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C. G. JUNG Entrevistas e Encontros Coordenacio de WILLIAM McGUIRE € R. F.C. HULL Tradugfo de ALVARO CABRAL EDITORA CULTRIX Sio PAULO A MENTE IMORTAL DO HOMEM Jung foi convidado pela Clinica Tavistock, em Londres — oficialmente denominada Instituto de Psicologia Médica — a realizar uma série de cinco conferéncias, que ele proferiu de 30 de setembro’a 4 de outubro de 1935, para um ptiblico de cerca de duzentos médicos e médicas. Uma transcricéo mimeografada dessas conferéncias circulou particularmente com o titulo de “Concepgées Psicolégicas Fundamentais”; somente em 1968 o texto foi publi- cado como Psicologia Analitica: Sua Teoria e Prdtica.1 A imprénsa de Londres tomou conhecimento da presenca de Jung e, durante sua visita, numerosas entrevistas foram publicadas, das quais é digna de nota a do Observer de 6 de outubro de 1935. Ela é aqui resumida. “As gargalhadas do Dr. C. G. Jung podem ser, neste momento, ouvidas em Londres, apés um siléncio de dez anos” — assim comega o andnimo. repérter, e prossegue descrevendo o enor- me bom humor de Jung. “Enquanto ele falava, tornou-se evidente a ciséo abrupta entre sua prépria teoria e pratica psicolégicas e as de Freud, de quem ele se separou intelectualmente h4 varios anos. Até que ponto a cisdo é abrupta revela-se numa sentenca tipica de sua maneira imprevista e epigramética de falar...” O sexo é um campo de recreagao para cientistas solitdrios. Tanto se poderia estudar a psicologia da nutrigéo quanto a psi- cologia do sexo. O homem primitivo, é claro, tinha instinto sexual, mas estava muito mais profundamente preocupado com a alimen- taco, onde obté-la e em que quantidade. Alids, por que basear a psicologia de um homem em seu Angulo menos favordvel? Quando me ocupo de alguém que é mentalmente desequilibrado, n&o estou preocupado apenas com uma funcao de sua mente e de seu corpo. Procuro nele o_homem antigo. Procuro localizar os es- tratos da mente humana desde seus primérdios, tal como um gedlogo estuda a estratificagdo da terra. O medo do homem antigo agachado junto a um riacho esté em todas as nossas mentes inconscientes, assim como todos os outros medos e especulagdes nascidos da expe- tiéncia do homem através dos tempos. A mente da espécie humana é imortal. Por exemplo, recordo ter sentido subitamente, durante um abalo sismico na Suiga, que a terra estava viva, que era um animal. Re- 1. E como “As Conferéncias de Tavistock” em CW 18. 92 conheci imediatamente a antiga crenga japonesa de que uma gigan- tesca salamandra vive no interior da Terra e que os sismos aconte- cem quando ela da voltas ao corpo durante o sono? Uma paciente minha disse-me certa vez que, sempre que um relampago rasgava o céu noturno, ela via um grande cavalo negro. Isso é uma outra idéia primitiva — que o raio era uma perna de cavalo escoiceando para baixo, o cavalo de Odin.? Se um homem ou uma mulher deixa de poder comunicar conosco, dizemos que ele ou ela enlouqueceu. Mas se eu puder descobrir neles 0 homem an- tigo, se puder explicar o grande cavalo negro no relampago, entao talvez seja capaz de fazé-los comunicarem comigo. Poderei restau- rar a ponte — mais facilmente ainda se puder descobrir, através dos sonhos deles, 0 que est4 em suas mentes inconscientes. E por isso que me-correspondo nao s6 com cientistas médicos mas também com estudiosos de religido e mitologia em todas as partes do mundo. E por isso que estou atualmente estudando textos medievais no Museu Britanico. A camada medieval em nossa mente inconsciente é a que est4 mais préxima da superficie. O estudo da ciéncia médica esta em transig&o. As relacdes entre mente e corpo estéo sendo mais plenamente apreciadas. Nao que haja algo de novo nisso. Os doutores medievais estudavam sonhos. A medicina oriental baseia-se na psicoterapia — o tratamento de doengas por influéncia hipnética. A psicologia ainda nao é, evidentemente, uma parte reconhecida do curriculo médico. H4 muito entusiasmo, mas também existe mui- ta incompreensao e interpretacéo errénea. No entanto, eu tenho. quatrocentos estudantes em Zurique, e os tribunais criminais cha- mam-me, como titimo recurso, se so incapazes de decidir sobre a culpa ou inocéncia de um suspeito.5* Dentro de vinte anos, teremos uma organizacio de psicdlogos clinicos diplomados, tal como existe hoje a Ordem dos Médicos. 2. Cf. ibid, § 67 (onde Jung contou a mesma histéria), n. 17: “De acordo com uma lenda japonesa, 0 mamazu, uma espécie de bagre de dimen- s6es monstruosas, carrega em suas costas a maior parte do Japio e, quando irritado, movimenta a cabega ou a cauda, provocando assim abalos sismicos” (nota dos coordenadores). 3. Ver Symbols of Transformation (CW 5), p. 277. 3a. Cf. “On the Psychological Diagnosis of Evidence” (orig. 1937), CW2, §§ 1357 e ss. Jung tinha sido solicitado pelo Tribunal Criminal do Cantéo de Zurique, em 1934, a apresentar um parecer de especialista sobre um acusado de homicidio, usando o experimento de associacSo. 