lé aportou. Pelo me por trés dias viveria humanamente ¢ néo como animais. Chico Cego ¢ Justino, antes mesmo de atingir 0 campo, para ram para conversar. Ao cego néio agradava a ideia de campo, das limitagdes impostas. Estava habituado a percorrer livremente as esttadas, ao seu Sabor, cantando ¢ dormindo e comendo onde the aprouvesse. — M'nino, tu sabes, nada temos, nem casa, nem de comer nem de beber. Temos, eu a ti, tu.a mim, €o Pité ¢ da gente. Nada mais. E 0 céu por “riba”, azulio, com o sola torrar a estrada que néo acaba nunce, Mas temos a liberdade, essa & nossa, vamos aonde a gente quer ir! Pité sé erguera a cabeca ao ouvir o seu nome. Nao dava mais para sacudir 0 rabinho, alegremente, a bamriga de tao vazia parecia estar grudada as costas. Pité era assim, como um arco de bolo, que tivesse uma cabeca e cauda para enfeita-lo, ~— M’nino — prosseguia 0 cego, enquanto os retirantes, animados pela esperanga de comida, apressavam 0 passo em direc#o ao campo de assisténcia social. — M'nino, temos nés ¢ nada mais e, a meu ver, ja & uma coisa grande a gente ter um ao outro. Tu estés vendo o ‘campo, rio estés? Onde os retirantes vao como gado, encurralados. Andou mais um pouco e farejou o ar, como os cBes farejam a cara. = Deve ser porai mesmo. Vivo porestes caminhos e ainda nao me esqueci deste cheiro. E sempre 0 mesmo. ‘Justino alonga 0 olhar, acompanbando a turma que se dirige a0 campo. Lembra-se do gado que o padrinho tangia & tarde, campo afora, até encontrar o curral O boi.. 6.. 6... € Hé iam eles mansamente, para o pouso notumo. O boi... 0 cego fala outra vez. — M'nino, temos nés ¢ mais nada, no gosto do campo, prefira guiar minha propria vida, apesar de cego. Que dizes? = Que mecé quiser. ~ T4 bem, ja que és m’nino e nada entendes da vida, eu decido, ‘Vamios para a cidade, tu guias — e, delicadamente, pousou as méios no ombro do menino. ~Tu és meus olhos. Para nds a lei ndo é brava, nao. Sou cego, ¢ Tu, meu companheiro, Ela me deixa ganhar o de comer na Feira. Podemos chegar & vila, sem susto, sem medo da policia, Afastam-se do campo, li deixando os companheiros de sofrimento, ia se estende vermelha, quase roxa, até 1c Se agrupava em torno da igreja. Justino de existéncia, tanta casa. Foi com 0 B manhazit rejo, que ao m de perto, em companheiros, Seria verdade? tempos, desde que campos plantados verd gamela sobrando par: 0 perfume gostoso da bebi as noites, depois acordava das criangas pedindo de comer companheiros de viagem. Quem Caminham sob 0 sol forte, A es trelta, de casinhas simples, pobres, ricas. Somente vira assim, e melh Movimento intenso, aumentado po espalhav: ciscam. Um gato preto ¢ marrom don louro pede café, E, tudo aquilo, de repen sua casa, no sitio. Aos poucos, as casas maiores vao aparecendo, o local vai perdendo certo ar de campo € ganhando caracteristicas de vila, Justino olha metro que os separa do luga- 1a pressa sente em ver a cidade segundo ouvira contar pelos em abundancia, como cle vinha sonhando hé va Com 0 pai, a mae, os Bles fartos e ainda lo “Mae, qué cafe" € n isso, todas rigga ¢ 0 choro 10 com os ruazinha es- parecem lindas € Hrande da fazenda. riga de cachorros, que da disputa, Galinhas janela de uma casa. Um » faa Justino pensar em ‘tudo com interesse, 0 que the poe 0 est6mago vazio a Ihe dar tonteiras © zumbidos na cabeca, — M'nino ~ diz 0 cego aspirando 0 ar, erguendo para o alto seus olhos murchos. — Aqui me parece que hi festa... sinto