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Fonetica do Portugués do Ceara MARTINZ DE AGUIAR GENERALIDADES Falada em todas as partes do mundo, a lingua portuguesa tem entretanto como principais vivendas 0 Brasil e Portugal. Transportada pelos colonizadores portugueses para as terras brasileiras, onde veio ex- perimentar a influéncia de outro meio social e fisico e da descontinuidade territorial, pér-se em contacto com linguas analfabéticas, africanas e americanas, de estruturas completamente diferentes da sua, e ser, a final, falada por uma raga de mesti¢os, em que predomina o branco, mas sio elementos ponderdveis o negro e o aborigine, tinha fatalmente de sofrer alteragdes aprecidveis, e elas se tém manifestado, especialmente no dominio da fonética, que, a par do vocabuldrio, constitue a feigaéo mais forte da nossa dialetagaéo. O estudo dessas alteracdes, que é de grande im- portdncia para o aperfeicoamento do estudo mesmo da fonética propriamente portuguesa, pois muitos ca- sos obscuros, muitos problemas do portugués, se hao de aclarar e resolver 4 sua luz, como tenho conse- guido fazer a alguns, deve ser cuidudosamente rea- lizado pelos filélogos de cada zona linguistica, a tim de que se possa obter a média da proniincia portu- guesa no Brasil, a qual ira servir de padréo, e de ponto de referéncia aos trabalhos posteriores, ja en- 272 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ téo munidos de petrechos que falecem inteiramente aos nossos. Temos j4 algumas publicagdes notéveis acérea do assunto. Ade Amadeu Amaral, que nao parece livro de amadur, tel a exatiddo cientitica que de téda ela transluz, é de inestimavel valor e, jun- tamente 4s dos Srs. Sousa da Silveira, Antenor Nas- centes e Mario Marroquim, vem provar-nos, compa- radas tédas com as observagées que deixo nestas paginas, tomando por base o Ceara, que ha um cer- to namero de manifestagdes fonéticas mais ou me- nos idénticas em todo o vasto territério do Brasil, as quais constituirio de certo o cabedal comum, sé- nico, da futura lingua brasileira. (1) A tragmentacao dialetal niéio parece tao grande como era de esperar da vastidéo do territério. Quaa- to ao norte, pelo menos, talvez nfo erre quem, ti- yando uma linha reta do Acre ao Atlantico, cortando uma poota de terra da Bolivia, o norte do Mato-Gros- so, de Goids e da Baia, e separando do resto do Pais a parte désses estados que fica acima dela, bem como o Acre, o Amazonas, o Paré, 0 Maranhéo, 0 Piauf, o Cearé, o Rio-Grande do Norte, a Paraiba, Pernambuco, Alagoas e Cergipe, localize ai, nessa (1) Este estudo, que aparece agora refundido, mas com aspec- {2 pouco diferente do anterior, fei publicado em 1922, com elemen- 10s pacientemente coligides durarte anos a tio. Trabalhavam simwtaneamente 0 autor destas liahas, aqui no Cearé, Amadeu A- mural, em §.-Paulo, e os Srs. Sousa da Silveira e Antenor Nas- centes, no Rio-de-daneiro. Fomos, pois, os inicladcres dos estudos dtaletolégicos de base fonética e cientifica no Brasil. Mas foi Ama- deu Amaral quem primeiro publicou © DiclectoGaipira, em 1920. Em 1421, o Sr. Sousa da Silvel‘a estampava, na Revista de Lingua Porta- gaesc (Janeiro, I, 9), a sua admiravel conferéncia @ Lingua fo- ctonal e o sea Gsiudo. A final, em i922, publicdvamos, eu, o presen- te trabalho, incluido no meu livro Repcsse Geftico da Gramdtica Poringuesa, cuja segunda edi¢io preparo, eo Sr. Antenor Nas- centes, O Gingucjat Garicea em 1922. Apareceram depois outros estudos, sendo os mais notdveis A Cingua do ferdeste, do Sr. Mé- rio Matroquim (1934), € G Portugués do Brasil, do Sr. Renato Mendon- ga (1936), Nao se deve também esquecer © Dialecto Gopicu. do r. Jarge Guimaries Daupias, onde ha observacdes de admiré- vel rigor cientifico. O livro do Sr, Mario Marroquim encerra, in- felizmente, alguns erros de interpretacao, e talvez até de obser- yvagdo, e 0 do Sr. Renato Mendonca, além de falhas Idénticas, n&o corresponde bem_ao titulo, que pedia mais larga exposigao da nossa linguagem. Entretanto, ¢ de esperar que 08 seus auto- res fagam desaparecer ésses defeitos nas edigdes futuras. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 273 imensa regiaio, um s6 dialeto. E’ incgdvel que ha di- ferencas entre alguns pontos. Na regiao do baixo Amazonas, 0 povo diz canua, cuco, prua, nao com 6, nem prépriamente com u, mas com uma vogal mais aproximada de u do que de 6, e essa prontncia se vai ai tornando geral. No Maranhdo, no Piaui, no Rio-Grande, na Paraiba, em Pernambuco e em Ala- goas se diz tecto, como nv Ceara; no Amazonas, no Parad e, menos comumente, também no Maranhao, teto, como em geral no sul. Tiu, fiu, piu, etc. (tio, fio. pio) sio gerais no Amazonas e no Pard. No Piaui, profere-se o J lusitano; em Pernambucoe Alagoas, 0 i que vem depois de vogal passa frequentemente a ry ou cai; no Ceard, éle passa a wu, aqui menos, ali mais caracterizadamente. A verdade, porém, é que semelhantes diferengas se podem verificar no mes- mo estado. Em considerdvel zona do Cearé.o 1 é proferido como no Piauf e o7 final de sflaba, 0 qual é velar em tédas as camadas sociais, passa a 7 (céi- go, coinets, péito: corgo, corneta, perto) no falar matuto de alguns municfpios. O Sr. Renato Mendonca (1) afirma que «nada caracteriza tio bem o cearense como a abertura das proténicas: sétembro, dézembro, tdlerar, pronome», e ajunta que «o paulista tende a ensurdecer essas vogais: tisora, piqueno, tabuleta, dumingo». H& ma- nifesto engano nessa alirmagdo. Nao s6 um cearense, mas qualquer individuo da zona que delimitei, pro- nunciara séfembro, dézembro, iélerar e prénome, com oe e 4tonos abertos, como pronunciara sdfrér e dé- vér, com o e e dtonos fechados. Apenas, ao lado de idlérar, poder4 também ovvir-se tulérar. Assim ocor- re no Ceara, onde se diz butar (com wu, e nio com 6), a0 passo que, no Maranhdo, se encontra bdlar, embora se diga menos frequentemente do que butar, e 6 sé bétar o que se ouve no Piaui e na Baia. No Ceara, pronunciamos féchdr (fécho); no Maranhao, féechdr (fécho), a par de féchar (fécho), pronuncia mais rara; nas fronteiras do Maranhdo com o Piauf, e adjacéncias, féchar (fécho); na Bafa, féchar (fécho). Quanto a liséra, piqueno, tabuleta e dumingo, ha- () O. cit, p. 225, fi REVISTA Do INSTITUTO DO CEARA’ yemos de. distinguir dois. casos. Tiséra, piqueno:e dumingo 6 pronincia de-quase todo o Brasil, e nado 86 de S.