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0 tecelao dos tempos 0 historiador como artesdo das temporalidades Durval Muniz de Albuquerque hinior “Um galo sozinho nio tece uma manhi: ele precisard sempre de outros galos. Deum que apanhe este grito que ele €olancea outro; de outro galo que apanhe o grito que um galo antes €0 lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem 08 fios de sol de seus gritos de galo, para que a manha, desde uma teia (enue, se vi tecendo, entre todos os galos”. (ecendo a manha, Joi0 Cabral de Melo Neto)! ichel de Certeau? pergunta: o que fabrica o historiador quan- do faz histéria? Querendo com isto ressaltar que o que faz o historiador é um trabalho; um trabalho de fabricagao de uma narrativa, de um artefato escrituristico; um trabalho de fabricago dos aconteci- Querendo com isto dizer que a historiografia é pro- duto de uma operagao, de uma atividade de atribuigio de sentido aos eventos. A historiografia seria uma maquinaria narrativa que usinaria 0 passado, buscando dar forma a mecanica que azeitaria os processos que se desenrolaram em dado tempo e espaco. Karl Marx,’ muito antes de Certeau, ja havia falado do motor da histori: , da mecanica social, a qual 1 Joa0 Cabral de Meto Neto. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 2. Michel de Cerreau. A Escrita da Histéria. Rio de Janeiro: Forense Universitéria, 2002 (2" Ed.) p. 65 (“A operacao historiogritica”). 3. Karl Marx; Friedrich ENcets. Manifesto Comunista, Sto Paulo: Boitempo, 1998. caberia ao historiador, usando como instrumento o materialismo his- torico, desvendar, enunciar, fazer aparecer em suas engrenagens mais sutis. Embora tenham escrito seus textos em séculos distintos, Marx € -Certeau parecem partilhar algumas metéforas, alguns topoi linguisticos, algumas imagens-simbolo da sociedade moderna, da sociedade indus- trial, quando se trata de pensar a atividade do historiador e as tarefas que este teria a cumprir socialmente. Nos dois autores, a historiografia, 0 texto de histéria, aparece como produto de uma atividade de manu -fatura, como uma atividade que remete ao maquinico, mesmo que seja em dimensées distintas: se para Marx as maquinagées estavam na ordem_ social, faziam parte da realidade, do referente, do passado, do qual tra- tava o historiador - historiador que trazia para o interior de sua narra- tiva os modos como esta histéria se produzia e os modos de produgao que davam movimento e eram o fundamento mesmo do devir histéri- co -, para Certeau as maquinagées se davam na hora da fabricacio da " narrativa histérica. Esta no descobria na ordem social, no passado, na realidade, uma maquinaria jé pronta, engrenagens perfeitamente iden- tificaveis, mas as produzia com a matéria prima da linguagem, montan- do peca por peca versées do passado, que apareceria como um artefato fruto da industria do historiador, de sua destreza, de sua pericia narra- tiva e profissional. Tendo a partilhar e, ao mesmo tempo, discordar desta aproxima- ao entre a atividade do historiador e aquela realizada pelo trabalhador fabril, pelo trabalhador surgido com a grande industria, pelo trabalha- dor surgido com a sociedade burguesa e capitalista; aproximacao que tem conotacées politicas claras e que visa questionar a separacao feita” pelo mundo moderno entre o trabalho manual e 0 trabalho intelectual: historadores e operdrios serfamos todos trabalhadores. Apenas traba- Ihariamos sobre matérias distintas e produzirfamos produtos distintos e valorados socialmente de maneira diferente. Concordo com a ideia de que a historiografia é produto de um trabalho, de um trabalho de atri-_ buigdo de sentido aos eventos, aos acontecimentos do passado. Con- cordo que o historiador exerce um trabalho de produgao do passado, que 0 fabrica como um artefato. Concordo que ele exerce uma tarefa de Tecendo histérias...