seu cheito no ar, Vamos, tu nao vés? — Nao, senhor, nao sei, nao. — Deve haver, por certo, vamos perguntar. Ouve passar um transeunte e erguendo a vo2, Ihe diz: — Mecé, por favor, nao interrompendo seu passar, me diga, que festa hd por aqui? — Festa de Sio José, sim, senhor, e € bom um canté, para animar a feira — Ah... ba fei ~ Sim, ¢ por nove dias, seu violeiro, que o santo merece nossa estima. E santo de devogtio do lugar. O amigo teré que afinar sua violinha e soltar a voz. Chegou em box acasiao, 0 povo faz novena para pedir agua, ela jd est4 minguando nos pogos. Sinal de grande seca por essas caatingas. Mecé veio de 1a? = Sim, senhor, —E vai parar aqui? , senhor, mais meu companheiro, até o final da feira. Quero ganhar meu dinheiro. — Faz muito bem e é boa a oca encontra ainda por ai, a cidade € quie — Até logo e obrigado. = Até logo. — Minino ~ diz 0 cego , estamos com sorte, chegamos em boa ocasido. Ha festa, na festa hé fetra, hd na feira o que se comer e é 0 que vamos fazer, logo, loguinho. Que achas? — e deu uma gostosa gargalhada, A perspectiva de um bom pedago de ceard com um pu- nhado de farinha o alegrava, ~Tu nao respondes? N&io queres comer? im, senhor, quero comer, mas no tenho 0 que... — A voz faltou-the. — Que tens, m’nino, estis desanimado? Bem agora? Logo sentiras © gosto da came, espera um pouco. Estamos na cidade, no estamos? Sinto sua vida io. Até mais tarde, a gente se pequenina, a — Sim, senhor, 0 casario a perder de vista, um montao de gente passando. — Vamos procurar a feira, € 4 o nosso destino. Olha ¢ vé onde fica. — Nao sei, nao, senhor. — 6 mnino, precisas te espertar, olha de que lado vem gente, mulher com cesta, cachorro. Sinto 0 cheiro que vem daquele lado... cheiro de carne assada, nna brasa, cheiro de caju, de batata- doce. Nao vem gente de 4, muita gente? — Sim, senhor. —Entio, vamos. Ca ida man, o calor mais fraca do que na caatinga. LA o Sol batia livremente, torrando tudo. A terra parecia fornalha. Na cidade as casas aparavam seus raios. Justino otha tudo com interesse, 0 movimento de animais, de car- ros, de gente que se entrecruza sem parar, nem para se cumprimentar- Que imundo estranho! Jegues carregados com caguis, meninos com tabuleiros nas cabecas, mulheres com cestos. Pité escapara de ser atropelado e se grudai sem coragem para mais nada. 0 tinico que pare da vida, era o cego, Caminhava, cabeca erguida, vio airoso, leve como quem estivesse bailando. A mao, mal { ombros do menino. De repente, a feira, bem ali, na curva do caminho, Um mundarén de gente que falava, gesticulava, como se estivesse brigando. Pits € Justino se assustam, um pbe-se a ganir, aflitamente, o outro encolhe- se mais, Que estaria acontecendo? 0 cego sentira a contracao do me- nino, sob seus dedos sensiveis, ouvira o ganir do cdo e compreendeu logo 0 que se passava. — Estas com medo? Isto é a cidade, ela é assim mesmo, com este mundao de gente. Nao te assustes. E aqui é uma vila, tu ndo imaginas que seja Canindé ou Crato. ‘Abria as narinas e aspirava os odores, com a satisfacao de quem estava comendo bocados de deliciosos manjares, o rosto iluminado de alegria. —M'nino, vamos ficar poraqui mesmo e comer, Tu vais ver, daqui ‘2 pouco estaremos comendo um pedaco de carne-seca e rapadura. Deixa que eu pc minha violinha. £ s6 comecar. Onde fica a passagem da feira? — Aqui mesino, sim, senhor. — Pois & aqui que vamos ficar, ‘A vor do cego esté alegre, vibrante. Tu me arranjas uma pedra para banco. 