-Paulo. Tabuleta é‘palavra pronuncjada como se escreve em todo-o dominio -da:lingua” portuguesa. Se alguém por acaso diz tavdléta, comete apenas um érro adquirido na maé‘leitura de uma palavra er- radamente escrita. De fato, :gratias como ¢upolave Jtaboleta sio inexplicéveis, por que nao correspor- “dem as origens e nado traduzem a manifesta ¢ao de um fato fonético. (1)- oa Com .o8 apontamentos que tenbo, colhidos da *boca.dé alufios.recém-chegados dos diversos pontos “Superiores a -reta limitadora tracada, nao me seria talvez imposstvel fazer uma exposigio mais ou me- ‘nos satisfatéria da fonética daquilo a que chamarei @ialeto nortista; mas, para mais completa exacgao; quero restringir-me désse propésito, quero abranger apenas o Ceard, onde nasci, de onde nunca me re? tirei, ¢ cuja prondncia; como ia disse, hd muitos anos, estudo. net Antes, porém, dé entrar na exposicéo metédica dos fatos fonéticos, cumpre-me, para poder formular uma’ lei, recordar que, atualmente, as vogais pretd. nicas’sio em geral surdas no portugués. da Penin- - gula, valendo uo 0 e sendo caduco o e. Podemos entretanto afjang¢ar, com a mais absoluta :certeza, que no era essa a prosddia dos tempos da coloni- zacio. Ainda ‘entéo, essas vogais. soavam distinta- mente, embora ji se tivesse manifestado o ensurde- cimento, que dinda hoje nio atingiu as yogais abertas resultantes da‘crase de hiatos anteriores, e do contacto com grupos ‘coasonantais, Encontrando no Brasil : pronincia lénté é explicite,.contrastante com a pro- nlincia enérgica’ e répida de Portugal,estavam elas agseguradas da-sua clareza.-Prova cabal 6 a conju- gavao” ‘dos verbos terminados em :oare war, ear e id (860 6. suo, vadeio e vadio). Se néio: houvesse di- ferencas fonéticas nos temas, ndo haveria distingdes nas S em que- recafssé o acento nas vogais 0, i So" ‘assim : também ‘se’ podem " explicar os (1) Amadeu Amaral bata no miésmo engano. Oo cit., p. 24. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 275 casos nao explicaveis pela fonética local), da pronin- cia nortista. O que nao se pode dizer com rigor é se 0 timbre atual representa o antigo. Quero crer que 0 tim- bre primitivo fésse aquele que determinasse a quan- tidade latina, mas o dos tempos da colonizagéo ja estivesse sujeito 4s varidveis contingéncias de hoje. Depois dessas consideracdes, podemos enunciar, com perfeita seguranca, a regra geral a que obede- ce a pronincia das voguis o e e, preténicas, da dia- letagdo do Ceara: AS VOGAIS TONICAS COMUNICAM O SEU TIM. BRE AS VOGAIS PRETONICAS. E’ um fenédmeno de acomodagio vocalica, de assimilagdo, de metafonia,e vamos provar-Ihe a exa- tidio com os exemplos mais variados:—sécrétdrio, agréssdo, cécém, lévar, navégar, élétrico, sétembro, dézembro, sézdo, élégdncia, abéebérar, bélota, guér- rear, aberrar, cégar, bédel, abnégado, salésiano, dé- vendo, dévemos, devérd, dévérds. dévéremos, dévérdo; abastécér, éléito, ségrédo, guérréiro, rébéco, alégréte,dé- ver, dévéres, dévérmos, dévérdes, dévérem, dévéis, dévés- te, dévéu, dévéstes, dévéram, dévéréi, dévéréis, dévéi, dévésse, dévésses, dévéssemos, dévésseis, dévéssem,; morgado, mérdaga, ubarrotar, sélidéu, sdlene, mor- domo, névembro, mormaco, formdo, gdlada, abemd- lar, mortalka, batoré, sdgobrar, sdldado, gostar, d6- brar, rolar, gélfada, holocausio, enedstar, Holanda, dossel, enzotar; s6frér, céstéiro, mérrér, mérdér, dé- bréz. c6lchéte, moléza, félguédo, bléquéio, béchdrno, bélséiro, cobrélo, célésso, cécéira eéchéiro, ddldso, mo- dérra, porquéira, cordéiro, méléiro, déloréso, tér- néira, décéiro, modlosso. Essas quatro dizias de palavras mostram bem que a regra geral é verificar-se a metafonia. As discorddncias explicam-se. Abaétdr, abalofdr, cérca- dor, bébarrdo, abobddo, por exemplo, conservam o timbre das bases dbo, bébér, cercar, baléfo, baéta. Este fato melhor se verilica nos trés exemplos se- guintes: ébrio—ébridtice, ébriativo, ébriédade, ébriez, ébrifestante, ébrifestivo, ébrirridente; péd: a—pédrada, pédrado, pédral, pédranceira, pédrdo, pédraria, pé- drégal, pedréguento, pédréegusho, pédrento, péedrinha, 276 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA' pedrulho, empedrar; copo—copdo, coparrdo, cdpdzio, copinko, copista, cépito, copdfone. As vezes, pela sim- ples razio de se considerar uma palavra derivada de outra, embora nfo o seja, o falso derivado tem o_ timbre do falso primitivo. Esta nestas condi- goes abécéddrio, que é o latim abecedarius, mas foi reputado derivado de abécé, ou dessa palavra foi apro- ximado. Os mesmos derivados, porém, esto sujeitos a mudanga de timbre, particularmente se de algam modo se atenuou a forca do primitivo. Temos assim abélhdo, abélhinha, abélhéira, abélhéiro, de abélha; mas abilhudo (abethudo), com influéneia do u, como veremos daqui a pouco. Temos bécdo, bécdrra, béqui- nha, de b6ca; mas bocal. Em palavras como geologia, quiroscopia, Filosofia, fisiologia, acrosofia, psicelo- gia, pantosofia, pronunciadas com o primeiro o aber- to (o segundo vale uz), nao se verifica a acomodacgao vocdlica, pela consciéncia que existe de que elas sdo compostas, como greco-turco, fisico.quimico. En- tretanto, a pronuncia nao afetada é ja filuzufia, com influéncia do i, como veremos daquf a pouco. Em geografia, deu-se uma reagdo da escrita contra a pronuncia, 0 que nao 6 raro, como em Deodato, por alguns pronunciado déddato. A pronincia portugue- sa j4 era gidgrafia quando o vocabulo entrou no Brasil, explicando-se assim 0 nosso popular jégrafia, em que se deu a consonantizagdo do 7 e a sua con- sequente absorpcao. Nés passdmos a ler e pronun- ciar gédgrafia, para o que talvez tenha concorrido também o o com que esté em contacto o e. O é ténico, que 6 semi-aberto, comunica a aber- tura ao e e a0 0, podendo o e ser por éle assimilado e oo passara u. coriza, Poti; Péri, Céet; currido, curria, curriria (ao lado de cérrér, cérréréi, cérré- rdo); cicilia (Cecilia), biziga (bexiga), agridir (agre- dir), midicina (a pesar de médico), cidilha (cedilha). O u ténico, que é igualmente semi-aberto, co- munica a abertura ao 0 e ao e, podendo o o ser por éle assimilado e o e passar at: Perdé (também Péri, de certo por iniluéncia paraense), méliria (ao lado de méléso e méléiro); esedrbuto, fortuito; muldura, pustura, buquinha (deijo, ao lado de béguinha, boca pequena), murrinha, dumingo; piri, sigundo. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 277 As vogais nasais sfo semi-abertas. Nio temos vogais nasais fechadas seniéo em casos especialissi- mos, devidos a influéncias ritmicas. Ainda que o tim- bre parega indeciso, o que nao raro se verifica, re- conhecemos, pelos seus efeitos, que 6 aberto. Daf, légdo, pogdo, pérdéremos e pérdérdo, iguais a pér- dérds e pérdérd, juntamente com pérdéréi e pér- déréis. Em aculher, urelha, bulacha, susségo, pudér, en- szuvalhar, purtugués, sutaque, bucado, aburrécér, gur- gela, murcego, cumer, muleque, suciédade (também séciedade, por influéncia de sdécio), guvérno, tuleima (também ié6léima, com influéncia de télo), bitume (também béltume, por reagio da escrita), pigueno, di- cifrar, girigonga, sipultar, ilugio, iducagdo (a pro- Mincia élugio e éducagdo é devida a leitura), milhor, miméoria, minino, mixiricar, niguciar, tisouro, etc., temos de atribuir o ensurdecimento, pois que o nao - podemos explicar por meio da nossa fonética, ao fato de jd ter vindo de Portugal. Algumas vezes, 0 timbre do radical é tenazmen- te mantido em tédas as formas déle provindas, mas nao pode resistir a vogal da silaba proténica, prin- cipalmente quando se trata de bissilabos. Assim, 0 e da silaba inicial per, prefixal ou néo, é aberto, como em pértencer, mas diz-se pérdér, com é, por causa da contiguidade da sflaba tonica; mélar tem é, e ésse @ mantém-se até em mélarei, mélareis, mas nao resiste em méléi, méléu, méléis. Parelhamente, dizemos abdbéréiro, de abdbora, e préféssér, ao lado de proféssar. Estudamos até aqui a metafonia regressiva, de- terminada pela silaba ténica. Ela pode também ser determinada pela proténica. F’ o que se d4 com o sufixo éjdr, que nao sé mantém sempre o timbre fe- chado do e, mas até pode comunica-lo as outras vogais pretonicas. Assim, se podemos dizer que em corvé- jdr se manteve o 0 fechado de corvo, como em es- postéjdr, 0 o aberto de posta, jé nado podemos dizer igual coisa com relagdo a féstéjdr, derivado de fésta, e espéstéjdr, prontncia que esté levando aquela de vencida. Deve-se notar ainda a metafonia progressiva, 278 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ que ora parte das sflabas iniciais para a proténica, ora da ténica para a posténica. Se em vérdégar, o primeiro é preténico fechou o segundo, que nao so- freu influéncia do a final, em espérnégar, que temo mesmo sufixo, o segundo e deu o timbre ao terceiro. Em abébéra, tdvola, pécora, quirdptéro, épdca hds- pede, etc., a metafonia partiu da ténica para a pos- ténica. Tréfego, com o segundo e fechado, talvez seja caso diverso, por que 0 sufixo A4tono égo man- tém o é: drdégo, trdfégo. E é por isso que se diz pédrégéso, a pesar de pédrégulho, por que se viu ai falsamente, o sulixo égo. O estudo minucioso dessa multidao de fatos leva- -nos A conclusao irrefragdvel de que, repitamos e alarguemo-nos, na época da colonizagaéo do Brasil, a lingua portuguesa ainda nao tinha perdido na Eu- ropa a clareza das vogais 4tonas, pretonicas ou me- taténicas, que ja comecavam entretanto a ensur- decer. Posta nesses termos a minha teoria, vou, para mais completa evidenciagao, tratar de comprova-la na indagagdéo de alguns fatos. Ha em portugués o verbo engazupar, que co- mumente pronunciamos engazopar. Por que? Tera o @ ténico influido também no uw proténico, a ponto de abri-lo em 0? Nao. Engazupar sotreu a influéncia analégica de engazdfilur, seu sinénimo na accepgio de prender e termo popular tanto no Brasil como em Portugal, ou entiéo acompanhou a conjugacao dos verbos terminados em opar, como topar e ga- lopar. J& vimos que o e radical de dever est4 sujeito a vogal acentuada: dévéréi, dévérds, diviria. Como é entéo que se diz, sem metafonia, dévamos e dévdis, quando o e fechado vem até imediatamente antes do @ aberto? Deu-se ai a f6rga analdgica das outras pessoas do presente do subjuntivo, que tém tédas o acento ténico no e fechado radical. O nosso verbo amolengar diz-se do individuo que se torna molenga, preguig¢oso, fraco ou doente, e também daquele que se amuthera, O diciondrio de Candido de Figueiredo, o mais rico e au‘orizado da lingua portuguesa, a pesar de todos os seus defeitos, REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 279 regista amolgar, amolegar, molengar, mas nao men- ciona amolengar. Nio o traz também o vocabuldrio popular do Sr. Alberto Bessa. E’ portanto um brasi- leirismo... Consideremos 0 vocdbulo do ponto de vista fonético. Pronuncia-se amulengar e, menos ve- zes, amdlengar, Assim sendo, devemos ter tira- do amdlengar de mole, havendo-se dado depois o ensurdecimento do o preténico. Mas qual é a lei de fonética local que explica tal ensurdecimento ? Te- mos jé elementos seguros para afirmar que nenhuma. Que fazer entdéo? A fim de proceder de acérdo com os principios cientiticos, partiremos de amulengar para amdélengar, e, nestas condigées, 0 que nos leva a filologia a aceitar 6 que a palavra se tenha for- mado em Portugal, ao lado de molengar (conf. sen- lar e assentar), passando para o Brasil ji com o 0 ensurdecido, e aqui, ao influxo de mole, que se via bem ser a sua base, vindo a ter o aberto. Serdo aplicdveis os mesmos principios a pala- vra servico, propunciada comumente sirvigo e pela plebe sérvigo? O fato aqui € outro. Em siérvigo, o primeiro ¢ é normal, resulta da assimilagéo de um é preténico a um 7 ténico. E como se prova que i, junto a re f, tende a ser pronunciado é pelos anal- fabetos (défamar, vertude), chegamos a conclus&o de que sérvico 6 apenas mera alteragdo de sirvigo, Expliquemos agora bé-noile e bd-tarde, expres- sdes de uso em tédas as camadas sociais, e estra- uhas a primeira vista, por aparecer numa _o nome boa transformado em 06 e noutra em bom. O profes- sor inexperto, de supetio consultado, assegurard que so dois erros grosseiros, até por que hé uma hor- rivel discordincia genérica entre bom e noite... Ve- jamos, porém, a que conclusées nos leva um estudo calmo e refletido, Boa, feminino de bom, junto aos nomes tarde e notte, em expressdes de saudagio, veio a constituir com éles um sé todo prosdédico, um grupo ritmico, e, em vista de ser proclitico, perdeu a silaba final, do que resultaram as formas bé-tarde e bé-noite, semelhantes as formas San-Pedro, Mon- santo e Val-de-Lébos. Bé-tarde, tendo como vogal té- nica um @ aberto, passou a pronunciar-se 0d-tarde, por metafonia. Em 66-noite, poder-se-ia manter 0 6 280 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ preténico por causa do ditongo of da silaba ténica, mas, em concomitancia com uma consoante nasal, nasalou-se : b6-noite. Convém notar que o 6 de que acabo de tratar nada tem com o bé do linguajar do povo portugués, o qual € masculino, est por bom: —'Sté em béa mao. Bé proficio—acentuou o Zé da Dorna. (Sousa Costa, «Ressurreigéo dos Mor- tos», p. 15.) —Ah 66! replicou éle, corajéso. (Ib.) —Quem é bé ja nasce feito, e quem se quer fa- zer nao péde. (P. 145) —Bem haja, snra. morgada...—reforgou a Olim- pia, ainda de tijela na mdo.