|14 trabalho que realizamos nfo tem o cardter maquinico, o caréter fabril, 0 carater plenamente moderno, que as imagens e metaforas usadas tanto por Certeau quanto por Marx parecem indicar. - eS Penso que a atividade historiadora tem maior proximidade com a paciente e meticulosa atividade manual exercida por tecelées, bordadeiras, rendeiras, tricoteiras, chuliadeiras. _ausente, o saber histérico parece partilhar do universo cultural em que trabalho e que garantiam a reproducao material da sociedade. Nascida para garantir a reproducao da memoria e do poder dos setores sociais dominantes nas sociedades da antiguidade classica européia, a historio- grafia parece ter sido pensada e praticada como uma forma de trabalho artesanal que tomava como matéria prima os restos, os fragmentos de \narrativas sobre o passado e sobre o presente, que podiam ser recolhidos ‘e submetidos a um trabalho de enredamento, que podiam ser tramados de forma a dar um passado para estes povos e, a0 mesmo tempo, per- mitia que estes restos ganhassem sobrevida e pudessem chegar as fu- turas geragdes, onde exerceriam um papel pedagégico, transmitindo as experiéncias das geracdes passadas, garantindo o aperfeicoamento pro- gressivo destas sociedades. Se na narrativa homérica Penélope tecia um infindével enxoval enquanto aguardava a volta de seu Ulises! amado e ludibriava os candidatos a sua m4o real desmanchando toda a noite 0 que havia tecido, garantindo assim uma espécie de paralisia do tempo, fazendo com que 0 tempo adotasse uma forma circular tal como a forma 4 Ver Francois Haro. Memsria de Ulisses. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2004. O teceldo dos tempos... 15 da roca que manipulava durante todo o dia, na narrativa de Herddoto’ ele €0 tecelao que articula aquilo que viu e aquilo que ouviu sobre o passado e sobre o presente, sobre os gregos e sobre os birbaros, num tecido que se projeta para o futuro, para que as futuras geragdes nao esquecessem as maravilhas praticadas por seus antecessores. Ele no narra uma viagem de um personagem lendério. Ele € 0 viajante, que em seu perambular por todas as cidades da peninsula e por cidades e povos desconhecidos vai tecendo, vai urdindo, vai fazendo com que estes pontos desconheci- dos se articulem numa geografia inteirica. Herédoto, o histor, é aquele "que conecta povos ¢ lugares que se desconheciam, é aquele que conecta lenda, mito e testemunho, € aquele que articula os tempos, 0 passado com 0 presente e este com 0 futuro.‘ No seu deambular de viajanteeem —- sua narrativa, vai tecendo uma identidade unificada para os gregos, do presente e do passado, ¢ os vai distinguindo e apartando de outra figura que tece como sendo unificada e homogénea: o barbaro. ‘Herdédoto, herdeiro dos aedos, tece uma narrativa que seja encan- tadora para os ouvidos, que, assim como o canto das sereias homéri- cas, possa arrastar os ouvintes para a praca publica, para a dgora, possa produzir 0 estado de encantamento e, ao mesmo tempo, a sensagio de comunhao em um todo. Como uma artesi do patchwork, Herddoto de Halicarnassos costura fragmentos, pedacos de lendas, de mitos, com pedacos de narrativas factuais, de testemunhos, de memérias, dando a este caos sarapintado uma coeréncia, uma ordem, uma aparente coe- sio. O seu instrumento de trabalho nfo ¢ 0 fuso ou a roca, nem mesmo © cesto ou a anfora, mas as palavras, a escrita em prosa. O prosear, 0 5 Ver Frangois HARTOO. O Espelho de Herédoto. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1999. EDUNB, 2003. 7 VerDurval Muniz de ALBUQUERQUE JUNIOR. Hist6ria: aarte de inventar o passado. Bauru: EDUSC, 2007. Ver Francois Harros. Os Antigos, 0 passado e o presente. Bra Tecendo histérias...