0 menino guis-o a uma saliéncia do chao, bem mais alta do que o nivel, ¢ li faz 0 cego assentar-se. Pega a violinha, afina suas cordas, depois coloca-a na frente, bem visivel e, no chao, a cuia de coco, com a qual bebia agua, para receber as esmolinhas. Qual niquel servitia, Dedilha... e comeca a sentir a feira, seu vaivém, suas conversa, seus perfumes, Justine de pé, ao seu lado, parece um bobo, Nun sonhara com tanta comida, Existiria mesmo tudo aquilo? Fr ridas, montes ¢ montes de mandioca, de amendoim, € mantas de carne-seca, dependuradas em jiraus. asi a abundante que Ihe escorte pelo canto olhar e seus olhos nao se detém em nada, hutas para a carne e vice-versa. Seu estémago se we de doze anos parece-Ihe agora ter crescido © subir a wasar-Ihe pelo olhar guloso. a feira, m'nino? — pergunta-Ihe o cego, ante seu pro- siléncio. — Até perdeste a fala, hein? Também eu, quando io, fiquei bobo. Agora, jé me acostumei com seu barulho. Vamos ymecar @ ganhar dinheiro, antes que ela se acabe. Tem muito de comer? ~ Sim, senhor, farinha, jabé, rapa = Pois vamos ganhar dinheiro ¢ ja. 0 cego pde-se a cantar com sua voz 0 iste de nascer na es ‘Mas se Deus, que eu ido renego, fez-me cego, sol no coragao. ie levas, eu, nas trevas, is feliz do loa Fe, que me guia, nejo a ti e vejo a Deus e 0s ares: Quando eu ougo a tua fala, nbala que me faz em Deus pensar into n'alma a claridade da Saudade ire de Iuar! de uma Cego, surdo, muda, em vida 6 Querida, eu quisera ser, porque 86.0 cego, surdo € mudo € que vé tudo 0 que vé tudo © nao vet Esta noite, com mew pranto ew roguei tanto, supliquel tanto a Jesus, que, depois de um ser bra B wen sta 9 sie milagre, que dos sagre 9 faz des quando alguém quer ver 0 0 0 que é profundo, fecha os olios para ver. Grupos de moleques, criangas, algumas magras, encardidas, es- farrapadas, outras com uniforme de grupo, ficam por ali a ouvir 0 cego. Uma dona de casa, com a cesta carregada, passa e joga uma moeda na casca da coco. Justino ¢ Pitd, parados, olham tudo, quase indiferentes, a fome hes emborara os sentidos, tirando-Ihes o Animo para qualquer acio. 0 cego prossegue sua cantiga, a voz trémula, sentida, Mi homens que passam jogam um dinheirinho. Pouco, porque sto po- bres, mas possuindo a vista, sentem-se todos ricos e por esse motive condoem-se do cego. Ji haviam decorride duas ou trés horas, o cego cantava, Pi 0, indiferentes a tudo, sentados lado a lado no chao, cochilava M'nino — chama-o 0 cego —, quanto temos? nao € Jus — Nao sei, ndo, senhor = Nunca viste dinheiro? = Nao, senor. ~ Junta as moedas, jé vou contar. Mansamente, passa os dedos sobre as moedas. Apenas duras gran- des, ¢ as restantes pequenas. “Temos dois cruzeiros, m'nino, € isso jé da para a farinha € a rapaduta, Vamos comer Levanta-se, prende a viola nos o onde vem 0 cheiro da came as Perto dele, o menino pi Aproximam-se de w 1s ¢ se dirige para o lugar de cle tudo vé. n braseio% — Quanto custa de farinha? — Um cruzei = Pois dé ur cego € seu com- panheiro. ‘A mulher corta um de farinha, € 0 cog pat "Ta" ai seu comer; depois quero ouvir sua vox mais firme, mum cantar mais alegre. Dei a mais. — Deus the pague, tia, ¢ Ihe aumente. — Que Sao José nos mande a chuva. — Ele mandara. — Agora, m’nino, temos 0 de comer, depois a gente procura teto. ‘Vamos para nosso canto. ‘Voltam ao lugar primitivo, sentam-se e poem-se os dois a comer, tirando da cuia 0s fiapos de carne ¢ jogando na boca punhados de farina. Justino tenta comer, mas o estomago se contrai, nega-se a rece- her a comida. Estando vazio ha dias, parece ter se desacostumado de trabalhar. 