—B6 frango, (P 173) «.0Ta trocavam com eles os bés dias frater- nais....... (P. 182) —Se se 6 06, A del-rei que 6 com maus fins: {P. 345) O adjetivo aldprado aplica-se ao individuo que anda mel vestido. Como explica-lo? Ha em portu- gués o substantivo lérpa, que se diz dum palerma. Ora, como palermas e lorpas é natural que andem mal vestidos, chamou-se alérpddo ao sujeito pouco asseado e decente no trajar. Como sao frequentes as Met&teses na linguagem popular, de que é exemplo tipico quarto cecrente, do jargio dos pescadores, por quarto crescente, alérpddo veio a dar aléprddo, onde se perdeu com a forma a lembranga da pala- vra-base. Al6prddo teve substituido o o fechado por um aberto, por que a vogal ténica tem timbre aberto. Pouco difere dessa a explicacdéo de aldpado, que se emprega em relacdo ao individuo voraz, co- miléo. Sendo voraz o /6bo, chamou-se alébddo aque- le que se Ihe assemelhava em assuntos de comer. Al6- bddo passou para aldpddo, assim como batota para patota, e alépddo transtormou-se em aldpado. No coloquialismo, até ds vezes entre pessoas eru- ditas e de distingio social, aparece a usadissima pronuncia popular rébo, rébas, afrézro, afrézas, esp6- co, espéeas. O povo diz ainda esléro, estéras, Sabemos que o ditongo portugués ou solreu uma sinizese, equiparando-se fonéticamente a 6. Roubar, REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 281 afrouzar, espoucar e estourar evolveram para 7é- bar, papdedr, etc. Assim como bé-tarde, aléprddo e alépddo passaram a 0d-tarde, aloprado e aldpado, assim também rdbdr, papdcdr, etc., passaram a 7rd- bar, papocar, etc. Refeito o tema verbal com o aber- to, refez-se igualmente a conjugagao. Alteragav idén- tica experimentou no seio do povo o antropénimo Lourengo, pronunciado Ldrengo, através de Lérengo. Em alguns verbos que tém 0 ditongo ei na sfla- ba proténica, como inteirdr, feirdr, beirdr, se veriti- ca modificagéo paralela A dos verbos que tém ou. O ditongo e¢ passa facilmente a é, Inleirar, feirar e beirar pronunciam-se intérdr, férdr e bérdr. O a té- nico aberto abviu o e do infinitivo. passando-se por isso a dizer intéro, intéras, féro, féras, béro, béras. Com o primeiro verbo j& é geral a conjugagio me- tafénica; com os dois outros, mantém-se na esfera papal, onde né&o é@ raro ouvir ekéro, chéras (chei- rar). A nossa plebe usa e abusa de por’mé-de (pur- mode}, pro-mé-de (primode), pré-mé-de e pr’amd-de. Logo se vé af a _locugaéo portuguesa por amor de, que o povo em Portugal pronuncia por’mor de, como no-lo mostram as seguintes frases : —E’ por'mér da ceia...--elucidou a Januaria, de cocoras 4 lareira, (Sousa Costa, «Ressurreigdo», 13.) —Ouve 6 Duarte... Estive hoje, vai n&o vai, p’ra dizer ao fidalgo que 0 «preguntava» amanha por’mér c4 duma coisa. (P. 99) Como se tera dado a mudang¢a, tdo estranha e inesperada, do o fechado para aberto ? O exame dos testos talvez nos possa guiar com alguma segu- ranga: —Isso de vocé pensar que nico acha quem Ihe queira, sé p’r amor de uma desgraca que acontece p'ra Fulano e p’ra Beltrano.,....... (Valdomiro Silveira, «Caboclos», p. 1.) . —Mas a resto, seu Chico, mecé desembucha ou nao o seu queixume? Diz que veio aqui p’r amor de uns falatorios... (P. 9) —Destes tempos p’ra c4 eu ando numa esgana- gio pr’ amér de truita, seja o que for! (P. 15) 282 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ —Morreu! O cachorro que lavou a m4o no meu filho, quando meu filho tem pai vivo p’ra Ihe dar a ensinagdo percisa, ‘ta morto! E ainda mais p’r amér de que? p’r amor de um garréte... (P. 22) A moda de namorar eu ensino p’ra vancé: vancé ponha bem sentido, p’r amor de vancé aprender. (P. 31) —Eu andava na tengéo de lhe pagdé, mas que- ria mérmo que océ apparecesse que era mode eu espilicd, (Leonardo Mota, «Cantadores», p. 306.) —Mas p’ra que diabo é que océ qué tanta coi- sa?—O home! 6 p’ra mode se passd as escriptu- ra... (Tb.) Vé-se que também usam mode e pr’ amér-de, sendo esta ultima maneira de dizer a que mais se aproxima da locu¢aéo puramente portuguesa, Compli- ea-se o problema e, para entrar-Ihe na quididade, forga 6 continuemos a investigar. Entre as locugées mais popularizadas, encontramos a modo que, a mo- dos que: A condessa arrigaram-na do rio, algapremando-a p'los cabélos, que ia ji a modos que atogada. (Sousa Costa, «Ressurreigdo>, 370.) _ Essa expressiio transformou-se na boca da ar- raia-miida em @ mode que, mode que, a m6 quee m6 que: —Arre, diabo! que eu a md que ‘tou mesmo vestida de anjo! (Valdomiro Silveira, «Caboclos», 29.) —Aquiio p’ra corté vara mode coisa que fez foi premessa... (Leonardo Mota, «Cantadores», 326.) Outra divida é a passagem de a modo que para a mode que. Se atentarmos bem nas duas locugdes (por amor de e a modo que), acompanhando-as na ‘sua evolucdo, até achaé-las meio identificadas em mode (mode eu espilicd e mode coisa que fez foi premes- sa}, compreendemos que houve uma interpenetragdo, uma contaminacao mitua, dos dois modismos, sem REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA' 283 duvida por se ter formado, a par da locuc&o prepo- sitiva por amor de, a locugdo conjuntiva por amor de que, bem como a modo de; ao lado de a modo que, criagdes analdgicamente moldadas em a fim de ea fim de que, coma condigdo de e com a con- digdo de que, a pesar de ea pesar de que, ete. Entéio, a modo de e a modo que, iniluindo em por'mé-de e por'mé-de que, transiormaram-nos em por'md-de e por'mé-de que. ste modismo, influinde por sua vez em @ modo que, transformou-o em a mode que. A préclise determinou modificagées pos- teriores: mode, a md que, mode que, etc. Por causa muito diversa, temos amér (com 0 aberto), na frase dos pedintes, wma esmola pel’ amér de Deus, em que também as vezes aparece Déus, ora com é@ semi-aberto, ora francamente aberte, e que ja expliquei cabalmente nas «Cirandas Infantis». (1) Bles fazem recair o acento enfatico na palavra esmola, que pronunciam esmooola, e 0 o assim for- temente acentuado contagiou o seu timbre aberto a amor e Deus. Trata-se, pois, de um notdvel caso de metafonia regressiva, operada de uma palavra para outra, Agora, é j4 tempo de estudar os diversos fone- mas separadamente. S6 tomarei em consideracio aqueles que oferegam divergéncias entre o portu- gués geral e o portugués usado comumente no Ceara. VOGAIS A Na linguagem comum, familiar ou popular, 86 temos duas espécies de a, aberto se oral, semi-aber- to se nasal. O @ fechado existe, mas em casos especialissimos, que considerarei ao tratar do ritmo, Na fala natural, a pronincia da preposi¢aéo para e da pessoa verbal para é perfeitamente igual. (i) Separata da «Rev. do Inst. do Ceara», ano XLVI; p. 12. 