| 16 0 final de suas atividades de pesquisa, tem sua frente uma cesta cheia de documentos, de relatos, de imagens, de escritos, de narrativas, de variadas cores e tonalidades, misturados de forma cadtica. E ele, como faz a profissional do bordado, que submete este caos a uma ordem, a1um desenho, a um plano, a um projeto, a um molde, a um modelo, que deve ser previamente pensado. Assim como no bordado existiro aquelas lagadas, aqueles pontos, aquelas amarra- Ges, que serao fundamentais para que o desenho se sustente e se faca, na narrativa historiografica existira, 0 que no por mera coincidéncia se chamaré de fio condutor, de fio da meada, o problema, a questo, objetivo, que deve ser perseguido e deve estar presente durante toda a narrativa. Sem o problema, sem a tese, sem um argumento central a ex- por e defender, a narrativa historiografica nao perder seu carater frag- mentirio, nao passara de uma crénica, de um arrolar de eventos e de suas datagdes, um amontoado de fatos coloridos, dispersos e dispostos aleatoriamente.* Mesmo que no mundo contemporaneo, desde o século XVIII, pa- ralelamente a implantagao da sociedade industrial, da produgdo maqui- nofatora, a histéria tenha passado a reivindicar a condicao de ciéncia, se pensando como um saber metédico, presidido por regras ditadas a partir de um modelo que eram as ciéncias ditas naturais, buscando tornar-se uma maquina de produzir e dizer a verdade sobre 0 passado, preten- dendo remonta-lo tal como ocorreu, a historiografia nao conseguiu su- perar suas origens artesanais, a narrativa historiogréfica néo conseguiu expurgar suas dimensées artisticas, literdrias e poéticas, o artesanato da ena linguagem.’ O historiador nao é um trabalhador de linha de monta- ieee esteem sochosnyndo predominam no trabalho historiografico, pelo menos até esta data, os modelos fordista ou toyotista de organizacao do trabalho. O trabalho do 8 Mare BLocH, Apologia da histéria ou o oficio de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. 9. Ver Frangois Harroc. O Século XIX e a histéria. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. O tecelio dos tempos... 17 lai gente de SelistaliggdessT Pea eaioiecs. alaians ‘publico. © historiador obedece a um tempo de trabalho que pode ser bastante extenso, nao tendo uma jornada fixa-a cumprir. Seu trabalho pode se estender por dias e noites inteiras, e sua jornada de trabalho esta sujeita a muitas porosidades temporais, tanto pode trabalhar por horas seguidas, como entremear seu trabalho com tempos de descanso ou com outras formas de atividade. O tempo intensivo e sem porosidade que persegue a organizacao fabril encontra aqui resisténcias em se ins- talar, por mais que sejamos convocados pelas agéncias financiadoras e pelas instituicdes onde trabalhamos a produzirmos cada vez mais e em menos tempo. Embora necessite, cada vez mais, de um grande mimero de ou- _tos profissionais,e ndo consiga fazer seu trabalho sem que outros his ecelapenahetempesentant stay afinal tal como os galos na madrugada, um historiador sozinho nao tece um amanha -, apés a leitura de uma grande quantidade de outros textos, de fazer com eles um trabalho artesanal de pesca, de caga ou mesmo de furto, um trabalho de meticuloso esquartejamento dos textos em notas ¢ fichamentos, é 0 lesmo que pequenos pontos remetam para a barra da pagina onde estarao sus- pensas, penduradas, quase caindo, as referéncias, as notas de rodapé, que procurarao enunciar alguns dos fios que ali foram urdidos, elas te- ro a funcao de chamar atencio e legitimar a pericia de quem teceu a trama, pois quanto mais esta nao deixar aparecer em sua frente os nds, as amarragoes, as lacadas, as linhas arrepiadas e cortadas a dente que compéem o desenho do passado que aparece a nossa frente em sua in teireza e em sua perfeita articulagdo, mais habil em seu oficio sera con- siderado o historiador que a tramou.'” ¥ 10 Carlo GinzauR6. O fio ¢ os rastros. Sio Paulo: Companhia das Letras, 2007. Tecendo histérias...