0 cego, que tudo percebera com sua grande senstbilidade © co- nhecimento da vida, aconselha: a um pedaco de ceard, devagar, bem devagar- zinho. Saliva junta na boca, vocé engole a came ¢ assim nfo faz. mal Até 0 estémago se acostumar. Nada de pressa! A gente vé a comida ¢ quer comer, mas pra quem esta desacostumado, precisa de jeito. ‘Aos poucos comem, depois 0 cego diz: — Onde tem agua? Tu nao vés um poco? — Sim, senor, lé mais para a frente vejo uma biea, um fiazinho que para numa vazilha. — Enio leva a cuia € nos traz um pouco del ce acarne deu mais sede. 0 calor esté “brabo” Justino toma 0 coco vazio ¢ a bica onde vira algumas também esfrega 0 focinho r Depois, voltam até o cego. ~ Que gostosura, como isto € bom! — exclama, cdeixando a Agua cair-Ihe pelo pescogo indo molhar a camisa suja. ~ Agora, im’nino, pra gente estar bem de todo, sé falta um teto. Vamos procurat uma casa. Quando viemos para c4, tu nao viste uma ponte? m, senor: — De que lado? = Pra cé do campo, quase na cidade. — Pois ela serd nosso teto. Jé dormi muitas vezes embaixo da ponte, é até gostoso, fresco, timido. Vamos? = Como mecé quiser. — Entdo, vamos. Tu estas melhor, nao estas? Fe ajudou. Que dizes? im, senhor. Caminham, 0 sol continua a torrar. 0 movimento acalmara-se, a cidade parece dormir, abrasada pelo sol a pino. Janelas e portas rece a mesma que de manha era som, movimento, alegria, Caminham deixando a feira, as casas, atravessam & barracos ¢ chegam a entrada da cidade, onde, nos bons tempos, co’ Jencol lamacento e vermelho. pouco, mas ja um rio, agora u = Chegamos ~ diz 0 cege. — Como mecé sabe, se nao ve? — pergunta Jus olhos vazios, mui Ihando seus hos. timido, s6 ndo ougo as aguas, por causa da seca. jonte, num lugar limpo, sem lama e pedregulhos. Jes ver com teus olhos. ‘oncduz 0 velho para um declive ameno. Pité jé correra na ando-se no lamacal, ganindo feliz Veja, © animal também sofreu como a gente a seca. Agora, s-se com o fresco do harro da nossa casa. € ri feliz. A ba ida até alegra a gente... Vamos trabalhar. ea rede, a trouxinha, com cuidado apalpa o chao, encontra lugar adequado, senta-se ¢ poe a violinha ao lado, Bate nela amo- nente, como quem acaricia uma crianga: “Eta companheirinha, daste muito por esses caminhos, nfo?” ~ Justino, 6 m'nino, tu falas pouco, vamos, anima-te, amanha va~ ios comer mais, E preciso ir aos poucos, para acostumar o estdmago. — Estd bem, senhor. — Sabes 0 que ps ua se juntar. A\ esca da vila, Hoj — Sim, senor. Inclina-se sobre 0 acle ha uma boa ca ade durante a noite a sigu anhado de basro & boca € 0 eng ara a fome. Gostava do sabor € pesava no estomago, dando-the n — M'nino — diz Chico Cego -, is barro, terds smpre o de comer. Barro incha na t ito mal — Mecé nao enxerga, seu Chico, ¢ como sabe que comi barro? O cego inho curto. iga ss fazer? Um pocinho no leito do rio para a ranjamos uma garrafa ¢ trazemos igua Hs contentamos com 0 pocinho. lugar mais limpo, menos lodoso, ‘escava com as méios uma hacia, porém, leva um sim que muitas vezes en- ois se arrependia, lo como Fogo. ino, mas vi com os olhos da ‘ma... Também fui crianga, também senti o cheiro do barro e comi, pois a barriga inchou, docu. A gente parece carregar o mundo nela € estomago vezio, Amanha vou cantar na