284 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ Passa facilmente a e no seio do povo: Reimun- do, treigdo, escandeloso, colerinho, esgarguelar, hé (por hd). Essa permuta pode-se em muitos casos ex- plicar por assimilacdo, dissimilagdo, analogia, etc.; mas noutros s6 encontra uma explicagio, que os fi- lélogos obstinadamente nao tém querido ver, mas que nem por isso deixa de ser absolutamente certa: no portugués, geral ou dialetal, hA uma verdadeira simpatia entre ae e, ténicos ou adtonos, orais ou nasais, de modo que é facil a passagem do primeiro ao segundo e mais facil ainda a do segundo ao primeiro. Nao se deve esquecer que, u0 Minho, mas é igual a ms, como o inglés bad, e que, no Algarve, an- tes de uma consoante, 0 e passa igualmente a ee (festa; pé, mas pes}, e se pronuncia tres (trés) no Alentejo. O Dr. Leite de Vasconcelos, que nos en- sina isso, ensina-nos ainda (1) que oa ténico se torna eeu consideravel territério da Beira-Baixa|e do Alto- -Alentejo (gieda, quema, crivér), tendmeno que se observa, antes de m e 7, em Ferreira-d’Aves (Bei- ra-Alta), como em remo e peno (ramo e pano), bem como que d inicial tem tendéncia para seltornar en no Algarve (entigameute, endar). Passa a o em ecorenta, contia, coresma. Deu-se af a assimilagdo do a ao u da silaba inicial qua (qua- venta, quantia, quaresma) e, depois, a absorpgao ou, Dé i em Jinuaro e jinela, populares. Em tombém ou tomém, que, ao lado de tamém, se ouve entre os matutos, foi assimilado pelo Ue pelu m. Enquanto, no portugués geral, antes de z ha ditongagio de a (graiza, faiza, baizo), entre nés o7 desaparece, ainda que etimolégico (bazo, fara, gra- ma, eaxa, paxdo). Nasal final, perde a nasalidade no falar da ple-" be: ima, orfa. Como em todo o dominio da lingua portuguesa, alarga-se num ditongo em sdigue, por sangue. EB’ o (1) «Esquisse d'uze Dialectologie Portugaises, p. 88 € 98. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 285 caso de cdibra, por cambra, e do lusitanismo tdique, por lanque. O encontro de dois aa produz muitas vezes a iotizagio no linguajar plebeu. A-t-agua, por a agua, é comunfssimo entre os aguadeiros, Au tende a transformar-se em 6 na boca dos ris- ticos: Pidé. Ao final 4tono passa a o: orfo, orgo, amaro, foro, passearo. Nos verbos, também se profere um: amarum, forum, passearum. Mas quer umas quer outras modalidades existem sdmente no meio do povo. E Oral inicfal, como parte de sflabas cobertas por le r,das silabas inicfais re, de, per e pre, 6 em ge- ral aberto, resistindo a metafonia: élisto, abélmosco, rédizer, defender, pérfazer, prédizer. Diz-se, porém, mércé (menos geralmente, mércé), pérdér, rétér, dé- fésa, por que a vogal proténica nao péde fugir a in- fluéncia da vogal ténica. Medial, entre os roceiros, passa facilmente a a, bem como no préprio portugués geral; mas, caso no- tavel, resiste firmemente antes das palatais: alamdo, papaconha (por ipepaconha, que € no Cearaé a de- nominagéo mais comum e desafetada da planta me- dicinal conhecida entre os eruditos por itpecacua- nha), libaral, rasvalar; mas tenho, vejo, espelho, po- rém. Seguido de vogal, vale i (liar, amiaea, tior); mas tende a pronunciar-se claramente em alguns ca- sos (idéal, aldéota). E &tono tem o som de i (minino istrondo, zine- bra, piqueno), quando escapa 4 metafonia. Nos mo- nossilabos dtonos, antes de vogal, é um i atenuado que se aproxima do som lusitano e soa antes entre ee 7, passando, porém, as vezes, a um ié bem ca- racterizado (que represento por y): deu-me o livro é igual a déu-my-u-livru; isto é de Anténio (de, com e entre ee i); antes de consoante, vale em geral i, mas as vezes € também reduzido: hei de falar. S6 286 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ desaparece em expressées fixadas, como d'agua (copo d'agua, jarra d’agua), d’egua (pai-d’egua). Final, passa também algumas vezes a a (pelha, por pele) no dialeto popular. Inicial nasal, ou d& 7, como no portugués geral, ou ditonga-se: intender ou eifender (com o ditongo nasal), inforcar ou eiforcar (com o ditongo nasai). Mas entrar 6 geral, e a plebe diz anido e Hanrique. A prontincia com 7 nasal tende a fixar-se na lingua- gem do povo,e com o ditongo nasal nas classes mais elevadas. Final nasal ditongado, sofre redugéio a vogal no dialeto popular: bobage, home, image, babuge, vertige. O ditongo ei persiste quando seguido de vogal, na silaba predominante dos oxitonos e antes de d, g,m, n,t,v e@ 2, e monotonga-se bos outros casos: passeio, correio, rei, lei, caleidoscépio, peido, meigo, leigo, teima, reimoso, reino, treino, leito, feito, eiva, lei- va, meizinha, reisada; béjo, lécénco, quéjo, léldo, péze, peréra. Entretanto, o comum € mantéga e Alméda. Fi- nal, em palavrus baritonas, reduz-se a ¢ atono : ama- ves, vendaves, voluves. Isto, porém, 86 entre os anal- fabetos. Antes de 7, em silaba preténica, tende a dar é: quera-Deus!, chiquérador (por chiqueirador, pri- mitivamente o instrumento com que se chigueiram os animais), Léria, bérada. Quéra-Deus! nao € senao, como se vé imediatamente, queira Deus!, expressio interjectiva que se manteve pura como optativa e se alterou como dubitativa. Ndo se pense que é um caso de dissimilagao morfolégica ou sem4ntica. Nao. E’ um caso puramente fonético, de intonagéio. Quando se quer expressar 0 desejo, acentua-se mais fortemen- te a silaba tonica de queira, que, por isso, fica inal- terdvel; no caso da divida, j4 o verbo nfo mantém o seu valor significativo préprio, torna-se por isso meramente proclitice, e como palavra proclitica é tratado. O apelido Figueiredo passou a Figuérédo e nio a Figuéredo, por causa do e tonico fechado, que vem imediatamente apés o ditongo. O ditongo eu inicial tende a ser proferido 6 pe- los risticos: Oropa (Europa), Olaia (Eulalia), Orico (Eurico). REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA' 287 I O nosso 7 é semi-aberto e o seu tanto dental. Re- quere, ao pronunciar-se, que a lingua acompanhe a curva palatina e v4 apoiar a ponta na parte posterior dos incisivos inferiores, concomitante isso com uma leve retragdo dos cantos da boca. Lembra o u fran- eés, conquanto se didiference déle nitidamente, Ha dissemelhanga manifesta entre o i pronunciado por um cearense e, por exemplo, por um alagoano ou cergipane. Como elemento de ditongo, mantém-se vogal, nio se consonantiza absolutamente; ¢, porém, mais atenuado que noutra posi¢éio, e produz, como em Portugal, um ié claramente emitido, se depois vem uma vogal: veio (vel-io) maior (mai-ior), saia (sai-ia). Final de pessoas verbais, alarga-se: partéi, fu- gti, corrii. Final seguido de J, tende a mudar-se em ¢ aber- to atenvado, no coloquialismo : fdcét, dificél. E’ 0 caso do sufixo vel: amdvel. Medial precedido de J, tende a formar com éle a fonema lh, como tende a formar com 7 o fonema nh, se de n & precedido: mobilha, familha, Anto- nho, Estefanha. Inicial seguido de d ou J, tende a nasalizar-se entre os rusticos: indiota, indade, inleigdo, inlustre. Inicial nasal, passa as vezesa em: enveja (pro- nuncie-se eiveja, com o ditongo nasal). E, entre os risticos, pode cair: mundiga ou mundice é para éles o conjunto de pessoas acanalhadas ou de bichos imundos ou nocivos. Em Portugal, segundo Candido de Figueiredo, a palavra significa porcos, ovelhas ou cabras e aparece na vasta obra camiliana. Os matutos tendem a pronunciar é, antes de fe r: détamar, déférenca, cérconstancga, vértude. Tam- pém déeploma e prenméro. Como elemento de hiato, mantém-se vogal, 86 se consonantizando na rapidez da linguagem emoti- va: pi-e-da-de. qui-e-to, di-a-bo. Emotivamente, sobre- tudo na linguagem denotadora de raiva : dya-bo, quye- -to, pye-da-de. . 