| 1, Embora, como dird Blanchot," escrevamos em uma solidao povo- ada por presengas do presente e do passado, embora muitos espectros venham se sentar conosco em nossa mesa de trabalho, “rosa elaboragdo da eseritura da histéra. ele quem usa sorinhoos seus martelos, suas bigornas e seus foles, € ele quem reaquece os fragmentos do passado, quem hes infunde calor, vida, para que ganhem liga, se sol- dem, venham a se amalgamarem em um todo, em uma unidade de sen- tido. Sem o sopro de vida das narrativas historiograficas, as brasas que -Testaram do fogo das batalhas do passado, das fogueiras das vaidades ou das revolugées, e que jazem ainda crepitando mortigas sob as cinzas do tempo, fagulhas de esperangas, de projetos, de desejos, de sonhos, restos das chamas das paixdes e das rebelides humanas, nao voltariam a -consciéncia, Como ——— + historiador é aquele que tem a funcao messianica de colher, como um jardineiro, as tiltimas flores da esperanga que, embora murchas e jf sem perfume, ainda teimam em permanecer balancando sob o vento dos tempos, ainda tremulam como bandeiras que simbolizaram, que foram o escudo e a herdldica, que mar- charam a frente dos exércitos de vencidos de todos os tempos.” O histo~ -riador éa carpideira que, a0 mesmo tempo, chorae louva os mortos, que num gesto de carinho para com os que se foram, os veste de novo para um ato inaugural, os faz novamente vir para 0 centro da sala, paraa fren- te do cortejo, os faz levantar a fronte e novamente falarem, vociferarem, imprecarem, readquirindo o direito a fala ea dirigir seu proprio enterro, asimularem o controle sobre a versao de sua prépria vida, da sua propria memoria. A carpintaria do passado, portanto, é obra do historiador. Ele 0 carpina que, de posse dos escombros que o passado deixou, os sub- mete a um trabalho de corte, de rejuntamento, de limagem, de aparas, de encaixe e aprumo que os pde novamente para funcionar como acesso BLANCHOT. O espaco literdrio. Rio de Janeiro: Roceo, 1987. er BENJAMIN. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte ¢ politica, Sao Paulo: Brasiliense, 1996 (“Sobre o conceito de histéria”) 0 tecelao dos tempos... 119 ao que foi, como porta ou janela por onde podemos espiar ou adentrar a dramaturgia dos tempos idos: ue faz, com aparas das atitudes, dos costumes, das aces das massas, fermentar no- vas imagens dos tempos, que servem de alimento para nossos sonhos de continuidade, para nossa fome de identidade, para nossa inani¢ao de sentidos para a vida, para o estarmos aqui na terra, para a nossa exis- téncia finita e ilimitada. A historia pode ser delicioso pao que alimenta nossas vaidades, nossa onipoténcia, nossos preconceitos, que explica e justifica nossas desigualdades e diferengas, mas pode ser também o licor amargo que tragamos para nos darmos conta de nossas veleidades, de nossos crimes, de nossas injusticas, de nossas ignominias, de tudo que nos amarga a existéncia individual e coletiva. Historiador, o cozinheiro ‘mentarmos, mesmo que diferencialmente, os sabores, saberes e odores de outras gentes, de outros lugares, de outras formas de vida social e cultural. “Sempre o pirao de farinha da historia”. Farinha moida pelos moinhos do tempo, gros mimisculos de tempos que podem vir a fazer liga, podem vir a se espessarem, a engrolarem, a se cee sob a atividade concentrada, vigorosa, da pa do historiador. Pé feita de letras, habilidade narrativa, vortice da inguagem a tragar, misturare coneetar aS octane, ‘Provas novamente provadas, 0 estranho que se encontra, o sentido que se transporta, nen a fazer o transito entre o indizivel e o dizivel, © ontem e o hoje, o assignificante e o significado, o reaquecer do es- quecido dando novamente caldo, fazendo vir 4 tona, emergir, borbulhar depdsitos de tempo, camadas de acontecimentos que sedimentadas, que adormecidas no fundo do caldeirao da histéria, voltam novamente a cir- cular, a exalar sentidos e valores, projetos e desejos, voltam a ser 0 prato do dia. CO historiador ainda eliza todas as tapas de seu trabalho. Aq © parcelamento das tarefas ¢ a alienagao do trabalho ainda nao fizeram a sua aparigio de forma completa. Embora cada vez mais trabalhemos, O fim da hist6ria (Gilberto Gil, Parabolicamard, Wea, 1991). 18 Referénciaa trecho da mis Tecendo historias... 