modinha, alegre, tu tis ver, as moedas vo chover na cuia.. E 0 naco de jab ser mata Pit, exausto, acomodou-se na areia ¢ Chico € 0 menino também espicharam nas redes. thor C& Aare escorre € a noite chega. Logo de manhizinha, Justino acordou. Céu azul, sol vibrante. calor do sol nascente nao chegara embaixo da ponte € certa docura da noite persistia. Atordoado, Justina nao sabe onde est4; sonolento, entreabre os olhos ¢ fita a nesga de céu, que divisa somente de um lado, € se lembra de tudo, da feira, da comida, Sente-se farto, o estémago mal acostumado a trabalhar nao digeria toda a farinha e mais o belo naco de care gorda, a escorrer bana de todos os lados. Vira-se na rede, preguigosamente, com a leve nogao de que o dia é diferente, € um outro dia, Nada de estradas, nem de caatinga, de sede, e pensando na sede, 0 pocinho jé devia estar cheio! Vira-se mais uma vez na rede. Com 0 ruido da palha amassad: Pité abre os olhos ¢ vé o menino que ainda esta deitado, ¢ torna a ete, ganha bocado impressionara fora a fartura da feira, os agua verduras, as frutas, a mandioca, Na caatinga, nos campos, aquela miséria! Por que seria assim? Por que, no mundo, essa diferenga de Um pedago de rapadura, um punhado de farinha € nos bons tempos um naco de came, ja era uma festa, Repentinamente, tudo aquilo a se espalhar pelo chao, os caixotes, a carne pendurada em varapaus, mantas e mantas de came, Otha para o cego que dorme. Coitado, pensa, nunca poderd ver esse céu azul € tantos outros pelos caminhos. Em todos os lugares da Terra haveria cegos a cantar para comer? Pité gane e se coga. Também Justino sente coceira no 0 bicho se avolumara e crescera. Precisa com urgéncia tird {que se tome batata ¢ doa, Ali, nao tera a mae para cuidar como das, outras vezes. E, se esta estivesse com ele, a presenciar a feira? A ver tanta fartura com 0 sol a lamber-Ihe os olhos secos. Tat remunhando, porém, j4 desperto, parece que nasce na alma. M’nino, j4 acordaste? nifo, que o Senhor do Bonfim te abencoe. Ele nos a ganharmos uns niqueis para o jab. Estés contente? . senhor itara-se e dera duas ou tres idas no rosto do cego, lo sua alegria, — Tu também estés feliz, hein, d na cuia d’agua? Eta sede — Juntou, sim, senhor, vou Justino levanta-se € se er naga que escavara deposita Colhe-a com cuidado, leva-a am gole, para refrescar a — Estds bem? Por que — Estou bem, — Sonhei muito, companhia. Nao estavi E ri seu riso feliz. — Hoje teremos ma zalor do sol. Vamos, M'nino, tu queres me ho juntou agua? a 0 leito seco, No pequeno \¢ 2 noite, um pouco de Agua. e somente depois é que bebe imada pelo sal da carne. Lo? @ wou, 0 estémago estranhou a nova lo a tantas visitas assim. nos andar, esta bem na hora, sinto 0 2 felra e cantar umas modinhias rem ¢ outtas bem alegres. yero c stistes de fazer as donas cho Justino enrala as redes, —E melhor deixar ni 1 dos passantes. Muita g rangada! Prende a violinha ao pescoco; para se pentear, passa a mao na -arapinha branca. — Pronto, podemos ir? Pito os acompanha. Caminham pela estrada, 0 cego a pousar de eve a mfo no menino, passo mitido, cabeca Jevantada, 0 sol a es- caldar seus olhos sem vida. O ruido da cidade, depois o da feira, vo encontré-los a caminho... n canto — propde 0 cego —, longe da vis- gostaria de ter uma rede assim bem um punhado de f lamacenta do rio ow da vila, seu continuo va os jegues carregados, o grito dos vendedores. ‘A vila se preparava, festiva, para a novena de