288 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ O @ dtono chega as vezes a passar a0 é redu- zido dos monossilabos Atonos, podendo até cair: ez- permentar; combinagdo > combenacdo > comenacdo > com’nagdo. oO Inicial, em silaba coberta por 7, nos prefixos ob e co e na sflaba inicial pro, prefixal ou nao, 6 ge- ralmente aberto, resistindo A metafonia: obedecer, cérdilheira, dbsoleto, coparticipar, prdoteger, prota- gonista. Em algumas palavras é proferido wm pelos anal- fabetos: cunzinha, gunverno. Em sujigar e em premessa houve, no primeiro, dissimilagao e, no segundo, assimilagéio: w+ uu, Gote == @. Final, néo raro passa para e: pife (pitaro), fofe (fésforo). Conquanto sé se verilique essa permuta nas classes baixas, entretanto pife é também fami- liar. Como terminagado da terceira pessoa do singu- lar do pretérito perfeito do indicative do verbo vir, mantém-se quando em pausa ou insulada a forma verbal (bem como em prontincia esmerada), mas tev- de a cair nos outros casos: veio, jd veio; vei on- tem, vei tarde. Os risticos estendem essa tendéncia a todos os oo finais precedidos de ditongo: dé-me o ferroi (lerrolho), o ferrot esld at; o moi (molho), 0 moi de lenha, mei-dia ; Como ferrdi por janella (Leonardo Mota, «Canta- dores», 16.) Como pidi por cabega (Ib.) Um mé¢o vei me fala (?. 24) Negro criado em mei de desgraga (P. 39) © Alfére véi n&éo correu (P 43) E’ o caso do lusitano Ri-éaior, mé-dia, Pai- -Pires Nasal final, mantém-se. Ndo hd, por exemplo, a prontincia bdo de algumas zonas do Brasil e de Por- tugal. Mas 6 muito comum pronunciar-se dao, que chega até a aparecer escrito: REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 289 Na rua do Imperador, no quarteirio entre as ruas Sio Bernardo e Déo Pedro......... («Correio do Ceara», 20 de Junho de 1919.) Na preposigio com seguida de vogal, reduz-se o o nasala um o fechado brevissimo: ¢6-0, cé-éle. No falar do povo, desaparece inteiramente ao jun- tar-se com os artigos: vou co filko déle, ca mulher, cum menino, cua (u nasal) mo¢ga. Medial nasal dtono, o dialeto rastico tende a transforma-lo em um: cumpa- de, srmuntae), cunversa{r), acumpdia(r) (acompa- nhar). O ditongo ou monotonga-se, salvo em casos es- pecialissimos, de que tratarei so falar do ritmo, Como modalidade de ou, aparece oi em oito, otleiro, oilde, noite, moita, afoito, foice, agotte, doido, biscoito, dois, coilo, coisa, coice, coitado e nos cognatos, Diz-se en- tretanto Outubro. O povo diz loicga, Oitubro, poiso, Soisa. Os casos de indecisio mais notdveis que co- nhego sio os de toicinho, que luta com toucinho, sendo ambos de largo uso, e do plebeismo paulista eoiragdo, ao lado de eéragdo, As vogais nasais, mais ou menos abertas, que ha em algumas zonas de Por- tugal, sio comuns no Brasil, principalmente no nor- te, onde predominam. Dai, eéragdéo (por metafonia) no Ceara e eéragdo em S.-Paulo. Como zopo e zopei- ro, que, analogicamente, evolveram para zoupo e zou- peiro, céragdo, tratado coma se fésse couragdo, pas- sou a cotragdo : Gyro a minha vida sem peso nem um no coira- edo (Vaidomiro Silveira, «Caboclos>, 9.) Aquilo é que foi um home de coiragdo! (P. 34) U E’ a vogal que menor nimero de diferencas ofe- rece no portugués do Cearé e mesmo do Brasil. E’ semi-aberto, como o i, e, como o 7, mantém- se invariavelmente vocdlico quando elemento de di- tongo, posigéo em que é mais atenuado do que em qualquer outra. Mantém-se ainda vogal como elemento de hiato» 290 REVISTA DO INSTITUTO DE CEARA’ podendo consonantizar-se na rapidez da Hnguagem emotiva, sobretudo se denota célera : pu-e-ta (poeta), o-ssu-d-ri-o, su-t-no. Emotivamente, pwe-la, o-sswd- ri-o, swi-no. Entretanto, a pronincia de todas as classes sociais e jwa-quim (Joaquim), com um ué bem nitido, como em quadro, quando. Passa as vezes a i, quando inicial nasal: imbi- go, inguento, Imbelina. E’ uma alteracdo do dialeto popular, mas nao é dificil ouvir ¢mbigo a quem fale o dialeto culto. Nasal medial, passa as vezes a on: fongdo. O ditongo wi 4tono naéo 6 normal em portugués; dai, dizer-se Goiana, por Guiana. CONSOANTES J Na linguagem infantil e dos rusticos, transfor- ma-se, antes de vogal palatal, na consoante faucal que emitimos ao rir (Aa-ka-hka), embora um pouco mais atenuada: hente (gente), hiro (giro). As vezes, essa transmutagao aleanga até palavras em que fi- guram as outras vogais: hanela (janela), hogar (jo- gar}, humento (jumento). Essa faucal lembra o nosso 7, velav, e por isso é representada por r por pessoas pouco letradas. N&o pequeno nimero de alunas, ajgumas bem inte- ligentes e aplicadis, me deu assim escrita a quadra de uma ciranda em que se imita uma gargalhada: Ra ra rai, ra ra rai, rai! Ra ra rai, ré ra rai, rai! Esta résca que aqui esta ha de ser comida ja. (1) Medial, pode passar a z: Brizida. 264, (1) «Cirandas Infantiss, «Revista do Inst. do Ceara», XLVIII, p. 264. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 291 L Esta consoante 6 ligeiramente palatalizada quan- do em contacto com vogal palatal. Por isso, passa Yacilmente a /hk, como em pelhe e pelha, por pele, e mobilhar, que os eruditos por incompreensfio escre- vem mobiliar, como se cerivasse de mobilia e quan- do é apenas natural alteragéo de mobilar, o que se prova por mostrar que 0 presente do indicativo é mobilho e nao mobilio. O portugués geral apresenta modifica¢aéo idéntica em varias palavras: camomilka, esmerilhar, pelhanca, desencarrilhar, apostilha, tre- metlhicar, goritha, balha (ant.) e até gorgothar. Depois de vogal, conserva a sua qualidade de pingue em algumas regides do Estado, tomando as vezes,na linguagem do povo, uma vogal de apoio: Silivestre, Silivério, dificulidade, malo (mal), qualo {qual). Note-se que a vogal parasitica é atenuada e que o Z lusitano de pausa também se apoia em vo- gal. Todavia, o seu valor mais comum é entre néso de u, ora mais, ora menos caracterizado. Pronuncia- mos capitau, caracéu, bacharéu, funiu e até padu, O mesmo se deu em latim. Diocleciano — é citacio classica—esrcreveu cauculus, por calculus. B, em tran- cés, paume e auire provém de palma e aller, como, em portugués, ouleiro, de alfarium, e souto, de sal- tum. Lusitanos incultos eserevem caugdo, por cal- ¢do. (1) Nao jé no periodo de transformagéio, mas no de plena florescéncia, encontram-se em portugués palavras em que ocorrem, ao lado um do outro, / eu, em alguns casos pela proximidade entre éles existen- te: alaeral e lacrau, esquimal e esquimau, lebrel e le- bréu, vergel e virgéu (ant.), pardal e