20 em equipe e sejam deixadas para os bolsistas de iniciacio cientifica as tarefas mais duras e indspitas, como levantar, fichar, copiar ou di talizar aquela documentagao coberta de poeira e veneno, infestada de fungos e tomada pelo mofo, aquele jornal que se rasga sé de pegar em suas pginas - pois, na oficina da historia a hierarquia entre mestres e- _aprendizes também est presente, de forma rigorosa, se manifestando na diferenga de remuneracdo, na hierarquia de poder e saber, no tipo de atividade que cada um exerce, sendo a relagio orientador-bolsista uma relagdo de exploragdo mascarada pelo cardter pedagdgico e educativo de que se reveste, tal como acontecia nas corporagées medievais -, 0 his- toriador ainda detém, ou pelo menos deve deter, o conhecimento sobre todas as etapas que compdem a sua atividade ¢ deve possuir um saber O fazer historiografico nao se aprende apenas nos bancos esco- lares, nao se aprende apenas ouvindo ou lendo como se deve fazer, nao se aprende lendo manuais de metodologia ou de técnicas de pesquisa. A historiografia exige o exercitar da imaginagao, da capa- cidade de estabelecer conexdes entre os estilhacos do passado, de pre- encher as lacunas entre os eventos, necessita do exercicio da capacidade de ficcionalizar, de intuir articulagées naquilo que sé nos chega em pe- dagos. 0 trabalho historiogréticoexige, sobretudo, a destreza narrativa, a capacidade de contar uma boa histéria, exige o desenvolvimento da capacidade de enredar eventos, de elaborar boas tramas. O historiador, assim como as rendeiras, deve saber conectar os fios, amarrar os nds, 14 Frangois FuRET. A oficina da histéria, Lisboa: Gradiva, s/d O tecelao dos tempos... 21 respeitando os vazios e siléncios que também constituem 0 desenho do passado, o entramado dos tempos. Para fazé-lo, deve submeter-se ao treinamento constante da habilidade de desfiar a narrativa, de utilizar as linhas de que dispde para urdir versdes do aaa ae discursar sobre © que ocorreu numa dada época. Como toda habilidade artesanal, s6 se Como toda atividade artesanal 0 trabalho do historiador o leva a sujar as mios, implica uma relacao corpo a corpo, subjetividade a subje- tividade, com o seu material de trabalho. O historiador se mistura € sai com as roupas, 0 corpo e a alma marcados pelo seu material de trabalho, pelos acontecimentos, pelas vidas e agdes que vem a por em cena. Assim como as mios € 0 corpo do artesao, a subjetividade do historiador sai calejada ou cheia de cicatrizes de seus encontros com as vidas humanas, com as Iutas, com as ilusées e desilusdes daqueles que vieram nos ante- ceder. 0 trabalho do historiador, nestes tempos que correm, se aproxi— _ma do trabalho do lixeiro, a apanhar os restos do que sobrou dos sonhos € grandes projetos e promessas que ja pretenderam ser 0 sentido do pro- cesso histérico. E alguém que, de posse das latas e garrafas vazias das grandes promessas da historia, agora atiradas num canto, amassadas, enferrujadas, chutadas sem ce- riménia pelos passantes, as submete a um trabalho de reprensagem, de releitura, de redefini¢do de sentido e utilidade, versdes do passado que depois de passarem por um trabalho de desconstrucio, de selecio, de modelagem, voltam a estar cheias de saber e de sabor, voltam a fazer sentido, voltam a influenciar a vida dos homens de hoje, que as podem tragar por terem novo valor. Aalienagio do trabalho tem dificuldade de se fazer presente em_ nosso oficio, Ao acabar seu trabalho, o historiador ainda pode sentir e ver a obra como sua, ele ainda pode colocar acima da capa do livro o seu Tecendo historias... 