Sio José, para pedir chuva. No patio da igreja, bandeirolas de papel colorido se cruzavam nos galhos de bambu, Rojdes e bombas explodiam de vez em quando, a chegada de um fazendeiro, ou de seus familiares. A tarde, a pro- isso saia em diregtio 20 rio. As ladainhas cortavam o ar. Bumbo ¢ viola faziam fundo musical Todo esse movimento novo, estranho, mais @ fartura da feira, muitas vezes davam indisposigbes a0 menino, a cabeca rodopiava, 0 estémago fraco revoltava-se a vista de tanta comida e, a0 mesmo tempo, sentia fome insaciéve Chico Cego cantava na feira pela manha e a tarde, no patio da igreja, antes e depois da procissio. Sempre havia alguém que, con- doido de sua sina, Ihe desse uns tost6es. A noite, sob a ponte, olhando a nesga do céu estrelado, Justino sentia saudade dos pais, da vidinha que ao lado deles levava, no sitio, carpindo 0 chao, cuidando das aves, tocando 0 gado. Lembrava-se, depois, do tempo da seca, do gado morrendo, do rio macento, do fogio apagada, sem ter 0 que de comer. Talvez fosse methor ali, na vila, mas por que, por que nao poderia comida no sitio? Carne, farinha, rapadura, nao precisar comer ar tudo? uo, ou partir ¢ d ji fazia um semana que estavam na vila e ia € tem muita gente na feira, Precisamos de cosanto nos ajudar, ganharemos um pouco mais precisas te espertar, aprender a lidar com dinheiro, ibd e mesmo umas bananas, que hoje é dia de Festa. ivi muito e, porque sou cego, sinto tudo com mais pre- veem, Quem vé passa os olhos por cima, saciado Agora, toma o dinheirinho para as compras. heiro, fortemente, na mao cerrada ¢ caminha medo, desamparo no meio do pova que gesticula, re com pressa ¢ brigando. le comecar. Ha varios sacos cheios de farinha, ace, came e peixe seco, suspensos dos jiraus, ca- pelo chao, deciso, acostumado, desde pequeno, a ser jue tomara sé, na vida, e assim mesmo num Tora deixar a casa € se retirar pata 0 sertéo. restava, im homem magro, rosto macilento, olhar nso como 0 do pai, Parece-the ao longe o pai. Sente-se atraido ¢ afrante. Ele, por sua vez, olha o menino e sorri. Tu vais compra — Sim, senhor, farinha, carne e banana, se 0 dinheiro der, = Quanto queres de farinha? — Uma medida. E assim que ouvira 0 cego fazer — Também camne-seca? Gorda ~ Gorda, — De quanto? Justino abre a moe nao conhece ainda o va Enquanto o vendedor, de « olhar astuto, vem se postar lad cente, simples, do menino a espiar as n sem saber 0 valor delas. — Tu queres que te ajude, 6 mano? Conhe Deixa-me vé-las, antes que te enganem. Justino, sem mali¢ia, di-the as minguadas moc toma-Ihe o dinheiro, com uma rasteira joga-o a0 chao ¢ por entre 0 povo. Surpreso, sem rea Pité gane, desconsoladamente, Alguns transeuntes param, forma-se logo pequena aglomeracao. ‘Agueles que haviam presenciado toda a cena tentam pegar 0 mo- la e se perde num corredor de casebres. atemal, tenta consolar o mnenino. ; estatelado no chi, Justine pée-se a chor leque lado, que foge pela Uma vendedora, condoida, = Vamos, no chores assim, era muito dinheiro? — Nao, senhora, nao sei — consegue falar Justino, e logo os solucos © sacodem todo. — Ora, menino, que é isso, levanta-te, 0 mal nao € to grand assim, dé-se logo um jeito ~ diz uma senhora que ali parou desde a ocorréncia. — Vamos, levanta-te! Dé-Ihe a mao, ajuda-o ase erguer. — A gente nao deve se desesperar, era teu 0 dinheiro? — Nao, setthora, era de Chico Cego, —Teu pai?

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