93 E o seu préximo livro? Est quase pronto. Vou intitulaé-lo “Simbolos Oniricos do Pro- cesso de Individuacio”.t E sobre o modo como o homem torna-se ele mesmo. O homem é sempre um individuo, mas nem sempre é ele mesmo... “Seja vocé mesmo”, como dizem os americanos. 4. A palestra de Jung na Conferéncia de Eranos, em agosto de 1935, assim intitulada, foi incluida em The Integration of the Personality (1939) ¢ revista mais tarde como Parte Il de Psychology and Alchemy (CW 12). 94 O HOMEM DE DOIS MILHOES DE ANOS A Universidade de Harvard convidou Jung para a sua Conferéncia Tri- centendria sobre Artes e Ciéncias, em setembro de 1936, a fim de participar num simpésio sobre “Fatores Determinantes do Comportamento Humano”.1 Quando desembarcou em Nova Iorque, Jung tinha preparado uma nota para a imprensa, especialmente dedicada a expor sua posi¢fo politica — ou, como ele insistia em afirmar, apolitica2 Apés deixar Nova Iorque, a fim de em- barcar para a Inglaterra, foi entrevistado pelo New York Times, no Hotel Ambassador, e o artigo, intitulado “Roosevelt ‘Great’, Is Jung’s Analysis”, saiu na edigio de domingo, 4 de outubro de 1936. O texto que se segue omite os comentarios do jornalista, exceto para as citagdes indiretas de Jung, apresentadas entre colchetes, Antes de vir aqui, eu tinha a impresso que se poderia obter desde a Europa de que ele [Roosevelt] era um oportunista, talvez até uma mente varidvel, inconstante. Agora que o vi e ouvi, quando falou em Harvard, convenci-me, porém, de que é um homem forte, um homem realmente grande. Talvez seja por isso que muita gente nao gosta dele. [O Dr. Jung rendeu sua homenagem aos ditadores, explicando a ascensao deles como resultado do esforgo dos povos para delega- rem em alguém a tarefa complicada de administrar sua existéncia coletiva, de modo que os individuos possam ficar livres para se empenharem na “individuacdo”. Definiu este termo como o desen- volvimento por cada pessoa de seu préprio padrao inerente de exis- téncia.] As pessoas tém-se mostrado perplexas com a guerra, com o que tem ocorrido na Rissia, Italia, Alemanha, Espanha. Essas coi- sas cortam-lhes o fdlego. Perguntam-se se vale a pena viver, porque perderam suas crengas, sua filosofia. Indagam-se se a civilizacSo ter4 realmente feito qualquer progresso. Eu chamaria progresso ao fato de, nos dois milhdes de anos que existimos na Terra, termos desenvolvido um queixo e um tipo 1, Para a contribuicio de Jung, “Psychological Factors Determining Hu- man Behaviour”, ver CW 8, §§ 232 € ss. 2. Nenhuma publicagdo da nota para a imprensa foi localizada, mas o seu texto figura em CW 18, §§ 1300-1304. 95 decente de cérebro. Historicamente, aquilo a que chamamos pro- gresso é, no fim de contas, apenas uma r4pida expansao do uso de carvdo e petréleo, Quanto ao resto, néo somos mais inteligentes do que os velhos gregos e romanos. Quanto 4s afligdes atuais, é impor- tante recordar simplesmente que a humanidade j4 passou por tais coisas mais de uma vez e deu provas de um grande sistema adap- tativo, armazenado em nossa mente irconsciente. [E a esse grande sistema adaptativo em cada individuo que ele se dirige, explicou Jung, quando um: paciente o procura, derrotado em sua luta com os problemas de sua existéncia individual.] — > Suntos, o paciente e eu voltamo-nos para 0 homem de dois mi- IhGes_de_anos que esté_em todos nés. Em tltima andlise, a maioria de nossas dificuldades provém de perdermos o contato com os nos- sos instintos, com a antiquissima e nao esquecida sabedoria armaze- nada em todo nés.* E ae estabelecemos contato com esse ancifo em nés? Em nossos lsonhos.Eles so as manifestagdes claras de nossa mente in- consciente. Sao 0 encontro da histéria racial e de nossos problemas externos correntes. Em nosso sono, consultamos o homem de dois milhGes de anos que cada um de nés representa. Batemo-nos com ele em varias manifestagdes de fantasia. E por isso que peco a um paciente que escreva seus sonhos. Usualmente, apontam o caminho para ele como individuo. [O Dr. Jung disse que sonhamos 0 tempo todo — é normal sonhar. Aqueles que dizem ter um sono sem sonhos, insiste ele, meramente esquecem o que sonharam imediptamente apés desper- tarem. Em todas as linguas, sublinhou, existe um provérbio que alude a sabedoria de se dormir sobre qualquer problema dificil... Mesmo quando despertos, concluiu 0 Dr. Jung, sonhamos; fantasias desen- freadas perpassam rapidamente pelos recessos mais fundos de nossas mentes e, ocasionalmente, chegam ao nosso conhecimento quando nossa atengio aos problemas externos imediatos é reduzida pela fadiga ou a divagacao.] Ha a esperanga de reparar um colapso sempre que um paciente tem sintomas neuréticos. Eles indicam que o paciente nao esta de acordo consigo mesmo e os préprios sintomas neuréticos diagnosti- cam usualmente o que est4 errado. Os que nao tém sintomas neu- r6ticos estao provavelmente fora do alcance da ajuda por quem quer que seja. 3. Cf. “Uma Conversa Com Estudantes no Instituto” (1958), ver pp. 319 © ss. 96

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