pardau, pincel e pineéu (ant.), alvanel e alvanéu, peralta e perauta (prov. lusitano), No dialeto popular, é absorvido em Carlos, pro- nunciado Carro. No mesmo dialeto, passa ar em descurpar, lan- dra (glandula), craro, forguedo e cramar. Essa per- muta néo é normal no Ceardé, Em eraro, landra e (1) Gongalves Viana, «Ortugrafia Nacional», p. 38 e 34 292 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ cramar, explica-se perfeitamente : cl, dl=cr, dr. Mas, em descurpar, forguedo, quero crer que é 4 penetra- ¢ao de um pernanbucanismo. Em Pernambuco e Ala- goas 6 que é normal a passagem de 1 a 7. O portu- gués geral oferece o exemplo de vocdbulos em que existem as duas consoantes: alquicel e alquicer, pa- guel @ paguer, alvenel e alvener, pintassilgo e pin- tassirgo. Nessas palavras, porém, or h& de ter pre- cedido ao /, como em erister {ao lado de celister) e cristel, aluguer e aluguel, patamar e patamal (prov. lusit.). A formagao de pintassirgo é indubitavelmen- te 0 substantivo pinta e o adjetivo sirga, yue pas- sou a sirgo arrastado pela idea do masculino. Lh Conserva-se antes de a@,o e u, mas é um I li- geiramente palatalizado (é érro gravissimo coniun- air l palatalizado e ih, como fazem alguns) antes de e et surdos, pela quase impossibilidade que temos de emili-lo em tais circunstancias. O pronome /ke, por exemplo, é proferido le: dou-le o livro. Os rasticos suprimem-no depois de i e vocali- zam-no em 7 depvis das outras vogais: mio (milho), paia (palha), véia (velha), foia (folha), tude (tulha). les dizem entretanto piléria e aleio, com | patali- zado. Hé em Portugal o provincianismo meleia, por motlhelha, que se pode explicar por dissimilagdo. M Nasaliza a vogal anterior nao ditongada: mé- mae, cama, lenma, fizenmos, prinmo, cinmo, cdmicio, nomar, lunme, runmar; mas anddime, Jdime. Ja se diz, a pesar disso, Baima. Naéo repugnz ao povo o ditongo consonantal mr: mar-mre, nu-mro. Nao pronunciamos absolutamente um m em cam- po e cdémbio. Essas palavras estariam muito bem escritas com 7, se néo fésse 0 m de uso geral A consoante nasal 6 meramente ortoépica,serve apenas REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 293 para mostrar a nasalidade da vogal anterior, nao tra- duz um fonema. Que ha som intermedidrio entre cam e po ou bio é incontestével; mas nio se carac- teriza de tal manvira, que seja preciso notd-lo gra- ficamente. Quem escreverd 0 som intermedidrio que existe entre a silaba inicial de capdo e cabo e a silaba final? Estou eapacitado de que ésse m néo existe no Brasil, nem mesmo em Portugal. E’ facil verificd-lo, pondo campo, por exemplo, ao lado do inglés camp. Que dilerenga de prontucia! No Ceara, temos um tira-teima de primeira ordem, E’a expres- sdo vam’bora ou vambora, do povo, por vamos em- bora. A prosédia da primeira variante, em que ha mb, 6 muito diferente da segunda,em que ha apenas &, antecedido de vogal nasal. N Nasaliza a vogal anterior nao difongada: pédni- ficdr, lama, sennectude, tennenie, minna, pinno, mondstico, consdnantdl. punnir, funnil; mas sotdina, sdinete. J& se diz, a pesar disso, poldina ou poldina, comezdina ou comezdina, amdinar ou amdinar; e, se se trata de um 7% precedido de J, sé 0 nasaliza se éle for ténico: linno, mas linear, lindtipo. - Inicial, passa algumas vezes a 1: lebrina (ou librina), a par de neblina, e liforme, ao lado de uni- forme, de certo através de niforme, 840 gerais. Ca- sos idénticos a lembrar por membrar (lat. memo- rare), através de nemobrar, e licorne, a par de uni- corne, através certamente de nicorne. Rm francés ha também Hzorne, como ha, popularmente, luméro, por numéro. (1) Final proferido, desaparece depois de ditongar oee nasalar as outras vogais: regimem, hifem, abdo- mem; cdn6 (cinon), lézicd (léxicon), Benjamim, Frdn- elim, Quanto ao agma, isto 6, o pretenso n de dncora © angiustia, fago, «mutatis mutandis»,as mesmas afir- (1)-Georges Gougenheim, «La Langue Populaire dans le premier quart du XIXe. siécles, p, 58; «Les Belles Lettres», Pa- 3, 291 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ magées e observagdes que fiz em relagdo ao m de campo e edmbio. Nh Nasaliza sempre a vogal anterior nao ditongada: apdnhdr, punnho, ponko, linnho, tennko. Por isso é que algumas palavras, como embainhar, desembai- nhar, redemotnho (oi-ui), que tiveram primeiro a di- tongagfio do hiato e depois a sinizese do ditongo, passaram a ter nasalada a vogal que vem antes do nh: embdnhdr, desembankdr, redemunnho. S6 a pro- nincia esmerada fere 0 dirongo. 2’ modificacao igual ao dialetismo lusitano munho, por moinko, e seme- Thante ao popularismo brasileiro e lusitano rue (uw nasal), por ruim, palavra que tem mais a forma po- pular rée em certos pontos de Portugal e rwim no Ceara. Mantendo-se em prontincia esmerada, vocaliza- -se (i) na linguagem desafetada, formando ditongo com a vogal anterior, se nao 67: apdidr, pdio, puio (u nasal), tefo (e nasal). Cai depois de é: tia, lia, mia (i nasal). E’ um verdadeiro retrocesso as formas primi- tivas: feneo>leio (e nasal) > tenho > teio fe na- sal). Mais ou menos 0 mesmo se dé na passagem para linguas que nao tém o som rh, como o demonstra o yam inglés, se 6 que de fato procede do portugués inhame. R O r forte cearense 6 uma consoante velar que se articula com o tronco da lingua aproximado do palato mole. Assemelha-se muitissimo ao j castelha- nO, Com o qual serd sem a menor dtvida confundi- do por estrangeiro que o nfo tenha na sua lingua patria, mas do qual em verdade se distingue, por que € uma das muitas modalidades perfeitamente ca- racterizadas dor. ~ Final de silaba, 6 em geral forte (represento-o por A), mas 6 brando (represento-o por 7), como no portugués geral, antes deg, g e p: paRdal; mas REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 295 arco, carga, harpa. Antes de f, me v, ouvem-se as duas prontincias: aRfar e arfar, aRmar e armar, dRvore e drvore. Entretanto, hé tendéncia geral para proferi-lo sempre forte quando elemento de silaba ténica. Final de palavra, nao é pronunciado pelo povo. As mesmas pessoas cultas nem sempre costumam emiti-lo e, quando se querem esmerar, carregam nele de tal maneira, que o tornam dspero ao ouvido do proprio cearense. O fendmeno do desaparecimento 6 também, de modo mais restrito, verificado em Por- tugal, onde so sabe que, na linguagem corrente, de- saparece facilmente o r que vem antes da consoante inicial da palavra seguinte: trabalhdé todo o dita, comprd caro, se ndo fé muito tarde. Na linguagem do povo, é mével nas sflabas ini- ciais per e pre. Dal, perciso, e preguntar, que ofe- rece outras variedades: priguntar, proguntar e pru- guntar. O povo dissimilou-o na palavra Bernardo, que pronuneia Bernado. Tornando-se elemento de silaba posténica, pela queda da vogul anterior, o que se verifica nas clas- ses incultas, que quase nio conhecem proparox{to- nos, ora cai, ora persiste, chegando até a constituir ditongos de emissao dificilima: Alvro; arvre, marmre, numro, passro; fofe, pife. Estas Gltimas formas nfo sio estranhas a lingua de Portugal, onde é popular fofee onde Filinto Hlisio usou pifre. O nosso pife &, como ja disse, também da linguagem _ corrente. Nas palavras em que se mantém ditongado, o 7 cai, se elas soirem aflexfio gradativa: Alvinho, arvdo, arvi- nha, passdo, passinho. Final ditongado, em_silaba posténica, seguido de vogal, esté, como em Portugal, sujeito a cair, Nem de outro modo nos é possivel explicar o usadissimo verbo almiscar, que significa ezalar mau cheiro. De almisere (forma concorrente com almisear, como almogdvar e almogavre, ldcar e lacre,dmbar e ambre, aljofar e aljéfre),nome de certa substancia e de uma planta aromdticas, fizemos almisque (conf. almocd- var e almocave, por almocavre), donde facil nos foi derivar almisear. 