22 nome de autor, ainda pode dizer “este é 0 meu livro, o artigo que escrevi, este resumo em anais ¢ de minha lavra”. Ele vé seu rosto projetado sobre 0 que faz, se vé refletido no texto que acaba de escrever, se sente de pos- se do saber que ali foi plasmado, se sente proprietario daquele texto, até que alguma editora venha comprar a preco vil seus direitos autorais, que passam a pertencer a outro por, pelo menos, cinquenta anos. Poderiamos dizer que temos aqui a presenga da extracgao da mais-valia absoluta. O texto do histo- riador tem, como o artefato fabricado por um artesio, valor de uso, mas também, cada vez mais, valor de troca. O escrito do historiador é consumido pelo saber que encerra, pelas informagOes que veicula, pe- las elaboragGes éticas, estéticas e politicas que formula, pelos modelos subjetivos que fornece, pelo prazer ou fruigao que pode oferecer, pelos elementos de identidade e de localizacao temporal e espacial que cons- tri esse €0 sei valor de uso. Mas no podemos esquecer que hoje o tex- ‘a earn ee ton deles visam atender a demanda que vem das editoras, das empresas educacionais, da midia, do publico consumidor deste género, 0 que nao os torna ne- cessariamente ruins ou suspeitos. Mas quero chamar atengao para fato de que 0 historiador, tal como o artesio, o produtor direto, realiza, qua- se sempre, uma troca bastante desigual quando seu produto é colocado a venda. O texto do historiador, como 0 objeto fabricado pelo artesio, exige muitas horas de trabalho, é um produto que exige um_ trabalho extensivo, mas que sera irido por precos que estio muito longe corresponder ao tempo gasto para sua producao. O mesmo vai se dar na relagao entre pesquisadores ¢ auxiliares de pesquisa. Estes realizam as tarefas mais arduas e so remunerados de maneira vergonhosa. O traba- Iho do historiador, como o de qualquer artesio, se no penaliza o corpo com a intensividade do trabalho fabril, submetendo-o a velocidade da maquina, da linha de montagem, cobra do corpo a submissio a longas permanéncias em dadas posi¢6es, a repeticio de dados gestos, a tensiio permanente de quem esta em estado de criacao, de quem esta concen- trado num trabalho de invengio. Este desgaste excessivo do corpo nao é O tecelao dos tempos...| 23 levado em conta na hora de se remunerar seu trabalho, pois este é visto como um trabalho leve, como uma atividade cerebral, mental, que ndo exige ou desgasta a sua forca de trabalho. tem a frente. Como diz Michel Foucault," a raridade é a caracteristica do que chamamos de fontes para 0 nosso trabalho, Ao contrario do aguadei- ro, quando o historiador vai as fontes nao é para encontrar ai abundancia erefrigério, mas escasseze trabalho arduo. O historiador €um bricoleur_ que tem que dar forma a seus objetos a partir de cacos, de fragmentos, de restos, de rastros, de sinais.'* Para pér de pé seus sujeitos e seus objetos, speciali imagi ica, tem que ser um eximio costureiro dos retalhos de tempos que tem em suas mios, tem que ser um experimentado ventriloquo para tentar falar por aqueles cujas vozes ja se calaram, tem que partilhar a habilidade da bordadeira a.uma contiguragio do passado, ordenando o caos dos eventos que deixaram suas marcas em alguma forma de registro. ara os que so aprendizes deste artesanato, que esto dando os primeiros passos para 0 conhecimento dos mistérios que habitam a ofi- cina da histéria, queria apelar para que resistamos a fazer da historio- grafia uma producao industrial ou fabril, uma produgdo em série, uma producio afeita apenas as leis do mercado, uma mercadoria a mais nas prateleiras repletas de receitas de autoajuda. caesar ears de soot Nos comida storm: rem ludistas, nao precisamos quebrar as maquinas para que nossa arte de inventar o passado possa ser praticada. Os computadores fazem aqui- lo que os ordenamos. Embora em espanhol chamem-se ordenadores, quem tem 0 poder sobre eles ainda somos nés. Devemos lembrar que a pretensao de tornar a histéria uma ciéncia objetiva, metédica, racio- nal, realista, verista, essencialista é contemporanea & emergéncia da so- 15 Michel FOUCAULT. Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2007 (23* ed.). (“Nietzsche, a genea- logia ea histéria”). 16 Carlo GinznuRG. Mitos, emblemas e sinais. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1989. (“Sinais: rafzes de um paradigma indicisrio”). Tecendo histérias... 24 ciedade capitalista industrial, da sociedade das maquinas e do trabalho fabril. Muitos desejaram ser operdrios da histéria, tanto ao escrevé-la como ao pratica-la, apostando na sua refabricacio, maquinando o des- vendamento de suas engrenagens e a mudanga da roda que a presidiria, se apossando de seu motor e fazendo nele uma revolucio a todo vapor com muita energia. Homens de ferro e de nervos de ago em busca de implantarem de vez 0 futuro maquinado, fazendo o proceso histérico atingir a maxima aceleragio, estabelecendo um corte definitivo com 0 passado, para estancar num eterno presente, anulando de vez 0 tem- po, este nosso grande inimigo. Apostaram na técnica e na ciéncia como capazes de trazer a igualdade ea liberdade. Este sonho ruiu. Mas, como Se Abdicando de fazer da histéria uma gran- de usina de sonhos, mas regando a pequena, modesta, localizada, mas insubstituivel flor da esperanca que nasce em pequenos canteiros por todo mundo. Histéria que nao recusa as migalhas,” mas que com elas tenta pacientemente dar forma as temporalidades, agrupando-as num trabalho poético sobre a matéria da empiria e da utopia. Materialismo poético, mais do que dialético, contrarios que nao se resolvem em uni- dades, mas que revolvem as unidades e as unanimidades. Historia como fabricagao de objetos e sujeitos, como invencao incessante de formas para o passado, de tecelagem permanente dos tempos. Trabalho e arte comprometidos com discuss6es politicas, éticas e estéticas. A oficina do . Uma oficina que nao mata gatos,"* mas aberta a gatos e ratos, aberta a mulheres, criancas, prosti- 17 Frangois Dosse. A histéria em migathas. Sao Paulo: USC, 2003. 18 Robert DaRNTON. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1988. O teceldo dos tempos...| 25 tutas, boémios, ladrées, sodomitas, loucos, bruxas, presos, artistas, sal- timbancos, palhacos de oficio e na vida. Uma historia que nao se dirige apenas 4 razio, 4 consciéncia, mas que da lugar aos sentimentos, aos sentidos, as paixdes, aos desejos, aos delirios. Uma histéria que aban- done sua paixio tragica pela desgraca, pelo sofrimento, pela morte. Que nao deixe de falar das injustigas, das misérias, da exploracéo, mas que seja capaz de ver que ai também hi 0 riso, a alegria, a felicidade. Tudo o que desejo é que os leitores deste texto sejam felizes praticando 0 oficio de historiador, fazendo dele a maior arte que pode ser praticada por cada um de nés, arte bem brasileira, a de driblar com lJuta, resisténcia, deter— minagao, coragem, sabedoria e saber todas as situagées, forgas, relagées sociais e de poder, as formulacies culturais e simbélicas que nos tentam fazer desistir da vida e de nela ser felizes. Ao poder, ao capitalismo in- teressa pessoas infelizes, deprimidas, melancélicas porque submissas, submetidas, derrotadas e prontas a comprar a mais nova droga que 0 mereado oferecer. Fagam de seu oficio sua droga diéria, faca da histériae dade burguesa, Resistam encantando a vida, dando a ela arte ¢ astticia, Tomem ciéncia de que sé fazendo da vida e da histéria uma arte, tanto como fazem 0s artistas ou como fizemos todos quando meninos, é que seremos felizes. Que vocés, como historiadores, sejam artistas e arteiros € tudo o que desejo para aprendizes de feiticeiro no atelié da histéria. Tecendo histérias... 26 Sistema de Bibliotecas - UFBA. fecendo hist6rias :espago, politica e identidade / Antonio L. Negro, ton Sales Souza, Lgia Bellini, orgs. ~ Salvador : EDUFBA, 2009. 310 p. Originalmente apresentado ni P6s-Graduagao em Hist6ria das Regides Norte, erg Seminario de Pesquisa dos Programas de Nordeste e Centro-Oeste ISBN 978-85-232-0645-1 1. Brasil - Historiografia. 2. Brasil - Histéria, 3. Religito - Histria. 4. Politica, 5, Identidade. 6, Hist6ria social. I. Negro, AntOnio I.. Il. Sales Souza, Evergton. I Bellini, Ligia, ool 981

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