296 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ Todos pronunciamos prdpio, como em caste- thano, e ninguém diré préprio, a nao ser em pro- nincia esmerada; mas neste caso deve ter ocorrido uma dissimilagdo: pr-+ pr=pr-+ p. Contrariamente, a pesar de se chamar boneca & figura de trapo, diz-se bonecra e bonecrar em re- feréneia ao milho que espiga e ds espigas mesmas. Os lusos tém bonecro, bonecra e bonecragem. Passa excepcionalmente a lem aplumar. Em relagio a galga, no preceito popular segundo o qual € 6timo o cavalo que tem cabeca de pato, dlho de galgo, pescogo de gaica, houve uma influéncia de gaigo em garga. (1) Ss Final de palavra ou em ligacao, é sempre igual a um 2, atenuado no primeiro caso: uz (08), rdruz {raros), cdsaz, uz Omenz (os homens), tranz-itar (trans- itar), ez-emplo (exemplo). Final de sflaba, seguido de consoante, 6 em ge- ral um fonema surdo, se a consoante 6 surda, e sonoro, se sonora. Assim, antes de f, q e p, equivale a um ¢ atenuado (bla¢fémia, cagco, eugpir) e, antes det, a um @ atenuado (buzto); mas, antes de b, g, me uv, equivale a um z atenuado (lézbio, engazgar, éemo, rezvalar) e, antes de d, l, lh e m, a um j ate- nuado (dejde, brojlar, aj-Lhamas, grajnar). De modo e maneira que o s reverso do portugués europeu sdmente antes de apical ndo fricativa aparece entre nés, sem vacilagdes nem excepgdes: dejdar, dejlo- car, tijnar; éxte, coxta, tortdo. E’ absorvido antes das apicais e palatais fricativas e da reversa vibrante, isto 6, antes de ¢, z,2, j e 7. a-sortles, a-zangas, a-chaves, o-judeus, o-ratos. A par da absorp¢do, ocorre também a vocalizacdo do s : ai-sortes ai-zan- gas, ai-chaves, ui-judeus (ui=-os), ui-ratos. E' esta a nica prontincia no seio do povo, que assim marca o plural: ai-chave, ut-judeu. Se se afrouxa o lacgo (2) Og Sinais de Galvdos, «Rev. do Inst. do Ceards, ano XLVII,’p. 29 ¢ at. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 297 fonético existente entre o artigo e o nome, isto é, se 0 s deixa de estar em contacto mais intime com a consoante seguinte, sem entretanto escapar-lhe de todo a influéncia, vale ¢ antes de surda e z antes de sonora: as fitas, os queijos, os pianos, os timulos, os sonhos, os xaropes; oz bancos,oz dedos,oz veados, az zébras, oz jambos, az thamas, oz rombos, az ladeiras, oz ninhos, az mdes, oz gados. No dialeto popular, passa facilmente a r antes de d, e consoante nasal: ur-dia (os dias}, ur-dedo (os dedos), mermo (mesmo), a7-manga (as mangas}, derde (desde),ur-nome (os nomes). A par do plebeis- mo derde, hé derna, termo da seguinte série de trans- formagées: desde > desne > derne > derna. E’ assimilado em «exo e destrinzar, por seizo (pronunciado sézo) e destringar, éste tltimo até do dialeto culto. lgualmente, em referéncia a4 pequena bomba de borracha, mas nao ao leite da «hevea bra- Siliensis», 6 dificil ouvir seringa,em vez de zeringa, & pessoas do povo. Aeringa € mesmo familiar. Esta assimilacéo dé-se também no portugués da Penin- sula, que conhece pintarilgo, ao lado de pin- tassilgo, e roxecré, ao lado de rosieré. E’ ainda assimilado em subsistir e obséquio, pronunciados subzistir e obzéquio. Final de palavra, precedido de vogal ténica, se nao é expoente do plural, alarga-a num ditongo: ananals, gurupéis, franceis, aniis, caddis, puriis, éis (ao lado de és, verbo ser), pris e pots (pretéri- to do verbo por). Se o plural é monossilabo, ja se vai manifestando tendéncia para alargar-Ihe também a vogal: péis. Este fato lembra o piemontés, onde 6 até mais extensivo: 'l giérnal turineis,; la vita turi- neisa, piemdnteisa. Final de palavra, expoente ou n&o do plural, desaparece no dialeto popular: o alfere,o ourive, os livre, as ave. Medial, no dialeto rustico, passa as vezes a j antes de vogal (quaje); cai antes de e (decer, xacer). Familiarmente, é de uso dilatado 0 verbo reduzir com a significegio de seduzir: éle me reduziu, ar- rastando-me a luta, e fugiu logo depois. Nio me 298 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ parece se trate de rotizagéo,mas de um fato de con- taminagao semantica. Sabemos que seduzir signilica, «inter alia», desviar do bom caminho, fazer cair em érro, enganar ardilosamente, atrair, fascinar, domi- nar a vontade de alguém, e reduzir—proporcionar md situagdo a alguém, subjugar, sujeitar, converter, transformar, diminuir. Ora, desviar alguém do bom caminho é proporcionar-lhe m4 situagdo; atraf-lo, do- minar-lhe a vontade, é subjugé-lo, é sujeita-lo, 6 di- minuf-lo. Dai, muito naturalmente, a substituicdo de seduzir por reduzir, facilitada pela semelhanga morfolégica. Vv Transforma-se, no dialeto ristico e no infantil, na mesma faucal em que se transmuta o j que vem antes de palatal: estaha (estava), ahia (havia}, hamo (vamos). Cavalo passa a cahalo,e até a chalo! (com o ¢, duro, seguido imediatamente da faucal)e halo !. Por isso € que alguns autores escrevem océ, caalo e calo, quando querem traduzir a linguagem popular. A faucalé as vezes téo reduzida, que s6 um ouvido experimentado pode apreendé-la. Pode, entre o povo, permutar com 0: barrer, berruga; gavar, desenzavido, Z Final de vocdbulo oxftono, pronuncia-se atenua- damente e determina o alargamento da vogal ante- rior num ditongo: fais (faz), déis (dez), peis (pez), giis (giz), arrois (arroz), luis (luz). Antes de vogal palatal, também pode passar a faucal caracteristica do riso, na linguagem da crian- ga e do povo: fahé (fazer), fahia (fazia), fakenda tazenda). Daf, ser muito comum ouvir ma-h-eu, ma-h-é isso, por mas eu, mas é isso. O s final, que se liga como z a palavra seguinte, comegada por pa- latal, passa a h. Portanto, trés consoantes portugue- sas tendem a unificar-se na faucal #, na linguagem

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